ATORMENTADA
Folha de Rosto
JEANNINE GARSEE
ATORMENTADA
Tradução: DENISE DE C. ROCHA DELELA
Créditos
Título do original: The Unquiet. Copyright © 2012 Jeannine Garsee. Copyright da edição brasileira © 2012 Editora Pensamento-Cultrix Ltda. Publicado pela primeira vez na Grã-Bretanha pela Bloomsbury Publishing. Texto de acordo com as novas regras ortográficas da língua portuguesa. 1ª edição 2013. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou usada de qualquer forma ou por qualquer meio, eletrônico ou mecânico, inclusive fotocópias, gravações ou sistema de armazenamento em banco de dados, sem permissão por escrito, exceto nos casos de trechos curtos citados em resenhas críticas ou artigos de revistas. A Editora Jangada não se responsabiliza por eventuais mudanças ocorridas nos endereços convencionais ou eletrônicos citados neste livro. Esta é uma obra de ficção. Todos os personagens, organizações e acontecimentos retratados neste romance são produto da imaginação da autora. Editor: Adilson Silva Ramachandra Editora de texto: Denise de C. Rocha Delela Coordenação editorial: Roseli de S. Ferraz Produção editorial: Indiara Faria Kayo Assistente de produção editorial: Estela A. Minas Editoração eletrônica: Fama Editora Revisão: Nilza Agua e Vivian Miwa Matsushita Produção de ebook: S2 Books Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Garsee, Jeannine Atormentada / Jeannine Garsee ; tradução Denise de C. Rocha Delela. — 1. ed. — São Paulo : Jangada, 2013. Título original: The unquiet ISBN 978-85-64850-39-2 1. Ficção fantástica norte-americana I. Título. 13-06635
CDD-813 1ª Edição digital: 2013 e-ISBN: 978-85-64850-48-4 Índices para catálogo sistemático: 1. Ficção : Literatura norte-americana 813
Jangada é um selo editorial da Pensamento-Cultrix Ltda. Direitos de tradução para o Brasil adquiridos com exclusividade pela EDITORA PENSAMENTO-CULTRIX LTDA., que se reserva a propriedade literária desta tradução.
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Dedicat贸ria
Para Ruth Ward, que me entende perfeitamente
Às vezes, quando eu sonho, o pior momento da minha vida acontece outra vez. É nessa hora que eu tenho a chance de fazer as coisas de modo diferente. Quando vejo a fumaça de onde estou, na praia, não fico ali como uma estátua, me perguntando se estou sonhando. Em vez disso, eu corro pela areia até a colina rochosa, machucando os pés nas brasas e no mato. Colunas de fumaça saem das janelas do chalé, entupindo a minha garganta. Apesar da chuva constante, as chamas alaranjadas crepitam e lambem as paredes. Meu rosto queima. Eu sinto minha pele derretendo. Indiferente a tudo isso, eu me atiro dentro do chalé. O martelo cai da mão de Nana quando ela dá as costas para a porta do meu quarto, com o rosto iluminado de alegria e surpresa. — Rinnie! Aí está você! Lanço-me em seus braços, enterrando o rosto em seu pescoço. Abraçando-a. Abraçando-a. Eu não consigo parar de abraçá-la.
Sumário Capa Folha de Rosto Créditos Dedicatória 3 MESES + 13 DIAS Sábado, 18 de outubro 3 MESES + 14 DIAS Domingo, 19 de outubro 3 MESES + 15 DIAS Segunda-feira, 20 de outubro 3 MESES + 16 DIAS Terça-feira, 21 de outubro 3 MESES + 18 DIAS Quinta-feira, 23 de outubro 3 MESES + 19 DIAS Sexta-feira, 24 de outubro 3 MESES + 20 DIAS Sábado, 25 de outubro 3 MESES + 22 DIAS Segunda-feira, 27 de outubro 3 MESES + 23 DIAS Terça-feira, 28 de outubro 3 MESES + 24 DIAS Quarta-feira, 29 de outubro 3 MESES + 25 DIAS Quinta-feira, 30 de outubro 3 MESES + 26 DIAS Sexta-feira, 31 de outubro 3 MESES + 27 DIAS Sábado, 1º de novembro 3 MESES + 28 DIAS Domingo, 2 de novembro 3 MESES + 29 DIAS Segunda-feira, 3 de novembro
3 MESES + 30 DIAS Terça-feira, 4 de novembro 4 MESES EXATOS Quarta-feira, 5 de novembro 4 MESES + 1 DIA Quinta-feira, 6 de novembro 4 MESES + 2 DIAS Sexta-feira, 7 de novembro 4 MESES + 3 DIAS Sábado, 8 de novembro 4 MESES + 4 DIAS Domingo, 9 de novembro 4 MESES + 5 DIAS Segunda-feira, 10 de novembro 4 MESES + 9 DIAS Sexta-feira, 14 de novembro 4 MESES + 10 DIAS Sábado, 15 de novembro 4 MESES + 18 DIAS Domingo, 23 de novembro 4 MESES + 19 DIAS Segunda-feira, 24 de novembro 4 MESES + 20 DIAS Terça-feira, 25 de novembro 4 MESES + 21 DIAS Quarta-feira, 26 de novembro 4 MESES + 22 DIAS Quinta-feira, 27 de novembro 4 MESES + 24 DIAS Sábado, 29 de novembro 4 MESES + 26 DIAS Segunda-feira, 1o de dezembro 4 MESES + 27 DIAS Terça-feira, 2 de dezembro1º Dia de Experimento 4 MESES + 28 DIAS Quarta-feira, 3 de dezembro2º Dia de Experimento 4 MESES + 29 DIAS
Quinta-feira, 4 de dezembro3º Dia de Experimento 5 MESES EXATOS Sexta-feira, 5 de dezembro4º Dia de Experimento 5 MESES + 1 DIA Sábado, 6 de dezembro5º Dia de Experimento 5 MESES + 2 DIAS Domingo, 7 de dezembro6º Dia de Experimento 5 MESES + 3 DIAS Segunda-feira, 8 de dezembro7º Dia de Experimento 5 MESES + 4 DIAS Terça-feira, 9 de dezembro 5 MESES + 5 DIAS Quarta-feira, 10 de dezembro 5 MESES + 7 DIAS Sexta-feira, 12 de dezembro 5 MESES + 8 DIAS Sábado, 13 de dezembro 5 MESES + 9 DIAS Domingo, 14 de dezembro 5 MESES + 10 DIAS Segunda-feira, 15 de dezembro 5 MESES + 11 DIAS Terça-feira, 16 de dezembro 5 MESES + 13 DIAS Quinta-feira, 18 de dezembro 5 MESES + 14 DIAS Sexta-feira, 19 de dezembro ANNALIESE Sábado, 20 de dezembro(sem contar mais os dias) Segunda, 22 de dezembro Uma nota de Jeannine Garsee Agradecimentos Próximos Lançamentos
3 MESES + 13 DIAS Sábado, 18 de outubro
—
Mãe, “fora de serviço” significa “fora de serviço”. Gritar com o celular não vai adiantar.
Minha mãe examina o aparelho inútil. — Como pode? — Não esquenta. Tenho certeza de que podemos encontrar um daqueles telefones antigos por aí. Sabe, como naquele seriado Os Pioneiros? — Eu coloco uma mão em forma de punho fechado diante da boca e giro no ar uma manivela imaginária com a outra. — Manhê! Paiê! Tão me ouvinu agora? — grito, tentando imitar um sotaque caipira. Ela me fulmina com o olhar. — Muito engraçado, Rinn. Bem, eu achei engraçado. Pelo menos eu consigo manter o senso de humor depois de cinco dias inteiros num carro apertado, com uma mãe sofrendo de TPM e oscilações de humor causadas por falta de nicotina. Sem mencionar que o meu iPod morreu em algum lugar entre Phoenix e St. Louis. Nos últimos mil quilômetros, minha mãe me torturou com programas de entrevista pelo rádio. Enquanto ela tenta melhorar, à base da força bruta, a recepção do sinal do celular, eu olho, pela janela, a praça da cidade de River Hills, em Ohio. Ok, Os Pioneiros pode ser um pouco de exagero. Nada de cavalos, charretes, chapéus amarrados sob o queixo, galinhas no meio da rua. Mas também não há semáforos... E alguém me diga o que é aquele restaurante vermelho horroroso, em forma de vagão de trem?! Estacionamos na frente como se fôssemos realmente entrar. — Este é o restaurante da Millie. Não é uma gracinha? — Minha mãe dá um piparote no meu braço. — Não fique bufando pra mim. — Eu não bufei. Estou com alergia. — Alergia a quê? — A toda essa porcaria de ar puro. — Eu finjo uma tosse. — Meu organismo não aguenta. Talvez seja melhor eu sair do carro e sugar a fumaça do escapamento por um minuto. — Corinne, por favor. Não quero que as coisas sejam desse jeito pelo...
— ... resto da minha vida? — Não, pelo tempo que decidirmos ficar aqui. Sinto um fio de esperança. — Então há chance de voltarmos? — Querida, eu já disse, nada está gravado em pedra. Frank e eu precisamos pensar sobre tudo o que aconteceu, e você e eu precisamos... bem... ficar longe dele por um tempo. Os eufemismos da minha mãe nunca deixam de me impressionar. — A Califórnia é muito grande. Não poderíamos ficar “longe” dele, mas continuar morando lá? Quer dizer, o que há de errado com San Francisco ou... ou... — Eu não conheço ninguém em São Francisco. Aqui, conheço Millie. — Millie... grande coisa... Você não vê essa sua amiga há anos. — Minha mãe não contesta isso. — Você poderia falar com Frank — eu insisto, lutando contra a dor muito conhecida em meu peito. — Poderia dizer quanto eu lamento. Poderia fazer com que ele entendesse. — Eu já fiz isso. Rinn, já tentei... — Então você não tentou o suficiente! Eu me lanço para fora do carro, atravesso a rua pisando duro — não há carros no momento para me atropelar — e sigo direto para a típica praça que a gente vê nos filmes de TV: um parque gramado, recortado por caminhos de paralelepípedo, e um gazebo branco enfeitado com fitas patrióticas. Eu poderia estar passeando pelo cenário de uma daquelas velhas reprises de seriados que eu costumava assistir com Nana. Nana morreu em julho. Agora que eu não consigo nem assistir a esses seriados, por que iria querer viver em um? Esta cidade é parecida demais com a do seriado Dias Felizes para eu me sentir à vontade. Enfio as mãos frias nos bolsos da minha nova jaqueta de inverno. Para onde eu acho que vou correr? Para a rodoviária, pegar um ônibus de volta a La Jolla, para implorar ao meu padrasto uma outra chance? Frank não iria me dar. Não depois do que eu o fiz passar. Minha mãe corre atrás de mim e me puxa pela manga. — Rinn, eu prometo a você. Não é o fim do mundo. — Não pra você, pelo menos. — Não é tudo culpa minha — diz ela em voz baixa. Ela está certa: a culpa é minha, embora ela nunca vá dizer isso na minha cara. Está com muito medo de que eu vá cortar a garganta novamente e sujar todo o banheiro dela de sangue. — Querida, você acha que isso é fácil para mim? Deixar a minha casa? Os meus amigos? — Pelo menos você tem alguns. — Arranjar um novo emprego numa cidade estranha?
— Você cresceu aqui. Não é como se aterrissasse aqui, vinda do espaço sideral. — É verdade, mas faz muitos anos que saí da faculdade. — Uma faculdade na Califórnia, onde ela ficou grávida de mim e desistiu de estudar quando estava no quarto ano. — É, sorte sua — resmungo. Minha mãe dá a volta e se coloca na minha frente, obrigando-me a encará-la. — Tudo bem. Você tomou os... — Sua voz morre na garganta do jeito como sempre acontece quando ela começa a fazer essa pergunta. Eu sei que ela não confia em mim, e eu não a culpo por isso. Mas ela também não quer que eu perceba a sua desconfiança. Como se isso fosse possível. — Sim, mamãe — eu recito. — Tomei os meus comprimidos como uma boa menina. Assim como tenho feito duas vezes ao dia, nos últimos três meses e treze dias. Mas você sabe disso, não é? Eu aposto que você conta os meus comprimidos. Talvez até preferisse empurrá-los você mesma pela minha goela abaixo... Minha mãe se vira de costas, abraçando a si mesma, e não é por causa do ar frio de Ohio. Um sentimento de vergonha toma conta de mim. Eu detesto esse clima estranho entre nós agora. Detesto ser tão rabugenta quando ela é a única pessoa que se importa comigo. Ao contrário do meu pai de verdade, o doador de esperma que desapareceu depois do primeiro e único encontro entre eles. Ao contrário de Frank, que levou oito anos para descobrir que ter uma enteada bipolar não estava em seus planos, quando resolveu se casar com a minha mãe. — Desculpe — murmuro. Por favor, não a faça chorar outra vez! Mas a minha mãe não está chorando. Ela dá meia-volta e me puxa para junto dela tão rápido que tira os meus pés do chão. Nós duas acabamos caindo numa pilha de folhas. — Eu amo você, querida. Vamos fazer isso dar certo, ok? — Ela beija a minha bochecha e fica de pé num pulo. — Anda, vamos achar a tia Millie.
Eu não sei por que Millie Lux de repente se transformou numa espécie de parente com quem perdemos contato muito tempo atrás. Nós a encontramos tirando da frigideira uma porção de anéis de cebola fumegantes, atrás de um balcão em forma de U, no Vagão-Restaurante. Isso mesmo, esse é o nome do restaurante. — Millie! — Mo! Mamãe e a senhora gorducha com permanente no cabelo grisalho se abraçam e se beijam. Mo? As pessoas que chamam a minha mãe de “Mo”, em vez de “Monica”, geralmente acabam se arrependendo amargamente. “Eu não sou um dos Três Patetas!”, ela diz, corrigindo o otário. Minha mãe e “tia” Millie dançam de mãos dadas, alheias à minha presença e a da outra pessoa
no local, um garoto da minha idade, com um cabelo castanho avermelhado em desalinho. Só para conseguir algum apoio moral, vou casualmente até onde ele está sentado, perto da jukebox. Ele me cumprimenta de um jeito amigável, típico dos moradores de cidades pequenas. — Oi, sou o Nate. — Eu sou a Rinn. — Quer uma Coca ou algo assim? — Ok. Obrigada. O garoto salta sobre o balcão, pega um copo, enche-o com refrigerante de máquina e depois salta de volta, estendendo-o para mim. Enquanto isso, minha mãe e tia Millie se divertem com uma coreografia de líderes de torcida certamente capaz de parar o trânsito — se houvesse algum. Um! Dois! Três! Quatro! Qual é o time guerreiro de fato? River Hills! River Hills! Vai com tudo, HAWKS! — Yikes, Laverne e Shirley — eu digo quando o garoto de cabelo bagunçado desliza de volta para o banco. — Quem? Obviamente não existe TV a cabo ali. — É só uma antiga série de TV que eu costumava assistir com a minha avó. — Não assiste mais? — Ela morreu. — Eu amasso a embalagem de um canudinho. — Sinto muito. Quando? — Há três meses e quatorze dias. Sem parecer intrigado com a minha precisão, ele simplesmente repete: — Sinto muito. Eu também. — Então, você vem sempre aqui? — Eu pisco rápido várias vezes, tentando ao mesmo tempo ser engraçada e ignorar as líderes de torcida. Ele não entende a piada dessa vez também. — Sim, a senhorita Millie faz a melhor cebola frita da cidade. Além disso, o refrigerante tem refil grátis. Ah, Deus, me ajude. Isso é muito pior do que qualquer episódio de Dias Felizes. Esta é a cidade de Mayberry, gente, e Opie Taylor acaba de me trazer uma Coca. A única diferença é que Opie Taylor não é nem de longe tão gato quanto Nate. Eu estou tomando meu refrigerante de canudinho, surpresa ao descobrir que a Coca tem o
mesmo gosto em Ohio e na Califórnia, quando Millie avança sobre mim e me arranca do banco. — Rinn! — Ela me espreme num abraço suado. — Ah, meu Deus, a garotinha da Mo. Ela é a sua cara. Ah, veja só que ca-ri-nha lin-da! Opie acha graça quando Millie agarra as minhas bochechas e sacode a minha cabeça. Tentando não aspirar o cheiro sufocante do perfume que ela usa, afasto os seus dedos antes que ela despregue a pele do meu crânio. — Oi, Millie — eu cumprimento, deixando de lado aquela bobagem de chamá-la de “tia”. E, não, eu não sou a cara da minha mãe. Na verdade, lamento dizer que não me pareço em nada com ela. — Ah, espere até encontrar a minha Tasha. A sua mãe e eu tivemos vocês quase na mesma época. É claro que, naquele tempo, eu tinha uma aliança no dedo. Imperturbável, minha mãe faz um gesto queixoso, mostrando o dedo anelar vazio com o polegar. Eu escondo um sorriso, fingindo limpar o nariz. O perfume de Millie fede. — Campeã em salto ornamental, a minha Tasha, a melhor da região! — Millie aponta para a parede onde há fotos de uma garota de maiô sobre um trampolim, mergulhando na água ou mostrando seus troféus. — Ela ganhou o título distrital e está competindo agora pelas regionais. Podem acreditar, essa garota um dia vai estar nas Olimpíadas. Aliás... — Hã... dona Millie? — Opie levanta a mão como se estivesse numa sala de aula e não num vagão-restaurante reformado, cheirando a gordura e perfume barato. — E a minha cebola frita? — Ah, meu Deus! Bem, elas já devem estar frias agora. Ei, seu pai já não deveria estar aqui? Por que a demora? Com relutância, o garoto se levanta do banco. — Ele disse para levá-las lá assim que chegassem. — Nate se vira para a minha mãe e diz: — A casa que estão procurando fica a um quarteirão daqui. — Ele estende a mão. — A propósito, eu sou Nate Brenner. A minha mãe estende a mão, mas interrompe o gesto na metade. — Brenner? — Ela se vira no mesmo instante para Millie, mas o quadril largo da amiga já sumiu lá para dentro da cozinha. — Ah, agora eu entendo. Eu olho para a minha mãe, que vai direto para a porta sem falar mais nada, então encaro Nate. — Não olhe para mim... — ele protesta, tomando a frente. No ar abençoadamente fresco do lado de fora, tenho que andar rápido para acompanhar as longas passadas de Nate. Nós alcançamos mamãe, cujo rosto vermelho me diz que ela está extremamente contrariada com alguma coisa. Enquanto atravessamos a praça em meio a um vento forte, admiro o cabelo ondulado de Nate, imaginando quanta tinta eu precisaria usar para que o meu cabelo preto um dia chegasse àquela incrível tonalidade avermelhada.
— Quantos anos você tem? — Nate me pergunta. — Dezesseis. — Está no terceiro ano? — Nate aponta alguma coisa enquanto eu faço que sim com a cabeça. — Bem, ali está a sua nova escola. Um prédio de dois andares com paredes de tijolos vermelhos, o Colégio River Hills fica de um lado da praça. Depois de virar a esquina da escola, Nate para na primeira casa à direita: Cherry Street, 521, uma residência de pedra em estilo colonial, com um grande telhado cinza e sem jardim na frente, só com uma faixa de grama diante do portão. Num dos lados da casa há uma pequena torre, e uma placa de “ALUGA-SE” chacoalha na grade do portão. Minha mãe se enrijece. — Eu conheço esta casa. — Esta casa feiosa, você quer dizer. — Porque ela é mesmo. — É a antiga casa dos Gibbons. — Ainda assim é feia. Eu espero a minha mãe perder a paciência comigo de novo, exigindo saber por que eu não posso fingir um pouco de empolgação e dizer que há muito tempo eu planejava morar numa casa como aquela etc., mas em vez disso, ela simplesmente fica parada ali enquanto Nate sobe os degraus e entra na casa. — Mãe? — A expressão indecifrável no seu rosto está me deixando nervosa. — Quem são os Gibbons? — A senhora Gibbons dava aulas de piano. Eu costumava vir aqui para ter aulas. A neta dela e eu estudávamos na mesma escola. — De repente, a minha mãe fica quieta, os lábios franzidos como se estivesse pensando ou tentando decidir que decisão tomar. Então, como se despertasse de repente, ela anda rápido até o portão e para diante da porta de vitral colorido. Sem entender direito o que está acontecendo, eu vou até onde ela está. — Mãe, olhe! — eu digo, dando um tapinha numa velha cadeira de madeira. O arco da cadeira de balanço range contra o assoalho cheio de folhas da varanda. Mamãe é apaixonada por móveis antigos. — Não é demais? Aposto que isso tem uns cem anos... A porta se abre, interrompendo-me. Um homem aparece no vão. Ele encara a minha mãe. Minha mãe o encara de volta. Então mamãe, que reserva os palavrões apenas para as ocasiões em que roubam a sua vaga no estacionamento, pragueja baixinho: — Ah, merda. O homem retruca com uma cara fechada: — Nem me diga.
É fácil adivinhar que o sujeito é pai de Nate. Ele é mais alto e encorpado, mas tem o mesmo queixo quadrado sexy e o mesmo cabelo castanho avermelhado rebelde. Mas não tão fácil foi adivinhar a reação dele ao ver a minha mãe. Ou a reação dela ao vê-lo. — Millie não me disse que esta casa era sua — diz a minha mãe depois de quinze segundos de silêncio. — Ou que era a antiga casa da senhora Gibbons. — Ela também não me disse o nome da minha nova inquilina — responde o pai de Nate com um grunhido. — Eu vou matá-la. — Então entre na fila. Nate arrasta os pés, pouco à vontade. — Hã... vocês dois se conhecem? — Sim — diz a minha mãe com rispidez. — Na verdade, não — replica o pai dele no mesmo tom. — Querida — diz a minha mãe, dirigindo-se a mim. — Este é Luke Brenner. Luke, esta é a minha filha, Corinne. — Ela volta a encarar o pai de Nate. — Pensei que você tivesse se mudado para Nova York. — Eu me mudei. Mas estou de volta. — Millie não me disse. — Nós moramos do outro lado da rua — acrescenta Nate. — Mas que ótimo. — Minha mãe olha para mim com um olhar desesperado, como se eu fizesse ideia do que estava se passando ali. — Hã, o que aconteceu com a sra. Gibbons? — Ela morreu no verão passado — explica o sr. Brenner. — A sobrinha vendeu a casa para mim. — Quem é você? O magnata dos imóveis da região? — Eu tenho algumas propriedades — ele diz com frieza. Minha mãe responde com a mesma frieza: — Bem, então muito obrigada. Mas eu acho melhor eu e a minha filha procurarmos outro lugar. Ele dá de ombros. — Fiquem à vontade. Eu não consigo mais ficar calada. — Outro lugar? Mas nós já estamos aqui! Não podemos pelo menos dar uma olhada? A minha mãe sacode a cabeça. — De jeito nenhum. Anda, vamos embora.
— Você não vai encontrar outra casa na cidade — avisa o senhor Brenner, quando a minha mãe se vira para descer os degraus da varanda. Nate diz só para mim: — Ele está falando sério. Vocês não vão conseguir alugar nem uma garagem por estes lados. Afastando-me dos Brenner, eu me apresso para alcançar a minha mãe. — Espere! Ouviu o que eles disseram? — Eu ouvi. — Ela para quando eu estanco na frente dela. — Bem, só vamos dar uma volta de carro por aí, até... — Ah, não. Eu não vou ficar mais nem um segundo naquele carro. — Quanto mais dormir dentro dele esta noite se não encontrarmos outro lugar para ficar. Lendo os pensamentos dela, eu digo com ferocidade: — E nós não vamos ficar na casa da Millie. Eu mal consigo respirar perto dela. — Rinn, ouça — começa a minha mãe com a voz cansada. — Você nem olhou a casa e não me disse por quê. Quer dizer, ela não é tão grotesca assim, na verdade. É só... — Eu dou uma espiada na torre de pedra, na portinhola perto do telhado, que mais parece um olho. — ... velha — concluo, sem achar palavra melhor. Minha mãe hesita. Luke, com um ar indiferente, espera na varanda com os braços cruzados. Será que ele também quer que a gente vá embora? Nate, agora apoiado na balaustrada da varanda, parece estar tão perdido quanto eu. Por fim, a minha mãe suspira. — Tudo bem. Mas é só uma olhada. Nate pisca para mim. Eu não pisco de volta. Por mais gato que ele seja, de nada adianta querer fazer amizade se a minha mãe planeja me arrastar dali para só Deus sabe onde.
— Está mobiliada — repara a minha mãe. — Millie não mencionou isso. Millie não mencionou muita coisa, eu penso. Não mencionou quem costumava morar na casa — independentemente do que isso signifique. Nunca mencionou Luke... Cara, eu estou feliz de não estar na pele de Millie, porque tenho certeza de que a minha mãe está fumegando por baixo de toda aquela polidez. A sala de estar é pequena e fedorenta, mas bonita e aconchegante por baixo da camada de pó. Em vez de uma mesa de centro, há um baú malconservado entre a lareira e um sofá florido. Meus chinelos escorregam no tapete gasto enquanto eu sigo a minha mãe, e então... estanco de repente. Um piano. Minha mãe para também, e desliza os dedos pelas teclas amareladas. — É o mesmo piano em que eu tomava aulas.
O som das teclas é suave. Eu arquejo quando algo me ocorre: é a primeira vez, desde que Nana morreu, que mamãe chega perto de um piano. O clima fica meio estranho. Eu não consigo definir por quê. Agora eu me arrependo de ter insistido para ver a casa por dentro. Não, eu não quero dar uma olhada nos arredores, em busca de outro lugar para morar. Mas será que realmente quero ficar na casa de uma mulher que morreu recentemente? Comer nos pratos dela? Dormir na cama dela? Minha mãe não quer. E já deixou isso bem claro. Por incrível que pareça, eu gostei da casa. Mas eu quero, preciso, que a minha mãe fique feliz. Por isso eu cutuco as costas dela. — Ok. Vamos embora. Nate arqueia as sobrancelhas. Luke começa a tamborilar os dedos na moldura da lareira. Minha mãe se afasta do piano, mas ignora o meu cutucão. — Não. Vamos ver o resto. No andar de baixo, nada viu uma reforma desde a Segunda Guerra Mundial, incluindo a cozinha. Mas, no geral, até que dá para se morar ali. Quando voltamos para a sala de estar, Luke sai pela porta da frente após abruptamente declarar: — Não se apressem. Eu espero aqui fora. Minha mãe suspira quando sentimos o cheiro de fumaça de cigarro. — Ah, Deus. Eu preciso de uma tragada... Eu faço uma careta, mas não por causa do cheiro de cigarro. — Estou sentindo cheiro de gato. Ah, mas que maravilha... — digo, sarcástica. — É, ela tinha gato que não acabava mais... — diz Nate se virando, enquanto começa a subir os degraus para o segundo andar. Eu olho para ele com um sorriso de deboche. — Eita, nóis... — digo, imitando um sotaque caipira. Tampando o nariz, arrasto as pernas degraus acima, atrás de Nate e mamãe. Dois quartos no segundo andar, ambos parcamente mobiliados, um com uma cama de dossel. O banheiro recende a pomada velha para reumatismo. O cheiro daquilo é até pior do que o de xixi de gato. Nate repara que mamãe fita horrorizada a banheira de pés em garra. — É, precisa de uma limpeza. Mas meu pai não estava planejando alugar esta casa tão cedo. Minha mãe dá um sorrisinho mínimo. — Vamos ver o sótão. Mais uma vez em fila, subo até o terceiro andar quase sem fôlego. Meus remédios fazem isso comigo por volta das duas horas da tarde todos os dias, e essa é uma das razões que me fazem detestar tomá-los.
Um antidepressivo. Um estabilizador do humor. Um antipsicótico suave. Rivotril, um calmante para evitar ataques de pânico. Ah, e pílulas anticoncepcionais, para que eu não surpreenda a minha mãe com um netinho vítima de má formação. Não que eu faça muito sexo ultimamente. Ou que eu faça algum. Eu me forço para subir, apoiada no corrimão de madeira, e paro, surpresa. Um imeeeenso cômodo, com paredes brancas recém-pintadas, prateleiras embutidas e assoalho de madeira. Uma fileira de vigas de madeira escura no telhado de duas águas. O cômodo se afunila até terminar num recesso arredondado, a torre antiga e engraçada que eu vi do lado de fora. — Legal! — exclamo, saltitando até ela. Com suas paredes de pedra e sua janelinha redonda, seria o lugar perfeito para ler um livro, enrodilhada numa poltrona, ou para tocar violão. Quanto ao resto do cômodo, não tem mobília, nem banheiro, nem armário, mas... — Eu adorei! Aqui nem dá pra sentir cheiro de xixi de gato. — As paredes são novinhas — diz Nate com orgulho. — Elas estavam em péssimo estado. — Este é, sem dúvida, o melhor cômodo da casa! — Eu me viro para a minha mãe. — E, então? O que acha? — Não tenho certeza. — Ela mordisca o lábio. — Precisa de uma faxina e tanto... — Eu ajudo! — Nate se oferece. — Meu pai e eu damos conta de tudo em dois tempos. Eu sorrio para ele com doçura. — Você poderia nos dar uns minutinhos a sós? Não preciso pedir duas vezes. Assim que ele sai, eu me viro para a minha mãe. — Mamãe, eu vi como você olhou para aquele piano. — Podemos conseguir um piano em qualquer lugar, querida. — Mas este é igual ao piano da Nana. — O nome dela produz um nó na minha garganta. — Não, não é. É só parecido. Eu penso no piano da minha avó, aquela velha monstruosidade com painéis esculpidos, pedais gastos e um porta-partituras folheado a ouro. Aquele piano ocupava metade da sala da minha avó. E ela o enfeitava com vasos e suas fotos favoritas. “Quando eu morrer, Rinn”, ela dizia, “este piano vai ser seu.” Nana morreu cedo demais. Ninguém herdou o piano. — Mmm, não sei — reflete minha mãe. — Você gostou daqui? — Só se eu puder ficar com este quarto. — Isto é um sótão, não um quarto. — Mãe, eu ameeeei este lugar. Eu mesma posso pintar as paredes, e tem espaço para os meus
pôsteres. Só o que eu preciso é de uma cama e um lugar para guardar as minhas roupas e... — Eu paro ao ver sua expressão divertida. — O que foi? — Rinn. Eu acabei de ouvir você dizendo que “amou” este lugar? — É! E, se conseguirmos acabar com o fedor de xixi de gato, vou amar a casa toda. — Mordo a língua para não falar o resto: E como foi VOCÊ que me arrastou para longe da minha vida, o mínimo que pode fazer é me deixar ficar! — Por que você não quer ficar aqui? É por causa daquele cara, Luke? — Eu adoro ver que ela corou. — Ele foi seu namorado? Te deu o maior fora? Aimeudeus, ele te deu, sim! Aquele sacana! Minha mãe levanta a palma da mão. — Rinn, por favor, me deixe pensar um minuto.
É por isso que eu amo tanto a minha mãe: se dependesse dela, o que tecnicamente era o caso, ela nunca se mudaria para uma casa velha e decrépita onde tinha morado a sua antiga professora de piano, que era maluca por gatos e agora estava morta e enterrada. Que contraste com nossa casa de fazenda em La Jolla, com sua piscina em L, cercada de palmeiras! Uma casa ultracontemporânea, a poucos minutos da civilização, o que significava uma loja de departamentos, duas livrarias, uma Starbucks e uma praia. Mas, quando eu disse que tinha amado o sótão, alguma coisa mudou na expressão dela, como se ela não pudesse acreditar que estava me vendo tão entusiasmada. Tipo, Quem é essa pessoa feliz e o que ela fez com a minha filha rabugenta e malcriada? Portanto, meia hora depois, mamãe e Luke estavam assinando o contrato de locação sem mal trocar uma palavra, enquanto Nate e eu faziámos companhia um ao outro do lado de fora. Eu reivindico a cadeira de balanço da varanda. As longas pernas de Nate balançam na balaustrada. — Parece que vamos ser vizinhos — ele comenta. — Não se preocupe. Eu não vou fazer você carregar os meus livros para a escola. — Obrigado — ele diz, com uma cara séria. — Então, você é da Califórnia, hein? Você surfa? — Um pouco. — Eu abraço os joelhos, com vontade de estar na praia de biquíni, andando na areia molhada. Está tão frio aqui e ainda estamos em outubro! — Você conheceu a mulher que morou aqui? — Claro! Todo mundo conhecia. — Como ela morreu? De velhice? — Hã... é. De velhice. Eu reparo na hesitação dele. — O que foi? Não me diga que ela foi assassinada.
— Assassinada? Tá maluca? Não me pergunte isso. — Então o que foi mesmo que aconteceu? Ou você está tentando nos afugentar? — Por que eu faria isso? Eu aponto para a casa com o queixo. — Por causa daquele clima entre o seu pai e a minha mãe? Talvez ele tenha te contado o motivo, para que você se livre de nós. — Não que Nate tenha tido muita chance de ficar sozinho com o pai desde que eu e minha mãe aparecemos. — Eu não sei nada a respeito disso; e, além do mais, não dou a mínima para o que seja. — Então como ela foi assassinada? — eu insisto, adorando vê-lo desconcertado. Nate balança os pés. — Alguém já te disse que você é um pé no saco? Antes que eu possa me defender, paro o balanço da cadeira, atenta ao som das teclas do piano: Minueto em G, fluindo dos dedos da minha mãe. Dou uma espiada pela janela e vejo mamãe sentada muito ereta em frente ao teclado. Ela balança a cabeça no ritmo da música, enquanto o pai de Nate junta os papéis — já assinados, com certeza. Essa é a primeira vez que minha mãe toca piano em três meses e quatorze dias. Esse é um bom sinal. Esta casa era para ser nossa.
Depois que Luke inventa uma desculpa para ir “à cidade” — o que me dá esperança de que exista vida civilizada ali perto —, Nate nos ajuda a descarregar o carro, carregando caixa após caixa como se não pesassem nada. Nós brincamos um com o outro, embora uma voz — não, não uma “voz”, um “pensamento” — me avise que eu não devo ficar muito à vontade com esse garoto. Nate é bonito e engraçado, mas ele gosta muito de me provocar. Como na hora em que pega o meu violão vintage, um presente de Frank, ignorando a minha insistência para que ninguém toque nele além de mim. — Puxa, possessiva a mocinha, hein? Eu tento pegá-lo de volta, mas Nate é uns trinta centímetros mais alto do que eu. — É um Gibson Les Paul! — Saaai. Você toca? — Dããã. Ele me devolve o violão com um sorriso. — Então toque alguma coisa, surfista. — Vai desculpando aí, caipira. Eu não toco só porque me mandam.
Eu não posso baixar a guarda daquele jeito. Além do mais, com toda aquela bagunça à nossa volta, estou preocupada que ele note alguma coisa — talvez um livro de autoajuda ou um frasco de remédio de tarja preta — e junte dois mais dois e chegue à grande conclusão: Ah, cara, ela É mesmo pirada! As pessoas não podem descobrir nada sobre mim. A ideia de que ninguém me conhece em River Hills é a única razão que me leva a não reclamar tanto de deixar La Jolla. Minha mãe, por outro lado, diz que eu não devo tentar manter a minha “doença” em segredo. O que significa que pode ser melhor deixar as pessoas a par de tudo, de modo que pensem duas vezes antes de ligar para a polícia se me encontrarem, hã, sei lá... andando pelada pelo telhado. Eu me jogo no sofá, deixando Nate e mamãe acabarem de descarregar tudo. — Posso pedir uma pizza? — pergunto, cheia de preguiça, quando a porta se fecha pela última vez. — Estou morta de fome. — Pedir você pode — diz Nate. — Só não garanto que eles vão entregar. Minha mãe acrescenta: — Millie está trazendo sanduíches. Amanhã vamos ao supermercado. Você é bem-vindo se quiser ficar para o jantar — ela diz para Nate. — Você nos deu uma mãozona hoje. — Quando Nate recusa o convite e vai para casa, minha mãe tira as minhas pernas do sofá para que possa se sentar ao meu lado. — Eu não sabia que Luke tinha uma esposa, muito menos um filho. — Você conversou com Millie tantas vezes... e nunca perguntou sobre ele? Minha mãe hesita. — Na realidade, não. E para dizer a verdade, se eu soubesse que Luke era o dono da casa que alugaríamos e que esta era a casa a que Millie se referia, eu talvez tivesse, hã, recorrido a um Plano B. — Ok, então Luke é um filho da puta que deu o fora em você... — Rinn, olha a boca. — ... mas por que não esta casa? Quer dizer, depois que o cheiro de xixi de gato desaparecer e limparmos aquela banheira, ela vai ficar bem legal, não é? — O que eu quis dizer foi que... — ela evita o meu olhar insistente. — Talvez ficássemos melhor num apartamento. Estreito os olhos. Será que a senhora Gibbons foi mesmo assassinada? Será por isso que a minha mãe está tão evasiva? Eu gostaria de perguntar, mas fico com medo de mencionar a palavra “assassinato” ou “morte”. E se ela pensar em Nana e começar a chorar novamente? Cheia de energia, minha mãe bate na minha coxa. — Por que não vai cochilar um pouco? Eu acordo você quando Millie chegar com os sanduíches.
— Posso tirar uma soneca aqui no sofá. Não vou dormir no colchão velho e sarnento de outra pessoa. — Tudo bem. Eu compro um novo para você amanhã. Eu a abraço então. — Ah, obrigada, mamy! — E segunda-feira vamos matricular você na escola. Está nervosa? Eu estou. Eu posso apostar que sim. Ela era dona de casa desde que eu tinha 8 anos, quando se casou com Frank e deixou que ele me adotasse. Frank é um produtor musical aposentado. Ele conhece todas as estrelas do rock de antigamente, e foi quem me ensinou a tocar violão. Agora minha mãe vai ser secretária de uma escola de segundo grau. Pobre mamãe. Pobre de mim também. Porque, se eu tiver uma crise novamente, vou ter que passar pelo mesmo calvário. Pessoas me evitando. Pessoas falando pelas minhas costas. Pessoas caçoando da minha cara ou assustadas demais para andar ao meu lado no corredor. — Se eu detestar — pergunto, num sussurro —, posso desistir? — Não. — Minha mãe me abraça apertado, depois alisa o meu cabelo. — Você não pode desistir. Não dessa vez.
Eu mal consigo me manter acordada para tomar meus comprimidos. Rastejo de volta para o sofá enquanto minha mãe se ocupa de todas as coisas da mudança. Quando estou prestes a deslizar para aquela fase em que não estamos totalmente acordados nem exatamente dormindo, Millie aparece com sanduíches e refrigerantes. Minha mãe agradece à Millie com a voz já demonstrando cansaço. Fragmentos de conversa, vindos da varanda, penetram na névoa da minha exaustão. Uma queixa sobre Millie não ter “adiantado” alguma coisa sobre a casa ou sobre Luke Brenner. Millie fazendo um discurso extravagante sobre como as pessoas “mudam” e que ela e minha mãe são exemplos perfeitos disso. Minha mãe insistindo em dizer que ela “deveria ter sido avisada” antes de atravessar o país de carro para descobrir, tarde demais, por si mesma. Millie mencionando algum clichê sobre o tanto de água que já passou sob a ponte. Minha mãe protestando e então Millie sendo curta e grossa: — Ah, Mo, vê se cresce! É muito divertido ouvir alguém dizendo isso para a nossa própria mãe.
3 MESES + 14 DIAS Domingo, 19 de outubro
Ainda estamos sem telefone e isso significa que temos de ir ao restaurante de Millie logo pela manhã. Eu despejo um suco de laranja garganta abaixo e devoro uma torrada, enquanto a minha mãe usa o telefone do vagão-restaurante para fazer algumas ligações, inclusive para Frank, preparando-o sobre as mudanças significativas na fatura do cartão de crédito. Não que Frank se incomode; na verdade, ele se ofereceu para nos comprar passagens de avião para Ohio e para embarcar o carro separadamente, mas mamãe achou que uma viagem de carro nos daria a oportunidade de passarmos algumas horas agradáveis juntas, ou alguma babaquice desse tipo. Eu gostaria que ela parasse de ficar se culpando tanto. Na verdade, nada disso é culpa dela. Eu espero que Frank peça para falar comigo. Quando a minha mãe desliga sem me chamar ao telefone, a torrada no meu estômago vira uma massa pesada e indigesta. De volta para casa, vemos Nate — sem casaco, aparentemente imune ao vento frio — varrendo as folhas do seu gramado. Quando ele se inclina para juntá-las dentro de um saco, a bainha da camisa se levanta. Eu dou uma boa olhada nas suas costas nuas, douradas pelo sol, enquanto o cós da bermuda... Aideus! — Nate! — minha mãe chama, me dando o maior susto. Largando o saco, ele se aproxima. Eu olho para o outro lado, desejando que ele não fosse tão bonito. Imaginando se eu terei aulas com ele. Se ele tem namorada. Se realmente acha que eu sou um pé no saco ou se aquele é só um jeito interiorano de paquerar uma garota. — Se você não estiver muito ocupado, poderia me dar uma mãozinha? Rinn precisa de uma cama e gostaríamos de saber se podemos contar com você para carregá-la. Ai, não, ela tinha que juntar “Rinn” e “cama” na mesma sentença ao falar com um cara gato que eu vou ver na escola todo dia? — Se não for dar muito trabalho — ela acrescenta, toda meiguinha. Por favor, por favor, diga não! Eu não quero fazer um trajeto de uma hora de carro até a loja de móveis mais próxima com Nate Brenner e seu corpo de pura gostosura. Mas minha mãe joga seu volumoso cabelo castanho para trás e marcha para o carro, sem esperar que ele diga sim ou não. — Bem mandona... — Nate repara. — Ela vai se dar bem na escola.
Eu arrisco o que eu espero que soe como um sotaque caipira. — Então purr que cê num diz que tem sirviço pra fazê, sô? — Ora, purrque seria farta de educação, sô — ele rebate, me imitando. Eu me acomodo no banco da frente e ele, no de trás. Nate cheira a suor e folhas secas, mas não é um odor desagradável. Eu envio vibrações de agradecimento para mamãe, por ter esfregado a banheira na noite anterior, pois isso me garantiu um bom banho e cabelo lavado pela manhã. Enquanto dou uma cheirada na gola da blusa para ver se ficou impregnada com cheiro de gato, minha mãe aponta o bloco de notas que mantém no console do carro. — Vamos fazer a lista do supermercado. Pegue a caneta na minha bolsa. Enquanto eu vasculho a bolsa em busca da caneta, a visão de um frasco de analgésico faz o meu coração acelerar. Ah, droga! Meus comprimidos! Eu me esqueci de tomá-los. Se fosse qualquer outro dia, minha mãe já teria me lembrado dos comprimidos pelo menos duas vezes. Hoje, bem na droga do dia em que me esqueço de tomá-los, ela não abre a boca. Será que eu devo pedir que ela volte? Mas como? Não há nenhum jeito inteligente de fazer isso numa conversa de uma maneira que não se transforme em algo assim: EU: Mãe, dê a volta. Esqueci meus comprimidos. NATE: Que comprimidos? EU: Ah, só meus antipsicóticos para que eu não... sabe, comece a ouvir vozes. Ou corte a minha garganta. Ou mate alguém outra vez. Eu fico de boca fechada.
Na cidade vizinha de Westfield, encontramos um colchão em promoção numa ponta de estoque que é na verdade um armazém bolorento, atolado de sobras, que nenhum varejista de respeito aceitaria ter em seu estoque. Minha mãe tinha falado que eu poderia ficar com a cama de dossel se ela conseguisse “alguém” para arrastá-la até o terceiro andar. Claro que ela se referia a Nate, que ergue o colchão sem esforço, coloca-o no capô do carro e o amarra com uma corda. — Eu não quero uma cama de dossel. — Camas de dossel não têm nada a ver comigo. — Eu só vou colocar o colchão no chão. Em seguida, paramos no Walmart para comprar um abajur e um telefone extra para o meu quarto. Roupas de cama, travesseiros e outras coisas para a casa. Material escolar. Um dock para o iPod, porque o meu computador está na Califórnia. E uma mesa que vem desmontada numa caixa e Nate promete montar para mim.
— Tinta — eu lembro mamãe. — Aquelas paredes brancas não podem ficar. Nate se opõe: — Ei, levei três dias para pintar aquele sótão. Eu sorrio para ele. — Aposto que você pode pintar novamente em dois. Depois que eu escolho um tom de cinza lindo chamado Peltre Precioso, minha mãe diz para Nate escolher um CD como agradecimento pela sua ajuda. Nate protesta: — Ah, não precisa. Foi um prazer. — Eu abafo uma risadinha. — O que foi? — ele pergunta, irritado. — Você é um menino danado de bom. — Por que isso mais parece um insulto? — ele se pergunta. Mais tarde, depois de fazer compras no supermercado, minha mãe pergunta o que queremos almoçar. O que eu mais quero é voltar para casa para poder tomar a droga dos comprimidos! Será que algumas horas a mais vão fazer diferença? — A gente não pode comprar algo para viagem? — pergunto, irritada. — Por mim tudo bem — concorda Nate, esmagado ao meu lado no banco da frente, pois não há espaço no banco de trás, olhando a capa do seu novo CD. Eu não conheço a banda. Prefiro a música de Frank: rock clássico. — Tenho umas coisas para fazer, de qualquer maneira. Depois de uma parada no Burger King, eu mordisco uma batata frita e olho para o painel do carro. São 15h13 — o 13 azarento —, e eu tinha que ter tomado os meus remédios sete horas atrás. — Espero que a gente não tenha que fazer esta viagem toda semana. Não tem supermercado na cidade? — Claro que tem — responde Nate. — Bem na praça, ao lado da loja de ração para animais. Mas não abre aos domingos. — As pessoas em River Hills não comem aos domingos? — Claro qui cumemo, sô — ele responde com seu falso sotaque caipira. — Aliás, logo que chegar em casa vou colher umas espigas e matar um leitão que eu tenho. — Ele dá um tapa na minha nuca — Quer me dar uma mãozinha, surfista? Eu não consigo nem sorrir. Sete horas de atraso, oito até a hora em que eu chegar em casa. Será que é melhor dobrar a dose? Não, não, essa é uma péssima ideia... Cruzo os dedos e olho, desolada, pela janela do carro.
Finalmente em casa, Nate e eu arrastamos o colchão para o sótão — não é uma tarefa fácil — e o
largamos no chão. Com apenas uma chave de fenda e as próprias mãos, ele monta a minha mesa também. Então pega uma cadeira velha do porão e a limpa para mim. É claro que eu fico muito agradecida por tudo isso, mas penso, Agora chega! Vá para casa! Quando ele finalmente vai embora, eu engulo os meus comprimidos da manhã. Não faz sentido tomar outra dose mais tarde, caso contrário é bem provável que eu não acorde pela manhã. Então resolvo pegar o meu violão e tocar um pouco. Mas meu coração não está na música. Meu coração não está em nada desde que Nana morreu. Agora Frank se foi, também. Não está morto, mas é como se estivesse. Porque eu estou morta para ele. Deixo o violão na torre e afasto Frank dos meus pensamentos. Rastejo para baixo do meu edredom novo, que cheira a plástico e produtos químicos. Depois de ajustar meus olhos à escuridão, consigo distinguir as formas das vigas que cruzam o teto. Imagino uma caindo sobre mim enquanto durmo. Será que uma delas acabou de se mover? Isso foi um rangido? Meu despertador faz tique-taque a centímetros da minha cabeça. Os únicos outros sons que ouço são o latido de um cão e os galhos de uma árvore raspando na casa. Pelo menos espero que seja uma árvore. Pare com isso! Durma!... Incomodada, eu esfrego a cicatriz no meu pescoço. Por quanto tempo vou conseguir escondêla antes que alguém perceba? Com este clima, no inverno eu posso usar gola alta todo dia. Mas e quando chegar a primavera? O que Nate vai dizer na primeira vez em que vir a cicatriz? Ah, que importa? Eu nem sei se ele gosta de mim. Raspa, raspa... raspa, raspa. Os galhos de árvore novamente. Ou será alguém invadindo a casa? Será uma viga se soltando, prestes cair em cima da minha cabeça? Eu jogo longe o edredom e acendo o abajur do Walmart. Sombras se movimentam no teto. Não consigo dormir sob aquelas vigas, não esta noite, talvez nunca. Eu arrasto a minha cama improvisada para a torre, o cubículo de pedra que espero reservar para os livros e os dias chuvosos. Não há vigas fantasmagóricas ali, mas o colchão não cabe no pequeno espaço. Resignada, arrasto-o de volta. Então vou até a janela, do outro lado do quarto. Dali, no alto da casa, vejo o contorno da minha nova escola na escuridão. Uma fileira de janelas perto do chão brilha com uma luz amarela mortiça. Então, enquanto observo, elas piscam, uma por uma. A energia elétrica não está oscilando; o meu abajur está aceso atrás de mim. Com uma lâmpada elétrica, para que eu não possa causar nenhum incêndio.
Uma música de Debussy flutua através da abertura do aquecedor. Eu desço as escadas na ponta dos pés e assisto às mãos da minha mãe dançando nas teclas amareladas do piano. Percebendo a minha presença, ela dá um tapinha no espaço vazio ao lado dela. — Não consegue dormir? Eu balanço a cabeça, sento-me ao lado dela na banqueta e descanso a cabeça em seu ombro. — Você não vai contar que eu sou louca, vai? — Eu já contei a eles sobre a sua doença na minha entrevista por telefone. — Meu corpo enrijece. — Querida, eu não tive escolha. Se precisar de um Rivotril durante o dia, você vai ter que procurar a enfermeira. Eu vou dar alguns para ela guardar. Você não pode ficar carregando drogas por aí, especialmente desse tipo. — Muito obrigada. Agora todo mundo na escola vai saber. — É confidencial — ela promete. — É a lei, Rinn. A enfermeira não sabe o seu diagnóstico. A receita da dra. Edelstein só diz que o remédio é “para ansiedade”. — Você vai trabalhar na secretaria. Por que não pode guardá-los você mesma? — Nós temos que seguir as regras. Você quer que seus amigos achem que estou dando a você tratamento privilegiado? Que amigos? Eu talvez não faça nenhum. Minha mãe beija a minha bochecha. — Volte para a cama. Amanhã será um grande dia. A melodia inicia-se novamente antes que eu chegue às escadas. As teclas tilintam sob seus dedos de artista, e ela bombeia os pedais com os pés enfiados nas meias, balançando a cabeça com um ar sonhador. Em vez de subir para o meu quarto no sótão, eu me encolho no alto da escada, sobre o assoalho recém-encerado, e ouço a música até cair no sono.
3 MESES + 15 DIAS Segunda-feira, 20 de outubro
O diretor da escola, o sr. Norman Solomon, olha com curiosidade para a minha mãe. — Bem, Monica Parker. Parece que foi ontem que você e Millie ficavam beijando os garotos sob as arquibancadas. — Ora, muito obrigada — diz minha mãe, lacônica. — Há mais alguma coisa sobre o meu passado sórdido que o senhor gostaria de contar à minha filha? Como se eu já não soubesse que ela era uma menina levada. E por acaso eu não sou a prova viva disso? Felizmente, a partir daí minha mãe e o sr. Solomon passam a travar uma conversa mais descontraída. Entediada, eu bocejo com a mão na boca e tenho um sobressalto quando alguém bate na porta da diretoria. Uma menina com um rabo de cavalo loiro enfia a cabeça para dentro da sala. — Com licença, sr. Solomon, mas a professora Faranacci me disse para entregar isso pessoalmente. — Obrigado, Meg. — O sr. Solomon joga a pasta sobre a escrivaninha e coça a espessa barba. — Aliás, pode me fazer um favor? Esta é a srta. Parker, quer dizer, sra. Jacobs. Ela vai substituir a srta. Prout. E esta é a filha dela, Corinne. Você poderia mostrar o colégio a ela? Eu aviso a professora Faranacci. — Claro! Obrigada! — Meg sorri com dentes perfeitamente alinhados, enquanto eu, superconstrangida, toco o meu canino torto com a língua. Ainda assim, feliz por escapar dali, mesmo acompanhada com uma versão em miniatura da minha mãe, fico de pé num salto. Meg me confidencia na saída: — Vou te dizer uma coisa, a srta. Prout era uma cadela. Se a gente ligasse dizendo que estava doente, ela ligava para a nossa casa o dia todo para ter certeza de que estávamos lá mesmo. E se a gente não atendia, ela ia até lá saber o que estava acontecendo. Menos desconfiada agora que ela tinha usado a palavra “cadela”, eu sigo Meg por um corredor cheio de armários de um tom de bege sem graça. Salas de aula grandes, eu reparo enquanto espio uma, com quadros-negros de verdade e carteiras de madeira aparafusadas no chão.
Meg me acompanha, balançando os braços. — Onde você estudava antes? — Na Califórnia. — Sério? Por que se mudou para cá? — Foi ideia da minha mãe. — E o seu pai? Já começaram as perguntas. E, oficialmente, não é nem mesmo o meu primeiro dia. — Acho que eles estão se divorciando — eu digo devagar. — Isso é péssimo. Mas quem escolheu esta cidade? — Meg insiste enquanto subimos um lance de escadas. — Quero dizer, ninguém se muda para Hills River. Você mora aqui e morre aqui, ou então vai embora e não volta nunca mais. — Bem, minha mãe cresceu aqui, e ela manteve contato com sua melhor amiga... — Quem? — Millie Lux. — Ah, Millie, a Rainha da Cebola Frita. A filha dela, Tasha, é a minha melhor amiga. Não sei bem por que estou dizendo tudo isso a uma completa estranha, mas continuo, feliz por ter alguém com quem conversar que não seja a minha mãe: — Enfim, Millie contou a ela sobre este emprego, então mamãe ligou no mesmo dia e eles a contrataram por telefone. Meg dá uma risadinha. — Isso é porque ninguém mais quer esse emprego. — Quando dei por mim, ela já estava atirando as malas no carro. Rapidamente, enquanto tenho oportunidade, faço uma pergunta. — O que aconteceu com a srta. Prout? — Não sei. Ela um dia não apareceu mais para trabalhar. Simplesmente desapareceu. Interessante. Eu sigo Meg através de portas duplas que dão para o corredor do segundo andar e literalmente tropeço em alguém largado no chão. O garoto me olha carrancudo através dos longos fios de cabelos desgrenhados, os fones de um iPod nos ouvidos. — Caramba! — Meg simula surpresa. — Expulso da aula de novo? Aposto que você vai bater um novo recorde. Tirando um fone do ouvido, o garoto me encara com olhos mais negros — e injetados — que um vampiro da TV. — Saudações, terráquea! — Forte, sinistro, com uma barba de vários dias e o longo cabelo escondendo metade do rosto de raposa, este é o tipo de cara que normalmente acaba comigo. E não
caubóis gostosões de camisa xadrez como Nate Brenner. A cutucada de Meg interrompe o meu fascínio. — Este é Dino Mancini, o rei dos babacas. Dino, esta é Corinne. Ela começa amanhã. — Rinn — eu a corrijo. Sinto cheiro de maconha. Duvido que venha de Meg. Dino arreganha os dentes. — Bem-vinda ao Mundo Inferior, my preciousss! Que sorte a sua, você perdeu os sacrifícios das virgens. — Ele acena para Meg. — Você é a próxima, amor. Meg mostra a língua. — Você não adoraria? Ele aperta a panturrilha de Meg. — Como é que você consegue cabular aula e ninguém fala nada? Ela repele a mão dele com um pequeno chute. — Eu não estou cabulando aula. Estou mostrando a Rinn o colégio. — Legal. Não se esqueça de mostrar onde a Annaliese fica. — Tudo bem, já sei. — Afastando-se de Dino, Meg me puxa pelo corredor, apontando para a esquerda e a direita. — Ok, sala de aula... e outra sala de aula... e, ah, veja só, outra sala de aula! Surpreendendo a mim mesma, eu entro na brincadeira. — Nossa, me mostre mais! — Ah, se você insiste. Talvez, se tivermos sorte, podemos encontrar mais salas no térreo! Eu gosto dessa garota! Chegamos novamente ao térreo dando risada. Abraço o corrimão, ofegante. — Quem é Annaliese? — Você já vai descobrir. Meg me leva até uma lanchonete escura, no momento vazia. Lado a lado, corremos até o outro lado do salão e passamos pelas portas de um ginásio de esportes. Correndo pelo ginásio também, chegamos a portas duplas que se abrem para um auditório. — Não temos autorização para fazer isso — diz Meg sem fôlego. — Cortar caminho pelo ginásio. Temos que usar o túnel. Vamos, vou te mostrar. Nós corremos por um corredor lateral do auditório até um palco com cortinas vermelhas surradas. Na lateral, o palco é tão baixo que bastam quatro degraus para entrarmos num túnel misterioso. Não é um túnel de verdade, mas um corredor estreito paralelo ao auditório, ao ginásio e à lanchonete. Mas as paredes de pedra e a parca iluminação dão um efeito assustador, claustrofóbico. Meg aponta para uma outra porta, em frente à do auditório. — A piscina é ali. Mas vão demolir tudo e construir um centro multimídia em breve. — Meg
abre a porta com um chute. — Essa porta deveria ficar trancada, mas as pessoas vivem invadindo a piscina; por isso ninguém mais se preocupa em consertá-la. Mas, se o Rei Salomão pegar a gente aqui, estamos encrencadas. Rindo do apelido do diretor, eu a sigo para dentro da sala. Ela liga um interruptor, mas não nada acontece; a única luz é a que entra por uma janelinha na parede mais distante. — Construíram este lugar na década de 70. Para a piscina — Meg explica. Uma cerca de arame nos impede de avançar mais de dois metros sala adentro. Quando Meg sacode a cerca, o som se espalha pelo ar como estilhaços de vidro. Eu espio através dos elos de metal e vejo o buraco escuro da piscina vazia. — Por que a cerca? — Dãã... pra gente não cair e depois processar a escola. — O arame vibra até que tudo fica em silêncio. Um frio estranho penetra no meu suéter. — A propósito — sussurra Meg —, nunca venha aqui ou passe pelo túnel sozinha. Sempre traga alguém com você. Eu faço uma cara séria. Cruzes, parece filme de terror! — Por quê? Meg aponta para além da cerca. — Por causa da Annaliese. — Quem é, uma ratazana? — Porque eu com certeza ouvi alguma coisa raspando o chão. — Não, uma garota que se afogou aqui, tipo, vinte anos atrás ou coisa assim. — Espere aí. Você está falando de um fantasma? Meg assentiu, muito séria. — É. A avó dela moveu uma ação judicial contra a escola, quando aconteceu, então eles desativaram a piscina por precaução. De qualquer maneira, a avó morreu um tempo atrás e... Meus braços formigaram. Outra avó morta. — Morreu como? Meg colocou um punho acima da cabeça e puxou. — Ela se enforcou? — perguntei. Ela fez que sim com a cabeça novamente, depois esfregou os braços com força. — Nossa, como está frio aqui! — São as correntes de ar — eu disse, arrependida por ter perguntado como a avó de Annaliese tinha morrido. Agora eu ia ficar pensando nisso o dia inteiro. — Está congelando aqui. Eu sinto um calafrio também, quando percebo que ela tem razão. Imóvel, sinto o ar à minha volta ficar mais frio a cada segundo. Meg tampa o nariz.
— Rinn, o que é isso? — Ela fareja o ar como um cachorrinho. — O ar aqui parece meio oleoso ou algo assim. — Ela toca o nariz. — Isso é muito estranho... Tudo o que eu sinto é o ar muito frio; nada oleoso ou estranho. Eu a observo esfregar as orelhas e depois agitar as mãos em torno dela como se estivesse tentando agarrar o ar. Será que ela está brincando comigo? — Que diabos está acontecendo? — Ela treme. — Você realmente não está sentindo nada? — Não! — Mas o pânico de Meg é contagioso, e em dez segundos estou do lado de fora, atravessando o túnel e voltando para o auditório. Depois daquele gelo na piscina, é como ser jogada numa sauna. Meg corre atrás de mim e me olha, depois, com um interesse peculiar. — Uau, você é rápida! — É, mas só quando querem me matar de medo. — Você não faz atletismo ou coisa assim, não é? Ótimo. Então gostaria de entrar para a nossa equipe? Das líderes de torcida? — explica ela, como se eu ainda não tivesse adivinhado. — Eu sou a capitã este ano, e estamos realmente precisando de mais alguém. Você sabe abrir espacate? Fazer piruetas? Ah, não faz mal, podemos te ensinar rapidinho... Seus olhos azuis se arregalam quando eu coloco a mão em concha sobre a boca. — Eu não posso ser líder de torcida. Seus lábios se movem. — Por que não? — Porque a minha mãe era, e eu não quero ficar falando sobre isso daqui a vinte anos, como se fosse a melhor época da minha vida. E, não, eu não sei virar estrela, não sou do tipo que se empolga com esportes e não quero ficar saltando por aí, mostrando a minha calcinha. Entendeu? Meg larga minha mão escorregadia. — Então, isso é, tipo, um não definitivo? Ou você quer pensar um pouco mais? Ela pode ser insistente, mas eu gosto dela.
3 MESES + 16 DIAS Terça-feira, 21 de outubro
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Você nunca me disse que a escola era assombrada!
— Assombrada? — repete minha mãe, enchendo a sua quarta xícara de café. Ela passou a tomar mais de dois bules por dia depois que parou de fumar. — Não na minha época. — Bem, Meg sabe que é. Assim como um garoto que a gente encontrou no corredor. — Eu coloco um pouco de leite sobre os meus cereais e mexo com a colher. — É, tipo, uma coisa que todo mundo sabe. Para meu espanto, minha mãe quase revira os olhos, algo que, quando eu faço, normalmente a deixa furiosa e eu levo a maior bronca. — Preciso lembrá-la de que fantasmas não existem? Ou está esperando que eu faça alguma piada para que não se sinta tão nervosa? — Eu não estou nervosa. Mas vou ficar, se continuarmos falando nisso. — Sinto muito. — Ela coloca sua xícara dentro da pia e pega o suéter do gancho na parede. — Eu tenho que correr. Já deveria estar na escola há dez minutos. Agora, lembre-se, a aula começa às sete e quarenta e cinco. — Eu sei, eu sei. Você já me disse vinte vezes. — Então não se atrase. — Por quê? — pergunto, arrastando as palavras. — Você vai fazer uma anotação na minha agenda se eu chegar atrasada? Minha mãe me sopra um beijo e sai. Fico sentada ali por um instante, brincando com os cereais, e então largo a colher. Eu menti. Estou mesmo nervosa. No andar de cima, meu quarto cheira à tinta fresca. Pego o mesmo casaco que usei no dia anterior, quando fui conhecer a escola. Visto-me rapidamente com uma blusa preta de gola alta, saia cinza, meia-calça vermelha e meias pretas. De volta ao andar de baixo, enfio um caderno na bolsa, um Rivotril ilícito no bolso, e então paro abruptamente no meio da escada, ao ouvir passos na varanda.
Passos rastejantes. Alguém sabe que eu estou sozinha? Eu não posso nem chamar a polícia. Nosso telefone só vai ser ligado mais tarde. A cadeira de balanço range lá fora. Solas de sapatos esmagam as folhas caídas na varanda. Eu me esgueiro até o sofá, ajoelho-me numa almofada e abro as cortinas da sra. Gibbons com um único dedo. Então bato na vidraça com o punho duas vezes — Bang! Bang! — Santo Deus! — Nate Brenner dá um pulo da cadeira. Triunfante, eu vou até a porta da frente. — Por que você fica arrastando os pés na minha varanda? — Eu não estou arrastando os pés — rosna Nate, com o rosto vermelho. Estou esperando você. — Me esperando? Não é costume por aqui bater na porta? Ou pelo menos gritar “Ô, de casa!”? Ele me olha, incrédulo. — Você quase me matou de susto! — Sim, e também fiz você proferir o santo nome de Deus em vão — provoco. Sem achar graça, Nate joga a mão para cima, num gesto de impaciência, e sai pisando duro na direção da calçada. Puxa! Ele ficou uma fera. Enfio os pés nas botinhas de bico fino da minha mãe, tudo o que eu consigo encontrar na confusão de caixas de mudança — qualquer coisa é melhor do que meu tênis xadrez fedorento — e corro para alcançá-lo. — Descurpa, se assustei ocê, sô. Foi muita gentileza esperarr pela minha humirde pessoa... Em vez de me dar uma resposta malcriada, Nate se vira para mim e diz simplesmente: — Esse sotaque caipira só teve graça das primeiras vezes. — Caraca, pelo jeito é você quem está de mau humor hoje... — É, bem... — Mas ele não consegue manter a expressão séria e obviamente me perdoa, porque acrescenta: — Se precisar de alguma ajuda hoje, é só gritar. — Como vou achar você? — Fácil. Sou o cara que está sempre cercado de garotas me bajulando. Eu dou um leve soco no braço dele. — Você é um pouquinho presunçoso, caubói. — Olha quem está falando, do alto de suas botininhas pomposas e seu traje de domingo todo arrumadinho. — Acho que não está acostumado com gente da cidade grande — eu comento. — Pode apostar — ele concorda, alegremente, arrastando-me pelas portas da escola.
As coisas não são tão pavorosas quanto eu esperava. Escola é sempre igual, seja em La Jolla, em
River Hills, na Antártida ou em Belize. Você entra na classe, o professor faz a chamada e, em seguida, você se prepara para morrer de tédio. Este ano vou tentar pular a parte do tédio. Seria bom receber o diploma enquanto ainda estou na adolescência. River Hills não parece tão elitista quanto minha escola em La Jolla, mas as pessoas acabam formando panelinhas. Atletas, em sua maioria garotos, acompanhados de suas líderes de torcida. Um grupo de CDFs, que está se preparando para a faculdade. Os bicho-grilos, que gostam de uma erva, incluindo aquele cara do corredor, Dino Mancini. Os alunos da zona rural, que vêm de ônibus do cafundó do judas. Alguns desconhecidos, ignorados por todos. E nada de surfistas, góticos, patricinhas ou roqueiros. Rinn Jacobs, posso apostar, não vai se ajustar a nenhum grupinho. Não sou atleta, a não ser que esteja sobre a sela de um cavalo. Minhas notas só atingem a média, por isso não estou à altura dos CDFs. Também não sou bicho-grilo — as minhas drogas são permitidas por lei. E pelo jeito que as pessoas olham as minhas roupas “da cidade grande”, acho que nunca vou pertencer ao bando dos ignorados. Como sempre, não existe um grupinho dos “pirados”. Eu detesto o modo como os professores me apresentam à classe, acrescentando que a minha mãe é a nova funcionária da secretaria, como se essa fosse uma grande vantagem. Tenho aula de história com o inexpressivo professor Faranacci e em seguida aula de coral com o divertido professor Chenoweth. Depois disso, é a vez da aula de artes, em substituição ao espanhol ou alemão, e neste semestre terei Introdução à Cerâmica. Passo quinze minutos manuseando a argila para “perceber que sensação ela transmite”, como explica o professor Lipford. Como alunos de todas as séries participam dessa aula, Meg, que está no último ano, senta-se comigo na carteira dupla. Cecilia Carpenter, uma garota gorducha que reconheci do coral, também faz essa aula. Assim como Dino Mancini, que me observa de uma carteira próxima. Não, ele não me observa; ele me analisa. Pouco à vontade, tento ignorá-lo e me concentrar na argila. Mas, por fim, até Meg percebe. — Credo! — ela cochicha no meu ouvido. — Ele não desprega os olhos de você. O professor Lipford escolhe justamente esse momento para sair da sala. Dino instantaneamente fica todo animado e se esgueira até nós, agachando-se entre as nossas cadeiras. — Oi... Rinn, certo? Viu, me lembrei do seu nome. — Nossa, mas que maravilha! — exclama Meg, irônica, socando seu pedaço de argila. — Você vai almoçar agora? Vai? Quer me encontrar lá fora? Vou te mostrar... Meg dá uma cotovelada nele. — Esqueça. Ela vai almoçar conosco.
Irritado, ele ataca: — Não estou falando com você, Carmody. Eu ignoro os dois e lanço um olhar nervoso para a porta, sem me importar que todo mundo já esteja começando a guardar suas coisas. Ao sentir o cheiro de maconha no cabelo desgrenhado de Dino, posso adivinhar o que ele quer me mostrar. — Hã, obrigada. Mas eu preciso mesmo comer alguma coisa. Sua decepção é tão evidente que eu quase sinto pena dele, mas então o professor Lipford reaparece na porta. — De volta para o seu lugar, Mancini. Agora. Dino se levanta, levando muito mais tempo do que o necessário, e lentamente volta para a sua carteira, só para ficar me encarando um pouco mais.
Quando o sinal toca, Meg e eu nos encontramos com Lacy Kessler — outra líder de torcida, com um cabelo cheio de mechas coloridas — e Tasha Lux, a filha queridinha de Millie, campeã de salto ornamental. — Meninas, esta é Rinn. Ela vai almoçar conosco. Eu sorrio agradecida quando nenhuma das duas faz qualquer objeção. Procuro Nate com os olhos enquanto nos sentamos em volta de uma mesa, mas, infelizmente, parece que nossos intervalos para o almoço são em horários diferentes. Lacy joga sobre o ombro os seus de cachos quando descobre que eu sou da Califórnia. — Pobrezinha! E agora está enterrada num lugar como este! — Eu vou me acostumar — digo, otimista, embora não tenha tanta certeza. — Ei! Você é líder de torcida? — Eu já perguntei — interrompe Meg, com um olhar de reprovação para mim. — Ela disse que não. — Você sabe nadar? É boa em ginástica? — pergunta Tasha. — Eu não sou muito de esportes... — O que você faz? — Lacy exige saber. — Bem... — Eu não posso acreditar que precise pensar tanto para responder. — Eu toco violão. E canto um pouco. Nada impressionada, Lacy muda de assunto. — Então vocês se mudaram para a antiga casa dos Gibbons, hein? Concordo com a cabeça, e as três meninas trocam olhares antes de olhar diretamente para mim: Lacy, com um olhar malicioso, Tasha, com um leve ar de preocupação, e Meg, vermelha de
constrangimento e com um sorriso de desculpas. — Isso significa alguma coisa? — pergunto a Meg quando ninguém mais abre a boca. O sorriso de Meg oscila. — Eu comecei a dizer ontem, no túnel, lembra? Sobre... — Eu disse para não contar! — interrompe Tasha. — Minha mãe disse para esperar. Eu começo a ficar desconfiada. — Como assim, sua mãe disse para esperar? Meg se inclina mais para perto. — Lembra quando eu te falei da Annaliese? — Lembro. O fantasma. — Eu reviro os olhos. — Tá, você conseguiu me enganar direitinho. — Ei — Meg insiste —, eu não estava brincando. Agora quem interrompe é Lacy, que deixa escapar: — Eu não posso acreditar que ninguém contou que você está morando na casa da Annaliese. — O quê? — Eu me inclino para a frente e encaro Meg. — Bem... a casa da avó dela — Meg admite. — Mas você disse que a avó dela... — eu paro quando a verdade fica evidente. A neta dela e eu íamos para a escola juntas, mamãe tinha dito. — ... se enforcou — Lacy conclui por mim, com um sorriso satisfeito. — Sim, isso mesmo. Bem lá no sótão.
Trancada num cubículo do banheiro, eu coloco meu Rivotril contrabandeado sob a língua. Se eu esperar até que ele faça efeito, chegarei atrasada para a próxima aula, mas neste momento eu não me importo. Vou pedir para a minha mãe uma autorização. Preciso. Falar. Com. Ela. De qualquer maneira! Mas, quando chego à secretaria, minha mãe não está lá. Uma pirralha melequenta do primeiro ano está na recepção, com um crachá de aluno assistente pendurado no pescoço, no qual está escrito Lindsay Mccormick. — Ela está numa reunião com o diretor — Lindsay recita, com os olhos pregados num livro em seu colo. — É urgente. Eu sou filha dela. — Eu sei quem você é. Posso passar o recado. — Tenho certeza de que pode — eu digo educadamente. — Mas preciso falar com ela pessoalmente. Lindsay faz um ar de pouco-caso.
— Volte em meia hora, eles já terão acabado. Eu resisto ao impulso de voar no pescoço dela. Em vez disso, eu me viro e caminho, hesitante, para o corredor. Quando chego à aula de educação física, já voltei à razão. Se a minha mãe não sabe que a sra. Gibbons se enforcou em nossa casa — não apenas em nossa casa, mas na droga do meu quarto —, talvez seja melhor que ela não descubra enquanto ainda está no trabalho.
Até o final do dia, já tenho três amigas oficiais: Meg, Lacy e Tasha. Quatro amigos, se contar Nate Brenner. Cinco, se contar Dino Mancini, que saiu atrás de mim depois do último sinal. — Ei, Rinn. Posso te acompanhar até em casa? Pode ser bom ter alguém com quem conversar depois da escola, mas eu não tenho certeza se esse alguém deve ser Dino Mancini. Nos velhos tempos, eu cairia na lábia dele num segundo. Então por que correr o risco? — Bem, é que eu moro aqui do lado... — É, eu sei. Vou acompanhar você, de todo jeito. Botas maneiras...! — acrescenta, dando uma olhadinha nos meus pés. Então, ele levanta os olhos lentamente, muito lentamente. E eu conheço esse olhar faminto muito bem. Viro a cabeça rápido quando alguém toca o meu ombro. — E aí? — Nate cumprimenta Dino. — O que manda? Dino hesita. — Nada. A mão de Nate aperta o meu ombro. Dino percebe e lança um olhar enviesado para Nate; para mim, ele só acena com uma expressão triste e então dá o fora. — De nada — diz Nate, embora eu não tenha agradecido ainda. — Como foi o dia? — Ah, encantador. Por que você não me disse que ela se enforcou no meu quarto? Felizmente, eu o pego desprevenido. — Você quer dizer a sra. Gibbons? — Hellooou... Você me disse que ela morreu de velhice. — Não, você disse que ela morreu de velhice. Eu só concordei. Eu começo a gaguejar, e ele pega o meu pulso, me levando para longe da calçada lotada. — Olha, meu pai pediu para eu não falar, porque a dona Millie pediu a ele para não contar nada à sua mãe. — Isso é antiético. Você não acha que ele pode ser processado por enganar as pessoas? Por mentir por omissão?
