Da Floresta ao Pacífico

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DA FLORESTA AO PACÍfico LUANA LILA



DA FLORESTA AO PACÍFICO LUANA LILA


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Curso de Jornalismo Projeto Experimental - Trabalho de Conclusão de Curso Título

Da Floresta ao Pacífico Autor

Luana Lila

Revisão

Julia Polinesio Fotografias Luana Lila Orientação Editorial

Luiz Carlos Ramos Orientação Gráfica

Valdir Mengardo Projeto Gráfico e Diagramação

Mila Santoro FACULDADE DE COMUNICAÇÃO E FILOSOFIA - FLAFICA Rua Monte Alegre, 984 - Perdizes - Fone: 3670-8205 CEP 05014-901 - São Paulo - SP

Dezembro de 2010


Aos meus pais, Célia e Lau, por terem me apoiado todas as vezes em que me vi diante do desafio de encarar o desconhecido. Ao Rodrigo, por me mostrar o jornalismo de cheiros e nuances e me ajudar a organizar o pensamento em palavras. Aos meus amigos e amigas, por, mesmo depois de inúmeras recusas, continuarem reclamando a minha presença. Aos companheiros de estrada, Rafa, Gui, João e Mari, por termos construídos juntos essa viagem e esse livro.



DA FLORESTA AO PACÍFICO ÍNDICE Apresentação Mapa da Interoceânica

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1 A última fronteira No centro da América A estrada sai do papel

11 14 16

2 O percurso da Transoceânica De olho na Ásia

21 24

3 A conexão com o Acre A cidade da floresta

29 30

4 A colonização acreana Rumo ao desconhecido Memória viva

35 36 38

5 A invasão dos paulistas O loteamento da Amazônia A morte anunciada

45 46 48

6 Vida em movimento A bagunça vem do mundo todo Rapaz, tu num é homi não? Gostinho de café Fiscais do asfalto

51 53 54 55 56


7 A Tríplice Fronteira Do rio ao asfalto A chegada dos estrangeiros

57 58 59

8 Assis Brasil Entre o início e o fim

61 63

9 O casamento binacional A fuga O matrimônio A vida na floresta A mudança para a cidade O ventilador

65 66 69 70 72 73

10 Bol-pe-bra. Bolívia, Peru, Brasil A Bolívia termina aqui Uma terra para valentes À espera da civilização

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11 A entrada para o Peru Entre o sonho e a realidade

87 90

12 A floresta se apresenta A sociedade peruana se cala A febre do ouro

95 96 97

13 Perigo, homens trabalhando Da selva para o altiplano Futuro incerto Sob ameaça

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Bibliografia Caderno de Fotos

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APRESENTAÇÃO

Já faz algum tempo que vou para a Amazônia. Parto em busca de pessoas, conhecer outras formas de ser e estar no mundo. Cada personagem desse livro me ajudou a crescer e a entender um pouquinho mais, às vezes menos, dessa loucura que é a vida. A Amazônia de alguma forma representa para mim o infinito. De possibilidades, de conflitos, de existências. O universo e todas as suas complexidades parecem não caber naquela região. Quanto mais se conhece, mais se percebe o quanto ainda há para descobrir e aprender sobre esse lugar tão fascinante. Este livro percorre os caminhos da Estrada do Pacífico, ou Interoceânica, um projeto que visa conectar por vias terrestres o oceano Atlântico ao Pacífico, o Brasil ao Peru, passando pela tríplice fronteira também com a Bolívia. Eu parti em busca de histórias. De Porto Velho a Cusco, foram mais de dez cidades visitadas e numerosas trajetórias de vida que serão alteradas pela passagem do asfalto, algumas para melhor, outras nem tanto. Meu trabalho foi contar um pouco do que ocorre nesse lugar desconhecido e de difícil acesso, que parte do calor da Amazônia mais preservada até a altitude do altiplano andino. Não cheguei a pisar no mar azul do outro lado da América, mas foi uma opção, pois a partir de Cusco a estrada apenas se conecta a trechos que foram construídos em outros momentos e por isso não registram mudanças tão significativas. Quando optei pelo jornalismo como profissão foi em busca de uma via de mão dupla em que o objetivo de uma reportagem é mais essencial do que denunciar, ou informar. Antes disso existe uma troca entre seres humanos: ouvir e em contrapartida oferecer algo. No caso, o bem mais precioso que tenho a oferecer é a atenção à pessoa que se dispõe a suspender a vida para falar sobre sua história, tornando-se uma personagem. 7


Descobri na prática a enorme responsabilidade de compartilhar os momentos alheios. Muitas vezes o interlocutor nunca foi ouvido, nunca falou, ou há muito tempo está calado. E de repente surgimos nós, jornalistas, armados com bloquinhos, e decretamos que aquela pessoa deve falar, contar tudo, e nem queremos saber se ela pode realmente fazer isso. Afinal, são memórias a serem resgatadas, emoções adormecidas que brotam enquanto a mente procura as informações solicitadas pelo jornalista, às vezes exigidas. Seria ingênuo achar que após a entrevista tudo continuará como antes para aquela fonte, alguém que acabou de descobrir que a vida que pensava ser comum interessa aos de lá. Por isso, eu uso meu gravador e meu bloquinho, sim, mas não me armo com eles, pelo contrário, chego de peito aberto e me disponho a trocar, a entender as aflições, a mostrar as minhas se for o caso, a aprender. Certa vez, depois de uma longa conversa, perguntei à dona Áurea, ilustre personagem desse livro, se havia alguma coisa que ela e seu marido gostariam de saber a meu respeito. A surpresa foi tanta que eles não entenderam. É verdade que também não tinham entendido quando bati à porta em busca de suas histórias como seringueiros. Mas dessa vez ficaram sem palavras. A resposta de dona Áurea foi uma só: – Até tem alguma coisa, mas depois que tu sai que a gente lembra de perguntar... Nos primeiros momentos de uma conversa como essa existe certa admiração ou até desconfiança por parte do entrevistado. A gente chega com o respaldo da cidade, de ser letrado, ser jornalista, mas depois de algumas poucas horas de papo a situação se torna completamente inversa. A troca é até injusta, pois somos nós, os forasteiros, que aprendemos com as histórias dos personagens, o jeito de falar, as expressões, a forma como colocam sua vida em palavras. Eu voltei mudada por pessoas como a Tia Vicência, a nordestina que foi para o Acre enfrentar a Amazônia para defender o Brasil como soldada da borracha. Ou o casal, Alonso e Áurea, ex-seringueiros que estão juntos há 66 anos e ainda brigam por causa de um ventilador. 8


Uma noite em Bolpebra, a cidade boliviana da fronteira, de chão de barro, sem banheiro ou energia elétrica, mas orgulhosa de sua suntuosa praça de concreto, também foi suficiente para modificar meu olhar sobre o mundo. Todos eles, e muitos outros, não menos encantadores, estão aqui nesse livro. Mas devo ser honesta e explicar ao leitor que a obra é uma experiência. Uma tentativa de desenvolver a minha própria linguagem e aprender a colocar em frases escritas, diálogos, conversas e percepções. Eu não viajei sozinha. O mineiro Guilherme Marinho Miranda, doutorando em geografia pela Universidade Paris Diderot, foi o responsável por reunir um grupo seleto de interessados na estrada. O planejamento urbano na região da tríplice fronteira é seu tema de estudo e ele propôs a um amigo, cineasta e fotógrafo, a experiência de produzir um filme sobre o percurso. Assim, vieram de Curitiba os entendidos de cinema, João Castelo Branco e Rafael Urban, esse último também jornalista. Mariana Streit foi o toque que faltava. Médica de família, de Porto Alegre, ela acabou descobrindo na viagem um tema de estudo para seu futuro, a saúde na fronteira. A princípio não nos conhecíamos todos, mas acabamos formando um grupo muito especial. Com esse mosaico de individualidades partimos juntos, em busca de um dos muitos brasis espalhados por esse território enorme, cada um levando muito de si e de sua terra natal.

A P R E S E N TA Ç Ã O

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Xapuri Brasiléia Assis Brasil Cobija IÑAPARI Bolpebra