— Não é como se um psicopata tivesse matado a família lá — Nate debocha. — Uma velha deprimida se suicida. E daí? Pessoas morrem em todos os lugares. — Então por que Millie não queria que a minha mãe soubesse? — Acho que isso você vai ter que perguntar à dona Millie. — Ah, pare de chamá-la de dona Millie. — Isso é tão, tão... — Caipira? — ele adivinha. — Coisa de capiau? Jeca? — Todas as opções acima... Ah, esqueça. — Eu me afasto e sigo na direção da minha casa, mas ele me alcança antes que eu dobre a esquina. — O que foi? — Rinn. — Ele parece cansado. — Você quer que eu me desculpe por não lhe dizer que uma velha se enforcou no seu sótão? Ok, peço desculpas. Agora por que não vamos dar um passeio ou coisa assim? — Um passeio? — Um passeio. A última vez que eu fui dar um “passeio” com um cara que eu mal conhecia, acordei em San Diego, num bairro de fama muito ruim, sem a minha bolsa ou a maconha que eu tinha acabado de comprar. — Você acabou de me conhecer, Nate. Por que não sai do meu pé? Nate cerra os dentes com tanta força que me surpreende que não tenha quebrado um. — Eu não sei exatamente o que quer dizer com isso. Mas, primeiramente, não estou “no seu pé”, eu estou indo para o mesmo lado que você, e se preferir não andar mais comigo, é só dizer. Segundo, fui educado para ser agradável com as pessoas, o que eu acho que é um conceito estranho para você. Terceiro... — Terceiro? Você não vai parar nunca? — pergunto, na esperança de interromper o sermão. — Eu não tive a intenção de ferir seus sentimentos, se foi isso que aconteceu aqui. — Terceiro, eu... — Ele olha para o rodamoinho de folhas se formando aos nossos pés. — Acontece que, por alguma razão idiota, eu meio que gosto de você. — Por quê? — pergunto, surpresa. — Sei lá. Talvez porque seja a única garota por aqui que eu não conheço desde o jardim de infância. — Ele aponta com a cabeça para as minhas botinhas. — Você é, hã, interessante. Algumas pessoas por estas bandas acham que isso é crime. Estou ridiculamente lisonjeada. — Você realmente gosta de mim? — Se você parar de agir como se fosse melhor do que todo mundo e não for tão sarcástica, é possível. — Um sorriso torto. — Agora, você quer dar uma volta ou não quer? Posso te mostrar a
vista. Eu solto uma risadinha cínica. — Ah, caramba, mostrar a vista! Desculpe! — acrescento rapidamente. — Sarcasmo. Eu sei. Atravessamos a praça, passamos pelo Vagão-Restaurante — ah, como eu gostaria de entrar e mergulhar a cabeça de Millie dentro da sua famosa fritadeira —, contornamos a rua principal, passando pelo campo de futebol da escola, e voltamos pela Walnut Street, onde Nate aponta a casa de Meg, um aconchegante chalé verde. Vai ser bom ter uma amiga que more tão perto de mim. Por mais chateada que eu esteja por descobrir sobre a sra. Gibbons, passear com Nate me deixa mais calma. Além disso, ele está certo: pessoas morrem em todos os lugares. E o que é que tem se alguém morreu na minha casa nova? Não, não é apenas alguém. A avó de alguém cometeu suicídio no meu quarto. — A minha mãe vai surtar — eu digo em voz alta, quando atravessamos a rua principal novamente. — Por causa da sra. Gibbons, quero dizer. Ela a conhecia. Provavelmente vai nos fazer mudar de novo. — Eu espero que não. — Eu também. Embora eu só esteja ali há três dias, a ideia de ir embora — de voltar a pôr todas aquelas caixas idiotas no carro, de abandonar aquele quarto enorme com uma torre e que eu nem acabei de pintar, para não mencionar os primeiros amigos que eu fiz em anos —, tudo isso me faz querer arrancar os cabelos. — Vamos descobrir. — Eu começo a correr.
Quando chegamos em casa, minha mãe já está lá. Nate e eu a ouvimos antes mesmo de chegar à varanda. Sim, ela sabe. Como poderia não saber? Provavelmente a cidade toda está falando disso agora: adivinhe quem se mudou para a antiga casa dos Gibbons? A secretária nova da escola e aquela filha esquisita que ela tem. — Droga, Millie, você não tinha nada que esconder isso de mim! Eu não ouço nenhuma resposta, o que significa que minha mãe está falando no telefone. — Eu estou preocupada com Rinn, não comigo! — ela grita. — Você sabe o que eu passei com ela! Você tem alguma ideia do que isso pode fazer com ela? Droga! Droga! Três vezes droga! Nate, de orelha em pé, solta uma exclamação de surpresa quando eu o expulso da varanda com
um empurrão. — Vamos embora. Vamos! Relutante, ele me acompanha até a calçada. É tarde demais, claro. Ele já ouviu o suficiente. — Estou achando que você está escondendo alguma coisa. — Eu diria que você acertou. — Não há sentido em negar. — Gostaria de “elucidar” melhor? Eu forço um sorriso. — Essa é uma palavra e tanto vindo de você, menino da roça. — É, quatro sílabas inteiras. Surpreendi a mim mesmo. Eu seguro a minha saia quando uma rajada de vento levanta a bainha. É terrível guardar segredos tão sombrios. Pior, quanto tempo esses segredos vão ficar guardados numa cidade do tamanho de um shopping center de San Diego? Millie provavelmente conhece cada detalhe sórdido. É só uma questão de tempo antes que ela abra a boca. Ela vai contar a Tasha primeiro e então Tasha vai dar com a língua nos dentes e contar para todo mundo. A menos que as pessoas já saibam. Isso me ocorre, também. Eu gosto de Nate. Eu gostaria de conseguir confiar nele. — Eu vou te contar sobre mim — negociei por fim —, mas só se você me disser primeiro o que você já sabe. Sem mentir. — Bem — Nate põe um dedo no queixo. — Eu não ouvi muita coisa. Eu espero. — Humm, sei que sua mãe e seu pai estão separados e é por isso que você se mudou para cá. — O que mais? — Mais nada. Só isso. Eu solto um suspiro de alívio. — Você quer falar sobre isso? — ele pergunta. Não, sim, não, talvez. — Meu pai me odeia — eu digo baixinho. Assim como eu esperava, ele argumenta: — Os pais não odeiam os filhos. — Isso é o que você pensa. Você não conhece Frank. — Nem sabe o que eu fiz a ele. — Você chama seu pai de Frank? — Ele é meu padrasto. — Mesmo assim. Ah, qual é, Rinn? Como ele poderia odiar você? A forma como Nate sublinha “você” derrete o meu coração. — Você já disse — eu digo com voz fraca. — Eu sou um pé no saco, lembra?
Os gritos estridentes da minha mãe chegam outra vez aos nossos ouvidos. Nate pega a minha mão e me leva para o outro lado da rua, seus dedos aquecendo a minha pele. — Você quer entrar? — ele pergunta. — Eu não sei. Posso? — Por que não? Porque o carro do seu pai não está na garagem? Porque a minha mãe costuma ser muito desconfiada? — Tudo bem. A casa de Nate é organizada e totalmente masculina. Na sala de jantar há uma bateria em vez de uma mesa. — É sua? — pergunto. — É. Estou na orquestra. Na fanfarra, também. Você está na aula de coral, certo? Acho que vamos nos ver nos ensaios. Eu aponto para a cabeça de um veado sobre a lareira. — Isso é a coisa mais nojenta que eu já vi. — Eu mesmo atirei nele. — Você está se gabando ou fazendo uma confissão? — Hã... melhor eu ficar quieto. Sobre a lareira eu vejo uma foto de uma mulher segurando um bebê no colo. O bebê se parece com Nate, até o cabelo espetado. — Sua mãe? Onde ela está? — Não nesta casa sem um toque feminino. — Nova York. Meu pai a conheceu na faculdade. Eles se mudaram para cá quando eu nasci, mas minha mãe detestava morar nesta cidade. Foi embora logo depois que essa foto foi tirada. Ela se casou novamente, e agora tem outra família e tudo mais. — Você a viu depois disso? — Não — diz ele, evasivo. Eu faço um gesto com o dedo médio para a foto na moldura, odiando a mulher que desprezou o bebê Nate, e a coloco de volta no lugar quando Nate muda de assunto. — Então por que você é uma dor de cabeça tão grande a ponto de ter sido expulsa da Califórnia? — Inesperadamente, ele tira alguns fios de cabelo do meu pescoço. — É por causa disto? — Não faça isso. — Eu o afasto e recoloco o cabelo no lugar. — Você costuma se mutilar, Rinn? — ele pergunta gentilmente. — Não. Cruzes! Não. Eu só fiz isso uma vez. — Por quê? Eu não tenho certeza se quero contar a ele. Mas não seria melhor despejar tudo, antes que ele descubra com, digamos, Millie? Ou no jornal da cidade? Nate espera. Eu aliso meu cabelo sobre o pescoço e olho para a lareira, reunindo coragem para
responder à pergunta. E, quando consigo, conto a ele a verdade. — Porque eu matei a minha avó. Então, quis morrer também.
Eles me diagnosticaram como bipolar quando eu tinha 14 anos. A princípio a minha mãe achou que eu tinha distúrbio de déficit de atenção e hiperatividade. Nada prendia a minha atenção, eu não conseguia me concentrar, mal conseguia me sentar para ver um filme. Eu só conseguia terminar um livro se ele me parecesse muito interessante, e qualquer coisa que me interessava instantaneamente virava um vício: balé, astrologia, violão, qualquer coisa. Religiões do mundo por um tempo; eu fui judia durante seis semanas, budista por dois dias. Frank deu um basta quando ele me pegou cantando no porão dentro de um pentagrama desenhado no chão. Eles começaram a me dar medicação. Pergunte se eu tomava. Eu adorava a parte “boa” de ser bipolar. Ser capaz de pesquisar, escrever e imprimir um trabalho numa única noite... Não que qualquer coisa que eu escrevesse fizesse sentido. Ficar acordada por dias a fio, conversando com qualquer um sobre qualquer coisa. Naturalmente, nada do que eu dizia fazia sentido, também. Mas ninguém me convencia disso. Mais do que qualquer coisa, eu adorava violar regras. E cabular aula. E ficar chapada. E fazer muito sexo. O que é estranho é que eu não percebia que estava fazendo alguma coisa errada. Achava que todo mundo simplesmente queria me controlar. — Eu costumava fugir no meio da noite — confidencio a Nate. — Ia para a praia ou para o estábulo onde tomava aulas de equitação. Pegava o carro da minha mãe ou de Frank. Eles só descobriam que eu tinha saído quando a polícia me trazia de volta. Quem se importava que o estábulo fechava às nove da noite? Quem se importava que Chinook, meu cavalo favorito, um Appaloosa veloz, pertencia aos donos do estábulo e não a mim? De pé nos estribos, eu me inclinava sobre a sua crina e o montava durante horas, saltando sobre fileiras de obstáculos brancos, que brilhavam como lápides ao luar. Uma noite, os holofotes do estábulo estouraram. Assustada, e a dois passos do obstáculo seguinte, eu puxei as rédeas com toda a força. Chinook desviou, escorregou na grama molhada, e tudo o que me lembro é de voar por sobre o obstáculo. Chinook caiu no chão com um baque surdo. A polícia logo apareceu. Se não tivesse sido por Chinook, caído de lado relinchando, eu poderia ter escapado, do mesmo modo alucinado que eu costumava fugir de todo mundo. Mas eu não podia deixá-lo ali. Eu soluçava sobre o seu corpo suado e gritava: Levante-se! Levante-se! Eu me
lembro da dor no meu ombro quando os policiais me arrastaram de lá, ignorando os meus gritos insistentes. Eu gritava: “O meu pai é dono deste estábulo e ele vai processar vocês, seus porcos!”. Quando avancei para pegar a arma de um dos policiais, eles me algemaram e me levaram para a cadeia. De lá fui para o pronto-socorro, porque a minha clavícula estava quebrada. E, por fim, para um hospital psiquiátrico. Ali, pela primeira vez, eu contei às pessoas sobre as Vozes.
Até agora Nate não pulou do sofá e fugiu apavorado. — Eu já ouvi falar de transtorno bipolar, mas não sabia que era tão ruim. Você realmente ouve vozes? — Agora não ouço mais — digo rapidamente. — Mas quando estou em crise, sim. — Psicótica é uma palavra mais adequada, mas como eu posso dizer isso em voz alta? — É como, sei lá, quando se ouve as pessoas falando em outro cômodo, sabe? Às vezes as vozes ficam mais altas se eu fizer certas coisas. Tipo, se eu colocar os fones de ouvido, as vozes abafariam a música. Ou talvez eu ache que o cantor está cantando para mim. — Eu cubro meu rosto, que está quente. — Deus! Não posso acreditar que estou contando isso. — Então, o que aconteceu com o cavalo? — Ah, ele não se machucou. Mas eles me proibiram de voltar ao estábulo. Eu nunca mais montei depois disso. — Eu tenho cavalos — diz Nate calmamente. — Nós podemos montar um dia desses. — Você quer dizer que não está aterrorizado comigo? — Deveria estar? Quer dizer, você toma remédio para isso agora, não toma? — Eu concordo. — E eu não vi a sua cabeça girando 360 graus uma única vez hoje, como em O Exorcista. Ele ri, mas não de mim. É como se eu tivesse contado que tenho mononucleose, e sim, ele ficou um pouco chateado, mas sinto que mal pode esperar pelo nosso primeiro beijo. Aliviada, eu me reclino outra vez no sofá. O corpo de Nate, ao meu lado, parece muito confortável. Mas eu não estou segura ainda, porque em seguida ele pergunta: — O que aconteceu com a sua avó? Eu hesito. Mas não tenho saída. Ou fico e converso com Nate ou vou para casa e ouço a minha mãe me contar, histérica, sobre a mulher que morreu no sótão; a segunda alternativa com certeza vai me traumatizar para sempre. — Bem, preciso contar outras coisas, primeiro. Ele sorri com os olhos. — Temos tempo.
Será que ele realmente quer saber sobre todos os meus “namorados”? Carlos, que me ensinou a arrombar fechaduras e a fazer ligação direta? Tiago, o traficante? Kyle, o esquizofrênico que dizia que medicamentos psicotrópicos são apenas um meio de forçar as pessoas a se adequarem à sociedade? Ou que uma vez, fora de controle, eu realmente bati na minha mãe? É claro que ele não quer. Então eu pulo essa parte. — Me meti em tanta confusão que eles me expulsaram de duas escolas. Eu quase bombei, porque não saía do hospital. Quando saí, em maio passado, eu até que estava indo bem. Mas estava tão furiosa com minha mãe e Frank por me internarem de novo que eu... Bem, as coisas ficaram muito feias. Então eles me mandaram para a casa da minha avó, para passar o verão. Ela tinha por volta de 80 anos, mas era enfermeira aposentada do exército e uma mulher forte. Eles acharam que ela conseguiria ficar de olho em mim. Eu adorava ficar com Nana. Sua casa de praia em Carmel era tranquila e isolada. Feliz por estar livre da minha mãe e de Frank, eu continuei tomando os remédios e me senti muito bem. Nana me ensinou a fazer crochê, e a gente cuidava do jardim e lia livros na praia. À noite, assistíamos juntas a seriados antigos. Às vezes criávamos os nossos próprios roteiros. Às vezes, até os encenávamos. Ok, aqui está o problema: quando as pessoas loucas se sentem “bem”, elas decidem que não precisam mais de remédios. E, além disso, por mais idiota que pareça, eu sentia falta das minhas crises. Eu queria ser eu mesma novamente: a verdadeira Rinn Jacobs. — Então você parou de tomar os comprimidos — diz Nate, sem parecer surpreso. — Ela não percebeu? — Ela confiava em mim. — O pior erro que já cometeu. Três meses e dezessete dias atrás, houve uma tempestade e acabou a energia elétrica. Nana me trouxe um lampião a querosene, que usava em emergências, para que eu pudesse ler no meu quarto. — Ela me disse para ter cuidado, para apagá-lo quando fosse dormir. Então ela... — Sinto um nó na garganta. — ... ela disse: “Vejo você pela manhã, Rinnie.Eu te amo”, como ela sempre fazia. Depois fechou a porta. As vozes, fortes e cruéis, soavam estridentes dentro da minha cabeça junto com o ribombar dos trovões. Eletrizada, paranoica com as sombras dançando à luz do lampião, eu abri a janela do meu quarto. Os relâmpagos estalavam. Uma chuva salgada chicoteava o meu rosto. — Eu sabia que alguma coisa terrível estava para acontecer. Mas eu não sabia dizer se as Vozes estavam me chamando ou tentando me avisar para sair.
— O que elas diziam? — Nate pergunta baixinho. Lembro-me de um coro satânico soando nos meus ouvidos. — Elas me diziam para correr. Então eu corri. Eu saí pela janela e corri como louca. No segundo em que cheguei à praia, eu me senti mil vezes melhor. Entrei no mar, a chuva ensopando o meu cabelo. Girei em círculos e saltei sobre as pedras, minha pele eletrificada como se tocada pelos raios. A arrebentação abafava as Vozes e eu me sentia segura, e viva, e realmente livre. Mais livre do que eu já me senti tomando comprimidos todos os dias. Eu abaixo acabeça. — Eu não sei explicar, mas foi maravilhoso. Como se eu fosse Deus ou algo assim... — Eu me abraço com força, quase fazendo meus ossos estalarem. — Então vi o fogo. A mão de Nate desliza até mais perto, como se quisesse segurar a minha. — A casa? Concordo com a cabeça, infeliz. — O lampião. Eu tinha deixado a janela aberta e ele caiu com o vento. Eles encontraram Nana no chão, do lado de fora do meu quarto, com um martelo e uma chave de fenda nas mãos. Marcas de martelo em todos os lugares. Ela tentou arrombar a porta. Deve ter pensado que eu estava presa lá, talvez inconsciente. Eu não respondia quando me chamava... Um aperto no peito sufoca minhas palavras. Tremendo, eu aperto o braço do sofá. Inspire, expire... Num gesto quase rude, Nate empurra minha cabeça na direção dos joelhos antes que eu tenha chance de fazer isso sozinha. Lamentando ter desperdiçado aquele Rivotril na escola, aperto os olhos e me concentro apenas em inspirar oxigênio suficiente para não desmaiar. Demora um pouco, mas a minha frequência cardíaca galopante volta ao normal. A sensação de sufocamento desaparece e os pontos pretos diante dos meus olhos também. Estou morta de medo de olhar para Nate. Aposto que ele acha que está testemunhando um verdadeiro surto psicótico. Mas ele me surpreende, pegando a minha mão. — Você não matou sua avó, Rinn. — Matei, sim. Se eu não tivesse saído pela janela, o incêndio não teria começado. Frank me odeia por causa disso e é por essa razão que nos mudamos para cá. Minha mãe finge que é para dar um tempo a Frank. Mas eu sei que ele não vai me perdoar, não importa quanto eu lamente. — Mas a sua mãe te perdoou — Nate me lembra. Eu balancei a cabeça. — Nana era a mãe de Frank, não dela. — Eu toco a minha cicatriz. — Foi quando eu fiz isso.
Nate se oferece para me acompanhar até o outro lado da rua, mas eu digo que não é preciso. Não quero que ele sinta que tem que ser gentil comigo, agora que sabe com quem está lidando. — Onde você estava? — São as primeiras palavras que saem da boca da minha mãe. Seu abraço feroz impede minha resposta. Ela tira o cabelo do meu rosto para analisá-lo. — Nós precisamos conversar. — Ela me obriga a me sentar na escada e se senta ao meu lado sem soltar a minha mão. — Não se preocupe. — Ela acaricia o meu rosto, meu cabelo, parecendo estar com medo de que eu fuja ou volte a me transformar na Filha Psicótica. — Estamos indo embora. Graças a Deus não desencaixotamos tudo ainda... — Mas eu não quero ir embora! — Rinn, uma mulher se matou aqui! Eu nunca teria nem entrado nesta casa se soubesse disso. — Isso não me incomoda — eu insisto. — Bem, isso me incomoda. Com contrato ou sem contrato, estamos indo embora. Podemos procurar algo em Westfield. Não é muito longe e... — Westfield? Quer dizer que eu vou ter que mudar de escola? Não. De jeito nenhum! — Rinn, este foi apenas o seu primeiro dia. — Sim! Mas eu fiz amigos. — Eu me levanto num salto e aponto para o teto. — E o meu quarto? Eu já estou pintando! — Querida, ouça... — Não, você me ouça. Foi você que me arrastou por todos os Estados Unidos. Nós poderíamos ter ficado na Califórnia. Você queria ficar. Eu ouvi você dizer a Millie que queria convencer Frank. — Você andou ouvindo os meus telefonemas? — minha mãe pergunta com rispidez. — Sim, como se a voz de Millie não pudesse ser ouvida num raio de quilômetros. Vamos encarar, mãe. Só nos mudamos para cá porque ela convenceu você a vir. Minha mãe se encolhe sob meu olhar duro como pedra. — Ela achou que seria bom se pudéssemos recomeçar. Eu concordei, Rinn. E você sabe que ela é minha amiga. Eu senti falta dela todos esses anos. Eu fungo, indignada. — Bela amiga! Ela não te contou sobre a casa. Nem sobre o pai de Nate. — Porque ela sabia que eu não viria. — Você a odeia agora? — Claro que não. Eu a amo. — Você me ama? — pergunto com astúcia. — Porque, se ama, vai nos deixar ficar. Chantagem emocional. E eu nem estou envergonhada. Minha mãe suspira. — Você realmente quer?
— Sim! Sim! Olho para o rosto dela e eu sei que ganhei a parada. Quando eu a abraço forte, ela diz com o rosto enterrado no meu cabelo: — Nós precisamos pelo menos trocar você de quarto. Eu levanto o queixo. — Eu gosto do meu quarto. E prometo que não vou bancar a psicótica para cima de você de novo. — Ah, Rinn, não diga isso! Mas pelo menos ela está sorrindo.
3 MESES + 18 DIAS Quinta-feira, 23 de outubro
Eu posso esconder dos outros o que fiz a Nana. Nate sabe, mas eu duvido que ele vá dizer alguma coisa. Acho que ele gosta mesmo de mim. Como é possível? Eu posso esconder minha culpa assim como escondo o meu passado. As pessoas não podem ler os meus pensamentos. Ninguém nesta cidade conhece as minhas lembranças. O que eu não posso esconder é esta cicatriz idiota. Quando as aulas recomeçaram em La Jolla este ano, mamãe me deixou ter aulas pela internet. Claro que “ensino a distância” significava ficar presa em casa o dia todo. Uma vantagem extra para a minha mãe, que poderia ficar de olho em mim, mas uma desvantagem para Frank, que não podia me evitar. Mesmo se eu pudesse usar gola alta durante todo o ano, há uma coisa chamada “educação física” no Colégio River Hills. Short e camiseta, e não há exceção a essa regra. À luz forte do vestiário onde trocamos de roupa, a cicatriz no meu pescoço é como uma placa em neon. Eu sei que as pessoas notam, especialmente Tasha, que olha mais do que ninguém. Por sorte, ninguém percebe seu olhar insistente. — Você vai ao baile, não vai? — Lacy pergunta, ajustando o sutiã. — Ah, você tem que ir! — Meg acrescenta. — Sem contar a formatura, é o maior evento do ano. Eu hesito. — Não preciso de um acompanhante? — Eu não tenho nenhum — admite Tasha, lutando com um nó no cadarço do tênis. — Os caras daqui são uns babacas. — Você não precisa de um acompanhante — diz Meg. — Mas eu vou com Jared O’Malley. Ele é o zagueiro do time. Lacy sorri docemente para mim. — Você pode convidar o Nate, Rinn. Se nenhuma outra garota já não se apossou dele... Eu me faço de desentendida. — Nate? — É. Eu ouvi dizer que vocês dois estão... sabe — Lacy esfrega os dois indicadores — ... tendo alguma coisa.
— Estamos? — As fofocas se espalham à velocidade da luz. — Eu vou pensar nisso — digo, sem demonstrar muito interesse. — Lacy e eu nos inscrevemos para o comitê de decoração. Nossa primeira reunião é amanhã depois da aula. Você precisa ir — Meg implora. — Bem, eu tenho dever de casa e outras coisas... — Ah, por favor — contesta Lacy, arrastando as palavras. — Todas nós temos lição de casa. Pare com isso. Esquivando-me, eu pergunto: — Com quem você vai? — Eu não vou com ninguém. Eu estou noiva. — Lacy balança um pequeno anel de diamante debaixo do meu nariz. Eu não sei dizer se a pedra é verdadeira. Não que eu me importe. — Como você pode ser noiva se ainda está no colegial? — Ela o conheceu pela internet — intromete-se Tasha, alheia ao olhar contrariado de Lacy. — Ele é fuzileiro naval, no Japão. Apareceu aqui no verão passado e, cara, tudo o que esses dois faziam era ficar se agarrando daqui e dali, e a boba da Meg, é claro, acobertando tudo... — Quer, por favor, parar de falar? — rosna Lacy. — Não é da sua conta. Nada pessoal — ela acrescenta olhando para mim, sem parecer muito sincera. — Mas eu mal conheço você. E não quero que a minha família saiba sobre ele ainda. Eu mordo a língua para não dar a resposta enviesada que me vem à cabeça e opto por uma resposta simpática: — Não se preocupe, Lacy. Vou guardar segredo. Ela olha para mim como se estivesse tentando decidir se estou ou não sendo sarcástica e, então, alguém grita “Dá pra ir logo!” do outro lado da porta do vestiário. Meg não estava brincando quando disse que ninguém passa por esse corredor — o “túnel” — sozinho. Mesmo que seja uma bobagem, eu me apresso para me juntar a elas para não ser um dos corajosos, ou burros, deixados para trás.
Antes de dormir, conto à minha mãe que fui obrigada a fazer parte do comitê de decoração. — Ah, querida! Estou tão feliz! Fico surpresa ao ver que ela não sai dando piruetas pela casa. — Por que você está feliz? — Porque é difícil começar numa escola nova, e eu estava com medo de que você... — Ela parece culpada.
— ... assustasse todo mundo de novo? — Não seja boba. Eu simplesmente sei como pode ser difícil fazer novos amigos. Duvido muito. — Vou para a cama. — Você está dormindo bem? — ela pergunta enquanto eu me arrasto em direção à escada. — Sem pesadelos? Pesadelos com a sra. Gibbons, ela quer dizer. Eu sei que a minha mãe quer saber se eu estou realmente satisfeita dormindo no sótão, embora não vá me perguntar agora, pois está com muito medo de discutir o assunto. Por isso talvez ela nunca mais mencione a sra. Gibbons. Como se simplesmente falar sobre ela pudesse me fazer surtar. O que minha mãe ainda não percebeu, depois de todos esses anos, é que eu posso surtar sem a ajuda de ninguém. Afinal, nada “causou” o meu transtorno bipolar. Nenhuma mudança drástica na minha vida. Nenhum evento traumático. A psicose pode surgir do nada, na vida de qualquer pessoa, e ninguém sabe por quê. Nem mesmo os melhores médicos do planeta. E é por isso que a minha mãe está sempre com tanto medo. Se ninguém sabe o que me fez ficar doente, como alguém pode garantir que eu não vou surtar novamente? Minha mãe não mencionou Annaliese, também. Eu estou mais interessada nela do que na avó morta, balançando de uma viga. Mamãe era amiga de Annaliese? Ficou triste quando isso aconteceu? Vou guardar as minhas perguntas para quando ela superar tudo isso.
3 MESES + 19 DIAS Sexta-feira, 24 de outubro
Além de mim, Lacy e Meg, apenas a rechonchuda Cecilia Carpenter e outras duas meninas aparecem na reunião da comissão de decoração. As duas últimas perdem o interesse e desaparecem em sessenta segundos. Noto Lacy medindo com os olhos as dobras da barriga de Cecilia. Lembrome de que o olhar é o mesmo que eu recebia das pessoas quando começava a conversar em voz alta com os meus livros. — Desde quando você está interessada no baile? — ela pergunta a Cecilia. — Minha mãe acha que eu devo me envolver mais nas atividades da escola este ano — responde Cecilia. Eu sorrio, incentivando-a. — A minha também. Cecilia sorri de volta, feliz por ter uma aliada, então eu acrescento: — Eu te ouvi cantando no coro hoje. Você é muito boa! — Na verdade, fiquei tão distraída ouvindo Cecilia que mal prestei atenção em mim mesma. O sorriso tímido de Cecilia fica ainda mais largo. — Obrigada. — Se está procurando algo para fazer, Cecil — interrompe Lacy com malícia —, por que não tenta entrar para a equipe das líderes de torcida? Abrimos algumas vagas. Rinn já disse que não está interessada. Cecilia fica vermelha. — Meu nome é Cecilia. E obrigada, mas também não estou interessada. — Claro que não — continua Lacy. — Porque você teria que aprender a fazer espacate. E repare que eu não disse “espaguete”. — Lacy! — Meg a repreende. — Nem empadão! — arremata Lacy, dando uma gargalhada. Boquiaberta, eu observo enquanto Cecilia se levanta. — Não esquenta — ela murmura. — Acho que vou encontrar outra coisa para fazer. Quando eu me recupero do choque, é tarde demais. Cecilia já saiu da sala.
— Isso — eu digo, furiosa — foi uma grosseria! Lacy, nada arrependida, ergue as mãos. — Bem, eu não quero andar por aí com aquela baleia. É provável que ela nem apareça nesse baile idiota. — Por que você é tão babaca? — pergunto a Lacy. — Você está me chamando de babaca? Meg e eu encaramos Lacy com um olhar de reprovação. Ela cai no choro. — Ah, Deus. Vocês estão certas. Eu sou uma babaca. Eu olho desconfiada quando Meg corre para consolá-la. Humm, esse é um daqueles truques de alternar comportamentos passivos e agressivos que Frank me acusava de usar? Lacy funga no ombro de Meg. — Eu não ia contar ainda a vocês, meninas. Simplesmente não posso acreditar que isso tenha acontecido. Mas eu fiz um daqueles testes... — Testes? — Meg pergunta. — Um teste de gravidez, sua tonta. E deu... p-positivo. Ela soluça histericamente. Meg, depois de parecer atordoada por um instante, recomeça a consolar a amiga, murmurando palavras de conforto com um ar maternal. Uma constatação repentina me ocorre: uma casa assustadora, um cadáver no sótão, um fantasma, um vizinho sexy e agora uma amiga grávida? Eu não estava presa num cidadezinha minúscula de Ohio, estava presa numa das novelas mexicanas que Nana costumava assistir: Será que Rinn Jacobs não terá alternativa a não ser se transformar num pobre membro do comitê de decoração do baile? Será que ela conseguirá encontrar seu caminho para a liberdade com um par de pompons roubados? Assista amanhã ao próximo capítulo! Em meio ao barulho do carrinho do zelador da escola, Meg engancha o braço no de Lacy: — Vamos, precisamos conversar lá dentro. — Ela puxa a amiga para a porta lateral da lanchonete, que leva ao túnel. Eu as sigo meio em dúvida, grata por estarmos em três. Meg fecha a porta com um baque. — Agora nos conte tudo! Lacy grita e aponta. — Um rato! Sim, é mesmo um rato, encolhido no piso de ladrilhos gastos. Mais outros dois roedores mortos estão imóveis nas proximidades. — Jesus! — guincha Meg. Estremecendo ao mesmo tempo, contornamos os corpos peludos e seguimos na direção da
outra extremidade do túnel. Lacy se senta no chão e Meg se agacha ao lado dela. Eu simplesmente fico ali na penumbra, calculando a distância até a saída mais próxima... É, parece que é a lanchonete, mas o vestiário talvez fique mais perto... Uma coisa é correr por esse túnel em grupo, no intervalo entre as aulas. Mas o que estamos fazendo neste lugar agora, se não há mais ninguém por aqui? Lacy olha para mim, certificando-se de que não estou prestes a desaparecer com uma desculpa educada, e se vira para Meg. — Já faz dois meses que eu não menstruo. — Dois? Por que não disse nada? — Porque eu estava esperando que não fosse verdade! Ah, Deus, o que eu vou fazer? Meg toca o anel de Lacy. — Você está noiva, não é? Talvez possam se casar agora, se os seus pais concordarem. A menos que... bem, você sabe. A menos que você queira fazer um aborto. — Eu nunca iria matar o filho de Chad. Eu o amo! Ele faria qualquer coisa por mim. — Então diga isso a ele. Diga à sua mãe e ao seu pai, também. Lacy se desfaz em soluços novamente. — Nããão, eles vão me matar. — Não, não vão. Mas você tem que ligar para Chad — Meg insiste. — Eu não posso! Ele está no Japão! — Então mande um e-mail. — Meg a abraça. — Faça isso esta noite e nos conte o que ele disse. Certo? Esta última pergunta é dirigida a mim, eu acho. Eu me obrigo a demonstrar entusiasmo. — É, nos conte depois. Vai dar tudo certo — acrescento um pouco tarde. — Se ele te ama, vai se casar com você. — Mesmo que você não tenha nem terminado o ensino médio, dã. Os olhos verdes de Lacy cintilam. — O que quer dizer com “se” ele me ama? Você acha que ele não me ama? — Com o rosto contraído, ela fecha os olhos e coloca as mãos nas têmporas. — Você nem conhece meu noivo — ela me acusa quando eu recuo. — Você nem me conhece. — Eu só quis dizer... — Minhas palavras morrem na boca quando um calafrio de gelar os ossos percorre o meu corpo. Que diabos é isso? Quando eu me viro para Meg com um olhar interrogativo, Lacy arregala os olhos. Ela se levanta num pulo e me pressiona contra a parede, prendendo meus ombros com garras de ferro. — Sua vaca, não se atreva a dizer que ele não me ama! Quem você pensa que é? Sempre serei grata a Frank por ele ter me ensinado autodefesa. Eu levanto os braços, enganchando-os no de Lacy e afasto-os para os lados, me libertando dos seus punhos. Ok, estou
oficialmente entregando a Lacy Kessler o título de Louca de Carteirinha! E é nesse momento que eu ouço. No final do túnel, a porta da sala da piscina está aberta. O chacoalhar distante da cerca de arame quase faz o meu coração parar. — Quem está aí? — sussurra Meg, imóvel, exceto pela mão, que massageia a garganta. A cerca sacode de novo, agora mais alto e com mais insistência. Lacy grita, o que me faz gritar também, e então a porta da lanchonete se abre com estrondo. — O que acham que estão fazendo aqui, meninas? — É Bennie Unger, o zelador, de macacão e gorro laranja. O ruído desaparece. Com seus olhos estrábicos, Bennie se aproxima. Aponto para a porta da sala da piscina. — Tem alguém ali, acho. Bennie anda um pouco à nossa volta, sufocando-nos com seu cheiro de suor. Então ele segue pelo corredor, olha para dentro da sala da piscina, fecha a porta, e volta. — Não tem ninguém lá agora. — Eu tremo com a maneira como ele dá ênfase à palavra “agora”, como se soubesse que o que ouvimos não foi, de maneira alguma, a nossa imaginação. Eu acho que sou a única que consegue falar. — Nós ouvimos alguém. Esperamos que alguém humano. Bennie contempla as nossas coisas espalhadas pelo chão. — Vocês são do comitê de decoração? Lacy e eu assentimos. Meg, paralisada, as duas mãos sobre a boca e o nariz. Só peço a Deus que ela não vomite. — Acho que é melhor começarem a decorar, então, meninas. — Sem se abater, Bennie sai arrastando os pés, com as chaves chacoalhando e as solas dos sapatos raspando no chão. Como que despertando de um sonho, nós corremos para a luz acolhedora da lanchonete. Lacy, de volta ao seu antigo eu, inclina-se contra a parede e explode em gargalhadas. — Uau! Salvas pelo retardado. Meg não ri. Nem eu. Eu quero saber o que aconteceu com Lacy ali dentro. E também quero saber por que Bennie Unger enfatizou a palavra “agora”.
É engraçado como algo pode nos deixar de cabelo em pé quando você está lá, no calor do momento, e todo mundo está tão assustado quanto você.
Então, quinze minutos depois, quando está na segurança da sua casa e as luzes estão todas acesas e o frango com cebola da sua mãe está refogando na panela e o noticiário está anunciando outro escândalo de Hollywood... bem, tudo parece bem. Quase dolorosamente normal. Eu farejo o ar. — Isso está com um cheiro bom. — Como foi o dia? — Ah, não fizemos muita coisa. — Eu esfrego o ombro que bateu com mais força na parede. Não há razão para mencionar o que Lacy fez comigo, pois não quero minha mãe voando na jugular dos Kessler, exigindo saber por que sua filha detestável me agrediu. Eu resolvo isso amanhã. — Ei, o que há de errado com o zelador da escola? — Ah, Bennie. — Mamãe agita a panela. — Ele era só um garoto quando eu saí da cidade. Bem esperto, aliás, até que caiu de um telhado, quando trabalhava com o irmão. Millie disse que ele é zelador há anos. — Ela joga os brócolis na panela e adiciona uma pitada de sal. — Por que a pergunta? — Nada, não. Depois do jantar, estou fazendo a lição de casa quando ouço a extensão do meu novo telefone tocar. Espero que seja Nate, então quase deixo o fone cair quando ouço Lacy dizer: — Sou eu. Tasha me deu o seu número. Antes que eu possa pensar numa resposta que não envolva palavrões, ela pergunta em voz baixa: — Você me odeia agora? — Isso é um pedido de desculpas? — Eu acho que sim. Rinn, eu juro que não sei o que me deu hoje! Isso provavelmente é só história. Daqui a pouco ela vai estar implorando para que eu acredite que foi insanidade temporária. — É como se eu tivesse surtado, sabe? Nunca fiz isso antes. Não sou uma pessoa cruel. — Ah, é mesmo? — eu digo friamente. — É por isso que tratou Cecilia como se fosse lixo? — Quis dizer que eu não bato nas pessoas. — O meu silêncio deve tê-la irritado. — O que quer de mim? Quer que eu peça desculpas a ela também? — Eu não estou nem aí para o que você faz. Só não ponha mais as mãos em cima de mim. — Você nunca perde o controle? Perde sim, não é mesmo? — Ela insiste quando eu hesito. — Você sabe do que eu estou falando. — Não, não sei. Mas aceito as suas desculpas. — Desligo na cara dela e volto ao meu livro de matemática. O telefone toca novamente apenas alguns minutos depois. — O QUE É? — Ei, sou eu, Meg. Por que você bateu o telefone na cara de Lacy?
Por que estou sendo atacada por um bando de líderes de torcida? — Eu não quero falar sobre Lacy, ok? Estou no meio de um problema de matemática faz dez minutos. — Esqueça Lacy — Meg concorda. — Eu quero falar sobre o túnel. Olha, eu sei que as pessoas têm feito piada disso há anos. Mas, falando sério, Rinn, tem algo errado lá dentro. — Por quê? Porque a cerca balançou? — Não foi só isso. Eu não disse nada, mas... lembra da primeira vez que levei você lá? Algo aconteceu naquele dia. Algo tentou me sufocar. Eu senti. — Isso é uma piada? — pergunto sem rodeios. — Vocês estão tentando me assustar? — Talvez Lacy a tenha convencido a fazer isso, para se vingar por eu ter batido o telefone na cara dela. — Não é piada. E a mesma coisa aconteceu hoje, só que pior. Agora meus ouvidos doem. Eu estou com náuseas e vertigem. Algo não vai bem, Rinn. Estou assustada. — Talvez seja uma gripe. Ela me ignora. — Eu perguntei a Lacy se ela tinha percebido alguma coisa estranha. Ela disse que não. Isso é porque ela estava muito ocupada me atacando. — Você não sentiu nada? Sério? — Estava muito frio — admiti. — E eu ouvi a cerca. — Você não está tentando me enganar, está? — Não, Meg. Eu acho que você está tentando fazer isso. Embora agora eu tenha as minhas dúvidas. — Não estou tentando enganar você. Juro. — Um longo suspiro. — Ei, pode me fazer um favor? Não conte a ninguém o que eu disse. Senão vão pensar que eu sou louca. Vão mesmo. — Meus lábios estão selados — prometo.
3 MESES + 20 DIAS Sábado, 25 de outubro
Como eu sempre me senti atraída por bad boys, não consigo explicar a minha atração por um cara que toca em fanfarras e provavelmente vai fazer faculdade de agronomia e acabar inseminando vacas a vida toda. Sábado de manhã, ignoro a batida na porta, imaginando que seja algum membro de um culto religioso querendo me converter. Depois disso só me lembro de ouvir passos na escada que leva ao meu quarto. — Ei, surfista. Eu puxo as cobertas até o queixo, chocada com a audácia de Nate. — Você sempre invade a casa das pessoas quando o dia está amanhecendo? — Eu não invadi. A porta da sua casa estava destrancada. — Isso é altamente improvável. — Eu me recuso a acreditar que minha mãe tenha caído tão facilmente nesse perigoso hábito de cidade pequena. Por que ela também não colocou lá fora uma plaquinha? MANÍACOS HOMICIDAS SÃO BEM-VINDOS. Nate abaixa a cabeça. — Ok, eu tenho uma chave. Mas isso é o que você ganha quando não troca as fechaduras — ele acrescenta com ar de bom moço. Antes que eu possa retrucar, ele continua: — Estou indo para o estábulo. Lembra que convidei você? — Hum, eu não sabia que tínhamos, sabe, um encontro de verdade. — Vai se vestir. Estou falando sério — diz ele, autoritário, quando volto a me ajeitar sob as cobertas. — Não me faça ir até aí e arrancar você da cama. — Ok! Então cai fora daqui! No segundo em que ele sai, eu salto da cama e visto o mesmo jeans que usei ontem, acrescentando uma camiseta limpa, um suéter e um par de meias limpas. Escovo os dentes e o cabelo, e passo uma camada dupla de desodorante. Na ponta dos pés, vou até o quarto da minha mãe e a ouço roncar. Não vejo razão para acordá-la. Deixo um bilhete sob o pote de café. — Você poderia ter me avisado — eu reclamo, calçando o meu tênis velho, enquanto Nate se serve de suco de laranja.
— Você não é uma moça lá muito espontânea, não é? Faço uma pausa. — Diga-me que você não acabou de me chamar de “moça”. — Desculpe. Escapou. Nate tem um jipe. Eu não me refiro aos jipes elegantes e caros que se veem cruzando as ruas ensolaradas de La Jolla. Quero dizer um jipe de verdade, sujo de lama e de uma cor verde desbotada; uma relíquia de décadas. Pegamos as deslumbrantes estradas montanhosas, cujo limite de velocidade, por alguma razão masoquista, é oitenta quilômetros por hora. Viramos numa grande casa branca com uma placa com os dizeres: FAZENDA PRADOS ROCHOSOS — PROPRIEDADE PARTICULAR. Então entramos numa estradinha coberta de cascalho e folhas. Quando saltamos do jipe, eu fico ali parada, inspirando o cheiro de feno, esterco e cavalos. É a primeira vez que chego perto de um cavalo desde o terrível episódio com Chinook. Eu senti falta disso! — De quem é este lugar? — É de uns amigos do meu pai. Eles permitem que eu deixe Ginger e Xan aqui de graça, ainda me pagam para limpar o estábulo e levar os cavalos para o pasto. Raramente eles vêm aqui. A lama adere ao meu tênis enquanto subimos uma ladeira. Dentro do celeiro em forma de L, os cavalos batem os cascos e relincham uma saudação. Eu ando ao longo da fileira de portas, trêmula de emoção e consciente das bufadas curiosas e dos cascos golpeando o chão. Nate levanta a aldrava de uma baia. — Aqui está o seu bebezão. Não deixe que o tamanho dele a assuste. Eu suspiro quando o grande cavalo preto bufa na minha mão. — O que ele é, um Percheron? Nate parece satisfeito que eu saiba a raça do cavalo. — Isso mesmo. Ele é do meu pai, na verdade, mas ele nunca vem aqui para montá-lo. Nós o chamamos de Xan, apelido de Alexandre, o Grande. — Nate conduz o cavalo para fora da baia e o prende habilmente no corredor. — Um cavalo guerreiro, em homenagem a um guerreiro. Acha que consegue selá-lo? — Claro! — eu me vanglorio. Talvez eu tenha falado cedo demais, pois mal tenho altura para jogar o cobertor sobre as costas do cavalo. Nervosa, olho a sela volumosa. — Não costumam usar sela inglesa? — Não. Desculpe por isso, Sua Alteza. Ele me dá uma mãozinha com a sela, sem fazer nenhum comentário rude sobre a minha baixa estatura. O freio é mais fácil; Xan gentilmente abaixa a cabeça para mim, enquanto Nate sela
Ginger. — Você tem certeza de que consegue cavalgar numa boa? Quer dizer, depois do que aconteceu... Muito atencioso da parte dele se lembrar. — Eu não me assusto fácil. Nate acha graça. — Rinn, a Destemida. Conduzindo Xan, eu sigo as ancas reluzentes de Ginger para fora do estábulo. Subo num bloco de montagem, piso no estribo e jogo a perna sobre as costas do cavalo, que é do tamanho de uma pequena lancha. — Bom menino! — Acaricio o pescoço lustroso de Xan, considerando a distância entre o meu crânio e o chão de terra. Não estou acostumada a cavalgar sem capacete. Nem botas. Mas depois do comentário de Nate sobre a sela, resolvo ficar quieta. A luz do Sol se infiltra através do dossel de folhas douradas enquanto percorremos, lado a lado, primeiro uma trilha e depois um campo aberto, com colinas cobertas de névoa a distância. Quando Nate incentiva Ginger a galopar, Xan decola atrás dele. Sem medo, eu acompanho confortavelmente seu ritmo, apertando suas laterais enormes com os meus músculos fora de forma. — Você é boa nisso! — Nate grita. — Quer correr? Eu aperto os olhos, olhando para a frente, com um estremecimento de emoção. — Pode apostar!
Nate ganha a corrida, mas por pouco. Depois de refrescar os cavalos e acomodá-los no estábulo, ele pergunta se eu gostaria de dirigir o jipe até em casa. Caçoa de mim quando falo que não tenho carteira de motorista. — As crianças começam a dirigir nessas estradas secundárias quando têm 9 ou 10 anos. E onde mais você vai poder dirigir um carro com câmbio manual? Nate me mostra como é. Ele é surpreendentemente paciente quando eu brutalizo o seu câmbio: acelero, dou um solavanco, paro, acelero, dou um solavanco, paro, dou um SOLAVANCO! Depois de alguns quilômetros, eu pego o jeito. De volta à casa de Nate, salto do jipe com as pernas bambas e esfrego o traseiro dolorido. Eu vou pagar muito caro por isso. — Obrigada pelo passeio, Nate. Especialmente depois que eu te contei tudo aquilo sobre mim. — Qual é? — Ele desce do jipe, também. — É preciso muito mais para assustar um caubói.
Antes que eu possa reclamar de que agora ele é que está abusando da piada, Nate inesperadamente toca minha bochecha. Será que vai me beijar agora? Em vez disso, seus dedos se movem para baixo, para delinear minha cicatriz sob os cabelos ao vento. — Eu estava só imaginando... As Vozes disseram para você fazer isso? Irritada, eu afasto a mão dele. — Não quero falar sobre isso. — Tudo bem — diz ele, simpático. — Então, vamos falar sobre outra coisa. — Como o quê? — Como o baile. — Seus lábios roçam a minha testa. — Quer ir comigo?
Minha mãe arregala os olhos. — Ele pediu para levá-la ao baile? O que você disse? — Nada, na verdade. — Bem, graças a Deus! — Evasiva, ela olha para algum lugar no teto. — Espere aí. Você não quer que eu vá? — Claro que sim. É só que... Rinn, você realmente gosta dele? — Caramba, mãe! Primeiro você fica toda preocupada porque acha que não vou fazer amigos. Agora está toda preocupada porque ele me convidou para ir ao baile? — Eu sei, eu sei. — Por que incomoda você que seja Nate? É por causa do pai dele? — Uma ideia horrível passa pela minha cabeça. — Luke é meu pai? É esse o grande segredo? — Seu pai?! — minha mãe exclama, indignada. — Ah, meu Deus, claro que não! — Você tem certeza? — Claro que eu tenho certeza! Luke estava um ano na minha frente na escola, ele foi para a faculdade e eu nunca mais o vi. Rinn, eu contei a você quem é seu pai. — Sim, foi um caso de uma noite só. — Eu nunca mentiria sobre isso. Eu relaxo. — Então por que você odeia Luke? Minha mãe desaba numa cadeira da cozinha. — Eu não o odeio. Não, de verdade. — Você nunca me disse por que ele terminou com você. — Porque ele encontrou outra pessoa. — Minha mãe dá um soco na mesa. — Ah, eu poderia simplesmente matar Millie por não ter me avisado! Agora estou morando na casa dele. Estou
alugando a casa dele. Minha filha está saindo com o filho dele! Isso é tão, tão... — ... irônico? — eu arrisco. Minha mãe cobre o rosto. Eu não sei dizer se ela está rindo ou chorando. — Mãe, se isso vai deixar você chateada, eu não vou a esse baile — que, a propósito, significa comprar um vestido, agir como uma menininha doce e feminina, e ficar com pessoas que eu mal conheço. — Não. — De olhos secos, minha mãe se endireita na cadeira. — Eu quero que você vá. E quero que aproveite a vida. Promete? — Prometer que vou me divertir? Isso não é perda de tempo? Quer dizer, que tal prometer que não vou desobedecer ao toque de recolher ou usar drogas ou fazer besteiras ou... — Rinn!... — Eu prometo solenemente — recito — que será o melhor dia da minha vida.
3 MESES + 22 DIAS Segunda-feira, 27 de outubro
Dino Mancini está me seguindo. Bem, ou quase isso. Logo de manhã, eu o encontro em frente ao meu armário, embora ele comece a se afastar pelo corredor quando me vê chegando. Ele me observa tão atentamente durante a aula que se esquece de dizer “presente” quando a professora Schimmler grita o seu nome. Ele diz “oi” para mim no corredor, não importa quantas vezes já tenhamos nos cruzado. Uma ou duas vezes pode ser até lisonjeiro. Seis vezes é um pé no saco. Na aula de artes, ele faz tantas perguntas sobre os nossos trabalhos que nem sei responder. Faz um elogio exagerado ao meu bolo de argila acinzentada que, infelizmente, ainda se parece com um bolo de argila acinzentada. Ele faz comentários espirituosos para chamar a minha atenção e aproveita qualquer desculpa para roçar contra as costas da minha cadeira. — Você poderia, por favor, parar com isso? — Meg finalmente reclama, fazendo o professor Lipford ameaçá-lo com uma passagem pela diretoria. — Não estou fazendo nada! — protesta Dino, com um sorriso conspiratório para mim. — Por isso mesmo. Volte ao trabalho ou saia. — Minha nossa! — murmura Meg, quando Dino se afasta. — Ele é, tipo, obcecado por você. Ele é? Por quê? Por que se dá ao trabalho de se importar comigo? Será porque sou uma novidade? Por isso ele está dando em cima de mim antes que Meg, ou qualquer outra pessoa, envenene minha mente contra ele? Ou, pior, ele de algum modo percebeu quem eu sou? Acha que eu sou o tipo de garota que dispensa o almoço para fumar uma erva ou coisa assim? Porque a antiga Rinn, a Rinn doente, poderia fazer exatamente isso. Não, ela definitivamente teria feito isso. E adoraria cada segundo. — Por que você não gosta dele? — pergunto a Meg, pois é óbvio que ela não gosta. — Porque, A: ele é um maconheiro. B: vive dando em cima das garotas. C: não vale nada. E D: é primo de Jared — o que significa que, se eu me casar com ele, serei parente desse babaca. — Mas, só por isso você não gosta dele?
Meu sarcasmo faz Meg rir. O professor então ergue o olhar na nossa direção. Rápida, finjo que estou profundamente interessada no meu caderno, consciente dos olhos de Dino sobre mim.
Depois das aulas, enquanto comemoro a minha liberdade, Dino aparece na minha frente quando começo a descer os degraus em disparada. Sou obrigada a fazer uma parada abrupta e quase perco o equilíbrio. — Ei! — Desculpe! Desculpe! — ele gagueja, me segurando antes que eu colida contra ele. E acrescenta enquanto pego meu livro no chão: — Ei, podemos conversar um minuto? Eu olho em volta, procurando Nate, que em geral me encontra depois das aulas. Então me lembro de que ele tem ensaio com a banda à noite. — Tudo bem — digo, com cautela. Dino me acompanha escada abaixo, até a calçada, e depois para por um instante, as mãos nos bolsos da jaqueta surrada, o vento despenteando seu cabelo preto. — Ok, hã, o que eu queria te perguntar é... sobre sábado à noite. — Sábado à noite? — Confusa, eu penso por um segundo. Então me lembro. Ah, não, não, não... por favor não me pergunte isso... — É... você sabe. O baile. Eu estava pensando se... — Com o rosto vermelho, Dino engasga, como se tivesse acabado de engolir um caroço de pêssego. Fico apavorada pensando se ele vai sufocar antes de conseguir falar alguma coisa. — Você quer ir? Quer dizer, sabe... tipo... comigo? — Ah... — Minhas bochechas ficam mais quentes. Eu odeio ferir os sentimentos das pessoas, mas... — Sinto muito, Dino. Eu já vou com alguém. — Você vai? — Ele parece obviamente surpreso. — Eu pensei, sabe, que você era nova aqui então... Eu... bem, só imaginei que ninguém tivesse te convidado ainda. Pensou errado. — Eu realmente sinto muito — repito. — Mas agradeço o convite — acrescento, surpresa com a minha própria sinceridade. Bem, ele gosta de uma erva, mas será que é tão ruim quanto Meg pensa? Quando me viro para ir embora, ele pergunta: — Hã, com quem você vai? — Nate Brenner. — Nate Brenner? — Seu sorrisinho irônico me pega de surpresa. — Tá explicado. Meio ofendida, eu me afasto.
3 MESES + 23 DIAS Terça-feira, 28 de outubro
Lacy entra pomposamente na sala, massageando a barriga chata. — Eu mandei dez e-mails para o Chad no final de semana e ele ainda não me respondeu! O que eu faço agora? — Arrebenta os miolos? — sugere Tasha. — Ei, espere. Você não tem que fazer isso ainda. Meg larga a caneta. — Olha, a gente devia estar planejando a decoração da festa. Será que vocês não podiam pelo menos fingir que estão interessadas? — Por que você não pega no pé da Rinn? — rebate Lacy. — Afinal ela é que nos convidou para vir aqui e não disse uma palavra ainda. Pega em flagrante, baixo o rolinho com que estou pintando a parede do meu quarto. Eu estou espalhando tinta cinza na parede há um bom tempo e quase terminando a segunda demão. — O baile é sábado — fala Meg com uma vozinha estridente. — Temos que decorar a lanchonete na quinta. E eu não posso fazer isso sozinha! — Não há muito que fazer. Sempre sobram decorações prontas do ano anterior, não é? Além disso... — eu olho para Lacy. — Cecilia ofereceu ajuda. Talvez a gente possa chamá-la de volta. — Ah, claro! — rosna Lacy. — A baleia pode levar os refrigerantes. Se não bebê-los pelo caminho! Tasha solta um grunhido. — Por que você é tão má, Kessler? — Cala a boca, sereia. Você nem faz parte do comitê. Por que não vai nadar no seu aquário esta noite? Antes que eu sugira que as duas calem a boca, Meg desaba no colchão ao lado de Tasha. — Ah, estou farta desta coisa toda! Na semana anterior ela estava superentusiasmada. Por que está farta agora? — Blá-blá-blá — diz Lacy rudemente. Então gesticula para as minhas paredes. — Cruzes, essa cor é horrível! Mas acho que ficou perfeita no seu quarto. — Explique. — Explicando: não incomoda você nem um pouco que a velha tenha se enforcado aqui? — Ela
aponta para cima. — Numa destas vigas? Ela é mesmo um pé no saco. — Será que podemos não falar mais nisso? Eu tenho que dormir aqui, sabe? Tasha senta-se apoiada num cotovelo. — Talvez ela tenha enlouquecido, como a srta. Prout. Ela saiu por aí no meio da noite. Sem dizer uma palavra. Abandonou tudo. Meg fala num sussurro: — Talvez tenha se matado também. — Então ela se vira para mim: — Elas eram amigas, sabe, a srta. Prout e a sra. Gibbons. Interessada, Tasha acrescenta: — Ou talvez ela nunca tenha ido embora. Talvez alguém a tenha assassinado e enterrado no porão de Rinn! Para mim já basta. — Garotas, vocês estão tentando me deixar apavorada? — Que medrosa! — Lacy massageia a barriga pela última vez, então joga o cabelo sobre o ombro com um sorrisinho cruel. — Ok, Rinn. Mostre para nós o que vai usar no baile, então. Merda. — Não comprei nada ainda. — Tá brincando? Por que não? — Detesto fazer compras — confesso. — Me engana que eu gosto! — exclama Tasha, acenando com a cabeça para as cestas cheias de roupas e as pilhas de roupas no chão, todas protegidas com lençóis por causa dos respingos de tinta ou coisa assim. Tudo bem, não é que eu não goste de “fazer compras”. Eu não gosto é de comprar roupas formais. Não existe nenhum vestido de baile, no mundo, que cubra a minha cicatriz. Agora estou quase arrependida de ter aceitado o convite de Nate. Mas, se eu tentar explicar às minhas amigas, terei que explicar outras coisas também... — Não é nada de mais — diz Meg, parecendo suficientemente a velha Meg para me animar. — Vamos levar você à Barney’s. Tudo ali é de segunda mão, mas em boas condições. Tasha comprou o vestido dela lá. Tasha fala numa voz tensa e esganiçada. — Você está se referindo ao vestido que eu não vou usar? Agora estamos todas olhando para ela. — Do que você está falando? — pergunta Meg. — Eu não posso ir. Vou estar nadando.
— Na noite do baile? — Lacy pergunta. — Não tem outro jeito. Nancy reservou a piscina do Aquatic Center para mim. — E, olhando para mim, Tasha diz: — Nancy é a minha treinadora. A piscina é em Kellersberg e é a melhor da região. Quer dizer, Nancy se desdobrou para conseguir e... — O rosto de Tasha desmorona. — Eu falei pra minha mãe sobre o baile, mas não posso escapar dessa. — Isso é bobagem! — anuncia Lacy. — Aposto que a sua mãe nunca perderia um baile — eu afirmo. Na verdade, pelo que eu ouvi minha mãe falando dos seus velhos tempos de escola, ela e Millie nunca perdiam nenhum evento social. — Eu sei — concorda Tasha, com tristeza. — Eu disse isso a ela também e sabe o que ela respondeu? — Ela imita Millie à perfeição: — “Isso é diferente. Eu era popular! Você nem tem um par!” — Puxa! — Meg murmura. — Ah, e disse também que, se quero mesmo ir para as Olimpíadas, tenho que fazer sacrifícios. — Ela está mandando na sua vida — diz Lacy, abruptamente. — Você quer ir? — Gosto cada vez menos de Millie. Tasha encolhe os ombros. — Sim, mas eu não quero brigar com a minha mãe. Quer dizer, ela se sacrifica para pagar a minha treinadora e as taxas das competições e a reserva das piscinas e... — Sua voz morre na garganta e então, de repente, ela levanta o queixo. — Sim, eu quero ir. Não é justo! — É só dizer a ela que não vai nadar — Meg sugere. — Ela não pode arrastar você até lá à força, pode? — É — apoia Lacy. — Você já nada, tipo, três ou quatro vezes por semana? E faz ginástica? Uma noite de folga não vai matar você. É a noite do baile! Imponha a sua vontade! Os grandes olhos castanhos de Tasha nos cativam a todas, uma por uma. Estamos todas dispostas a nos unir para apoiá-la. Afinal, trata-se do Reencontro Acadêmico, algo que só acontece uma vez por ano. Como Millie pode ser tão insensível, tão irredutível? Então o rosto de elfo de Tasha se abre num débil sorriso. — Vocês têm razão. Dane-se a piscina! Eu vou ao baile! É a minha vida, certo? Quem liga para o que ela vai dizer? Nós todas eerguemos os braços e nos cumprimentamos com um grito de vitória.
Depois do jantar, eu conto à minha mãe sobre o dilema de Tasha enquanto escavamos juntas uma abóbora de Halloween.
— E você acredita que ela disse que, como Tasha não é popular, ela não precisa se preocupar com o baile? — Talvez Tasha esteja exagerando — responde a minha mãe, neutra. — Ou talvez Millie seja uma filha da mãe — eu resmungo. Mamãe abre a boca, em seguida muda de ideia. — Bem, acho que ela pode ser. Às vezes. Eu não repito a primeira parte da nossa conversa, sobre como as minhas amigas continuam insistindo em falar sobre a sra. Gibbons ter se enforcado no meu quarto. Eu não quero que ela suspeite que, sim, talvez eu fique um pouco paranoica com a ideia de dormir no sótão. Eu não me sentia assim antes. Mas isso com certeza está atrapalhando o meu sono ultimamente. Eu enfio a faca na minha abóbora para escavar a órbita ocular, me perguntando de repente sobre Frank e se ele tem telefonado. Ou imaginando se ele desligaria na minha cara, se eu ligasse para ele. É bem provável. No dia em que minha mãe e eu deixamos a Califórnia, ele se esquivou de mim quando tentei abraçá-lo. Ele mal se despediu. Ainda dói pensar nisso. Mas eu aposto que não dói tanto quanto o que eu fiz a ele.
3 MESES + 24 DIAS Quarta-feira, 29 de outubro
No meu sonho, estou tocando violão num palco, em frente aos alunos da minha escola. No meio da música — não fica claro no sonho de que música se trata —, alguém na plateia grita: “ASSASSINA!”. Um por um, todos se unem ao coro: “ASSASSINA! ASSASSINA! ASSASSINA!”. Eu saio do palco e tento correr, mas a multidão me cerca, me sufocando, ferindo-me com as suas unhas e eu não consigo fugir... não consigo fugir!
O mais importante sobre os sonhos é que eles não passam de... sonhos. Se a pessoa não sonhar, explicou uma vez a dra. Edelstein, pode desenvolver problemas emocionais. Na melhor das hipóteses, ela pode não conseguir se concentrar. Na pior, pode ter alucinações. É por meio dos sonhos que o cérebro passa por uma espécie de limpeza. O sonho é como um “enema cerebral”, essa foi a exata descrição dela. No café da manhã, a primeira coisa que a minha mãe diz é: — Eu ouvi você falando enquanto dormia. Outro pesadelo? — Todos os meus sonhos são pesadelos. — Sério, é verdade. Minha mãe joga os talheres numa gaveta. — Eu não posso acreditar que ele vai fazer você esperar até janeiro para uma consulta. — Ela está se referindo ao novo psiquiatra que a dra. Edelstein me indicou. Alguém em Cincinnati, não aqui na cidade, graças a Deus. — Eu poderia fazer chantagem, dizendo que vou tomar bomba na escola. Isso faria ele me atender mais rápido. — Nem brinque com isso! Bem, o humor da minha mãe não está encantador? Em dias como este eu gostaria que ela voltasse a fumar.
Na aula de artes, quando vejo Cecilia Carpenter, não sei bem como abordá-la. Lacy foi abominável com ela! E se Cecilia resolver descontar em mim? Arriscando a sorte, eu me levanto da minha cadeira e me esgueiro até Cecilia, que se senta a duas carteiras de distância. — Ei. É isso aí, eu digo “ei”, como todo mundo aqui. — Desculpe pelo outro dia. Com Lacy. Cecilia dá uma risadinha. — Você está se desculpando por Lacy? — Porque Lacy não vai se desculpar. — Quando a risadinha se transforma num sorriso, eu acrescento: — Eu deveria ter te defendido. Mas acho que fiquei tão surpresa... Não esperava... — Eu devia ter esperado. Ela é tão... é uma... — ... mocreia? Cecilia ri. — É. E é uma pena, porque eu realmente gosto de Meg. Tasha também. Tash e eu fazíamos ginástica juntas e então... — ela faz um gesto na direção da barriga —, eu engordei. E, por favor, não diga nada idiota como “Ah, mas você não está gorda...”. Não precisa. Eu sei como está a minha aparência. Aliviada com a receptividade dela, resolvo não fazer rodeios. — Por que você não muda de ideia e vem nos ajudar? Sério, precisamos de você. Amanhã, na verdade. — Estão tão desesperadas assim? É neste momento que o professor Lipford percebe que estou na carteira errada. — Bem, Corinne. Posso supor que você já esteja pronta para a sua última demão de tinta? — Ah, sim. — Eu me afasto rapidamente e sussurro para Cecilia: — Almoce com a gente! — Depois volto depressa para o meu amontoado de argila seca. — O que foi isso? — Meg cochicha no meu ouvido, com o pincel suspenso. Eu finjo que não ouvi e volto a me concentrar no meu trabalho. — Então, o que você acha que isso é? A princípio era uma tigela, mas agora... Meg examina a minha obra de arte. — Um cinzeiro? Um candelabro? — Tudo bem, um candelabro. Tanto faz. Ele está quase pronto.
Sentadas em volta da mesa de sempre, Meg, Lacy e Tasha observam quando Cecilia e eu nos aproximamos. É neste momento que percebo: elas não parecem nada felizes em ver Cecilia. Especialmente Lacy. Será que eu quero mesmo vê-la ser humilhada novamente? Eu aceno com a cabeça em direção a outra mesa. — Vamos nos sentar ali. Ela me acompanha, sem se abalar. — Entendi. — Entendeu o quê? — Porque você me arrastou para cá em vez de se sentar com as suas amigas. Eu começo a dizer que elas não são de fato minhas amigas, que eu mal as conheço, na verdade. Mas isso parece mentira. — Quem sabe eu queira fazer mais amigas? Cecilia agita seus cabelos escuros. Eu noto pela primeira vez como ela é bonita. Se emagrecesse um pouquinho — ok, muito —, Lacy poderia até considerá-la uma rival à sua altura. — Claro. Você chega de repente á cidade, vindo de ninguém sabe onde, certo? E já está andando por aí com as garotas mais populares do pedaço. Além disso, estão dizendo por aí — ela brinca com uma salsicha empanada no palito — que você já tem namorado. Você sabia que algumas garotas dariam o próprio sangue para que Nate apenas olhasse para elas? — Somos vizinhos, é só. — Até agora, pelo menos. — Talvez as pessoas só sejam simpáticas comigo porque a minha mãe trabalha na secretaria. Amigos com poder e essa coisa toda. Sem parecer que se convenceu, Cecilia desembrulha sua salsicha. Eu faço o mesmo. Odeio dizer, mas eu adoro esta minha nova dieta hipercalórica. Na Califórnia tudo o que comemos é salada, frutas e hambúrguer de tofu. Claro, lá, fora os meus remédios, eu me recusava a engolir qualquer coisa que não fosse feita com as minhas próprias mãos. Medo de ser envenenada, entende? Eu abro o meu suco de garrafinha. — Com quem você costuma almoçar? — Pat Schmidt, mas ela está de molho em casa, com mononucleose. E Stacy Winkler — ela acena com a cabeça na direção de outra mesa, onde Stacy, que é candidata a um cargo do conselho estudantil, ou seja, de Anta do Ano, a julgar pela sua campanha para um bando de calouros entediados —, mas ela anda muito ocupada ultimamente. Você ainda fala com os seus antigos amigos? Ah, claro. Todos os dias. — Hum, eu não sou uma pessoa muito extrovertida. — Sério? Você não parece tímida.
— Não sou. Só gosto de ficar na minha. — Rá, boa sorte, então. — Ela acaba de comer a sua primeira salsicha e já pega a segunda. — Eu sei, eu sei — ela diz, como se já esperasse uma crítica. — Não consigo resistir. Eu gosto de comer. E como mais quando estou nervosa, e estou nervosa agora. Sabe aquele jogo no sábado? Eu vou cantar o Hino Nacional. — Você é corajosa! — digo com admiração. — O único momento em que me sinto bem comigo mesma é quando estou cantando, sabe? É quando as pessoas me ouvem para variar, em vez de ficarem me atormentando porque eu sou gorda. Ficamos em silêncio por um momento. Então Cecilia me avisa: — Acho que as suas amigas estão tentando chamar a sua atenção. Lacy, sentada na ponta da cadeira, acena loucamente para mim. Será que existe uma regra dizendo que não posso me sentar com mais ninguém a não ser com elas? Cecilia estuda a sua salsicha no palito. — Melhor você ir antes que elas surtem. Eu hesito. Claro que não quero perder as poucas amigas que tenho, mas também não quero abandonar Cecilia. — Não tem por que eu trocar de mesa agora. O almoço está quase no fim. É até triste ver como ela fica feliz com isso. Nós conversamos um pouco sobre amenidades até o sinal tocar. A próxima aula é educação física. Quando eu junto as minhas coisas e vou para o túnel, Cecilia fica um pouco para trás. — Eu vou por outro caminho. — Ela acena com a cabeça para uma porta dupla mais distante que leva diretamente ao ginásio. A placa diz “NÃO ENTRE. POR FAVOR USE O CORREDOR”. — Eu não gosto do túnel. — Quem gosta? — Ninguém. Mas uma vez, quando eu tinha 5 anos, meu irmão me trancou na garagem sem querer. Ele disse que não me ouviu gritando. Eu fiquei presa lá por horas. Desde esse dia eu sou claustrofóbica. — Cruzes! Com toda a razão. Seus olhos se iluminam de gratidão. — Eu só não quero que você pense que eu tenho medo de fantasmas, porque eu não tenho. — Então somos duas — eu disse alegremente. — Vejo você depois. Em seguida eu pego o túnel como todo mundo — eu não quero ser pega entrando onde não deveria —, e faço uma anotação mental para ir à secretaria avisar sobre os ratos mortos.
3 MESES + 25 DIAS Quinta-feira, 30 de outubro
Enquanto fazemos uma vistoria nas caixas de decoração de Halloween, depois das aulas, Lacy nos avisa: — Não esperem que eu vá subir numa escada no estado delicado em que estou. — Estado “delicado” — caçoa Tasha. Felizmente ela tinha concordado em nos ajudar “só dessa vez” e só porque não era noite de nadar. — Não me faça vomitar. Ei, espere, isso quem faz é você agora. — Eu nunca devia ter contado a vocês — ressente-se Lacy. — Como você conseguiria guardar segredo? Você vomita o seu almoço a semana inteira! Lacy prepara-se para responder quando Cecilia aparece na porta da lanchonete. — Jacobs. Não me diga que você convidou a vaca cantora. — Convidei. — Eu me aproximo mais de Lacy. — Precisamos dela, portanto seja gentil. Estou falando sério, Lacy. Lacy quase encosta o nariz no meu. Sem saber direito qual será o resultado daquela disputa, Tasha se concentra nas suas serpentinas de papel crepom. Meg pega um saco de abóboras de plástico. Os segundos passam. Lacy perde a parada. — Que seja, Rinn. Orgulhosa de mim mesma, eu aceno para Cecilia. Meg e Tasha falam um “oi” com o entusiasmo que eu esperava. Lacy acena com a cabeça e se afasta. Com o meu incentivo, Cecilia se junta a nós, afixando cartazes de fantasmas e bruxas nas paredes da lanchonete. Meg e eu colocamos nas mesas toalhas laranja e pretas, enquanto Tasha enche as abóboras de plástico com balas, pirulitos e bombons. Lacy, amuada, toma um refrigerante enquanto passa pedaços de fita adesiva para Cecilia, com um ar distante. Minha mãe, que concordou que eu ficasse até mais tarde desde que houvesse um adulto por perto, aparece duas vezes só para checar. Da segunda vez, eu lhe lanço um olhar que é um lembrete de que aquela não é uma reunião de escoteiras de 6 anos de idade, apesar da decoração quase infantil. Ela não aparece mais.
Tasha se abaixa quando Lacy atira na direção dela um pirulito gigante. — Eu não posso comer isso! Estou de dieta até as regionais. — Sério? Nesse caso, talvez você possa passar a Cecil aqui algumas dicas — responde Lacy, que em seguida grunhe como um porco para Cecilia. Eu estava me perguntando quanto tempo ia demorar para começar essa babaquice. Ignorando Lacy, Cecilia se dirige a Tasha. — Só tome cuidado para não ficar com algum transtorno alimentar estranho. É comum em atletas. Meu pai é médico — ela explica para mim. Lacy faz uma cara de deboche. — Então por que ele ainda não inventou uma cura para obesidade? — Ela pega um punhado de balinhas e arremessa em Cecilia. As balinhas coloridas caem sobre as abóboras e se espalham pela mesa. — Pode parar! — eu grito. — Pode parar! — imita Lacy, com ar de escárnio. — Qual é, desde quando você é a rainha da pipoca doce? Tasha explode numa gargalhada. Até Meg não consegue conter o riso. Tudo bem, até que foi engraçado. Eu luto para manter um semblante sério e não consigo. Cecilia me olha, sentindo-se traída. Eu rapidamente me recomponho. — Ah, ignore. Lacy está agindo como uma idiota desde que engravidou. De repente, todas ficamos em silêncio. Eu só percebo o que disse quando Lacy vem pra cima de mim. — Muito obrigada! E eu é que estou agindo como uma babaca aqui? Você acha que eu quero que todo mundo na escola saiba? Eu não contei nem para os meus pais ainda! Eu sou mesmo uma idiota! — Sinto muito — digo, arrependida. — Você sente muito — Lacy repete, com rancor. — Bem, então por que eu não estou me sentindo melhor? — Cecilia não vai contar a ninguém, não é? — imploro a Cecilia. A garota dá um sorrisinho. — Claro que não. O jeito como ela fala isso, sem sarcasmo, mas sem sinceridade também, me deixa preocupada. Talvez eu tenha me enganado quanto a essa garota. Eu vejo a preocupação de Lacy também. Esquecendo-se de mim, ela observa Cecilia enchendo com bombons a última abóbora, enquanto Tasha e Meg vão cuidar do resto da decoração. Eu não gosto nem um pouco do sorriso no rosto de Cecilia.
Então, casualmente, Lacy diz a Cecilia: — Então, ouvi dizer que você vai cantar o Hino Nacional. Isso significa que vai vir ao baile também? O sorrisinho de Cecilia desaparece. — Não tinha planejado. — Por que não? Não tem acompanhante? Quer dizer que você vai cantar o maldito do Hino Nacional e ninguém te convidou para o baile? Mas que droga! — Cala a boca! — manda Tasha. — Ah, bem, não importa. — Lacy ignora a minha cara feia. — Se você vier, Cecil, saiba que vamos fazer uma sessão espírita no túnel. Adoraria que você participasse. O que acha? Eu olho para Lacy, confusa. — Que sessão espírita? — Só uma coisa que eu e Dino planejamos — diz Lacy, misteriosa. Eu fico olhando para ela. — Você vai ao baile com o Dino? — Eu não vou com ele. — Ela dá uma risada evasiva. — Só vamos estar lá ao mesmo tempo. Eu fico sem fala. Lacy e Dino? Quem já ouviu falar de uma líder de torcida saindo com um bicho-grilo? Ela estreita os olhos para mim. — Qual o problema? Está com ciúme? Porque eu sei que ele te convidou e você recusou. — Aimeudeus! Rinn! — zomba Tasha. — E você nem nos contou? — Por que eu contaria? — Sério, elas tinham que saber cada detalhe da minha vida? Meg balança a cabeça com uma abóbora na mão. — Meu Deus, Lacy. Não acredito que você está com ele outra vez. E Chad? — É só para o baile — insiste Lacy. — Eu não estou com ele. Aliás, nunca estive com ele, eu já disse. Tasha faz um barulho engraçado com a boca. — Ah, então é por isso que Nate deu o fora em você no ano passado? Porque ele não descobriu que você estava saindo com Dino. Desculpe. Me enganei. Então ela olha para mim e cobre a boca com um “ops”. — Você saiu com Nate? — pergunto, com a voz fraca, esperando que ela negue. Lacy dá de ombros. — Só umas duas vezes. Meg joga a abóbora de plástico na mesa. — Vocês precisam ficar falando o tempo todo em quem está saindo com quem?