PERU

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BRASIL

cre

MAPA DA INTEROCEÂNICA

rio

RIO BRANCO s

rio

TRECHO 3

LIMA

Abancay

Cusco

O2

Puerto Maldonado Planchón

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URCOS

Macusani

TRECHO 4

TRECHO 1

AZÁNGARO Juliaca

PUERTO SAN JUAN MARCONA

lago Titicaca

Puno

LA PAZ

Arequipa

TRECHO 5 PUERTO MATARANI

Moquegua

PUERTO ILO

CHILE

Estrada Interoceânica Sul BR 317 BR 364 Trecho percorrido pela repórter

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de

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BOLÍVIA

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PORTO VELHO


A ÚLTIMA FRONTEIRA 1935. Uma mulher grávida está deitada sobre uma cama de lençóis amarelos com febre alta, a barriga crescente voltada para cima. A testa exalando gotículas de suor é coberta por um pano úmido sobre a cabeça apoiada no travesseiro. Ao seu lado, um homem enérgico acompanhado de duas crianças pequenas demonstra preocupação. Eles estão em um quarto iluminado apenas por uma lamparina em Santo Antônio do Alto Madeira, um povoado distante de qualquer centro médico e isolado por quilômetros de floresta. A mulher, Eulália Malheiros Tourinho, foi diagnosticada com paludismo, a temida malária, e carrega um filho no ventre, mas não se sabe se ambos irão sobreviver. Após a situação da moça se agravar, seu marido, o baiano Homero de Castro Tourinho, decide levá-la até Cuiabá, no Mato Grosso, onde haverá um hospital para medicá-la e, talvez, curar a doença. Mas percorrer os 1.473 quilômetros que separam as duas cidades seria um desafio até maior do que vencer a enfermidade. Uma viagem de cerca de três meses por estradas enlameadas e atoleiros perigosos, onde a floresta rapidamente cresce sobre o caminho aberto pela mão do homem. Eulália partiu em fevereiro com uma comitiva de dez empregados e um estoque de quinino, o remédio que a ajudaria a se manter viva até chegar ao seu destino. O início do trajeto foi percorrido de trem, três dias da cidade de Porto Velho, a 17 quilômetros de Santo Antonio do Alto Madeira, até Guajará-Mirim. De lá foi necessário pegar um barco por cerca de um mês, para subir o rio Guaporé, e, mais tarde, com carroças puxadas por bois, atravessar uma estrada de terra até a capital do Mato Grosso. Não era qualquer família que poderia empreender tamanha aventura. Para custear toda a infra-estrutura necessária para a alimentação e a 11

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montagem do acampamento à beira da estrada era preciso ter posses. Homero enriqueceu no ramo da borracha e foi convidado a trabalhar na região onde hoje é Rondônia (mas na época dividida entre o Mato Grosso e o Amazonas) como agente fiscal para controlar o comércio do produto. Foi também presidente da Associação dos Seringalistas da região. Já sua mulher era de uma família tradicional de Corumbá, no Mato Grosso (hoje Mato Grosso do Sul), onde o casal se conheceu. Sobrevivendo à base de quinino, que a deixava com a pele amarelada, Eulália conseguiu se curar com o tratamento que recebeu em Cuiabá e quis esticar a viagem até Corumbá para visitar a família. A volta para casa depois desse trajeto seria um pouco menos cansativa, porém não menos longa. De trem, foram de Campo Grande até o Rio de Janeiro. De lá pegaram um navio até Belém, no Pará, outro para Manaus, no Amazonas, e outro para Porto Velho. O filho não pôde esperar o retorno até Santo Antônio do Alto Madeira e acabou nascendo em Campo Grande no dia 29 de maio de 1935, apesar de sempre ter se considerado rondoniense de coração. Esse bebê, e essa família, cresceriam para se tornar uma das mais importantes de Rondônia, nos anos 70 e 80, quando o estado recebia apoio do governo militar para se desenvolver à custa da derrubada da floresta e da exploração das populações pobres que lá viviam. Donos de diversos empreendimentos, entre eles imóveis, empresas e o jornal Alto Madeira, o mais tradicional do estado, a família de doutores e empresários construiu um patrimônio expressivo, e, mais do que isso, conquistou caminho entre os poderosos para conseguir o que acredita ser importante para o estado. Só o Tourinho protagonista dessa história, por exemplo, hoje é sócio de empresas nos ramos de seguros, veículos e imóveis, além de ter sido fundador de diversas associações comerciais no estado. Décadas mais tarde, confortavelmente sentado em uma poltrona na sala de estar do apartamento que ocupa os números 216 e 218 do edifício Alto Madeira, do qual é dono e onde, um andar acima, aloja seu escritório, Luiz Malheiros Tourinho recebe estudantes interessados no 12


tema que é a sua paixão: a Estrada do Pacífico. A aventura precoce pelos caminhos da Amazônia definiu seu futuro e o transformou para sempre em um entusiasta da rodovia que permitirá a conexão terrestre entre o oceano Atlântico e o oceano Pacífico, cortando a Amazônia brasileira passando por Rondônia e pelo Acre, com ramificações que chegarão até os portos de Ilo, Matarani e San Juan de Marcona, no Peru. – Era o preço que pagavam os pioneiros – afirma Tourinho, concluindo a narrativa sobre a peripécia de sua família percorrendo as estradas amazônicas. Bom contador de histórias, ele é capaz de falar por horas sobre a sua e gosta de utilizar a experiência, ainda na barriga da mãe, para explicar aos forasteiros como é a sua região e convencer sobre a necessidade do progresso por meio de estradas. Com o sonho prestes a se tornar realidade, Tourinho se sente lisonjeado por receber a visita dos estudantes interessados no assunto, que inclusive gerou um livro de sua autoria: Brasil: um salto para o Pacífico, lançado pelo Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) de Rondônia em 1994. De aspecto simples, pele enrugada e cabelos brancos penteados para trás, ele está muito à vontade em seu apartamento, onde preparou uma recepção agradável, oferecendo o refrigerante típico do lugar, o guaraná Tuchaua, acompanhado de castanhas deliciosamente frescas, que só se comem na Amazônia. Galanteador como um avô que senta os netos em roda, curiosos e admirados, para ouvir “causos” de um tempo que não se conhecerá mais, o senhor de 75 anos, de fala mansa e bom conversador, não esconde sua vitalidade, evidente nos olhos escuros e espertos que a tudo observam atrás dos óculos de aros largos. Simpático, e com tantos agrados, é fácil conversar com esse homem que também usa de todo o seu carisma para tratar de seus interesses no estado. O lanche na cozinha quente com o calor típico da cidade vai bem até a visão, um pouco perturbadora, de um vaso de plantas antigas e pedras marrom sobre o balcão da copa, que quase deixa esconder uma barata há muito esquecida no local, seca, de barriga para cima, camuflada entre o vidro e a terra. A Ú LT I M A F R O N T E I R A