— Ah, Meg — rebate Lacy. — Aliás, é melhor que as suas vacinas estejam em dia, porque Jared já saiu com todas as garotas desta escola. — Não é verdade! Você é tão cheia de... — Cala a boca! — grita Lacy. — Cala a boca! Cala a boca! — Pálida, ela agarra o cabelo e se afasta, desabando numa cadeira. — Minha cabeça está explodindo! Se o rosto dela não parecesse tão pálido, eu juraria que ela estava fingindo. — Eu preciso de alguma coisa para esta dor! — ela grita, enterrando os dedos no couro cabeludo. — Nada de remédios para você, gravidinha — zomba Tasha. — Sofra! Lacy deve estar se sentindo tão mal quanto diz, porque do contrário estaríamos vendo Tasha voar pela lanchonete. Mas ela balança o corpo, enquanto Meg, esquecendo seu ataque de raiva, vai até Lacy, cheia de preocupação. Tasha, porém, que conhece Lacy muito bem, observa a cena com tanto ceticismo quanto eu. Cecilia pergunta, nervosa. — Rinn, talvez você deva chamar a sua mãe. — Não! — grita Lacy antes que eu possa me mexer. — Só façam esta dor passar! Ai, Deus, como dói! Dó muito!... E, então, como se alguém tivesse estendido a mão e desligado Lacy, ela para de reclamar. Suas mãos caem no colo. Ela olha para Cecilia, com o rosto relaxado. Cecilia a encara também. Na verdade, todas nós fazemos isso. — Me desculpe por ter dito aquelas coisas, Cecilia — diz Lacy gentilmente. — Acho que eu estava fora de mim. Tasha cutuca Lacy nas costas. — Sabe o que eu acho, Kessler? Que você tem sérios problemas mentais. Lacy cai no choro. — Eu acho que os meus hormônios estão meio instáveis. — Bem, você deve ter nascido com os hormônios instáveis. Meg olha feio para Tasha. — Pare! Não vê que ela está com enxaqueca? — Na verdade — Lacy pisca, surpresa —, já passou. — Ela passa a mão pelos cabelos encaracolados e força um sorriso. — Mas eu estou bem agora. Totalmente bem! Sua rápida transformação me deixa com a pulga atrás da orelha. Ou ela estava fingindo e somos todas muito fáceis de enganar, ou... Um movimento me chama a atenção, uma sombra repentina. Viro a cabeça, rígida de descrença, e vejo as sombras das pernas da mesa ficarem mais longas... mais escuras... deslizando através do chão como dedos monstruosos. Que diabos é isso...?
— Merda! — Eu tropeço e colido com Cecilia. — Ai! — Sem nenhuma delicadeza, ela me empurra para a frente. Eu pisco para o chão. As sombras da mesa ainda estão ali. Mas agora elas são simplesmente sombras. Nada mais. Lacy, de volta ao seu antigo eu, me olha com um ar de divertimento. — O que há com você? — Eu... — Tirando os olhos do chão, olho para Lacy, em seguida para Meg, então para Cecilia, depois para Tasha, e percebo pelas expressões confusas que eu sou a única que notou aquelas sombras estranhas. Ninguém mais. Da mesma forma que ninguém nunca viu os vultos que eu vejo. Não é a mesma coisa. Não pode ser. Eu não vou deixar que seja. — Sinto muito. — Engraçado como a minha voz sai normal, perfeitamente calma. — Estou cansada. Vamos acabar isso aqui.
Depois de terminar a decoração, por volta das seis e meia, nós nos sentamos e admiramos a nossa obra. O plano para amanhã é que todos os estudantes tragam seus almoços de casa e comam no auditório, para não pôr a perder o nosso trabalho duro. Sento-me o mais longe possível da mesa assombrada, mas descubro que é impossível não olhar naquela direção. Nada se move. Nada está fora de lugar. Nada lembra nem remotamente o que eu vejo, com o canto dos olhos, quando paro de tomar os meus medicamentos por um tempo: as formas humanoides escuras, ao longo das paredes, aproximando-se lenta e insidiosamente —, como as sombras da mesa — e que desaparecem no mesmo segundo em que eu as olho de frente. As sombras da mesa não eram vultos. E eu ESTOU TOMANDO meus remédios. Tasha, felizmente, para de provocar Lacy. Meg relaxa. Lacy se comporta civilizadamente. Tasha e Cecilia lembram-se dos tempos em que faziam aulas de ginástica juntas. Eu sou a única que não fala. Fique de olho naquela mesa, fique de olho naquela mesa! Eu me encolho quando um trovão provoca um estrondo e as luzes do teto piscam. — Vamos embora daqui. — Está com medo de um trovãozinho? — brinca Lacy. Eu mantenho os olhos colados nas sombras das pernas da mesa, negras sobre o linóleo. Esperando que elas comecem a rastejar. Certa de que eu vou senti-las se elas se aproximarem mais
de mim. Uma ilusão, isso é tudo. Não é uma alucinação. — O que você está olhando? — pergunta Lacy, num tom autoritário. Eu puxo o casaco de debaixo de mim. — Nada. As luzes piscam novamente. Lacy sussurra: — Talvez seja Annaliese tentando se comunicar. Tasha revira os olhos. — Ou talvez seja... Aimeudeus! O vento! — Vamos lá, vamos dar uma olhada. — Lacy se levanta num pulo e dispara para a porta do túnel. Lembrando o que aconteceu da última vez em que eu fui até lá com Lacy Kessler, balanço a cabeça. — Me deixa fora disso. — Digo o mesmo — concorda Cecilia, pelos seus próprios motivos, é claro. Mas Tasha se levanta no ato. — Covardes. — Ela acena para Meg. Meg se levanta, relutante. Lacy já tinha corrido para o túnel. Sua voz ecoa do outro lado da porta. — Iurruuu, Annaliese! Onde está vooocêêê? — Ela olha rapidamente para nós. — Depressa! Se todas nós chamarmos Annaliese ao mesmo tempo, talvez ela apareça. — Eu não acredito em fantasmas — fala Cecilia. — Ah, é mesmo? Então, por que está aí atrás, toda encolhida? — Ignora — eu digo a Cecilia. — Vamos embora. — Do que você tem medo, Cecil? — Lacy provoca, enquanto Cecilia pega a jaqueta e a mochila. — Vamos lá dentro, eu te desafio. Cecilia morde o lábio. Por que ela aceita que a tratem assim? — Você a desafia? — eu repito. — O que é isto, um jardim de infância? Lacy me fulmina com o olhar. — Você não está com medo, está, Jacobs? Embora da última vez em que fomos lá — ela dá uma risadinha com uma expressão de pesar —, você quase tenha morrido. Eu queria arrancar aquele sorrisinho da cara dela. — O que ela te fez? — Cecilia pergunta. — Será que podemos mudar de assunto? — eu pergunto em voz mais alta. — Pelo amor de Deus! — me apoia Meg. — Eu não acho que a gente devia estar aqui ainda. —
Ela olha para mim, implorando silenciosamente para que eu não mencione o que ela falou sobre o túnel e a sensação de ser sufocada. Eu sorrio, demonstrando a minha lealdade. — Ninguém acredita nesse papo de Annaliese, de qualquer maneira. — Cecilia acredita — diz Lacy numa voz suave. — É por isso que ela nunca pega o túnel. E é por isso que está apavorada demais para vir comigo agora. Eu espero que Cecilia confesse que é claustrofóbica, e que o fato de não pegar o túnel não tem nada a ver com o que Lacy está falando. Então espero que ela pegue suas coisas e vá embora, pois é esperta demais para cair no joguinho diabólico de Lacy. Mas Cecilia não faz nenhuma dessas coisas. Em vez disso, ela se afasta de mim e passa por Meg e Tasha. Quando Lacy tranquilamente lhe dá passagem, Cecilia ergue o queixo e marcha para o túnel. Abruptamente, Lacy fecha a porta violentamente. Eu salto para a frente, alarmada. — O que está fazendo? O grito de Cecilia, lá no túnel, se junta ao meu: — O que estão fazendo? Então Cecilia começa a golpear a porta com os punhos. — Me deixa sair daqui! Me deixa sair daqui AGORA! Morrendo de rir, Lacy e Tasha (e Meg também) jogam todo o seu peso contra as portas de metal. Lacy pressiona os lábios contra a fenda entre elas. — Ei, Baleia! Essa não é a única saída, você sabe! — Isso não tem graça nenhuma! — eu grito. — Deixem ela sair! — Ah, por favor. Tudo o que ela tem que fazer é sair pela outra porta. Eu agarro o primeiro braço que vejo — o de Tasha — e o puxo com toda a minha força. Tasha para de rir e não resiste ao meu puxão. Meg, envergonhada, é a segunda a se afastar da porta. — Ela tem claustrofobia! O que há de errado com vocês? Por que — eu olho para Lacy — você tem que ser tão insuportável? — Eu? — Lacy dispara para mim. — Por que você tem que ser tão bizarra, Jacobs? — Então ela passa o dedo indicador de um lado a outro da garganta, com um olhar carregado de significado. Eu não consigo mover um músculo. — O que aconteceu com o seu pescoço? — ela diz, afastando com um gesto o protesto horrorizado de Meg. — Conte pra nós. Sabemos guardar segredo. A distância, eu ouço os apelos persistentes de Cecilia, os golpes que ela dá nas portas com os punhos. Com os pensamentos a mil por hora, eu me pergunto por que ela não corre para a outra
saída; a porta do vestiário, por exemplo, fica só a alguns passos dali. Eu quero muito gritar isso para Cecilia, mas o olhar venenoso de Lacy me paralisa. — Quem cortou a sua garganta? — As palavras me congelam como gelo deslizando pelo meu peito. — Não foi você mesma, foi? Foi? Um trovão sacode o prédio. Todas reagem, menos Lacy; seu olhar frio está colado ao meu pescoço. Felizmente, quando meus olhos se desviam, eu saio do torpor e noto um terrível silêncio quando o barulho do trovão se desvanece. Agarro a blusa de Lacy. — Sai da frente! — Eu a empurro com tanta força que ela se choca contra uma mesa. Abóboras rolam. Doces se espalham. Eu abro a porta e sinto como que uma explosão de ar gelado. De alguma forma pensei que veria Cecilia imediatamente, encolhida no chão, como uma bola histérica. — Onde ela está? — Tasha pergunta sobre o meu ombro. — Cecilia? — Eu entro no túnel, mas, em seguida, paro, desconfiada. — Olhe a porta! — eu mando, olhando para Tasha. — Façam a mesma coisa comigo e eu quebro o pescoço de todas vocês. Tasha assente. Eu olho para o lado norte do túnel, depois do ginásio. Além do vazio escuro, vejo uma luz fraca vinda da porta aberta do auditório. Eu dou um passo para trás, esfregando a pele arrepiada. — Ela saiu. — Bem, é claro que saiu. — Tasha não me olha nos olhos. Meg sussurra: — A gente só queria dar um susto nela. Eu luto contra a vontade de gritar na cara dela. Como Meg, entre todas as pessoas, podia fazer isso com Cecilia? — Bem, eu acho que vocês conseguiram. — Eu me volto para Lacy agora, caída numa cadeira, de cabeça baixa, ombros trêmulos. — Você acha isso engraçado? Você deixou Cecilia apavorada! — Me deixa em paz... — ela geme. Ela está chorando, não rindo. — Minha enxaqueca voltou. Ah, Deus, isso dói muito... — Ótimo! — eu exclamo, mordaz. Corro para fora da lanchonete e saio pela porta da frente. Ah, Deus, eu espero que Cecilia tenha me ouvido tentando tirá-la dali! Caso contrário, nunca mais vai falar comigo novamente. Lá fora, cai uma chuva torrencial e eu não vejo nem sinal de Cecilia. O vento abafa a minha voz quando grito o nome dela. Tudo o que eu ouço é o farfalhar das árvores e as rajadas de chuva na calçada.
Um carro passa, com os limpadores ligados. Linhas de energia se agitam. Placas de rua chocalham. Onde ela está? Onde? Então vejo uma figura caminhando com dificuldade do outro lado da praça. Aperto os passos e atravesso a rua, espirrando a água das poças de chuva. — Cecilia! — grito. Ela continua andando. A chuva escorre pelos seus olhos, mas ela mal pisca para afastá-la. — Eu sinto muito pelo que aconteceu. Você está bem? — Escorregando na grama molhada, eu detenho Cecilia com a mão. Fico surpresa que ela não me dê um soco. Abraçando a si mesma, Cecilia sussurra algo, batendo os dentes. — O quê? — pergunto. — Eu não consigo te ouvir. Perguntei se você está bem. Seus lábios se movem novamente, mas eu não identifico as palavras. Eu me inclino para mais perto dela e coloco o ouvido próximo à sua boca. Finalmente eu a ouço, quando ela repete pela terceira vez: — Eu não consig-go fa-lar. — Você não consegue falar? — eu repito. Cecilia confirma com a cabeça, e se aperta contra mim com um soluço.
3 MESES + 26 DIAS Sexta-feira, 31 de outubro
—
O que você estava fazendo naquele túnel, afinal? — pergunta minha mãe, enquanto empurra
um copo de suco na minha direção e me passa os frascos de remédio. — A gente não estava no túnel. Lacy trancou Cecilia lá dentro. — Bem, eu não acredito que você deixou que ela fizesse isso. — Eu? Eu fui a única que disse para que a deixassem em paz! — Querida, eu estou orgulhosa de você por fazer amigos como Cecilia e por tentar incluí-la. Mas por que você não veio me chamar quando o problema começou? Eu quase engasgo com os meus comprimidos. — Ah, só faltava essa! — Ou você e Cecilia poderiam ter ido embora. — Você quer dizer que eu deveria escolher, né? — eu digo com raiva. — Dizer adeus às minhas novas amigas para poder sair com outra de que nenhuma delas gosta? — Se as suas “amigas”— minha mãe enfatiza a palavra, irritada — são de fato suas “amigas” — ah, Deus, ela está fazendo isso de novo —, então, por que não podem aceitar Cecilia? Por que alguém sempre — sua voz sobe de tom e volume — tem que ser deixado de lado? Eu tremo quando ela agarra a minha tigela de cereal, joga-a dentro da pia e abre a torneira a pancadas. Raios de indignação irradiam dela, como o calor de uma estrada de asfalto. — Mãe, o que há com você? Isso tudo é por causa da falta de nicotina? — Você sabe o que há comigo! Você sabe como me sinto com relação a gente que pratica bulling. — Bem, eu não pratico bulling. Eu sou amiga de Cecilia. Mas gosto de Meg e Tasha, também, e... — ok, talvez não de Lacy, mas como eu posso ser amiga das outras sem ser amiga dela? — Ah, por que todas essas regras idiotas? — exclamo. — Sabe, você pode andar com esta pessoa, mas não com aquela, porque as outras não vão gostar. É tão injusto! — É, é injusto. E, não, isso nunca vai mudar. Mal-humorada, eu digo: — Talvez eu volte para o lado negro, então. Talvez eu fique melhor sem nenhum amigo. Pelo
menos, era mais fácil do que essa mer... droga toda! Minha mãe dá as costas para a pia e olha para mim. — Eu não posso dizer o que você deve fazer. E, não, eu não posso dizer para não andar com Lacy. Eu só quero que você pense um pouco sobre essas coisas. — Ela beija minha cabeça e estende os braços para me abraçar. — Eu estou orgulhosa de você, querida. — Por quê? — Porque eu não tentei cortar a garganta ultimamente? — Por tudo. Por você ser o que é.
Eu não tenho a mínima ideia de como encarar Cecilia. Minha mãe está certa, eu deveria ter me esforçado mais para ajudá-la. No entanto, para ser justa comigo mesma, preciso dizer que Cecilia entrou no túnel porque quis. Ninguém a obrigou. Ninguém a jogou lá dentro. Por que ela fez isso? Para provar a Lacy que era capaz de aceitar seu desafio? Por que Cecilia se importa com o que Lacy Kessler pensa? Eu sei por que: porque, como eu, ela quer fazer parte. Deus sabe que eu não quero passar mais um ano sem amigos. Quando estava doente, eu não me importava. Mas eu me importo agora. Prometendo fazer as coisas direito, eu me arrumo, pego as minhas coisas e saio de casa. Embora osol brilhe através dos galhos nus das árvores, está bem mais frio hoje. A geada cobriu tudo de gelo. Nate, com uma jaqueta do Cincinnati Reds, o glorioso cabelo castanho avermelhado escondido embaixo de um boné de caçador com protetores de orelha peludos, balança na cadeira da varanda, muito à vontade. — Gostosuras ou travessuras! Tento não parecer tão empolgada ao vê-lo. — Nada de ensaios ainda? — O jogo é amanhã. Se não tivermos ensaios agora, não teremos nunca mais. — Ele pula da cadeira. Parece feliz em me ver também, o que me deixa ainda mais feliz. — Então, vocês conseguiram decorar toda a lanchonete na noite passada? — Sim, e foi um completo fiasco! — Conto tudo em poucos detalhes. — E quando a encontrei na praça, ela não conseguia falar. Estava sem voz. Nate, indignado, balança a cabeça. — Sobre Lacy... Eu acho que devia ter te avisado. — Avisado que ela é uma bruxa? Eu descobri no primeiro dia. — Então por que você fica com ela?
— Como eu posso não ficar com ela? Ela é amiga da Meg e eu gosto da Meg. — Embora não tanto depois da noite passada. Lembrando-me de algo, acrescento na defensiva: — De qualquer forma, pelo que ouvi dizer, você costumava andar com ela, também. Ele me olha. — Explique. — Explicando: eu sei que vocês saíam juntos. — Sair no sentido de “ter um encontro”, o que de fato tivemos; ou de “transar”, o que não fizemos? Sinto um enorme alívio. — Não fizeram? — Eles não transaram! — Caramba, Rinn, dê algum crédito à minha inteligência. — Então, por que você parou de “sair” com ela? — Porque ela me enganava o tempo todo. — Certo, com Dino. Hã... Tasha mencionou algo sobre isso — acrescento diante do seu olhar penetrante. — A culpa é minha, porque eu devia ter me tocado. Eles andam juntos desde o segundo ano. Ela meio que anda fugindo dele, na verdade, desde que começou a achar que é boa demais para ele. Mas isso não a impede de... bem, você já deve imaginar. — Ele é o par dela no baile. Quer dizer, não oficialmente. Pobre Chad, que não sabe de nada. Nate dá um sorriso torto. — De qualquer forma, Lacy e eu não levávamos nem um pouco a sério esses nossos encontros. Ele aperta a minha mão, melhorando o meu humor em cem por cento. Sorrio para os nossos dedos entrelaçados enquanto descemos as escadas.
De acordo com o rei Salomão, a regra com relação a não cortar caminho pelo ginásio ficará suspensa durante o baile. Na verdade, o túnel será proibido amanhã à noite para a nossa “própria segurança”, diz ele. Ou ele ficou sabendo dos planos de Lacy de fazer uma sessão espírita ou acha que vamos usá-lo como um antro de orgias. Cecilia e eu chegamos à aula de artes ao mesmo tempo. — Como está a voz? — pergunto ansiosa. Ela limpa a garganta, como se testando. —- Melhor agora. — Ótimo. Eu estava preocupada.
— Ah, claro. — Dizendo isso, ela se afasta. Ok, entendi: ela está furiosa. Eu me arrasto até a minha carteira e pego a minha tigela/candelabro/o que quer que seja da prateleira. Meg, pálida, os olhos sem maquiagem e com olheiras, finalmente chega e desaba no seu lugar. — Eu não dormi muito bem esta noite — ela diz, embora eu não tenha comentado nada. Consciência pesada, eu espero. — Por que não? Ela levanta um ombro. — Meus ouvidos novamente. Nada de mais. Meu candelabro parece fabuloso agora que está pintado — de um vermelho escuro e uniforme — e apenas um pouco torto, com o meu nome gravado na parte inferior. Eu decidi não passar uma camada de verniz para poder levá-lo para casa à noite, encontrar uma vela e colocá-lo na varanda para o Halloween. — Você está com raiva de mim por causa do que aconteceu com Cecilia? — murmura Meg. — Eu estou mais brava com Lacy — digo com sinceridade. — E de saco cheio dessa garota, também. — Rinn, você nem a conhece muito bem. — Talvez nem queira. — Eu conheço Lacy desde sempre. Se ela agisse assim o tempo todo, você acha que eu seria amiga dela? — Eu olho para Meg como se dissesse “não faço ideia”. — Ok, ela está mais insuportável do que o normal. Mas isso é porque... Eu levanto a mão para interrompê-la. — Já entendi. — Ótimo. Porque eu não gosto de ter que ficar defendendo os meus amigos. — O olhar de Meg me surpreende. — E por que você tinha que abrir a boca sobre “você sabe o quê”? Ainda mais para a Cecilia! Ela nem faz parte do nosso grupo. Eu olho para Cecilia, esperando que ela não tenha ouvido. — Eu não sei. Estava furiosa. Escapou. Pausa. — Acho que todas nós temos momentos em que somos insuportáveis. — Acho que sim. — Trocamos sorrisos, perdoando uma à outra, e então eu levanto o meu candelabro. — Acho que vou levar isso para a sessão. Meg fica muito quieta por alguns segundos. — Certo. Aquela sessão.
— Eu te protejo — eu brinco. Ela esfrega um ouvido e não diz nada. — Meg —acrescento com firmeza — É apenas um túnel. E é apenas uma brincadeira, certo? Ela concorda com a cabeça, com descontração. Eu não acho que ela acredita em mim.
Depois da escola, eu alcanço Cecilia quando ela está indo embora, para tentar fazer as pazes mais uma vez. Antes de eu ter chance de dizer duas palavras, ela me encara. — Olha, Rinn. Eu acho que é legal que você não seja como as outras pessoas aqui. Mas não podemos ser amigas, se você vai continuar sendo amiga delas. Eu não preciso aguentar aquelas cretinas, e não preciso ser saco de pancada de ninguém. Sem ressentimentos, ok? Estou chocada ao perceber quanto isso me dói. — Eu não usei você como saco de pancada. — Tanto faz. Se sair com aquele bando de mocreias é tão importante pra você, bem, o problema é seu. Eu lamento por você, Rinn — ela acrescenta, indo embora. — Realmente lamento. Eu também. Mas não sei muito bem por quê.
— Na minha casa — eu insisto quando Nate diz querer distribuir os doces na varanda dele. — É o meu primeiro Halloween aqui. — Pode não ser uma boa ideia — ele me avisa. — Por quê? — Bem, existe uma tradição por aqui... — Uau! Você está me assustando! — Eu finjo tremer. — Esquece, caubói! — Faça como quiser. Mas é melhor ter doces decentes, ok? Nada de balinhas baratas. Nós gostamos de chocolate por estes lados, barras de chocolate, bombons e coisas do tipo. — Já providenciei. Meu trabalho da aula de artes está orgulhosamente exposto sobre o parapeito da varanda, exalando um aroma marcante graças à vela que eu coloquei dentro dele. Aos lados do candelabro, duas abóboras ocas, também com velas dentro — uma tradicional, feita pela minha mãe, e a outra, mais sinistra, com olhos puxados e a boca de quem está soltando um grito. Nós arrastamos um banco até a beira da rua, onde nos sentamos e distribuímos bombons e barras de chocolate para grupos de crianças vestidas de bruxas, fantasmas e personagens da Disney. Depois de um tempo, Nate coloca um bombom na boca, mastiga-o, e então diz, como se estivesse
pensando nisso a alguns minutos: — Vai ser divertido amanhã. — Eu nunca fui a um baile de escola antes — confesso. — Por que não? Simples: porque eu não podia ir. Nem a bailes, nem a excursões escolares, nem a jogos fora da escola, nada. Eu ficava com muito medo que as pessoas ficassem me olhando, falando de mim, possivelmente me seguindo com más intenções. Será que eles envenenariam a minha comida se eu me comportasse da maneira errada? Colocariam um dispositivo de rastreamento em mim para que eu nunca pudesse fugir? Eu já contei demais a Nate sobre mim — será que eu na verdade queria assustá-lo, pelo bem dele? —, então, simplesmente respondo: — Ninguém que me agradasse jamais me convidou. Naquela fração de segundo, minha abóbora de aparência sinistra voa do parapeito e se estatela no chão. Uma figura sombria, usando uma máscara assustadora, entra no meu quintal, gritando: — Annaliese pode sair para brincar? Nate levanta do banco de um salto. — Pode apostar, babaca! O cara solta um urro e dispara pela rua. Eu só fico olhando, indignada, para o espaço vazio. Por que ele não mirou a abóbora da minha mãe? Nate vai até os degraus da varanda. — Que idiotas! — Ele chuta a abóbora despedaçada, então volta para a varanda. — Ei, eu tinha me esquecido. Estão dizendo por aí que outro cara te convidou para o baile. — É. O Dino. — Reviro os olhos. — Ninguém aqui resiste a uma fofoca? — Era para ser segredo? — Por quê? Está com ciúmes? O banco range quando ele se senta novamente, muito mais perto dessa vez. — Talvez. — Sua voz rouca faz o meu coração dar um salto no peito. Um novo grupo de adolescentes, visivelmente com muita idade para brincar de gostosuras ou travessuras, para na nossa frente: Leatherface, de O Massagre da Serra Elétrica, acenando com uma motossera de plástico, Michael Myers, usando sua máscara de hóquei, e uma figura esquelética carregando uma foice. Eles só ficam ali, sem dizer nada. Eu balanço minha tigela de barras de chocolate. — Sem violência. Eu já fui avisada de que iam aparecer alguns otários. Silêncio. — Que tal um bombom? — Eu balanço um, convidando-os a pegar.
Nate dá uma risadinha, juntando-se a mim. — Qual é a capital de Delaware? Quem foi o último presidente da União Soviética? Qual é...? — ... a raiz quadrada de 1.375? — eu grito. Nenhuma resposta. — Que caras mais esquisitos... — murmuro. — Só espere um pouco. Eu espero. Por fim Leatherface pergunta numa voz assustadora: — Aaa-ana-liese pode sair para brincar? — Eu te avisei — diz Nate. Eu me levanto num salto e coloco a tigela de doces no banco ruidosamente. — Esses caras já estão me cansando! Por que não vão encher outra pessoa? Michael Myers ri. — Tudo bem — eu digo. — Querem conhecer o meu cachorro? Nate sussurra: — Você não tem cachorro. — Eles não sabem disso. — Eu abro a porta da frente, solto um assobio agudo e grito alto quando um tijolo cai dentro da varanda, não nos acertando ou ao meu cachorro imaginário por centímetros. — Ei! Rindo, os otários fogem correndo, as fantasias flutuando atrás deles, as solas dos sapatos batendo na calçada. — Vou chamar a polícia! — eu grito. — Por dano a propriedade alheia! — Não se dê ao trabalho. A sra. Gibbons sempre chamava a polícia no Halloween. Eles nunca pegavam esses caras. — Eu o fito com descrença. — Eu disse a você, é uma tradição. As pessoas ficam lá fora e perguntam se Annaliese pode sair para brincar. — Ele me puxa para que eu me sente no banco. — Eu tinha esperança de que se esquecessem disso este ano, depois que a velha... — ele olha para cima, na direção da lua cheia — morreu. Eu penso no quarto no andar superior, na cama de dossel, onde, eu presumo, Annaliese dormia. — Eles atormentavam a sra. Gibbons? Depois de tudo o que ela passou? Você não fazia isso, fazia? — Se eu disser que sim, isso iria mudar a sua opinião sobre mim? — Eu não sei se tenho uma opinião sobre você ainda. — Além do fato de que te acho muuuuito gato e bem mais simpático do que algumas pessoas por aqui. — Cretinos! — eu exclamo quando Nate desliza o braço pelo meu ombro. Agora que eu sei que
não vou ser assassinada por uma multidão de monstros, caio na risada. — Foi hilário! Confessa, Nate. Você também tomou um baita susto. Nate franze a testa. — Hilário? Baita susto? Ele desvia do meu punho. Então, assim como nos filmes, ele se inclina até chegar bem perto, quase tocando os meus lábios — e sussurra do jeito mais sexy possível: — Olha só, surfista! Você está se adaptando muito bem a esta cidadezinha...
3 MESES + 27 DIAS Sábado, 1º de novembro
Meg e Tasha aparecem pela manhã e me levam para fazer compras na Barney. Tão de última hora, eu duvido que vá encontrar alguma coisa, e tenho visões horríveis em que apareço no baile com um antigo vestido longo da minha mãe. — Lacy queria vir — explica Meg —, mas ela teve outra enxaqueca e quer ver se fica boa antes do jogo. Estou feliz por Lacy não ter aparecido. Eu não estou com vontade de ser simpática com ela. — Chad finalmente mandou um e-mail para ela — acrescenta Meg enquanto caminhamos na direção da praça. — Ele disse que vai mandar uma passagem de avião para Okinawa. — O quê?! — exclama Tasha. — Ele quer se casar com ela. Mesmo! Agora ela só tem que contar aos pais. — Ou fugir. — Ela não pode fugir para o Japão a menos que tenha um passaporte — eu lembro às duas. — E ela precisa de uma autorização deles para conseguir um. E também para se casar. — Talvez as leis do Japão sejam diferentes — diz Meg, esperançosa. — O que adianta, se ela não conseguir chegar lá? — Por que você é sempre tão negativa? — Eu não sou, eu... — Tudo bem, é melhor deixar pra lá. Eu não sei quantos anos esse Chad tem ou o que consideram maioridade, aqui ou no Japão, no que se refere a casamento. Mas suspeito que ela vá ter um bocado de problemas. Atravessamos a praça e caminhamos pela rua principal, enquanto Tasha descreve a briga que teve com Millie. — Ela surtou! Praticamente ameaçou me deserdar. Mas eu disse que vou ao baile e ninguém vai conseguir me impedir. Meg dá um tapinha nas costas dela. — Que bom que você não cedeu. Ela pressiona você demais. — Talvez — Tasha admite sem entusiasmo. — Mas, na verdade, ela só quer que eu seja a melhor. Sou eu que quero ir para os Jogos Olímpicos. Minha família tem economizado para isso há anos.
Mas eu não vou perder o baile. Agora ela está soltando fogo pelas ventas. Chegamos ao brechó, no extremo sul da cidade, entre uma loja de roupas militares e a igreja luterana onde, segundo Meg me conta, o pai de Lacy é reverendo. Não me admira que Lacy esteja tão nervosa para contar aos pais que está grávida. Ando pelos corredores da loja durante uns quinze minutos, cada vez mais desesperada. Nada além de corpetes, vestidos de alça e decotes vertiginosos! Então eu encontro: um vestido de veludo preto, com mangas longas e uma gola alta. Minhas amigas fazem um ar de dúvida quando eu o visto por cima da minha roupa. Ok, é um pouco largo, muito comprido e fede a naftalina, mas, fora isso, é perfeito. Eu fico na frente do espelho enquanto minhas amigas fazem comentários: — É muito antiquado — geme Meg. — Você não pode estar falando sério. — Que cheiro é esse? — Tasha franze o nariz. — Será que Cleópatra usou isso num funeral? — É. O dela própria. A histeria delas faz com que um cara assustador com uma bandana vermelha olhe para nós por cima de um barril cheio de sapatos. Indecisa, eu passo o dedo pela gola franzida, mole por causa do uso. Eu gosto dessa gola porque ela de fato me agrada ou porque ela vai cobrir a minha cicatriz? Eu olho no espelho, passando a ponta dos dedos pela linha de botões perolados. Meus olhos cinzentos brilham novamente. Meu cabelo preto combina com o vestido. Eu pareço... de outro mundo. É o único jeito de descrever. — Adorei. Ele é meu. Depois que o funcionário idoso, ou talvez seja o dono da loja, registra a minha compra, o cara assustador de bandana vermelha bloqueia a nossa saída. — Ei, garotas, vocês estão se preparando para o baile desta noite? — Ele cheira a bebida e óleo de motor. — Bem, não deem mole para os meninos, não bebam se forem dirigir — dirigir para onde? — e não se arrisquem mexendo com a velha Annaliese agora. — Nós não vamos — diz Meg, educada. Então, ela se esgueira por um corredor da loja e Tasha se esgueira por outro, deixando-me sozinha com o cara. — Filha de Monica Parker, certo? — Um brilho de reconhecimento cintila em seus olhos injetados. — Diga que seu velho amigo Joey Mancini mandou lembranças. Joey, do ensino médio. Diga a ela para vir me ver um dia desses. Mancini? Este velho bêbado é o pai do Dino? Eu sorrio educadamente, esquivando-me dele, e alcanço Tasha e Meg lá fora. — Cruzes, que aberração é aquela?! — Nem me fale! — Tasha finge um tremor quando o sr. Mancini sai da loja aos tropeços. Com um longo olhar malicioso, ele se afasta cambaleando.
— Maluco! — acrescenta ela, rindo. — Chega! — exclama Meg. — O que foi? Ele nem me ouviu! — Não estou falando de você. Estou falando deste zumbido! — Meg bate na própria cabeça. — É como uma abelha voando nos meus ouvidos. — Ou talvez uma barata! — diz Tasha, impiedosa. — Ouvi dizer que elas gostam de fazer isso. — Não é uma barata! Eu faço uma cara feia para Tasha. — Meg, talvez você deva ir ao pronto-socorro. — Não! Isso levaria horas. Não posso perder o jogo. — Com as mãos em concha sobre os ouvidos, ela acrescenta irritada: — Anda, vamos. Daqui a uma hora começam os aquecimentos. — Ela dispara na nossa frente, o vento frio balançando seu rabo de cavalo. Tasha me cutuca. — Tem alguma coisa errada. Estou preocupada com ela. Eu também.
Como não sou fã de futebol, não faço a menor questão de ir a esse jogo. Além disso, ele começa às duas horas da tarde, a hora mágica dos meus remédios. Mas, como Nate está tocando na banda, o mínimo que posso fazer é aparecer. A banda cruza o campo, tocando “Hang on, Sloopy”. As líderes de torcida saltam, cantam e gritam, ameaçando os torcedores da primeira fila com seus pés e pompons voadores. Nate, fantástico no seu uniforme vermelho e dourado, toca tambor enquanto a banda se dirige para a lateral do campo. Eu aceno loucamente, mas não tenho certeza de que ele me viu. Ao meu lado, na arquibancada, Tasha comenta: — Não posso acreditar que Lacy conseguiu. Nem eu. Uma hora atrás, com enxaqueca e enjoo matinal, ela estava com a cabeça no vaso sanitário. Agora seus pés chutam a uma altura inacreditável, e ela sacode a saia à menor oportunidade. Eu me pergunto até quando ela vai conseguir se espremer naquele uniforme. No microfone, o diretor da escola dá as boas-vindas aos Kellersberg Vikings. — E, agora, nossa aluna Cecilia Carpenter vai cantar o Hino Nacional para nós. Quando Cecilia se junta a ele na plataforma, uma garota atrás de mim grita, imitando um mugido: — MUUUU! — Eu grito um “cala a boca” para ela e as amigas que soltam relinchos e, em seguida, prendo a respiração e continuo torcendo silenciosamente para Cecilia.
Cecilia sorri timidamente e abre a boca: — Oh, você vêêê... pelas primeiras luuuuuzes... —“Luuuuzes” termina com uma nota gutural, como se ela precisasse desfazer um nó na garganta. — O que tão orgulhosamente saudamos... Fora do tom, meu Deus, ela está muito fora do tom! Tasha me cutuca. — Ah, cara, o que há com ela? Risos de zombaria começam a ser ouvidos na plateia, vindos dos espectadores menos maduros. Outros trocam olhares solidários. Perplexa, eu ouço enquanto Cecilia continua bravamente, totalmente fora do ritmo, sem uma única nota afinada. Quanto mais ela tenta, pior fica. Quando o tumulto aumenta, Cecilia interrompe o canto. Silenciosa, ela oscila no microfone quando o público — a maioria adolescentes, mas muitos pais também — começa a fazer mais barulho. Eu quero gritar Calem a boca! Vocês não veem que ela está envergonhada? Finalmente o sr. Solomon dá um passo à frente. Ele coloca o braço em volta de Cecilia e a conduz para fora do palco. Ela tropeça uma vez, e a garota do “muuu” atrás de mim comenta: — Se ela desmaiar, vão precisar de um guindaste pra tirar ela de lá! Meu impulso é ignorá-la; Cecilia está muito longe para ouvir. Além disso, Cecilia já deixou claro que não quer nada comigo. Por que eu iria começar uma briga para defendê-la? Então eu penso em todos os sermões antibullying da minha mãe. Lembro-me de como eu me sentia quando as pessoas zombavam de mim. Eu me viro. É Lindsay McCormick, a garota que trabalha na secretaria da escola. — Você acha isso engraçado? Rindo muito para conseguir responder, Lindsay enterra o rosto no ombro do namorado, da largura de um armário. — Algum problema? — o armário pergunta sem malícia. — Não, acho que você tem um problema — eu respondo. Assim que eu me volto para a frente novamente, Lindsay bate nas minhas costas com o bico do sapato. Consigo resistir ao impulso de arrancar o pé dela, mas, se ela me chutar de novo, vai se arrepender amargamente.
Intervalo. O time da casa está na frente. Jared O’Malley já marcou quatro touchdowns. Depois de dez minutos de aplausos, cambalhotas no ar e coxas à mostra, as líderes de torcida formam uma pirâmide humana, aparentemente sem nenhum esforço. Eu me lembro de ter lido na revista Time, ou talvez na Newsweek, que as escolas de todos os Estados Unidos estão proibindo essas manobras perigosas. Mas acho que ninguém em River Hills lê Time ou Newsweek.
Eu não vejo a pirâmide, porque Lindsay McCormick aproveita a oportunidade para enfiar o dedão do pé no meu rim. Eu me volto para trás. — Faça isso de novo e eu vou...! Nesse instante um suspiro coletivo de horror sobe das arquibancadas lotadas.
Descendo as arquibancadas correndo, Tasha e eu chegamos à lateral do campo a tempo de ouvir o protesto de Meg: — Eu estou bem, eu estou bem! Ela foge dos médicos corpulentos que a escola contrata para esses jogos, embora eles normalmente estejam ali para socorrer os jogadores. — Eu só perdi o equilíbrio. — Perdeu o equilíbrio? — Lacy grita. — Você quase me esmagou! Embora Meg é quem tenha caído do topo da pirâmide, Lacy é que recebeu a força do impacto: joelhos sangrando, o lábio inchado e definitivamente um ego ferido. — Nós já fizemos isso um milhão de vezes! O que há de errado com você? — Eu não sei! Eu... eu ando com um pouco de tontura ultimamente e... A treinadora Koenig aparece ao lado de Meg. O restante das líderes de torcida, inteligentemente, fica fora do caminho. — Tontura? E você não me diz nada? — Ela va-vai e volta — gagueja Meg. A treinadora bufa. — Você não tinha nada que se apresentar hoje, pondo todas as suas colegas em risco. No que estava pensando? — Meg olha para o chão. — Agora chega. Você está fora. Meg arregala os olhos. — A senhora não pode me expulsar. Eu sou a capitã! — Bem, eu digo que você está fora do jogo. E se não trouxer um atestado médico dizendo que está apta a fazer exercícios, está fora definitivamente. — Mas eu estou bem! — Se perdeu o equilíbrio no meio de uma manobra, é porque não está bem. Você tem uma semana para me trazer o atestado. Entendeu? — Meg recua quando a treinadora Koenig assopra seu apito. — Qualquer uma que esteja machucada, saia agora mesmo. O resto de vocês, de volta às suas posições! — A senhora não pode me tirar da equipe! — Meg grita. Lacy se volta para mim e Tasha.
— Vocês acreditam nisso? Eu vou matar a Meg! — Fique feliz por ninguém ter se machucado de verdade — eu arrisco. — Ela estava andando engraçado, né? E quando eu perguntei sobre isso, tudo o que ela me disse foi “Ah, eu estou bem”. Mas continuou atrapalhando. Todo mundo reparou! Então derrubou a pirâmide. E caiu bem em cima de mim! — Essas manobras são perigosas — eu digo. — Já houve até quem ficou paralítico, ou morreu! Lacy me fulmina com um olhar assassino. — Ah, Rinn, cala a boca. Ela volta para o campo quando o apito soa pela segunda vez. Quando a treinadora Koenig manda Meg embora com lágrimas nos olhos, Tasha fica preocupada: — Eu espero que Lacy fique bem. Quer dizer, se Meg caiu em cima dela... Certo, o bebê. Eu não pensei nisso. Como estou cansada dos chutes de Lindsay McCormick, Nate não pode me ver do campo e Tasha, assim como eu, acha os jogos de futebol um verdadeiro tédio, nós concordamos em ir embora. Placar? River Hills 33, Kellersberg 0. Não é preciso ser muito esperto para deduzir como esse jogo vai acabar.
— Uaaau! — Nate exclama quando eu abro a porta da frente. Minha saia gira em torno de mim quando eu danço uma valsa em círculo. Mamãe fez a bainha para que eu não precise usar saltos altos, que eu odeio, e possa usar as minhas sapatilhas de bailarina pretas. — Não estou parecendo a rainha dos góticos, estou? — Não, acho que você está... — Ele limpa a garganta, e depois assume sua persona de menino do interior. — Você está muito chique, srta. Rinn. Muito chique. É tão fofo que ele esteja com vergonha de dizer que estou bonita! Ele está muito atraente, também, de terno e gravata, em vez do seu visual de costume, composto de calça jeans e camisa de flanela. — Onde está a sua mãe? Não vamos ouvir um sermão sobre como devemos nos comportar? — Ela já está na escola. Vai supervisionar o baile. — Deus sabe que eu tentei convencê-la a ficar fora disso. Nate geme. — O meu pai também. Ótimo! Mamãe e o sr. Brenner no mesmo lugar durante uma noite inteira? Geralmente eles se evitam a todo custo. Espero que haja um extintor de incêndio no local.
Como o clima está frio e chuvoso — quando não está? —, eu calço o tênis e o troco pelas sapatilhas na escola. Guardo o tênis na mochila, junto com meu candelabro, e escondo-a debaixo de uma mesa. Eu ainda não mencionei a sessão para Nate. Será que ele vai achar uma idiotice? Uma infantilidade? Será que vai me dar um sermão sobre a loucura que é se esgueirar pelo túnel depois que o sr. Solomon nos mandou ficar longe de lá neste fim de semana? Tasha junta-se a nós, com seu corte de duende esculpido com muito gel e um vestido assustadoramente semelhante a um traje de primeira comunhão. Lacy a segue, em cetim vermelho e com curativos variados. E Dino, é claro, “por acaso” está com ela. Ele sorri para mim, ignorando Nate. — Ei, Rinn. Ele está elegante esta noite, também. Até mesmo asseado. — Ei, Dino. — Ei, Dino — Nate repete, incisivo. — Nate. Eles medem um ao outro disfarçadamente, dois duelistas de um dos velhos faroestes de Nana. Felizmente Meg aparece com Jared O’Malley. Eu sorrio de alívio. — Meg! Você está bem? — Sim. — Meg está com um vestido de alcinha. — Eu estou bem. — Ela sorri para o meu vestido. — Você está incrível neste vestido. Eu retiro tudo o que disse. — Obrigada — embora agora, cercada de ombros nus e vestidos multicoloridos, eu me sinta como se estivesse fazendo testes para um filme de terror. Nate me dá o braço em um gesto cavalheiresco. — Vem, vamos dançar.
— Mas eu quero que você venha — eu imploro, mais tarde. — Por favor, Nate? Ele aperta a minha mão. — Nós não deveríamos nem estar no túnel. — Ah, com medo de ser pego, bebezão? Nate pisca. — Você sabe, eu não vim aqui para discutir com você. A gente deveria estar se divertindo. Teimosamente eu digo: — A sessão seria divertida — e depois suspiro quando ele cerra os dentes. Nate provavelmente está certo. Além disso, também não quero arranjar problemas. — Não importa. Desculpa ter te chamado de bebezão.
Ele sorri. — E eu sinto muito se te chamei agora há pouco de imatura. — Ei. Você nunca me chamou de imatura. — Acho que apenas pensei, então. Ele me levanta nos braços e me gira por todo o ginásio. No meio do caminho, nós nos deparamos com Lacy. Ela sorri para Nate, o lábio inferior inchado sob o batom escarlate. — Rinn, eu preciso de você por um segundo. Nate me solta. — Pode ir. Vou pegar uma bebida. Ele se afasta, sem dúvida feliz por ter uma desculpa para não socializar com Lacy. Lacy olha para ele pelas costas de uma maneira que eu não gosto. — Nove horas no vestiário dos meninos. É a única maneira de entrar sem que alguém nos veja. E não se esqueça da vela. Já nervosa, eu admito: — Eu não acho que Nate queira participar. — E daí? Deixa ele pra lá. — Não posso fazer isso. — Bem, então faça com que ele mude de ideia. Mas se você amarelar — ela avisa —, não vá nos dedurar. Eu concordo com a cabeça. Será que eu quero fazer a tal sessão? Correndo o risco de aborrecer Nate? Sim, eu quero — e sei por quê. Porque eu moro na mesma casa onde Annaliese cresceu. Eu passo pelo quarto dela todos os dias, embora não haja mais nada dela ali, exceto a cama de dossel empoeirada que será doada para o Exército da Salvação e a penteadeira que minha mãe planeja levar para o meu quarto um dia. Eu tomo banho na mesma antiga banheira de pés em garra. Como meus cereais na mesma cozinha. Vejo a mesma paisagem que Annaliese costumava ver pela janela. Isso faz de nós espíritos afins? Pode ser. Ou talvez uma parte de mim queira acreditar em fantasmas.
Eu gostaria de ter sido sincera com Nate e dito: Eu quero fazer essa sessão e realmente gostaria que você viesse comigo. Mas ele já disse que não vai. E não quer que eu vá, também. Por que ele não admite que poderia ser divertido? Isso me deixa irritada. O que também me deixa irritada é que, alguns minutos antes das nove, quando estou
conversando com a minha mãe, vejo Nate conversando com Lindsay McCormick — sim, a cadela que mugiu para Cecilia — e o namorado armário dela, Tank. Quando Lindsay parece dizer algo incrivelmente engraçado, Nate e Tank riem tanto que eu posso ouvir suas gargalhadas sobre a música. Do que eles estão rindo? Olho constrangida para as minhas sapatilhas, aparecendo sob a bainha do vestido. Será que estão rindo do meu vestido antigo, cheirando a naftalina? Será que estão rindo de mim? Ah, pare. Eles não estão nem olhando para você. Verdade. No entanto... Outra gargalhada atravessa todo o ginásio. O globo brega pendurado no teto ofusca meus olhos. Faixas coloridos rodopiam, tingindo o rosto das pessoas, tornando-os não humanos. Eu vejo meus dedos mudarem de cor rapidamente de vermelho para dourado, depois para verde, e então para azul... Vermelho, dourado, verde, azul... vermelhodouradoverdeazul... vermelhodouradoverdeazul! Eu balanço a cabeça com força e consulto o relógio: 9h05. Aceno para Nate. Ele levanta um dedo, fazendo sinal para eu esperar. Esperar ele terminar a conversa fiada com a bruxa que me chutou? Nem pensar! Sentindo-me justificada, disparo para o refeitório e pego o candelabro na minha mochila. Volto ao ginásio, depois de uma rápida olhada em volta — eu morreria se alguém me visse agora —, ignoro o vestiário das meninas e abro a porta do vestiário dos meninos. Paro. — Quem está aí? — alguém pergunta, num som abafado. — Rinn — eu sussurro de volta. A porta se abre. Uma mão me puxa. Dino salta sobre mim com um BUU! — falando em imaturos... — enquanto Lacy se queixa: — Por que demorou tanto? Nós pensamos que tivesse que ser resgatada. — Bem, não. Estou aqui. Assim como Meg, Tasha e Jared O’Malley. O sorriso bobo de Dino me diz que ele está feliz por eu ter aparecido. Jared, o par de Meg, um ruivo atraente, aperta minha mão com força quando somos apresentados. Meg sorri vagamente. Tasha sussurra: — Legal, você veio! Lacy assume o comando. — Vamos nos apressar e fazer isso logo, antes que um babaca qualquer queira mijar. Em fila indiana, entramos no túnel. Quando a porta se fecha atrás de nós, eu ouço Meg ofegar. Inspiro o ar para ver se está frio. Só sinto cheiro de mofo. Jared pega um rolo de barbante e um canivete.
— Para que isso? — eu pergunto. — Eu tenho que amarrar as portas para ninguém abrir. Eu estou começando a me arrepender dessa aventura. — Ah, não, você não vai fazer isso. — Só as portas do vestiário — zomba Lacy. — As pessoas estão usando os banheiros. Você quer que elas topem conosco? — Elas podem topar conosco vindas de qualquer porta — eu a lembro. — Não, não podem — Tasha diz, me traindo. — Os adultos estão supervisionando. — Exceto as portas do vestiário — Lacy acrescenta. — Quem quer ficar sentado lá a noite toda? De qualquer forma, temos que ter certeza de que ninguém vai se esgueirar até aqui e interromper o procedimento paranormal. Então Jared, com o paletó esticado na altura dos ombros, corta pedaços de barbante para amarrar as alças de metal das portas duplas; primeiro as do vestiário dos meninos, em seguida o das meninas. Eu observo com alívio que algumas das lâmpadas foram substituídas, mas Jared desligaas. A escuridão toma conta de tudo. Em seguida, uma lanterna se acende na mão de Dino. Ele anda por ali, o feixe amarelo salpicado de partículas de poeira. Sombras saltam loucamente de todas as direções. Quando Jared retorna, Meg guincha: — Por que é tão frio aqui? Ele coloca o braço ao redor dela. — Atmosfera, baby. Eu vou aquecer você rapidinho. Iurruu! — Seu grito ricocheteia nas paredes ocas, vibrando. Lacy saboreia seu papel de médium, levando-nos para longe das portas do vestiário. Cheia de ansiedade, eu a vejo desenhar um círculo grande no chão de concreto. Será que Nate já sentiu a minha falta? — Me dê aquele candelabro — manda Lacy. — Agora todo mundo se senta em círculo no chão e dá as mãos. Tasha franze o nariz. — A gente devia ter trazido um casaco. O chão está imundo! Jared, pelo menos, oferece o paletó para Meg. Feliz por não estar usando uma saia justa, eu passo o candelabro para Lacy, onde coloquei uma das velas de lavanda da minha mãe. Embora eu tente me ajeitar entre Tasha e Meg, Dino se esgueira como um peixe e se espreme ao meu lado. Ele pega a minha mão. — Então, onde está o seu namorado?
— Esperando no ginásio. — Pelo menos torço para que esteja. Lacy acende a vela com o isqueiro Bic de Dino e coloca-a no centro do círculo. — Em primeiro lugar, quem quiser desistir é melhor fazer isso agora em vez de esperar até que a sessão esteja pela metade para estragar tudo. Dino dá uma risada. — Ninguém acredita mesmo nessa droga... — Você não precisa acreditar. Só tem que ficar parado e em silêncio. Sem energia negativa. Só relaxe, respire fundo e se concentre na chama da vela. Concentração... Concentração... O chão frio gela o meu traseiro através do vestido. Imaginando como as outras garotas conseguem ficar sentadas no chão com aqueles vestidos de tecido fino, eu tento me ajeitar com dificuldade e fixar o olhar na vela. Um minuto se passa. Eu ouço um som distante saindo dos alto-falantes. A normalidade daquilo estranhamente me conforta. — Não está acontecendo nada — reclama Jared. — Ei, estou sentindo cheiro de pizza. — Eu estou sentindo cheiro de pó — discorda Tasha. Dino me dá uma cotovelada de leve. — Eu estou sentindo o cheiro de quatro gatas. E você? Eu dou de ombros. — Sinto o cheiro de lavanda. Meg não diz nada. Lacy pega o candelabro. — Talvez a gente esteja muito longe dela. Vamos tentar a piscina. Eu bato no ombro de Meg quando ela fica para trás. — É só uma brincadeira — digo no ouvido dela. — Não pare de me lembrar disso — ela murmura. A fechadura da porta que dá para a piscina ainda não foi consertada. — Amarre as portas para ninguém abrir — ordena Lacy para Jared. — Não! — Meg aperta a minha mão. — Não vai nos prender aqui dentro! — Tudo bem. Em vez disso vou amarrar as do auditório. — Jared desenrola mais um pedaço de barbante. A ansiedade de Meg é contagiante. — Esquece essa coisa de amarrar as portas — eu digo. — Quem é que vai vir aqui do auditório? Todo mundo está no baile. E os adultos estão vigiando todos os lugares. Com um “Tudo bem!” exasperado, Lacy vai na frente até a piscina. Ela aciona o interruptor, mas nada acontece. Eu nem consigo ver a piscina. Ela desenha outro círculo e coloca o candelabro no centro, como antes.
— Ok, vamos nos sentar e começar de novo. Este chão é muito mais sujo do que o do túnel. Mesmo assim, eu obedeço. Tento ignorar o calafrio na minha espinha. Tento não pensar nas criaturas que talvez estejam me espreitando dos cantos escuros. Principalmente, tento não pensar em Nate. Tenho certeza de que ele já descobriu que eu o deixei sozinho no baile. Concentração... Concentração... O aroma de lavanda fica cada vez mais forte. E então... Dino solta um pum. — Desculpa! Desculpa! — ele exclama, sem parecer se lamentar muito. — Que educado! — exclama Jared. Tasha se inclina de tanto rir. Até Meg abre um sorriso. Eu franzo o nariz. Os olhos verdes de Lacy brilham perigosamente à luz do candelabro. — Detesto ter que dizer isso, amigão — diz Jared para Dino, apontando com o queixo para Lacy. — Mas se você quer se dar bem mais tarde, não é desse jeito. Lacy aperta os lábios, indignada. Aposto que ela vai morrer negando que já saiu um dia com Dino. Então, ignorando o sorriso malicioso de Dino, ela joga o cabelo sobre o ombro e olha ao redor. — Bem, agora que o nosso círculo já expulsou toda a energia negativa, será que dá pra vocês calarem a boca? Ou nunca faremos contato. As risadas se dissipam. Os minutos passam. Meg se inclina na minha direção. Eu olho a chama da vela, que parece uma dançarina de cor laranja. Depois do incêndio em que Nana morreu, era de esperar que eu morresse de medo do fogo. — Estamos evocando o espírito de Annaliese Gibbons — diz Lacy numa voz monótona. — Annaliese, você está conosco esta noite? Eu fecho os olhos. Tudo é silêncio. Agora eu não ouço mais nem os alto-falantes. — Somos seus amigos, Annaliese Gibbons. Sabemos que você morreu aqui. Lamentamos que tenha morrido. E agora estamos pedindo que fale conosco. Vamos, Annie, sou eu. Eu moro na sua casa, lembra? A mão de Meg aperta a minha. A mão de Dino está quente e pegajosa na minha. Eu entreabro os olhos e vejo Lacy se balançando para a frente e para trás. Tasha e Meg parecem hipnotizadas pela chama e Dino e Jared parecem entediados. A cerca range baixinho ao nosso lado, os pelos do meu braço se arrepiam. Segundo Nana costumava dizer, quando os pelos do nosso braço se arrepiam, isso significa que alguém está andando sobre o nosso futuro túmulo. Quem estará andando sobre o meu?
— Annaliese — Lacy evoca numa voz aguda e fantasmagórica. — Aaaannaliese, venha até nós. Venha agoooora...! As luzes no teto piscam por um milésimo de segundo e então voltam a se apagar. Sim, as mesmas luzes que minutos atrás não tinham se acendido quando Lacy ligou o interruptor. — REDRUM! REDRUM![1] Todos nós gritamos, até Dino, o que faz Jared, o autor da piada, começar a gargalhar. Ele pode não se parecer muito com Dino, mas depois dessa piadinha infame é evidente que eles têm algo em comum. — Seu panaca! — grita Tasha. — Eu quase molhei as calças! Jared se abaixa para evitar o tapa de Lacy. — O que há de errado com vocês? — pergunta Jared. — Foi só uma brincadeira! Dino, que, para dizer a verdade, gritou mais alto do que eu, inclina-se na minha direção para beliscar a perna de Meg. — Qual é o problema, dodói? Você se sentou numa poça? Quando Meg protesta, Jared avança sobre Dino, esbarrando a mão no candelabro e apagando a chama. Um rio de cera quente cai nos meus dedos quando eu tento me esquivar. Eu sacudo a mão direita e então paro, os olhos fixos em descrença: há cera demais no chão. Cera demais para uma vela votiva que queimou por dez, talvez quinze minutos. A cera desce pelos meus dedos, cobrindo a minha mão e escorrendo pela manga do meu vestido. Minhas narinas absorvem o aroma de lavanda, forte o suficiente para revirar o meu estômago. — Não! — Lacy grita para Dino, quando ele acende a lanterna. — Estamos quase conseguindo! Não dá pra sentir? — Estou com frio — fala Meg num fio de voz. Tasha concorda com a cabeça. — E também está fedendo aqui. Vocês estão sentindo o cheiro? Eu respiro fundo, mas nada parece conseguir penetrar no cheiro de lavanda que está impregnando o ar. Curiosa, eu mergulho a ponta dos dedos na poça de cera. Quente! Quente demais! Como a cera de uma vela gigante que estivesse queimando há horas... — Água sanitária — diz Dino, tentando adivinhar. — Como a de uma piscina. Jared balança a cabeça. — Você quer dizer cloro. Mas eu não sinto cheiro de... Sem aviso, Dino larga a lanterna e pega o meu candelabro, fica em pé num salto e o arremessa por cima da cerca. — Lá vai, cadela! — ele grita sobre o meu grito de protesto. — Você quer nos pegar? Hein? Quer pegar todo mundo aqui?
Praguejando, Jared puxa Dino de volta pelo cinto, fazendo-o perder o equilíbrio. Dino cai no chão ao meu lado. E começa a esfregar as mãos com força no rosto. — Que merda! Ai! O que está me queimando? — Rá-rá! — digo com sarcasmo quando Lacy resgata a lanterna. Não vou cair em outra pegadinha. Rostos me cercam, fracamente iluminados. Lacy respira fundo, assim como Tasha e Dino — inspirações lentas e profundas, com narinas infladas... que cheiro eles estão sentindo? Eu tento sentir. Sim, sinto o cheiro de lavanda da vela, forte e adocicado. Mas nada mais. Eu me viro para Jared, o único que não está farejando o ar. — Está sentindo alguma coisa? Antes que ele possa responder, as luzes piscam de novo — e depois se apagam — e então se acendem todas de uma vez, espalhando pelo recinto uma fosforescência ofuscante. Todo mundo grita, até os garotos. Depois as luzes voltam a se apagar. E o mesmo acontece com a lanterna. Em meio à escuridão, Lacy sussurra: — Não se mexam. Não vamos afugentá-la. Dominada pelo pânico, eu tateio o chão, ao redor dos meus joelhos. — O isqueiro! — Eu disse para não se mexerem! — Consegue sentir o cheiro? — pergunta Tasha, estranhando. — De cloro? Ai, meu Deus! Alguém, Meg, creio eu, agarra minha mão cheia de cera quando uma nova onda de frio nos congela. Ninguém se mexe. Todos estão em silêncio outra vez. Com o peito apertado, eu espero que algo aconteça. Que Dino faça algum comentário engraçadinho. Que Jared nos pregue um susto novamente. Que alguém, qualquer um, rompa esse silêncio enervante. Meus dedos dormentes não sentem mais os de Meg. Na escuridão impenetrável, em meio ao frio cortante, eu imagino uma nuvem de vapor serpenteando dos meus lábios. — Tente a la-lanterna novamente — eu digo, batendo os dentes. Nenhuma resposta. — A lanterna, Kessler! — repete Jared, pulando no lugar. Nada. Ninguém se mexe. Se não fosse a respiração ofegante que ouvíamos, Jared e eu poderíamos muito bem estar sozinhos ali. — Merda! — explode Jared. O próximo som que eu ouço são passos se afastando, seguidos pelo barulho de uma porta distante batendo.
Soltando a mão de Meg da minha, eu tateio o chão até encontrar a lanterna. Quando a ligo, um feixe de fumaça oscila diante do rosto dos meus amigos. Meg, Lacy, Tasha e Dino. Todos os rostos congelados. Os olhos sem piscar. As bocas escancaradas num grito silencioso. Sinto um gelo nas costas de puro terror. — Acordem! Nada. Eu direciono a lanterna diretamente para o rosto de Lacy. Ela nem pisca. Manequins. Eles parecem malditos manequins! O feixe de luz da lanterna oscila, instável, na minha mão trêmula, fazendo com que mais sombras monstruosas saltem das paredes. — Acordem! — Eu aponto a lanterna para cada um deles, um por um. — O que vocês estão fazendo? Minha plateia inerte devolve meu olhar, sem me ver. Eu me levanto lentamente, levemente consciente dos sons estranhos que estou fazendo. Meus sapatos derrapam na cera espalhada pelo chão — a cera está mole, aimeudeus, como ainda pode estar mole? —, quando eu corro até a porta aos tropeços e saio do recinto da piscina. Corro pelo túnel na direção do vestiário, esquecendo-me, em meu pânico, de que Jared amarrou as portas. Como eu vou sair, como eu vou sair? Eu fico ali de pé, atordoada, tentando me lembrar que caminho Jared fez... Então me lembro do auditório. Dou meia-volta e disparo pelo corredor.
Vejo mamãe dançando com o pai de Nate, em meio à multidão. Em circunstâncias normais, eu ficaria embasbacada olhando a cena, mas só consigo pensar nos rostos congelados que deixei para trás. A menos que eu tenha imaginado. Será possível? A música enche os meus ouvidos quando abro caminho entre os casais dançando. — Mãe! Ela se afasta do sr. Brenner, que não parece feliz com isso. — O que foi? — Eu preciso de você! Depressa! — Quando o sr. Brenner dá um passo à frente também, acrescento: — É pessoal — porque se o que vi foi de fato uma alucinação, eu tenho certeza de que não quero que ele saiba. Eu a puxo pelo salão enquanto ela murmura um pedido de desculpas. Ela hesita na porta do auditório.
— Por que estamos entrando aqui? Você disse que era pessoal... — Não, é pior! — Corro pelo corredor até o palco. Minha mãe me segue pelos degraus que levam até a entrada do túnel. — É lá. — Eu aponto. — Na piscina. — Na piscina? — ela grita. — O que você estava fazendo lá? Eu me sento num degrau do palco enquanto ela desaparece em direção ao vazio. Abraçando os joelhos, rezo para ter imaginado tudo. Por pior que seja ter alucinações, não seria nem de longe tão ruim quanto... Eu ouço o grito distante da minha mãe: — Todos vocês! Fora daí já! Mãe, eles não podem se mexer! Há algo errado com eles! Eu levanto o rosto em choque ao ouvir passos de várias pessoas e Lacy se queixando petulante: — Eu sabia que ela ia entregar a gente. Ela aparece primeiro, perfeitamente bem, seguida de Tasha e Meg, e, por último, Dino. Minha mãe, no final da fila, chega a empurrá-lo quando ele passa. — Que parte de “é proibido entrar no túnel” vocês não entenderam? — A gente só estava dando uma volta, sra. Jacobs — protesta Dino. Eu me levanto do degrau. Exceto por Meg, todos eles parecem bastante hostis. Meg apenas olha para o chão, de braço dado com Tasha. — Vo-vocês estão bem? Tasha inclina a cabeça. — Por que não estaríamos? Dino, com a cara mais inocente do mundo, olha para a minha mãe. — Estamos em apuros, sra. Jacobs? Quer dizer, a gente não estava fazendo uma suruba nem nada... — Bem, estou contente de ouvir isso — responde mamãe, com o semblante sério. — O que vocês estavam fazendo? Lacy pisca várias vezes. — Só conversando. Faz tanto barulho no ginásio! — Bem, voltem para lá agora. Todos vocês! Meg e Tasha disparam. Lacy as segue com relutância. Dino, sem dúvida, para provar que ninguém lhe dá ordens, fica vagando por ali, sem pressa nenhuma. Mamãe dá meia-volta. — Eu não acredito que você fez isso. Podia ter acontecido alguma coisa. — Eu pensei que você não acreditasse em Annaliese — retruco. — Eu não estou falando de fantasmas. Este lugar é perigoso. O telhado pode desabar! Por que
você acha que eles vão demolir tudo? Você não ouviu os avisos? Eu tento parecer arrependida. Mas isso só dura um segundo. — Mãe, algo estranho aconteceu... Minha mãe cheira o meu hálito. — Vocês estavam bebendo lá? — Não! Só estávamos... — Não, não, não mencione a sessão! — ... conversando, como Lacy disse. Mas, então, todos, quero dizer todos menos eu, todos eles... Ficaram olhando para o nada? Não falaram mais comigo? Envergonhada, eu olho para o tapete. — Não importa. Não é nada. E se eles estivessem brincando? E se planejaram a coisa toda? — Rinn, meu Deus, eu pensei que algo tivesse acontecido com você. Ela não precisa esclarecer o que ela achava que poderia ter acontecido. — Sinto muito. Nós duas nos viramos ao ouvir um barulho no fundo do auditório. — Olha quem finalmente apareceu — fala a minha mãe, me empurrando pelo corredor na direção de Nate. — Por acaso essa é a garota que você estava procurando? — Ela belisca meu braço e, em seguida, volta para o ginásio, instruindo Nate: — Veja se consegue mantê-la longe de problemas pelo resto da noite. — Problemas, hein? — Nate cruza os braços. — Por que não estou surpreso? Se o meu rosto ficar mais quente, vou ter queimaduras de segundo grau. — Desculpe... eu ter te deixado assim. — Fizeram a tal sessão? Admito com a cabeça. — Você é maluca? — Ah, por favor. Ele se dirige para o ginásio. Eu o sigo devagar. Ao chegarmos lá, eu olho ao redor procurando Meg e os outros. — Se você está procurando os seus amigos — Nate diz —, saiba que eles já foram. — Já foram? — É. Você me abandonou para ficar com eles, e agora eles abandonaram você. Que ironia, né? Eu inclino a cabeça. — Você está com raiva de mim? Porque se estiver, então diga, ok? Em vez de ficar falando nisso pelos próximos seis meses. — Rinn, pra mim chega.
Mas pra mim nĂŁo ĂŠ o que parece.
3 MESES + 28 DIAS Domingo, 2 de novembro
Ela me chama de cima, mas eu estou presa nas profundezas da piscina: — Corinne! Corinne! Ninguém me chama de Corinne. Só a minha mãe, quando está brava ou querendo deixar bem claro o seu ponto de vista. Ou meus professores, quando estão tentando chamar a minha atenção, quando apoio o queixo na carteira às duas da tarde. A água me sufoca enquanto eu me esforço para subir. — Onde está você? — grito, com os pulmões ardendo. — Eu estou aqui... aqui em cima... Por fim chego à superfície, cuspindo água e engasgando. Lá, viro o rosto para a luz do sol — como eu consegui sair? —, grata por estar viva. Grata por alguém ter me salvado. Uma mão agarra o meu cabelo por trás. Unhas irregulares se cravam no meu couro cabeludo, me puxando para baixo, para baixo, para baixo, arrastando-me para debaixo d’água. A voz desencarnada acima de mim se sacode com o riso.
— É só um sonho, só um sonho. — Minha mãe acaricia o meu cabelo. Eu luto para esconder o meu aborrecimento irracional. — Eu sei que era um sonho. Eu não tenho 5 anos. — Querida, se esses pesadelos vão começar a te acordar de novo... — Só tive esse — minto. — Talvez você precise ajustar a dose dos seus medicamentos. — Não, não preciso! — Eu acho que precisa, sim. E eu sou sua mãe, portanto eu é que decido. Vou ligar para o novo médico e insistir para que ele atenda você antes do previsto. E você precisa de alguém com quem conversar sobre... — Mãe, não. — Eu já contei sobre toda a minha vida tantas vezes e a tantos médicos, que às vezes ela nem parece mais minha.
— Sobre Nana — minha mãe esclarece. Meus músculos se contraem. — Querida, só se passaram três meses. Eu sei que você está sofrendo. Eu também — ela acrescenta baixinho. — Talvez a gente precise de uma terapia intensiva. Abraço a cabeça, sabendo que é inútil, que no final a minha mãe vai conseguir o que quer. Se Annaliese estava na borda da piscina no sonho, então quem estava me puxando debaixo d’água? Nana? Ah, meu Deus... Nana... Minha mãe dá um tapinha na minha perna. — Tente voltar a dormir. Podemos conversar pela manhã. Jogo o travesseiro de lado. — Eu sonhei com Annaliese. Dizem que ela assombra o túnel e é por isso que todo mundo odeia ir lá. Você sabe disso, né? Minha mãe hesita. — Eu ouvi algumas coisas. — Então, nós fizemos uma sessão espírita na noite passada e é por isso que estávamos lá. E a gente se empolgou, e foi muito assustador, e, bem, eu acho que eu me apavorei. É por isso que eu tive aquele sonho. Não tem nada a ver com os meus remédios. — Uma sessão espírita — repete mamãe, como se ela tivesse ouvido aquela palavra e nada mais. — Por quê? — Foi só uma brincadeira. Uma brincadeira? Isso é mentira. Você VIU o que aconteceu. — Você a conhecia, né? — pergunto à minha mãe quando ela demora muito tempo para responder. Ela se retrai. — Vagamente. — Então o que aconteceu? Como ela se afogou? — Ah, eu não acho que a gente deva falar sobre isso agora. A menos que queira ter outro pesadelo. Eu pego a mão dela quando ela começa a se levantar do meu colchão. — Eu estou bem agora, sério. Estou apenas curiosa, sabe? — Com um olhar travesso, acrescento: — Se você não me contar, alguém vai fazer isso. — Não há nada para contar — minha mãe diz secamente. — Ninguém sabe o que aconteceu. A avó dela avisou que ela estava desaparecida quando não voltou para casa da escola. Descobriram na manhã seguinte. A pobre sra. Gibbons nunca superou isso. — Ela estava nadando sozinha? Eles sempre dizem para não fazermos isso.
Minha mãe dá de ombros. — Bem, ela estava usando um maiô? — Roupas normais — admite minha mãe. — As mesmas que ela tinha usado no último dia em que foi à escola. Nós não tínhamos autorização para usar a piscina depois das aulas, mas a gente se esgueirava às vezes. Ela tinha um galo na cabeça, por isso a polícia achou que ela caiu por acidente. Eles interrogaram todo mundo. Ninguém viu nada. Ou ninguém admitiu. — Você era amiga dela? — Nós tivemos aulas juntas. Mas não éramos amigas. Algo me diz que Annaliese não era do tipo “líder de torcida”. — Ninguém pensou na hipótese de ela ter sido assassinada? Você sabe, por causa do galo e tudo mais. Minha mãe bate no meu quadril. — Bem, muito obrigada por essa agradável ideia. Agora sou eu que vou ter pesadelos. — Ela se levanta antes que eu possa impedi-la. — Volte a dormir, a menos que você queira que eu faça um café. Eu me espreguiço. — Não, obrigada. Ainda estou cansada. Depois que ela me sopra um beijo e sai, fico pensando na história de Annaliese. Se os ladrilhos estiverem molhados, é possível escorregar e cair na piscina. Eu mesma já caí duas vezes na nossa piscina em La Jolla — bêbada da primeira vez, por descuido da segunda. Portanto, não é impossível. Será verdade mesmo que, se alguém tem uma morte violenta, seu espírito pode voltar e assombrar o lugar onde morreu? Lembro-me dos rostos congelados de meus amigos na noite passada. Será que um fantasma podia fazer aquilo? Espere aí. Eu não acredito em fantasmas! Mas eu sei muito bem o que aconteceu ontem à noite.
Eu recuso o convite da minha mãe para ir até Westfield fazer compras. Assim que ela tira o carro da garagem, eu disco o número de Tasha, na esperança de saber a opinião dela sobre a sessão. Antes de trocarmos cinco palavras, ela me convida. — Lacy e Meg estão aqui. Corra pra cá! Eu vou. Mas quando eu chego à casa de Tasha, ninguém está falando sobre a sessão; em vez disso, estão discutindo sobre o jogo de ontem e sobre a queda inoportuna de Meg.
— Eu não posso acreditar que Koenig me chutou para fora da equipe — lamenta Meg. — Não é para sempre — Tasha a lembra. — Só até o seu médico te dar um atestado. — E se ele não der? O que eu vou fazer, então? Ser líder de torcida é tudo para mim! Imperturbável, Tasha retruca: — Você ouviu o que Rinn disse. Aquelas acrobacias são perigosas. Eu nunca confiaria a minha vida a um bando de garotas sacudindo pompons. Lacy põe a língua para fora. — Não, você só pula de cabeça de uma plataforma de quatro metros e meio de altura e reza para não esmagar o crânio no concreto. Eu estremeço, ao imaginar Annaliese tropeçando e batendo a cabeça, caindo na piscina com um grito que ninguém ouve... lutando para respirar... Lacy acena para mim com a cabeça, secamente. — O que há com você, Jacobs? Molho os lábios. — Estão todas bem? Tasha pisca. — Você nos perguntou isso na noite passada. — Eu quero dizer... você sabe.... a sessão. — Ah, isso. Um desperdício de tempo. Lacy cutuca Meg. — Mas temos certeza de que assustou pra caramba aquele seu namorado atleta. Para onde ele foi, que desapareceu? Que maricas! O sorriso pálido de Meg não revela nada. Tasha diz com uma risadinha: — Dino soltou um pum e estragou todo o clima. Frustrada, eu grito: — Estou falando sobre o que aconteceu depois que Dino soltou pum. — Nada “aconteceu” — grunhe Lacy. — Porque alguém teve que ir correndo chamar a mamãe. Fomos pegos. Fomos embora. Fim da história. — Esse não é o fim da história e vocês sabem. — A minha confusão aumenta quando elas se entreolham. — Esse não é o fim da história — eu repito mais alto, porque não foi uma alucinação! Agora, à luz do dia, com tempo para pensar melhor, sei que estou certa. Minhas alucinações “reais” sempre são vagas, distorcidas. Mas eu me lembro nitidamente de todos os detalhes da noite passada. Aconteceu de fato. Lacy ergue as sobrancelhas.
— Do que você está falando? — Vocês agiram... bem, de um modo estranho. — Como eu posso descrever os rostos sem expressão e os membros paralisados? — Vocês pareciam zumbis, sem se mexer ou falar... Com um ar divertido, Lacy me interrompe: — Não sei o que você andou fumando, Jacobs, mas eu queria que tivesse dividido com a gente. — Por que estão fingindo que nada aconteceu? Você disse que sentiu cheiro de cloro e depois todos vocês ficaram sem expressão nenhuma! Tasha interveio. — Eu senti um cheiro ruim. E daquela vela. Por que ela está mentindo? Eu a ouvi dizer que tinha sentido cheiro de cloro. Olho para Meg, que parece absorta em seu mundo particular, massageando a orelha. — Meg? Franzindo a testa, ela deixa cair a mão. — Eu não sei do que você está falando. — Bem. Chega dessa história. — Lacy pega um dos seus cachos de um jeito pensativo. — Vocês viram a mãe de Rinn dançando com o pai de Nate? Uau! É melhor tomar cuidado, um dia desses você pode estar saindo com o seu meio-irmão. — Isso não é incesto — Tasha me assegura gentilmente. — Tecnicamente, não — admite Lacy. — Só é meio nojento. Tudo bem, agora a verdade está bem clara: ou elas de fato não se lembram do que aconteceu ou fizeram um pacto para não tocar no assunto na minha frente. Essa segunda opção faz mais sentido, eu acho. E foi por isso que eu abandonei Nate no meio do baile? Ainda bem que nem cheguei a tirar a minha jaqueta. — Tanto faz. Podem continuar com esses joguinhos idiotas. Mas da próxima vez me deixem de fora. Quando eu me levanto para ir embora, ouço Tasha exclamar: — Caramba! O que deu nela?
3 MESES + 29 DIAS Segunda-feira, 3 de novembro
Eu estou furiosa. E frustrada. E com vontade de gritar. Logo de manhã, abordo Dino perto do armário dele. É quase cômico o modo como ele olha para os lados, como se quisesse ter certeza de que estou falando com ele. — Eu preciso falar com você sobre sábado à noite. Dino coloca em ação seu lado bad boy. — Tá, o que é que tem? — Vocês estavam me fazendo de boba, não estavam? — Hã?... — Na sessão, Dino. Antes de a minha mãe aparecer. Ele perde a pose de bad boy. Seu rosto mostra confusão. — Você está falando da hora em que eu derrubei a vela? Olha, foi mal... Eu o interrompo, impaciente. — Não, Dino. Depois da vela e antes da minha mãe. O que aconteceu entre essas duas coisas? Um longo silêncio. Então ele responde devagar, como se escolhesse cuidadosamente as palavras: — Eu acho que caí no sono. É como se eu tivesse um branco, sabe? — Um branco — repeti asperamente. — Tá. Tudo bem. Petulante, ele agarra meu suéter quando eu me viro para ir embora. — Ei, ei, espera! Por que você deixou a gente lá de repente? E correu para chamar a sua mãe? — Você sabe muito bem por quê. — Eu me solto da mão dele e aliso o meu suéter. — Ah, e o meu candelabro? Passei dias moldando aquela coisa. Obrigada por jogá-lo por cima da cerca. — Eu posso ir lá pegar o candelabro pra você — ele oferece. — E a gente pode colar os cacos ou coisa assim. — Certo, e como pretende pegá-lo? — Posso pular aquela cerca. Já fiz isso antes. — Ele deve estar quebrado em mil pedaços agora — respondo, irritada. É engraçado como eu não tinha percebido quanto estava apegada a ele. Aquele candelabro foi a primeira coisa que eu fiz
com as minhas próprias mãos. Torto ou não, até a minha mãe tinha gostado dele. — Olha, eu já disse que foi mal. Vou trazer ele de volta, juro. — Ele tira o cabelo dos olhos e dá um sorrisinho. — Eu gosto de você, sabia? Acho que você já sabe. — Ele arranha o chão com o dedo do pé, enquanto evita o meu olhar. — Quer dizer, sei que você está com Brenner e tudo mais. Mas eu fico pensando que, se ele não tivesse chegado primeiro, talvez você e eu... — Ele se encolhe todo com o meu olhar e acrescenta, triste: — Eu não sou um babaca qualquer. Só gosto de brincar. — Que seja. — Obviamente ele não vai me dizer nada sobre a noite passada. Tudo o que ele quer é, bem, dar em cima de mim. Isso me dá nos nervos. — Esqueça. Vejo você por aí. Saio pisando duro.
Cecilia me ignora tanto na aula de artes quanto na aula de coral. Será que ela vai ficar furiosa comigo para sempre? Ou está constrangida demais para falar com qualquer pessoa, depois do fiasco do Hino Nacional? Eu espero que seja a segunda opção. Tentar falar com Dino é perda de tempo. Mas me ocorre que talvez eu tenha mais sorte com Jared. Eu sei que ele viu o que aconteceu. No entanto, ele não está em lugar nenhum. Será que está me evitando? E Nate, com exceção de um “oi” ocasional, mal falou comigo depois do baile. Na hora do almoço, em meio ao burburinho da lanchonete, eu descanso o queixo melancolicamente na mão. Então me reclino na cadeira e cheiro os dedos. Lavanda? Essa é a mesma mão que deslizou na cera sábado à noite. A cera quente e ainda mole que, na temperatura gelada da sala, deveria endurecer assim que tocasse o chão. A minha mão parece perfeitamente normal. Eu fico ali, cheirando-a de um jeito suspeito, enquanto Tasha tagarela sobre a competição regional que começará dali a algumas semanas. Lacy reclama que a cabeça está doendo outra vez e que Chad não mandou a passagem de avião nem respondeu aos seus e-mails. Meg, com os cotovelos sobre a mesa e as mãos tampando os ouvidos, murmura alguma coisa de vez em quando, para que as outras pessoas pensem que ela está prestando atenção. Lacy repara que eu não paro de cheirar a mão. — O-que-você-está-fazendo? — ela pergunta, frisando cada palavra separadamente. Meio constrangida, estendo o braço para pegar o meu suco. Já tomei três banhos desde sábado. Lavo as mãos constantemente. Como ainda posso estar com cheiro de vela nos dedos? Ignorando o fato de eu não ter respondido, Lacy continua: — Só espero que Chad — ela solta uma risada fraca — não vá me dar o fora depois de tudo. Nós
já até escolhemos o nome do bebê: Chad Junior se for menino e Chantal se for menina. Ou talvez Chandra. O que acham, garotas? Chantal ou Chandra? Por mim o bebê pode chamar Osama ou Guadalupe, não estou nem aí. Aos poucos movo furtivamente a mão até o nariz. E cheiro. Confusa, franzo a testa. Agora só sinto cheiro de lápis e de sabonete. Nada de lavanda. — Alguém está me ouvindo? — Lacy pergunta, com um ar petulante, quando ninguém oferece nenhuma opinião. Meg massageia a orelha. — Não consigo ouvir nem metade do que você está dizendo com todo este zumbido. — Bem, vá ao médico, então! A gente não aguenta mais ouvir você falando isso. — Olha quem fala. — Tasha protesta. — Você não fala de outra coisa a não ser dessa besta quadrada do Chad. Aposto que ele até já te deu o fora e você é que não se tocou. Todas ficamos em silêncio em nossa mesa particular, enquanto a lanchonete fervilha de conversas e atividades. — O que você disse? — Lacy pergunta devagar. Tasha, aparentemente arrependendo-se de não ter ficado queita, encaixa o canudinho no furo da sua embalagem de leite. Os olhos descrentes de Lacy vagam pela mesa. — Garotas, vocês realmente acham isso? Meg puxa a cadeira mais para perto. — Ninguém acha isso. Não ouça o que ela diz. — Ela olha fixamente para Tasha, que ergue uma sobrancelha para mim, como quem diz: Vale a pena insistir nessa conversa? Eu balanço a cabeça. Eu com certeza vou ficar fora disso. Lacy desmorona. — Ai, Deus. Ela está certa! Do contrário, por que ele ia me ignorar? Ela parece tão... trágica, que a minha vontade de ficar furiosa com ela, e com as outras, se dissolve no ato. Isso não significa que eu esteja pronta para perdoá-las por aquela brincadeira na sessão. Mas Lacy está quase surtando. Sem falar que ela tem 16 anos e está grávida numa cidade que é um ovo, com um pai que é, nada mais nada menos, um reverendo de igreja. Antigamente se costumava escrever livros sobre essas coisas. Então eu digo: — Eu acho que você deveria escrever um e-mail para ele de novo e perguntar sem rodeios. Se ele disser que sim, então você pode lidar com isso, certo? É a única maneira de descobrir, em vez de ficar se torturando. — E torturando a gente também. Lacy pisca para reter as lágrimas. — Talvez você esteja certa. — Ela me surpreende com um sorriso agradecido. O sinal toca e recolhemos as nossas coisas.
— Você vai ficar bem? — Meg pergunta a Lacy. Lacy assente. — Acho que sim, se essa dor de cabeça passar. Como Meg e eu seguimos na mesma direção, ela me confidencia: — Jared está agindo de um modo muito estranho agora, como se não quisesse ficar perto de mim. Eu tentei conversar, mas ele continua me evitando. — Meg desmorona. — Deus, se eu não voltar à equipe, não sei o que vou fazer. Estou fazendo testes para conseguir uma bolsa de estudos em torcida organizada. Como é que eu vou ficar se não fizer parte de nenhuma outra equipe? Ou se a treinadora Koenig não me der uma recomendação? — Lacy vai ficar de fora, também — eu a lembro. — Mais cedo ou mais tarde a treinadora vai perceber que ela está... — eu baixei a voz, para não me arriscar — você sabe o quê. — Eu sei. Estou preocupada com as dores de cabeça dela. E se for alguma coisa grave, como um tumor cerebral? — Ela se apressa enquanto eu penso nessa ideia medonha. — Ela disse que tem enxaqueca todo dia desde que... — Ela para, aflita. Eu paro, também, ignorando os empurrões e comentários rudes. — O quê? — Lembra o dia em que ela foi pra cima de você no túnel? Quando o clima ficou meio estranho? Foi nessa hora. Foi quando meus ouvidos começaram a apitar, também. — Meg aperta seus livros e começa a andar novamente. — Todo mundo sabe que coisas estranhas acontecem nesse túnel. Mas nada nunca aconteceu comigo. — Ela bate numa orelha. — Nada como isso. Que coisas estranhas? Antes que eu possa perguntar, Meg dispara na frente e desaparece. Eu desacelero o passo, meu cérebro dando voltas, remoendo ideias improváveis. Eu passo pelo túnel também, duas vezes por dia. Se existe algo “errado” lá, por que eu não senti? Por que não percebi o clima estranho? Por que eu não senti o cheiro de cloro durante a sessão e nem me transformei em manequim? A menos que esse lance do cloro também faça parte da brincadeira. O sinal toca. Estou praticamente sozinha no corredor. Eu começo a correr e chego à minha sala de inglês um segundo antes da professora. A srta. Rasmussen fecha a porta. Talvez seja tudo uma pegadinha que eles estão tramando desde o primeiro dia. Uma conspiração concebida para enganar Corinne Jacobs e saber se ela está pirando novamente. E, como antes, todos estão participando dessa pegadinha. Todos!
Talvez mamãe esteja certa: pode ser que os remédios não estejam funcionando. Porque existe uma palavra para isso. Chama-se P-A-R-A-N-O-I-A.
Não que eu ache que alguém esteja envenenando a minha comida ou me seguindo com uma câmera. Já aconteceu isso comigo no passado. Não é a mesma coisa. Até agora eu vislumbro três possibilidades: 1. A sessão foi uma armadilha. Os malucos desta escola achamengraçado pregar peças na aluna nova, assim como acham engraçado gritar na rua “AnnaLiese pode sair para brincar?”. Essa possibilidade significa que eu não sou paranoica. Apenas tenho as minhas suspeitas. Por uma boa razão! 2. A sessão não era uma armadilha. Todos de fato viraram zumbis, mas eles não se lembram disso. Portanto, eu não sou paranoica, porque o que aconteceu realmente aconteceu. 3. A sessão era pra valer e todo mundo sabe. Mas eles não vão discutir o assunto porque:
A. não confiam em mim, B. não gostam de mim ou C. estão jogando sujo, porque estão conspirando para me pegar sozinha depois da escola, pôr fita adesiva na minha boca e me jogar sobre a cerca de modo que Annaliese possa rasgar a minha garganta com os seus dentes fantasmagóricos.
Ok. Agora estou mesmo sendo paranoica.
3 MESES + 30 DIAS Terça-feira, 4 de novembro
Para o programa de férias, o professor Chenoweth anuncia: — Eu vou precisar de duas solistas. — Ele sorri insinuante pela sala. — Vocês vão ganhar dez pontos de bônus apenas por tentar. Eu não preciso de dez pontos. Helloo, isso é uma aula de coral! — Eu passo — digo quando ele chama o meu nome. — Vamos lá, Rinn, sei que você tem uma voz bonita. E sua mãe me disse que você toca violão. — Eu gemo. — Por que você não o traz esta semana? Eu tenho uma ideia. Obrigada, mamãe. Quando chega a vez de Cecilia, ela também recusa o convite. Cabeças se voltam para ela com surpresa. — Eu preciso de um tempo — ela explica. — Sempre acabo fazendo um solo, então talvez seja a hora — ela chuta a minha cadeira — de dar uma chance a outra pessoa. — Bem, se você tem certeza... — diz o professor, desapontado. Depois ele olha para a sua lista a grita o nome seguinte. Eu dou uma olhada sobre o ombro. Cecilia sorri para mim.
Eu a alcanço quando ela segue em direção à calçada depois da aula, curvada sob um guarda-chuva de bolinhas, sob a incansável garoa do dia. — Por que você não tentou o solo? Ela continua caminhando. — Você estava no jogo. Viu o que aconteceu. — Mas aquilo foi puro azar. Até mesmo profissionais têm dias ruins. Quero dizer, era uma multidão e tanto, né? E você também teve aquele problema aquele dia... — Que dia? — O dia em que decoramos o ginásio. Quando você perdeu a... — Eu paro na calçada.
— ... voz. — Cecilia para também. Sim, sim, quando ela perdeu a voz! — Merda... — eu sussurro. Mal posso acreditar nas palavras, mesmo quando eles saem dos meus próprios lábios. — A gente te trancou no túnel e você perdeu a voz! — Obrigada por dizer “nós”, em vez de pôr toda a culpa em Lacy. Não que eu me importe — acrescenta Cecilia, acelerando. — Tenho certeza de que foi ideia dela. — Esqueça isso! Ouça! Algo estranho está acontecendo. — Você quer dizer, além de você falar comigo quando eu lhe pedi educadamente para me deixar em paz? Sinto os respingos de chuva nas minhas pernas quando começo a correr. Para uma garota acima do peso, Cecilia é bem rápida! — Espere! Eu tenho que te contar uma coisa importante e não posso fazer isso aqui. — Eu aponto para o restaurante de Millie. — Vamos entrar, por favor — peço quando ela para. Contrariada, Cecilia concorda. Eu escolho um banco de frente para a janela, afastado do balcão de Millie. Eu não preciso que ela me escute e, em seguida, conte tudo para a minha mãe. Millie traz os nossos chocolates quentes e, sem que tenhamos pedido, um prato com seus famosos anéis de cebola. — Bem, eu acho que esta é a primeira vez que você vem aqui sem a sua mãe. Algum motivo especial? — Millie pergunta. Eu tiro um livro qualquer da mochila. — Temos um trabalho de casa para discutir. — No segundo em que ela fica fora do alcance da minha voz, eu me inclino para a frente, ansiosa. — Me diga o que aconteceu quando você ficou presa no túnel. Cecilia fecha a cara. — Por quê? — Você fala primeiro. Então eu explico. — Esqueça. Não confio em você. — Eu sei — digo, infeliz. — Eu também não confiaria se fosse você. — Fico aliviada quando Cecilia sorri. — Pedi desculpas e estava sendo sincera. E se isso a faz se sentir melhor, Lacy não ficou muito contente comigo quando eu defendi você. O sorriso dela desaparece. — Você quer uma medalha por isso? Ou só um tapinha nas costas? — Eu espero pacientemente. Ela suspira. — Eu te disse, sou claustrofóbica. O que você acha que aconteceu? — Com a ajuda de uma colher, ela afunda o chantili na xícara de chocolate. — Você não sabe o que eu passo. Não consigo nem fechar a porta do meu quarto. Não consigo entrar no meu closet. Não consigo nem
fazer xixi na escola porque não consigo fechar a porta do cubículo. — Ela abaixa para tomar um gole. — Você não faz ideia. Será que eu conto a ela? Será que me atrevo? Mas se ela não confia em mim, como eu posso confiar nela? — Eu posso imaginar — garanto a ela. — Só me diga o que aconteceu no túnel. Gotas de suor surgem na testa larga de Cecilia. Ela as seca com o guardanapo usado. — Ela bateu a porta e eu não consegui abrir. Eu ouvi vocês rindo. No começo, tudo o que eu queria era sair de lá para que eu pudesse chutar a bunda de vocês! Então entrei em pânico. É-é difícil descrever — ela se atrapalha. — De início eu não consigo respirar. Tenho certeza de que vou morrer. Mas, depois que passa, é como se eu acabasse num plano superior. Eu fico meio fora de mim, mas não totalmente, sabe? Eu ainda sei o que está acontecendo. Ela mastiga um anel de cebola. — Não há um nome para isso, hum... — Despersonalização — recito. Ela não pergunta como eu sei. — De qualquer forma, isso geralmente acontece sem que eu faça nada. Mas dessa vez não. Eu não conseguia parar de gritar. Pelo menos não até... — Ela morde o lábio. — Até o quê? — Até o ar entrar na minha boca. Por um minuto eu ouço o barulho de talheres e louças. Millie está conversando com Edna, a senhora que a ajuda na cozinha. Uma jukebox toca Reba McEntire. O toldo de lona lá fora bate feito louco com o vento. Tudo parece tão normal... — Um ar oleoso como graxa — Cecilia esclarece. — Espesso. Como óleo de cozinha ou algo assim. — E tinha cheiro de quê? — eu sussurro. — Alvejante. Os meus lábios ficam dormentes. — Foi quando você perdeu a voz. Ela confirma com a cabeça. — Eu não conseguia gritar mais. Minha garganta se fechou. Não me lembro do que aconteceu depois, só que de alguma forma, saí e... — Cecilia retira o empanado de um anel de cebola, deixando-a à mostra. — Bem, minha voz voltou, mas não é a mesma. Eu-eu fiquei meio surda ou algo assim. E não consigo mais cantar. — É por isso que você desafinou no jogo. E por isso que não tentou o solo hoje — acrescento,
mais impressionada do que com medo. — Ele roubou sua voz, Cecilia. — O quê? — O túnel. — Annaliese, você quer dizer? — Cecilia joga o guardanapo sobre a mesa. — Ah, dá um tempo. — Mas Meg diz que coisas estranhas acontecem ali... — Sim, coisas idiotas que acontecem com pessoas idiotas. — Ignorando meus protestos, Cecilia se levanta, se contorce um pouco para vestir seu casaco largo e aponta com o queixo para os anéis de cebola que sobraram. — É por conta.
Mais tarde, incapaz de dormir, eu me levanto para fazer outra lista: 1. Lacy ficou com dores de cabeça depois que ela foi ao túnel. Além disso, ela me atacou. 2. Os ouvidos de Meg começaram a apitar depois que ela entrou no túnel. Ela se estatelou no chão diante de centenas de espectadores, fazendo uma acrobacia que já tinha repetido mil vezes. 3. Cecilia perdeu a voz depois que entrou no túnel.
Eu não tinha muitas provas diante de mim. Três coincidências, todas com explicações. As dores de cabeça de Lacy podiam ser causadas por estresse ou pelos seus hormônios em polvorosa. O zumbido nos ouvidos de Meg poderia ter uma explicação médica. Talvez nada disso tenha a ver com o túnel. Mas a voz de Cecilia me intriga. Como alguém fica sem ouvido para a música da noite para o dia? Não faz sentido. O que também não faz sentido é que as pessoas usam esse túnel todos os dias. Alguma coisa ruim aconteceu a mais alguém? Nate poderia saber. Eu mordo a unha do polegar, indecisa — Ele está muito bravo ou só um pouquinho irritado? — e então digito o número dele sem pensar. — Você sabe que horas são? — pergunta ele, sonolento. — Desculpa. Eu só quero saber uma coisa: por que todo mundo tem tanto medo do túnel? — O quê? Você fica acordada à noite pensando nessas coisas? — Estou falando sério. Você precisava ver as garotas depois da ginástica, andando juntas como uma manada de búfalos. Será que os garotos fazem isso também? — Eu acho que o seu silêncio significa que sim. — Meg disse que coisas estranhas já aconteceram às pessoas nesse túnel. Isso é verdade? — Mero acaso. Coincidências.
— Ah, é mesmo? Como o quê? Nate boceja. — Ah, como alguém sair do túnel e, sei lá... ficar doente de repente. Ou ter um ataque de asma. Ou perder um relatório ou um livro da biblioteca. Ou dar uns socos na namorada, por exemplo, sem nenhum motivo. Eu ri em silêncio. — Um livro da biblioteca, hein? Uau, que tragédia! — É, bem... — Ele parece mais acordado agora. — Um professor que tivemos no ano passado entrou no túnel para acabar com uma briga. Ele tinha um problema com a bebida, eu ouvi dizer, mas estava sóbrio havia anos. Ele parou em um bar depois da escola, se embebedou e entrou com o carro numa loja. Agora está ficando mais interessante. — O que mais? — Hum, as luzes que nunca funcionam... Bennie troca as lâmpadas o tempo todo e elas nunca duram. E uma vez... Nate solta um gemido como se estivesse mudando de posição na cama. Eu ouço a TV ligada ao fundo. — Ok, essa é pra valer. Uma menina trouxe um gatinho para a escola uma vez, para ver se alguém queria. Ele estava numa caixa, e ela andou pelo túnel com ele. Quando saiu do outro lado, o gato estava morto. — Você está de brincadeira... — eu digo com o coração na garganta. — Ei, você me perguntou, eu contei. Não me culpe se não conseguir dormir à noite. Eu o coloco à prova, para ver se está blefando. — Com quem isso aconteceu? — Lindsay McCormick. Acho que não é blefe. — O gato provavelmente estava doente. — Provavelmente — ele concorda. — Uma coincidência, como eu disse. Hesito, feliz por ele estar falando comigo, embora esteja me deixando apavorada. — Então você não está com raiva de mim por causa da noite de sábado? — Eu estou conversando com você depois de me acordar à uma da manhã. Como posso estar com raiva? Eu o imagino deitado na cama, de... pijama de flanela, talvez? De cueca? Nu? Uma súbita onda de calor me deixa fraca. — Ok, bom. Então, boa noite.
E rapidamente desligo.
Um estampido me acorda de um sonho que desaparece da minha cabeça assim que abro os olhos. À luz do estreito feixe de luz do poste de rua, eu posso ver as vigas do teto. Que diabos foi isso? Eu vou na ponta dos pés de uma janela a outra. Dou uma olhada na escola — nenhuma luz visível —, então olho a casa de Nate do outro lado da rua, escura, com exceção de uma TV no andar de cima. Será que é o quarto dele? Será que ainda está acordado? Devo ligar de novo e dizer: Oi, eu não consigo dormir, graças à sua história desagradável sobre gatinhos mortos. Quer vir comer pipoca? Relâmpagos faíscam, seguidos de um trovão. Eu levanto a pesada janela e pressiono o nariz contra a tela molhada, respirando o ar da noite. A tempestade me hipnotiza. Eu estremeço ao sentir sua atração magnética. Meu despertador diz que são 2h44 da manhã. Que hora será que a sra. Gibbons se enforcou? O que ela estava pensando antes de fazer isso? Será que estava pensando em Annaliese? Estava se lembrando de que, a cada Halloween, as crianças jogavam coisas na casa dela e gritavam o nome da neta morta? Será que ela sentia falta de Annaliese? E Annaliese? Será que mesmo agora ela sente falta da avó também? Se Annaliese estivesse viva, ela teria a idade da minha mãe agora. Talvez ainda estivesse morando aqui, dormindo na cama de dossel. Talvez ela e a avó plantassem flores juntas, jogassem damas. Rissem de programas de TV. Contassem vagalumes nas noites de verão. Todas as coisas que Nana e eu costumávamos fazer. Eu as ouvia agora. Annaliese, dizendo: “Vovó, eu te amo mais do que tudo no mundo!”. SRA. GIBBONS: Não, não. Você ama sua mãe mais do que tudo no mundo. ANNALIESE: Se minha mãe me amasse, ela não teria me mandado embora. SRA. GIBBONS: Ela só queria mantê-la segura. ANNALIESE: Eu não me importo. Eu te amo mais do que tudo no mundo, mais do que qualquer outra pessoa. SRA. GIBBONS: Acho que ela pode ficar triste se souber que você está dizendo isso. ANNALIESE, com astúcia: Então é melhor não contarmos para ela, certo? Mas talvez o amor de Annaliese pela avó não fosse suficiente. Ela vai voltar para casa um dia, ligar para a avó e ninguém vai atender ao telefone. Ela anda de cômodo em cômodo, sem entender.
Sobe as escadas até o sótão e, a cada degrau, chama o nome da pessoa que ela ama mais do que a própria mãe... ... só para descobrir uma cadeira caída. Um chinelo largado. E a avó, roxa e inchada, pendurada a uma viga por uma corda. Rinn! Acorde! Eu paro no meio de um grito horripilante, arranhando a garganta com as unhas até que mamãe consegue afastar as minhas mãos. O sol está alto. Não sei como estou deitada na cama. Ela me sacode delicadamente. — Está tudo bem, Rinn. É só outro pesadelo.
4 MESES EXATOS Quarta-feira, 5 de novembro
Minha mãe não menciona que hoje faz quatro meses, mas eu sei que ela está pensando nisso. Ela não para de olhar para o telefone esta manhã, como se estivesse morrendo de vontade de ligar para Frank, mas não quer fazer isso comigo por perto. Ela sabe que eu vou pedir para falar com ele. Como eu, ela tem medo de que ele não queira. Eu não sei por que eu mesma não ligo. Qual é a pior coisa que ele pode fazer? Desligar na minha cara? Isso seria uma bênção em comparação a um monte de outras coisas que ele poderia fazer. Como me perguntar por quê. Por que você fugiu pela janela naquela noite? Por que você deixou o lampião aceso se sabia que era perigoso? Por que você trancou a porta para que ela achasse que você estava lá dentro? Por que não chamou os bombeiros quando viu o fogo? Por que você não a salvou, Rinn? Por que você não salvou a minha mãe? Uma coisa que eu aprendi é que, mesmo que seja considerado oficialmente louco, você não pode usar isso como desculpa para as coisas que faz. Provar que você é um doente mental não lhe dá um passaporte para a liberdade. Durante quatro meses inteiros eu tentei responder a essas mesmas perguntas, e continuo com a mesma desculpa patética: porque eu era louca. Eu fugi da casa da minha avó porque as vozes me disseram para CORRER! Deixei o lampião de querosene aceso porque não pensei nas consequências. Minha porta estava trancada para impedir a entrada de intrusos imaginários, não para fazer Nana pensar que eu estava lá dentro. Eu não chamei os bombeiros porque não percebi, a princípio, que as chamas eram reais. E eu não a salvei porque só uma pessoa louca poderia assistir a uma casa queimando sem
tentar salvar alguém que estivesse ali dentro. Ninguém entende. Nem eu mesma, nem a minha mãe. Muito menos Frank. Eu sei que eu sou o principal motivo para a mamãe e Frank se separarem. Depois que Nana morreu, Frank não queria nem que eu chegasse perto dele. Eles brigavam quando achavam que eu não estava ouvindo. Mas eu ouvia. Ouvi Frank admitir a mamãe que não conseguia acreditar que eu ficaria boa com os remédios, e que da próxima vez que eu saísse ninguém poderia saber quem eu poderia matar. Que ele não conseguia olhar para mim sem se lembrar de como a mãe dele tinha morrido. Que ele achava que seria melhor se eu fosse para um colégio interno — sem dúvida, em outro continente, na opinião dele. Ouvi minha mãe suplicar para que chegassem a um meio-termo. Para que ela não fosse obrigada a escolher entre nós dois. Para me dar mais uma chance de provar que eu era digna de confiança. Há dias, como hoje, em que eu me pergunto se ela cometeu um erro. Mamãe poderia estar em La Jolla com Frank, agora, com as suas festas e jet skis, de férias em Aspen, com antigas estrelas do rock. Eu estaria, bem, só Deus sabe onde eu estaria. Eu passo de sala em sala de aula, respondo à chamada, sorrio quando falam comigo. O céu está escuro do lado de fora das janelas, o tamborilar da chuva apenas aumenta a minha depressão. Vou almoçar, ouço Meg, Tasha e Lacy reclamando sobre os mesmos velhos assuntos. Eu me pergunto como elas reagiriam se eu também contasse as minhas tragédias: “É, estou angustiada, também. Quatro meses atrás pus fogo na casa e matei a minha avó. Então, dois dias mais tarde, tentei cometer suicídio”. Será que alguma delas mostraria alguma surpresa?
Nate não está esperando por mim depois da escola. Ele saiu mais cedo hoje para ajudar o pai a fazer um conserto de emergência em uma das propriedades alugadas de Luke. Mas, diante do meu armário, encontro Dino rescedendo a maconha. Foi expulso da aula de inglês pela professora Rasmussen, então posso imaginar como passou o tempo livre. — Ei, Rinn. Eu encolho os ombros, sem saber o que é seguro dizer. A última coisa que quero é incentivar esse cara. — Você fica de olho em Bennie, porque vou pegar aquela coisa de volta para você agora. Eu bato a porta do armário e fecho o zíper do meu casaco até o queixo.
— Dino, isso não é tão importante assim. — É, sim — argumenta ele, tão perto que chega a respirar em mim. — Anda, eu chequei, não há nada acontecendo aqui esta noite. Só vai levar cinco minutos. Dez, no máximo. Secretamente, eu me sinto lisonjeada por ele estar tão determinado a corrigir seu erro. — Eu já disse a você, ele provavelmente está quebrado. Além disso, como você vai passar por cima daquela cerca? — Eu posso fazer isso, fácil. Eu hesito. — Tudo que você tem a fazer é vigiar Bennie — ele acrescenta com sinceridade. — Eu entro e saio. Vamos lá, Rinn. Deixa eu fazer isso. Eu devo ser uma idiota. Mas, se o meu candelabro não estiver em pedaços — ele é duro pra valer, e eu não o ouvi quebrando —, talvez possa valer a pena. Talvez ele esteja apenas lascado. — Você não tem medo de ir lá? — Eu atravessei o túnel hoje, acompanhada como sempre, mas não entro de jeito nenhum naquela piscina. Dino ri, de um jeito forçado e longo demais. Traduzo isso como Com certeza estou com medo, mas não vou confessar isso a VOCÊ. — Me encontra no auditório em dez minutos — ele me instrui; em seguida, dá o fora. Eu abro o zíper da minha jaqueta e finjo reorganizar as coisas no meu armário. Atrás de mim, o tumulto de depois das aulas vai ficando cada vez menor, até que só restem uns gatos pingados no corredor. Portas de armários batem. O professor Lipford acena quando passa com dois outros professores que eu não conheço. Portas se fecham com estrondo, ecoando a distância. Quando o último aluno desaparece, eu pego a minha mochila e atravesso os corredores desertos sem dar bandeira. Dino espera no auditório, sentado nos degraus para o túnel. — Entra comigo e só fica de olho aberto. Se Bennie aparecer, ou qualquer outra pessoa, me avise. — Avisar como? — eu pergunto. — Porque eu não vou entrar na piscina. — Apenas fale um “oi” bem alto para ele ou algo assim. Alto o suficiente para que eu possa ouvir. Então você dá o fora daqui. Ninguém consertou a porta da piscina ainda. Dino tira uma lanterna da mochila e desliza para dentro do túnel. Eu fico na porta, de olho na cerca de metal alta, iluminada pela luz da lanterna. O portão — com uma placa dizendo: NÃO ENTRE! INVASORES SERÃO SUSPENSOS — bloqueia a porta com o mesmo cadeado. Eu vejo os aros de arame no topo da cerca, todos retorcidos e expostos, formando uma linha de pontas irregulares, de parede a parede. Bem, isso só prova que: Dino é mais burro do que eu.
— Dino, esquece. Você vai se matar. — Qualé! — diz ele alegremente. Ele enfia a lanterna na cintura da calça jeans e estende os braços para alcançar os elos. Uma chuva de ferrugem cai da cerca quando ele se ergue com um grunhido. Seu tênis se encaixa num elo, depois em outro, depois em outro — com a facilidade com que ele previu — e ele escala a cerca, que balança. Eu observo quando ele levanta a perna lenta e cautelosamente sobre as ligações metálicas salientes. Um movimento em falso e adeus genitais. Com os braços trêmulos sustentando seu peso, ele luta para encontrar um apoio para o pé, encontra-o e depois passa a outra perna por cima da cerca. Então, cai no chão do outro lado. — Consegui! Quando seu grito jubiloso se desvanece, tudo é silêncio. E escuridão. E muito, muito frio. Eu dou um passo para fora da porta. — Eu vou esperar aqui fora. Já ocupado, procurando o meu candelabro com a lanterna, Dino não se dá ao trabalho de responder. Um leve cheiro de lavanda — minha imaginação? — paira no túnel. Lembro-me da sessão, e do que aconteceu, e de como todos, até Dino, mentiram para mim, e começo a ficar com raiva de tudo outra vez. A raiva, no entanto, é um desperdício de energia. Então eu respiro profundamente e saio para me acalmar e pensar que, de um jeito ou de outro, vou descobrir a verdade. Abraço a mim mesma para combater o frio, sentindo-me exposta e abandonada na penumbra amarelada, com o túnel escuro se estendendo diante de mim. O que estou fazendo aqui, sozinha, depois do que aconteceu no sábado? Dino não conta, ele está muito ocupado se exibindo, à caça do seu prêmio. E se algo acontecer comigo, agora, o que adiantaria Dino estar ali? Ouço um rangido intermitente a distância. Meu coração quase explode no peito até que eu perceba o que estou ouvindo: as rodinhas do carrinho do zelador Bennie, rolando pelo auditório. Apressadamente, fecho a porta do recinto da piscina e, em seguida, grito: — Oi, Bennie! — ao mesmo tempo que dou um salto para fora do túnel e desço os quatro degraus. Dê o fora daqui, Dino havia ordenado. Bem, estou fazendo exatamente isso. Bennie me lança um olhar suspeito, sob a sua capa de malha laranja. — O que está fazendo aí? Por que ainda não foi para casa? — Esqueci minha mochila. — Uma desculpa de última hora. — Eu já estou indo embora. Ele não pergunta por que estou ali, a quilômetros de distância do meu armário e da porta que uso normalmente. Mas por que ele se incomodaria em perguntar? Provavelmente não consegue
rastrear todo mundo. Bennie atravessa o corredor arrastando os pés, passa pelo palco e empurra a porta dos fundos da saída de emergência. Nenhum alarme soa apesar do sinal de alerta. — Você pode muito bem sair por aqui. Você mora logo em frente. Não, não! E agora? Espero que Dino tenha me ouvido gritar. Espero que já tenha pulado a cerca. Melhor ainda, que já tenha saído de lá, também. — Tudo bem, obrigada. — Casualmente eu passo pela porta e vou para o pátio da escola. Meus pés afundam na lama quebradiça. Através das árvores nuas que balançam com o vento, eu avisto o telhado da minha casa. Eu poderia chegar lá em trinta segundos... mas e Dino? Com todas as encrencas em que ele já se meteu, provavelmente vai ser suspenso se Bennie pegá-lo na piscina. E se Dino abrir o bico e contar que eu o ajudei a sair? Ou o ajudei no começo, pelo menos. Não, concluo. Se ele está tão obcecado por mim como Meg diz, duvido que vá me envolver nisso. Ele quer ser o meu herói, não me arranjar encrenca. Pelo menos eu espero... Impulsivamente, eu me viro e puxo a porta, já inventando outra desculpa para mostrar o meu rosto para Bennie novamente. Mas percebo que estou trancada do lado de fora.
4 MESES + 1 DIA Quinta-feira, 6 de novembro
Hoje Dino não aparece na primeira aula nem em qualquer outra aula que temos juntos. Eu acho que isso significa que Bennie o pegou, no final das contas, e o entregou ao sr. Solomon. Egoisticamente, torço para que ele tenha encontrado o meu candelabro primeiro. A temperatura diminui drasticamente durante o dia e a ruas estão cobertas de neve quando bate o último sinal. Nate e eu vamos para casa juntos, e ele promete voltar com uma pá para tirar a neve da entrada da nossa garagem. — Quer ajuda? — eu pergunto, embora eu nunca tenha pegado numa pá para remover neve. Ou visto alguém fazer isso... até agora. — Não, este trabalho é meu. — Flocos de neve derretem no meu rosto. — Meu pai me paga. — Ah. Bem, nesse caso, continue. Eu entro em casa, chuto os sapatos e penduro a minha jaqueta no gancho de bronze no vestíbulo. Quando aciono o nosso correio de voz, ouço Frank dizer: “Monica, me ligue de volta quando puder”. Meu coração dói ao ouvir a voz de Frank. Sem pensar muito, pego o telefone e digito o número dele. Eu acho que Frank verifica o identificador de chamadas, porque ele nem diz “olá” antes de dizer: — Ei, eu não esperava que me ligasse hoje ainda. — Sou eu. — Rinn? — Silêncio. — Bem, como vai? Onde está a sua mãe? — pergunta ele, sem esperar que eu responda à sua primeira pergunta. — Ela não está em casa ainda. Eu ouvi sua mensagem então... pensei em ligar de volta. — Ah. Mais silêncio. Eu tento de novo. — Eu não falo com você há um bom tempo. — Eu sei — ele diz. Eu o imagino passando a mão pela cabeça calva e depois pelo rabo de cavalo grisalho. — Como está na nova escola? — É legal. Fiz alguns amigos. Estou no coral, também.
Mais silêncio. Frank não está nem aí se eu fiz amigos ou se estou no coral da escola. Por que estou contando tudo isso? Eu sinto as vibrações através do receptor. — Frank? — Sim, Rinn? Sinto muito. Sinto muito! Eu não queria que aquilo acontecesse. Mas quantas vezes posso dizer que sinto muito sem ouvir um “eu te perdoo”? Ele nunca me disse isso. Eu duvido que um dia ele dirá. — Sinto falta de você — eu digo, em vez disso. Fecho os olhos, esperando que ele bata o telefone na minha cara. Ele não faz isso. — Sim... eu também. Peça para a sua mãe me ligar quando ela chegar em casa. — Ok. — Tchau, Rinn. — Tchau, Frank. Eu me jogo de bruços no sofá. Parte de mim sabe que é hora de seguir em frente e esquecer o que passou. Será que o resto da minha vida depende do perdão de Frank? Eu sinceramente quero fazer 50 anos de idade ainda repentindo que sinto muito e esperando que ele me ame de novo? Mas, se ele nunca me perdoar, por que eu teria que me preocupar em fazer 50 anos? Poucos minutos depois, Nate bate à porta da frente, emperrada com a neve, usando o mesmo boné de caça grotesco. Ele segura um saco plástico encharcado. — O seu jornal. Ele estava enterrado. — Você poderia ter deixado na varanda. — Tem razão... — Nate bate as suas grandes botas de borracha para tirar a neve — provavelmente chamadas de “galochas” nesta região do país. — Eu queria te perguntar se você quer ir andar a cavalo. — Na neve? — Os cavalos não se importam. De qualquer forma, podemos andar no celeiro. Eu penso em recusar o convite educadamente, porque, sim, eu estou com um humor horrível. Mas então vejo a expectativa de Nate. Por que ele gosta tanto assim de mim? Porque é óbvio que ele gosta. Eu acho que não estou acostumada com caras que gostam de mim sem pensar imediatamente em fazer sexo comigo. Nate me examina. — Você está com aquele olhar de novo. — Que olhar?
Dedos frios tocam a minha bochecha. — Como se quisesse chorar. — Bem, eu não vou chorar. — Impulsivamente, eu pego a mão dele. — Mas quero andar a cavalo. Seu sorriso me derrete. — Quer? — Sim. Só que eu preciso saber uma coisa. — Reprimindo um sorriso, eu aponto para o seu chapéu horroroso. — O que você fez? Escalpelou o Sasquati? Eu me esquivo da sua reação indignada, procuro um papel e uma caneta, e rabisco um bilhete para a minha mãe.
Depois de cavalgar por várias horas no cercado interno de Meadows Rocky e mais uma hora sem fazer nada num salão recoberto de painéis de madeira, com um tapete de urso comido pelas traças — os donos estão na Flórida até o Natal, por isso esse lugar se tornou o nosso refúgio —, nós nos despedimos na garagem de Nate e eu atravesso a rua. Minha mãe desce rapidamente. — São oito horas! Eu já estava doente de preocupação! — Eu deixei um bilhete — eu protesto. — Eu não vi bilhete nenhum. Ao localizar o bilhete no chão — ele deve ter voado com o vento quando minha mãe abriu a porta dos fundos —, eu o pego. — Você não procurou muito — respondo, enquanto o coloco em frente ao seu rosto. — E então? — E então, o quê? O que ela pensa que eu estava fazendo esse tempo todo? Eu sei exatamente o que ela pensa. — Vá em frente. Diga! — Dizer o quê? Furiosa com sua dissimulação, eu grito: — Você ainda não confia em mim! Não importa o que eu faça, não importa o que eu diga, você é como Frank. Você nunca mais vai confiar em mim, nunca mais! — Isso não é a verdade! — Minha mãe vira de costas para mim e alisa o cabelo. — Ó Deus, ó Deus, eu preciso muito de um cigarro! Por que sou tão má com ela às vezes?
— Não, você não precisa — eu digo, com a esperança de fazer as pazes. — Sim, eu preciso. Você não faz ideia. Com um pouco de remorso, eu rebato: — Fume, então! Quem se importa? — No meio das escadas eu me lembro de algo. — A propósito, Frank ligou. — Eu sei. Eu falei com ele. — Falou? Ótimo. — Eu continuo a subir as escadas pisando duro. — Eu também.
O telefone toca uma hora depois. Eu estou deitada no meu colchão, ouvindo a música de piano que vem da sala. Eu adoro ver que mamãe está tocando novamente. Triste, penso no piano de Nana, uma herança de família trazida da Europa num navio a vapor. Então eu me lembro de como ele ficou depois do incêndio, a madeira carbonizada, o marfim enegrecido, um emaranhado de cordas incandescentes. Sentindo-me muito antissocial, ignoro o toque do telefone e apenas olho para as vigas, enquanto ouço o barulho do vento lá fora. Neve! Muita neve, uma semana após o Dia das Bruxas. Esta cidade inteira estará tomando Prozac até o Natal. Minha mãe aparece no topo da escada. — Rinn, querida. Aconteceu uma coisa. — É Frank? — É claro que eu penso nele primeiro. Ele é muito mais velho do que a minha mãe, além disso bebe e fuma. Ele também não saiu dos meus pensamentos o dia inteiro. Minha mãe ajoelha-se ao meu lado no colchão. — Era o sr. Solomon ao telefone. Você sabe que Dino não foi à escola hoje, certo? Bem, parece que houve... um acidente. Meus ombros afundam. — Que tipo de acidente? — Querida, Bennie o encontrou no recinto da piscina depois da escola hoje. — Minha mãe hesita. — Morto. Eu acho que ouvi errado. — O quê? — Ninguém tem certeza do que aconteceu. Mas acho que ele ficou lá a noite toda. A noite toda? Bennie não o pegou no flagra ontem? Ele não chegou a sair de lá? Minha voz falha. — Ele morreu na piscina? — Ao lado da piscina, o Sr. Solomon disse. Ele não podia me dar mais detalhes. — Minha mãe
passa a mão sobre os olhos. — Ah, pobre Bennie. Eu não posso nem imaginar como... Eu voo para a minha janela. Através de uma cortina de flocos de neve eu distingo, no escuro, as luzes de dois carros de polícia, um caminhão do corpo de bombeiros e uma ambulância. Toda a força de segurança de River Hills, sem dúvida. — Ah, meu Deus! — Eu arranco a camisola e estendo o braço para pegar o mesmo jeans, com as pernas rígidas e cheirando a cavalos. — Ah, meu Deus! — Espere aí! Você não vai lá fora. — Ele era meu amigo, mãe! Amigo? Sua mentirosa. Você nunca nem deu bola pra ele. Você o deixou pra trás ontem. Arrasada, volto a me deitar no colchão, entre as cobertas desarrumadas. Por que não fiquei com a boca fechada e esperei em silêncio quando Bennie apareceu? Ou não fui à piscina com Dino? Eu solto um gemido. — Mas o que aconteceu com ele? — Eu não sei, querida. Sinceramente, não sei. Eu cubro o rosto quando minha mãe me puxa mais para perto.
4 MESES + 2 DIAS Sexta-feira, 7 de novembro
As aulas estão suspensas. Eu observo o prédio da escola da janela do meu quarto, sem saber o que estou esperando ver. Então, revoltada com a minha própria curiosidade, eu me obrigo a me vestir. Millie, é claro, é quem primeiro descreve os detalhes. Quando minha mãe e eu entornamos a nossa segunda xícara de café, ela aparece na sala de estar, com seu perfume forte e cheirando a óleo de fritura. Tasha a segue, me abraça e chora: — Eu nunca conheci ninguém que tenha morrido, a menos que fosse velho! Posso dizer o mesmo. Eu a abraço de volta, enquanto Millie diz à minha mãe: — Eu conversei com Claire. Você se lembra de Claire, da equipe? Bem, ela é paramédica agora e disse que parece que o garoto pulou a cerca e, em seguida, prendeu a perna na parte de cima e — Millie olha para Tasha e para mim — não conseguiu se soltar. Pálida, minha mãe sussurra: — Pobrezinho. — Ouvi dizer que Bennie está fora de si. — Millie tira um lenço de papel da bolsa e assoa o nariz ruidosamente. — Eles acham que o coração do garoto não aguentou, pendurado de cabeça para baixo por tanto tempo, e preso ali como um pedaço de carne. De cabeça para baixo? — Por que ele não pediu ajuda? — Talvez tenha pedido. Mas Bennie jura que não ouviu nada, e ele ficou na escola até às cinco da tarde. Não havia quase ninguém por perto, talvez um professor ou dois. Ninguém ouviu nada. — Enfiando o lenço de volta na bolsa, Millie acrescenta rapidamente: — Nós não podemos ficar. Estamos indo para o Centro Aquático. Com o tempo assim, eu aposto que vamos ter o lugar todo só para nós. — Ela lança um olhar zangado para Tasha quando a filha bufa. — Eu disse a você, não dá para desperdiçar uma oportunidade como essa. Já é ruim o suficiente que eu tenha deixado você perder o sábado! — E você não vai parar de jogar isso na minha cara — murmura Tasha. — Isso mesmo. — Millie aponta uma unha vermelha para Tasha. — Você perde as regionais e eu nunca mais vou poder andar de cabeça erguida novamente. E todas essas pessoas gentis que já
patrocinaram você? A cidade inteira está torcendo e você sabe disso, mocinha. E não se esqueça, seu pai está mudando o horário de trabalho só para te ver. — O pai de Tasha é caminhoneiro e fica na estrada a maior parte do tempo. — Você vai querer desapontá-lo? Com uma expressão amarga, Tasha a ignora e me abraça novamente. — Eu ligo pra você mais tarde, se não voltar muito tarde. — Millie a empurra para fora antes mesmo que ela consiga fechar o zíper da jaqueta. Minha mãe diz, incrédula: — Eu adoro a Millie, mas o que ela tem na cabeça? Um menino acabou de morrer! Eu queria que Tasha e eu pudéssemos ficar juntas esta noite. Aposto que Tasha queria a mesma coisa. A ideia de Dino pendurado de cabeça para baixo, indefeso, sofrendo por horas, revira o meu estômago. Assim como os outros pensamentos loucos que dão voltas na minha cabeça. Pensamentos que não posso compartilhar com a minha mãe, ou com qualquer outra pessoa, na verdade. Exceto, talvez...? Pego o telefone e digito o número de Nate.
Ele obedientemente aparece dez minutos depois. Depois que atura as lamentações da minha mãe, eu o empurro em direção à escada, ignorando o aviso dela para “deixar a porta aberta, por favor!” Eu não tenho uma porta no meu quarto, apenas a porta da escada. Nate examina minhas paredes pintadas de cinza. — Hum, cor legal. — Bem mais legal do que o branco entediante que você escolheu. — A parede era de gesso. Pelo menos eu pintei. — Por que vocês não deixaram as paredes como eram? Ele hesita. — Ah, o papel de parede era muito feio. Eu olho enquanto ele admira os meus cartazes de bandas, todos originais e a maioria assinada pelos artistas. Frank sempre me dá — dava — esses pôsteres em ocasiões especiais. Eu coloco um CD para ter uma música de fundo, caso minha mãe decida ouvir atrás da porta. — Pink Floyd? — adivinha Nate depois das primeiras notas. — David Gilmour. Ele tocou com Pink Floyd antes de iniciar a carreira solo. Ele aponta para o meu cartaz do Led Zeppelin: — “Stairway to Heaven.” Onde você conseguiu isso?
— Meu padrasto é produtor musical. Ele está aposentado agora, mas conhecia todas essas pessoas. — Sério? Você conheceu algumas delas? — Sim, algumas. Mas roqueiros são como qualquer um de nós, sabe? Geralmente eu já estava na cama quando um deles vinha em casa. — Ou me esgueirando pela janela, fazendo minhas loucuras. David Gilmour canta pelos alto-falantes que “não há como escapar daqui”, que nós estamos “aqui para sempre”. Frank adora essa música.
Eu também. Ouvindo-a agora, eu me sinto melhor, até mais corajosa. Sento-me no colchão e faço um gesto para Nate se juntar a mim. Ele faz isso, mantendo uma distância segura. — Você quer falar sobre Dino? Está tudo bem? — É. E você? — Estou, eu só... só não consigo acreditar que isso aconteceu. — Nem eu. — Eu hesito. — Nate, eu tenho que te dizer uma coisa. Mas você não pode rir de mim. E não pode me acusar de ser louca. Nate concorda com a cabeça, muito sério. — Sabe o que aconteceu com Dino? Eu não acho que tenha sido um acidente. Ele já parece cético. — Claro que foi. Quer dizer, se Dino quisesse se matar, teria maneiras mais fáceis. — Eu não estou dizendo que ele se matou. Só me ouça, ok?
De início, Nate não diz nada quando explico por que eu acho que o túnel é assombrado. Não só o túnel, mas a piscina também. Talvez ele esteja se perguntando se eu estou delirando. Ou onde será a saída mais próxima. — Nate, é exatamente como você me disse. Tudo de ruim que acontece com as pessoas acontece depois que elas entram lá. — Eu nunca deveria ter te contado essas coisas — lamenta ele, com um ar cansado. — São só histórias, Rinn. Lendas urbanas. Sei lá. — E o gato morto? — Você mesma disse que ele poderia estar doente. — Isso foi antes de eu juntar os fatos. — Eu chego um pouco mais perto. — Olha só, nós entramos no túnel, certo? Lacy enlouquece e me ataca. Então, ela começa a ter enxaquecas. Os ouvidos de Meg apitam constantemente; além disso, ela está diferente, Nate. Fica deprimida o
tempo todo. Então Cecília fica trancada lá dentro e agora não consegue mais cantar. E veja o que aconteceu com Dino. Nate permanece em silêncio. — Você não vê um padrão aí? — Todos nós usamos esse túnel — ele argumenta. — Todos nós, todos os dias. Eu solto a respiração, exasperada. — Por que eu não adivinhei que você diria isso? — Mas é verdade. O restante de nós está bem. Eu nunca notei nada de estranho no ar. E, ei, e Bennie? Ele fica lá mais do que qualquer um de nós, limpando e tudo mais. Por que nunca aconteceu nada com ele? Eu examino as minhas mãos entrelaçadas. Me esqueci de Bennie. Nate desliza mais para perto. — Você está falando de dores de ouvido e dores de cabeça e pessoas perdendo a voz. Mas Dino morreu! Essa é uma história completamente diferente. — Talvez ele tenha visto alguma coisa. — Alguma coisa? — ele repete. — Um fantasma, você quer dizer? — É, um fantasma! — Eu disparo a falar ao ouvir seu suspiro explosivo. — Aquela sessão, Nate. Antes dela, era como você disse: as coisas aconteciam às pessoas, mas nada sério, certo? Além do professor bêbado, quero dizer. Mas depois que fizemos a sessão, sei lá! E se fizemos alguma coisa ali? Evocamos algum tipo de poder? Algo forte o suficiente para machucar. Para matar, até. Nate responde balançando a cabeça, incrédulo. Teimosamente eu insisto: — Você não estava lá. Você não viu como foi estranho, como todos ficaram sentados ali como manequins. Sem se mexer. Sem falar. Depois, quando eu corri para buscar ajuda, eles saíram de lá como se nada tivesse acontecido. — Eles estavam zoando com você, Rinn. — Eu pensei isso também. Só que agora Dino está morto. — Sim, Dino está morto. Mas você não pode dizer que isso tem algo a ver com a sessão. — Nate dá um tapinha na minha perna. — Olha, todas essas coisas, elas não passam de coincidências. Merdas acontecem, surfista. A cada dia, a cada minuto. Seu toque, através do meu jeans, ameniza a minha frustração. Eu solto as mãos aos lados do corpo, resignada. — Tudo bem, eu sou louca. — Olha — diz ele, impaciente. — Todos nós fazemos piadas sobre Annaliese. Mas acreditar em fantasmas e achar que eles podem realmente nos prejudicar? O que você acha que é isso? Um filme
tipo Poltergeist? Lembro-me das sombras na lanchonete naquele dia, o jeito como elas não coincidiam com os pés da mesa. Minha imaginação? Ou algo sobrenatural? De qualquer maneira, é um saco. — O que é um saco? Caramba, eu falei em voz alta? Penso rápido. — Ok, digamos que fantasmas de fato existam. Então, por que Annaliese? Por que não a minha avó? — Minha voz falha, me deixando ainda mais frustrada. — Por que ela não pode voltar? Por que as pessoas não podem ser assombradas pelas pessoas que amam? Mas sim por pessoas babacas que nem conhecemos? Sua mão desliza pela minha perna e pega a minha. Eu assisto, em transe, quando ele segura os meus dedos e os pressiona contra os lábios. Em seguida, Nate, que possui um radar muito mais apurado do que eu, larga a minha mão um milésimo de segundo antes de a minha mãe aparecer no vão da porta. — Não quero me intrometer — ela fala docemente mais alto que a guitarra de Gilmour. — Mas seu pai está procurando você, Nate. Interrompo a música com o controle remoto e espero minha mãe nos deixar a sós para nos despedirmos. Isso não acontece, então Nate educadamente pede licença e desce as escadas. — Bem — observa minha mãe. — Dá pra ver que ele gosta de você. Eu sorrio. — Eu gosto dele também. — Minha animação desaparece quando minha mãe franze a testa em desaprovação. — Me poupe o sermão. Eu já ouvi isso antes. — Sei que não vai adiantar nada, mas vou dizer de novo: este é o seu quarto, Rinn. — Ignorando a minha cara de indignação — Será que ela sempre vai suspeitar de mim? —, ela desaparece pelo vão da escada.
4 MESES + 3 DIAS Sábado, 8 de novembro
A funerária Barton está lotada, inclusive de pessoas que ninguém esperava que viessem. Como todo o time de futebol; por causa de Jared, é claro. Tasha, Lacy e Meg estão lá também. Nate também. Até o sr. Solomon e a maioria dos professores. O pai de Dino, num terno preto antiquado e sem a bandana, parece estranhamente calmo. Eu entendo o motivo ao sentir o cheiro de uísque em seu hálito. A esposa, Deb — quieta, distraída — está de braço dado com ele como se estivesse sob o efeito de tranquilizantes. Talvez esteja mesmo. Em frente ao caixão, os olhos escuros do sr. Mancini, idênticos aos de Dino, encontram os meus. Então eles se desviam para a mão estendida da minha mãe. — Joey, Deb — ela diz. — Eu sinto muito. Ele pega a mão dela com a sua mão manchada de graxa. — Monica, Monica... quanto tempo, não é? Sabe, eu disse para a sua garotinha aqui para te dizer que mandei lembranças, para fazer uma visita um dia desses. Ela passou o recado? Minha mãe olha para mim. — Eu me esqueci — eu digo, relutante. É verdade. Eu nunca mais tinha pensado no cara estranho de bandana. Minha mãe liberta a mão do aperto do sr. Mancini. — Você já tinha encontrado Rinn? — Sim. — Ele mostra os dentes amarelos. Eu concordo com a cabeça. Então, impulsivamente, toco a manga da sra. Mancini. — Sinto muito por Dino. A mãe de Dino, magra e abatida, mexe a boca como se quisesse sorrir, mas não se lembrasse como. Então o sr. Mancini dá uma risadinha sem graça. — Eu também, querida. Agora tenho que me virar sozinho naquela maldita oficina. — Ele passa as mãos pelo casaco surrado. — Monica Parker. Ora, ora. O sorriso da minha mãe não vacila. O sr. Mancini oscila um pouco, fazendo com que sua estranha esposa perca um pouco o equilíbrio. Indiferente, ela brinca com um botão do suéter.
— Sabe o que a minha mãe costumava me dizer, Monica? “Colhemos o que plantamos”. Isso é o que ela dizia. Só agora estou descobrindo o que ela quis dizer com isso. Minha mãe, depois de uma pausa constrangedora, murmura alguma coisa. Depois ela me leva para longe, deixando os Mancini receberem as próximas vítimas da fila. — Que papo foi aquele? — eu sibilo. — O que ele quis dizer? — É um ditado, Rinn. — Eu sei que é um ditado. — Eu não tenho ideia do que ele quis dizer. — E o que há de errado com ela? — Acidente de carro, há dez anos. Joey estava dirigindo bêbado. Ele passou dois anos na prisão por causa disso. A pobre Deb ficou em coma durante nove meses. Então esta é a família de Dino: um pai bêbado e desagradável e uma mãe com lesão cerebral. Eu deveria ter sido mais agradável com ele quando tive a chance. Minha mãe se alegra quando Nate e Luke Brenner se aproximam. Eu também. — O caixão está lacrado — Nate nota com alívio. O caixão de Nana também estava lacrado, embora na época eu tivesse desejado que ele estivesse aberto. Eu até pedi a Frank para levantar a tampa, para que eu pudesse ver por mim mesma que as pessoas não estavam mentindo para mim, que ela realmente tinha morrido por causa da fumaça e não do fogo. A reação de Frank fez com que eu tivesse vontade de me rastejar para dentro daquele caixão com ela. Nate percebe meu arrepio. — O que foi? Eu não vou entrar em pânico. Estou farta de ser um bebezão. Cansada de ter que tomar um comprimido cada vez que as coisas ficam difíceis demais. Eu abro as mãos suadas. — Muito abafado aqui. Nate me conduz para a porta, abrindo caminho em meio às pessoas que lotam a sala. Tasha acena para mim, mas estou muito distraída para acenar de volta. No caminho para fora passamos por Lacy, de ombros caídos e mal-humorada, ao lado dos pais. Eu a ignoro também. Na varanda, coberta recentemente com uma camada de sal depois que a neve foi retirada, Nate abre seu casaco largo, me puxa e fecha as laterais de couro em torno de mim. Eu me esqueço do pânico. Me esqueço de que estou num velório, fingindo lamentar a morte de um rapaz com quem eu não me importava muito. Envolvida pelo calor de Nate, abrigada em seus braços, estou exatamente onde mais quero estar neste momento. Quando seus lábios tocam o meu cabelo, eu
levanto o rosto. Como mágica, seus lábios encontram os meus e os meus braços envolvem sua cintura. Nós nos beijamos longamente, enquanto eu me pergunto, confusa, por que ainda posso sentir o sal sob as minhas botas. Nesse momento eu certamente deveria estar flutuando no céu.
4 MESES + 4 DIAS Domingo, 9 de novembro
É um dia frio, sombrio e molhado para um funeral. Depois que o reverendo Kessler, pai de Lacy, dá a bênção final, depositamos, um a um, uma rosa sobre o caixão. Bennie Unger, o boné neon laranja espremido na cabeça como de costume, ergue as sobrancelhas para mim. Eu aceno sem entusiasmo. Em seguida, ele limpa o granizo do rosto e se curva para lançar sua flor no caixão de Dino. E erra o alvo. Eu me apoio numa árvore enquanto a minha mãe e o sr. Brenner falam com o sr. Mancini. Eu não acho que o pai de Dino teve chance de beber alguma coisa hoje. Ele parece abatido e infeliz. A sra. Mancini, tão sem vida quanto ontem, vaga pela neve como um trapo soprado pelo vento. Lacy está com sua família, sacudindo os ombros, as lágrimas escorrendo sem parar. Eu sei que ela e Dino tinham alguma coisa, mas não esperava essa reação dela. Antes que eu possa decidir se devo ou não ir embora, noto o sr. Mancini dando alguma coisa para a minha mãe. Sobre o vento, e outras conversas ao meu redor, consigo distinguir duas palavras: “Dino” e “piscina”. Então ele desmorona, soluçando, os joelhos mergulhando na neve enlameada. A mãe de Dino agarra a manga do próprio vestido, ignorando a aglomeração que se forma em torno do marido. Meu estômago afunda enquanto eu marcho na direção do portão do cemitério. Tudo o que eu quero é ir para casa, pegar um livro e me aninhar no meu colchão. Mas Nate me alcança e pega a minha mão. — Ei. Eu sei pelo seu sorriso que ele está pensando no nosso beijo. Meu humor melhora. Eu sorrio para ele e aperto a sua mão. — Ei. Isso é tudo, porque minha mãe e Luke se apressam para nos alcançar. Eu largo a mão de Nate e pergunto a ela: — O que o sr. Mancini estava dizendo sobre a piscina? Minha mãe arranha o chão com as botas, enquanto Luke joga fora a bituca de um cigarro. — Ah, aquilo. Bem, o que ele disse foi — ela fita longamente a bituca de cigarro de Luke — que ele sabe por que Dino estava na piscina aquela noite. — Com muito cuidado, minha mãe arruma
seu cachecol no pescoço antes de estender a mão para pegar algo dentro do bolso do casaco. Ela pega o objeto misterioso e acrescenta num tom peculiar e desconfiado: — Eles encontraram isso no bolso dele. Sem fala, eu pego o pedaço de cerâmica quebrado. É a base do meu candelabro, com o meu nome inscrito no disco vermelho.
Rinn Jacobs Eu sei que não foi ideia minha que Dino escalasse aquela cerca. Mas também não tentei desencorajá-lo. Sim, ele me disse para ir embora caso aparecesse alguém. Mas e se eu tivesse ficado? Tirando o que aconteceu com Nana, eu nunca me senti tão culpada. Ou tão apavorada.
Tem “comes e bebes” rolando nos Barton; café com biscoitos, nada de mais. Mas Lacy implora a Meg, a Tasha e a mim para irmos à casa dela. — Eu preciso falar com vocês em particular. Nada de garotos — ela acrescenta para Nate. Eu hesito. Minha mãe e Luke estão meio quarteirão à frente, indo para a casa dos pais de Dino. Mas Nate diz: — Pode ir. Eu aviso a sua mãe. Você me liga mais tarde? Eu concordo com a cabeça, desanimada, virando nos dedos o caco de cerâmica dentro do bolso do meu casaco. — E aí? — Meg pergunta quando eu me viro para pegar a rua de Lacy. Com o rosto vermelho de tanto chorar, Lacy fala em voz baixa: — Eu conto a vocês quando chegarmos lá. Preciso mostrar uma coisa. A casa de Lacy está vazia, exceto pelo gato listrado e gordo que se espreguiça no alto da escada. Lacy o tira do caminho com o pé. — Eu disse aos meus pais que estou com dor de cabeça. Eles estão tão acostumados a me ouvir falando isso que nem perguntaram mais nada. Esta é a primeira vez que entro no quarto de Lacy. Cercada de laços, tecidos fofos e felpudos e vários tons de cor-de-rosa, eu me sinto como se tivesse enfiado a cabeça numa máquina de algodãodoce. Tão logo nos acomodamos, Lacy começa a chorar outra vez. Meg a abraça: — Ah, Lacy. Sabemos que você está triste por causa do Dino. Mas se não parar de chorar vai ter outra dor de cabeça. — Eu não estou chorando por causa do Dino. Estou chorando por causa do Chad! Escrevi
para ele de novo, como você disse. — Ela me lançou um olhar acusatório. — Ele ainda não tinha me respondido. Então continuei mandando e-mails, tipo, um milhão de vezes. Então, na noite passada — Lacy pega um maço de papéis na escrivaninha — eu recebi isto. Ela estende a primeira folha. Nós nos aproximamos para ler a mensagem: Oi, fofa, desculpe não ter respondido aos seus e-mails. Uns caras e eu conseguimos alguns dias de folga e fomos para Xangai. Não se preocupe, penso em você a cada segundo! Vou ler todos os seus e-mails e voltarei para você o mais rápido possível. Com amor, Chad. — Mas isso é ótimo! — exclama Meg. — Significa que ele não abandonou você. — Espere pra ver. — Lacy estende a segunda folha para nós. — Este chegou esta manhã. Nada de “oi, fofa” desta vez. Em vez disso: “Bem, finalmente acabei de ler os seus últimos 39 emails. Preciso dizer que estou feliz de ter descoberto AGORA que você é uma louca, antes de ter cometido a estupidez de me CASAR com você. Tem certeza de que esse filho é meu? Eu quero uma prova — porque você é DOENTE! Precisa de um psiquiatra! Será que sou a única pessoa que já te disse isso? Nem posso acreditar que estou escrevendo isso. Tudo o que eu posso dizer é: NUNCA MAIS me procure. Só para você saber, eu avisei meu superior sobre os seus e-mails e ele me disse que vai notificar a sua família, caso você me escreva outra vez. P.S. Fique com a porcaria do anel de noivado. — O quê? — exclama Meg. — Você escreveu 39 e-mails pra ele? E o que disse? Lacy, com o rosto contraído de angústia, estende-nos o resto dos papéis, com exceção de um. Nós os passamos umas para as outras e o conteúdo é dramático: Lacy implorando que Chad lhe responda, exigindo saber da passagem de avião, rogando para que ele lhe diga se ainda a ama ou não. Nada tão horrível a ponto de ele achar que ela é “doente” — só possessiva, desvairada e um tanto irritante. — Cara! — suspira Tasha. — Acho que ele está exagerando. Em vez de reagir, Lacy simplesmente nos passa a última folha. — Isso é de quarta-feira. Foi a última vez que escrevi para ele. Seu filho da puta! Como ousa ignorar os meus e-mails? O que você está fazendo aí? Trepando com alguma puta japonesa? Bem, saiba que eu tenho um NOVO namorado e ele é mais gostoso do que você JAMAIS FOI! Acredite, eu sei porque transo com ele HÁ ANOS! Aliás, se você acha que este bebê é seu, pense bem, idiota! Eu não estou nem aí se você pular na frente de um trem! Queria que estivesse morto! ODEIO VOCÊ, SEU FILHO DA PUTA! Adeus! Sem fala, passamos a folha umas para as outras. Então Meg arrisca: — Mas por que você escreveu isso? — Eu não escrevi! Quer dizer, eu sei que realmente escrevi para ele naquela noite. Mas o que eu disse foi mais ou menos a mesma coisa que eu tinha dito nos outros e-mails. Mas foi este — ela bate com o dedo no papel — que ele recebeu. — Ela endireita a coluna, rígida de suspeita. — Não foram
vocês que fizeram isso, foram, garotas? Quer dizer, Meg tem a minha senha e... Meg arqueja. — Eu nunca faria isso! Nenhuma de nós faria. Lacy reclina contra a cabeceira de vime cor-de-rosa da sua cama. — Eu sei. Mas eu tinha que perguntar. E continuo tentando descobrir como isso aconteceu. Mas é o meu endereço de e-mail, certo? E está na minha caixa de e-mails enviados, então sei que fui eu que enviei, eu só não sei por quê! Juro por Deus que não me lembro de ter feito isso. — Ela chora mais, suas palavras mal saem coerentes. — Eu tive uma dor de cabeça, naquela noite, a pior de todas. Estava tão mal que só queria morrer! E agora eu espero morrer de fato. Porque não posso perder Chad. Prefiro morrer! — Não diga uma coisa dessas — implora Meg. — Você tem que pensar no bebê. Lacy não consegue ou não quer responder. Por um minuto ou dois, tudo o que ouvimos são seus soluços histéricos. Eu arranco um punhado de lenços de papel de uma caixa com capa de crochê cor-de-rosa e entrego a ela. — Você está certa — ela fala em meio às lágrimas, enxugando o rosto. — Eu realmente amo o meu bebê. Ele é tudo que eu tenho. — Vai ficar tudo bem — Meg diz com doçura. — Nós vamos até fazer um chá de bebê. E vamos ajudar você a cuidar dele e tudo mais! Os olhos de Lacy brilham. — Vocês vão? — Claro. Você apenas tem que, sabe, contar aos seus pais, Lacy. — Aimeudeus, eles vão me matar! Eu prefiro me matar. — Ela afasta Meg. — Me deixem sozinha, todas vocês! Vão... vão embora... — Você não pode dizer que quer se matar e então esperar que a gente vá embora — Tasha argumenta. — Ah, eu posso, sim! — A raiva inesperada de Lacy me paralisa. — Eu acho que só vou ter que esperar até vocês não estarem por perto. Meg ignora o que ela disse. — Você não quer morrer. — Não, mesmo — Tasha concorda. — Nenhum cara vale isso. Como se estivesse muito distante dali, eu me ouço dizer: — Talvez ela queira, sim. Três rostos atordoados se voltam na minha direção. — Você enlouqueceu? — exclama Meg. Eu olho para os belos olhos úmidos de Lacy.
— Eu sei que você se sente como se quisesse morrer. Mas não tente fazer isso. Porque, se não conseguir, Lacy, tudo vai ficar ainda pior. Eu abaixo a minha gola para mostrar a cicatriz sobre a qual elas foram muito educadas, ou estavam com muito medo, para perguntar. — Confie em mim — digo em voz baixa. — Eu sei.
— Abre! — Eu tentei me desviar de Frank para abrir o caixão eu mesma. — Abre! Por favor, eu tenho que ver como ela está! — Eu queria ver por mim mesma que Nana não tinha queimado até a morte, não tinha ficado lá, gritando, enquanto as chamas devoravam a sua carne. Frank me empurrou para longe, com os olhos cheios de ódio. Ninguém jamais tinha olhado para mim daquele jeito. Ninguém jamais olhou para mim assim depois daquele dia. — Vá pro inferno e pra longe dela! O choque me deixou paralisada. Minha mãe deu um passo para a frente com um som estrangulado — e foi nesse momento que eu me senti atingindo aquele plano. O mesmo plano, agora eu sei, que Cecilia procura sempre que está presa num espaço fechado, sem esperança de fugir. Encolhida em segurança onde ninguém mais poderia me alcançar, eu assisti à cena que se desenrolava mais abaixo. Minha mãe, num vestido preto sem mangas, com um coque elegante, enxugando os olhos. Frank, de terno e gravata, o rabo de cavalo e a barba aparados com capricho, parecendo um velho angustiado. Eu vi a mim mesma, também, de shorts e sandálias e uma blusa laranja suja, sem o vistoso traje preto que a minha mãe havia trazido para casa de uma luxuosa loja de departamentos. Meu cabelo, sem lavar havia mais de um dia, cheirava a fumaça e água salgada e brilhava com a areia. Eu via, constrangida, como as pessoas ao meu redor me olhavam. Porque elas já suspeitavam que tinha sido eu a responsável por Nana estar naquele caixão cheio de flores? Porque elas sabiam da minha fama de ser grosseira e imprevisível? Ou porque eu estava imunda e, provavelmente, também fedia? Eu não conseguia distinguir o murmúrio dos presentes das vozes na minha cabeça. A boa Voz me tranquilizava. A ruim zombava de mim. Afastei-me dos meus pais. Como se andasse sobre uma esponja, minhas sandálias afundavam no chão a cada passo desajeitado que eu dava. As pessoas sorriam, suspeitando que eu estivesse drogada, mas eu tinha que passar. Somente o movimento constante me protegia da pior das Vozes. Eu abria caminho entre as pessoas, estranhamente alerta, embora já estivesse havia três dias
sem dormir — algo bem típico, no que me dizia respeito. Eu gostava de passear pelas ruas ou na praia a noite toda. Sabia onde ficava o bando de drogados, quem dividiria comigo um cigarro de maconha ou uma cerveja. Eu sabia quem era seguro. E também sabia quem poderia me machucar. Se os policiais me pegassem desobedecendo ao toque de recolher — ou fazendo coisa pior —, Frank normalmente os convencia a deixá-lo me levar para casa ou de volta para o hospital, para outra “avaliação”. Eu não tinha amigos, apenas caras com quem dormia em troca de alguma droga. Não tinha amigas, também. A última eu tinha perdido porque eu arrombara a porta dos fundos e ficara na casa dela durante dois dias enquanto ela e a família estavam de férias nas Bahamas. E perdi a anterior porque a traí com o namorado dela. Eu nem me lembro por que fiquei com ele. Eu praticamente odiava o cara. Até hoje não me lembro de um monte de coisas. Lembro-me da praia, e de ver a fumaça na casa de Nana. Lembro-me de perguntar a Frank sobre o piano e da sua fúria incontrolável. Lembro-me de todos os psiquiatras. Todos os comprimidos que joguei na privada. Todas as vezes em que mamãe me implorou para tomá-los. “Rinn, por favor, tome os comprimidos!” Mas os comprimidos me deixavam muito grogue. E, como eu disse a Nate, eu sentia falta das minhas crises. Sentia falta de me sentir invencível. Às vezes eu sentia falta até dos vultos e das Vozes, os únicos amigos que me restavam quando até meus professores começaram a manter distância. Se você é forçado a viver a sua vida em um estado de estupor solitário, então me diga: para que continuar vivendo? No funeral de Nana, eu estava tomando os comprimidos. Frank fez questão de garantir isso. Embora os que ele tenha me feito engolir não tenham silenciado as Vozes, me fizeram entender que Nana estava morta, que o funeral era real, e que eu, Corinne Katherine Jacobs, era responsável por tudo aquilo. Por fora eu estava entorpecida, mas por dentro estava desesperada como uma cobra tentando se livrar de uma pele de vidro. Eu tinha que sair dali. Roubei o celular da minha mãe da bolsa dela, me escondi num cubículo do banheiro e chamei um táxi. Naquele exato momento, várias mulheres entraram no banheiro. Isso foi o que eu ouvi: ... eles precisam trancar essa garota e jogar a chave fora. Monica nunca vai concordar com isso. Pobre Frank. E pensar que ele criava essa garota como se fosse filha dele. Você a ouviu gritando lá fora? Aposto que ele está querendo cortar a própria garganta.
Ou a dela. (Risos.) Aquela garota não bate bem. Não existem lugares para trancar adolescentes como ela? Claro que sim. E é melhor que Monica cuide disso antes que acabem todos mortos. As descargas foram acionadas e depois os secadores automáticos abafaram a conversa. Mas, quando os motores pararam, as mulheres saíram do banheiro. Sozinha novamente, eu joguei com força o telefone dentro da privada, espalhando água. E é melhor que Monica cuide disso antes que acabem todos mortos. Abalada e com o corpo todo trêmulo, eu vaguei, perdida, por ali, como se estivesse chapinhando numa lama invisível, e pensando: Então é assim que eles querem que eu viva. Pisando em ovos. Apavorada com a possibilidade de assassinar o resto da minha família? No andar de baixo, os funcionários do buffet andavam de um lado para o outro, arrumando as carnes, picles e pães para o almoço. As facas de pão pareciam bem afiadas. As Vozes trovejavam como as ondas na praia de Nana, as palavras chegavam abafadas, mas perfeitamente claras. Eu sabia o que fazer. Mas não havia nenhum lugar reservado para onde eu pudesse ir. Então eu saí e cheguei em casa arrastando as sandálias, queimada do sol e exausta. A casa fria tinha um cheiro desconhecido, como se fosse o lar de estranhos. O calor irradiava das luzes, acentuando a minha visão dupla. O telefone tocou, afugentando os vultos das paredes. — Tudo bem — eu disse a eles e para mim mesma. Na escrivaninha de Frank, escrevi um bilhete e coloquei ao lado de um porta-retrato com uma foto minha. O telefone tocou outra vez e outra vez e outra vez. Então parou. A calma desceu sobre mim. Tudo bem. Tudo bem. Eu abri uma embalagem de lâminas de barbear de Frank. Enchi a banheira da suíte principal e liguei a hidromassagem. Morrer na praia podia ser bom. Deitar na areia e sentir o vento salgado enquanto o sangue escorria na areia quente. Mas era tarde demais para isso. Eu já estava ali. Entrei na água de blusa e shorts. Na TV, as pessoas fazem isso nuas, mas eu não podia me arriscar, pois Frank podia me encontrar primeiro. A lâmina brilhou na minha mão, surpreendentemente estável. Aquelas mulheres do banheiro devem ter me seguido até em casa; elas estavam em círculo em volta da banheira, repetindo as mesmas palavras verdadeiras: Pobre Frank. E pensar que ele criava essa garota como se fosse filha dele. Aposto que ele está querendo cortar a própria garganta.
Ou a dela. Alheia a tudo, sussurrei para Frank: — Vou te poupar desse incômodo. Eu estiquei o braço e enterrei a lâmina de barbear no meu pescoço. Foi mais fácil do que eu pensava. Foi como cortar uma pera não totalmente madura. Você realmente precisa morrer, Rinn. Você realmente precisa. Está tudo bem. Eu forcei a lâmina para baixo. Não senti nenhuma dor. Então inclinei a cabeça para um lado e observei a água ficando vermelha.