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Tourinho e suas visitas estão sempre acompanhados por um homem silencioso, pronto a atender os desejos de seu chefe, talvez tutor. Uma figura de seus 30 anos, de aspecto sério, tão calada que mais parece um espectro, encarando os jovens com certa desconfiança, sem nunca olhá-los nos olhos. Parece ser prudente, apesar de difícil, fingir que ele não está ali, sempre incomodamente posicionado atrás das visitas, onde pode ter uma visão que permite a observação de cada gesto ou comentário emitido durante a entrevista que, no entanto, transcorre tranquilamente. No c e n t r o d a A m é r i c a Empresário visionário, de ideias mirabolantes, Tourinho é tão entusiasta do estado em que nasceu que fabricou uma nova versão do mapa-múndi, onde posicionou Rondônia exatamente no centro, no “ponto de convergência e divergência de todo o progresso que pode ser irradiado”, como declara orgulhoso. Ele leva os convidados até o escritório onde a peça pode ser vista pendurada em sua sala, decorada com inúmeros exemplares do animal do qual empresta o nome: uns maiores outros menores, de bronze ou de pedra, os touros estão lá para sutilmente lembrar os visitantes do símbolo de poder dessa família. Sobre o mapa, Tourinho aponta o dedo para indicar o posicionamento de seu estado: – Eu tive a ousadia de inserir, disfarçadamente a América do Sul, consequentemente o Brasil, e consequentemente Rondônia, bem no centrinho – afirma como um garoto travesso. Resultado: partes do Japão e da China ficaram divididas nas extremidades do mapa e algumas regiões, como a Groenlândia, foram reproduzidas pela metade. Tudo para atender aos caprichos do empresário, que conseguiu, no entanto, provar a sua tese e reposicionou Rondônia no centro do mundo. Se na Itália todos os caminhos levam a Roma, como já dizia o antigo ditado sobre a hegemonia da cidade, no Brasil o lugar é outro: 14


Rondônia. É em Porto Velho que as estradas da América do Sul devem convergir, segundo a visão de Tourinho. A viagem de sua família é o retrato de uma região e a consequência disso é a reivindicação por estradas pavimentadas como solução para todos os males do local. É por isso que a Estrada do Pacífico é vista por lá como a porta do futuro para a Amazônia. Trata-se de uma abertura para o Brasil e para o mundo na visão de empresários e políticos locais que acreditam que “o progresso só pode acontecer através da integração dos espaços e mercados, do aproveitamento de nossas potencialidades e pelo estreitamento das relações com os países vizinhos”, como escreveu Tourinho no livro de sua autoria. Sua luta por essa rodovia teve início há mais de 30 anos, acompanhada por outros empresários visionários, todos fartos do isolamento dos estados do Acre e de Rondônia, sempre esquecidos pelo resto do Brasil. É o caso também de Miguel de Souza, engenheiro-civil e ex-presidente da Federação das Indústrias de Rondônia (Fiero), autor do livro A Saída para o Pacífico, de 1993. Ferrenho defensor da estrada, ele é um dos idealizadores da Caravana da Integração Brasil-Peru-Bolívia, que, em 1992, reuniu empresários, técnicos, políticos e jornalistas para percorrer, em 20 dias, o caminho até os portos de Ilo e Matarani, no Pacífico. O objetivo era mostrar a viabilidade da construção que, segundo as aspirações desses setores, tornaria possível a ligação entre o polo produtivo do Centro-Oeste brasileiro e o polo econômico do século XXI, a Ásia. – Rondônia é o grande coração. Olhando no mapa parece no fim do mundo, mas com essa integração se torna o centro. Se o Brasil é a bola da vez, Rondônia é a grande bola da vez desse projeto de agroindústria. Aqui é assim, se tem um casal brigado, um olha pro Atlântico e outro olha pro Pacífico – brinca o engenheiro, companheiro de Tourinho como um dos que se dizem pioneiros na luta pela estrada. O distanciamento da região, que só foi conectada ao Centro-Sul na década de 60, com a construção da BR 364, levou a população local a, sem a atenção do país, virar as costas para o resto do Brasil e mirar longe, A Ú LT I M A F R O N T E I R A