— Minha mãe me encontrou, não Frank. Acho que ela nunca vai superar isso. Fiquei num hospital psiquiátrico durante um mês. Toda a minha família pirou. É isso que você quer? — pergunto a Lacy. Lacy não diz nada, só fica olhando para o próprio colo. — A gente se perguntava onde você teria conseguido essa cicatriz — Tasha confessa. — Minha mãe disse para não perguntar. Meg pega a minha mão. — Não vamos contar nada pra ninguém. Certo? — Certo! — Tasha pousa a mão sobre a de Meg. — E você? Quer dizer, qual foi o diagnóstico? — Sou bipolar — admito. Tasha assente. — Ah, isso é muito comum agora. É como autismo, né? Escandalizada, Meg protesta: — Você nunca pensa antes de abrir a boca? Eu sorrio, de qualquer maneira. — Tudo bem. Acho bom que agora vocês saibam. — Embora não tenha tanta certeza quanto a Lacy. — É muito difícil guardar um segredo. — Nate sabe? — Meg pergunta. — Sim. E ele ainda gosta de mim, mesmo assim. — Dã! — caçoa Tasha. — Nem precisava dizer. Meu sorriso se expande. Elas realmente não se importam. Mas será que posso confiar nelas? Ter certeza de que não vão dizer nada na escola? Qual é a chance de o meu segredo ficar trancado a sete chaves com, digamos, Lacy? Eu olho para Lacy. Ela ainda não disse uma palavra. Será que está brava comigo porque desviei a atenção do seu drama? Não era a minha intenção. Eu só queria que ela soubesse que se matar
não é tão simples quanto se pensa. Lacy respira fundo. Mas, em vez de falar, ela se dobra para a frente, com o rosto contorcido. Antes que qualquer uma de nós possa perguntar o que há de errado, eu vejo sangue manchando o seu jeans.
Estamos encolhidas dentro de casa, em meio a uma borrasca, enquanto o carro dos Kessler desaparece na esquina. Meg e eu ficamos com Lacy, enquanto Tasha corre para a casa dos Barton para buscar os pais de Lacy. Lacy implorou para que escondêssemos os e-mails impressos. Eu os coloquei na minha bolsa enquanto Meg, em pânico, deletava toda a caixa de e-mails de Lacy. Quando os pais de Lacy irrompem na sala, seu estado de choque dura aproximadamente cinco segundos. Então o reverendo Kessler coloca Lacy, choramingando, dentro do carro, acabando com a minha ideia de chamar uma ambulância. A sra. Kesser nos avisa, muito mais do que pede: “Não digam uma palavra sobre isso a ninguém!”, antes de voar atrás do marido e da filha. — Tudo o que importa é o que as outras pessoas pensam — diz Tasha agora. — Aposto que ela vai voltar para casa e costurar um “A” na roupa de baixo de Lacy, como no filme A Letra Escarlate. Lágrimas umedecem os seus cílios escuros. Isso me surpreende; Tasha é a primeira a repreender Lacy sempre que ela faz algum drama. — E ela acabou de dizer que o bebê era tudo o que lhe restava — continua Tasha. — Deus, como isso pôde acontecer? As lágrimas escorrem pelo rosto de Meg. — É culpa minha. Lembram? Eu caí sobre ela aquele dia. — Isso já faz um tempão — eu argumento, esperando estar certa. — Já teria acontecido antes. — Quando dou um passo para abraçá-la, Meg se esquiva para mais perto de Tasha. Magoada, eu acrescento sem pensar: — Meg, essas coisas acontecem. Não é culpa sua. — É, sim. Eu nunca deveria ter participado das acrobacias aquele dia. Eu sabia que estava doente. Sabia que estava com tontura! — Chega! — exige Tasha. — Rinn está certa. Foi um acidente. — Estremecendo ao sentir um golpe de vento, ela gesticula para nós. — Anda, está congelando aqui. A minha mãe fechou o restaurante hoje. Vamos atacar a cozinha.
No restaurante, com a placa “FECHADO” na porta, cercada de calor e do aroma de café quente, eu digo de repente:
— Eu acho que é Annaliese. Tasha franze a testa. — Mais histórias de fantasmas. Ai, não! — Esqueça — diz Meg, melancólica. — Não estou no clima. — Você começou. Lembra? No saguão, outro dia? — Começou o quê? — pergunta Tasha. Eu aponto para as mãos de Meg, que está brincando com as orelhas como de costume. — Viu? — eu digo a Tasha. E então eu conto tudo o que Nate tinha me dito na outra noite. — E eu ouvi sobre o professor alcoólatra e sobre o gato de Lindsay McCormick. — Eu ouvi que ela é que matou o gato — graceja Tasha. — Provavelmente comeu ele também. Eu olho para Meg. — Se os seus ouvidos deixaram você com vertigem e foi por isso que caiu da pirâmide, a enxaqueca de Lacy não pode ter feito com que ela escrevesse a carta? — Isso é bobagem — contesta Meg, pouco à vontade. — Você sabe que alguma coisa está acontecendo aqui. Você mesma disse isso! Tasha olha para ela. — Espere aí! O que está acontecendo aqui? Meg a ignora, repreendendo-me em vez disso. — Sim, e agora eu lamento ter aberto a boca! Eu devia saber que você ia abrir o bico! Meu Deus, Rinn! Você não consegue guardar um segredo? Eu fico vermelha. — Contar a Cecilia sobre Lacy foi um erro. Mas temos que contar isso a Tasha porque ela estava lá, na sessão. Ela tem o direito de saber, no caso de... — eu paro, com medo que dê azar colocar a ideia em palavras. Tasha percebe. — No caso de algo acontecer comigo? Mas eu estou bem. Assim como você e Jared. — Jared caiu de paraquedas nesta história — eu digo. — E você não — rebate Meg friamente. — Pelo menos não até ficar obcecada com essa história. Sua expressão cansada me dá nos nervos. — Que seja. — Eu cruzo os braços sobre o balcão e descanso o queixo neles. Estou farta de ter que ficar me defendendo. — Escuta, Rinn. — Meg dá um tapinha no meu ombro, num gesto de conciliação. — É você quem mora na casa de Annaliese, não é? Se ela quer tanto assombrar alguém, por que não faz isso com você? — Porque ela se afogou na escola. As pessoas não assombram os lugares onde morreram? — Eu
penso no chalé em chamas de Nana. Será que o fantasma dela está assombrando o chalé? A praia? Ou Nana simplesmente... foi embora? O café está pronto. Tasha coloca três canecas na mesa. — Nos filmes, talvez. Se a pessoa teve morte violenta. — Ou — Meg acrescenta suavemente — se ela tem questões inacabadas. Eu observo Tasha sacudindo a garrafa térmica e depois enchendo as três canecas com café fumegante. As “questões inacabadas” de Meg pairam no ar como o aroma de torradas queimadas. Ela fita a parede, as mãos tampando os ouvidos. Tenho a sensação de dedos gelados na minha nuca. Tem alguma coisa errada com ela. E não são só os ouvidos. — Meninas, vocês querem algo para comer? — Tasha pergunta. Eu recuso com a cabeça. — Meg? — Como a garota continua muda, Tasha bate a mão no balcão. — Ei, você está surda? Meg tem um sobressalto. — O quê? Ah, meu Deus, isso é exatamente o que eu fazia quando estava ouvindo as Vozes. Os dedos gelados dançam agora mais rápido e freneticamente. — Eu disse que... — Tasha começa com enorme paciência. — Não esquenta! — Meg desliza abruptamente para fora do banco. — Vou pra casa. — Por quê? — Tasha e eu perguntamos. — Eu disse a vocês, meus ouvidos estão me matando! Eu quase não consigo nem ouvir o que estão dizendo. — Agitada, ela veste o casaco. — E sabem o que mais? Dino está morto, Lacy perdeu o bebê e Jared terminou comigo — e vocês duas ficam aqui falando em fantasmas! DEUS DO CÉU! — ela grita enquanto bate a porta do restaurante. — Jared terminou com ela? — eu repito para Tasha. — É isso aí. E nem contou a ela por que ele estava com raiva. Ou se estava com raiva. — Sacanagem... — digo, pensativa. Eu devia ter falado com Jared na primeira chance que tive. Pensando bem, ele de fato começou a evitar Meg depois da nossa sessão. Será que ficou constrangido por ela saber que ele era um covarde? Ou seria por causa de outra coisa? Tasha contorna o balcão e se senta no lugar onde estava Meg. — Ei, sabe aquilo que ela tem nos ouvidos, que não param de apitar? Eu pesquisei. Chama-se tinido. Eu reconheço a palavra. — É, roqueiros têm isso de tanto ouvir música em volume alto. — E pessoas idosas quando começam a ficar surdas. Nadadores também. — Ela faz uma careta.
— Bom saber que corro o risco de passar por isso. — O que se pode fazer para tratar? — Depende do que está causando. Ela vai ao médico amanhã. Espero que consiga aquele atestado para que a babaca da treinadora a deixe voltar à equipe, ou todas nós vamos sofrer com isso até o final do ano. Eu olho para as canecas intocadas. O vento sacode as janelas do restaurante e o granizo bate no vidro como punhados de arroz. Está quase escuro; os globos amarelos dos postes da rua se acendem todos de uma vez. — Você nunca fica curiosa para saber sobre ela? Annaliese? Tasha hesita. — Às vezes. — Minha mãe não fala sobre ela. — Nem a minha. — Você não acha isso estranho? — Acho, considerando quanto elas conversam sobre tudo. — Tasha dá uma risadinha fraca e depois bate no meu ombro. — Venha pra casa comigo. Tenho algo pra te mostrar.
Na casa dos Lux, a uma quadra do restaurante, Tasha abre uma porta que dá para um pequeno gabinete de trabalho. — “O quarto das bagunças”, como a minha mãe diz, abarrotado de décadas de lembranças. Juro que ela está se transformando numa acumuladora. Nunca joga nada fora. Enquanto eu me pergunto por que ela me arrastou até ali — não para ajudar a limpar, espero —, Tasha vasculha o cômodo até achar uma caixa grande na qual está escrito “COISAS DO COLEGIAL”. Dentro há anuários, álbuns de recortes, cadernos e álbuns de fotos. Encontro até um uniforme de líder de torcida. E dentro de um saco plástico. — Quer saber sobre Annaliese? — A cabeça de Tasha desaparece quando ela mergulha dentro da caixa. Sai de lá com uma linha presa no cabelo e um álbum de recortes na mão. — Dá uma olhada nisso. Recortes de jornal, todos em ordem cronológica. Para saber a história de Annaliese basta ler as manchetes, cada uma delas composta de dez palavras ou menos: MORTE DE GAROTA DA REGIÃO INTRIGA A TRANQUILA COMUNIDADE JUIZ AFIRMA QUE MORTE POR AFOGAMENTO FOI ACIDENTAL DEZENAS COMPARECEM À VIGÍLIA COM VELAS ANNALIESE GIBBONS É LEMBRADA COMO UMA MENINA “TÍMIDA E
AMOROSA” INFELIZMENTE, NINGUÉM TESTEMUNHA ÚLTIMOS MOMENTOS DE ANNALIESE “COMO ISSO PÔDE ACONTECER?” AVÓ EXIGE RESPOSTAS POLÍCIA CONCORDA: A MORTE DE GIBBONS É TRÁGICA, MAS NÃO É SUSPEITA AVÓ DA VÍTIMA DE AFOGAMENTO AMEAÇA PROCESSAR A ESCOLA DIRETORIA DO COLÉGIO RIVER HILLS É PRESSIONADA PARA FECHAR PISCINA Esses artigos foram publicados no ano em que Annaliese morreu. Um dos últimos anuncia que a diretoria da escola resolveu esvaziar a piscina, alegando “falta de fundos para a manutenção” e “relutância dos alunos em nadar na piscina onde a colega faleceu”. — A avó de Annaliese moveu uma ação judicial — diz Tasha, numa voz monótona. — Então, adeus, piscina. Eu faço um gesto para a montanha de lembranças. — Não posso acreditar que ela guarda tudo isso. Minha mãe jogou tudo fora, até os anuários. Tasha bufa. — Ela só guarda isso para se lembrar quanto era popular e poder jogar isso na minha cara sempre que tem uma chance. Eu continuo a folhear o livro de recortes, lendo os artigos posteriores: ANNALIESE GIBBONS: DEZ ANOS DEPOIS DIRETORIA DA ESCOLA DECIDE POR VOTAÇÃO O DESTINO DA PISCINA VÂNDALOS INVADEM A PISCINA DUAS VEZES EM DUAS SEMANAS DEPOIS DE ANNALIESE, PRÓXIMA GERAÇÃO QUER SABER: A PISCINA É ASSOMBRADA? Então, um último artigo é publicado alguns meses atrás: CENTRO MULTIMÍDIA ULTRAMODERNO SERÁ CONSTRUÍDO NO LOCAL DA PISCINA — Isso aqui é demais! — eu murmuro. — Pode levar o álbum. Leve os anuários também. — Sua mãe não vai dar falta deles? Ela faz um gesto largo abrangendo toda a bagunça ao redor. — Está me gozando?
— Eu estava a ponto de mandar a polícia atrás de você! — exclama a minha mãe enquanto eu bato as botas no chão para tirar a neve, no saguão da entrada. — Fui à casa de Lacy com Meg e Tasha. Nate não falou? — Ele falou. Mas você mesma poderia ter me avisado. — Ela primeiro olha as minhas meias, úmidas por causa da neve. Então olha para a pilha de anuários. — O que é isso? — Coisas da Tasha. — Abraçada aos anuários, passo por ela e corro para a escada. — Espere aí! — ela me chama. — Não quer conversar sobre hoje? Eu finjo não ouvir. Não, eu não quero falar sobre Dino. Nem quero contar a ela sobre o que aconteceu a Lacy. Não por causa do que a sra. Kessler nos disse. Só não estou no clima. Principalmente, não quero que ela veja o que Tasha me deu. Eu tenho um palpite de que ela não ia gostar que eu vasculhasse o seu passado. Antes de hoje à noite, eu nunca tinha pensado muito no fato de ela ter jogado fora todas as suas lembranças do colegial. É verdade que minha mãe tem mania de limpeza. Mas a maioria das pessoas não guarda seus anuários da escola? Ou será que ela tem muitas lembranças ruins... talvez lembranças do meu pai? O Colégio River Hills é minúsculo se comparado à minha escola da Califórnia. Os magros anuários são uma prova disso. Minha mãe, é claro, aparece impecável em todas as fotos. Como será acordar perfeita toda manhã? Eu acordo com o cabelo oleoso e desgrenhado. Na verdade, eu penso muito pouco no meu pai biológico. E como mamãe ficou grávida depois de deixar a cidade, duvido que eu o encontre em algum desses anuários. Tudo o que eu sei é que os pais dele eram mexicanos e que seu primeiro nome era impronunciável, por isso mamãe só o chamava de “Jay”, para facilitar. Eu me pergunto: será que Jay acorda com o cabelo oleoso e desgrenhado como eu? Come cereais no café da manhã? Adora cavalos? Pintaria seu quarto de cinza? Tem dentes tortos como eu? Será que ele tinha alguma doença mental? Será que eu herdei isso dele, como os dentes tortos e o cabelo preto? Só por precaução, verifico cuidadosamente todas as páginas dos anuários, em busca de garotos de aparência latina, mas todos os nomes começando com J são comuns, decididamente não étnicos: John, Joshua, James e Joseph... como em Joseph Mancini, que parece muito atraente numa foto do quarto ano, num estilo Al Pacino/mafioso hollywoodiano. Eu fecho o livro, horrorizada com os meus pensamentos estranhos sobre o pai de Dino. Depois de respirar fundo, pego os outros anuários. Lá está o pai de Nate, uma versão mais jovem de Nate em seu último ano. Atraente de um jeito rude. Nada de dentes tortos. A foto granulada de Annaliese no jornal não lhe faz justiça. Nas fotos em cores do anuário eu vejo que seu cabelo é comprido e castanho, os olhos de um azul pálido. Na foto do segundo ano,
ela tem um leve sorriso no rosto. Na foto do terceiro ano, o ano em que ela morreu, o sorriso tinha desaparecido. Essa foto está marcada com um grande X em vermelho, e alguém escreveu “MOCREIA” na margem. — Que bonito, Millie! — eu murmuro. — O que ela fez a você? Eu ouço os passos da minha mãe na escada. Rapidamente cubro os anuários com as cobertas da cama. Sei que mamãe vai surtar se descobrir o livro de recortes de Annaliese. Vai dizer que o meu interesse por ela é nocivo, mórbido, e que ver esses anuários vai me provocar pesadelos. O que pode ser verdade. Eu chego ao topo da escada bem a tempo de bloquear a entrada da minha mãe no meu quarto. — Estou me preparando pra dormir — eu minto, tirando o suéter pela cabeça. — Você está bem? Achei que tinha ouvido você falar com alguém. Talvez ela ache que estou escondendo Nate no meu quarto. Deus, bem que eu queria... — Não, só estava falando sozinha. No bom sentido — acrescento rápido, tirando a saia. Tentando parecer decente com a camiseta que visto debaixo da roupa, a meia-calça e a calcinha, sustento o seu olhar. — Será que posso ter um pouco de privacidade, por favor? — Rinn, eu não vejo você desde hoje de manhã. Eu acho que devemos conversar. — Estou cansada. Não pode ser amanhã? — Eu sei que foi um dia difícil pra você, querida. Não sei nem onde você esteve. — Eu te disse onde eu estava. — Eu vou tirando a meia-calça enquanto falo, depois a chuto para dentro do quarto. Isso me deixa só com a roupa de baixo. Minha mãe ainda não saiu do lugar. — Mãe, por favor. Eu só não queria ficar lá, vendo pessoas chorando o dia inteiro. Nenhuma de nós queria. Então eu simplesmente fui embora. Minha mãe não parece convencida. — Tudo bem. Então a gente conversa amanhã. Quando ela hesita, eu cruzo os braços e pego a bainha da minha camiseta. Ela capta a mensagem e começa a descer as escadas, relutante. Talvez eu deva trocar de quarto. Uma porta de verdade viria a calhar. De preferência com fechadura.
4 MESES + 5 DIAS Segunda-feira, 10 de novembro
Não consigo dormir. Fico pensando em Dino, pensando que fui a última a vê-lo e que ninguém sabe disso porque fiquei com medo de dizer. E Bennie me viu saindo do túnel aquele dia. E se ele achar que eu tenho alguma coisa a ver com a morte dele? Quando não estou pensando em Dino, eu penso em Lacy. Por que ela teria escrito aquele e-mail abominável para Chad? Será que ela é sonâmbula? Ou estava simplesmente furiosa porque ele não respondia aos e-mails, então resolveu esculachar com ele e depois mentir sobre isso? Eu não acho que ela tenha mentido. Eu acredito nela. TODAS nós acreditamos nela. E quando não estou pensando em Dino e em Lacy, estou pensando em Annaliese. São quatro da manhã. Eu desisto, acendo o abajur e abro o livro de recortes. O artigo ANNALIESE GIBBONS: DEZ ANOS DEPOIS apresenta, sob uma nova perspectiva, a história da colegial que foi encontrada morta na piscina, pela manhã, antes da aula de educação física. Testemunhas a viram entrando no auditório depois das aulas, mas ninguém a viu sair. Ninguém a viu novamente, até que ela fosse encontrada morta. Confusa, eu continuo a ler: DIRETORIA DA ESCOLA DECIDE POR VOTAÇÃO O DESTINO DA PISCINA — um artigo entediante dizendo que a piscina é perigosa, porque o telhado está em mau estado e que os alunos não querem nadar lá. VÂNDALOS INVADEM A PISCINA DUAS VEZES EM DUAS SEMANAS — adolescentes picham as paredes, quebram garrafas, fumam maconha e provavelmente têm relações sexuais. Como o regulamento dos bombeiros não permite que o diretor Solomon tranque o túnel, ele manda colocar uma cerca ao redor da piscina, um cadeado na porta e ameaça suspender os invasores. Ceeeerrrto. Como se isso adiantasse. DEPOIS DE ANNALIESE, PRÓXIMA GERAÇÃO QUER SABER: A PISCINA É ASSOMBRADA? Entrevistas com alunos que acreditam no “fantasma de Annaliese”: “Eu nunca pegava nem gripe, mas sinto Annaliese me observando e agora eu vivo vomitando!”, “É tão frio lá!”, “Tem um cheiro estranho às vezes”, “Não sei explicar, mas me dá calafrios”, “Eu tropecei à toa e quebrei o nariz!”
Por fim, escrito na última primavera: CENTRO MÍDIA ULTRAMODERNO SERÁ CONSTRUÍDO NO LOCAL DA PISCINA. Uma funcionária entrevistada disse: “ Temos sentimentos contraditórios. Sei que o local é inútil do jeito que está, mas uma criança morreu ali! Sabe, algumas pessoas acreditam que seu espírito está preso no lugar. Eu por acaso sou uma delas. E a avó de Annaliese, uma amiga querida, acredita também. Eu preferiria que construíssem ali um memorial”. O nome da funcionária me deixa em estado de choque: srta. Roz Prout, ex-secretária da escola. — Caraca! — exclamo em voz baixa. Talvez faça sentido que a sra. Gibbons acreditasse que o espírito de Annaliese estivesse por ali. Talvez isso a confortasse. Mas por que tantos adultos acreditam em fantasmas? Será que a srta. Prout viu ou sentiu alguma coisa? Será que é por isso que ela abandonou o emprego de repente? Eu encontro novamente a foto de Annaliese no terceiro ano. Ela está olhando para a câmera, sem sorrir. — Fantasmas não existem — eu digo a ela. — Você é uma piada, como todo mundo diz. Assim que eu viro a cabeça, seus olhos pálidos me seguem. — Você está morta, Annaliese. Entendeu? Você-não-existe! Quando eu começo a fechar o anuário, um nome salta diante dos meus olhos: Unger. Não Bennie, mas talvez seu irmão mais velho. Eu me lembro de quando minha mãe me disse que Bennie trabalhava na escola havia anos. Ele fica lá o tempo todo. Desde manhã bem cedo. E até bem depois que os alunos vão para casa. Se o fantasma de Annaliese de fato existe, será que Bennie saberia?
Eu conto à minha mãe sobre Lacy antes da escola. — Mas não diga nada a ninguém. A mãe dela quer manter segredo. — Talvez por estes lados eles apedrejem a pessoa até a morte ou coisa assim. — Se ela perdeu o bebê, Rinn, provavelmente foi melhor assim — diz minha mãe depois de um instante. — Lacy é jovem. Ela tem a vida toda pela frente. Pode acreditar, seria um desastre. Eu fico olhando para ela, sem saber direito como encarar esse seu sentimento tão pouco maternal. Será que ela se arrepende de ter me deixado nascer? Quando ela teve que abandonar a faculdade, será que me considerava um desastre? Ela nunca disse isso. Mas eu gostaria de saber se ela pensa assim.
Parece que metade dos alunos da escola tirou o dia para ficar em casa. Os corredores estão
silenciosos e quase vazios. Um psicólogo especialista em situações de perda, vindo de Kellersberg, passa o dia na lanchonete lendo Deepak Chopra. Meg, que faltou nas aulas pela manhã por causa da consulta médica, aparece na hora do almoço. — O que o médico disse? — Eu noto que ela está pálida. Meg fica olhando para a mesa. — Ele disse que não tem nada de errado com os meus ouvidos. — Como pode não ter? — pergunta Tasha. — Eu não sei, mas não tem! Por isso ele acha que é neurológico. Vou fazer um exame no sábado, uma ressonância ou algo assim. E ele não vai me dar um atestado médico para a treinadora Koenig, porque eu ainda sinto tonturas. — Meg dá um tapa na mesa. — Minha mãe contou a ele. Eu ia mentir, mas ela tinha que dar com a língua nos dentes! Lágrimas umedecem seus olhos. — Se ele não descobrir por quê, acho que vou acabar saindo da equipe. — Mas se você está com tonturas, Meg... — começo a dizer suavemente. — Como eu vou pleitear uma bolsa de estudos se nem estou numa equipe? Você acha que é loucura eu querer ser uma líder de torcida profissional? Para o Dallas Cowboys, por exemplo? — Bem, não — digo com sinceridade. — De qualquer forma, talvez esse zumbido seja passageiro. — É — concorda Tasha. — Talvez seja só uma virose. — Espero que sim. — Meg seca as lágrimas e tenta sorrir. — Eu adoro vocês, meninas. — Depois de um instante ela acrescenta: — Liguei para Lacy ontem. Hoje de manhã também. Ninguém atende na casa dela. — Eu também — diz Tasha. — Queria saber o que está acontecendo. Nós três caímos num silêncio incômodo pelo resto do intervalo. Tasha não diz nada sobre as regionais no final de semana e nem Meg menciona Dino. Elas comem seus lanches enquanto, através do tecido, eu remexo naquele pedaço de cerâmica que está no meu bolso. Depois de entregá-lo para mim, minha mãe não tocou mais no assunto. Se eu conversasse com ela sobre isso, será que ela diria que não é culpa minha? Porque ela é assim. Ela já disse “não é culpa sua” mais vezes do que eu posso contar. Mesmo quando era.
Por impulso, eu paro na secretaria depois do almoço. Minha mãe está em hora de almoço, eu sei. Também sei que Lindsay McCormick fica no lugar dela nesse horário. Hoje Lindsay está escondida atrás de um volume de Crepúsculo. Com um “Ai!”, ela pula como um hamster quando eu toco a campainha do balcão. — Você não precisa tocar a campainha quando eu estou sentada aqui!
— Desculpe — digo, sem sinceridade, porque acho engraçado. — A minha mãe está por aqui? — Ela está almoçando, como você bem sabe. — Posso te pedir uma coisa? — Não, eu não vou mexer no computador para mudar as suas notas. — Diante do meu olhar incrédulo, Lindsay explica: — Isso é o que os alunos costumam me pedir. — Sério? — É. — Lindsay relaxa. Eu me pergunto se ela se lembra de que eu sou a pessoa que ela chutou no jogo de futebol. — Às vezes eles até me oferecem dinheiro. Eu aponto para o livro. — É bom? — É. É o máximo. Quer emprestado? Já li duas vezes. — Obrigada. — Animada, eu o pego e finjo dar uma lida em algumas páginas. Lindsay volta a encarnar seu lado normal, babaca. — Bem? O que você quer? Eu abraço o livro. — Só queria fazer uma pergunta sobre uma coisa que eu ouvi. Sobre um gatinho que você trouxe para a escola. Ela solta um grunhido. — Não me diga que você acredita nessa mentira de que eu matei o gato. — Não. Eu só queria saber se isso realmente aconteceu. Sabe, eu sou nova aqui, né? E as pessoas às vezes, bem, tentam me assustar... Lindsay faz um muxoxo. — Talvez você esteja andando com as pessoas erradas. — Só me diga, sim ou não. O sorrisinho dela desaparece. Ela tira com o dente um pedacinho de cutícula da unha do polegar. — Sim. Ai, Deus. Ela está zoando comigo também. — Ele era tão bonitinho! Preto com as patinhas brancas. A treinadora Koenig queria vê-lo, então eu o trouxe bem cedo e peguei o túnel para ir ao vestiário. Ela brincou com ele, mas ele tinha pulgas, então ela mudou de ideia. E então eu o levei de volta pelo túnel — minha mãe estava esperando no carro para poder levá-lo para casa — e quando eu cheguei lá, ele estava morto. Eu mal consigo falar. — Vo-você acha que o túnel fez isso? — Bem, eu é que não fui — diz Lindsay, impaciente. — E a treinadora Koenig também não.
Então só resta uma pessoa. — Eu noto que ela evita falar o nome de Annaliese. — E você sabe como eu sei? Porque, quando eu olhei dentro da caixa e vi que ele não estava se mexendo, eu o peguei no colo. Eu o sacudi e tudo mais, mas ele estava mesmo morto. Mas... — Lindsay para e massageia os braços. — Mas o quê? — Ele já estava rígido, como se estivesse morto havia horas. Rígido e frio. Assim como todos aqueles ratos que a gente vive encontrando ultimamente. — Ela acena para o Crepúsculo, pressionado contra o meu peito. — Espero que goste do livro.
Eu estou tão assustada com essa história sinistra que não consigo pensar em mais nada pelo resto do dia. Eu ainda estou com ela na cabeça depois do sinal de saída, quando ouço vozes vindas da lanchonete. Sim, Jared está lá, sentado meio de lado, praticamente ignorando seus amigos detestáveis. Ele quase se levanta quando me vê me aproximando com cautela. — Ei — cumprimento. Ele responde ao meu cumprimento com a cabeça. Não me responde com um “ei”. Parece que quer correr dali. A névoa de testosterona atinge um nível crítico quando o resto dos caras nota a minha presença. As risadas explosivas e piadas sujas param de imediato. Eles cutucam uns aos outros com o cotovelo, chamando a atenção dos amigos. Eu baixo a voz. — Eu tenho que te perguntar uma coisa sobre... — Não quero pronunciar a palavra “sessão” — aquela noite. O olhar de alarme de Jared endurece e vira irritação. — Olha aqui, eu estou ocupado agora. — Ei, O’Malley! — grita um dos membros do seu time. — Seja gentil com a garota. Você nunca sabe quando vai precisar de uma trep... — Dá licença — eu digo para o cara, irritada. — Isso é particular. Quando digo isso, Jared pula da cadeira e me empurra para longe do outro. Uma vermelhidão aparece em seu pescoço e começa a subir para o rosto, contraído de raiva. — Eu disse que estou ocupado, então seja rápida. Esqueço os preâmbulos. — Você viu como eles ficaram, não foi? Na sessão. Você viu o que aconteceu com eles. — Eu não sei do que você está falando. — Mas seus olhos me fulminam. — Você viu — eu insisto. — Foi por isso que correu. — Eu agarro seu pulso quando ele se vira.
Um pulso grosso, frio e úmido ao toque. — Jared, tudo bem. Eu também vi. Eu só queria ter certeza... Jared franze as sobrancelhas avermelhadas de um jeito ameaçador. Então se inclina mais para perto. — É, eu vi. Estou contando a você, mas se disser uma palavra sobre isso eu vou negar, ok? — Ele puxa o pulso da minha mão. — Só fique longe de mim. Você e o resto daquelas malucas! Quando ele volta para os amigos, dois pensamentos me ocorrem ao mesmo tempo. Um: isso pode explicar por que ele rompeu com Meg — Será que está com medo dela? Acha que ela é maluca porque congelou na piscina? — e dois: essa é exatamente a prova de que eu precisava! O que aconteceu na piscina não foi uma pegadinha. Nem uma alucinação. Aconteceu exatamente do jeito que eu vi. Espero, inutilmente, sentir uma onda de alívio.
4 MESES + 9 DIAS Sexta-feira, 14 de novembro
No café da manhã, minha mãe conta que a mãe de Lacy ligou para a escola. Lacy vai ficar alguns dias sem ir às aulas por “questões de saúde”. Então ela coloca um ovo quente na mesa, na minha frente. Eu olho para o ovo ainda na casca, aninhado numa xicarazinha vermelho-rubi. Eu sei que xícara é essa. Nana me deu um conjunto de quatro xícaras no meu aniversário de 13 anos: “Para o seu enxoval, Rinnie”, como as pessoas faziam antigamente. Três quebraram. Essa é a última. Eu nem me lembrava de que a tinha trazido. — Ela está com parentes em outra cidade — acrescenta a minha mãe. — Por quê? — Não faço a mínima ideia. Preocupada e distraída, tento tirar a casca do ovo. Eu não gosto de ovo quente e não sei por que a minha mãe, de repente, resolveu cozinhar um ovo para mim. Acho que vou fingir que estou tirando a casca e, quando ela sair, jogo tudo na pia. Em silêncio, minha mãe passa uma esponja na pia enquanto eu brinco com pedacinhos de casca de ovo. Ela enxágua os dedos, pega um pano de prato e acena com a cabeça na direção do meu café da manhã intragável. — O que você está comendo? Eu finjo analisar meu ovo quente. — Humm. Parece um ovo quente para mim. — Você detesta ovo quente. Confusa, eu pergunto: — Então por que você fez pra mim? — Eu fiz? — Ela olha para o fogão, onde está uma panela com água quente. — Ora, ora. — Achando graça, ela acaricia meu cabelo despenteado. — Vejo você na escola. Eu jogo o ovo no lixo. Alguma coisa estranha está acontecendo.
— Você já perguntou ao seu pai sobre Annaliese? — eu digo a Nate a caminho da escola. — Perguntar o que a ele? — Bem, qualquer coisa. Ele a conheceu? Andavam juntos? Ele estava por perto quando ela morreu? Nate para de andar, mas não larga a minha mão. — Você não sabe falar de outra coisa? — Eu falo sobre outras coisas — protesto, me perguntando se isso é verdade. — Desculpe, mas então talvez você fale sobre isso 90% do tempo. Eu gesticulo com a mão livre. — Desculpe por estar tããão chata ultimamente. — Para, não faz isso. — O que eu estou fazendo? — Você está obsessiva. — Eu não estou obsessiva. Estou interessada. — Bem, eu gostaria que você esquecesse tudo isso. — Por quê? Eu não estou dando atenção suficiente a você? Nate cerra os dentes. Seu cabelo castanho levanta com uma rajada de vento ou talvez com a sua raiva. — Só estou cansado de ouvir você falando de Annaliese, Annaliese. Estou cansado de ouvir sobre fantasmas. Será que a gente não pode conversar sobre alguma coisa normal? — Normal? — É, normal. — Se você quer coisas normais, Nate — respondo, friamente — escolheu a garota errada. — Então disparo na frente dele.
Ai, mas que dia! Meg está em casa, doente. Tasha está a caminho de Cincinnati, para as regionais de amanhã. Cecilia está me ignorando outra vez. Além disso, eu me esqueci de fazer a lição de casa de história, porque — tenho que admitir — não conseguia tirar Annaliese da minha cabeça. Depois da educação física, quando todo mundo se junta para atravessar o túnel correndo, eu fico para trás pela primeira vez. Quando o eco das risadinhas histéricas diminui, fico vagando por ali, sozinha, seguindo na direção da entrada do túnel. É só um corredor idiota.
É assustador pensar que todos nós andamos por ali outro dia, sem saber que Dino estava do outro lado da parede, pendurado de cabeça para baixo, morto havia horas. Eu arquejo quando uma lâmpada chia e se apaga. Como disse Nate, essas lâmpadas vivem queimando. Fiação elétrica ruim, talvez. É uma surpresa que esse lugar não pegue... Nem pense nisso! Eu dou um passo na direção da piscina, tentando ignorar o ar gelado que penetra o meu suéter. — Annaliese? — murmuro através da fresta. O encanamento range. Eu ouço um barulho de algo raspando embaixo da porta. Outro rato? — Annaliese? — O barulho cessa. — Olá? Silêncio. Eu viro as costas. Não há nada ali, nada ali, nada ali... Meu tênis esquerdo gruda num chiclete que alguém jogou no chão. Os tijolinhos da parede passam num borrão enquanto eu ando rapidamente na direção da extremidade oposta do corredor, contando as lâmpadas queimadas: sete ao todo. Quando chego à porta da lanchonete e ouço o burburinho lá dentro, salto, alegre, para fora dali e pisco para a luz. Pronto — consegui! Engula ESSA, Annaliese!
Com o estômago contraído durante toda a manhã, graças ao episódio do ovo e à briga com Nate, decido esquecer o almoço e procurar Bennie Unger. Eu o encontro devorando um sanduíche no vestiário dos funcionários. — Eu conheço você — ele diz com a boca cheia de pão com mortadela. — Você é Corinne. — Como sabe o meu nome? — Eu conheço todo mundo aqui. — Ele abre uma garrafa térmica, pega dois comprimidos no bolso e os engole com o conteúdo da garrafa. O cheiro é de suco de tomate. — Eu tenho convulsões às vezes — ele explica. — Tomo remédio para não cair por aí. Eu me remexo, inquieta, esperando que ele não caia enquanto está comigo. Bennie tira o boné de tricô que exibe por aí o tempo todo e aponta para uma depressão na própria testa. — Eles tiraram um pedaço do meu cérebro. Eu estava consertando um telhado com meu irmão quando caí. Reprimindo um tremor, espero até que ele volte a pôr o boné. — Posso falar com você?
Bennie não parece surpreso. Na verdade, ele age como se esperasse que eu aparecesse ali hoje. Isso, por si só, já é assustadoramente estranho. Eu mal troquei cinco palavras com ele, desde que começaram as aulas. Não que eu seja uma maria vai com as outras, mas pega mal ficar andando por aí na companhia do zelador da escola. Eu vou direto ao ponto e explico tudo. Que Lacy me atacou ali. Que Meg e Cecilia sentiram aquele odor oleoso na garganta. Explico sobre a sessão espírita e a cera, e como todo mundo congelou. — Acho que alguma coisa aconteceu. Acho que... — Evocamos alguma coisa? — Você acha que vocês chamaram ela? — ele pergunta, muito prático. — Essa garota, Annaliese? — Você acredita nela. É por isso que nos disse aquele dia que “não havia ninguém ali naquele momento”. Certo, Bennie? — Metade de mim tem esperança de que ele diga “não”. Bennie percorre com os olhos o vestiário atravancado, como se estivesse procurando câmeras escondidas. — Isso não é nenhuma pegadinha, é? Eu não gosto que as pessoas riam de mim. Qualquer drama que eu tenha vivido nos últimos anos talvez não seja nada comparado com o que Bennie teve que enfrentar. — Estou falando sério, Bennie. Eu não vou rir. Bennie passa o peso do corpo para a outra perna. — Tudo bem. Eu nunca vi nada... mas ela está aqui, tenho certeza. Ela está aqui há muito tempo. Não foram vocês que chamaram essa garota. — Ele aponta um dedo para o meu nariz. — Mas vocês não tinham nada que estar lá, de qualquer jeito. — Como sabe que ela está aqui se você não vê nada? Bennie encolhe seus ombros desnivelados. — Assim como você. A gente simplesmente sabe. Mas a srta. Prout também me disse. — A srta. Prout? — repito. — É. Ela trazia o almoço e sentava ao lado da piscina todo dia. — Ele dá uma batidinha com orgulho no seu aro cheio de chaves. — Eu mesmo deixava ela entrar e limpava o lugar para ela sentar. Ela sempre dizia: “Obrigada, Bennie”. Ela com certeza gostava de paz e silêncio. Sentava na sua cadeira de dobrar, almoçava e lia um pouco. Então levantava e ia embora. Isso foi antes de ela ficar triste. — Triste por quê? Ele estala os dedos, um por um. — Ela costumava tomar remédio todo dia, assim como eu. Tomava com o café, na hora do almoço. Então um dia ela me disse: “Bennie, estou cansada de tomar esses comprimidos”. E, então, eu acho que ela não tomou mais.
— Que tipo de comprimido? — Bem, devia ser pra não ficar triste, porque depois ela não parecia mais feliz. Ela chorava às vezes. E andava em volta da piscina, só andava, andava e andava, como se não tivesse outro lugar para ir. Eu ouvia ela falar também. Conversar com Annaliese. — Ele puxa a aba do boné. — Acho que ela era uma dessas mulheres que veem coisas, com bolas de cristal ou coisa assim. Só que ela não tinha nenhuma bola de cristal. Extasiada, eu pergunto: — Ela era médium? — É, mas do tipo mais comum. Não tão talentosa quanto a sra. Gibbons. Ela vinha aqui também. A srta. Prout trouxe ela uma vez. Ainda bem que o sr. Solomon não soube. — Por que ela trouxe a sra. Gibbons? — Pra que ela pudesse invocar Annaliese, porque a sra. Gibbons sentia muita falta da neta. Ela era uma mulher muito triste também. Solitária mesmo. Eu medito sobre isso. Será que a srta. Prout acreditava que a avó podia se comunicar com Annaliese? Então ela trazia a sra. Gibbons para “visitar” a neta morta? Pergunto isso a Bennie. Ele só dá de ombros. — Aposto que sim. Mas foi só um pouco antes de a srta. Prout ir embora. Então a pobre sra. Gibbons... — ele faz um gesto vago com o braço, acima da cabeça. — Bennie, você sabe por que a srta. Prout deixou a cidade de repente? — Sei. Para que Annaliese não pudesse encontrar ela. — O que você quer dizer com en-encontrar ela? Bennie embrulha cuidadosamente os restos do seu sanduíche. — Como ela encontrou vocês, garotas. E como ela encontrou aquele menino, Dino. — Ele balança a cabeça, com tristeza. — Ele era malcriado, mas eu não queria que nada de mal acontecesse a ele. Não, nada como aquilo. O sinal do final do almoço toca e eu tenho que ir para a aula de inglês, mas algo ainda me incomoda. — Você disse que a srta. Prout te “contou” sobre Annaliese. O que ela disse, Bennie? Exatamente? Bennie franze o cenho, como se estivesse se esforçando para lembrar. — Ah! — Seus olhos se iluminam. — Ela disse: “Não deixe de tomar o seu remédio, Bennie”. — Por que ela disse isso? Bennie dá um sorriso largo. — Porque assim eu não vejo nada. E Annaliese não pode me pegar.
Nate e eu fizemos as pazes depois da aula. Eu me desculpei por ter me irritado com ele. Ele se desculpou por ter sido rude e por não ser mais compreensivo com relação à minha fixação com Annaliese. Então ele me convidou para ir à casa dele para fazermos a lição de casa. Reparei que Luke e minha mãe estavam passando mais tempo juntos também. Hoje à noite, na verdade, eles estão jantando num restaurante chique em Kellersberg. Nate e eu evitamos esse assunto enquanto ele faz com capricho o seu trabalho de alemão e eu suo rios de sangue para resolver meus problemas de álgebra. Eu não sei o que me choca mais: ver que mamãe e Luke não querem mais se matar ou ver que mamãe confia em mim o bastante para me deixar ficar com Nate, à noite, numa casa vazia, sem supervisão. Eu desisto na metade da segunda página de problemas. — Se eu te contar uma coisa sobre Annaliese você vai surtar de novo? Nate larga a caneta. — Esta é a hora em que eu devo ser mais compreensivo, certo? Eu conto o que Bennie Unger me disse. — Então ele acha que, se continuar tomando os remédios anticonvulsivos, Annaliese não pode causar mal a ele. — Preciso lembrá-la, surfista, de que Bennie não bate muito bem? — Ele bate bem o suficiente. Ele acredita nisso tudo. Assim como a srta. Prout e a sra. Gibbons. E elas não perderam uma parte do cérebro. — Bem... — Nate pensa. — A srta. Prout era esquisita. Ela tirava tarô na secretaria e lia a sorte das pessoas, coisas assim. E, obviamente, a sra. Gibbons tinha problemas. De qualquer maneira, como você sabe que Bennie não está inventando tudo isso? Ninguém fala com ele. Você deu a ele uma plateia cativa. — Ele foi bem convincente. — Mas eu fico pensando: cartas de tarô? Nate põe o seu livro de lado. — Vamos assistir TV. Vai fazer você esquecer isso tudo. — Eu detesto TV. Quantas vezes eu tenho que te dizer isso? — Tá, mas você nunca me disse por quê. — Me lembra a minha avó — eu confesso. — A gente assistia a uns seriados antigos todo dia. A Feiticeira era o favorito dela. — Não era Laverne & Shirley? Uau! Ele se lembra da nossa primeira conversa? — Não, era eu quem gostava desse. E gostava de The Andy Griffith Show também. Eu chamei
você de Opie mentalmente, quando te conheci — confessei timidamente. Ele brinca com o meu cabelo. — E isso é bom? — Ah, sim. Opie é uma gracinha. Se tivesse TV a cabo aqui eu poderia mostrar como ele é bonitinho. Talvez a gente possa alugar os DVDs e assistir juntos. — Seria legal. Então nós nos enrodilhamos no sofá, com a TV ligada. Não que a gente tenha assistido alguma coisa, é claro.
4 MESES + 10 DIAS Sábado, 15 de novembro
Passando de lápide em lápide, eu procuro pelo túmulo de Annaliese Gibbons. Quando finalmente o encontro, vejo que ele está aberto, a tampa do caixão não está no lugar e Annaliese olha para cima, com a cabeça sobre um travesseiro de cetim. Eu sorrio. Ela sorri para mim e então eu observo com horror os seus lábios irromperem em bolhas. Suas bochechas começam a ficar enegrecidas e a se curvar, consumidas por um fogo invisível, até que sobre apenas o crânio descarnado e o fedor de carne queimada.
Assombrada pelo pesadelo e quase morta de frio, eu desço as escadas cambaleando, para ir buscar alguma coisa para desentupir o nariz. Minha mãe me passa uma cartela de comprimidos para gripe. — Nate já veio te procurar, mas eu disse que você estava doente; ouvi você espirrando a noite toda. Eu solto um gemido. — Eu me sinto péssima. — E, se eu me sinto assim, Nate provavelmente vai se sentir também. A noite passada foi uma delícia! Eu engulo os comprimidos junto com os meus remédios de sempre. — Nada de cavalgar hoje — minha mãe avisa. — Fique na cama. Eu vou comprar comida. Quer alguma coisa? Sentindo-me mal demais para mexer a cabeça latejante, eu me arrasto de volta para a cama, me cubro com os cobertores e durmo até o telefone tocar, à tarde. — Não há nada errado — uma voz me diz na minha orelha. — O quê? — Comigo. Eu peguei o resultado da ressonância hoje. Não há nada errado. O que significa que não há nada que eles possam saber. — Meg soluça. — Tasha está fora da cidade e eu não tinha ninguém para li-ligar, e, ai, Deus, não pos-posso acreditar que isso está acontecendo comigo. — Você quer que eu vá até aí? — Meus pés já estavam no chão. Ignorando a minha oferta, ela grita: — Como eles podem dizer que não há nada errado? Este zumbido nos meus ouvidos está me
matando! Ai, Deus, meus ouvidos doem tanto, taaaanto... Ao fundo, uma mulher reclama: — Meg, por favor, não seja tão dramática! — Mas eles doem! — Meg grita, quase me deixando surda. — Eu sei, mas o médico disse... — Quem liga para o que ele disse? Eu não posso ser a merda de uma líder de torcida! Ouvir Meg falando um palavrão daqueles para a própria mãe disparou um alarme dentro de mim. A Meg que eu conhecia nunca usaria essa palavra. — Meg? — Por causa disso, mocinha — a voz da mãe se aproximou mais do telefone —, você pode desligar este telefone agora mesmo. — Eu estou usando a porcaria do telefone! — Meg guincha para a mãe. — Eu disse... Eu ouço alguém levando uma palmada. Depois o barulho de uma luta. O telefone cai. — Meg! — eu grito. — Meg, pega o telefone! — Para! O que está fazendo? — A mãe de Meg grita a distância. — Pelo amor de Deus, o que você está fazendo? Mais barulho de briga. — Não! — diz a mãe de Meg, arquejante, histérica. — Pare! Ah, Deus, não! Nããão! Gemidos. Um choro baixinho. Soluços de pânico. E então... um silêncio profundo. — Meg! — eu guincho ao telefone. — Meg, eu vou aí agora! — Quando eu faço menção de desligar, ouço alguém pegando o telefone do chão. Uma respiração regular soa no meu ouvido. — Meg? Está me ouvindo? Estou indo! — Não precisa se incomodar — Meg sussurra assustadoramente calma. — Estou bem, sério. Delicadamente, ela desliga.
Nate abre a porta, atendendo às minhas batidas insistentes. Enquanto ele se esforça para raspar o gelo do para-brisa do jipe, ouvimos sirenes se aproximando. Eu estremeço. — Esqueça o carro! — Então eu corro, os pés derrapando na neve derretida em que se transformou o gelo da noite anterior. Preferindo as ruas livres de gelo, em vez das calçadas traiçoeiras, levamos menos de cinco minutos para chegar à casa dos Carmody. A polícia e a ambulância estão na porta.
Nate me puxa para trás, segurando o meu braço. — Espere! Abraçada a ele, eu assisto com horror aos paramédicos saindo da casa com uma maca. A princípio eu acho que deve ser Meg, então percebo que não é — é uma mulher enrolada em cobertores, com uma máscara de oxigênio no rosto. — Aquela é a mãe dela? Nate confirma com a cabeça, rígido de descrença. — O que aconteceu? — eu grito quando um policial passa correndo por nós. O guarda me ignora e murmura alguma coisa pelo rádio. Eu tento me soltar, mas Nate me segura com mais força ainda. Quando eles colocam a mãe de Meg dentro da ambulância, a porta da frente se abre novamente. É Meg. Algemada. Sinto as árvores, as casas e os carros girando à minha volta. Eu dou um drible para a frente, surpreendo Nate, e me liberto dos seus braços. Esquivo-me do policial e corro pelo acesso de carros coberto de neve. Estou à distância de um braço de Meg quando outro policial me segura. De perto, posso ver o sangue em suas roupas, nos braços, até no rosto. — Meg! O que... o que aconteceu? Meg revira os olhos sonolentos para mim. — Eu avisei para ela ficar longe de mim. Eu implorei. Mas ela simplesmente não me ouviu. Ela resiste quando os policiais tentam fazê-la entrar na viatura. — Não! Espere! Eu tenho que falar uma coisa pra ela! Os guardas fazem uma pausa. O que segura o meu braço deixa que eu chegue um pouco mais perto. Meg me encara e abre seu sorriso de sempre, embora os olhos estejam vazios, destituídos de vida. — O zumbido passou. Estou bem agora, Rinn.
Passo a tarde no sofá, com a cabeça no colo de Nate. Minha mãe não se importa. Ela e Luke estão sentados bem pertinho um do outro. Por que ela fez isso? Por quê? A pergunta não sai da minha cabeça. — Talvez a gente precise de mais café — sugere minha mãe, provavelmente para quebrar o silêncio. Luke protesta: — Acho que precisamos de algo mais forte. — Vinho?
— Pode ser. Ele segue mamãe até a cozinha. Eu ouço o tilintar dos copos, o estalido da rolha, vozes abafadas e cadeiras arranhando o chão. Ouço o clique de um isqueiro, uma vez, depois duas. Minha mãe está fumando? Estou aborrecida demais para me importar. Nate coloca uma mecha de cabelo atrás da minha orelha. — Está tudo bem com você? — Só queria saber por que ela fez aquilo. — As pessoas surtam — ele diz, como se eu já não soubesse. Eu me sento no sofá e vou deslizando pelo assento até ficarmos lado a lado. — Ela disse que os ouvidos doíam. Estava chorando. Nate, chorando de dor. Mas, então, depois que ela fez aquilo, o zumbido passou. — Eu me abraço. Como se o ato de agressão tivesse tirado a sua dor. Como se machucar alguém fosse o único jeito de fazer a dor parar . — Assim como a enxaqueca de Lacy passou depois que ela escreveu o e-mail. — Que e-mail? Conto a Nate sobre o e-mail e sobre o aborto de Lacy. Ele não diz que eu sou louca. Ele não diz nada.
4 MESES + 18 DIAS Domingo, 23 de novembro
A manchete no River Hills Journal é: GAROTA DA REGIÃO PRESA DEPOIS DE BRIGA DOMÉSTICA. Eu pulo alguns trechos e vou direto aos fatos que me interessam: que a mãe de Meg está em estado grave, mas não corre risco de vida. E que Meg está na cadeia, sendo vigiada para que não cometa suicídio. Ela ainda não foi julgada. Millie tem um telefone celular. Ninguém consegue sinal por aqui, mas Tasha diz que elas costumam usá-lo quando estão fora da cidade, em treinos e competições. Minha mãe tenta falar com Millie pela manhã, com receio de que elas possam ler a notícia no jornal e descobrir sobre Meg antes que alguém possa avisá-las pessoalmente. Não quero nem imaginar como Tasha vai receber a notícia. Mas a ligação cai no correio de voz. — Não entendo — digo à minha mãe quando ela desliga pela segunda vez. — As regionais foram ontem. Era de esperar que Millie estivesse, no mínimo, ligando para a CNN! — É estranho — admite a minha mãe. — Tinha certeza de que ela ligaria ontem à noite para dar notícias sobre Tasha. Pessoalmente, estou feliz por não termos conseguido falar com elas pelo telefone. Algumas coisas precisam ser ditas pessoalmente, e eu acho que contar que a sua melhor amiga está na cadeia é uma delas. Especialmente quando temos que explicar a ela por quê. Eu não consigo ficar parada em casa, pensando em Meg. Quando ligo para Nate, ele concorda comigo e decidimos passar o dia em Rocky Meadows. Dessa vez, no entanto, depois de cavalgar, vamos trabalhar; eu o ajudo a cuidar dos cavalos, limpar as baias, varrer o estábulo e encher os bebedouros. Quando — horas depois — o último cavalo é levado de volta para a sua baia, bem alimentado, estou coberta de lama e esterco, minha jaqueta está arruinada e eu provavelmente vou acabar com uma pneumonia depois desse resfriado. Mas pelo menos consegui manter Meg afastada dos meus pensamentos por um tempo. No caminho de volta, passamos pelo carro de Millie, estacionado em frente ao restaurante. Mas as luzes estão apagadas e a placa de “FECHADO” está pendurada na porta. — O que está rolando?
— Aposto que estão celebrando a vitória de Tasha — sugere Nate, enquanto ele entra com o jipe no acesso à garagem. — Aposto que não. — Não se elas souberam sobre Meg primeiro. Sem medo dos meus germes, ele me dá um beijo de boa-noite com lábios salgados e mornos. Quando eu abro a porta da frente um minuto depois, é Millie que eu vejo primeiro, agitada e histérica. — Como isso pode ter acontecido? Como? Eu não me conformo. Não me conformo, estou dizendo. — Enquanto me arrasto até a cozinha, ela se lamenta: — Ah, Mo, o que vamos fazer? O que vamos fazer agoooora? Na cozinha, Millie soluça no ombro da minha mãe, que dá palmadinhas nas costas dela. — Vamos, Millie. Podia ser pior, muito pior. Eu me admiro com a reação exagerada de Millie. Tremendo e ofegando, ela se agarra à minha mãe, puxando o suéter dela até o meio das costas. — Tudo bem, Millie — eu digo da porta. — A mãe da Meg vai ficar bem. O jornal disse... Eu paro de falar quando Millie endireita o corpo e minha mãe franze a testa, avisando-me um pouco tarde demais. — Eu sei — diz Millie. — Já li os jornais. Estou falando de Tasha, droga. Todos os nossos planos! Tudo! — Ela se agarra à minha mãe novamente. — O que vamos fazeeeer? — Querida — minha mãe diz, tentando sobrepor a voz aos soluços da amiga —, Tasha está lá em cima. Por que você não vai fazer companhia a ela? Confusa, eu concordo com a cabeça, e corro para o meu quarto. Tasha está esticada no meu colchão, estudando os próprios dedos. — O que aconteceu? Me conte! — Eu perdi — ela diz, sem nenhuma emoção. — Perdi as regionais. Eles me desclassificaram. — Como? Por quê? — Eu não quero falar sobre isso. Eu me sento ao lado dela. Ela não olha para mim, só observa os dedos fazendo arabescos no ar. — Eu pensei... quer dizer, quando ouvi sua mãe... Ela dá uma risada debochada. — Você pensou que ela estava chorando por causa da Meg, certo? Como se ela se importasse com alguma coisa que não fosse a minha vitória! — Sinto muito por Meg. — Com uma sensação desagradável, eu estendo a mão para pegar a dela. Ela me ignora. — Achei que a gente poderia superar isso, sabe? Mas ela não para de insistir no assunto. E,
então, quando voltamos e ouvimos sobre M-Meg... — Ela deixa as mãos penderem ao lado do corpo e fecha os olhos com força. — Ai, Deus. Este é o pior dia da minha vida! Eu não sei o que dizer. Então fico apenas sentada ali, quieta, e ouço o meu relógio fazer tiquetaque.
Está quase escuro na hora em que Millie grita lá de baixo: TASHA! DESÇA AQUI! HORA DE IR EMBORA! Tasha — que tinha caído no sono — levanta num salto, toda confusa e despenteada. Eu já tomei banho e vesti uma camiseta e calças de flanela. — Ah, não! — ela sussurra. — Por favor, me diga que estou sonhando. Empurrando-me ao passar, ela pega o casaco do chão e desce os degraus, cambaleando. Eu desço atrás dela. Millie, agora mais calma, olha para a filha com uma expressão severa. — Espero que tenha aproveitado a visita. Vai demorar muito tempo para você voltar aqui. — Millie — começa a falar minha mãe, dando um passo para a frente. Millie continua a andar, empurrando Tasha para a porta. — Eu não quero saber. Não me importo que me custe caro. Assim que chegar em casa vou ligar para Nancy. Você vai voltar àquele trampolim e... — Não! — interrompe-a Tasha. Talvez eu só tenha imaginado seu olhar de puro terror; foi só um instante. Millie então vira os olhos frios para mim. — Ela contou o que aconteceu? Hã? Contou a ela, Tasha? — Descontrolando-se novamente, ela ignora os protestos da mãe. — Ela foi até o meio daquela maldita escada e parou. Sem razão nenhuma! A treinadora teve que subir e tirá-la dali. — Não foi culpa minha — choraminga Tasha. — Ah, não? Então de quem foi? Tasha se vira e olha para mim, com o rosto tenso e suplicante. — Eu fiquei paralisada. Estava tudo bem e, então... então... congelei. Não sei o que aconteceu, mas não conseguia me mexer, não conseguia olhar para baixo... — Ela olha para Millie, com os punhos fechados. — Eu fiquei apavorada, mãe! Pensei que fosse morrer! — Morrer? — vocifera Millie. — Eu vou te mostrar o que é morrer. Acha que andei por aí, arrastando você de cidade em cidade, para o meu próprio bem? Todas essas aulas? Todo esse dinheiro? Você acha que isso é brincadeira? — Por favor, pare de gritar comigo! — implora Tasha. — Eu tentei. Eu juro! — Você me humilhou. E humilhou seu pai — ela disse, com crueldade. — Ele perdeu dois dias
de pagamento para fazer essa viagem extra, e para quê? Para ver você parada na escada, fazendo papel de palhaça? — Ela balança a cabeça, com desgosto. — A cidade toda estava apoiando você. Ah, meu bom Jesus, como vou encarar as pessoas amanhã? Magoada, Tasha olha fixamente para a mãe. Eu faço o mesmo, sem conseguir acreditar. Minha mãe, por outro lado, finalmente se coloca entre as duas. — Millie! Pare! Deixe a pobre garota em paz ou eu juro que... Mas Tasha, sem aviso, recupera a presença de espírito e fala com amargura: — Tem razão, mãe. É só nisso que você pensa. “Ah, minha maravilhosa filha, a campeã de salto ornamental” — ela diz, imitando a mãe. — Você quer que eu seja perfeita, não é? Assim as pessoas vão falar de mim em vez de falar de você. Porque você é uma piranha gorda e ignorante e todo mundo sabe disso! Dizendo isso, Tasha sai e bate a porta. Millie, depois de um segundo de choque, marcha atrás dela. Sem se despedir nem nada. E bate a porta duas vezes mais forte. Eu nunca vi Tasha tão fora de si como hoje. Eu nunca nem a vi responder para Millie. E nunca ouvi uma mãe falar daquele jeito com a filha. Minha mãe nunca falou assim comigo, por mais insuportável que eu estivesse. Minha mãe, com uma expressão perturbada, fica olhando para a porta da frente. Então desperta do transe: — Você está bem? Acho que sim, mas estou trêmula e me sentindo estranha e lamentando muito ter feito parte de tudo isso. — Não vou dizer nada — prometo. Ela detesta quando eu critico Millie. — Mas você sabe o que estou pensando. Minha mãe assente. — Nesse caso, acho que você tem razão.
4 MESES + 19 DIAS Segunda-feira, 24 de novembro
O assunto do dia na escola é Meg. Ninguém consegue acreditar no que aconteceu. Pior, quanto mais as pessoas falam sobre o assunto, mais distorcidos ficam os fatos; na terceira aula, já circula pelos corredores que a sra. Carmody foi para o hospital com um corte de orelha a orelha e Meg está trancafiada num calabouço, incomunicável. Idiotas. Na hora do almoço, eu encontro Tasha. Ela se junta a mim sem abrir a boca e põe a bandeja na minha mesa. — Você está bem? — eu pergunto. — Vou sobreviver. — Quando ouve o nome de Meg na mesa vizinha, Tasha franze os lábios num meio sorriso. — Ninguém disse uma palavra sobre eu ter sido desclassificada nas regionais. Todos estão ocupados demais discutindo se Meg é algum tipo de maníaca homicida. — Ninguém falou nada para mim, também. — Bem, é só uma questão de tempo. — Ela revira o cachorro-quente com o garfo de plástico. — Talvez a minha mãe me sufoque com o travesseiro enquanto durmo e me poupe de toda a vergonha. — Ela foi horrível com você ontem — eu digo com firmeza. — Até a minha mãe achou. — Não que tenha dito em voz alta. Mas ficou perfeitamente óbvio que ela queria estrangular Millie. — Não tem importância. Eu só estou farta de ter que ouvi-la falar. Ela não para de dizer que eu estraguei tudo de propósito e não é verdade, Rinn. Por que eu faria isso? — Eu acredito em você. E a sua mãe vai acabar superando tudo isso. — Duvido muito. De todo modo, eu cheguei a um ponto em que nem me importo se nunca mais mergulhar numa piscina. — Eu a observo cortar o cachorro-quente em pedaços, arrumá-los numa fila e garfá-los do prato, um a um. — Ó Deus, ó Deus, sinto tanta falta de Meg! — Eu também. — Por mais incrível que pareça, sinto falta até de Lacy. — Sabe, estive pensando... — Ela olha furtivamente ao redor. — No que você disse depois do funeral do Dino. No restaurante, lembra? Com cautela, eu espero.
— Você disse que algo poderia acontecer comigo por causa daquela sessão. — Eu não disse isso pra assustar você — rebato rapidamente. — Eu sei. Eu só não acreditei em você a princípio. Mas desde que eu me ferrei nas regionais... — Ela empurra de lado seu almoço esfacelado. — Quer saber um segredo? Eu não estou nem aí que tenha sido desclassificada. — Como assim, nem aí? — É isso mesmo, nem aí. — Tasha... — Não estou! Estou, tipo, totalmente farta disso. — Ela solta uma risadinha, mas o som é duro e pouco natural. — Sabe o que estou pensando agora? Estou pensando que talvez, só talvez... Annaliese esteja se apossando de mim também. Eu olho para o meu almoço intacto, uma porção de salada murcha. — Não brinque com isso. — Não estou brincando, Rinn. Quer dizer, Meg atacou a mãe dela. Fala sério! Meg, entre todas as pessoas? Que loucura é essa? Eletrizada ao ver que ela não está brincando, que talvez finalmente tenha percebido, eu exclamo: — Pois é isso que eu venho dizendo o tempo todo. Coisas estão acontecendo às pessoas. Vocês não prestam atenção ao que estou dizendo. Jared viu, também. Ele admitiu. Foi por isso que ele rompeu com Meg, eu acho. Ele tem medo dela agora. Tasha pisca. — Você falou com Jared sobre isso? — Falei, mas nem pense em perguntar nada. Ele já disse que vai negar tudo. — Eu finjo não notar seu ar de ceticismo. — E agora, desde a sessão, coisas estão acontecendo conosco. — Bem, com alguns de nós — ela concorda. — Quer dizer, pelo menos com você não está acontecendo nada.
— Millie nos convidou para o Dia de Ação de Graças — conta minha mãe quando estamos preparando o jantar juntas. Eu amasso entre as mãos um pedaço de bolo de carne gorduroso. — Legal. — Na verdade, tive a impressão de que ela convidou a cidade inteira. Acho que é uma espécie de tradição aqui. — Ela inclina a cabeça, olhando a forma em suas mãos. — Estou preocupada, porque acho que pode ser... um feriado difícil para nós...
Eu termino a frase para ela. — ... porque Frank não vai estar aqui. Entendi. — Vamos ligar para ele — minha mãe decide. — Ele não vai falar comigo. — Acho que vai. Eu pego a forma, coloco ali dentro o bolo de carne e o moldo. — Não importa. Enquanto o bolo de carne está no forno, eu fico no meu quarto e toco violão. O professor Chenoweth pediu que eu tocasse “My Sweet Lord” no concerto de Natal e eu tirei a música de ouvido hoje, depois da escola. Minha mãe aparece depois de um tempo e me observa dedilhar o instrumento. — Muito bom! — Obrigada. — Eu me pergunto o que vem em seguida. — Liguei para aquele psiquiatra novo hoje. Ele disse que nos avisa se houver algum cancelamento antes de janeiro. E no caso de uma emergência, podemos entrar em contato com um centro especializado em crises. Eu paro de tocar. — Que e-mer-gên-cia, mãe? — Querida, você anda tão deprimida ultimamente. Eu entendo, depois do que aconteceu com Dino e agora com Meg, mas... bem, estou preocupada com você. Ah, droga. Aqui vamos nós. — Mãe, eu não estou passando por uma crise. Só estou chateada. Isso não é normal? Será que eu não posso ficar triste normalmente sem que você queira me arrastar para um psiquiatra? Abalada com a minha irritação, ela hesita. Então diz: — Rinn, você vai dizer, não vai? Se alguma coisa estiver incomodando você? Ou se você sentir, sabe... — ... impulsos suicidas? — pergunto rispidamente. — Ah, pelo amor de Deus, uma vez já chega. Eu sei que ela só está bancando a mãe superprotetora. Mas um psiquiatra, especialmente agora, está fora de questão. Eu teria que tomar cuidado com cada palavra, ser cuidadosa para não deixar escapar nada. Mesmo assim, conhecendo os psiquiatras como eu conheço, sei que ele poderia descobrir um jeito de arrancar de mim que eu, Rinn Jacobs, acredito em fantasmas. Fantasmas capazes de prejudicar as pessoas. Fantasmas que podem deixá-las doentes. Fantasmas que as forçam a fazer coisas contra a vontade ou impedem que façam o que mais gostam na vida. Não um fantasma qualquer. Annaliese.
4 MESES + 20 DIAS Terça-feira, 25 de novembro
O telefone toca quando estou indo tomar o café da manhã. Minha mãe atende. — Alô? — Posso ouvir a voz aguda de Millie tagarelando enquanto minha mãe segura o fone longe do ouvido. Notando minha presença, ela franze a testa. — Nããão, eu não sei. Sim, vou perguntar a ela. Mais um pouco de tagarelar histérico. — Mil, não se preocupe. Vou perguntar a ela. — Perguntar o quê? — eu pergunto depois que ela desliga. — Tasha deu a você alguns anuários? E um álbum de recortes de Millie? Meu estômago se contrai. — Hã, sim. — E Tasha me garantiu que a mãe nunca sentiria falta deles. — Bem, Millie quer tudo de volta. — Tudo bem — eu digo, descontraída, procurando a caixa de cereais. Minha mãe se esqueceu de comprá-los. Na verdade, não tenho nada para comer no café da manhã. — O que eu vou comer? — Espero que não seja outro ovo quente. Minha mãe ignora a minha indignação. — O que você estava fazendo com eles? — Só olhando. Eu nunca vi os seus anuários — acrescento, na defensiva. — Estava curiosa, só isso. — É por isso que pegou o álbum de recortes também? — Eu não peguei. Tasha me deixou pegar emprestado. — Eu me sinto uma traidora. — Ela não devia ter feito isso. Esses livros são da mãe dela. — Tá! Tudo bem! Vou devolver. Nossa! Parece até que eu cometi um crime! — Eu quero vê-los — ela ordena, inflexível. — Agora? — Agora. Contrariada, subo as escadas pisando duro e desenterro os anuários e o livro de recortes de debaixo de uma pilha de roupas. Então marcho para o andar de baixo e passo a pilha para a minha mãe. Ela folheia primeiro os anuários e depois o álbum de recortes. Então volta a fazer tudo outra
vez, examinando cada página. — Isso é tudo? — É. — Eu enfio uma fatia de pão na torradeira com violência. — Não vejo o que isso tem de mais. — Você não viu nenhuma foto? Nada num envelope? Porque Millie jura que estão faltando algumas fotos. — Eu nego com a cabeça. — Tem certeza de que não caíram? — Não havia nenhuma foto! Por que eu mentiria? — Não estou dizendo que está mentindo — minha mãe diz, com paciência. — Mas Millie está histérica. — Que fotos são essas? Líderes de torcida nuas? Uma daquelas festas em que as garotas tiram o sutiã? Ela franze os lábios. — Ela não disse. Mas são importantes para ela. Minha torrada pula da torradeira, quase tão branca quanto antes. Eu a enfio de volta. — Bem, eu não estou com elas e não sei nada a respeito. Minha mãe deixa os livros sobre a mesa, com o álbum de Annaliese no topo da pilha. Ela passa o dedo sobre a capa, como se estivesse lendo Braille. Quando vejo que ela não vai dizer nada, eu finjo um sorriso alegre. — Mãe, eu não estou traumatizada. Só quero descobrir sobre Annaliese. Você não me contou muita coisa. — Foi há tanto tempo... — ela murmura. — Eu tento não pensar nela. Isso pertence ao passado. Eu gostaria que continuasse assim. — Antes que eu possa questionar o que ela disse, a minha torrada pula de novo, dessa vez tostada e crocante. Minha mãe solta um rosnado. — Precisamos de uma torradeira nova. — Então ela tira o casaco do gancho e pega os livros de Millie. — Vou devolver isso para ela agora. Vejo você na escola, querida.
— Foi a coisa mais estranha que eu já vi — eu digo a Nate a caminho da escola. — Ela simplesmente surtou. E nem me disse que tipo de foto era. — Eu agarro o braço dele quando escorrego numa placa de gelo. — Quer dizer, eu sei que ela é bem pirada, mas, Nate, e se forem fotos pornôs? E se elas estiverem circulando por aí, pela cidade? Nate ri enquanto eu recupero o equilíbrio. — A sua mãe? Não. Ela não ia ser tão burra. Ela engravidou de mim. Isso foi uma burrice. — Quer andar a cavalo depois da aula? Meu pai e eu vamos para a excursão anual de caça na
quinta e, bem, só verei você na próxima semana. — Quinta é o Dia de Ação de Graças. E a festa da Millie? — Ah, não se preocupe. Ela já mandou um carregamento de comida. — Não acredito que você vai “caçar” — eu reclamo. — Como consegue ver aqueles coelhinhos sangrando até a morte? — Eles não sangram até a morte, surfista. Eu tenho uma mira muito boa. — E eu não estou nada impressionada.
Hoje não tivemos educação física porque a professora está doente. Aparentemente não existe por aqui esse lance de arranjar uma substituta de última hora. Então Tasha e eu nos sentamos no fundão durante a nossa hora de estudos improvisada, evitando o olhar de águia da sra. Schimmler. Tasha a chama de Frau Schimmler, pois ela parece mesmo alemã. — Sua mãe achou as fotos? — sussurro. — Não, e passou a noite toda vasculhando o escritório, tirando tudo do lugar. — Tasha levanta seu livro de alemão para que a sra. Schimmler pense que ela está estudando. — Cara, ela quase me matou. Parece até que rasgamos uma tela de Picasso ou coisa assim. — Você disse que ela não ia dar falta daqueles livros. — Bem, parece que agora ela está planejando alguma reunião idiota. É só por isso. — Ela baixou a voz quando Schimmler pigarreou. — Ah, quem se importa? Ela vai ficar ainda mais furiosa comigo esta noite. — Por quê? — Porque eu já decidi. Não vou mais competir. — Ela pronuncia essa decisão monumental num tom tão casual que eu fico de queixo caído. — Estou cansada disso. Ponto final. Vou dizer a ela hoje à noite. — Mas e quanto às Olimpíadas? Você me disse milhares de vezes que... Tasha estala a língua. — Coisa de criança. Eu nunca iria conseguir competir nas Olimpíadas. Assim como Meg nunca vai ser líder de torcida do Dallas Cowboys. — Você não pode simplesmente desistir porque algo ruim aconteceu. — Ah, posso sim — ela rebate. Está acontecendo com ela. Posso sentir. — Tash — eu sussurro. Ela enterra a cabeça no livro enquanto a sra. Shimmler fareja o ar, em busca da fonte do barulho. — Você mesma disse que acha que Annaliese pode estar possuindo você. Mas agora que sabemos o que está acontecendo, podemos detê-la.
Tasha dá uma risada sem sequer tentar disfarçar. Schimmler bate palmas exigindo silêncio. Tasha nem olha para mim. Eu suspiro, abro o Crepúsculo da Lindsay McCormick — eu já estou na metade — e finjo ler, embora o nó no meu estômago dificulte a minha concentração. Tasha se dá mal numa única competição e resolve abrir mão do seu sonho para sempre? Será que é porque está chateada com o que aconteceu com Meg? Será que isso está perturbando seu raciocínio? Espero que seja isso. E nada mais.
Depois de andar a cavalo, eu relaxo no sofá da sala anexa ao estábulo, enquanto Nate esquenta água num micro-ondas para fazer chocolate quente. — Quem vai tomar conta dos cavalos durante esses quatro dias em que você vai ficar fora? — Vou pedir para uns colegas da escola virem cuidar deles para mim. — Ele me passa o meu chocolate e se senta. — Como está Tasha? — Acho que bem. — Eu não menciono a decisão dela. — Está chateada por causa das regionais. E da Meg, claro. Mas não fala muito sobre isso. — Nem você — ele diz gentilmente. Eu dou um gole no meu chocolate fumegante. Não, eu não falo. Mas isso não significa que eu não me lembre do sangue nas roupas dela, do olhar que ela me lançou com aquele semblante inexpressivo. — Você não vai querer ouvir o que eu tenho a dizer, de qualquer modo. — O que é? — Que o que aconteceu a ela é mais uma coisa ruim que está acontecendo por aqui ultimamente. Nate solta um gemido. Antes que eu possa saltar sobre ele por causa da indiferença irritante que demonstra pelo assunto, ele tira a caneca de chocolate quente da minha mão e então salta sobre mim, jogando-me no chão. Então me faz rolar pelo grande tapete de pele de urso, em frente à lareira, e me beija de leve. E depois não tão de leve. Sem fôlego, assaltada pelas sensações, eu me esqueço de que estou furiosa com ele.
Quando as coisas começam a ficar muuuuito quentes, com relutância eu volto a vestir o meu cardigã. Nate observa com uma das mãos no meu joelho.
É cedo demais. Para a “antiga” Rinn Jacobs esse é um pensamento muito estranho. Seus dedos provocantes sobem pela minha coxa. — Está a fim de parar? — É, já é tarde. Preciso ir para casa e... O resto da frase atinge o meu cérebro como uma bala: TOMAR OS MEUS REMÉDIOS! Por que não me lembrei disso antes? — Eu sou tão burra! Tão burra! — Você é um bocado dura consigo mesma, hein, surfista? — Nate, são os comprimidos! A srta. Prout se sentava ao lado da piscina todos os dias e nunca disse uma palavra sobre Annaliese até parar de tomar os comprimidos. — Que comprimidos? — Eu não sei! Antidepressivos? Bennie disse que ela começou a chorar muito depois disso e falava sozinha. Depois começou a falar de Annaliese. — As palavras saem da minha boca aos borbotões. — E Bennie toma remédio para os ataques! Você mesmo disse que ele vive no túnel e nada acontece com ele. Nada acontece comigo também. Porque eu também tomo remédios. Isso faz todo o sentido! Todos esses remédios que estabilizam o humor bloqueiam as Vozes, alterando a atividade cerebral — como alguma coisa, até um fantasma, pode invadir essa fortaleza? — É como um escudo protetor, uma barreira — eu reflito. — Bennie e eu estamos perfeitamente seguros. — Você está me enlouquecendo — Nate acrescenta num tom de voz sexy — Quer dizer, agora, claro, de um jeito muito positivo... Eu contemplo as brasas da lareira. — E quanto a Jared? — Contrariado com a minha indiferença, Nate zomba de mim, mas com uma expressão tensa e vaga. — O quê? Eu puxo sua camiseta e então subo no seu colo quando ele me ignora. — Você sabe, não é? O que Jared toma? Ele descansa o queixo no meu ombro. Eu sinto os seus músculos relaxarem e então percebo que ele, pelo menos, está me ouvindo. — Jared tem distúrbio de déficit de atenção e hiperatividade. Ele toma remédio desde o jardim de infância. — Eu sabia! — Então fico sem fala, perplexa diante do quadro claro que tenho da situação. A compreensão pura e absoluta do que preciso fazer. Nate pega meu queixo.
— Nem pense nisso! — Arrá! Então agora você acredita em mim. — Não importa. Não se atreva a parar de tomar os seus remédios. — Mas e se isso provar... — Provar o quê? Que você não tem um cérebro dentro deste crânio? Rinn, por favor, me prometa. — Diante do meu olhar descrente, ele me avisa: — Você quer que eu conte tudo à sua mãe? Quer que ela volte a contar os seus comprimidos? — Então faz uma coisa por mim? — imploro. — Quero voltar à piscina. — Por quê? — Para provar que eu sou imune. Mas eu preciso de você por perto para o caso de... bem, só por precaução. Nate coloca o moletom pela cabeça. — De jeito nenhum. — Se você não acredita em mim, qual é a preocupação? — Hã... Por onde eu começo... — Você não precisa entrar comigo. Nem quero que entre. — É, tudo o que me faltava era que algo acontecesse a Nate. — Apenas observe e espere. Amarre alguma coisa em mim caso tenha que me puxar. — Amarrar alguma coisa em você? Não. Esqueça. — Nate, por favor. Rígido, ele se afasta de mim. — Não vou fazer parte disso, Rinn. Quando ele fica assim, sei que é melhor não insistir. — Tudo bem — eu digo, com descontração. — É uma ideia idiota, de qualquer modo. Mas, mesmo quando ele relaxa e sorri, satisfeito com a sua vitória, minha mente já está considerando outras possibilidades.
4 MESES + 21 DIAS Quarta-feira, 26 de novembro
Na noite passada,
eu soube o momento exato em que Tasha deu a notícia à sua mãe:
provavelmente sessenta segundos antes de o nosso telefone tocar. Minha mãe passou uma hora confortando Millie, assegurando-lhe de que não era o fim do mundo, que ela desse um tempo a Tasha, que talvez fosse uma fase, blá-blá-blá. Desnecessário dizer que fui para a cama mais cedo, chateada por não estar lá quando a bomba estourou, para oferecer algum conforto a Tasha. Por outro lado, quem quer ser testemunha de uma coisa dessas? Na escola, Tasha está surpreendentemente animada para alguém que pode ser deserdada no final do dia. — Eu estou bem — ela insiste na hora do almoço, quando eu lhe pergunto sobre a noite passada. — Ela encarou melhor do que imaginei. Me engana que eu gosto. Eu gostaria de saber por que ela está mentindo. Ou se está mentindo. Talvez depois que o choque inicial passar e ela conversar com a mãe, Millie pense melhor. Talvez elas façam as pazes. — Bem — eu digo. — Estou orgulhosa de você, Tash. — Contanto que essa atitude tenha partido de você, e não por causa de Annaliese. Tasha dá um sorriso radiante. — Obrigada. — E então — Deus! — ela grita, esticando os braços acima da cabeça. — Estou viva outra vez. Não preciso mais me matar durante sete dias por semana. Nossa! Agora posso fazer o que eu quiser! Comer o que eu quiser! — Ela ofega, cobrindo a boca com a mão. — Aimeudeus, Rinn! Vou até poder sair com alguém agora! — Pensei que você tinha dito que todos os garotos daqui são uns babacas — eu brinco. — Eles são, mas quem liga? Pelo menos estarei fazendo alguma coisa diferente. — Ela sacode os quadris na cadeira, radiante. — Fique comigo e me ajude a limpar os meus armários. Tenho, tipo, uns mil maiôs. Podemos fazer uma fogueira!
Nate me dá um beijo de despedida na frente do meu armário. Ele e o pai já estão saindo para a sua excursão de caça. — Vou sentir a sua falta — ele me assegura. — Também vou sentir a sua. — Você pode vir junto — ele sugere com uma piscada. — A minha barraca é grande o suficiente. Não sei se ele está brincando ou falando sério. — Obrigada, mas não. Divirta-se. — Eu não entendo muito bem qual é a graça de matar animais por esporte. No entanto, eu como carne. Quem sou eu para julgar? Fico olhando por um longo tempo até Nate desaparecer de vista, quando Tasha, com um grande saco de lixo, aparece atrás de mim. — Consegui isso com o professor Lipford. Vamos! Primeiro vamos até o armário dela. Pensei que íamos precisar de cinco minutos, mas Tasha é meio desleixada. O armário dela não só está abarrotado de maiôs e toalhas, chinelos e toucas de borracha — para os dias em que Millie a leva, ou melhor, a levava para o treino diretamente da escola —, mas também meses e meses de lições de casa velhas, cadernos usados e dezenas de papéis de bala. — Meu estoque secreto — ela sussurra, embora não haja mais ninguém por perto. — Minha mãe nunca me deixa comer esse tipo de coisa em casa. Eu conto oito maiôs ao todo, metade deles azul e branco, as cores da equipe de mergulho de Kellersberg. Quando eu seguro o saco aberto, Tasha nem vacila em jogar os maiôs lá dentro. — Hasta la vista, baby — ela zomba, enquanto lança braçadas do conteúdo do seu velho armário sobre os maiôs, para dentro do saco. Quando o seu armário está relativamente limpo, ela me impede de amarrar a boca do saco. — Espere, ainda não. Ainda tenho o meu armário do ginásio. — Será que você não pode fazer isso depois do feriado? — Os corredores estão vazios e à meialuz. Todo mundo deu no pé o mais rápido possível para começar a aproveitar logo o feriado de quatro dias. — Anda! Só vai levar um minuto. — Ela se afasta dançando e eu a sigo, desajeitada, arrastando o saco de lixo volumoso. Ela vai me pagar por isso. O armário dela do ginásio, além de abarrotado como o outro, também fede. Eu tampo o nariz enquanto Tasha tira dali todas as suas roupas extras, mais toalhas e maiôs, e um par de tênis úmido e enlameado. Eu abro a boca para expor a minha opinião sobre isso, quando ouço um som distante que faz nós duas congelar ao mesmo tempo. — O que foi isso? — Tasha sussurra, olhando para a porta que dá para o túnel. Eu relaxo, quando percebo. — Provavelmente é Bennie. Nada de mais.
— Será que é melhor darmos uma olhada? — Dar uma olhada? Por quê? Não deveríamos nem estar aqui a uma hora dessas. Tasha ignora o que eu digo. Ela anda na ponta dos pés, de um jeito exagerado e cômico que me faz lembrar, com tristeza, de Meg, no dia em que me mostrou pela primeira vez a escola, e então abre a porta e entra no túnel. — Iuuu-ruuu! — Tá maluca? — pergunto, achando que não a conheço tanto quanto imagino. — Sim, estou maluca. Maluca! Maluca! — Evidentemente se divertindo com o eco, ela grita. “Maluca, maluca, maaaaluuuucaaa!” — Então fala num tom normal: — Ah! Oi, Bennie. Eu sabia. Vou até onde ela está. Bennie, em frente à porta da piscina, aponta na nossa direção. — Vocês não deviam estar aqui, garotas! — Nós sabemos — eu respondo. — Já estamos indo embora. — Eu me calo quando Tasha, sem aviso, esgueira-se pelo corredor na direção de Bennie. Talvez ela esteja mesmo maluca. Só espero que isso não a leve à prisão, como aconteceu com Meg. Eu corro atrás dela. Bennie não parece feliz com a nossa intrusão. — Vocês não deviam estar aqui — ele repete. — Deviam estar em casa. Tasha olha pela porta aberta da piscina. — Então, Bennie... o que você está fazendo aqui? — Estou consertando a porta, vou colocar uma fechadura nova. — Ele segura no alto uma fechadura novinha para provar o que disse. — Até que enfim! — ela provoca. — Quero dizer, agora que Dino está morto... Bennie arqueja. Eu também. Mas antes que um de nós consiga dizer alguma coisa, Tasha dispara para dentro do recinto da piscina. — Ei! — grita Bennie. — Ninguém pode entrar aí! — Está brincando — Tasha responde, de um jeito alegre. A última coisa que eu quero fazer é entrar naquele lugar outra vez. Uma lufada de ar frio atravessa a porta, envolvendo-me com seus tentáculos de gelo. O pobre Bennie fica tão nervoso que derruba a fechadura no próprio pé. — Ela vai me fazer ser despedido, isso sim. O sr. Solomon, ele ainda está na escola. Ele não vai gostar nem um pouco disso, nem um pouquinho! — Eu vou buscá-la — prometo para ele. Afinal de contas, se eu estou certa e remédios são o que fazem toda a diferença, estou a salvo. Se estiver errada, vou me ferrar. A princípio, eu não posso vê-la. As lâmpadas, ou o que resta delas, piscam e emitem um zumbido no teto. É como estar numa casa maluca, com as luzes estroboscópicas e tudo mais. Eu
dou uma olhada em toda a extensão da cerca e a localizo do outro lado. — Tasha, o que está fazendo? — Aimeudeus, olha isso! — A voz dela treme de excitação. — Corre! Aimeudeus!... Com cautela, eu avanço, consciente dos passos pesados de Bennie atrás de mim. Eu a alcanço e paro, enquanto olho para o buraco da cerca. Minha garganta se fecha. Minhas mãos viram gelo. Os elos de metal enferrujado foram cortados, formando uma passagem retangular. O arame fica dependurado dos dois lados do buraco, com os elos denteados e perigosos ameaçando qualquer um que seja idiota o suficiente para tentar passar por ali. Foi assim que eles tiraram Dino da cerca. Eles tiveram que cortá-la. Se eu olhar para o chão, vou conseguir ver a mancha de sangue no ladrilho? Ou será que o sr. Solomon fez Bennie limpar tudo? Mantendo meu olhar fixo no alto, eu olho para Tasha que, de repente, passa pelo buraco, quase esbarrando nas laterais da cerca. Ok. Agora eu estou maluca. — Ei! Ela se volta para mim, com o rosto brilhando. — Como eles fizeram isso? Como? — Fizeram o quê? Ela acena com os braços em dois arcos amplos, como se abarcasse o buraco escuro alguns metros à sua frente. — Isto! Está cega? Como eles puderam manter isso em segredo? Bennie, arfando, corre e para ao meu lado, os punhos erguidos, embora seu gesto seja mais cômico do que intimidador. — Sua garota maluca! Você vai sair daí agora! Em vez disso, Tasha faz uma pirueta e corre para mais longe ainda, inclinando-se na borda da piscina vazia. — Isso é incrível! — ela grita. — Mal posso acreditar! Então ela arranca o casaco, chuta para longe as botas e corre para a escada do trampolim. Os degraus antigos rangem sob o peso dela. Tasha! Sem pensar, eu me atiro na direção do buraco da cerca, mas algo me segura por trás. — Me larga! — eu grito para Bennie antes de perceber que a minha jaqueta ficou presa no arame. Luto freneticamente para me libertar, mas tudo o que consigo é fazer com que os horríveis elos de metal se fixem na minha espádua. Bennie, que não pode passar por mim para chegar ao outro lado da cerca, pragueja tão
ferozmente quanto eu enquanto torce a minha jaqueta, tentando me soltar dos elos. Ouço a cerca chacoalhar enquanto olho, como que em transe, para a piscina à minha frente, sem os elos cruzados para atrapalhar a minha visão. “O que você está fazendo?”, eu digo, talvez em voz alta, talvez não, porque tudo o que eu posso ouvir é o chacoalhar da cerca. Tasha chega ao alto da escada. Eu por fim me dou conta da situação e tiro a jaqueta, deixando-a para trás. Tasha caminha pelo trampolim e avança decidida em direção à ponta. Eu corro aos tropeços pela lateral da piscina, quase sem conseguir parar na borda. Tasha sacode o trampolim suavemente, como se testasse a sua flexibilidade. Chegando à escada, eu agarro o corrimão e o sacudo com toda força, sabendo que nunca vou chegar lá em cima a tempo. — Tash, para! PARA! Eu não posso vê-la de onde estou, mas posso imaginá-la com clareza, erguendo os braços graciosamente. Arqueando as costas. Elevando os calcanhares do trampolim. Exclamando numa voz melodiosa: — Ah, não vejo a hora de contar à mamãe que mudei de ideia! A lufada de ar provocada pelo salto passa pelo meu rosto.
4 MESES + 22 DIAS Quinta-feira, 27 de novembro
Eu acordo ao sentir alguma coisa rastejando pelo meu cabelo. Nate segura meu pulso, antes que eu bata em sua mão. — Está tudo bem. Sou eu. São 7h12 da manhã. Ele agora adquiriu o hábito de se esgueirar para dentro do meu quarto? Eu estou muito deprimida para apreciar a presença dele ali. Além disso, estou usando um short do Bob Esponja e uma camiseta amarela. Não é o pijama mais sexy do mundo. Nate passa os dedos entre os meus fios embaraçados. Então ele se deita ao meu lado, por cima das cobertas. Nossos narizes se tocam. — Minha mãe está lá embaixo — eu aviso com um soluço. — Não, ela foi chamar o meu pai. Queria ir ver Millie, mas não queria deixar você sozinha. — Eu pensei que você tinha ido caçar. Por que está aqui? — Tínhamos acabado de colocar a bagagem na picape quando ouvimos as sirenes. Cancelamos a viagem. Meu pai pediu para eu ficar de olho em você. — Ele fechou um olho e arregalou o outro. — É o que estou fazendo. Tasha está morta. Eu não devia estar olhando para os maravilhosos olhos castanhos de Nate, lembrando-me de quando estávamos nos beijando no estábulo. Os olhos são a janela da alma, Nana uma vez me disse. Eu juro que posso vê-la: a alma de Nate. Eu olho para ele até a sua boca encostar na minha. Ele afasta as cobertas sem interromper nosso beijo e seu corpo se molda confortavelmente ao meu. Eu derreto quando ele acaricia os meus seios e brinca casualmente com os cordões do meu short. Sem desamarrá-lo. Só testando até onde pode ir. Tasha está morta e eu estou aqui, cheia de tesão. Isso é muito, muito errado. Ele dá uma boa olhada no meu pijama. — Ei, Bob Esponja? — Foi minha mãe que comprou. — Me sentindo fraca, eu puxo o lençol. Quero me encolher como uma bola e nunca mais me mexer outra vez. — Nate, não foi suicídio. — Ela pulou na piscina vazia.
— Mas não foi suicídio. — Você...? Eu sei o que ele quer perguntar e está com receio. — Eu não vi — digo suavemente. — Cobri os olhos. Então Bennie me pegou e me arrastou até a lanchonete. O sr. Solomon chamou os bombeiros. E eu não conseguia parar de gritar. Gritei tanto que a minha garganta está machucada esta manhã. — Ela pulou — eu digo em voz alta. — Mergulhou de cabeça. Be-Bennie viu. Ele disse que as mãos tocaram o fundo da piscina primeiro. Eu escondo o rosto, agradecendo a Deus por não ter visto. Mas nunca vou me esquecer da lufada de ar que o mergulho provocou. Ou o barulho que fez quando ela bateu no fundo da piscina. — Eu não sei por que ela fez aquilo — eu falo com a mão na boca. — Mas contei a você o que ela disse. Não foi suicídio. — Isso não faz sentido! — ele explode. Como eu, ele está tremendo. — Primeiro Dino. Agora Tasha? Que diabos está acontecendo? — Você já sabe — eu sussurrei. Dessa vez ele não discute. Só me abraça mais forte. — Nate... aquilo que falamos outro dia... ainda quero fazer. — E eu ainda acho que é uma idiotice. — Se ela estiver lá, nós temos que saber. Você vai me ajudar, né? Nate solta o ar dos pulmões com força. — Rinn, não faz diferença o que Tasha disse. Bennie viu. Ninguém a empurrou. Eu balanço a cabeça com teimosia. — Não foi só o que ela disse. Ela viu alguma coisa, alguma coisa que eu e Bennie não vimos. E ela estava feliz, Nate. Feliz! Não estava pensando em morrer. — Eu puxo a cabeça dele na minha direção para que me olhe nos olhos outra vez. — Foi Annaliese. Você ainda não acredita em mim? — Eu não sei — ele diz com a voz abafada. — Rinn, juro pra você. Eu não sei em que acreditar.
Minha mãe volta no meio da manhã. A essa altura, Nate e eu já estamos no andar de baixo, sentados à mesa de jantar, embora ninguém nunca se sente lá e nem sequer estejamos comendo. — Como está Millie? — eu pergunto. Minha mãe joga o casaco sobre uma cadeira. — Um trapo. Bob chegou esta manhã. — O pai de Tasha. — Ele está com ela agora. — Ela me abraça por trás com os braços frios. — E você, como está?
— Estou bem. — Eu olho para Nate. — Podemos ir andar a cavalo? — Minha mãe olha para mim, perplexa. — Mãe, não consigo ficar aqui sentada sem fazer nada. — Eu me lembro de que Xan e todo o trabalho duro no estábulo desviaram os meus pensamentos de Meg, mesmo que temporariamente. Talvez também funcione com Tasha. — E você pode voltar para a casa da Millie — acrescento. Eu sei que ela quer ficar com a amiga. Eu ia querer, se Millie fosse minha amiga. Além disso, tudo o que minha mãe vai fazer é ficar me bajulando. Me perguntar milhares de vezes como eu me sinto, se eu quero conversar, se eu preciso de um psiquiatra. E assim por diante. Acho que não vou conseguir suportar isso. Nate aperta o meu joelho sob a mesa. — Eu vou cuidar bem dela, sra. Jacobs. — Bom, acho que tudo bem. Mas não fiquem lá o dia todo — ela avisa, pegando o casaco novamente. — E se eu não estiver aqui quando chegarem, vá para a casa da Millie. De mãos dadas, Nate e eu vamos até o jipe. Pela primeira vez, o ar frio de inverno é como uma carícia no meu rosto. O céu está azul e não cinza. Até o sol apareceu, para variar. É um lindo dia. Eu gostaria que Tasha estivesse aqui para ver.
4 MESES + 24 DIAS Sábado, 29 de novembro
No funeral de Tasha, enquanto estou ao lado do túmulo — pouco tempo atrás, era Dino. Isso não é justo! —, ocorre-me que sou a única pessoa que não está chorando. Eu raramente choro — não chorei nem mesmo quando estava gritando no escritório do sr. Solomon —, mas nunca me perguntei sobre isso nem quis saber por quê. Agora está perfeitamente claro: eu não choro como as outras pessoas pela mesmíssima razão que não posso ser “tocada” por Annaliese Gibbons. Os remédios. Eles silenciam as Vozes. Eles afugentam os vultos. Eles evitam que eu fique deprimida e inquieta e comece a fazer coisas como andar com estranhos, invadir propriedade alheia ou tentar roubar a arma de um policial. Eles também me mantêm suficientemente “animada” para não querer cortar a minha própria garganta. Sim, os remédios me mantêm a salvo — mas também me deixam meio entorpecida. Eu não consigo chorar quando estou triste. Nem sempre consigo rir de coisas engraçadas também. As coisas que costumavam me entusiasmar não me entusiasmam tanto. Meu violão, por exemplo. Estou tocando agora porque o professor Chenoweth me obrigou a tocar essa música, mas não estou adorando isso. Simplesmente faço. Claro que estou feliz por não estar mais doente. Feliz também por ver que mamãe confia em mim o suficiente para deixar os comprimidos comigo. Mas às vezes aquelas mesmas dúvidas de sempre me assaltam e eu me pergunto: se eu vivo o tempo todo entorpecida, estou vivendo de fato? Talvez eu quisesse chorar ao assistir a um filme triste ou porque alguém feriu os meus sentimentos. Ou porque estou num cemitério dois dias depois do Dia de Ação de Graças, sabendo que Tasha está naquele caixão cor-de-rosa. Pessoas normais não choram quando a melhor amiga morre? Talvez não ouvir nem sentir as coisas como as outras pessoas seja mais enlouquecedor do que ouvir e sentir coisas que as outras pessoas não sentem. E assistir a coisas ruins acontecendo aos meus amigos, um depois do outro, e não ser capaz de ajudar porque não consigo entender o que aconteceu com eles, porque sou uma ABERRAÇÃO PATÉTICA QUE VIVE DROGADA E ENTORPECIDA, é injusto!
E frustrante. E incrivelmente assustador. Annaliese existe! Nem Nate pode negar. Mas, se ninguém descobrir o que ela quer — e é claro que ela quer alguma coisa; não é por isso que os fantasmas ficam vagando por aí? —, quem pode saber que coisas terríveis ainda podem acontecer? Eu tenho que descobrir. Sim, tem que ser eu. Ninguém mais se importa o suficiente. Se eu já sou tachada de louca, não tenho nada a perder. Assim, tão logo Nate e eu fizermos o que temos que fazer, vou parar de tomar a medicação.
— Não, você não vai — diz Nate. — Sim, eu vou. — Essa discussão já está me cansando. — Rinn, você não vai fazer isso. — Você não vai me convencer. O funeral acabou. Como lagostas num aquário, estamos entre centenas de moradores da cidade, aglomerados no restaurante de Millie. — Nem todos eles — eu digo. — Só os que me deixam chapada. Eu só estou te contando para que você me avise se eu começar a ficar meio pirada. — Mais do que de costume? Como eu vou te avisar? Eu ignoro o sarcasmo. — Confie em mim. Você vai saber a hora de me avisar. Ouvimos um tumulto. Millie, contida por um homem careca e furioso que imagino ser o pai de Tasha, grita com Bennie Unger, encolhido de medo. — Você! É culpa sua! Não é obrigação sua manter os alunos longe daquela piscina? Por que você deixou que elas entrassem? — E-eu não deixei, dona Millie — defende-se Bennie. — Só-só aconteceu. — Só aconteceu, uma pinoia! Você estava lá! Por que não a impediu? — Libertando-se das mãos do sr. Lux, Millie avança contra Bennie. Eu automaticamente fecho os olhos, um novo hábito ultimamente. — Que tipo de zelador você é? Eu vou fazer você ser despedido, ouviu bem? É preciso meia dúzia de pessoas para contê-la. Bennie, chorando de vergonha, abre a porta e sai do restaurante aos tropeções. Quando o salão cai num silêncio prolongado e desagradável, eu penso: Viu? Até Bennie consegue chorar.
4 MESES + 26 DIAS Segunda-feira, 1o de dezembro
—
Querida, você quer ficar em casa hoje? Duvido que apareçam muitos alunos para as aulas.
— Mas você está indo — eu ressalto. — Bem, é meu emprego. — Você não pode ficar triste? — Sim, eu posso. Mas se eu ficar me lamentando hoje, vou querer me lamentar amanhã e depois de amanhã e depois... quem sabe? É engraçado a minha mãe dizer isso. Porque ela nunca fica se lamentando. O mais próximo que ela chegou de se lamentar por causa de Tasha foi, tarde da noite, quando eu a ouvi tocar Chopin. Uma música triste, que ela tocou repetidas vezes; e quanto mais tocava mais se atrapalhava. Eu acho que ela ficou exausta depois de passar tanto tempo com Millie. Com os olhos embaçados, minha mãe derrama leite no meu copo, esquecendo-se de que eu não bebo leite, que eu nunca bebo leite a não ser junto com cereais. Ele fica intocado enquanto ela leva embora a minha tigela de cereais vazia. E ela não se maquiou? Nem penteou o cabelo? Vai para a escola desse jeito? Ela está parecendo... bem, uma bruxa. — Talvez eu chegue tarde esta noite — eu digo, calmamente. Ela não pergunta por quê. — Se eu não estiver aqui quando você chegar, é porque estou na casa da Millie. — Tudo bem. Eu a sigo até o vestíbulo. Ela veste o casaco, alisando o cabelo dentro do capuz de pele. Quando eu dou um passo à frente para lhe dar, como sempre, um beijo de despedida, ela já está na varanda. O que está acontecendo? Ela está brava comigo? Magoada, volto para a cozinha para tirar meus comprimidos — minha última dose — dos frascos.
O sr. Solomon anuncia na primeira aula:
— Como vocês sabem, estamos todos de luto pela morte de Tasha Lux. — Metade das meninas rompe em lágrimas. Eu fico olhando a minha carteira enquanto ele continua — e depois eu o ouço dizer: — Para aqueles de vocês que continuam ignorando os meus avisos, muita atenção: aquela piscina é absolutamente proibida! Se eu descobrir que alguém esteve lá ou tentou abrir a fechadura, essa pessoa será imediatamente suspensa e muito provavelmente expulsa. Espero que isso tenha ficado bem claro. Droga. E agora? — Por mim — ele continua — aquele corredor externo — o nome que ele dá ao túnel — teria sido bloqueado. Mas como não há outra saída do ginásio, o corpo de bombeiros não permite. Agora, eu sei que alguns de vocês vão se sentir, hã, pouco à vontade andando por lá depois dos últimos acontecimentos. Portanto, estou permitindo que cortem caminho pelo ginásio. Tudo o que eu peço é que, se houver uma aula em andamento, vocês se mantenham junto à parede, para não atrapalhar. Bem, Cecilia Carpenter deve estar feliz com isso.
A escola é um tormento. Outro psicólogo especialista em situações de perda está sentado na lanchonete. Tanto alunos quanto professores passam o dia chorando. No almoço, quando me aproximo da mesa vazia, sou assaltada pela mais depressiva verdade de todas: todas as minhas amigas se foram. Meg. Lacy. Tasha. Estou sozinha. Vejo Cecilia conversando com Stacy Winkler, a garota do conselho estudantil, e com Pat Schmidt, aparentemente recuperada da mononucleose. Cecilia, sem dúvida se lembrando do nosso desagradável encontro no restaurante da Millie, não presta nenhuma atenção em mim. Eu me afasto da cena toda e vou dar uma olhada no vestiário dos funcionários. Nada de Bennie. Em seguida vou para a secretaria. — Mãe, Bennie não veio hoje? — Eu só quero saber onde ele está. Por pior que eu me sinta, ele deve estar se sentindo dez vezes pior. Especialmente depois do que Millie disse. Minha mãe olha para a tela do computador. — Eu não o vi. — Ele está doente? — Como eu vou saber?
— Dã, mãe. Não é função sua saber onde todos estão? Ela levanta a cabeça, mas olha através de mim, não para mim. — Você não devia estar a caminho da aula? — Então ela atende ao telefone que está tocando e me ignora totalmente.
Na noite anterior, Nate e eu planejamos nos encontrar depois das aulas. Eu sei que ele não acreditou que eu continuaria com a mesma ideia. Agora ele me pergunta, incrédulo: — Você não ouviu o que o diretor disse? — Ouvi. Mas você prometeu que ia me ajudar. — Bem, não para correr o risco de ser expulso. — Tudo bem, eu me viro sozinha. — Eu saio andando na frente, esperando que ele me siga. Ele faz isso, claro. Acho que eu amo esse cara.
Nós esperamos uma eternidade, até que não haja mais ninguém por ali e a maioria das lâmpadas já esteja apagada. Ficamos na oficina de marcenaria, isolados no porão, onde eu escolho cuidadosamente as minhas ferramentas. Então nos esgueiramos pelas escadas até o túnel. — Você é louca — ele tem que dizer. — Me diga alguma coisa nova. — Onde você aprendeu a arrombar fechaduras? — Você provavelmente não vai querer saber. Arrombar uma fechadura é muito mais difícil do que nos filmes. Eu ignoro a nova placa de “PERIGO — NÃO ENTRE” e examino a fechadura nova, a mesma que Bennie havia deixado cair no pé. Nate vigia o corredor de má vontade, enquanto eu insiro meu arame em forma de gancho e uma minúscula chave de fenda no trinco. Minha técnica é uma droga; aposto que o meu velho amigo Carlos conseguiria arrombar essa fechadura em dez segundos. Quando estou quase conseguindo, volto à estaca zero outra vez. Vinte minutos depois eu não cheguei a lugar nenhum. Gotas de suor molham a minha testa. Meus joelhos doem. Na porta do vestiário, Nate, cada vez mais impaciente, não para de dizer a mesma coisa: — Tem certeza disso? Sério, arrombar uma fechadura? Quem sabe fazer uma coisa dessas? Califórnia uma ova. Aposto que você veio de um gueto do Bronx...
Eu viro o arame pela centésima vez, forçando o mecanismo do trinco. — Eu sei o que estou fazendo. Pare de me subestimar. — Mexo o arame e empurro. Mexo e empurro. Estou quase desistindo quando ouço um clique. Rá! — Poxa! — ele parece impressionado. Quando a porta se abre, nós nos encolhemos ao sentir o ar gelado que vem lá de dentro. Também estou preparada com uma lanterna e uma corda de varal. Nate observa com desgosto enquanto eu amarro a corda no meu passante e dou uma ponta para ele segurar. — Aconteça o que acontecer — digo, sem fôlego —, não entre atrás de mim. — Eu não sei por que está fazendo isso — ele rebate. — Você estava aí dentro com Tasha. Alguma coisa aconteceu com você? Não. Então, para que fazer isso? — Eu só fiquei alguns minutos. — Eu sei que isso é verdade porque refleti muito tempo a respeito. Do minuto em que segui Tasha até a piscina ao momento em que ela subiu naquele trampolim, se passaram cinco minutos no máximo. Só pareceu uma eternidade. — Eu quero ter certeza. Então, me dê, tipo quinze minutos... — Dez. Eu concluo que não vale a pena discutir. Dez minutos ininterruptos podem ser tempo suficiente. — Tudo bem, dez. E, se nada acontecer comigo, eu provo a minha teoria. — Se nada acontecer, você prova que Annaliese não existe. — Que seja. Você fica aqui e segura a corda. E não se esqueça de me puxar se, você sabe, algo me atacar. He-he. — Minha risada fraca morre diante da expressão furiosa dele. — Um pequeno movimento, por menor que seja, e eu puxo você pra mim. — Ai, eu adoro quando você fala assim, desse jeito sexy! Como um esquimó saindo de um iglu quentinho na direção da tundra congelada, eu entro do recinto da piscina. Tenho bastante corda, no mínimo vinte metros. — Não entre! — eu grito, como se já não o tivesse avisado uma dezena de vezes. — Ok, ok. Ele fica segurando a extremidade da corda. — Dez minutos, surfista. Estou cronometrando. Puxando a corda, eu sigo na direção da cerca. O facho da lanterna dança sobre o arame trançado, lançando luz e sombra sobre a piscina, mais além. Piscina? Ou buraco negro da morte? Será que fizeram o pobre Bennie limpar o fundo da piscina também? Nauseada, eu faço uma pausa. Então direciono a luz para mais adiante, até que ela ilumine o buraco na cerca. Eu engulo seco. Não tenho certeza se consigo fazer isso...
Não. Eu tenho que fazer. Aciono a iluminação do meu relógio. Só se passaram dois minutos. Antecipando um ataque de pânico, eu respiro mais devagar. Meus dedos endurecem num arrepio. Meus dentes batem, mas se eu tentar parar só vou ficar mais tensa. Eu deixo que eles batam e continuo respirando e esperando... Respirando... Esperando... Minha respiração se condensa visivelmente sob o facho da lanterna. Sentidos em alerta total, meus dentes batem como címbalos à medida que ouso me aproximar mais do buraco na cerca, com os olhos fixos numa extremidade da piscina, mais além. Eu não sinto nada. Não sinto cheiro algum. Não vejo nada que lembre vagamente uma forma humana, fantasmagórica ou não. O que será que Tasha viu? De que segredo ela estava falando? Água pingando. Ouço intermitentes ruídos abafados, provavelmente da fornalha. O vento sopra por uma fenda que há numa das minúsculas janelas. Será que é por isso que é tão frio aqui? Eu consulto o relógio outra vez. Atinji a marca dos cinco minutos. Dou mais um passo na direção do buraco que se abre à minha frente, sentindo um arrepio quando me lembro de como a minha jaqueta ficou presa nele, sem que eu conseguisse me soltar e Bennie passar por mim... Cale a boca. Não pense em Tasha. Concentre-se em Annaliese. — Annaliese? Você está aí? — eu sussurro. — Rinn? — ouço Nate me chamar a distância, esperando no túnel. — O tempo está quase se esgotando. Não, não está. Eu tenho pelo menos mais quatro minutos. Contrariada, puxo a corda para ele saber que estou viva — pare de me amolar, caipira — e me viro para a piscina. — Annaliese? Você é real? Você está aí, em algum lugar? Só ouço pingos caindo e o barulho distante da fornalha. Nada. Absolutamente nada. — Rinn! RINN! Volte AGORA! — Ele puxa a corda com tanta força que o passante se solta da calça. A corda se afasta de mim, voando pelo ar como um laço de John Wayne. Zangada, eu volto para o túnel. — Você disse que eu tinha dez minutos!... Ele me arranca de lá sem dizer uma palavra. Eu caio no chão de joelhos. Sem me dar o direito de falar alguma coisa, ele me ergue do chão e me leva para o vestiário. Eu me esqueço de fazer silêncio.
— Que diabos você está fazendo? Ele bate a porta. — Vamos embora! Eu protesto, mas ele me arrasta pelo vestiário, pelo ginásio e pela lanchonete num passo tão rápido que tudo o que eu vejo é um borrão. Por fim, no saguão principal, eu consigo me soltar, resistindo ao impulso de chutá-lo. — O que há de errado com você? — Por que você não veio quando eu chamei? — Você não precisava ter me arrastado daquele jeito! Lívida de raiva, eu começo a abrir as portas duplas quando me lembro de que deixei minha mochila para trás. Dou meia-volta e disparo pelo mesmo caminho por onde viemos, com Nate nos meus calcanhares. Ocorre-me que entrar numa área restrita com um maníaco me perseguindo não é uma atitude muito sensata. — Não me toque! — eu rosno quando ele me alcança no ginásio. Chocado, ele levanta as mãos como quem se rende. — Caramba, Rinn. O que deu em você? — Você está me perseguindo. Quando as pessoas perseguem umas às outras, as coisas geralmente acabam mal. — Me desculpe, mas... só que não quero que você volte lá. — Ele dá um passo para a frente. Ao mesmo tempo, eu dou um para trás. — Eu não vou machucar você. — Ofegantes, olhamos um para o outro. Então Nate pergunta com cautela: — Você não ouviu, ouviu? — Ouviu o quê? Ele faz um gesto na direção do vestiário. — Se você está tirando uma da minha cara, Jacobs... — Eu não estou! Eu não ouvi nada. O que você ouviu? — Eu digo pra você lá fora. Vamos embora. — A minha mochila! — Você pega amanhã. — Não! Meu nome está nela. Eu não quero ser expulsa da escola! Indeciso, Nate hesita. — Tudo bem. Mas eu vou pegar. Você espera aqui. — Não se esqueça da corda. E da minha lanterna! Ele dispara pelo corredor, deixando-me escondida nas sombras. Eu fico saltando de um pé para o outro, com os olhos colados no ponteiro dos segundos do relógio da parede. Sessenta segundos... dois minutos... cinco minutos... sete.
Por que ele está demorando tanto? Por que eu o deixei voltar lá sozinho? Por fim, eu não aguento mais esperar. Saio atrás de Nate e colido com ele quando está saindo do vestiário. Irritado, ele joga minha mochila contra o meu peito. — A propósito, todas as suas coisas foram caindo pelo caminho. — Espero que você tenha recolhido. — Eu estou sem fôlego quando corremos de volta para fora. — Espero que você não tenha deixado nada para trás com o meu nome. — Nenhuma resposta. Corremos para as portas principais, onde Nate para de repente. — O que foi? — Você não ouviu mesmo? — Eu nego com a cabeça. Ele me olha por uma eternidade. — Eu não sei dizer o que foi. Era uma espécie de voz, mas não uma voz de verdade. É difícil descrever. — O que ela disse? — Nada. Era só um... uivo. — Como um cachorro? — Talvez “lamento” seja uma palavra melhor. Como se estivesse tentando nos afugentar. — Nate estala os nós dos dedos. — Mas não como uma pessoa. Jesus, Rinn! — Ele passa as mãos pelos cabelos, com impaciência, e então para, atônito, e olha para a mão. Seus dedos estão molhados. Com o coração batendo na boca, eu estendo o dedo para examinar o cabelo dele. Cristais de gelo, como vidro estilhaçado, cobrem todo o topo da sua cabeça.
4 MESES + 27 DIAS Terça-feira, 2 de dezembro 1º Dia de Experimento
Sem remédios, eu passo o período das aulas sem nenhuma “falha no sistema”. Tudo o que eu percebo é que, às duas horas da tarde, estou bem acordada, nem um pouco grogue e meu cérebro trabalha mais rápido. Eu queria saber quanto tempo isso vai durar. Durante todo o dia eu espero o sr. Solomon irromper no ginásio, no meio da aula de educação física, gritando que alguém invadiu a piscina outra vez. Sim, porque, depois que se arromba uma fechadura, não dá mais para consertá-la, é claro — um fato de que me esqueci até que o meu plano já estivesse em curso. Mas eu sei que Nate fechou aquela porta; ninguém vai notar que a fechadura foi arrombada, a não ser que tente entrar lá. Com Bennie afastado do trabalho, isso pode demorar um pouco. Eu brinco com o nome de Annaliese, rabiscando-o num papel. Eu não tenho nenhum plano. Deveria ter um? Escrevo o nome dela pela segunda vez, e então o cubro com o dedo antes que alguém veja. Annaliese. Onde você está? Como eu vou saber qual é a hora de encontrar você?
4 MESES + 28 DIAS Quarta-feira, 3 de dezembro 2º Dia de Experimento
No meu sonho, Annaliese está tocando piano e eu estou sentada lá, olhando para ela como se fosse a coisa mais natural do mundo... Então eu abro os olhos e está escuro e a música é real, não faz parte do meu sonho. Eu consulto o relógio. Por que mamãe está tocando piano às quatro da manhã? Sinto o cheiro de cigarro. Desço as escadas sem fazer barulho. Minha mãe se atrapalha com algumas notas, depois tenta outra vez. Não consegue. Tenta de novo e de novo. Mais uma vez e não consegue o tom certo. — Mãe? Ignorando-me, ou talvez não me ouvindo, ela continua a martelar as mesmas teclas erradas. Eu ando até ficar atrás dela e toco o seu ombro. Ela golpeia as teclas com as mãos, com estardalhaço. — Meu Deus, Rinn! Não fique se esgueirando por esta casa desse jeito! Por esta casa? Por quê? Se fosse em outra casa isso não seria tão assustador? — Eu não estou me esgueirando. Você só não me ouviu chamar. — Eu aponto para o cinzeiro cheio de bitucas de cigarro, onde a fumaça do último ainda espirala pelo ar. Dou uma espiada no maço. É a marca de Millie. Eu não disse nada na noite em que ela fumou com Luke, mas agora sinto que não posso deixar passar. — Por que você está fumando? Estava indo tão bem... Ela pega outro cigarro. — Não me aborreça. Eu preciso de um. Estou passando por uma semana infernal. Tenho o bom senso de não salientar que ela provavelmente já fumou um maço inteiro, não apenas um. Ela exala um forte cheiro de nicotina e parece cansada e desarrumada. — Você levantou tão cedo assim? — Não conseguia dormir. E parece que não sei mais tocar esta música também. — Lamuriandose, ela agita a partitura como se para acordá-la. — Pode fazer um café pra mim? Então eu faço café, ouvindo o tempo todo minha mãe lutar para encontrar o tom certo. Eu me
pergunto: Será que sonhei com Annaliese porque ouvi mamãe tocando durante o sono? Ou mamãe está tocando piano porque eu sonhei que Annaliese estava tocando? É um pensamento engraçado, embora não seja tão disparatado assim. Imaginando se eu devo continuar nessa linha de raciocínio, tomo meus anticoncepcionais e jogo os remédios psicoativos na pia. Eu sei o que vou observar. Vou prestar muita atenção. Nate prometeu me ajudar. Eu ficarei bem.
4 MESES + 29 DIAS Quinta-feira, 4 de dezembro 3º Dia de Experimento
Recebemos o horário das aulas do próximo semestre. Eu faço algumas alterações, como mudar o horário de duas aulas para que eu possa almoçar com Nate. A solidão da hora do almoço me deprime. Hoje eu me sentei com duas garotas da aula de educação física, mas tudo o que elas queriam era conversar sobre Tasha: — Você estava lá, não estava? — É como se elas estivessem me culpando. — Você a viu cair? — Como se eu quisesse falar sobre isso. — Vocês eram amigas. Ela não disse nada? Como você não percebeu que ela queria se matar? — Como se eu soubesse que ela tinha planejado isso. Mas ela não planejou nada, nem nunca disse uma palavra a respeito. Rinn — nada do que aconteceu foi culpa sua. Então por que eu sinto que foi? Porque você é louca, Rinn. É isso que os loucos fazem. Eu me levantei da cadeira no meio da conversa delas — e da minha — e joguei o meu almoço no lixo.
5 MESES EXATOS Sexta-feira, 5 de dezembro 4º Dia de Experimento
Estou
triste por Tasha. Sinto muita falta de Meg. Mas não estou nervosa, nem letalmente deprimida, e a única Voz que eu ouço na minha cabeça é a minha própria. Ou eu não preciso daqueles malditos remédios, no final das contas, ou já os tomei por tempo demais e agora eles não fazem mais efeito. No entanto, isso me deixa pensando: e se eu não for mais bipolar? E se a doença simplesmente desapareceu? E, se eu acreditar no que leio ou naqueles evangélicos da TV, as pessoas se curam de doenças terríveis o tempo todo. Por que não eu? Esta manhã, minha mãe também não separou os meus comprimidos nem me lembrou de tomá-los. Será que ela realmente confia em mim? Ou não se importa mais? De todo jeito, os comprimidos vão para a pia.
Eu deixo de almoçar e fico na biblioteca, preocupada com a porta da piscina. Bennie ainda não voltou. Será que isso significa que ninguém descobriu a fechadura arrombada? Será que vão contar ao sr. Solomon se descobrirem? Ele mandará que a consertem na mesma hora? Eu me torturo com esses pensamentos durante quase todo o horário de almoço. Aquela porta tem que ficar trancada! Ninguém mais pode entrar lá! É muito perigoso! Eu deixo a biblioteca, corto caminho pelo auditório e sigo para o túnel. Desde que Tasha morreu, ninguém mais o usa. Até os atletas mantêm distância. Eu hesito, me lembrando com um arrepio daqueles cristais de gelo no cabelo de Nate. É engraçado como nós dois estamos tão apavorados que nunca mais tocamos no assunto. Pego na maçaneta. Os meus dedos ardem ao tocar o metal. Espere por Nate. Não tente fazer isso sozinha. Destrancada, como eu temia, a maçaneta abre facilmente.
Isso é cheiro de cloro? Eu abro uma fresta da porta, me perguntando por que estou fazendo isso, mas sem conseguir me convencer a parar. Rinn, a Destemida, Nate me chamou um dia. — Eu sei que você está aí — eu disse baixinho, vagamente consciente dos meus dedos queimando. Com um barulho audível, a maçaneta é arrancada da minha mão. A porta se fecha com um baque. Minha garganta se contrai, eu disparo pelo túnel e volto para o mundo real. A sensação pegajosa de cera de velas fica na minha mão durante o resto do dia.
5 MESES + 1 DIA Sábado, 6 de dezembro 5º Dia de Experimento
—
Você parece diferente — Nate observa. — Está usando maquiagem?
— Estou. Desodorante também — brinco. — Até depilei as axilas para você. Nate topa a brincadeira. — Bem... Você caprichou mesmo! Acho que vou ter que te convidar para sair um dia desses. — Quer dizer que vai até pagar a conta e tudo mais? — Isso mesmo. Que tal esta noite? — ele pergunta no seu tom de voz normal. Eu penso a respeito. Adoraria fazer alguma coisa diferente, em vez de ficar pelos cantos, remoendo a minha tristeza. Existe um protocolo a seguir quando uma grande amiga morre? Tipo, não sair com rapazes durante um mês? Nenhuma risada por um ano? — Não tem nada pra fazer nesta cidade sábado à noite. — Podemos ir de carro até Westfield, assistir a um filme. Talvez sentar no fundão e jogar pipoca na cabeça de quem estiver na frente. Meu estômago dá uma cambalhota quando o sorriso de Nate me assegura que jogar pipoca na cabeça dos outros não é tudo o que ele tem em mente. — Uau! Vocês, garotos da roça, sabem mesmo como divertir uma moça, sô!
Nós abrimos mão de jogar pipoca na cabeça dos outros, mas nos sentamos no fundão. Eu devo estar mais deprimida do que pensava, porque fico me perguntando se tenho o direito de me divertir. Como posso continuar a minha vida como se nada de horrível tivesse acontecido? Eu sinto que é muito errado estar ali. Nate leva menos de um minuto para me tirar dessa deprê. Eu me sinto segura com ele e ele me abraça mais apertado do que nunca, como se precisasse disso tanto quanto eu. Nós nos beijamos até eu sentir as bochechas arranhadas pela sua barba malfeita. Felizmente o filme é meio estranho e só tem mais dez pessoas no cinema e ninguém para ver as nossas mãos bobas. Então por que eu sinto como se alguém me vigiasse?
Ridículo! Ninguém está prestando atenção em nós. No entanto, mais de uma vez tenho que me endireitar no assento e olhar em volta, no escuro. Aquele homem ali, duas fileiras à frente — ele não estava mais longe alguns minutos atrás? — Qual o problema? — Nate pergunta. Eu balanço a cabeça e volto a beijá-lo. Sob a minha blusa, suas mãos são quentes sobre a minha pele. Ele puxa a minha blusa de dentro da calça jeans e a levanta. Vadia, vadia, você é uma vadia, é isso o que você é, nunca vai mudar, não é, Rinn? Eu digo a mim mesma que não estou ouvindo isso, que o homem duas fileiras à frente não pode saber o meu nome. Ainda assim, o sussurro desprezível continua: Olhe pra você, você me dá nojo, sua piranha, não está vendo que eu posso ver você, que TODO MUNDO pode ver você? Ah, sim, a gente está te olhando... estamos olhando pra você, Riiiinn... — Para! — eu grito. Nate se afasta num sobressalto. — Hã? Com o coração na boca, eu olho para a frente. O homem se foi. Tudo o que eu ouço agora são os atores rindo na tela e os passos de dois garotos descendo até a fileira da frente. — Caramba, Rinn — exclama Nate, mal-humorado. — Eu pensei que você, quer dizer, pensei que nós... — Eu não estava falando com você. Nate olha em volta rapidamente. — Ah, então com quem? — Eu encolho os ombros, sem saber o que responder. As luzes da tela refletem nos olhos de Nate, deixando-os indecifráveis. — Tudo bem. Então é isso que você quer dizer com ficar meio pirada? — Está tudo bem — digo com franqueza. — Desculpe. Bem? Eu fico pensando na maçaneta da porta da piscina, como ela parecia queimar a minha mão, como a porta bateu sozinha. Se eu contar a Nate sobre isso, será que ele vai pensar que é apenas a tal “piração” de que eu o avisei? Ele me beija de novo antes que eu possa mudar de ideia.
Está nevando mais ainda quando saímos do cinema. Geralmente Nate me deixa dirigir o jipe, mas de maneira nenhuma eu vou dirigir na estrada coberta de neve e no escuro. Depois de uma viagem vagarosa e traiçoeira, chegamos em casa depois da meia-noite. Embora eu não tenha um toque de recolher oficial nos finais de semana, minha mãe pode querer me matar; eu pensei que estaríamos
em casa lá pelas onze da noite. Nosso beijo de boa-noite dura aproximadamente noventa segundos. Dentro de casa, descubro que a nossa sala de estar, antes limpa e antiquada de um jeito charmoso, agora parece transformada num imenso cinzeiro. Minha mãe, no sofá, solta baforadas e assiste a um programa de entrevistas que vai ao ar tarde da noite. — Desculpe pelo atraso — anuncio. — Levou uma eternidade pra gente chegar. — Esperei pelo sermão, mas minha mãe não diz nada. — O que há de errado? Os olhos da minha mãe se desviam da TV para olhar os meus. Ela solta mais uma baforada. Eu não consigo resistir: — Mãe, você precisa parar de fumar. Isso é nojento. — Não se preocupe, querida. — Ela bate um cilindro de cinza no cinzeiro. — Eu não vou pôr fogo na casa. Eu vacilo. Ela realmente disse isso pra mim? Ela DIRIA isso? Eu me refugio no meu quarto, com suas reconfortantes paredes acinzentadas, e limpo o suor das minhas mãos trêmulas.
5 MESES + 2 DIAS Domingo, 7 de dezembro 6º Dia de Experimento
Eu não durmo a noite inteira. Fico deitada ali durante horas, pensando no meu Rivotril, no andar de baixo; bastaria um comprimido para me nocautear por algumas horas. Dois me fariam dormir como um anjo até de manhã. Três poderiam me manter inconsciente até o meio-dia. Quatro ou cinco poderiam me fazer acordar só na segunda-feira. Eu poderia me poupar todo o dia de hoje — que grande ideia! Porque, se eu não dormir, a minha cabeça vai explodir! Quando eu fecho os olhos pela milionésima vez, vejo o rosto de Annaliese pela milionésima vez. Que tipo de amiga Annaliese seria? O tipo que seria mais simpática com Lacy, que a aceitaria pelo que ela é? Que chamaria os bombeiros quando soubesse que havia algo errado na casa de Meg, em vez de correr para a casa de Nate primeiro, perdendo um tempo precioso? Que conseguiria ler a mente de Tasha e mantê-la longe da piscina? Que nunca abandonaria Dino? Que correria de volta para o chalé no segundo em que visse aquelas chamas e arrastaria a sua avó inconsciente até um local seguro? Eu tive a chance de fazer tudo isso. E não a aproveitei em nenhuma dessas ocasiões. Annaliese não teve chance de fazer coisa alguma, nem certa nem errada. Eu acendo o meu abajur e faço uma busca para achar um estojo de pó compacto. Abro a tampa e fito o espelho redondo e empoeirado na minha frente. Olho bem dentro das minhas íris acinzentadas. Quanto mais eu olho, mais claras elas ficam, mais pálidas e brilhantes, até que se tornam duas moedas prateadas. É você, Annaliese, se escondendo dentro de mim? Como você seria se estivesse viva? As pessoas gostavam de você? Odiavam você? Você era boa aluna na escola? Ou uma aluna medíocre, como eu? Você estava apaixonada por alguém?
Acho que estava. Você parecia triste naquele anuário, mas eu sei que só estava perdida em outro mundo, pensando nele, contando os minutos para vê-lo. Quem quer que fosse, ele amava você. No entanto, deixou você morrer. Eu ouço a resposta dela: “Sim, ele deixou. E eu o odeio por isso”. Minhas palavras, minha voz. Mas eu não sei por que eu disse isso. Eu jogo o pó compacto no outro lado do quarto.
Dormir. Quem precisa disso? São sete da manhã. Eu já esvaziei todas as caixas de mudança que ignorei durante semanas. Já organizei meus livros em ordem alfabética, troquei os lençóis, organizei meus CDs, tomei banho e me vesti. Em seguida contemplo as minhas pilhas de roupas e decido que estou cansada de guardá-las em cestas de lavanderia. Eu separo e guardo cada peça por cor e estação, depois desço as escadas para perguntar à minha mãe sobre a cômoda de Annaliese. Ela disse que eu poderia usá-la. Eu encontro um bilhete sobre a mesa: Estou na casa da Millie. Provavelmente vou levá-la para almoçar fora. Comporte-se! Millie outra vez. Eu amasso o bilhete. Comporte-se? Fala sério! Eu peço a ajuda de Nate para mudar a cômoda de lugar. É muito difícil manejá-la na escada estreita, e também fazemos um buraco na parede quando chegamos ao topo da escada. — Que beleza! — eu digo olhando para o buraco, embora a culpa não seja só dele. Ele cai no meu colchão ofegando com exagero. — E agora? — Agora você pode me ajudar a limpá-la — eu digo, apontando com o queixo para a cômoda, uma caixa de madeira de cerejeira com quatro gavetas espaçosas — e colocar as minhas coisas aí dentro. Ou... — Ele arregala os olhos quando eu abro o primeiro botão da minha blusa. — Podemos fazer sexo. — O quê? Eu desabotoo o segundo e depois o terceiro. Nate me observa, fascinado. — Minha mãe vai levar Millie para almoçar. Temos bastante tempo. — O quarto e o quinto botões se abrem. Eu desvisto as mangas da blusa, querendo saber por que ele está olhando para mim desse jeito estranho e por que eu sinto como se estivesse interpretando uma personagem de um filme. Corta! Edita! — E então? Sem fala, ele espera até eu tirar o jeans. Então se levanta do colchão como se lançado por uma
mola. — Para. — Minhas mãos hesitam. Eu posso ver que ele está se esforçando para se concentrar no meu rosto, e não na minha calcinha. — Talvez não seja uma boa ideia fazer isso agora. Sabe, não desse jeito, como se não fosse nada especial. — Quem disse que não é especial? — eu pergunto, de um jeito sexy. — Você bem que estava morrendo de vontade ontem à noite. — É, eu... — Ele dá um passo para a frente quando eu volto a vestir o jeans, mas para, ao ver meu olhar de advertência. — Olha, não fique brava. Mas, quando você me disse para avisá-la quando “pirasse”, você não foi muito específica. Então eu fiz algumas pesquisas e, bem... esse é um dos sinais. — O quê? Ele apontou um dedo para mim, depois para ele mesmo e depois para mim novamente. — Você sabe. Isso. Eu jogo minha blusa nele. — Dane-se. Obrigada pela sua ajuda. Pode ir para casa agora. — Rinn... — Tchau, Nate. Se eu fosse de gritar, estaria aos berros agora. Eu não posso acreditar que ele me rejeitou! Como ele pode ter dito não? Com o rosto virado para o colchão, eu enterro as unhas no travesseiro, odiando Nate. Odiando a mim mesma ainda mais.
Eu acordo de um sono atrasado e sem sonhos com o barulho de portas de carro batendo lá fora. Tonta e desorientada, e morrendo de sede, desço até o primeiro andar, tateando as paredes no escuro e ouvindo Millie se lamuriando. — Eu estou sendo castigada, Mo. Estou sendo castigada! — Não seja ridícula — minha mãe discorda. Do alto dos degraus eu a ouço encher uma chaleira com água e colocá-la no fogo. — Você sabe que a culpa não é sua. — Então de quem é? A minha filhinha se matou. Como eu posso conviver com isso? — Os soluços tristes de Millie são abafados pelas palavras de conforto da minha mãe. — Por que eu não percebi? Por que não vi que a coisa ia acontecer? — Porque às vezes não dá pra perceber. Eles não falaram isso naquele grupo de apoio?
Millie funga e soluça ao mesmo tempo. — Grupo de apoio uma pinoia. Eles não faziam a menor ideia. Você não faz a menor ideia. — Eu faço ideia, sim. Você sabe que eu faço. Não fale de mim, mãe. Por favor, não diga nada. Eu entro bem devagar na sala de estar, depois na sala de jantar. — Não é a mesma coisa. Você simplesmente não sabe! — Então me diga, Mil. Um breve silêncio. Então Millie pergunta em voz baixa: — Onde está Rinn? — Eu não sei. Lá em cima. Millie, por favor, por que você acha que é tão diferente? Por que você acha que está sendo castigada? Tudo o que eu ouço é um longo murmúrio. Eu me aproximo na ponta dos pés e fico na porta da cozinha. Ali dentro, vejo Millie com as mãos cobrindo o rosto e fungando. E minha mãe, pálida e rígida, com uma mão pressionada contra a boca. O que Millie acabou de dizer a ela? Por que eu não ouvi? A intuição da minha mãe entra em ação. Ela olha na direção da porta. — Rinn! Você estava ouvindo a conversa? Millie emite um pequeno gemido e eu finjo inocência. — Não, eu só preciso de um copo d’água. Minha mãe aponta para a pia. Então pegue e suba. — Bem, você não tem que falar assim comigo só por causa disso! — eu retruco. — E você não tem que ficar ouvindo atrás das portas a conversa dos outros. Constrangida e furiosa, eu dou meia-volta e saio pisando duro, voltando por onde vim. Lá em cima, bato a porta do sótão e corro para o meu quarto. Com um guincho de frustração, eu me jogo no colchão. Eu me sinto tão bem gritando que faço exatamente isso. Então faço de novo. E de novo! Ninguém liga.
5 MESES + 3 DIAS Segunda-feira, 8 de dezembro 7º Dia de Experimento
Mais uma vez meus pensamentos desenfreados me mantêm acordada a noite inteira. Eu ando pela casa a esmo, sem ter o que fazer. Até dou uma saída e contorno o quarteirão, apreciando a quietude da noite fria e escura. Eu dou uma parada na escola e me sento nos degraus da frente para observar as nuvens cobrindo a lua. Mas os mesmos pensamentos e lembranças dão voltas na minha cabeça, sem trégua, como se não uma, mas milhões de músicas se repetissem na minha cabeça ao mesmo tempo. Quando um carro freia ao parar no meio-fio — estupradores, assassinos seriais, me espreitando? —, eu dou um pulo e volto correndo para casa. Faço café, troco de roupa e ligo o rádio no volume máximo — o que você acha de ser acordada no meio da noite, mãe? —, mas isso não surte nenhum efeito. Por fim, eu vou para a escola mais cedo do que de costume, para evitar Nate. Eu não sei se estou furiosa com ele porque ele me rejeitou ou se estou furiosa comigo mesma por ter me oferecido daquele jeito. Por que fui fazer aquilo? Eu não faço ideia! Lá pelas onze da manhã, decido exigir que ele me peça desculpas. Por volta do meio-dia, mudo de ideia. À uma da tarde, não só mudei de ideia novamente, como penso seriamente em voltar a tomar os meus remédios antes de tentar transar com alguém. Com o professor Chenoweth, talvez. Nunca se sabe. Mas depois da escola, sem saber outra vez o que fazer, corro para casa sem nem procurar Nate. Superagitada, embora tenha dormido muito pouco, faço toda a minha lição de casa, arraso em biologia e passo a noite toda no exílio, ouvindo as músicas antigas favoritas de Frank no meu iPod. Será que ele ligou finalmente? Se ligou, minha mãe não disse nada. Ligue para ele, Rinn. E se ele desligar na minha cara? Arrisque! Não posso. Estou com medo. Porque você é um bebezão. Você é patética. Patética!
Meus pensamentos aceleram cada vez mais: eu penso em Frank, depois em Nate, e em como eu tirei toda a roupa — por que ele me rejeitou? Eu sou feia? Ele é gay? Ele secretamente me odeia? — e minha mãe não liga que eu não tenha comido nada ontem à noite, nem o dia inteiro, sério, e nem descobriu que não estou tomando os remédios, ela se importa? Não, não se importa, e Millie está sendo castigada, ela foi cruel com Tasha e eu sinto falta dela, muita falta dela, e de Meg também, Meg, Meg, eu preciso praticar a música “My Sweet Lord”, mas não consigo pensar direito, ah, merda, não consigo me sentar quieta, talvez um Rivotril, não, não, lembre-se de Annaliese, Annaliese, ah, Nana, onde você está e por que me deixou?
Às três da manhã, meu quarto está meticulosamente arrumado, cada peça de roupa cuidadosamente dobrada e guardada nas gavetas — não, nas gavetas de Annaliese. Então eu pego o meu violão e canto “My Sweet Lord” em voz baixa, torcendo para não quebrar uma corda com a força com que estou tocando. Eu ouço música outra vez e é mamãe tentando tocar “Für Elise”. Quem diria que ela estudou música na faculdade, que poderia tocar profissionalmente um dia se o “Señor Jay” não a tivesse engravidado? Ela toca as mesmas duas notas vezes e vezes sem conta. Eu cerro os dentes até meus maxilares doerem, então ligo o rádio — alto — e abro o meu livro de biologia. Leio quatro capítulos inteiros e, por incrível que pareça, absorvo cada palavra sobre autotróficos, heterotróficos e fotossíntese. — A-rá! Viu? — Radiante, deixo o livro de lado. Com todas aquelas substâncias químicas venenosas sendo expurgadas do meu corpo, posso pensar com mais clareza e compreender melhor as coisas. Até biologia! Satisfeita, eu me visto para ir à escola às quatro e meia da manhã e pego a minha mochila e o violão; o professor Chenoweth marcou para hoje à noite o nosso primeiro ensaio para o concerto de Natal. Quando eu passo gloss, noto no espelho o reflexo da minha parede e uma rachadura feia na pintura. Eu me lembro de ter perguntado a Nate sobre a nova parede de gesso e por que ele não deixou as paredes como eram. Ele só disse que “o papel de parede era muito feio” e nada mais. Eu largo o gloss, me agacho no chão e observo a imperfeição na parede. Dentro da rachadura vejo um pedacinho de papel de parede florido, então cavo a parede até fazer um buraco grande o suficiente para notar algo diferente. Tem algo escrito à mão na parede? Eu tenho que ver! No andar de baixo, eu passo pela minha mãe, enquanto ela destroça uma música de Beethoven, e vasculho o amontoado de ferramentas que ela guarda embaixo da pia. De posse do necessário, corro de volta para cima. Depois de dar algumas marteladas e escavar com a chave de
fenda, a rachadura se transforma num buraco do tamanho de um livro. À distância, ouço a música de David Gilmour “Não Há Como Escapar Daqui” saindo dos meus alto-falantes. — Não há saída, hein? — Uso as minhas ferramentas no mesmo ritmo da música. — Isso é o que você pensa. Bato, bato, bato com o martelo. Então cavo, torço e esfrego com a chave de fenda. Pedacinho por pedacinho, vou retirando o gesso da parede, assombrada pelas palavras de Gilmour, os mesmos acordes da sua guitarra soando várias e várias vezes... Quando finalmente dou um passo para trás e observo o buraco, que ficou bem maior depois que eu arranquei alguns pedaços de gesso com as mãos, posso ler com facilidade o que foi escrito à mão no papel de parede desbotado. Versos bíblicos. Um trecho de um hino que todo mundo conhece: “Eu um dia fiquei perdido, agora me encontrei”.[2] E ANNALIESE — ANNALIESE — rabiscou aquilo centenas de vezes. Atrás de mim, minha mãe grita por sobre a música ensurdecedora: — Rinn! O que você está fazendo? Eu pisco. Estou de pé ao lado da parede, coberta de pó de gesso e pedaços de parede arrancadas. Uma música pop sai aos brados dos alto-falantes — não é Gilmour — e meu relógio de cabeceira diz que são 6:07 da manhã. — Corinne Katherine Jacobs. Você pode, por favor, me explicar por que está derrubando as paredes? De repente, fico incrivelmente feliz. Essa pessoa é exatamente como a minha mãe — não aquela estranha mal-humorada e noturna que não sabe tocar Beethoven, só fuma e faz comentários desagradáveis sobre pôr fogo em casas. Eu aponto, triunfante, para a parede mutilada. — Mãe, olha o que ela escreveu! O nome Annaliese e todos esses versos bíblicos e... Minha mãe chega mais perto da parede. Ela já está arrumada para ir para a escola. Cheira a sabonete e xampu e, lá de baixo, vem um cheirinho de café. — Querida, o que está acontecendo? — Nada! Eu só queria olhar o que tinha embaixo da parede de gesso. Ela me lança um olhar exasperado. — Você faz ideia de quanto vai custar para consertar isso? — Mãe, não percebeu ainda? A sra. Gibbons estava tentando se comunicar com ela. Ela fez isso na escola também. Na piscina, com a srta. Prout! Com a chave de fenda a postos, eu me movo na direção do buraco — é incrível como ele é muito
maior do que eu pensava —, mas minha mãe pega o meu braço. — Pode parar! — Ela aponta para a grande sujeira no chão. — Você vai recolher tudo isso. Vou trazer o aspirador. E não ouse tocar nesta parede outra vez. Você por acaso tem 5 anos de idade, Rinn? Ela desce as escadas com passos pesados. Confusa agora, eu fico parada ali, fitando o buraco. Ele tem a minha altura. Talvez um metro de largura. Que diabos eu acabei de fazer?
— A piração começou — eu murmuro para Nate em frente ao meu armário. — A de verdade. Graças a Deus ele está falando comigo. — O que você fez? — Eu descasquei uma parede. Bem, não toda ela, mas... — Que parede? Eu estreitei os olhos. — Uma daquelas que você revestiu. — Ah, tá — ele diz, sem expressar nada. — Por que você não me contou que a sra. Gibbons tinha escrito todas aquelas coisas? — Porque eu não queria assustar você. — Nate acena para o corte no meu pescoço enquanto eu me preparo para repreendê-lo. — Olha, foi você que me contou sobre isso. Como eu ia saber como você ia reagir? Acho que não posso culpá-lo. — Tudo bem, então você pôs a parede abaixo. Isso é uma piração — ele concorda. — Mas é loucura? — Bem, também tem aquela coisa da distorção no tempo. — Eu explico que perdi duas horas. Que ouvi a mesma música várias vezes enquanto o buraco de vinte centímetros que eu queria cavar se transformou numa caverna. — Eu juro que foram só uns quinze minutos. Eu comecei às quatro. Quando a minha mãe entrou eram seis. — Ok, isso é loucura. — E o que eu fiz... — Eu vacilo, sabendo que tinha que enfrentar isso — com você. Outro dia... Nate sorri. — Em qualquer outra circunstância, eu definitivamente não resistiria ao seu convite. Com as bochechas ardendo, eu o pressiono. — De qualquer maneira, acho que precisamos colocar aquele plano em ação hoje, antes que eu faça algo pior. Talvez depois da escola? Depois do ensaio? — Como Nate está na orquestra, ele vai
estar lá também. Seu sorriso desaparece. — Acho que tudo bem. Mas ainda é uma péssima ideia. — Bem, se você não quer, vou sozinha, então. — Eu rezo para que ele não me pergunte como eu pretendo segurar os dois lados da corda. — Sozinha o caramba!
Nate espera em silêncio enquanto eu amarro a corda de varal ao redor da cintura dessa vez, pois não confio mais nos meus passantes. — Acho que não vou conseguir convencer você a desistir disso, né? Eu tiro a lanterna da mochila. — Eu vou ficar bem. Só preste atenção. De repente, ele grita comigo: — Não, você preste atenção. — Ele abafa meu aviso para que não grite, falando: — Fantasmas não existem, Annaliese não existe e eu não faço a mí-ni-ma-i-de-ia do que você está tentando provar aqui. Chocada com seu tom agressivo, eu rebato: — Você tinha gelo nos cabelos. E está tão apavorado que nem falou sobre isso! Então não minta para mim dizendo que não acredita em fantasmas! Ele me olha de cima sem conseguir falar, tamanha a sua fúria. É então que percebo: ele está escondendo alguma coisa. E está escondendo isso desde a última vez em que estivemos ali, quando ele saiu do vestiário com o cabelo cheio de gelo. Nate me dá um empurrão. — Faça, então. Você tem cinco minutos dessa vez. Eu mostro a língua e testo a porta para ver se abre. De início eu não percebo nada diferente; está tão escuro e frio quanto da última vez em que estive aqui. Agora, no entanto, tudo está em silêncio. Nada de barulhos da fornalha. Nada de vento soprando. Eu aspiro o ar lentamente, para perceber algum cheiro. O ar me lembra uma noite úmida de verão. Mas muito mais fria, é claro. Um cheiro assalta as minhas narinas quando respiro fundo novamente. Cloro. Eu não senti esse cheiro na sessão. Todo mundo sentiu, menos eu. Quando, nervosa, eu direciono o facho da lanterna para o buraco negro da piscina — através da cerca dessa vez; não vou chegar perto do buraco do Dino — o cheiro de cloro me envolve e fica
muito mais forte. Eu esfrego o nariz e olho para trás, procurando a sombra de Nate. Acho que a vi. Pelo menos espero que seja ele. Minha língua brinca com os meus lábios, que estão escorregadios e oleosos como — óleo de bebê? Eu inclino a cabeça, absolutamente consciente do ar pesado e viciado roçando no meu rosto. Isso está realmente acontecendo? Está mesmo? Quando ouço um barulho, automaticamente suspeito que é Nate. Ele está querendo te fazer mudar de ideia. Quer que você saia daqui. Quando eu ouço o barulho pela segunda vez, sei que estou errada. Um som humano, parte suspiro, parte lamento, sai do buraco negro. Suave e insistente, o lamento fantasmagórico dá voltas na minha cabeça, instilando a substância misteriosa que, inacreditavelmente, parece estar pingando das minhas orelhas. Eu golpeio loucamente o ar, lançando círculos de luz com a lanterna. O chão vibra sob os meus pés quando o brando lamento se transforma num uivo ameaçador. Alguma coisa está acontecendo, alguma coisa ruim, mas quando eu tento gritar para avisar Nate, a substância oleosa me sufoca, descendo pela minha garganta e me tirando o ar. Uma nuvem de alguma coisa dança ali perto. Não é bem fumaça. É mais como uma neblina. Uma neblina fina e esbranquiçada que sobe da borda da piscina. Meus joelhos ficam bambos e eu vou afundando aos poucos, como se flutuasse num barril de melaço amargo. A pressão me faz enfraquecer. Eu não consigo respirar. Não consigo respirar! Eu vou morrer neste lugar horrível como Dino e Tasha. “Não há como escapar daqui”, canta David Gilmour dentro de mim. Nãohácomonãohácomonãohácomonãohácomo...! O uivo fantasmagórico vai aumentando de volume até se transformar numa risada histérica. Eu devia ter ouvido Nate. Por que não ouvi? Por quê...?
Eu abro os olhos para as luzes fluorescentes do teto do vestiário. Quatro fileiras de lâmpadas, quando deveriam haver só duas. — Você está acordada? Pode me ouvir? — Sinto uma dor aguda na cabeça quando Nate me aperta, beijando meu rosto e meu cabelo. — Ah, meu Deus, ah, meu Deus, pensei que você estivesse morta. Você bateu a cabeça quando caiu. — Ele me mostrou a mão ensanguentada para provar.
— Eu-eu acho que estou bem — digo com a voz parecendo mais um guincho. — Você desmaiou! Minha cabeça dói ainda mais quando eu faço força para me levantar. Eu toco o meu cabelo úmido, olho para a minha mão e gemo. Para alguém que cortou a própria garganta numa jacuzzi, eu deveria lidar melhor com sangue. — Quantos dedos você está vendo? Eu afasto a mão dele. — Você não entrou lá, entrou? — As lembranças me assaltam de repente. — Por favor, diga que não entrou. — Não entrei. Eu puxei você pela corda. Graças a Deus! — Você ouviu? Tão logo eu pergunto isso, me arrependo. E se ele disser que não? E se aqueles sons hediondos e aquela neblina estranha não passarem de alucinações de uma garota louca que não toma seus remédios há uma semana? Nate pressiona a bochecha contra a minha. Seu rosto está molhado e não é do sangue do meu cabelo. — Sim, eu a ouvi — ele diz, com a voz abafada contra o meu cabelo. “Eu a ouvi”, ele disse. Não simplesmente “ouvi”. Agora eu sei que ele acredita em mim.
Minha mãe acredita quando conto a mentira idiota de que escorreguei no gelo. “Idiota” porque está quente hoje, uma onda de calor fora do comum em dezembro. Não há gelo em lugar nenhum. E me aborrece que ela tenha acreditado. O fato de não insistir que eu faça um exame de raio X, nem que tente ficar acordada para não entrar em coma, nem acuse Nate de que é tudo culpa dele me aborrece mais ainda. Eu penso num livro que ela costumava ler para mim muitos anos atrás: Você É Minha Mãe? Hoje essa história vem bem a calhar. Uma sensação de não saber o que está acontecendo surge dentro de mim quando minha mãe divide meu cabelo ao meio e examina o corte, talvez por um segundo. — Vai ficar tudo bem — ela comenta com desinteresse. Então acende um cigarro, da antiga marca dela, não a de Millie, o que significa que ela está comprando seus próprios cigarros agora — e volta o rosto para a janela da cozinha.
Nate, depois de fitar a minha mãe com um olhar de incerteza, fecha a minha boca, que ainda está aberta por causa do choque. — Ligo para você mais tarde, ok? Eu o sigo até a porta da frente. — Não diga nada a ninguém. Promete? — Rá! Sem chance. Sem chance de ele contar? Ou sem chance de ele prometer? Sem esclarecer, ele me beija na testa, jura que me liga mais tarde e então sai porta afora. Eu noto que o forno está vazio e não há nenhum sinal de jantar. Não que eu esteja com fome, mas mesmo assim. — Você não vai cozinhar esta noite? — Não. — Os olhos da minha mãe ainda estão colados na janela. — Você pode pedir uma pizza, se quiser. — Nós não podemos pedir pizza. — Então faça um sanduíche — ela fala com rispidez. — Você já tem 16 anos! Por que é minha obrigação te alimentar? Pasma — o que há de errado com ela? O que há de errado com ela? —, eu a deixo pensando com seus botões. No andar de cima, jogo uma toalha de banho sobre o travesseiro e descanso a cabeça ali cuidadosamente. Eu sei exatamente o que preciso fazer: voltar a tomar os remédios e AGORA! Mas isso significa que eu vou ter que descer até o andar de baixo novamente. Com a cabeça doendo e o estômago revirado, duvido que eu aguente. Além disso, estou com medo daquela mulher na cozinha. Estou com medo da minha própria mãe, que nunca teve medo de mim — nem quando eu batia nela, a xingava e a chamava de nomes horríveis —, embora eu lhe desse todos os motivos para isso. Minha parede estala. Não como acontece quando as casas velhas fazem barulho, mas um estalo prolongado, como alguém tentando chamar a minha atenção. Será que os fantasmas se deslocam de um lugar para o outro? Paralisada com a ideia, eu olho para a minha parede acinzentada, hipnotizada pelo grande buraco rasgado nela. O buraco fica preto. Então ele fala. — “Um dia eu me perdi, mas agora me encontrei” — recitamos em uníssono. Ambas as vozes, a minha e a do buraco, intensificam a minha dor de cabeça, fazendo-a latejar. Meus ouvidos parecem entupidos, como se eu tivesse passado horas dentro d’água. Uma sensação de ardência chega às minhas narinas.
Eu fito a viga que fica acima dos pés do meu colchão. De algum modo eu sei, sem que ninguém precise me contar, que aquela é a viga onde a sra. Gibbons se enforcou. A Viga da Forca. — Ela riu de mim — eu digo para a avó morta de Annaliese. — Eu ouvi. E vi esse seu fantasma de dar arrepios. Nós a encontramos. É verdade. Annaliese existe.
5 MESES + 4 DIAS Terça-feira, 9 de dezembro
Eu finalmente consigo dormir, mas acordo no meio da noite com a mesma dor de cabeça feroz, intensificada pela minha mãe massacrando “Liebesträum” ao piano. Mais uma vez ela toca mal à beça. Todas as noites — todas — ela faz isso! Já estou farta. Farta! — Será que dá pra você parar de marretar esse piano? — eu grito do patamar da escada. — Se quer tocar, então toque! Para de ferrar com a música toda! As mãos da minha mãe caem no colo. Ela vira o rosto na minha direção. — Eu sou a louca aqui, mãe. Não você. Não você! — O que há com você? — ela murmura. — Será que não dá pra você adivinhar o que há comigo? — eu grito. Será que ainda se importa com alguma coisa? Eu volto para cima pisando duro, pego meu iPod para bloquear todos os barulhos, mergulho no meu colchão e fico olhando para a Viga da Forca até voltar a dormir.