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no oceano Pacífico. A visão agradou e desde que o estado se consolidou como tal, em 1982, – até então era Território Federal de Rondônia – parte dos empresários, cansados de reclamar por atenção, preferem pensar que estão no centro entre os dois oceanos e são, portanto, o caminho natural do progresso. A estrada sai do papel Depois de tantos anos de espera, a rodovia se tornará uma realidade no século XXI como um dos programas da Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-americana (IIRSA), lançada em 2000, em uma reunião de presidentes da América do Sul convocada pelo então mandatário Fernando Henrique Cardoso, em Brasília. A iniciativa visa conectar a infraestrutura de transporte, energia e comunicação nos 12 países sul-americanos. O objetivo é promover o desenvolvimento regional procurando a integração física dos territórios. Na ocasião, os chefes de Estado assumiram o compromisso de criar ações conjuntas para impulsionar o processo de conexão política, social e econômica, incluindo a modernização dos transportes e o desenvolvimento de regiões isoladas. Os mandatários de então já não são os mesmos, mas a iniciativa se concretizou em várias frentes. Dezenas de obras estão programadas para a região amazônica, nos estados do Pará, Amapá, Amazonas, Rondônia e Acre. É assim que a ligação do Atlântico ao Pacífico toma forma cortando a Amazônia Ocidental e atendendo à antiga reivindicação local, uma vez que a conexão entre os oceanos poderia cruzar qualquer região do País, inclusive as áreas mais produtivas, do Centro-Oeste ou do Sul. – Existiam no mínimo cinco roteiros diferentes e a disputa era fabulosamente grande, daí nós termos demonstrado todo nosso poderio – declara Tourinho, contente com o resultado da luta de uma vida. A opção pela Amazônia é uma resposta ao apelo dos empresários regionais, que utilizaram um argumento historicamente muito útil 16


para a exploração da região: a cobiça internacional. Essa também foi uma das justificativas do governo militar para incentivar a colonização da Amazônia, no final dos anos 60, oferecendo terras a preços irrisórios para compradores atraídos por incentivos fiscais e créditos com juros subsidiados. Sob a perspectiva do Estado e do interesse econômico, a região era considerada vazia e despovoada. O slogan que marcou a política de colonização da Amazônia, principalmente a partir da década de 70, era “ocupar para não entregar”. Os milhares de ribeirinhos, seringueiros e povos indígenas que já habitavam o local simplesmente não eram contemplados pelos projetos de governo que, por um lado, buscavam atrair grandes produtores de terra e, por outro, explorar a mão de obra barata dos trabalhadores pobres ou sem-terra, tanto do Nordeste como do Sul, que começavam a reclamar seus direitos, incomodando o governo federal. No Acre e em Rondônia, centenas de seringueiros tiveram as terras em que tradicionalmente viviam usurpadas após estas terem sido vendidas pelos donos dos seringais para os “paulistas”, como eram chamados os compradores do Centro-Sul. A campanha publicitária para a colonização do Acre, por exemplo, utilizava frases como “Um Nordeste sem secas, um Sul sem geadas” e até a inexistente Estrada do Pacífico era invocada para atrair os investidores: “Invista no Acre, exporte pelo Pacífico”, era um dos slogans. Foi dessa forma que, por toda a Amazônia, grandes proprietários de terras e trabalhadores pobres se viram num improvável encontro com ribeirinhos, seringueiros e indígenas, em uma terra que era considerada subutilizada e deveria ser imediatamente desmatada para a produção. O modelo extrativista (extração de látex e castanha, por exemplo) foi substituído pela agropecuária e pela exploração madeireira, marcando uma nova forma de entender as relações sociais e o próprio meio. A participação omissa dos órgãos federais – até 1975 a existência de índios não era reconhecida no Acre – favoreceu os grandes produtores do Centro-Sul, que muitas vezes aproveitaram a falta de fiscalização A Ú LT I M A F R O N T E I R A

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para “esticar” as porções de terras e promover a grilagem. Com o tempo, os conflitos se tornaram sangrentos a partir da expulsão violenta de famílias que se recusavam a deixar as terras em que nasceram e que, em consequência, viam suas casas queimadas e cercadas por pistoleiros. Os novos proprietários reuniam documentação para a aquisição de terras supostamente devolutas em que se declarava a inexistência de índios ou posseiros sem que o órgão competente verificasse a situação. O resultado foi que essas famílias e comunidades passaram a ser consideradas invasoras da terra em que sempre viveram, transformada oficialmente em propriedade privada. Não por acaso, de 1964 a 1986, 53% dos assassinatos no campo foram registrados na Amazônia, e os que não resistiram à expulsão engrossaram as periferias de cidades como Rio Branco e Porto Velho. – A Amazônia era motivo de interesse internacional e qual a melhor forma de ocupá-la de maneira racional, sólida e consciente, do que com a rodovia? – indaga Tourinho, representando a visão dos empresários e políticos. Em suas viagens como Diretor de Comércio Exterior da Confederação Nacional do Comércio, ele passou a defender a tese com o apoio dos pares do Acre, que também viam na estrada uma saída para o isolamento. – As extensões são grandes e nós temos que integrá-las com toda a rapidez para evitar a cobiça internacional, que se manifesta através de diversos setores, do meio-ambiente, da ecologia. Vamos cuidar do que é nosso e a transoceânica é um dos caminhos – declara Tourinho, em um discurso apaixonado, compartilhado por inúmeros setores da sociedade rondoniense que veem o ambientalismo como o grande vilão da Amazônia. Essa oposição entre progresso e preservação, comum na fala dos empresários da região, pode ser resumida em um trecho do livro de Tourinho, em que ele afirma: “O solapamento da ocupação e do desenvolvimento da Amazônia mudou para a forma mais velada de preocupação ecológica que redunda na formação de grupos de pressão 18


ecológicos internos do país, cujas sedes, normalmente, se situam no Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília ou Curitiba”. Nesse contexto, a Estrada do Pacífico é vista pelos setores da elite empresarial como uma oportunidade para a região, que aspira deixar de ser a “última fronteira”. Por outro lado, é também abraçada pelas pequenas populações locais, tanto do Brasil como da Bolívia e do Peru, como uma chance de integração com seus respectivos países. Uma ambição que permite a comunicação com o resto do mundo, o escoamento de produtos e o acesso à saúde e à educação. Porém, analisando a forma como a Amazônia foi apropriada historicamente e considerando-se que este empreendimento também surge a partir dos âmbitos centrais de decisão política, é provável que a estrada não tenha entre seus objetivos prioritários a inclusão dessas pequenas populações, que correm o risco de serem varridas pela passagem da rodovia, por venderem suas terras aos ricos empresários em uma dinâmica que transforma pequenos produtores e extrativistas em trabalhadores assalariados de baixa-renda ou mesmo desempregados.

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O PERCURSO DA TRANSOCEÂNICA

A Rodovia Interoceânica Sul Peru-Brasil consiste na construção e no melhoramento de um total de 2,6 mil quilômetros de estradas, divididos em cinco trechos que conectam a fronteira entre o Acre e o Peru aos portos de Ilo, Matarani e San Juan Marcona, na costa peruana do Pacífico. A conexão com o Atlântico se dá pela rede rodoviária brasileira já existente e pode ocorrer pela BR 317 – que une a fronteira ao Amazonas, na cidade de Boca do Acre – ou pela BR 364, que liga o Acre a Porto Velho, em Rondônia, e posteriormente às outras cidades do Centro-Oeste e do Sudeste. No Peru, a rodovia é chamada de “Carretera Interoceánica Sur”, no Brasil recebe o nome de Estrada do Pacífico. Para quem parte do território nacional, o limite do percurso por terra são os três portos peruanos localizados no Pacífico, mas o limite estratégico são os países asiáticos, para onde se pretende exportar mercadorias. Já o início é um ponto que parece ser mais folclórico do que cartográfico, pois as possibilidades de ligação com o Atlântico são inúmeras e baseadas na rede rodoviária já existente, podendo unir o Peru ao litoral nordestino, ao porto de Santos ou mesmo à Boca do Acre, no Amazonas, que permite a chegada a Manaus navegando pelo rio Purus. Provavelmente, o início da transoceânica será estabelecido com o tempo e dependerá do interesse de quem se locomove ou de onde sairão os principais artigos que serão transportados por ela. O total dos cinco trechos foi estimado em US$ 892 milhões no ano de 2005, quando os trechos foram licitados pelo governo peruano, mas hoje já alcança a cifra de US$ 1,4 bilhão. A maior parte das obras é da responsabilidade de dois consórcios brasileiros, o Conirsa e o Intersur, que iniciaram as atividades a partir de 2006. O governo brasileiro se comprometeu a participar com US$ 420 milhões, via Programa de 21