Meu alarme não toca. Minha mãe não me acorda e eu só recupero a consciência ao meio-dia. Dolorida e vagamente confusa, eu desço as escadas a tempo de ouvir minha mãe dizer o meu nome pelo telefone da cozinha. Falando de mim. Por que ela está sempre falando de mim? Eu entro na cozinha, penteando com os dedos o meu cabelo emaranhado. — Era o Frank? Sim era o Frank. E não, ele não queria falar com você. Ele odeia você. Você matou a mãe dele. Você não é mais filha dele. Ele queria que você estivesse morta. Você DEVERIA estar morta. Deveria ter morrido naquele incêndio. Não a mãe de Frank. Não Nana.
Meu olhar congela no rosto da minha mãe. Seus lábios não se moveram em momento nenhum. A gente ainda está com alucinações quando sabe que está com alucinações? Se a gente corta a garganta quando ninguém está olhando, mesmo assim sangra sangue vermelho? A gente sangra? Mantendo uma boa distância, eu a contorno para pegar os meus remédios. Ela não diz nada. Nem eu. Eu raramente entendia o que as Vozes me diziam antes. Nunca sabia a quem elas pertenciam também. Mas dessa vez eu sei. Era a voz da minha mãe. Eu durmo direto até as nove da noite, então tomo os remédios da noite com uma latinha de Pepsi. Volto para a cama sem parar para fazer xixi. O galo na minha cabeça parece um kiwi murcho. Nate não ia me ligar? Ou isso foi ontem?
5 MESES + 5 DIAS Quarta-feira, 10 de dezembro
Quando eu volto a abrir os olhos, já é de manhã outra vez. Percebo na mesma hora que preciso urgentemente fazer xixi, para não mencionar tomar um banho. O calombo se destaca no meu cabelo oleoso, coberto com sangue seco. — Será que devo ir à escola? É quarta ou quinta-feira? Eu consulto o meu calendário de parede. Cada mês mostra a capa de um álbum de rock diferente — Frank me deu de Natal — e dezembro é A Little South of Sanity, do Aerosmith. Rá, muito engraçado. Eu abraço os joelhos e tento me concentrar. Pelo menos não tenho vontade de gritar com minha mãe de novo, e não ouço nenhuma voz sussurrando na parede. No entanto, alguma coisa não está certa. No chuveiro, Steven Tyler grita “Continue sonhando, continue sonhando, continue sonhando!” na minha cabeça enquanto eu enxáguo com cuidado o xampu do meu cabelo. Será que a minha mãe realmente disse que eu não sou mais filha de Frank? Que eu, não Nana, deveria ter morrido no incêndio? Não, não, não! Ainda molhada e com a toalha enrolada no corpo, eu corro até o meu quarto e fico de frente para o buraco. Olho para os versos aleatórios da Bíblia, escritos na caligrafia cheia de arabescos da sra. Gibbons. Para a coluna interminável de versos de “Amazing Grace”. Para o nome de Annaliese escrito várias e várias vezes pela mulher que se matou aqui. Eu deixo cair a toalha, pego minha mochila e a atiro no buraco com toda a força que eu tenho. Depois a escova de cabelo. Depois um dicionário. Depois meu travesseiro e a toalha suja de sangue. A poeira se espalha. Fragmentos de gesso se desprendem. Pego o meu CD player também, mas graças a Deus penso duas vezes. — Você não vai ganhar, sua vagabunda. Estou bem perto de descobrir a verdade sobre você. Vou desmascarar você, mesmo que isso me mate! — Onde estão as suas roupas? E com quem você está falando? MERDA!
— Comigo mesma — respondo, com um calafrio. — Ah — minha mãe sorri um sorriso peculiar. — Eu também faço isso às vezes.
— Eu não ouvi você tocando na noite passada — eu digo no café da manhã. — Ótimo! Eu tentei tocar mais baixo. Procurando parecer despreocupada, eu pergunto: — Mas por que você fica tocando de madrugada? — Não consigo dormir. — Minha mãe afunda na cadeira como se não tivesse intenção de sair dali tão cedo. — Na verdade, acho que vou tirar o dia de folga. Não durmo há dias. Desde o funeral de Tasha. E parece que não sabe mais tocar piano, também. Aquela sensação irritante contrai o meu estômago outra vez. Quando mamãe começou a ficar tão estranha? Depois que Tasha morreu? Ou depois que eu parei de tomar meus remédios? Se foi a falta de remédios, talvez eu esteja só imaginando coisas. Mas eu não imaginei o piano tocando. E tenho certeza de que Nate notou que ela agiu de modo muito estranho quando ele me arrastou para casa com um rombo na cabeça. Eu gostaria de perguntar isso a ele para ter certeza. Lá no andar de cima, eu digito o número de Nate: — Que é? — ele rosna sem nem perguntar quem é. — Isso é jeito de atender ao telefone? — Silêncio. — Você disse que ia me ligar — eu acrescento meio sem jeito. — Você não ligou. Espero que ele explique. Tudo o que ele diz é: — Eu sei. — Nate, e-eu acho que temos que conversar sobre o que aconteceu na escola. E tem uma coisa realmente importante que eu tenho que te perguntar sobre a minha mãe. — Você voltou a tomar os remédios? — O quê? Voltei. Por quê? — Ótimo. Continue tomando. Porque, sério, Rinn, você está me enlouquecendo agora. Isso doeu. — Como assim? Te enlouquecendo? — Essa coisa toda de fantasma, Rinn. — Mas você estava lá. Você a ouviu. — Uma ideia horripilante me ocorre. — Ou você estava só me gozando. Nate diz secamente:
— Eu vou para o estábulo. — Espere aí, e a escola? — E daí? Eu esqueço a minha indignação. — Eu vou com você. Me espere! — Não — Nate fala com aspereza. — Não quero você lá. E desliga na minha cara.
Desolada, eu assisto pela janela quando Nate, vestindo uma jaqueta camuflada e o boné de pele horroroso de que eu sempre caçoo, coloca um rifle no seu jipe e acelera feito louco pela rua. Ele não está indo para o estábulo. Ele vai caçar. Por que está mentindo? De uma coisa eu sei: eu também não posso ir à escola hoje. Estou confusa demais. Se estou ouvindo vozes na minha parede, o que vou fazer se os quadros-negros ou os armários começarem a conversar? Eu também sei que não posso ficar aqui com a minha mãe. Se eu começar a gritar com Annaliese novamente, não vai demorar para ela descobrir que não estou tomando os meus remédios direito. Ou será que vai? O mais engraçado é que a supervisão rigorosa dela costumava me incomodar muito. Na verdade, agora sinto uma imensa falta dessa supervisão. É como se a minha mãe estivesse sob o controle de alienígenas, como aqueles do filme Vampiros de Almas, que eu assisti uma vez com Frank. Eu me irritei com a ideia de alienígenas tendo que esperar as pessoas caírem no sono para tecerem casulos. Afinal de contas, eles eram aliens! Por que não aterrissavam a nave, conquistavam o planeta e acabavam logo com aquilo? Porque, Frank me explicou, era melhor que fizessem isso aos poucos, insidiosamente. Assim, quando as pessoas percebessem, já seria tarde demais. Esqueça os alienígenas. O que dizer de Annaliese? Por que ela quer ferir as pessoas? Eu encontro a lista amassada que comecei muito tempo atrás: 1. Lacy ficou com dores de cabeça depois que ela foi ao túnel. Além disso, ela me atacou. 2. Os ouvidos de Meg começaram a apitar depois que ela entrou no túnel. Ela se estatelou no chão diante de centenas de espectadores, fazendo uma acrobacia que já tinha repetido mil vezes.
3. Cecilia perdeu a voz depois que entrou no túnel.
Agora eu acrescento à lista o seguinte: 4. Dino morreu na piscina. 5. Lacy escreveu um e-mail terrível para Chad, embora não se lembre disso, e perdeu o noivo. 6. Meg esfaqueou a mãe. 7. Tasha mergulhou naquela piscina vazia.
As primeiras três coisas aconteceram antes da sessão. As últimas quatro, depois. Eu escrevo mais: 8. A srta. Prout pirou andando em volta daquela piscina. 9. Depois que ela arrastou a avó de Annaliese para seu alegre ato mediúnico, a sra. Gibbons se matou. 10. Aquele professor alcoólatra (talvez tenha relação com Annaliese). 11. O gato de Lindsay McCormick (com certeza tem). 12. Eu QUASE morri naquela piscina. 13. Minha mãe não está se comportando mais como a minha mãe. 14. Agora Nate está mudando também. Por que ele mentiu? Por que não disse que estava indo caçar?
Mas Nate não estava na sessão. Nem a minha mãe. Ela nem chegou a atravessar o túnel; fica na secretaria o dia inteiro e só sai de lá para almoçar. Aposto que ela ainda nem viu a piscina ainda... Espere aí. Isso não é verdade. Senti os pelos da minha nuca eriçarem. A droga da sessão! A quem eu recorri quando eles estavam parados lá como manequins? Recorri à minha mãe. Ela de fato entrou no recinto da piscina aquela noite, atrás de todo mundo. Eu amassei a minha lista. Ah, Deus. É isso! Tudo bem, talvez tenha demorado um pouco mais para Annaliese “pegar” a minha mãe. Mas é porque ela é uma pessoa forte. Não ia facilitar. Dessa vez a culpa é minha, mesmo. Mas como eu ia saber?
Como a minha mãe não está na escola para descobrir que eu também não estou, decido ir cavalgar
sozinha no Rocky Meadows. Não vai ter ninguém lá para se importar, só o zelador, que agora me conhece de vista. Exausta, depois dos três quilômetros de caminhada, eu estanco quando vejo o jipe enlameado. Então Nate está aqui mesmo? Pensei que tinha ido caçar. Alarmada, subo com dificuldade o longo acesso para carros. O que ele vai dizer quando eu aparecer sem ter sido convidada e, sem dúvida alguma, sem ser bem-vinda? Eu nem sei por que ele está tão furioso comigo. Como se fosse culpa minha que haja um fantasma lunático à solta por ali. Atravesso o estábulo, satisfeita por estar agora protegida do vento e do cheiro de estrume. Todas as baias estão vazias. Nada de cavalos arrastando os cascos no chão, nem mastigando. Nenhum relincho de boas-vindas de Xan. Estranho, Nate nunca tira todos os cavalos das baias de uma só vez, pois nem todos se dão bem. Ginger, por exemplo, adora morder as ancas de Xan quando está atrás dele, embora Xan seja duas vezes maior do que ela. Nenhum sinal de Nate no estábulo. Eu saio pela porta dos fundos, franzindo os olhos ao sair para a luz ofuscante do sol através dos retalhos de nuvens carregadas. Quando ouço um relincho agitado a distância, vindo do cercado atrás do celeiro, eu paro. Alguma coisa está errada. Os cavalos sabem disso também. Com o coração na boca, disparo para o celeiro e corro pelo tapete de esterco e serragem. Então, quando saio pela porta dos fundos, ouço um barulho horrível: o disparo metálico do rifle. Eu já estou correndo outra vez quando ouço o barulho do rifle sendo engatilhado, seguido pelo cheiro acre de pólvora. — Droga! — Nate pragueja. Relinchos de pânico. O ruído de corpos compactos correndo. Cascos batendo no chão e bufadas de alarme. Desesperados para escapar do perigo, os cavalos avançam contra a cerca, num borrão castanho. Sobre a cerca, Nate recarrega o rifle e aponta para os animais. O rifle dispara uma fração de segundo antes de cair das suas mãos. Meu corpo, movendo-se no ar, o derruba na lama, expulsando o ar dos nossos pulmões. Nate, que se recupera primeiro, me atira para o lado e me esmaga no chão, gritando palavrões. — Para! — eu grito de volta, frente a frente com o seu rosto vermelho e suado. — Nate, para! Ele fica imóvel e olha para mim. Sua respiração quente e ofegante cheira a alvejante. Gotas de suor se espalham quando ele sacode a cabeça com violência e me solta abruptamente. Ele rola no chão e coloca um braço sobre o rosto. Ficamos deitados lado a lado na terra fria. Respingos de lama voam através da cerca, atirados pelos cascos. Eu imagino os cavalos resfolegando indignados, discutindo sobre o incidente entre eles. Querendo saber o que teria possuído o garoto que os ama demais para tentar fazer algo tão inconcebível. Possuído.
Lentamente, viro a cabeça para o lado. Exceto pelo peito que sobe e desce, ele não se move, e o rifle está em segurança, a uns bons três metros de distância. Isso deve ser um pesadelo. Não pode ser a vida real. À medida que os minutos passam e a umidade penetra na minha jaqueta e no jeans, o arquejo de Nate diminui até que eu me pergunte se ele está de fato respirando. Eu sussurro seu nome, com medo de tocá-lo. Seus braços se afastam do rosto respingado de lama. Lágrimas escorrem pelas faces, até chegar aos ouvidos. — Nate, levanta. Ele poderia se levantar. Poderia dar um pulo, pegar a arma e matar os cavalos a tiros. Ou me dar um tiro. Ele poderia fazer qualquer coisa que quisesse, algo totalmente inesperado — porque ele não é Nate Brenner! Nate nunca faria isso. Ignorando meu medo, eu empurro a cabeça dele com o dedo. — Fala comigo, Nate. Ele pisca, fitando o céu. Então, muito lentamente, volta o rosto na minha direção. Ele vai me machucar? Será que eu devo correr? Não, porque então eu teria que pegar o rifle. E se não conseguisse escapar dele... — Rinn? — Ele pronuncia o meu nome com suavidade, surpreso, como se pensasse que eu estava morta e agora está chocado ao ver que não estou. Chorando, ele estende a mão para tocar a minha bochecha com a mão gelada.
— Vo-você sabe o que aconteceria de-depois que eu atirasse neles? Eu acendo o fogo na lareira da sala anexa ao estábulo, mas as chamas fracas não conseguem nos aquecer. Os dentes de Nate batem tanto que eu mal consigo entender o que ele diz. — Você tem que tirar essas roupas — eu digo num tom autoritário, cutucando as tochas com o atiçador. Nate pega o atiçador da minha mão e segura as minhas duas mãos. Ele está tão gelado, tão gelado que seus dedos nem parecem humanos. Eu sinto um calafrio quando ele passa um pouco do frio para mim. — Eu teria atirado em mim. Tinha tudo planejado. Ia colocar a arma na boca e puxar o gatilho com o polegar. Bem aqui — ele aponta para o sofá. — Eu ia te escrever um bilhete, mas então achei melhor não escrever nada. — Eu me encolho quando ele aperta ainda mais as minhas mãos. — Talvez tivesse sido melhor se eu... — Cala a boca! Você não se matou. Ainda está vivo.
— Estou? — ele sussurra, de um jeito monótono, sem emoção. Libertando as mãos, eu tiro dois cobertores mofados de um armário e os jogo no chão. — Tire as roupas — eu mando — e sente-se. Rígido, Nate olha calado para o fogo, que está mais forte agora. Então eu tiro, eu mesma, sua jaqueta encharcada e desabotoo a camisa. Quando estendo as mãos na direção do cinto, ele me afasta com delicadeza, tira o jeans enlameado e se senta, como um garotinho bem comportado. Quase desmaiando de frio, eu também me dispo e fico só com as roupas de baixo; então chuto para o lado o tapete de urso e espalho as nossas roupas sobre ele para secarem. Eu não consigo entender por que nós dois estamos com tanto frio, por que o fogo da lareira não conseguiu nos aquecer ainda. Eu rastejo até o sofá e puxo os cobertores sobre nós. — Não se preocupe. O calor dos nossos corpos é a melhor maneira de evitar a hipotermia. Os lábios roxos de Nate pressionam a minha têmpora. — Eu teria feito. Sério. — Por quê? — sussurro, me aconchegando a ele. — Porque eu amo esses cavalos. Porque é isso o que ela quer.
Nós quase transamos. Chegamos muito perto. Eu sabia que isso ia acontecer antes de tirar as roupas. Talvez tenha previsto no momento em que o encontrei. Mesmo assim, nunca sonhei que aconteceria dessa maneira, com nós dois trêmulos e assustados sob dois cobertores fedorentos. Nós nos beijamos e nos acariciamos, e eu fico feliz em dizer que não foi porque eu sou uma louca que não consegue se controlar. Ou porque ele é um cara que tentou fazer uma loucura tão grande que agora precisa ser lembrado de que está tudo bem. Paramos a tempo. Por ora é o suficiente. Molhada de suor, eu jogo longe os cobertores e me visto rápido, sentindo-me estranha e exposta, com o coração batendo rápido como as asas de um passarinho. Nada disso me faz esquecer que ainda há um rifle do lado de fora, além de um cercado cheio de cavalos que quase perderam a vida. E se eu chegasse cinco minutos depois? E se eu fosse a pessoa que encontrasse Nate com o cano do rifle na boca, sangue e miolos espalhados pelo sofá? — Eu ia te odiar para sempre — eu me ouvi dizer. Nate compreende. — Não aconteceu.
Eu me sento sobre as pernas dobradas e descanso a cabeça no ombro nu dele. O peito de Nate está brilhando de suor; ele está quente, tão quente... eu toco a linha de pelos escuros que descem pela sua barriga. — E eu não sou um suicida — ele acrescenta sem modular a voz. — Não foi como quando você tentou. — Ele toca o meu pescoço. — Não é... a mesma coisa. Eu me aproximo ainda mais, apreciando o calor. — Eu sei. Foi Annaliese. Talvez eu possa lhe dar alguns dos meus comprimidos — digo, meio na brincadeira. — Aí você ficaria a salvo. — Fale por você. Sério, quantas pessoas na escola já tomaram essas coisas? — Você disse que Jared... — Ele, sim. Mas todo o corpo estudantil? Exceto pelas pessoas que ela tem como alvo? Ah, dá um tempo. Todo mundo estaria por aí correndo com uma arma na mão. — As pessoas que ela tem como alvo... — eu repito baixinho. Ah. Meu. Deus. É isso! A ideia explode como uma supernova. — Você está certo. Ela é seletiva. Ela nos escolheu. — Por quê? — Eu não sei! Mas tenho certeza disso. Nate pensa no que falei. — Tudo bem, então como ela nos escolheu? — Na sessão? — Você disse que Cecilia não estava lá. Nem eu. — Tem razão. — Eu suspiro, mais intrigada do que nunca. — Agora, se você tivesse entrado no recinto da piscina comigo, eu diria que foi nessa hora que ela pegou você, mas... Nate se remexe de um jeito estranho. Isso revira o meu estômago. — Você não entrou, né? Você disse que me arrastou para fora. Ele observa o fogo como se fosse a coisa mais fascinante do mundo. — Sabe a primeira vez que tentamos, antes de você parar os remédios? E eu corri de volta para pegar a sua mochila? — Nate se curva para a frente. — Rinn, tinha alguma coisa lá. — O quê? — Eu respiro, já com medo da resposta. — Não tenho certeza. Mas o vestiário parecia diferente por algum motivo. Eu vi sombras onde não devia haver nenhuma. Como no centro da sala, e — e em cima — no teto. E as sombras normais estavam... erradas. — Nate enrubesce. — Não ria. Eu não estava nem perto de rir. — Elas se mexiam?
— Hã, sim. Foi por isso que eu demorei tanto. — Oito minutos — lembrei-o. — Isso porque eu não conseguia me mexer. Estava apavorado demais. Eu me lembrei da noite em que fiquei até tarde decorando a lanchonete: aquelas sombras da mesa, o modo como elas se alongavam e mudavam de forma diante dos meus olhos. Não era a minha imaginação nem uma alucinação. Então por que eu não estou mais feliz? Porque agora eu me pergunto se Annaliese anda pela escola inteira. Os fantasmas circulam por aí? Se a resposta é sim, até que distância? Será que Annaliese já esteve no meu quarto? Com a pele ao redor da boca mais pálida do que o resto do rosto, Nate continua: — Rinn, quando eu disse que arrastei você para fora, eu menti. Você caiu, eu vi sangue e meio que surtei. Eu de fato puxei a corda, mas não consegui arrastar você. É como se... — ele engole seco — como se algo estivesse segurando você, me impedindo de puxá-la. Então eu corri lá para dentro e peguei você. Eu tive que fazer isso — ele insiste quando eu ofego, sem acreditar. — Não, você não fez isso! Nate, você prometeu! — O que você queria que eu fizesse? Deixasse você lá? — Ah, meu grande herói! Estou muito agradecida. — Eu chuto o cobertor com raiva. — Sabe, se você tivesse me contado o que aconteceu da primeira vez, com as sombras e tudo mais, eu não teria pedido para você me ajudar. Nate dá uma risada debochada. — Ah, claro. Aí você iria sozinha. — Eu poderia ter chamado outra pessoa. — Tipo quem? Meg? Lacy? Tasha? — Eu me encolho quando ele dá uma risada de escárnio. — Ah, espera aí. Meg está na cadeia e Tasha está morta e Lacy, bem, só Deus sabe. Então quem sobrou, Rinn? Hein? — Tudo bem, você ganhou. Não precisa ficar fazendo piada com isso. Nós ficamos sentados lá, lado a lado, ouvindo o fogo crepitar. Eu ouço os cavalos do lado de fora, mas eles parecem felizes agora, em vez de correr em círculos com os olhos arregalados de terror. Nate se levanta. Pega suas roupas e coloca o jeans por cima das boxers de Scooby-Doo. E ele ainda ri do meu pijama de Bob Esponja? Nate abotoa a camisa xadrez, depois pega o atiçador e mexe no fogo. — Ok, pense. Por que nós? Por que não os outros trezentos alunos da escola? — Ela toma coisas de nós, como a voz de Cecilia. Ela tira Chad de Lacy. Então tira o bebê de Lacy. Nate remexe uma tora e o fogo explode em laranja.
— Continue. — Ela tira Meg da equipe de líderes de torcida. Rouba a personalidade dela. Faz com que ataque a mãe. — Hiperventilando, eu me forço a desacelerar. — Ela tira de Tasha o gosto pelo salto ornamental... — E a vida dela — ele diz, prático. — E de Dino também. — Ela quase tira a sua. A imagem de Xan e Ginger mortos no chão, cercados pelas carcaças sangrentas dos outros cavalos, faz com que eu gema em voz alta. Nate joga no chão o atiçador de ferro e se ajoelha no sofá, me puxando mais para perto. Ele cheira a cavalos e a pólvora. Nada de cloro. — É tudo parte do plano dela — eu digo, com a cabeça encostada em seu peito. — Tudo o que amamos, ela quer tirar de nós. Aquilo que nos faz felizes. A parte de nós que somos nós. Ela muda as pessoas. Fez com que Meg, uma garota doce e feliz, se tornasse alguém capaz de cometer um assassinato. Ela mudou a minha mãe, transformando-a em alguém que eu mal reconheço. — Ela tira de nós o que nos mantém fortes — Nate concorda. — É a proporção que eu não entendo. O que ela fez com Cecilia e Meg e Lacy foi ruim, mas Tasha e Dino estão mortos, e você quase morreu também. E você podia ter me levado com você. — Então, se Annaliese pode matar sempre que quiser, como ela decide... Eu paro, me lembrando das palavras dele: o que nos mantém fortes. Com a suspeita de que Annaliese pode de algum modo nos ouvir, eu sussurro: — Ela suga a nossa força. Não se importa em saber de quem é essa força, contanto que possa tomá-la para si. Porque essa força pode deixá-la mais poderosa. E, talvez, se ela sugar demais — eu pressiono a boca contra a orelha de Nate —, nós morremos. Nate me beija com ardor, suas mãos percorrendo meu corpo num desespero mudo. Como se isso fosse tudo o que ele sempre quis fazer em sua vida e agora estivesse com medo de que nunca tivesse outra chance. Depois do que aconteceu no cercado apenas algumas horas atrás, como eu posso me sentir segura com ele? Segurança, eu sei, não passa de uma ilusão. Não estamos seguros. Ninguém está seguro.
5 MESES + 7 DIAS Sexta-feira, 12 de dezembro
Está demorando muito para os meus remédios fazerem efeito. Eu durmo algumas horas e então fico acordada o resto da noite. Troco os lençóis da cama novamente, acabo de ler Crepúsculo, e mudo os pôsteres de lugar para cobrir o buraco falante na parede. Agora é o Kiss e Joan Jett e Lynyrd Skynyrd em vez dos versos bíblicos e Annaliese, Annaliese. Enquanto espero o despertador tocar, pratico a minha música de Natal. Dessa vez minhas notas soam irremediavelmente desafinadas. Depois de jogar longe a palheta, eu me pergunto: será este o começo do fim para mim também? Com a pele arrepiada, guardo meu violão no estojo e fecho o zíper com um guincho dissonante. São 5h53 — sete minutos antes de o meu despertador tocar. Eu fico andando em círculos, depois paro e olho para a Viga da Forca. Ela é mais baixa do que as outras, mais fácil de alcançar; não me surpreende que a sra. Gibbons a tenha escolhido. Arrasto a cadeira da minha escrivaninha até a viga e fico de pé sobre o assento. Estico os braços, mas por centímetros não consigo alcançar a viga. Mesmo assim, não deveria ser difícil jogar uma corda por cima dela. Depois é só colocar a cabeça no laço, apertar o nó sob o queixo e... Eu salto da cadeira, os pulmões ansiando por ar antes que meus dedos toquem o chão. A cadeira tomba de lado com um estrondo que quase paralisa o meu coração. O que estou fazendo? O que estou fazendo...? QUE DIABOS ESTOU FAZENDO?
Toda vez que eu ia para uma ala psiquiátrica, eles me faziam assinar um contrato diário. Agora, quando minhas mãos trêmulas me permitem segurar uma caneta, eu abro um caderno ao acaso e escrevo, de memória: Eu, Corinne Jacobs, prometo não me ferir nas próximas 24 horas. Se sentir que estou perdendo o controle, prometo contar a alguém imediatamente. Eu risco “nas próximas 24 horas” e escrevo “NUNCA MAIS”.
No caminho para a escola, uma coisa me ocorre: — Não deveríamos avisar as pessoas para que fiquem longe da piscina? Nate dá uma risada amarga. — Solomon já não faz isso? E isso não deteve você. — Sim, mas eu não consegui trancar outra vez. Agora qualquer um pode entrar. Acho que eu devia contar ao sr. Solomon, para que ele possa ir lá e trancar o lugar. — Ah, claro. — Nate imita uma voz aguda e agitada: — “Sabe o que aconteceu, sr. Solomon? Alguém arrombou a fechadura. Não fui eu, claro. Eu só descobri por acaso”. Ah, não, não ia parecer nem um pouco suspeito. — E um bilhete anônimo? — Que tal cortarmos as palavras de uma revista e colá-las numa folha, como os sequestradores? — Você não está ajudando. Talvez minha mãe possa trancar a porta. Aposto que ela pode pegar a chave. — E como você vai dizer a ela? — A verdade? — Detesto dizer isso, surfista, mas essa também é uma péssima ideia. — Eu sei. — Suspiro. — Essas são as minhas únicas alternativas.
5 MESES + 8 DIAS Sábado, 13 de dezembro
Eu estou deitada na cama no escuro, com os olhos abertos. Ouço os galhos da árvore lá fora batendo na parede da casa e uma nova nevasca golpeando a vidraça. O que eu vou dizer à minha mãe? Primeiro, não posso deixá-la saber que fui eu que arrombei aquela fechadura idiota. Segundo, como vou explicar por que estou com medo de que algo possa acontecer a alguém? Se eu disser que é uma questão de vida ou morte, ela vai ficar desconfiada outra vez. E, terceiro — como Nate insiste em dizer —, se Annaliese pode se deslocar no espaço, e todo o prédio da escola está amaldiçoado, por que estou gastando meus neurônios me preocupando com isso? Com um suspiro, eu me viro de lado e então: BANG! Fecho os olhos bem apertados, os nós dos dedos entre os dentes. Reconheço esse barulho porque ele é muito comum: o barulho da minha cadeira tombando de lado. O mesmo barulho que ouvi antes. Só que dessa vez não fui eu quem provocou. Cric... cric... cric... O rangido de uma corda balançando na Viga da Forca. Cric... cric... para a frente e para trás, para a frente e para trás. Isso não está acontecendo. Estou sonhando outra vez. Com a respiração bafejando dos lábios em golfadas, eu abro os olhos e olho para o teto iluminado pela luz da lua. Não há nada ali. Nenhuma corda. Nenhum corpo balançando. Aliviada, acendo o abajur, me levanto do colchão com dificuldade — e congelo. Ali, no chão, vejo a minha cadeira tombada de lado — a mesma que levantei do chão depois de ficar em pé sobre ela, por alguma razão desconhecida e insana, e colocá-la de volta em frente à escrivaninha. No assento acolchoado de vinil, a marca de dois pés descalços se desfaz diante dos meus olhos. Pés de verdade. Com dedos e tudo. Pés muito maiores do que os meus. — Você não está aqui de verdade — eu suspiro. Seja você quem for.
Nenhuma resposta. Quando eu era pequena, achava que havia um monstro embaixo da minha cama, algo com garras e presas e uma respiração ruidosa. Quando meu medo me impedia de dormir, eu gritava chamando a minha mãe e Frank até um dos dois aparecer e garantir que eu estava a salvo. Sentindo-me ridiculamente imatura, eu puxo as cobertas até o queixo e chamo: — Mãe? Mãe! Mas a minha mãe não responde, mesmo depois de eu gritar por ela uma dezena de vezes. Eu não ouço nenhum som, nem mesmo o piano.
Quando sinto o cheiro de café no ar, afasto o edredom um centímetro da cabeça. Sim, a cadeira ainda está lá, um monumento fantasmagórico. Descalça, corro até a cozinha. Minha mãe leva um susto e derrama o café. — O que foi? O que aconteceu? Deus! Ela pode me dizer se algo está errado. — Minha cadeira tombou na noite passada sem motivo nenhum. — Depois de deslizar da escrivaninha até os pés da minha cama. — Bem. Isso é tão estranho assim? Evidentemente ela não percebeu que se trata de uma pergunta séria. — Você acha que a casa é assombrada? — Não, Rinn. Você quer uma torrada ou um pãozinho? — Estou te dizendo que a cadeira caiu do nada! — Talvez esteja quebrada. Ou o piso esteja abaulado. É uma casa muito velha. Ou talvez a sra. Gibbons tenha se enforcado novamente. Eu umedeço os lábios. — Mãe, quando Bennie vai voltar? — Eu não sei. Por quê? — Porque... porque alguém precisa dar uma olhada naquela porta da piscina. — Quando a minha mãe para, com um saco de pão numa mão e uma faca na outra, uma imagem de Meg e sua faca de cozinha me vem à cabeça. — Acho que está destrancada. Quer dizer, eu sei que não está trancada. — E como você sabe? Eu detesto ter que mentir. — Hã, ouvi dizer que alguém a arrombou. Ela se vira para mim com uma suspeita crescente.
— Por que esse interesse repentino pelo recinto da piscina? — É... é porque... — Não posso dizer. Você precisa dizer. PRECISA! Então eu subo as escadas correndo, pego a lista de Annaliese e corro de volta para a cozinha, estendendo a lista para ela. Minha mãe dá uma olhada na folha e a devolve. — E então? Entendeu? — pergunto, esperançosa. — Torrada ou pãozinho? Última chance. Embora os pãezinhos possam estar um pouco murchos. — Mãe, tudo que está nesta lista é verdade! Ela prejudica as pessoas! — Ela? — Annaliese! É como se ela roubasse tudo o que temos de bom, tudo que amamos. Ou, se tem alguma coisa que não devemos fazer, que estamos tentando não fazer, ela assume o controle e impõe a vontade dela. Ela faz a gente ceder. Ela suga a nossa alma até que não reste mais nada! Minha mãe afunda numa cadeira e me lança um olhar penetrante. Ela está ouvindo. Está ouvindo! — Ela matou Dino e Tasha. Não brincou simplesmente com eles, como fez com Cecilia e Meg... — Brincou? — Tirou a força deles. Como ela tirou de você a música. O jeito como fez com que você começasse a fumar outra vez. Ela tira as coisas das pessoas, mas matou Tasha e Dino. Calmamente, minha mãe responde: — O que exatamente você acha que ela tomou de você? — Bem, nada ainda. — Embora meu talento musical com o violão tenha me faltado ultimamente. — Mas isso é por causa dos meus remédios. Ela não pode me atingir quando eu tomo medicamento, mas pode fazer isso quando eu não tomo. Não sei por que, mas eles me protegem dela. Mãe, é verdade! Minha mãe estreita os olhos. — Ah, sério? E como você descobriu isso? Pega em flagrante, eu caio na minha própria armadilha. Minha mãe se levanta, anda até o balcão, corta um pãozinho com a faca e enfia uma fatia na torradeira. Depois abaixa a alavanca, como se fosse uma guilhotina. — Quanto tempo faz que você não toma seus remédios? — ela pergunta, se virando. Eu brinco com o saleiro em minhas mãos. — Eu estou tomando. Só parei por alguns dias. — Você parou de tomá-los — ela repete.
— Eu tinha que fazer isso! Eu tinha que descobrir. — Descobrir o quê? — Se Annaliese era real. Eu seguro a respiração. Minha mãe suspira, balança a cabeça e volta a se sentar à mesa. Ela se reclina na cadeira e pega a minha mão sem hesitação. Tocada ao ver que ela me ouviu, eu disparo a falar: — É por isso que você tem que falar com o sr. Solomon. Ele tem que se certificar de que a sala está trancada. Ele tem que interditar aquela sala ou coisa assim. E o túnel? Mãe, ele também não é seguro. Annaliese é perigosa! Ela é! E eu acho que ela está ficando mais forte... — Porque ela me achou ontem à noite. Ela veio ao meu quarto. Embora seus dedos ainda estejam entrelaçados aos meus, a voz dela soa inesperadamente distante. — Não consigo acreditar que você parou de tomar seus remédios, Corinne. Você me prometeu. Prometeu a Frank. Depois do que aconteceu com Nana, como pôde ser tão irresponsável? Totalmente confusa, eu me encolho. Minha mãe, de volta ao balcão, bate a mesma faca impacientemente num prato. Com os maxilares cerrados, o rosto contraído, ela olha para a torradeira como se esperasse que a torrada saltasse, para depois atirar o aparelho no chão. No entanto, minha mãe também está ao meu lado, falando em sincronia com a “outra” mãe. — Desculpe, querida. Estou tentando entender tudo isso, mas... — Mãe? — Eu a olho, com medo daquela mulher ao lado da pia, comparando-a com a que segurou a minha mão. Estou tendo uma alucinação. Eu nunca deveria ter parado de tomar os remédios. Agora eles não estão mais surtindo efeito! Estou perdida! — Isso é o que eu ganho por confiar em você — diz a minha mãe na pia... enquanto a outra, que segurou a minha mão, diz com franqueza: — Eu não posso falar para o sr. Solomon interditar a sala sem falar também... — ... que foi um erro terrível trazer você aqui. Você está doente, sabe disso, e não tomou os seus malditos comprimidos. Ah, sim, os médicos me avisaram. Isso nunca vai ter fim... — ... uma razão aceitável. Querida, você precisa fazer o que prometeu, caso contrário eu não posso ajudar você. — ...vai? Até quando eu vou conseguir suportar? Até quando? Até quando...? Um cheiro de cloro penetra em minhas narinas. Eu me levanto da cadeira e cubro o rosto com as mãos. — Calem a boca! Vocês duas! CALEMABOCACALEMABOCACALEMABOCA!
Vestindo só o meu pijama do Bob Esponja, sem calçado, eu disparo para fora de casa e me agacho ao lado da garagem. Será que isso também faz parte? É uma armadilha da Annaliese? Ou sou apenas EU? Eu não sei dizer, eu não sei dizer! — Rinn! — Uma das minhas mães sai pela porta dos fundos. — Entre! Está congelando aqui fora! Eu não posso. Estou com medo. Estremeço contra a parede áspera da garagem, os pés descalços abrindo buracos na neve recémcaída. A porta dos fundos bate e passos abafados se aproximam enquanto minha mãe — ou quem quer que seja — marcha na minha direção. Eu agito os braços. — Não me toque! — Rinn! Pare! Eu fujo dela, com medo de olhar, quando ela se aproxima com os braços abertos, para um abraço feroz. Ela cheira a cigarro e a cloro, mas os olhos ansiosos que encontram os meus são os olhos da minha mãe. Ainda assim, quero bater nela, lutar com ela. Eu quero correr, correr, correr, mas não estou nem vestida, e para onde eu iria? Nenhum lugar é seguro. Em vez disso, deixo que a minha mãe me abrace e seque as minhas lágrimas no seu roupão — lágrimas, lágrimas de verdade, pela primeira vez desde muito tempo — e deixo que me leve de volta para casa.
Francamente, estou aliviada ao ver a cadeira onde eu a deixei: normal e benigna, só uma cadeira derrubada, com nenhuma marca fantasmagórica impressa no assento. Mesmo que eu tenha imaginado essas marcas, pelo menos sei que a cadeira de fato caiu. Seria pior encontrá-la de volta à escrivaninha, num mundo normal, onde ela teria ficado a noite toda. Reunindo coragem, eu levanto a cadeira e recolho a mão rapidamente. Nada acontece. A cadeira fica simplesmente ali. Eu empilho todos os cobertores que consigo encontrar no chão da torre, o mais longe possível da Viga da Forca, e fico ali o dia todo, sem ler nem pensar. Quando minha mãe aparece mais tarde com uma Pepsi e um sanduíche de atum, finjo que estou dormindo. Eu não quero ter que
adivinhar qual das minhas “mães” entrou no meu quarto. Havia duas delas esta manhã. Uma disse “maldito”, uma palavra que a minha mãe de verdade nunca diria. Esqueça o recinto da piscina. Esqueça o túnel. Annaliese pode me alcançar não importa onde eu esteja.
5 MESES + 9 DIAS Domingo, 14 de dezembro
Mais calma pela manhã, ligo para Nate. Ele e Luke estão visitando parentes em Cincinnati. Pelo menos não estão caçando, eu acho, embora não consiga imaginar Nate pegando de novo outra arma na mão. Então, enquanto o cara por quem estou agora loucamente apaixonada, está fora, eu acabo a lição de inglês, pinto de azul as unhas dos pés e dedilho o meu violão. Deixo meu quarto uma vez ao longo de todo o dia para fazer xixi, pego uma maçã e uma garrafa de água na cozinha e tomo os meus remédios. Na maior parte do dia, eu durmo. Consigo tocar “My Sweet Lord” até o fim, sem sair do tom. Tome essa, Annaliese. Você também, mãe. Vocês duas. Por volta da meia-noite, noto o cheiro de lavanda se esgueirando através da grade de ferro do aquecedor. Minha mãe acendendo uma vela tão tarde? Sentindo um entorpecimento meio surreal, desço as escadas para pedir a ela que apague a vela. Sinceramente, odeio esse cheiro agora. A vela, no entanto, arde sem supervisão sobre o baú, o que significa que a minha mãe deixou a vela acesa e foi para a cama. Ela está tentando incendiar a casa? O pensamento me deixa nauseada. Lembrando-me da sessão e daquela imensa poça de cera — cera quente, enquanto o resto do recinto estava congelando —, eu apago a vela com um sopro, corro de volta escadas acima e me encolho no nicho da torre, em meu ninho de cobertores. E acho melhor não apagar a luz.
5 MESES + 10 DIAS Segunda-feira, 15 de dezembro
—
Olá, estranha! — minha mãe me cumprimenta. — Está na hora de sair da cama e tomar um ar.
Eu finjo um sorriso e dou uma olhada para ver se percebo algum sinal da “outra” Monica Jacobs. Minha mãe me observa, os pensamentos dela muito claros para mim: Hum, olhos injetados. Rinn deve estar paranoica outra vez. Tenho certeza de que ela também percebeu que eu não comi o sanduíche de atum. Ela agita os frascos dos meus remédios pela primeira vez em séculos. Será que é um truque da minha mãe falsa? Ou será que a minha mãe de verdade concluiu que é melhor que ela comece a contá-los outra vez? Ela retira a mão quando eu estendo a minha. — Prometa. — Eu prometo. — Pode acreditar, eu sei que terei que tomar esses comprimidos pelo resto da vida e, não, eu nunca serei idiota a ponto de parar de tomá-los. É engraçado como essa constatação já não me deixa com raiva ou ressentida. Em vez disso, eu a considero libertadora. Eles me mantêm a salvo de Annaliese. Mas também me mantêm a salvo de mim mesma. — Jure. — Minha mãe sugere: — Jure pela alma da sua avó. Como a palavra “maldito”, isso é algo que a minha mãe de verdade nunca sonharia em dizer. Eu repito, de qualquer maneira. — Juro pela alma de Nana. Ela me passa os comprimidos. Eu examino cada um deles antes de tomá-los. — Boa menina — minha mãe diz, com um sorriso duro. Eu rosnaria para ela se estivesse com um humor melhor. O telefone toca. Minha mãe o ignora. Eu pego o fone e vejo que é Millie. Minha mãe balança a cabeça. — É Millie — enfatizo, acenando com o fone. — Eu não quero falar com ela agora. Aturdida, eu sussurro: — O que eu falo para ela?
— Diga que vá para o inferno! — minha mãe grita. Eu não preciso transmitir a mensagem da minha mãe; Millie ouve e desliga imediatamente. E minha mãe já está saindo porta afora.
Eu não sei se a minha mãe deu a notícia ou se outra pessoa descobriu que o recinto da piscina estava destrancado — mas o sermão do sr. Solomon dura mais de uma aula. Ele não faz nada além de ameaçar que vai colocar um guarda na porta da piscina. Além disso, acrescenta, quando voltarmos das férias de inverno, a piscina terá sido demolida. Portanto, o próprio túnel não existirá mais. Uma saída de emergência será construída no ginásio. A onda de alívio que sinto me faz sorrir. Nada de piscina! Nada de túnel também! Obrigada! Obrigada! É mais um dia solitário para mim. Eu passo a hora do almoço na biblioteca, desejando ter sido mais esperta e feito mais amizades. Depois da escola, ensaiamos com o professor Chenoweth para o concerto de sexta-feira, o último dia de aula antes dos feriados de Natal. Cecilia está um pouquinho mais amigável e nós conversamos um pouco. Mas ninguém mais se importa em conversar comigo. Eu me sinto uma desgarrada outra vez.
Quando Nate e eu vamos para casa depois do ensaio, penso em contar a ele sobre a corda rangendo na viga, que ouvi na outra noite. E a cadeira tombada com as marcas de pés no assento. Sem mencionar as minhas duas mães. Mas Nate apressa o passo — faz seis graus negativos e neva forte — e eu tenho que correr para alcançá-lo. Quando viramos a esquina da nossa rua, o vento cortante me tira o fôlego. Cristais de gelo machucam os meus olhos lacrimejantes. — Eu detesto neve! — grito. — Detesto esse tempo idiota e gelado de Ohio. Eu quero sol. Sol! Pare de rir de mim! — acrescento quando seus ombros estremecem enquanto ele ri. Eu arranco aquele gorro de pele estranho da cabeça dele e jogo-o na calçada. — Seu matador de coelhos! Minhas botas perdem o contato com o chão quando Nate me gira em círculo. Seu hálito quente me aquece. Ele me beija com força, forçando a minha boca a se abrir e tocando a minha língua. Meus joelhos ficam bambos e ele tem que me segurar. Ele ri outra vez quando eu coloco a mão gelada sob a camisa dele. Ele faz o mesmo comigo. Talvez eu não seja uma desgarrada, afinal.
Talvez eu seja eu mesma novamente.
5 MESES + 11 DIAS Terça-feira, 16 de dezembro
Eu sei que os meus remédios começaram a fazer efeito outra vez quando cochilo no meio da aula. Não tenho ensaios esta noite; o professor Chenoweth tem uma consulta de urgência ao dentista. Louca para tirar um cochilo, corro para casa sem Nate, que saiu mais cedo para ir ao estábulo, tirar o excesso de neve do acesso para carros. Eu nem posso acreditar que os habitantes de River Hills não se incomodam com esse clima, que dirigem por aí com correntes nos pneus e fazem brincadeiras na neve. Eu preciso de luz solar. Ou pelo menos de uma máquina de bronzeamento artificial. Cuspindo neve, abro a porta da frente de casa — e ali está Frank, sentado com a minha mãe no sofá. Ele está segurando uma cerveja e ela, um copo de vinho. Eu fico ali olhando, como se estivesse hipnotizada. — Oi, Rinn. — Ele sorri através da barba grisalha, sua marca registrada. — Você está aqui — eu digo, como uma idiota. Minha mãe sorri também, mas fracamente. — Ele chegou hoje de manhã. — Por quê? Frank bebe um gole do que resta da garrafa de cerveja. — Por várias razões. Eu chuto as botas para longe e recuo até a sala de jantar, depois coloco no chão a mochila, no local onde sempre a deixo. Noto os papéis com aparência de documentos espalhados sobre a mesa e um envelope de papel pardo com o nome de um escritório de advocacia de San Diego. Chocada, olho para eles. — Vocês estão se divorciando? — Nunca mais minha mãe e eu iríamos morar em La Jolla, onde o tempo é quente e as pessoas não colocam correntes nos pneus. Nunca mais seríamos uma família novamente. Minha mãe fica visivelmente tensa. — É só uma separação por ora. Frank coça a barba, apalpa a jaqueta de couro à procura de um cigarro e o acende. Minha mãe,
aproveitando a deixa, acende um também. Frank arregala os olhos. — Quando você voltou a fumar? — Não me lembro — minha mãe admite. Eu me intrometo na conversa: — Você disse que era temporário. Disse que só precisavam de um tempo para refletir. — Foi o que pensamos — minha mãe diz em voz baixa. — E poderia ser temporário, mas estou achando — com o rosto angustiado, ela olha para Frank — que talvez seja melhor a gente seguir em frente e acabar logo com isso. Eu torço as mãos, percebendo qual era a verdade desde o início: quando minha mãe disse que todos nós precisávamos de um tempo longe um do outro, o que ela realmente queria dizer era que Frank precisava de um tempo longe de mim. Para fazer o quê? Decidir se ainda queria ser meu pai? — E eu? — perguntei. Minha mãe e Frank falam ao mesmo tempo, me fazendo lembrar o episódio sinistro em que ela parecia duas mães diferentes. Frank ganha a disputa. — Hã, nós dois achamos que é melhor você ficar aqui com a sua mãe. Bem, dã. — E nas férias? Durante o verão? — É muito difícil — gagueja a minha mãe. — A logística, entende? O olhar de surpresa de Frank não me passa despercebido. — Monica, eu não acho que nós... — Além disso, querida — minha mãe o interrompe —, acabamos de nos mudar. É melhor a gente se entrosar melhor aqui antes de pensar em mandar você de volta. — Eu já estou entrosada. — Bem, entrosada, na verdade, com um fantasma que anda por aí à solta. Isso significa que não vou mais à praia? Não vou mais tocar violão com Frank? Nunca mais vou nem ver o meu antigo quarto? Um quarto sem uma Viga da Forca, pelo amor de Deus? — Você precisa de uma rotina — diz a minha mãe. — Talvez mais para a frente a gente possa pensar em alguma coisa, mas por ora não. Desculpe. — Você não quer que eu te visite — digo para Frank. — Eu sei que me odeia. — Te odeio? — Frank repete, desviando os olhos desconfiados de minha mãe. — É! — Nesse momento eu perco o controle, num rompante. — Você me odeia por tudo. Pelo que eu fiz a Nana. Por acabar com o relacionamento de vocês. — Lágrimas, lágrimas de verdade, inundam os meus olhos novamente. Acho que eu não estou tomando os meus remédios há tempo suficiente para evitar que isso aconteça. — Eu cumpri todas as minhas promessas! Eu tomo os meus remédios! Eu vou à escola e fico longe dos problemas. Diga e ele! — imploro à minha mãe. — Diga a ele que é verdade!
Silêncio sepulcral. Minha mãe apaga o cigarro pela metade. Ela começa a falar, mas Frank mais uma vez a cala. — Rinn, ouça. Tudo isso, essa separação, é algo entre mim e a sua mãe. Não tem nada a ver com você. — Mentira! Eu já disse que lamento muito um milhão de vezes e realmente lamento. Eu lamento! Quantas vezes vou ter que repetir? — Ele franze a testa e olha para o chão. — Viu? Você nem consegue olhar para mim! Porque toda vez que olha, você pensa em Nana. Toda vez que eu entrava num cômodo, você saía. Você mal trocou uma palavra comigo em três meses! — As palavras jorram da minha boca, incontroláveis. — Você queria me mandar para um internato. Me queria fora da sua vida! É por isso que mamãe e eu viemos embora. Porque não importa o que eu diga, não importa o que eu faça, eu sou a garota que matou Nana. E eu sinto muito. Sinto tanto! Eu desabo no chão, de joelhos, aos prantos. Um minuto depois eu sinto uma presença sólida e sinto um cheiro de tabaco e de loção pós-barba. É Frank, agora agachado ao meu lado. Só o cheiro dele já me faz chorar ainda mais. — Rinn — ele descansa sua mão enorme no meu braço —, eu não odeio você. Eu nunca odiei. — Eu balanço a cabeça, num protesto patético, e ele se senta no chão como um grande urso felpudo. — Eu amava a minha mãe. — Ele me puxa para um abraço. — Eu a amava. E sinto muito a falta dela. — Eu também — murmuro. — A única coisa em que pensei esse tempo todo foi em mim. — Ele me embala em seus braços. — Eu não conseguia aceitar que minha mãe tinha partido. Eu fiquei aos pedaços e, tem razão, eu estava com raiva. Mas não por causa do que aconteceu à sua avó. Mas por causa... Ele para de falar. Eu percebo com o mais puro choque que Frank, o Frank grande e durão, o pai que eu amei e procurei durante quase a vida inteira, está chorando aqui ao meu lado, embora sem fazer o mesmo estardalhaço que eu. — ... do modo como tudo aconteceu. Porque eu mandei você para lá, sabendo que você estava doente, sabendo que estávamos nos arriscando muito. Eu desisti de você, querida. Quero dizer, mas que droga!, eu sou o seu pai! Os pais consertam as coisas, não é? Mas eu não consegui consertar você. Simplesmente joguei você fora. — Os dedos grossos de Frank roçam na minha gola rulê. — Justamente quando você mais precisava de mim — ele conclui, voltando a se calar. Eu balanço a cabeça. — Você não me jogou fora. Eu amava Nana. Eu poderia ter ficado ali para sempre se... se não tivesse estragado tudo. — Você não estragou tudo. Eu estraguei tudo. Nós dois estragamos tudo — Frank acrescenta, com um olhar significativo para minha mãe. — Nenhuma resposta; ela fica sentada ali quieta, como
uma escultura de gelo, com as mãos sobre o colo. Frank me abraça ainda mais forte. — O que aconteceu, querida, não foi culpa sua. — Ele levanta o meu queixo. — Está me ouvindo? Você estava doente. Não foi culpa sua. Deus, Deus, Deus, eu esperei tanto tempo para ouvir isso... Quando eu fito seu rosto bronzeado, alguma coisa envolve o meu coração com mãos mais quentes e maiores do que as dele. Ele está sendo sincero. Está mesmo! Eu volto a abraçá-lo, maravilhada com essa sensação estranha e deliciosa que cresce dentro de mim. Esperança, talvez. Ou algo como isso. Mas antes que eu possa me decidir, o cheiro de Frank desaparece. No lugar, algo mais familiar e sinistro: cloro. Eu me sento e encontro o olhar acusador da minha mãe. As feições dela ficam borradas; será que eu estou com visão dupla? O gosto de água de piscina se insinua na minha língua. Eu cubro a boca e concentro-me em um dos rostos tremeluzentes da minha mãe. Naquele que mais me causa arrepios. Naquele que me olha com um reconhecimento presunçoso. — Você não vai me enganar! — eu grito através dos dedos. — Você não é a minha mãe!
5 MESES + 13 DIAS Quinta-feira, 18 de dezembro
Frank vai ficar num hotel de beira de estrada em Westfield, assim ele poderá assistir ao concerto de amanhã. Minha mãe não o convidou para ficar conosco. Eu duvido que Frank iria gostar de vêla socar as teclas do piano a noite inteira. Sim, pois ontem ela fez isso outra vez. Agora, enquanto me arrasto pelas escadas, morta de exaustão, ouço a minha mãe ao telefone, a voz rouca por causa do cigarro e a falta de sono: — ... disse a você, ela está assim há dias... Claro que está deprimida por causa dos amigos... Sim, ela está tomando... Eu fico de olho nela toda manhã. Mentirosa. Você nunca mais ficou de olho em mim. Minha mãe diz com sarcasmo: — Ah, fico feliz que você tenha tido a chance de pensar sobre isso, agora que a nossa filha está tão convencida de que você a odeia!... Ah, por favor. Não venha com isso. Não venha com o quê? O que ele quer? Eu me lembro da surpresa dele quando minha mãe disse que eu não iria visitá-lo. Será que isso foi ideia dela? Duvido que o tenha consultado. — Como eu ia saber? Eu contei a você o que ela disse sobre toda aquela coisa de fantasmas roubando almas e matando os amigos dela. Você ouviu o que ela disse a meu respeito, ontem. Ela está delirando, Frank. — Não, eu não estou — sussurro. A voz da minha mãe fica mais alta. — O que você quer dizer com “não estou tentando”? Estou tentando há semanas fazê-la se adaptar... Você fez o quê? — Silêncio. — Quando? Tudo bem... obrigada, então. Quando me vê, ela tem um sobressalto, desliga na cara de Frank e me lança um sorriso falso. Um rosto. Um sorriso. — O que Frank fez? — eu pergunto. — Ele conseguiu encontrar outro médico. Sua consulta é no sábado. Ele concorda — ela acrescenta antes que eu possa argumentar — que você precisa de terapia. Algo além de um punhado de comprimidos todo dia. — Os comprimidos são o suficiente! — eu protesto.
— Quando você os toma. — Eu estou tomando! Estou! — Então, talvez eles não sejam os certos. Se fossem, você não estaria tão tentada a largá-los. Merda. Merda. Merda. Eu não quero ir a um psiquiatra agora! Se eu cometer um deslize e disser uma palavra sobre Annaliese, nunca mais vou ver a luz do sol! — Eu juro que estou tomando os comprimidos. Pela alma de Nana, como você me fez jurar e eu jurei, lembra? Minha mãe se vira e se afasta da pia. Eu me encolho, esperando, não sei — outro monstro fingindo ser minha mãe? — Eu sei que você está tomando. Mas podem não ser suficientes. — Eu não estou delirando — eu digo calmamente. — Você pensa que eu estou, mas não estou. Minha mãe fica olhando para mim durante um longo tempo. Então ela se vira e se afasta. — Ela pegou você também, mãe — eu sussurro. — Você só não consegue ver.
Se aprendi alguma coisa enquanto estava numa ala psiquiátrica foi isto: quando as pessoas dizem que você está delirando, a melhor coisa a fazer é ficar de boca fechada com relação aos seus delírios. Do contrário vão manter você no isolamento pelo dobro do tempo. Eu não devia ter dito “eu não estou delirando” para minha mãe, porque e se eu estivesse? E se tudo o que eu estou vendo, ouvindo e acreditando for apenas parte da minha doença? Até a visão dupla pode ser um efeito colateral das drogas. Exceto que a “visão dupla” normalmente não inclui outro ser humano totalmente diferente. Não! Eu sei exatamente o que aconteceu aquele dia na cozinha. Senti minha mãe segurando a minha mão. No entanto, também a vi ao lado da torradeira, se lamentando. Eu a vi no sofá, ontem, observando Frank, ressentida, enquanto ele me confortava. Dúvidas me assaltam. E se a minha mãe estiver certa e os comprimidos não sejam de fato suficientes? Ou se eu preciso de uma dose maior? Com esse pensamento obsessivo, eu me esgueiro de volta para a cozinha, depois que mamãe vai para a escola, e pego um comprimido extra de cada frasco. Depois dois de cada um deles. Eu ousaria fazer isso por conta própria? Cutuco cada comprimido com o dedo. Tentador... tão tentador... Então:
— Eu não sou tão idiota! — digo para Annaliese. — Você não me conhece nem um pouquinho. Ela quer que eu tome uma overdose. Acha que ninguém vai ficar surpreso. Talvez ela esteja certa. As pessoas vão dizer: É, Rinn Jacobs. Ela sempre teve problemas. Todo mundo sabe que era só uma questão de tempo até ela tentar de novo. É assim que Annaliese espera se livrar de mim? Furiosa e triunfante, eu devolvo os comprimidos extras aos frascos. — Desculpa aí, vadia. Hoje você perdeu. O telefone toca. É Frank. — Minha mãe já saiu — eu digo. — É com você que eu quero falar. Eu aperto o fone, os dedos crispados. — Quero falar duas coisas — ele diz bruscamente. — Uma é que eu sou um velho patético. Você sabe que eu te amo, certo? Eu confirmo com a cabeça, embora ele não possa me ver. — Segundo, eu não sei o que está acontecendo, mas vamos superar, ok? Você só precisa fazer o que a sua mãe está dizendo e tudo vai ficar bem, eu prometo. Nunca é tarde demais. Não vamos desistir sem lutar muito. Entendeu? — Entendi. — Eu sorrio em meio às lágrimas repentinas. — Vejo você amanhã. Amo você, querida. — Amo você também, Frank.
Tivemos o nosso último ensaio depois da aula hoje. O concerto é amanhã. Nate não está aqui. Eu não o vejo desde cedo, e o professor Chenoweth falou poucas e boas sobre as pessoas que não aparecem nos ensaios. Eu me remexo, inquieta, na cadeira, querendo que o ensaio acabe logo para eu poder ir para casa. Agora que a minha euforia com o fato de Frank ter dito que me ama passou, eu só consigo pensar em Nana. Eu vivo tentando visualizar o rosto dela, mas é difícil, muito difícil. Como se até a minha memória tivesse sido roubada de mim, pedaço por pedaço. Logo não restará mais nada. Será que ela me perdoaria se soubesse que eu lamento muito? O ensaio finalmente acaba. Quando eu pego o estojo do meu violão, Cecilia passa por mim. — Ei, está nervosa com o concerto de amanhã? Eu estou. Estou feliz que Cecilia esteja falando comigo outra vez, embora eu tenha certeza de que é porque sente pena ao ver quão solitária estou. Talvez ela espere que possamos ser amigas, agora que eu não ando mais com as garotas que a maltratavam. Bem, só Lacy fazia isso, embora Meg e Tasha
não a desestimulassem. — Um pouquinho — admito. Atrás de nós, as portas do auditório se abrem com um baque. É Bennie Unger, carregando uma caixa de papelão. — Bennie! — exclamo alegremente quando ele se aproxima de onde estamos, um pouco sem fôlego. — Onde você esteve? — Oi, Rinn, oi, Cecilia. Só voltei para pegar as minhas coisas. O sr. Solomon fez a gentileza de me dar umas férias. Mas então eles fizeram uma reunião e agora não posso mais voltar. — Eles despediram você? — pergunto, chocada, enquanto Cecilia pergunta por quê. — Ele disse que eu não estava cuidando bem da escola. Por causa do Dino, sabe. E do que aconteceu com a sua amiga. — Ele me olha com tristeza. — Ele diz que a sra. Millie está certa. Então agora preciso ir embora. — E com um simples “Então, adeus”, Bennie passa por nós com passos pesados e desajeitados e desaparece pela porta dos fundos do auditório. Cecilia cruza os braços com um ar severo. — Mas que droga! Concordo. O que ele fará da vida agora?
A neve afunda como talco quando eu contorno a minha casa e atravesso a rua na direção da casa de Nate. Tanto o seu jipe quanto o carro do pai dele estão no acesso à garagem. Procurando não parecer que estou querendo uma satisfação, digo a Luke quando ele abre a porta: — Nate está bem? Eu não o vi o dia todo. — Não estava se sentindo muito bem, então ficou em casa. — Luke deu um passo para o lado e me deixou entrar. — Na verdade, foi bom você passar aqui, Rinn. Estou um pouco preocupado com a sua mãe. Eu fico ali, fingindo que estou lutando para tirar uma bota. Será que ele viu as duas Monicas também? Ele segura o meu cotovelo para que eu não perca o equilíbrio. — Está acontecendo alguma coisa? Ela não parece... ela mesma ultimamente. — Como assim? — pergunto, com ar inocente. Ele faz um gesto vago. — Vive irritada... Preocupada. Não que eu queira me queixar, mas... — Ela anda com a cabeça cheia. Sabe, com Millie e tudo mais — eu digo, embora minha mãe tenha claramente evitado a amiga ultimamente. Ou elas brigaram ou ela está simplesmente cansada de Millie. Decido não falar nada sobre Frank, porque... Será que Luke é o que a levou a se
distanciar de Frank tão rápido? Luke me dispensa com um aceno para as escadas, sem fazer ideia das minhas suspeitas. — Nate está lá em cima, mas não chegue muito perto. Talvez ele esteja gripado ou coisa assim. — Certo. Eu tenho certeza de que Luke não está preocupado com os germes. Nate está dormindo de bruços na cama, uma bochecha enterrada no travesseiro. Ele está ressonando. Que bonitinho! Eu me sento na cama e coloco a palma da mão nas costas dele. — Nate! — Eu me curvo para beijá-lo e... Com um rugido, Nate se levanta e me joga no chão. Ele aterrissa em cima de mim com tanta força que expulsa o ar dos meus pulmões e se senta sobre o meu estômago, esmagando-me no tapete. Quando eu grito, ele solta um dos meus ombros — mas só para fazer eu me calar apertando a minha garganta. Eu não consigo respirar. Não consigo lutar. Agarro seu pulso de aço, tentando soltar seus dedos. Um ar fétido de alvejante arde na minha pele a cada bufada que sai da sua boca. Ele enfia um joelho entre as minhas pernas e aperta ainda mais o meu pescoço, sem nem reparar nas minhas unhas enterradas no seu braço. Pontos dourados aparecem diante dos meus olhos. Minha visão diminui e eu fito, desesperada, o seu rosto contorcido pairando a poucos centímetros do meu — ah, meu Deus, os olhos dele! Onde estão os olhos dele? Tudo o que eu vejo são dois buracos negros homicidas, afundados no seu crânio.
Alguém me puxa até que eu fique sentada. Um copo é pressionado contra os meus dentes. Eu engulo a água e gemo quando sinto um ardor na garganta machucada. Quando a minha visão clareia, eu foco os olhos em Luke, que não para de repetir o meu nome. Quando finalmente consigo balbuciar uma resposta incoerente, sua expressão passa a ser de alívio. — Consegue respirar? Respirando quase sem dificuldade — bem, ofegando um pouco, na verdade —, eu o afasto de mim à procura de Nate. Ele está sentado, com a cabeça abaixada, aos pés da cama, com as mãos entre os joelhos. Ouço passos se aproximando cada vez mais e tudo o que eu vejo em seguida é a minha mãe irrompendo no quarto. Será que alguém telefonou para ela? Quanto tempo se passou? — O que aconteceu? — ela grita, ajoelhando-se ao meu lado. Nate responde num tom fantasmagoricamente impessoal. — Eu-eu tive um sonho em que alguém entrava aqui e tentava me matar. Minha mãe exclama estridente:
— Então você decidiu matar a minha filha? O choque trouxe Nate de volta à vida. — Não! Eu juro que não sabia o que estava acontecendo. Mas meu pai me acordou, eu tinha jogado Rinn no chão e... e... — Ele olha para mim com horror, incapaz de continuar. — Monica — Luke se levanta. O medo em seu rosto me causa um arrepio na espinha. Sério, os adultos não deviam nunca agir desse jeito assustador em frente aos filhos. — Olhe para ele. Nate não sabia o que estava fazendo. — Não sabia uma ova! Olhe para ela! Eu não posso ver por mim mesma, mas confio na palavra dela. Minha barriga dói onde Nate se sentou sobre mim. Meu pescoço lateja como se eu tivesse sido atacada por um enxame de abelhas africanas. Nate contesta, com os olhos colados em mim. — Eu nunca machucaria Rinn, não de propósito. Você tem que acreditar em mim! Eu olho dentro dos olhos dele — olhos, olhos de verdade, não buracos, apenas seus olhos castanhos — e murmuro sem emitir nenhum som: Eu acredito! Minha mãe me ajuda a ficar de pé. Roboticamente eu obedeço, sem forças para resistir. — Eu devia chamar a polícia! — Ela se dirige para Luke, que se aproxima de Nate, como que para protegê-lo. — O seu filho atacou a minha filha. Só Deus sabe o que mais ele poderia ter feito. Ah, meu Deus! — ela grita. — Como eu pude acreditar que poderia ser feliz aqui? Como eu pensei que poderia ter amigos depois do que você fez comigo? — Eu? — rosna Luke. — E quanto a você? Você nunca enganou ninguém, Monica. Por que não dá uma boa olhada em si mesma para variar? Eu estanco, mas a minha mãe me arrasta para a porta. — Fiquem longe da minha filha. Vocês dois! — Ignorando os meus apelos, ela me arrasta escada abaixo e atravessa a rua, deixando para trás as minhas botas e o meu casaco. Dentro de casa, ela me força a me sentar numa cadeira da mesa de jantar e arranca as minhas meias molhadas como se eu fosse uma criança pequena que meteu os pés numa poça. Joga um pé da meia no chão e o outro na sala de estar. — Mãe! — Minha voz rouca me causa um sobressalto, mas pelo menos eu consigo falar. — Fique longe dele, Rinn. Estou falando sério. Ficar longe dele? Mas como? Ele mora do outro lado da rua. Eu forço as palavras a passarem pelas minhas cordas vocais machucadas. — Ele estava dormindo! Eu-eu devo ter dado um susto nele ou algo assim. — Verdade? E o que você estava fazendo no quarto dele? Nós nos encaramos. Eu não consigo explicar quanto sou inocente. No que diz a respeito à
minha mãe, quando o assunto é “garotos”, eu jamais sou inocente. Ela continua a despejar a sua fúria sobre mim. — Eu pensei que você tinha parado com toda essa loucura, com essa mania de dormir com garotos que você nem conhece. Você acha que eu gosto de ouvir estranhos falando que a minha filha é uma vadia? Sem fala, eu me encolho quando vejo seu rosto tremular e depois se transformar num borrão. Quando ela volta a falar, é da cozinha dessa vez: — Chá e mel podem ajudar. Talvez seja melhor irmos ao pronto-socorro... Quando ela se aproxima, com canecas e colheres chacoalhando na mão, a alguns metros de mim, a primeira mãe agarra o meu ombro. — Eu devia deixar Frank levar você de volta para a Califórnia. — Eu tento me esquivar quando a Mãe Número Dois coloca água numa chaleira, dizendo: — Querida, por que você não se deita um pouco no sofá? Só vai levar um minuto. Cercada pelo caos, eu grito A VERDADE para a minha mãe — e no mesmo instante caio da cadeira.
Por que eu acho que as pessoas só desmaiam nos filmes? Eu simplesmente desmaiei duas vezes em menos de uma hora. Acordo no sofá, embrulhada num xale de lã. Vozes vêm da cozinha: — ... ele disse que foi um acidente, que estava sonâmbulo. — Acontece. — É Frank. — Vou dar a ele o benefício da dúvida. Ela bateu a cabeça? — Eu acho que não. — Então por que desmaiou? — Eu não sei! Ela começou a gritar comigo, dizendo que eu não sou a mãe dela, que a estou deixando louca e tentando matá-la, e que ela sabe toda a verdade sobre mim agora e... Ah, e que sabe o que está dizendo! Eu engulo a saliva com cuidado. Deus, isso dói! — Frank, ela acha que a mobília muda de lugar no quarto dela. Destruiu a parede. Nunca dorme. Fica andando pela casa a noite toda. Uma noite dessas, ela até saiu de casa... E eu a ouvi falando sozinha. O que mais eu posso pensar? — minha mãe conclui, histérica. Minha Mãe acha que estou ficando louca. É isso que Annaliese quer. Eu abro os olhos e Frank está de pé ao meu lado. — Como se sente, querida? Eu toco a minha cicatriz, certamente com marcas de dedos agora.
— Por favor, não deixe que mamãe denuncie Nate à polícia. — Ela não vai fazer isso. — Frank tira o cabelo da minha testa suada. Ali perto, minha mãe deixa escapar uma risadinha longa e gutural. — Você ouviu isso? — sussurro, com todos os músculos eletrizados. — Não sou eu, é ela! Há alguma coisa errada. Você percebe? Seu rosto perplexo revela que ele não sabe do que estou falando, que ele nem ouviu aquela risada terrível. Só eu posso ouvi-la. Annaliese se certificou de que fosse assim. — Sua mãe ama você, Rinn — Frank diz, com a voz séria. — Não ama mais. — Você se lembra do que eu disse pelo telefone? Vamos ajudar você. Você vai ficar bem. Acredita em mim, não acredita? Por que eu deveria acreditar em Frank se ele se recusa a acreditar em mim? Impotente e indefesa, eu concordo com a cabeça, porque é a resposta que ele espera.
5 MESES + 14 DIAS Sexta-feira, 19 de dezembro
Nate me evita totalmente na escola. Talvez esteja com medo de que a minha mãe cumpra a ameaça e o denuncie à polícia por me atacar. Eu a odeio. Odeio Frank, também, de certo modo, por não acreditar em mim. Na maior parte do tempo, eu me odeio, porque não consigo convencê-los sobre Annaliese. Embora soubesse que não era a melhor solução, eu tentei mais uma vez explicar sobre isso na noite passada. Minha mãe e Frank ficaram em absoluto silêncio e trocaram olhares — sinais claros de que acreditam que eu perdi o contato com a realidade. Hoje Cecilia me cutuca na hora do almoço. — O que aconteceu com o seu pescoço? — Porque, apesar da gola olímpica de sempre, dá para ver as marcas roxas feitas pelos dedos de Nate, um pouco abaixo do meu queixo. — Eu tentei me enforcar na noite passada. — Aturdida, Cecilia quase deixa cair a bandeja. Eu não sei de onde vieram essas palavras ou por que eu as disse. Meu coração quase para. — Desculpe. Foi uma piadinha de mau gosto. Cecilia agarra seu prato de tacos e foge de mim sem dizer mais nada. Eu envio vibrações de ódio para Annaliese, onde quer que ela esteja. Provavelmente, muito perto, adorando cada minuto do seu joguinho. Eu não vou à aula de educação física e me escondo na biblioteca para que não tenha que exibir meu pescoço roxo na frente da classe inteira. Está frio hoje na escola — de acordo com os avisos, devido a problemas com a antiga fornalha — e eu passo o dia todo com o meu suéter. Vasculhando por curiosidade a sessão de paranormalidade, dou de cara com um livro chamado Mundo Espiritual. Por sorte, a sra. Harper, a bibliotecária, está distraída demais lendo jornal para ouvir a minha exclamação sufocada de euforia. Eu me escondo entre as prateleiras, dou uma olhada no sumário e vou direto para a página 126. Um dos maiores mitos sobre fantasmas é a suposição de que eles ficam sempre no mesmo lugar. Embora seja verdade que a maioria dos espíritos permaneça “em casa”, por assim dizer,
existem também registros de fantasmas que se deslocam pelo espaço. Embora os espíritos tradicionais possam se apegar a um lugar específico e continuar ali por anos, até séculos, um espírito mais obstinado pode se apegar a objetos, animais ou pessoas. Graças a esse fenômeno, o fato de alguém sair de uma casa mal-assombrada não é garantia de que se livrará do fantasma. Um incidente desse tipo envolveu uma família de Greenwich, Connecticut... Eu fecho o livro com um baque. Dessa vez a sra. Harper repara em mim. — Rinn Jacobs. Você não tem aula de educação física neste horário? — É triste quando até a bibliotecária da escola sabe o seu horário de aulas. Eu não devolvo o livro.
Hoje é a noite do concerto. Embora a minha voz, como que por encanto, esteja perfeitamente normal, estou tão nervosa e deprimida que só tenho vontade de sumir. Duvido que o professor Chenoweth vá me deixar desistir agora. Eu encontro Nate diante da escola depois do último sinal e me planto na frente dele, obstruindo sua passagem. — Rinn — ele diz, infeliz. — Vai embora. — Não. — Jesus Cristo! Você se esqueceu de ontem à noite? — Você estava dormindo! — E se eu não estivesse? Eu olho para ele. — Você disse que não se lembrava de nada. — Nate me obriga a sair da frente, forçando-me a correr atrás dele até a calçada. — Você disse que não se lembrava de vir pra cima de mim. Ele se apoia num poste. — Rinn. — O quê? O quê? — Eu menti. Eu me lembro. Ele se senta na guia da calçada gelada. Eu faço o mesmo. — Eu me lembro — ele repete. Enfia as mãos sob as axilas e olha para o outro lado da rua, na direção das árvores desfolhadas. Flocos de neve caem sobre os seus cílios. — Eu me lembro de tudo. De acordar. De ver você. De jogar você no chão. — Mas... — Eu me lembro de estrangular você. Eu... eu me lembro da sensação do seu pescoço nas
minhas mãos e... e como eu queria, não sei... quebrá-lo, eu acho. — Nate inclina a cabeça, as palavras abafadas pelos pneus de um carro espirrando neve enquanto se afasta. — Então, não, eu não estava dormindo. Estava acordado. Estava acordado o tempo todo. Minha mão toca o que eu sei que são as marcas dos dedos de Nate no meu pescoço. Eu tento perguntar por que, mas não consigo. Ele entende. — Eu não sei por quê. Mas eu queria matar você, ou pelo menos te machucar bastante. E depois... — ele engole a saliva com tanta força que eu consigo ouvir — eu ia fazer aquilo!... — ele diz, dando um soco na palma da mão. — O que eu disse que ia fazer depois de atirar nos cavalos. Quando seus ombros começam a tremer, eu percebo que ele está chorando. Isso parte o meu coração, no entanto eu tenho medo de tocá-lo, de confortá-lo de alguma forma. Ele queria fazer aquilo. Queria me ferir . Ele teria conseguido se Luke não tivesse ouvido o barulho. Da mesma forma que teria atirado em Xan e Ginger e nos outros cavalos se eu não tivesse decidido, por acaso, ir ao estábulo naquele dia. Mas por quê? Seja sobrenatural ou não, tudo tem uma razão. Nada na vida é tão por acaso quanto gostaríamos de acreditar. A resposta me atinge como uma daquelas bolas dos guindastes de demolição. Esquecendo-me de que eu devia ter medo dele, pego em seu braço. — Era pra você morrer! Você devia morrer! Ele não concorda. Mas também não discorda. Talvez isso já tivesse passado pela cabeça dele. Nate devia morrer, assim como Dino e Tasha. E talvez eu também devesse morrer.
Agora que os outros alunos estão passando por nós e nos lançam olhares estranhos, faço Nate se levantar da calçada. Falo rapidamente a caminho de casa, meu cérebro funcionando a mil por hora: — Annaliese não quer simplesmente nos machucar como ela fez com Lacy, Meg e Cecilia. Algo é diferente com relação a nós. Ela realmente nos quer mortos. — Cara, acho melhor eu ficar longe de você... — murmura Nate, me fazendo imaginar se ele tinha me ouvido. — Eu não confio em mim mesmo. — Você tem que resistir a ela. — Eu quero. Estou tentando. Mas eu não sei como! Bato o pé no chão. — Colhemos o que plantamos. O pai de Dino disse isso. — E daí?