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Financiamento às Exportações (Proex). A diferença para alcançar o valor total foi financiada pela Corporação Andina de Fomento (CAF) e pelo governo do Peru. O Conirsa, liderado pela Odebrecht e integrado por outras três empreiteiras peruanas, é responsável por dois trechos: de Iñapari a Inambari e de lá até Urcos. Ao todo, são 703 quilômetros, partindo da pequena cidade peruana que apresenta um ritmo de crescimento acelerado, visível pela chegada dos coloridos moto-táxis conhecidos como “Toritos” – que só puderem alcançar essa extremidade do país após o asfaltamento que ligou Iñapari à cidade de Puerto Maldonado. O final desse trecho localiza-se em Urcos, situado no altiplano andino, próximo a Cusco, onde já existe uma rede de rodovias que faz a ligação com o Pacífico. Orçados em US$ 580 milhões, no sistema de parceria público-privada, os trechos serão inaugurados em novembro de 2010. Por sua vez, o consórcio Intersur, formado por Andrade Gutierrez, Queiroz Galvão e Camargo Corrêa será responsável por 306 quilômetros entre a ponte de Inambari e Azángaro, com custo estimado em US$ 215 milhões, com inauguração prevista para março de 2011. É outra parceria público-privada que permite a concessão por 25 anos para a construção, a operação e a manutenção do corredor. Ambos os trechos constituem-se em um verdadeiro desafio de engenharia, pois partem da região amazônica para o litoral, atravessando o altiplano peruano com picos que podem alcançar até quase cinco mil metros de altura. Cortando montanhas e seguindo o curso de rios, quem viaja por esses caminhos é capaz de perceber a surpreendente transformação da paisagem, da floresta para o ambiente árido da região andina. Enquanto o carro percorre a estrada de curvas sinuosas e grandes abismos, o verde exuberante da Amazônia peruana lentamente vai se transformando em uma vegetação cada vez mais rasteira e esparsa. À medida que a subida se intensifica, o frio aumenta e o azul do céu se torna mais forte, em contraposição aos diversos tons de cinza do solo, onde a terra árida é pontilhada por pequenos agrupamentos de lhamas e alpacas, símbolos do Peru. 22


O país pretende oferecer à região Norte do Brasil artigos como cimento, peixe, verduras e legumes, mas a principal expectativa é que a construção acabe com o isolamento do Departamento de Madre de Dios, com a possibilidade de este finalmente se transformar em um grande polo de desenvolvimento para o intercâmbio comercial e turístico. A situação dessa região peruana – que, assim como o Brasil com o Acre e Rondônia, e a Bolívia com o Departamento de Pando – constitui uma extremidade que viveu sempre esquecida pelos centros econômicos e de poder de seu país, é bem explicitada na declaração do ministro das Relações Exteriores do Peru, José Antonio García Belaunde em entrevista à BBC, em 2008: – Há uma função social na Interoceânica, a estrada vai a regiões muito abandonadas, muito pobres. Então, além do significado da integração com o Brasil, tem um significado social, pois conectará partes do Peru com a costa, e por consequência com a modernidade e com a integração ao mundo. Segundo o site do Ministério de Transportes e Comunicações do governo peruano, espera-se a geração de mão de obra local e qualificada a partir da criação de 5.400 postos de trabalho diretos para a construção da estrada na região, que concentra cerca de 120 mil habitantes. No portal, o governo incentiva a migração da população pobre da região andina para a Amazônia, onde eles preveem maiores possibilidades de desenvolvimento. A peruana Elsa Mendoza, coordenadora do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) em Rio Branco, explica, no entanto, que o excesso de migrantes em uma área de floresta pode acabar contribuindo para o desmatamento, principalmente porque a população do altiplano tem outra cultura em relação ao meio, em que a floresta é símbolo da falta de progresso. Segundo ela, as terras em que esses migrantes estavam acostumados a viver não exigiam a derrubada de grandes vegetações e, por isso, quando eles chegam à Amazônia, procuram limpar a área para produzir, gerando o desmatamento.

O PE RC U R S O D A T R A N S O C E Â N I C A

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Se por um lado a rodovia facilita o acesso a condições básicas de vida, como saúde, alimentação e educação, por outro, quando o progresso volta seus olhos para essas localidades, também lança diversas perspectivas de apropriação das riquezas locais. Os resultados são grandes extensões de florestas transformadas em garimpo, desmatamento, prostituição, drogas e violência. Como lembra Elsa, o que acontece na Amazônia brasileira, a partir do asfaltamento do trecho que liga Porto Velho a Rio Branco e Assis Brasil, na fronteira com o Peru, deve servir como um alerta para a Amazônia peruana. No território federal, onde o asfaltamento até a fronteira foi concluído em 2002, a estrada hoje é cortada por extensos pastos de um verde opaco em que as únicas árvores encontradas em pé são as castanheiras, cujo corte é proibido por lei. Fincadas na terra como lápides da floresta que um dia existiu, seus galhos secos e torcidos são símbolos da devastação causada pela pecuária. Por isso, a preocupação é para que não aconteça com o Peru o que ocorreu no Brasil. Principalmente porque, com as leis ambientais muito frouxas, a quase intocada Amazônia peruana corre grandes riscos de vir abaixo e é provável que a região comece a viver os efeitos colaterais de um desenvolvimento planejado exclusivamente de acordo com o interesse de grandes empresários, como aconteceu nos estados amazônicos na década de 70 e depois. De olho na Ásia Para o Acre e Rondônia, ávidos pela estrada para enfim se tornarem centro de progresso, a ascensão da Ásia como potência econômica foi o que precisavam para reforçar a necessidade da ligação com o Pacífico. Mas o que, exatamente, será transportado pelos tortuosos caminhos da estrada é um dos pontos em que os diversos entusiastas da construção não parecem estar de acordo. Depois de tantos anos sonhando, é como se tivessem se esquecido de planejar qual será a melhor utilização para o caminho. Cada setor oferece uma alternativa diferente e muitas vezes eles mesmos se contradizem. 24