— Daí que há muito mais sobre Annaliese do que nós sabemos. Sabemos que ela está atrás de nós, mas por quê? O que ela ganha com isso? Nate pensa. — Força. Você disse que é força. — Ela não precisa nos matar para isso. Ela pode sugar a força de qualquer um. Até de um gato. Ele chuta a neve. — Talvez não exista nenhuma Annaliese. Talvez sejamos apenas nós. — Não! — eu digo, com ferocidade. — Eu vi o seu rosto quando estava me estrangulando. E os seus olhos... — Eu paro de falar, nauseada ao me lembrar dos buracos negros que não pareciam deste mundo. — Nate, não era você. Paramos em frente à minha casa. Cai tanta neve que eu mal consigo ver a porta da frente. O sr. Solomon tinha nos avisado sobre um alerta de tempestade. O mesmo sr. Solomon que tinha despedido Bennie quando tudo o que tinha acontecido era culpa de Annaliese. Eu passo os braços em torno de Nate. Depois de alguns instantes, ele me abraça também. Não importa com que força eu o abrace, ele não para de tremer. — Eles dizem que vão demolir a piscina em breve. Se aquela é a casa dela, ou sei lá o quê, você acha que ela simplesmente vai embora? — Talvez. Ou talvez fique com mais raiva ainda. A ideia de Annaliese ficando com mais raiva é a última coisa que os meus nervos em frangalhos podem suportar. Nós não sabemos nem por que ela está com raiva agora. Nate se curva para me dar um beijo rápido. — Olha, eu sinto muito. Mas não podemos ficar sozinhos. Não depois do que aconteceu. — Ele se solta do meu abraço. — Eu te amo, surfista. Mas, por favor, não confie em mim. — Nate! — Estou falando sério. Fique longe de mim!
Trajando o vestido preto vintage que usei no baile — quem disse que não se pode usar o mesmo vestido de baile duas vezes? —, eu me lanço na cadeira da escrivaninha. Eu tenho que descobrir o que está acontecendo. Não posso perder Nate! Mordendo o lábio, repasso todas as minhas anotações sobre os meus amigos e o que aconteceu a eles. Então acrescento as minhas ideias mais recentes: 15. Nate me ama. No entanto, ele tentou me matar, com a intenção de matar a si mesmo depois. Ele fez a mesma coisa com os cavalos. Annaliese quer roubar o que ele MAIS ama. Dessa
maneira, ele ia querer morrer. 16. Primeiro, minha mãe não conseguia mais tocar piano. Depois ela começou a fumar, a ficar a noite inteira acordada etc. Depois começou a dizer coisas horríveis para mim. ELA MUDOU! Isso é Annaliese também? Ela está roubando a minha mãe?
Eu paro de mover a caneta, em choque. SIM! SIM! Eu escrevo mais: 17. Pior, Annaliese faz com que eu tenha alucinações. Eu vejo a minha Mãe Verdadeira, mas vejo também uma Mãe Falsa. É a MÃE FALSA que diz essas coisas. Annaliese quer que as pessoas pensem que estou louca. Ela quer que EU pense que estou louca. Ela me faz dizer coisas estranhas. É como se ela não pudesse me matar, então faz o melhor (ou pior) possível.
— Por quê? — eu pergunto para Annaliese. — Por que você não me diz a razão? Ela não responde, é claro. Mas eu imagino um sorriso sombrio e cheio de segredos. Num segundo surto de inspiração, eu jogo a folha de lado e começo uma nova lista, deixando Meg, Cecilia e Lacy de fora. Detesto dizer isso, mas elas entraram por acaso nessa história. Em vez de matá-las, Annaliese só brincou com elas, roubando dessas garotas o que mais amavam. Será que o que ela roubou a deixou mais forte do que nunca? Eu escrevo os nomes cuidadosamente, quase com reverência... 1. Tasha 2. Dino 3. Nate 4. Eu
— e tento descobrir o que nós quatro temos em comum. Leva menos de cinco segundos para eu adivinhar. Trêmula, eu preencho as lacunas:
1. Tasha = Millie Lux 2. Dino = Joey Mancini 3. Nate = Luke Brenner 4. Eu = Monica Parker
Minha mãe, Millie, Luke e Joey. Todos eles eram amigos no colegial. Você nunca enganou ninguém, Monica, Luke disse para a minha mãe na noite passada. Por que você não dá uma boa olhada em si mesma, para variar? O que ele quis dizer com isso? Eu pego o telefone. Nate não atende imediatamente e a ligação cai no correio de voz, fazendome suspeitar de que ele sabe que sou eu. Depois de quatro outras tentativas, eu o venço pelo cansaço. Ele atende ao telefone e eu ouço sua respiração na minha orelha. — Eu sei que você está aí, Nate. — Você é bem insistente, sabia? — Desculpe — eu digo, submissa, mas nem um pouco arrependida. — Então, o que é tão importante que você não podia esperar por mais, sei lá, duas horas? — Lembra o que o seu pai disse ontem, sobre a minha mãe achar que engana todo mundo? — Eu espero que ele se lembre. Ele estava totalmente fora de si na noite passada. — Você perguntaria a ele o que ele quis dizer com isso? — Ele ainda está no escritório. — Mas vai estar aí na hora do jantar, não vai? E ele não vai ao concerto? Pergunte a seu pai tão logo ele chegar em casa. Então me conte. — Bem, não é o tipo de coisa que a gente pergunta todo dia... — eu sibilo impaciente e ele aceita. — Tudo bem, tudo bem. Deus, você é... — ... um pé no saco. — Eu concluo a frase com uma risada desconfortável. — É isso aí. Vejo você na escola. — Ótimo. — Antes de ele desligar, eu acrescento, tímida: — Ah, em caso de você estar se perguntando... eu amo você também.
— Você não está parecendo muito uma estrela do rock nessa roupa — Frank comenta quando eu desço as escadas com o meu violão. — É um concerto de Natal — eu digo, impassível. Minha mãe também me olha de cima a baixo. — Um pouco de exagero no rímel, não acha?
Tudo bem, é minha Mãe Verdadeira. Mas eu não posso baixar a guarda. — Quer que eu tire? — Claro que não, a cara é sua. — Ela limpa a garganta, talvez percebendo a minha suspeita. — Ah, e o seu cachecol está na máquina de lavar. Vou arranjar outro... Frank passa a mão na vidraça. — Uau, com certeza vem nevasca por aí. Mais de trinta centímetros de neve esta noite, eu ouvi dizer. Me diga outra vez, por que as pessoas moram em Ohio? Porque elas matam suas avós. E seus pais as mandam embora. Numa outra ocasião, eu poderia dizer isso em voz alta. Mas dessa vez eu sorrio, lembrando-me dos abraços de Frank. — É melhor a gente ir. O professor Chenoweth quer que a gente chegue cedo. — Vamos chegar pontualmente — ele promete. Então pega sua jaqueta e coloca o chapéu e as luvas, que foi esperto o bastante para trazer. — Acho que vou na frente e desbloquear a passagem com a pá, para que vocês não fiquem atoladas na neve até a primavera. Minha mãe, no encalço do meu outro cachecol, brinca: — Você? Tirando neve com uma pá? — Só observe, baby. — Bem, então só me faça o favor de não sofrer uma queda fatal na frente da minha casa. Frank solta um grunhido, minha mãe ri e meu peito se aquece diante da familiaridade da cena. De repente tudo o que eu quero é ficar em casa com os meus pais — os dois. Eu quero fazer improvisos no violão com Frank, ouvir suas histórias sobre Billy Idol, Madonna, Bono e Van Halen. Ou poderíamos jogar palavras cruzadas — minha mãe sempre ganha — ou alugar um DVD e estourar pipoca e rir até doer a barriga. Todas as coisas divertidas que costumávamos fazer juntos... Antes de você ficar doente, Annaliese sussurra, e estragar tudo. Eu odeio você, Annaliese. Já de botas, dou um pulo até a cozinha, abro o armário. Então estanco, confusa, diante de um espaço vazio na prateleira. — Onde estão os meus comprimidos? Minha mãe se aproxima por trás. — São só cinco horas. Por que vai tomá-los agora? Porque eu quero ter certeza de que vou estar segura esta noite. — Eu posso ficar muito cansada mais tarde. Não quero me esquecer. — Bem, minha nossa! — ela ronrona como um gato no meu ouvido. — Parece que eles não estão aquiii. Eu engasgo ao sentir o cheiro de cloro que exala da boca dela. Ar frio irradia do seu corpo,
causando um arrepio no meu. É ela: a Mãe Falsa. A impostora. A que roubou a alma da minha mãe. Eu me recuso a me virar. — Vá embora. — Ir para onde, humm? Voltar para casa com Frank? Eu gostaria. Tenho certeza de que podemos encontrar um bom lugar para você também. Um hospício bem aconchegante para adolescentes problemáticos. Eu agarro o balcão e olho para a base de alumínio. Há um macarrão seco esquecido perto do ralo. — Mãe. Mãe, ouça. Eu sei o que aconteceu com você. As palavras dela soam no mesmo tom suave que ela usa quando estou doente ou deprimida. — O que aconteceu comigo, querida? Diga, estou interessada. Não a deixe assustar você! — Você foi até a piscina aquela noite. Foi aí que ela te pegou. Sua risada ressoa, assustadoramente parecida com a da minha mãe. Parece muito com ela, eu quase me viro — mas estou com muito medo para encará-la. — Viu, Corinne? Os comprimidos não estão adiantando. Para pessoas como você eles são como balas de goma. E como você sabe que esses comprimidos são realmente os seus? Eu poderia ter trocado por pílulas de açúcar. Eu poderia trocá-los a qualquer hora. Ou poderia estar envenenando você. Já pensou nisso? Eu cubro os ouvidos. Não adianta. — Você gostaria de voltar para o hospital? Lembra como era, depois que você rasgou o pescoço? Todos aqueles adolescentes gritando e chorando? Você não se sentia muito segura lá. Lembra como ficava apavorada? Sim. Mas não tanto quanto estou agora. — E aqueles choques que te davam quando você não se comportava? Como eles te amarravam e tudo o que você podia fazer era ficar deitada ali, gritando como todo mundo. — A risada dela arrepia o meu couro cabeludo. — Foi quando você realmente quis morrer. Não lamenta não ter feito isso quando teve chance? Um milímetro a mais e bingo! Você estaria morta. — Uma risada de desaprovação. — Garota tola! Minha voz por fim volta. — Cale a boca. Você não é minha mãe. Você não é a droga da minha mãe. A Mãe Falsa dá uma risadinha.
— Aqui vamos nós outra vez. Será que devo chamar Frank para que você possa repetir isso para ele? Ela se inclina, chegando mais perto, cuspindo gotas invisíveis de alvejante. Eu cubro o nariz com as mãos para inalar o menos possível. — Eu quase me esqueci. Tenho um presente para você. — Eu gemo quando ela levanta uma mão e coloca algo na minha. — Deixe num lugar seguro. E ao alcance da mão. Você vai precisar muito em breve. Ela dobra os meus dedos e aperta minha mão, só soltando quando eu grito de dor. Minha mão se abre, revelando uma lâmina de barbear brilhante. O sangue escorre pelos meus dedos, sujando na pia. Eu me preparo para gritar “Saia de perto de mim!”, mas tudo o que vejo é a minha mãe, com meu casaco e o cachecol, atravessando a sala de jantar na minha direção. Ela congela no lugar. — Querida, o que aconteceu? O odor de cloro ainda impregna a cozinha. E não diminui quando a Mãe Falsa desaparece. Isso só pode significar uma coisa. O cheiro está vindo da minha mãe de verdade. Com o coração aos saltos, escondendo a mão, eu ando até ela e pego meu casaco. Ignorando o cachecol, coloco a lâmina no bolso, pego o estojo do violão e saio de casa sob uma nevasca, batendo a porta. Frank, ocupado com a pá, não repara em mim. Eu me pergunto se ele vai notar o rastro de sangue na neve.
Estou no vestiário, enxugando o sangue da mão, quando Cecilia entra. — Você se cortou em quê? — Numa lâmina de barbear. — Com cuidado, eu a pego do bolso. Ela se encolhe. — Você sabe que é proibido trazer armas para a escola. — Não é uma arma. É uma ferramenta de suicídio. Minha mãe me deu. Só que ela não é minha mãe de verdade. — O quê? Cale a boca, Rinn. Cale a boca. Eu não consigo calar. Não consigo manter a minha boca fechada. Cecilia, infelizmente, é a única pessoa ali. — É difícil explicar. Ela parece a minha mãe. Mas é uma espécie de impostora.
Cecilia fica me olhando, assustada. — Se ela não é a sua mãe, quem ela é? — Eu não sei. Mas no baile, alguns de nós fizemos uma sessão e algo... algo estranho aconteceu. Todo mundo sentiu cheiro de cloro, assim como você. Então todo mundo congelou. Eu não consegui acordá-los. Jared e eu corremos, porque ele estava bem também, e minha mãe entrou lá e fez a gente ir embora. Mas desde então ela não anda bem! O mesmo aconteceu com Meg e Lacy. Além do que houve com você — eu começo a falar mais rápido, enquanto Cecilia começa a se afastar — e Tasha e Dino, ei, espere! — eu grito quando ela chega à porta. — Ouça! Cecilia para, uma mão na maçaneta. — Coisas aconteceram com outras pessoas também. Tipo o Nate. E a srta. Prout! Foi por isso que ela foi embora. Para fugir dela. — Fugir de quem? — De Annaliese! — explodi. Cecilia espera um instante antes de falar. — Você está ouvindo o que está dizendo? Está falando como uma louca. — Você perdeu a voz. Quase não sai nenhum som da sua garganta agora. Eu vejo você fazer isso. — Frustrada ao vê-la negar teimosamente com a cabeça, eu dou um passo para a frente, com a lâmina na mão. O rosto de Cecilia se contrai de pânico. Rapidamente, eu levanto a lâmina. — Aqui, pegue. — Eu não vou tocar nisso! — Por favor! Eu não posso ficar com isso. Não confio em mim mesma. — Não! — Ela abre a porta violentamente. — Eu não sei do que você está falando. Não está falando coisa com coisa. — Mas... — Eu não estou mais ouvindo. Me deixa em paz. Afaste-se!
ANNALIESE Acho que agora o meu nome não estará mais na lista de cartões de Natal de Cecilia. E Nate já está me evitando, embora ele insista em dizer que é para a minha segurança. Quanto tempo ainda vai levar para todo mundo concluir que eu sou uma louca psicótica? Quanto tempo vai demorar para toda a escola me odiar? Por que eu achei que Cecilia ia acreditar em mim? Sério, quem acreditaria? Nate acredita. Animada com essa ideia, eu embrulho a lâmina de barbear numa toalha de papel e coloco-a no bolso do meu vestido. Eu odeio a ideia de andar com ela por aí, mas não posso deixá-la no bolso do meu casaco, sem a minha supervisão. Eu imagino a traiçoeira Cecilia entregando o meu casaco para o Rei Salomão. É, Annaliese me pegou, tudo bem. Uma cacofonia de instrumentos sendo afinados enche o auditório. Nate está montando a bateria e os pratos, brincando com os amigos. Ele me vê, acaba de montar os instrumentos e se aproxima cautelosamente. Eu devo estar com uma aparência horrível, porque ele pergunta: — O que foi agora? — Vamos conversar. — Tudo bem. Mas não sozinhos. Eu o sigo até um lugar mais afastado, mas não isolado, na última fila de poltronas, e imediatamente caio no choro. Eu definitivamente gostava mais quando não conseguia chorar; o fato de que agora eu choro com tanta facilidade reforça a suspeita de que a Mãe Falsa estava dizendo a verdade — eu ando tomando pílulas de açúcar. Mas como pílulas de açúcar podem se parecer com comprimidos de verdade e terem o mesmo gosto? Annaliese está ganhando. Eu estou cada vez mais paranoica. — Estou assustada. Minha mãe escondeu os meus comprimidos. Então ela me deu uma lâmina de barbear e falou para eu me matar. — Nate fica branco como papel. — Olha, vou te mostrar... — Você está com a lâmina aí? — Ele detém a minha mão. — Jesus, não pegue isso agora. Minha garganta dói. — Ela roubou a minha mãe. Ela está se transformando em outra pessoa. Numa pessoa perversa! E feia! — Talvez — ele parece tenso, desconfortável —, ela esteja se transformando na pessoa que costumava ser.
— O quê? — Ok, ouça. Eu falei com o meu pai, como você me pediu. E você talvez não goste do que vai ouvir... — Vá em frente. Me diga. — A sua mãe era líder de torcida, certo? Millie também. Meu pai disse que elas eram, tipo, as garotas mais populares da escola. — Eu já sabia disso. — Mas eram também populares por serem as mais perversas — ele sublinha. — Minha mãe não é perversa. — Não a minha mãe de verdade, pelo menos. — Ela era, Rinn. Era perversa, e gostava também de intimidar as outras e... — Minha mãe nunca foi de intimidar ninguém! Ela vive me dizendo para ser gentil com as pessoas. — Pessoas como Cecilia, que me odeia agora. — Por que seu pai diria isso? — Ela prejudicava as pessoas — insiste Nate. — Ela e sua panelinha eram desagradáveis com todo mundo. Meu pai diz que os dois saíram por um tempo, mas ele terminou tudo. Ele foi para a faculdade em Nova York e nunca mais a viu. Mas recebeu uma carta, tipo, um ano depois. — Uma carta? — Dizendo que ela sentia muito, que tinha aprendido a lição e esperava que ele a perdoasse, para que pudessem manter contato. Mas meu pai nunca respondeu. — Mas por que ele terminou com ela? Nate disse, sem nenhum constrangimento: — Ele disse que não suportava mais Monica. Ela o constrangia. Mas quando vocês se mudaram — ele acrescentou — e ele voltou a falar com ela, ficou realmente surpreso. Meu pai disse que ela tinha mudado tanto que ele nem acreditava. Ele gosta dela, Rinn, muito. Bem, pelo menos gostava — ele diz, com uma cara de arrependimento — até o que aconteceu... sabe, entre nós dois. No meu quarto. Ele estava se referindo à ocasião em que minha mãe acusou-o de querer me matar. Mas que mãe não reagiria da mesma forma? — Se isso é verdade — eu digo lentamente —, então ela de fato mudou, Nate. Porque ela é uma pessoa boa agora. A melhor mãe do mundo. Ela sempre me trata bem. E eu fiz coisas realmente ruins. Nate dá de ombros. — Bem, melhor assim. Então ela mudou. Nesse momento, a minha ficha cai. — Mudou, sim. — Eu repito com a voz fraca. — Algo a fez mudar, e ela deixou de ser como era antes. E agora outra coisa está tentando fazê-la voltar a ser o que era.
Annaliese, sua vaca sugadora de almas, eu não vou, NÃO VOU deixar você tirar a minha mãe de mim! — Pessoal! — o professor Chenoweth nos chama do palco. — Todo mundo aqui agora mesmo. Nate pega meu pulso com urgência. — Só mais uma coisa. Meu pai... hã, quando ele rompeu com a sua mãe, ele não “rompeu” simplesmente, Rinn. Ele a deixou para ficar com outra pessoa. Ele passa o braço pelo meu pescoço e sussurra o nome dela quando o professor grita: — Isso inclui os dois pombinhos aí atrás! Nate me solta. — Bom concerto, surfista!
Cecilia, que geralmente fica uma fileira atrás de mim, trocou de lugar com alguém no último segundo. Eu não sei que desculpa ela deu ao professor, mas agora está duas filas mais à frente e a cinco pessoas de distância. Quando o professor Chenoweth me olha de um jeito esquisito, eu quero gritar para Cecilia: O que você acha que vou fazer com você, aqui, no palco, diante da droga da cidade inteira? Eu dou uma olhada em mamãe e Frank na primeira fila, com Luke atrás deles. Minha mãe sorri para mim e diz algo para Frank. Fico alguns segundos fantasiando sobre a gente se mudando de volta para La Jolla a tempo de passar o Natal... Onde Annaliese, aquela droga de fantasma ambulante, poderia estar esperando por mim, de qualquer maneira. Nós tocamos cinco músicas que ensaiamos um milhão de vezes. A próxima é “O Holy Night”, seguida de “My Sweet Lord”. Depois o “Coral Aleluia” de Handel, para finalizar em grande estilo. Uma onda de medo do palco surge de repente e me domina. Como eu posso cantar na frente de todas essas pessoas? Por que diabos a minha mãe esconderia o meu Rivotril? Por que Nate esperou até o último segundo antes do concerto para me falar sobre Luke ter rompido com a minha mãe para ficar com Annaliese? Eu acho que não vou conseguir. Estou petrificada. Eu me obrigo a deixar de lado os pensamentos tumultuados e tento me concentrar em “O Holy Night”. Embora não seja nem um pouco religiosa, quando canto as palavras familiares, sinto meus músculos relaxando e meu cérebro a mil por hora desacelerar um pouco: “Caia de joelhos... Oh, ouça as vozes dos anjos...”. As luzes piscam. Ninguém nem percebe. Então elas piscam outra vez.
Depois, toda uma fileira de lâmpadas apaga completamente. Agindo como profissionais, nós acabamos a música e somos aplaudidos com entusiasmo. O professor Chenoweth sobe no pódio rindo como quem se desculpa. — Parece que estamos com problemas elétricos aqui. Não é nenhuma surpresa, com todo esse vento lá fora. Agora eu gostaria de apresentar a vocês Rinn Jacobs, que vai cantar, acompanhada pelo coro, “My Sweet Lord”. Discretamente, dou uma olhada na minha mão — nenhum sangue fresco — e então vou para a frente do palco, onde meu violão já me espera. Eu pego o instrumento, infinitamente grata por Frank estar ali me ouvindo, pois foi ele que me ensinou a tocar. Eu dedilho a introdução, adorando o som das notas empolgantes de George Harrison pelos alto-falantes. Embora não seja uma canção de Natal, e nem mesmo cristã, é uma das músicas favoritas do professor Chenoweth. E de Frank também. Eu começo a cantar, surpreendentemente sem medo nenhum dessa vez. Na metade, quando o coro entra com o “Alelua”, outra fileira de luzes se apaga. Eu não hesito, mas outras pessoas à minha volta trocam olhares. Começo a ficar ansiosa quando meus dedos escorregadios deslizam pelas cordas do violão, que agora parece pesar uma tonelada. Com alguns estalos e o barulho de uma pequena explosão, o sistema de som entra em pane. O palco fica às escuras ao som de um baque surdo e só resta uma fileira de luzes para iluminar o auditório. Meus dedos se atrapalham. As notas, e a minha voz, desafinam. Minhas cordas vocais falham. Minhas mãos caem, frouxas, sobre as cordas. O professor Chenoweth corre de volta para o pódio. — Desculpe, pessoal. Acho que os nossos “problemas elétricos” são um pouco mais graves do que pensávamos... Quando a última fileira de lâmpadas se apaga sem misericórdia, as pessoas na plateia se levantam e começam rapidamente a lotar os corredores. Eu vejo Frank puxando o braço da minha mãe. Ela não se move. Em vez disso, fica olhando para o palco, na minha direção. Observando-me. Esperando a minha reação aos buracos negros repugnantes que, momentos atrás, substituíram os seus olhos. Meu violão tomba no chão. Como se estivesse em transe, eu escorrego do banco e sigo na direção da frente do palco. Eu sei que Frank não pode ver o que eu vejo. Tudo o que ele sabe é que minha mãe não sai do seu lugar. Eu o ouço dizer perfeitamente: — Espere aqui, então. Eu vou encontrá-la. Ele fica ali, olhando para o palco como se estivesse me procurando — e é nesse momento que a
última fileira de lâmpadas explode. Chovem faíscas, causando um certo tumulto. Adolescentes correm e passam por cima de assentos, porta-partituras, instrumentos e outras pessoas. Alguns, mais corajosos, gritam “OOOOUUUUU! ANNA-liese!”. Suas risadas são abafadas quando os sprinkles entram em ação, espirrando água gelada em todas as direções. Eu não consigo mais enxergar muito além do palco, de tão escuro que está o auditório. Não consigo ver Frank, e isso é ruim. Não consigo ver a minha mãe e isso é pior ainda. Eu duvido que Frank possa me ver, também, e isso é mais horrível do que qualquer outra coisa. Ele não tem ideia de que eu estou a centímetros de um demônio. Encontre-o, encontre-o, e dê o fora daqui agora! Eu deslizo o pé para a frente, à procura dos degraus — mas não há nada a não ser um vazio sob o meu pé oscilante. Eu ouço um grito. Sou eu.
Nada. Nenhum som. Nenhuma luz. Está tudo tão escuro e silencioso que tenho certeza de que é assim quando se é cego e surdo. Ou quando se está morto. Não, não morto. Duvido que os mortos sintam essa umidade ou esse frio. Minha cabeça, que parece vazia, se volta na direção de um mar de escuridão. Nada de luzes, nem uma placa indicando uma saída de emergência. Alguém devia processar essa escola. Essas coisas nunca deveriam faltar. Com dor e me sentindo desorientada, eu me ajoelho no carpete encharcado. Não me lembro de ter sido empurrada ou puxada. Não me lembro de ter caído. Mas alguma coisa aconteceu comigo. Eu me lembro de ouvir um estalo horroroso e das faíscas elétricas. Então foi como se um manto de escuridão caísse sobre o auditório. Mas, e antes disso? Sim, o rosto da minha mãe. Aquele borrão branco terrível, os buracos negros sem fundo. Onde ela está? Onde está Frank? Onde está todo mundo? Minha voz soa baixa e áspera, na escuridão. — Nate?
Nenhuma resposta. — Professor Chenoweth? Nada. Estou sozinha, mas onde? Não faço ideia. Eu tento ficar de pé me apoiando nos joelhos esfolados, procurando algo em que me segurar. — Ei? Tem alguém aqui? Nada, nada, nada mesmo. Eu paro ao ouvir o som familiar de uma porta se abrindo. Reconheço o barulho porque já o ouvi dezenas de vezes: a porta do túnel. Agora eu sei com certeza que estou no chão, ao lado do palco, provavelmente onde aterrissei ao cair. Além dessa porta ouço outras coisas também. Metal contra metal, uma leve arranhadura. Ferragens se entrechocando. Peças de metal caindo no chão. Um sopro de ar gelado roça no meu cabelo úmido. Em toda a minha volta, o ar fica mais carregado, e o cheiro de cloro invade a minha boca como um óleo viscoso. Instintivamente, seguro a respiração até os meus pulmões arderem. Quero correr, mas para onde? Não há nada à minha volta, a não ser um vazio. Traída pelo meu corpo, eu sorvo uma golfada de ar, engasgando com o que parecem litros de uma substância amarga e repulsiva. Então, segundos depois, eu sinto um puxão. O vácuo inexplicável me tira do chão e me arrasta pelo ar. Eu estou me movendo, mas não estou tocando em coisa alguma. Ondas geladas e oleosas batem no meu rosto à medida que eu sinto a porta do túnel chegar cada vez mais perto, mais perto, mais perto... Quando eu bato na parede, nenhum som alcança os meus ouvidos. Aturdida, deito no chão e me finjo de morta. Ouvi dizer que isso funciona quando você é atacado por um urso na floresta. Eu não acho, no entanto, que se aplique a fantasmas. Entorpecida pelo golpe, demoro um instante para entender que estou no túnel perto de um retângulo de luz: a porta da piscina. A maçaneta da porta desliza na minha mão, mas, quando tento segurá-la, meus dedos não obedecem. Na verdade, nada no meu corpo funciona. Eu não sei o que me apavora mais: saber que eu posso muito bem ficar paralisada pelo resto da vida ou que Annaliese arrancou a maçaneta da porta! É nesse momento que a porta desliza sozinha, abrindo-se totalmente. É claro! O que maçanetas e parafusos podem contra fantasmas? O sr. Solomon não fez nenhum bem demitindo o pobre Bennie. Em vez disso, ele devia ter comprado dinamite e mandado a piscina pelos ares, reduzindo-a a pedaços. Dane-se o centro multimídia. Ansiando por respirar contra a parede de ar, eu desvio os olhos para a luz do outro lado da porta.
Não é luz. É uma névoa. A mesma névoa que eu vi aquele dia com Nate, só que mais brilhante e distinta. Minha breve gratidão ao ver qualquer luz se dissipa e se transforma em horror quando o vapor aumenta e se torna ofuscante com seu brilho, aos poucos se metamorfoseando num corpo. Membros tremulantes se estendem no lugar. Um pescoço se forma e se alonga, se alargando numa cabeça. Fios sedosos de cabelo fluorescente flutuam numa brisa inexistente. A pressão insuportável da atmosfera diminui. Chocada ao descobrir que consigo me mexer, começo a me levantar — e então grito ao sentir a dor no pulso direito. Essa é a mão que bateu primeiro na parede do túnel. Mas tenho sorte de não ter sido a minha cabeça. Eu não sinto dor nos meus sonhos. Não uma dor assim, tão latejante e acentuada. Isso só pode significar uma coisa: — Eu não estou sonhando — sussurro.
As palavras escorregam como manteiga através do alvejante na minha boca. De pé, enfim, dou uma olhada em torno, me sentindo indefesa. Em meio ao brilho daquilo, daquela coisa na piscina, eu posso ver através da porta do túnel o auditório, mais além. Não está como eu o deixei. As letras vermelhas iluminadas da placa de SAÍDA estão perfeitamente visíveis. Assim como os fachos das luzes de emergência abastecidas por geradores, eu acho. Ouço passos. Pais chamando os filhos. Adolescentes chamando uns aos outros. O professor Chenoweth avisa: — Andem em vez de correr. Não queremos pânico aqui, pessoal. Dando graças a Deus, eu avanço na direção dos sons e estou prestes a atravessar a porta para o auditório quando o vácuo espectral me suga de volta. Eu aterrisso no chão duro, no vão da porta da piscina. Eu grito, chamando a minha mãe. Frank. Mas ninguém parece me ouvir. “Desista. Ninguém pode ouvir você.” — Alguém me acorde, me acorde, ah, meu Deus, ALGUÉM ME ACORDE! “Você está acordada, idiota.” Se existe uma coisa mais insana do que ouvir um fantasma falando com você é ouvir esse fantasma se referir casualmente a você como uma “idiota”. — Você não é real — eu digo, as palavras distorcidas pelo ar carregado. “Bem que você queria.” A ilusão brilhante, ou alucinação, ou o que quer que ela seja, desliza para mais perto do umbral da porta, então se afasta outra vez.
“Você disse que acreditava em mim. Por que mudou de ideia?” Eu volto a olhar para o auditório. As pessoas parecem mais distantes, as portas que levam ao ginásio se fecham com um estrondo pela última vez e agora eu sei que eles me deixaram para trás. Alarmada, eu noto que as luzes de emergência não chegam mais até o recinto da piscina; elas só vão até a entrada do túnel, deixando o santuário de Annaliese escuro e intocado. Bem, exceto pelo brilho dela. Ela desliza para a frente e para trás na sala, passando facilmente pela cerca. Seu rodamoinho fluorescente ilumina o buraco da piscina. Gotículas de cor, espalhadas no ar, dançam como pequenos fogos de artifício em volta da sua silhueta flutuante. Paralisada, eu a observo atravessando a cerca, se aproximando de mim em avanços cuidadosos. Será que ela tem medo de mim como eu tenho dela? “Você não me respondeu.” Eu me esqueci da pergunta. As feições de Annaliese ficam borradas, depois mais definidas, depois borradas outra vez. Exceto pelo fato de que, bem, ela é um fantasma agora, eu a reconheço pelas fotos nos anuários de Millie. Não pelos olhos, porém. Não são os mesmos olhos pálidos, amigáveis. Suas órbitas vazias e negras não revelam nada de humano. Eu falo sem pensar: — As janelas da sua alma. Ela para, embora seu cabelo continue a flutuar num halo nevoento. “Quem te disse isso?” — A minha avó. “Você pode ver os meus olhos?” — Não — admito. Ela pensa no que eu disse. “Isso significa que eu não tenho alma?” Se eu disser “sim” ou “não”, a resposta pode ser errada. Será que é fácil irritar um fantasma? Neste momento ela parece quase alegre para uma morta-viva. Ou será que é uma vampira? Um zumbi? Eu limpo minha garganta dolorida. — O que você quer? “Por que você não responde às minhas perguntas?” — Por que você não responde à minha? Você me arrastou até aqui. “Eu não arrastei você. Você veio por conta própria.” — Mentirosa. — Agora eu estou irritada. — Você podia ter me matado com esse truque.
Ela parece estar se divertindo. “Eu acho que nós subestimamos uma à outra, Corinne.” — Você sabe o meu nome. “Eu sei o nome de todos vocês. Lacy, e Dino, e Meg, e...” — ... Tasha — eu digo, impassível. “A mãe de Tasha chorou no funeral?” — Claro que chorou. “Ótimo. Eu espero que ela chore todo dia pelo resto da vida.” Eu umedeço os lábios e cuspo alvejante. — O que ela fez a você? “Por que não pergunta a Monica o que eles fizeram comigo?” — Eles? Annaliese estremece. Novamente suas feições ficam desfocadas, depois mais bem definidas do que antes. Eu vejo um nariz, um queixo, e que ela é pequena, como eu, embora pareça muito maior com todo o vapor à sua volta. “Será que você é tão estúpida assim? Que não sabe do que estou falando?” Claro que eu sei: Luke, Millie, Joey Mancini e minha mãe. — Você vai matá-los também? “Eu não matei ninguém.” — Você matou Dino e Tasha. Então tentou matar Nate. “Nate se mataria com as próprias mãos depois que percebesse que tinha matado aqueles cavalos. Ou matado você”, ela diz com azedume. — Tanto faz. “E eu não matei Dino. Ele escorregou, o arame entrou na perna dele e ele caiu para trás e ficou pendurado de ponta-cabeça. Você deveria ter ouvido ele berrar... Chorando e chamando pela mãe. Então ele ficou pendurado até morrer. Não é culpa minha que fosse tão desajeitado. Não é culpa minha que tenha vindo até aqui.” Um breve silêncio; acho que ela quer que eu entenda bem o que disse. “E Tasha pulou por vontade própria. Por que você me culpa?” — Porque você fez aquilo acontecer. Você fez tudo isso acontecer! — Annaliese não discute. Isso me surpreende. — Por quê? “O que te interessa? Além disso, está quase no fim. Na verdade, é só pensar...” Sua voz adquire um tom agressivo. “Neste exato momento, o seu namorado pode estar disparando o rifle ou dirigindo por aí nessa terrível nevasca ou...” A dor dispara pelo meu cotovelo quando eu faço um movimento involuntário. — Deixe Nate em paz!
“Imagine agora como Luke vai se sentir quando encontrar Nate com os miolos estourados. Ou em seu carro, morto ao bater numa árvore. Humm, sangue espalhado na neve. Talvez decapitado?” Uma chuva de faíscas pontua a expressão deliciada de Annaliese. Ela se aproxima o bastante para lançar um brilho luminescente sobre a minha pele. Os pelos do meu braço se eriçam. “Não se preocupe. Não é como se você não fosse encontrar outro cara, certo? Você é como Monica. Não como eu. Eu nunca tinha beijado nenhum cara antes de Luke.” Ela se expande, irradiando fúria em ondas, como uma fornalha. “Mas Monica? Rá! Ela destruiu tudo.” Sobressaltada com o estranho aumento do calor, eu me encosto à parede. A escuridão diminui à medida que o calor aumenta, revelando uma piscina cheia de água cintilante. Luzes brilhantes. Um piso de ladrilhos muito liso. O forte odor de alvejante desaparece, deixando apenas o aroma seguro e cristalino de uma piscina normal. Não é um sonho. Não é uma alucinação. “Assista”, Annaliese sussurra. A cerca desaparece e ela também.
Agora eu sei o que Tasha viu no dia em que morreu. Ela mergulhou numa piscina vazia, acreditando que essa ilusão era real. Que, de algum modo, a piscina tinha sido reformada em segredo, transformada em algo de beleza indescritível. Uma pessoa de posse da razão perceberia que isso seria impossível. Mas Tasha não estava de posse da razão naquele dia. Ela estava sob o feitiço de Annaliese. Eu olho com pavor para o trampolim. O que Annaliese planeja me mostrar? Tasha a caminho daquela morte terrível? Ela pode me forçar a assistir? Vou vê-la se chocando contra o fundo da piscina dessa vez? Por favor. Por favor, não. Nada acontece. Mas a piscina continua cheia. Um som inesperado de vozes no auditório e nenhum sinal de Annaliese fazem com que eu tome uma decisão repentina e dispare para o túnel. Livre! Mas espere. Não há nenhum instrumento no palco, nem degraus para o coro. Nenhuma poça d’água ou pertences abandonados. O palco está aceso agora, mas as cortinas parecem diferentes. Adolescentes se esparramam pelas cadeiras. Eu não reconheço nenhum rosto. Só reconheço a srta. Rasmussen, minha professora de inglês, que também dá aulas de teatro. Ela está diferente, também, mais magra, com o cabelo mais comprido... e que óculos ultrapassados
são aqueles? Quando o sinal de saída toca, ela diz: — Ok, tenham um bom fim de semana, crianças. E não se esqueçam, se alguém estiver interessado, os testes para Hamlet serão depois das aulas na segunda-feira. Murmúrios de concordância, algumas despedidas. Adolescentes pegando suas mochilas e pastas. Alguns vão para o túnel, outros vão para o ginásio. Incerta do que fazer, eu vou para o ginásio também, muito consciente de que meu braço direito agora está bem — e paro quando vejo duas garotas numa fila de cadeiras nos fundos. Minha mãe e Millie? Sim, são elas, mas em versões muito mais jovens. Os cabelos da minha mãe vão até a cintura. Millie, uns trinta quilos mais magra, está com uma blusa cor-de-rosa justa que deixa boa parte dos seios de fora. — Você pegou a câmera? — ouço minha mãe, Monica, sussurrar para Millie. Millie levanta uma enorme Polaroid antiga. Monica empurra a câmera para baixo com as mãos para escondê-la novamente. — Não fique exibindo isso por aí! Onde está com a cabeça? — Relaxa — tranquiliza-a Millie. — E se apresse. Ela vai aparecer a qualquer minuto. — Quando minha mãe/Monica hesita, ela acrescenta: — Não esquenta. Só se preocupe com Luke. Joey e eu fazemos o resto. — Legal. Estou lá fora. — Minha mãe/Monica se levanta num pulo, revelando uma minissaia jeans e botas extravagantes. Com um sorriso malicioso, ela acrescenta: — Tire um monte de fotos — e passa por Millie, saindo da fileira de assentos. Quando, surpresa, ela estanca bem na minha frente, eu percebo: ela pode me ver também! Eu espero, imobilizada. Minha mãe/Monica estreita os olhos para mim. Os mesmos olhos que eu conheço há dezesseis anos. — O que está olhando, vadia? Estou olhando para você. Para a minha mãe, quando tinha a minha idade. E não gosto do que vejo. — Na... nada — gaguejo. — Na... nada? — ela me arremeda, caçoando de mim com uma voz arrastada que eu não conheço. Eu aposto que minha mãe se esforçou muito para se livrar desse sotaque. — Não conheço você. É nova? — Si-sim. — Então como se chama? — Corinne. — Eu espero a reação dela sem respirar, mas ela não demonstra me reconhecer. — Belo nome — ela diz. — Eu gosto. — Ela arruma a mochila nas costas e levanta o queixo. —
Agora me dá uma licencinha e tira esse seu traseiro daqui... Corinne. Não preciso que ela me diga duas vezes. Com um último olhar para Millie, encolhida como se estivesse se escondendo, eu corro para o ginásio. Engraçado como apenas alguns segundos atrás eu pensava que ia ser morta por um fantasma. Agora eu me pergunto como vim parar aqui, vinte anos atrás, no passado — e como, ou se, vou conseguir voltar ao meu presente inteira. A menos que Annaliese esteja me provocando uma alucinação, assim como ela fez com Tasha na piscina. Será que Annaliese me “trouxe” até aqui para me matar, no final? Estou com medo de sair do lugar. O próximo passo que eu der pode ser o último. Quando Monica surge atrás de mim, eu me dou conta de onde estou e me escondo atrás da porta aberta. Ela passa sem me notar, trocando um olhar com Joey Mancini, agora um cara jovem, bonito e em forma. — Luke está vindo — ele murmura, disfarçadamente. — Vá buscá-lo, princesa. Monica dispara, o longo cabelo flutuando à sua volta, e Joey entra, descontraído, no auditório. Quem eu devo seguir? A decisão é tomada por mim quando eu me afasto um passo da porta e instantaneamente perco o equilíbrio quando sinto a sucção fantasmagórica me puxar. Annaliese não me deixa ir a lugar nenhum. O que ela quer que eu veja está aqui. Então eu sigo Joey. Ele e Millie trocam sussurros urgentes e ficam em silêncio quando outra pessoa entra. Annaliese. Não o fantasma Annaliese. A garota Annaliese. Ela anda até a fileira de assentos da frente. Eu me espremo contra a parede dos fundos, rezando para ficar invisível, enquanto Joey anda alegremente até onde está Annaliese. Millie, câmera em punho, se esgueira através da fileira do lado e caminha silenciosamente como um gato até o palco. Eu vou na ponta dos pés atrás dela, o mais próxima que me atrevo ir. Se minha mãe/Monica pode me ver, talvez Millie e Joey também possam. Joey está falando com Annaliese. Ela é muito mais bonita do que nas fotos do anuário. Não uma beleza de parar o trânsito, assim como mamãe. Mas ela tem um ar, não sei, de franqueza. Se alguém a encontrasse numa lanchonete, por exemplo, e não tivesse ninguém com quem conversar, Annaliese seria uma boa opção. Ela é tão surpreendentemente normal e “simpática” que eu quase me esqueço daquele vapor maligno no recinto da piscina. Annaliese dá um pulo quando Joey avança. — Me deixa em paz. Estou esperando Luke. — Não quer companhia? — ele pergunta, de um jeito persuasivo. — Não. Eu nem gosto de você, Joey. — Claro que gosta. — Num piscar de olhos ele a está beijando.
Clique... buzz. A câmera de Millie tira uma foto. Ela então a posiciona na beira do palco. — O que está fazendo? — Annaliese grita, esquivando-se da boca persistente de Joey. Clique... buzz. Clique... buzz. Millie pressiona o botão cada vez que Joey consegue arrancar um beijo de Annaliese. Mas que merda é essa? Sem me importar que eles reparem em mim, eu abro a boca para gritar o meu próprio protesto — mas o ar fica espesso como xarope, amortecendo os meus membros, me silenciando. Então, murmurando um palavrão, Joey tropeça ao se afastar do punho de Annaliese com o nariz sangrando. — Fica longe de mim, seu cretino nojento! Vocês dois! — Annaliese grita para Millie, agora há vários metros dela. Millie grita alegremente: — Ei, só estamos tirando umas fotos para mostrar pro Luke, querida. Sabe, assim ele vai saber a vagabunda que você é. Joey enxuga o nariz na manga da camiseta de um time de basquete. Então agarra Annaliese. Uma mão no seu cabelo. A outra apertando seu seio. Clique... buzz. Millie alinha as fotos, uma ao lado da outra. Então Annaliese consegue se libertar. — Vá em frente, tire mais. Tire uma do nariz sangrando de Joey. Quando Luke vir, vai saber que não foi ideia minha. — Ela recua, o cabelo despenteado, os olhos fulminando. — Ele já está chegando agora. É melhor vocês me deixarem em paz! — Ah, sério? — Millie caçoa. — Eu acho que não. Ele está ocupado com Monica agora. Annaliese empina o nariz. — Mentirosa! — Quer apostar? Você é tão burra! Por que acha que ele não está aqui? A gente te disse que Monica conseguiu Luke de volta. Aproveitando a evidente surpresa de Annaliese, Joey agarra a blusa dela. — Não me toca! — ela grita e o soca com os punhos — PÁ! PÁ! — com os dois punhos de uma só vez. Joey, furioso, chega mais perto dela e então a arremessa com tudo contra a parede do palco. Um baque horripilante se segue. O ar escapa dos pulmões dela. Congelada no lugar, eu observo quando Annaliese desaba no chão. Millie deixa cair a câmera. — Que merda você fez? — Não sei — murmura Joey, desnorteado.
Millie se inclina. Os dois ficam de pé, cara a cara, sobre o corpo imóvel de Annaliese. O sangue goteja do nariz de Joey e em suas roupas. Ele limpa o rosto com um gesto frenético. — Ela está bem? Sabe dizer? — Não sei. Não está se mexendo. — Se... será que está mor... morta? — Não sei! — Apertando a cabeça, Millie começa a andar em círculos. — Aimeudeus, seu imbecil de merda. Como foi deixar isso acontecer? — Ela me bateu. Duas vezes — Joey disse, melancólico. — Foi instintivo, tá? — Então ele recupera o ar desafiador. — Ei, não foi ideia minha. Foi sua e da Mo, lembra? — A gente disse pra você beijar Annaliese! Talvez agarrar o peito, sei lá! Silêncio. O que eles estavam pensando agora? Annaliese não só estava morta, mas coberta com o DNA de Joey. Eu me pergunto se a polícia já faz esse tipo de teste. Se fizer, ele está ferrado. E duvido que vá para a cadeia sozinho. Ou talvez estejam pensando: se Annaliese não estiver morta, o que acontecerá com eles quando ela acordar? Eu não sei de quem é a ideia. Não vi quem fez o primeiro movimento. Mas Joey, sem dizer uma palavra, tira Annaliese do chão, enquanto Millie corre na frente dele para abrir a porta do túnel. A cabeça de Annaliese bate na parede quando Joey carrega seu corpo flácido através da porta. O baque surdo faz meu estômago revirar. Quanto mais eles se distanciam de onde estou, mais eu posso me mover. Creio que Annaliese quer que eu veja o que está acontecendo, mas só de uma certa distância. Andando com dificuldade como se caminhasse numa areia inexistente, exatamente como no velório de Nana, eu os sigo até o recinto da piscina. Eu ouço o barulho da água quando eles jogam Annaliese na piscina. — O cloro vai destruir as provas, eu acho — Millie diz, nervosa. — É como alvejante, ou coisa assim. — Pronto. — Joey fica olhando para a água. — O que vamos dizer a Mo? Millie envolve a mão dele na sua. — Fácil. Ela não apareceu. Não vimos Annaliese esta noite. Então eles se foram. Simples assim. Annaliese fica lá, flutuando com o rosto na água. Bolhas preguiçosas estouram em meio aos fios do seu cabelo. Ela se afogou, eles dizem. O que é verdade. Mas só porque Joey e Millie a jogaram na água ainda viva.
À minha volta, a atmosfera está gelada e sombria. Meu novo ataque de pânico sufoca meu lado racional e eu disparo para fora do recinto da piscina, correndo feito louca. O que vai acontecer se eu continuar correndo? Vou ficar presa aqui para sempre? E depois? Meus pés batem na câmera de Millie, fazendo-a rodopiar no chão. Com uma mão eu pego as fotos na borda do palco — ninguém pode saber! — e, gritando como uma demente, eu as rasgo em pedacinhos. Ainda estou rasgando as fotos quando aquele puxão letal me captura novamente e me leva para a névoa escura e sufocante.
As palavras de Annaliese agitam o ar. “Luke prometeu que me encontraria lá. Ele estava indo me encontrar, e não indo encontrar Monica. Ele a deixou por MIM. E, se ele tivesse aparecido como prometeu, eu ainda estaria viva. Mas, não, ele estava com Monica. Como se eu não fosse nada. Ninguém!” Enrodilhada no chão, eu exclamo, indignada: — Minha mãe não fez isso. Ela nunca soube o que fizeram a você. “Ela sabe agora. Millie contou a ela.” — Quando? “Creio que foi quando Millie não suportou mais a culpa”, grunhe Annaliese. “Ela sabe por que Tasha morreu. E sabe por que eu fiz o que fiz.” Aquele dia na cozinha. Ah, meu Deus. Não me admira que minha mãe não esteja mais falando com Millie. — Mas você não pode culpar a minha mãe. Porque eles mentiram para ela. “Monica manteve Luke distraído. Foi ideia dela tirar as fotos, fazer ele pensar que eu estava me encontrando com Joey. Ela queria Luke de volta, mas ele queria a mim. A mim! Ele sabia que ela era uma cadela. Foi por isso que a abandonou.” — Eu quero ir pra casa — eu digo, infeliz. Aquela última viagem não intencional pelo ar me deixou exausta. — Eu vou contar a eles o que realmente aconteceu. Não é isso o que você quer? “Ninguém vai acreditar em você.” — Minha mãe vai. Annaliese bufa, um som peculiarmente humano. “Você acha?” Silêncio... ... Silêncio... ... Silêncio...
Então ouço minha mãe chamar: — Rinn?
Dou um impulso com o braço bom, para me levantar. Eu a vejo, então, em meio ao pálido rodamoinho fantasmagórico que, segundos antes, era Annaliese. — Mãe? — Não pode ser ela. É um truque de Annaliese. Mas é a voz da minha mãe, suave e infeliz. — Ah, Rinn. Eu te amo tanto. Depois que você me deixou, eu não conseguia parar de chorar. Tentei me manter ocupada, como todo mundo sugeria. Tentei com todas as minhas forças me lembrar dos tempos felizes, mas não conseguia. Não conseguia! Querida, você era toda a minha vida. — Do que você está falando? — pergunto, entorpecida. — Mãe, o quê...? — Sinto tanto a sua falta. Por que você me deixou? Por quê? — Eu não te deixei! — grito. — Estou bem aqui! — Eu não conseguia comer ou dormir. Não conseguia nem tocar piano. Eu tentei, noite após noite, mas nada saía direito. Eu perdi minha música. — A voz da minha mãe falha. Ela cobre o rosto com as mãos. — Minha música! A única coisa que eu amava quase tanto quanto amava você. — Mãe, você está fazendo tudo isso agora. E eu ainda estou viva! “Ah, sério?”, caçoa Annaliese. “Tem certeza? Ou eles encontraram você morta na banheira? Ou... talvez morta no chão com as mãos do seu namorado em volta do seu pescoço?” Sem pensar, eu avanço sobre ela — e me choco contra a cerca. O estrondo dos elos me deixa atordoada enquanto eu grito incoerentemente diante do brilho odioso que não é mais a minha mãe. Annaliese flutua até ficar fora do meu alcance, com uma risada nervosa. Mesmo com a cerca entre nós, eu acho que ela teme a minha fúria. “Minha avó sofreu quando eu morri, também. Eu era toda a vida DELA. Ela tentou me encontrar, vindo aqui. Mas eu estava fraca na época. Não consegui entrar em contato com ela, nem mesmo quando a louca da srta. Prout tentou ajudá-la. Então ela se matou. Tudo o que ela queria era me ver novamente! E de fato a gente se viu, só que por segundos, e eu fiquei tão feliz! Mas eu não era forte o bastante para mantêla aqui.” — Sim, bem — eu massageio meu braço machucado. — Você parece bem forte agora. “Rá! Eu sou mesmo. Os ratos serviram por um tempo, mas não era sempre que eles apareciam. Aquele gato funcionou muito bem. A fornalha ajudou, pois há muita energia ali. A eletricidade também, até Bennie ficar preguiçoso e parar de trocar as lâmpadas. Mas, tudo bem, eu descobri outras maneiras. Maneiras mais fáceis.”
— Que maneiras? — pergunto, embora já saiba. “Energia humana, idiota. Como talento. Como força física.” Ela faz uma lista, como se estivéssemos numa aula ou coisa assim. “Compaixão. Senso de humor. Força de vontade, essa é a mais fácil. Saúde também. E a-mor, claro.” Ela fala a palavra com afetação, zombando. “Vocês sempre entregam tudo tão fácil! É patético, na verdade.” — A gente não entrega. É você que tira de nós, porque você é má. — Eu chuto a cerca. — E lá estava eu, sentindo pena de você. Quase gostei de você por alguns minutos. Então, sim, eu sou mesmo idiota. Uma onda de luz atravessa a sua forma, ofuscando meus olhos temporariamente. Estou notando agora que, quanto mais irritada ela fica, mais ela brilha, embora a sala esteja mais fria do que nunca. Sugando energia. O que vai acontecer quando ela sugar tudo e não restar mais nada? Ou se alguém tirar a energia dela? “Má? Monica era má! Ela não acreditava que ele me quisesse, e não a ela. Eu não era líder de torcida. Não era bonita, nem talentosa, nem nada. Mas Luke gostava de mim! E Monica não conseguiu suportar isso, então ela me torturava. Dizia mentiras a meu respeito e tentava jogar as pessoas contra mim. Mas adivinhe! Não funcionava. Você quer saber por que, Corinne? Porque eu era uma pessoa legal. Porque as pessoas gostavam de mim.” Antes que eu decida como responder a isso, Annaliese suspira. Eu sei que é um suspiro por causa das faíscas multicoloridas que se espalham pelo seu rosto quando ela faz um som de expiração. Fantasmas respiram? Aposto que não mencionam isso naquele livro sobre o mundo espiritual. Por impulso, eu digo: — Pensei que você não podia assombrar as pessoas que tomam drogas psicoativas. “Assombrar é uma palavra idiota.” — É a única que eu conheço. Então, você pode ou não pode? “Geralmente, não. Nunca consegui afetar Bennie. Não sabia por que até eu descobrir com a srta. Prout. Essa é uma das coisas que eles nunca se deram ao trabalho de te dizer.” — Eles? Eles quem? “Só... eles”, ela diz de um jeito misterioso. “Você não tem que saber quem eles são.” — Ela alisa o cabelo cintilante, outro gesto sobrenaturalmente humano. — Então por que você pode me “afetar” agora? Eu estou tomando os remédios. “Porque você quer que eu faça isso. Você abriu a porta, não eu.” — Você está tão convencida disso... “Qual é, Corinne. As pessoas tomam remédios o tempo todo para nos manter afastados. Então pessoas como você param de tomá-los e nos dão acesso outra vez. Cada vez que isso acontece, a gente consegue ficar
um tempo mais longo.” — Doença mental não tem nada a ver com fantasmas! É um desequilíbrio químico. Os medicamentos corrigem isso e, e — bem — é uma doença, só isso! Estamos no século XXI, dã. O fantasma dá de ombros. “Que seja... Corrr-iiinne.” Ela fica flutuando de um lado para o outro, como se agora tivesse coisas mais importantes em mente. Por onde passa, deixa rastros de cores, um arco-íris eletrificado. Ela desbota um pouco quando para e isso me preocupa. E se ela ficar esgotada e desaparecer, me deixando aqui para sempre? De certa forma, prefiro vê-la com raiva do que indiferente. — Bem, e agora? — eu a incentivo. — Já acabou de matar as pessoas? Vai só ficar perambulando por aí, brincando com as sombras? Uivando para a lua? Derrubando cadeiras? Uma espiral de luz jorra com a sua risada. “Você gostou daquilo, não foi?” — Na verdade, não. Silêncio. Eu espero. Então Annaliese reflete um pouco. “Acho que a corda seria um bom jeito de levar Monica.” Eu agarro a cerca. — Você não vai pegá-la. — Nenhuma resposta. — Ouviu? Você não vai tirar a minha mãe de mim! Sua risada sádica ressoa como um sino. “Eu não quero a sua mãe. É você que eu quero. Se eu levar VOCÊ, eu pego Monica. Do mesmo jeito que peguei Millie com Tasha e Joey com Dino. E quase peguei Luke também, no dia dos cavalos.” — Outro suspiro cintilante. — “Que coisa feia você se intrometer daquele jeito. Luke nunca ia superar! Nem você, aposto. Comprimidos. Uma lâmina. Qualquer coisa que tivesse à mão, aposto.” — Eu nunca faria isso com a minha mãe. “Você já tentou antes.” — Aquilo foi diferente. “Diferente por quê?” Meu braço dói tanto que está me deixando mal-humorada. Não, ela está me deixando malhumorada. Estou farta de ouvi-la falar. Suavemente sedutora, Annaliese continua. “Por que você não faz isso agora mesmo? Você ainda está com a lâmina de barbear aí, não está? No seu bolso?” Ela me dirige um sorrisinho fantasmagórico quando eu tento esconder minha surpresa. “Ah, pelo amor de Deus. Você é patética de tão transparente que é.”
Eu mudo a tática. — Olha, por que você não morre de verdade e vai se encontrar com a sua avó? “Não consigo chegar até ela”, ela responde, amuada. — Ah, sério? Será que é porque ela sabe a vaca calculista que você é? Será que é porque ela não quer nem ouvir falar de você agora? Minhas palavras tocam seu ponto fraco. Enfurecida, Annaliese treme; o chão vibra e eu o imagino se abrindo sob os meus pés. Sua forma humana empalidece e por fim desaparece num vórtice de um branco ofuscante. Eu começo a gritar “ESPERA!”, mas paro quando a radiância se transforma numa forma diferente, que eu reconheço antes que ela pare totalmente. Uma mulher idosa, com longos cabelos grisalhos presos num coque. Óculos de leitura pendem de uma correntinha. Ela está usando uma camisola xadrez e um robe de chenile — as mesmas roupas que Nana usava na noite do incêndio. Ela flutua sem pressa pelo ladrilho. O que ainda resta da névoa forma um rastro no chão atrás dela, depois se alonga e se solidifica até formar pés humanos perfeitos. Eu sei que não é Nana. Mas como ela pode parecer tão real? Real o suficiente para que eu sinta o aroma do seu sabonete favorito. Real o suficiente para que eu note o botão que falta no robe. Real o suficiente para que eu sinta seu carinho quando sorri para mim com a luz de mil estrelas. Mas você não é real. VOCÊ NÃO É REAL! “Ela me disse que você fez de propósito, Corinne.” Nana inclina a cabeça na direção do abismo negro que é a piscina, como se indicasse Annaliese espreitando. “Eu não acredito nela. ‘Minha neta’, eu disse, ‘nunca faria aquilo. Ela nunca trancaria a porta, atearia fogo na casa e nunca me deixaria sozinha, para morrer’.” Lágrimas deslizam até o meu queixo e crepitam na névoa inexistente. “Você assistiu tudo a distância?”, ela pergunta. Muda, eu a fito com os olhos arregalados. “Você chamou os bombeiros?” Eu sei que não é Nana porque a voz não é a dela; eu ouço o tom cruel de Annaliese se esgueirando insidiosamente até a superfície. Ainda assim, balanço a cabeça em negação. “Você ouviu meus gritos?” Você não chegou a gritar. Você morreu porque inalou fumaça. Você não sentiu nada. A minha mãe jurou! A menos que ela tenha mentido para mim. A menos que quisesse me fazer pensar que Nana
morreu pacificamente, sem gritar de agonia enquanto as chamas a consumiam viva. Ela está mexendo com a sua cabeça. Ela fez isso com a sua mãe e agora está fazendo com Nana. Nana se aproxima, segurando as mãos daquele jeito de que eu me lembro. Sua aliança de casamento frouxa no dedo ossudo. Veias azuis e saltadas. As unhas pretas como se ela andasse cuidando do jardim... do jardim do Céu. Eu fico olhando fixo para aquelas mãos, lutando com as palavras. — Não foi culpa minha. Ela para. — Não foi culpa minha — eu repito. — NÃO FOI CULPA MINHA! Algo peculiar muda a atmosfera. Meu cabelo se agita com uma brisa imperceptível e o chão sacode com mais força sob os meus pés. Os pelos do meu braço se arrepiam outra vez, com uma eletricidade que não pode existir nesse vácuo. Nana ergue as palmas, com os dedos abertos. “Sinto a sua falta, Rinnie.” É a voz dela dessa vez, não a de Annaliese. E ela me chamou de Rinnie, não Corinne. Só Nana me chama de Rinnie. O vapor espirala à nossa volta, estalando com fúria. Antes que eu possa reagir, Nana sai rapidamente da névoa para me afastar do rodamoinho sinistro. Ela me abraça forte e, não, não é um truque — Eu reconheço esse abraço! Eu soluço alto, abraçada aos contornos familiares do seu corpo. Até seu cabelo é o mesmo, farto e macio contra a minha bochecha. — Eu sinto sua falta também — eu sussurro, ignorando a névoa espiralada, as faíscas incandescentes. Eu estou emocionada demais para ficar apavorada e Annaliese não faz nenhuma tentativa para se aproximar. — Eu amo tanto você! E lamento muito, lamento mesmo... “Não há por que se lamentar.” Nana acaricia o meu cabelo. “E você sabe que eu te amo também.” Atrás dela, a coluna de vapor rodopia para cima. Flashes intermitentes das feições de Annaliese se misturam com o “O” negro que se forma na névoa e se transforma enfim numa boca medonha. “Você não pertence a este lugar!, ela grita. “Vá embora! VÁ EMBORA!” As paredes estremecem com força vulcânica. As janelinhas explodem, arremessando estilhaços de vidro no ar como adagas cristalinas. Pedaços de reboco caem do teto, seguidos de torrentes do que eu imagino que seja gelo. Sinto com um certo alheamento algum tipo de dor, mas estou muito segura, muito confortável nos braços de Nana para me importar. Ela acaricia as minhas costas. “Não tenha medo. Acabou. Você tem força agora, Rinnie.” — O que você disse...?
Outro estrondo ensurdecedor me interrompe. Eu me agarro a Nana quando Annaliese, cheia de fúria, tremula em direção ao teto como um tornado luminescente. Chovem faíscas que queimam como gelo seco — e então a sucção começa a me arrastar para trás novamente. Eu só assisto, impotente, quando meus dedos deslizam através dos de Nana cada vez mais... e mais... até eu não ter alternativa senão soltá-los. Desviando de Annaliese, sem medo da sua figura imponente, eu me jogo para a frente. Membros luminescentes agarram minhas mãos com uma força monstruosa. Eu me encolho, chocada por conseguir tocá-la, sentindo uma mistura de gelo, fogo e carne. Com toda a energia que ainda me resta, eu a arrasto na minha direção, puxando ainda mais... e mais...! Quando o vapor me consome, a boca negra e hedionda de Annaliese se abre ainda mais, de terror dessa vez. Meu puxão, ela sabe, é muito mais poderoso do que o dela. Ela se contorce sob os meus arquejos ferozes como se eu estivesse exalando puro fogo. — Me deixa em paz! — eu grito. O meu hálito espirala para dentro e em volta daqueles olhos vazios e sobrenaturais. — Volte para o lugar de onde veio e me deixe em paz! Os dedos dos meus pés se afastam do chão quando Annaliese guincha de cólera. Por um instante eu não consigo pensar, não consigo me mover e tudo o que eu vejo é branco. Meus próprios gritos ecoam os dela quando eu percebo que nos fundimos numa única forma, que eu fui pega no torvelinho de gelo. Me sentindo sem peso, luto para pôr os pés no chão e observo o cogumelo de luzes coloridas que sobe de debaixo de nós e consome a névoa giratória e malévola que é Annaliese. Em câmera excruciantemente lenta, Annaliese se encolhe, absorvendo as cores. Sua forma escurece até passar daquele branco infinitamente doloroso para amarelo e depois para âmbar, fragmentando-se em fagulhas sem brilho. Seus olhos horrendos tremulam até se tornarem apenas pontinhos, enquanto sua boca negra se alarga numa caverna monstruosa, ficando cada vez maior... e maior... até devorar o que resta dela.
Primeiro, escuridão e silêncio. Em seguida, uma explosão de abalar a terra. — Nana! — eu grito. Então estou caindo de novo.
Sábado, 20 de dezembro (sem contar mais os dias)
Eles tiveram que me tirar de debaixo dos entulhos. Deitada numa mesa, à luz de uma lâmpada brilhante, eu ouço palavras como “hipotermia” e fratura no punho direito. Então, termos mais familiares — delirante, psicose — pronunciados num tom cético e dissimulado. Minha mãe e Frank andam para lá e para cá. Meu braço está em brasa. Eu não consigo parar de balbuciar. — Rinn — diz a minha mãe —, por favor, se acalme e deixe a medicação fazer efeito. — Ah, Jesus — exclama Frank —, que ela supere isso. Então Nana diz com firmeza: “Quieta, agora, Rinnie. Você QUER que eles pensem que você é louca?” Então eu me calo.
Segunda, 22 de dezembro
Os exames de sangue mostram que os níveis de drogas no meu sangue são “terapêuticos”, o que prova às autoridades que eu estava tomando os meus remédios. Uma psicose temporária, o médico disse, provocada por um choque. O telhado da piscina, sobrecarregado por toneladas de gelo e neve, desabou com um vento brutal de mais de cem quilômetros por hora. Na viagem de volta para River Hills, minha mãe não acende um cigarro nenhuma vez. O cinzeiro parece tão limpo quanto no dia em que Frank trouxe o carro da concessionária. Eu fungo discretamente. — Você parou de fumar outra vez? — Sim. E coloque o cinto de segurança — minha mãe acrescenta, de mau humor. — Eu não quero que minha última lembrança de você seja a sua cabeça atravessando o para-brisa. Eu obedeço. — Frank ainda está aqui? — Não, tomou o avião esta manhã. Nós dissemos a você que ele estava partindo. Eu sei. Mas eu esperava que o meu braço engessado e o turbante de gaze na minha cabeça o convencessem a ficar por aqui até o Natal. — Você acha... você acha que vocês podem voltar a ficar juntos? Minha mãe suspira. — Eu não sei. Acho que eu gosto de ficar sozinha. Não posso prometer nada. — Minha decepção diminui um pouco quando ela acrescenta: — Ele quer que você fique com ele no próximo verão. Embora eu ainda não ache uma boa ideia. Eu enrijeço no assento. — Por quê? — Porque eu sentiria a sua falta, Rinn. — Ela tira uma mão do volante e a estende até a minha, a que não está engessada. — Ah, querida. Quando não conseguimos achar você, depois da queda da energia, eu fiquei transtornada! Então, quando aquele teto desabou e não sabíamos onde você estava... — Ela aperta os meus dedos. — Eu nunca vou deixar você sair de vista novamente! Por algum motivo, eu não acho que ela esteja brincando. Por um instante, eu observo o cenário pela janela, alheia à dor no braço. Tudo bem, eu sei que Nana me avisou para não mencionar mais Annaliese. Mas, como sempre, eu não consigo ficar quieta. — Eu rasguei as fotos — disse por impulso. — Que fotos?
— As fotos da Millie. As fotos que nunca existiram. Depois que Millie contou à minha mãe o que aconteceu, ela contou sobre as fotos? Por alguma razão doentia, ela as guardara durante todos aqueles anos? Provavelmente. Ela já tinha admitido o pior. A mão dela aperta o volante. Ela continua olhando para a frente. — Eu sei o que aconteceu com Annaliese — digo, baixinho. — Só não me pergunte como eu sei. Minha mãe responde em voz baixa também. — Obrigada, Rinn.
Eu descubro que a parede do meu quarto foi consertada e repintada. Nate fez isso, minha mãe conta, durante o final de semana. Meu quarto está limpo. Meu violão está são e salvo. Estou tão feliz que sejam férias de inverno! Meu braço dói. Eu ia tomar um analgésico, mas ele podia me derrubar, e de jeito nenhum eu quero ser pega desprevenida esta noite. Com o fone do iPod nos ouvidos, eu fico olhando para a Viga da Forca enquanto David Gilmour canta que “não há como escapar daqui”. Que “quando você entra, é para sempre”. Eu acho que estou segura. Eu acho que Annaliese se foi. É engraçado como eu me sinto grata. Grata por ela ter me trazido Nana de volta por um minuto, mesmo que tenha tentado me enganar a princípio. Eu estou feliz por ter visto Nana. Por tocá-la. Por poder dizer a ela pela última vez quanto eu a amo. Então, obrigada, Annaliese. Embora você seja perversa, calculista e homicida... Eu dou um pulo quando Nate se joga no colchão ao meu lado. — Sua mãe disse que eu podia te fazer companhia. Eu tiro os fones do ouvido. — Quer dizer que ela concluiu que você não representa uma ameaça para mim? — Depende do que você chama de “ameaça”. — Ele analisa meu rosto. — Pobre Rinn. Parece até que um telhado caiu na sua cabeça... Eu pisco o olho com o qual consigo enxergar. — Muito engraçadinho. — Posso assinar? — ele pergunta, esfregando meu gesso, pensativo. — Pode, mas só se escrever algo bem meloso. Nate remexe na minha escrivaninha até encontrar um marcador vermelho. Com toda a intenção de ser exagerado, ele desenha um grande coração vermelho e escreve dentro: “Sare logo! Amo você. Nate”.
Eu tiro o marcador da mão dele e atiro-o longe. — Bem, muito obrigada, caipira. — Ah, não gostou? — Ele se esgueira para debaixo das cobertas. — Mas o prazer foi meu, surfista. Ele cutuca o meu pescoço com o nariz e o enche de beijinhos só de gozação. Eu o beijo também, mas não de gozação dessa vez. Eu sinto o seu calor e o seu peso e quanto ele me ama. — Ei, caso tenha se esquecido — digo a ele. — Eu também te amo.
Ele se esgueira novamente para cima das cobertas antes que a minha mãe tenha a ideia de vir nos espiar. Eu passo o dedo suavemente pela mensagem que ele escreveu no gesso. É engraçado como, apesar do meu braço dolorido, do olho preto, dos pontos que levei na cabeça e dos meus nervos em frangalhos, eu me sinto absolutamente maravilhosa. No andar de baixo, minha mãe começa a tocar o Concerto para Piano No 1 de Chopin. As notas flutuam até o meu quarto, todas elas perfeitas e apaixonantes. Sim, a minha mãe voltou. A minha vida inteira está de volta. Agora que estou pensando nisso, percebo que devo desculpas a Annaliese. Aquilo que eu disse a ela sobre a avó não estar esperando por ela foi simplesmente cruel. — Desculpe — eu digo para o vazio. — Eu retiro o que disse. Realmente espero que você encontre a sua avó. Nenhuma resposta. Não que eu esperasse alguma. A Rainha dos Anéis de Cebola Fritos deixou a cidade. Não sei os detalhes, mas dizem as más línguas que, agora que Tasha morreu e com o marido Bob na estrada, Millie decidiu fechar o restaurante e fazer uma longa viagem. Pelo bem da minha mãe e pelo meu, espero que ela não volte. — Lamento que tenham machucado você — continuo. — E que a minha mãe tenha te magoado também. Mas se você a conhecesse agora, veria quanto ela está diferente. Ela mudou. Acho que você fez isso com ela. Acho que ela se sentiu muito mal quando você morreu, por ter te tratado daquele jeito. Onde quer que você esteja, espero que possa me ouvir. Eu me aconchego embaixo das cobertas e tento dormir.
Eu acho que o cheiro me acordou. Não o cheiro de cloro, ou lavanda, ou qualquer coisa esquisita
dessa vez. O cheiro de tinta da caneta marcador. — Ah, droga. — Eu me levanto com dificuldade, segurando o marcador destampado. Minha mão esquerda está borrada de tinta vermelha e há marcas de digitais vermelhas no meu edredom. Por que eu não pedi para Nate colocar isso na escrivaninha depois de escrever a sua pequena declaração de amor? Eu localizo a tampa da caneta no chão e estendo o braço para pegá-la. É nesse momento que eu reparo no gesso. Sim, o coração torto engraçadinho de Nate está ali. Mas, ao virar um pouco mais o braço, eu consigo ler outra coisa. Está numa caligrafia perfeita, escrita numa única linha, e a letra não é a minha. Eu sou destra. Meu corpo congela, como se envolvido numa mortalha de gelo. Eu deixo o marcador de lado e esfrego os dedos. A tinta, ainda fresca, se espalha com o meu toque, enquanto eu fito as letras em vermelho-sangue no gesso:
Não acredito em você.
Uma nota de Jeannine Garsee Atormentada é uma história que passei anos planejando escrever, e por uma razão muito boa: do jardim de infância até a quarta série do segundo grau, frequentei uma escola pública de Cleveland semelhante à de River Hills. As carteiras de madeira eram realmente aparafusadas no chão e os professores escreviam com giz no quadro-negro, não com marcadores. E, sim, eu juro: havia mesmo um túnel mal-assombrado. Como Rinn e seus amigos, não tínhamos permissão para cortar caminho pelo ginásio, então tínhamos que pegar um túnel longo e estreito que ia de uma extremidade do edifício a outra. A parede do túnel, de um lado, era feita de tijolo ou pedra, o outro lado era uma cerca de metal com vista para um buraco traiçoeiro. No meu primeiro dia lá, aos 5 anos, uma colega de classe me contou a história: enquanto os operários estavam escavando o buraco para construir uma piscina, de alguma forma (os detalhes são vagos), uma menina morreu ao cair da borda. Por essa razão a piscina nunca foi concluída e o buraco permaneceu intacto por anos. Fingindo terror, nós às vezes saíamos correndo pelo túnel gritando com as mãos erguidas, esperando que o fantasma da vítima desconhecida não se erguesse dos mortos e, bem, fizesse o que os fantasmas fazem quando assustam crianças. No entanto, havia outras vezes em que eu preferia atravessar o túnel sozinha. Fascinada pela história, sem medo nenhum, eu passeava por ali sem pressa, olhando através dos elos para uma sombra, um movimento, um punhado de vapor... qualquer coisa que me assegurasse de que a garota fantasmagórica existia. Sim, mesmo aos 5 anos, a escritora dentro de mim queria ver a menina que morrera tragicamente ali e passara a chamar aquele túnel de lar. Quando minha família se mudou e eu comecei o quinto ano numa outra escola, muito mais nova e menos sombria, no subúrbio, muitas vezes pensei naquele túnel mal-assombrado. E prometi a mim mesma que, se me tornasse escritora um dia, eu encontraria uma maneira de trazer a garota fantasmagórica de volta à vida. Muitas vezes, ao escrever esta história, fiquei tentada a pegar o telefone, ligar para a escola e perguntar se eles me deixariam retornar para dar uma volta pelo lugar. Eu adoraria passar por aquele túnel depois de tantos anos e ver se conseguia sentir algo de sobrenatural. Mas o receio de que, talvez, o túnel já não existisse, de que eles o tivessem substituído por um centro multimídia ou, possivelmente, um novo ginásio, sempre me impediu de fazer esse telefonema. Eu não queria ver nada brilhante e estéril, repleto de luz e atividade e um tagarelar animado. Nem queria ter de
me perguntar o que teria acontecido com a garota fantasmagórica se um exército de tratores e britadeiras tivesse destruído a sua morada, sinistra e escura. Desde então, já tive outros encontros, muito mais reais, com o paranormal. E, embora essa experiência possa ter sido baseada numa mera lenda inventada por crianças, eu nunca vou me esquecer daquele túnel, ou da menina que pairava, invisível, nas sombras. Este livro é, em parte, para ela, onde quer que esteja agora.
Agradecimentos Eu gostaria de agradecer às seguintes pessoas, porque esta história não teria sido possível sem a ajuda e o apoio delas: Aos meus primeiros leitores — Pamela Reese, Holly Snapp, Sher Hames Torres, June Phyllis Baker, Charlotte Parker, Kathie Carlson, Brian Kell, Judy Walters, Laura McCarthy e Elizabeth Garsee. Aos meus amigos e conspiradores do LiveJournal e AWR. Meus colegas de trabalho em psicologia, que me ensinaram muito nos últimos anos, e os inúmeros pacientes de quem eu cuidei, pois eles me ensinaram ainda mais. À minha família, é claro, que mais uma vez teve de aturar minha viagem interminável através de outra Terra do Faz de Conta. À minha editora brilhante, Caroline Abbey, e todas as outras maravilhosas mentes criativas da Bloomsbury USA Children’s Books. E à minha agente, a infinitamente sábia Tina Wexler, que diz a verdade, mesmo quando eu não quero ouvir: obrigada, como sempre, do fundo do meu coração.
[1] O inverso da palavra murder, “assassino”, usada em vários livros de Stephen King. (N. da T.) [2] Trecho do hino protestante “Amazing Grace”, que a personagem confunde, mais adiante, com versos bíblicos. (N. da T.)
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