É por isso que, enquanto não se torna uma realidade concreta, as possibilidades de exportação pela estrada se parecem mais com meros devaneios e, pelo menos até agora, poucos realmente sabem para quê ela efetivamente será utilizada. O único ponto certo é que servirá para intensificar o intercâmbio entre o Brasil e o mercado andino, mas a própria rodovia parece um deboche sobre toda e qualquer expectativa de comércio: mesmo contando com o asfalto novinho, a estrada não possui acostamento, circunda abismos gigantescos, alcança altitudes extremas e, muitas vezes, serve de passeio para os animais, tornando a viagem noturna muito pouco recomendável. O sempre otimista Tourinho, no entanto, aproveita o assunto da estrada para falar sobre a potência que considera ser Rondônia, desfilando números e estatísticas que mostram diversas possibilidades de utilização da rodovia. O estado tem 11,5 milhões de cabeças de gado, sendo o oitavo rebanho nacional e o quinto maior exportador de carne congelada e desossada do país. Além disso, a safra 2008/2009 consolidou Rondônia como o terceiro maior produtor de cacau e quinto maior produtor de café do país. Na opinião do empresário, todos esses produtos poderiam ser comercializados em direção ao Peru, inclusive a soja produzida no Centro-Oeste. Já Silvio Persivo, consultor econômico da Federação do Comércio do Estado de Rondônia (Fecomércio/RO) e professor de Economia Internacional e Planejamento Estratégico da Universidade Federal de Rondônia (Unir), é muito cético em relação ao potencial exportador do estado que ajudou a construir quando chegou do Ceará, em 1975, para ser coordenador do polo Rondônia, um dos grandes projetos de implantação de desenvolvimento econômico na Amazônia. – Toda vez que começam a falar na possibilidade de Rondônia exportar eu acho graça. Exportar o que? Quando se fala em exportação, em comércio internacional, se fala em produtos e Rondônia não tem ciência e nem tecnologia – reclama ele, que questiona a qualidade dos bens agriculturáveis do estado e apenas acredita em uma eventual exportação de carne.

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Em sua avaliação, a IIRSA apenas perpetua uma visão de mundo que continua isolando Rondônia, sempre organizando a produção em relação aos interesses do Sudeste e não em relação ao Centro-Oeste e ao Norte. – A saída para o Pacífico na realidade não acontece. A produção está no Mato Grosso, em Goiás, como você vai fazer a última alternativa? – indaga ele – Mato Grosso é o maior produtor de soja no país há muito tempo e qual é o maior problema do estado? Transporte. E por que não se faz estrada? Por que não se faz ferrovia? De acordo com Persivo, a real intenção da estrada é a construção de oito usinas hidrelétricas na região, uma na Bolívia, seis no Peru e mais uma em Rondônia, estado que já fervilha com as obras das hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio, no rio Madeira. Como ele, José Marcondes Cerrutti, atual presidente do porto fluvial de Porto Velho e vice-presidente da Federação das Indústrias do Estado de Rondônia (Fiero), também levanta o tema das hidrelétricas e acredita que a expectativa é o aproveitamento da infraestrutura trazida à região para a construção de novas usinas. A grande promessa para a estrada, no entanto, é a exportação da soja brasileira, partindo dos portos do Peru em direção aos países asiáticos. Mas, para Cerrutti, que conhece de perto os mecanismos de comercialização desse produto, a saída pelo Pacífico pode até oferecer uma redução de milhas – de Paranaguá (PR) até a Ásia são 15 mil milhas marítimas, do porto de Ilo, nove mil – mas não há certeza sobre a sua viabilidade, devido ao custo do frete e às dificuldades de atravessar a Cordilheira dos Andes. – O caminhão vai, mas tem que voltar com alguma coisa. Tem um custo de frete indo e voltando. Será que vai ter retorno? Talvez ainda seja mais barato, por exemplo, a saída pelo porto de Paranaguá, mesmo que esteja a mais de 3.200 quilômetros. Mais razoável nas perspectivas, o presidente do porto acredita no alcance do mercado dos países andinos, que seria ativado com a estrada, tanto para importações quanto para exportações do Brasil. 26


– Poderia ter uma movimentação rodoviária muito grande nessa questão. Mandar carne, trazer peixe, por exemplo. Outra possibilidade é a exportação de produtos da Zona Franca de Manaus. Independentemente de quais artigos serão comercializados utilizando a rodovia, o fato é que, para o bem ou para o mal, a estrada representa a abertura de novos caminhos e novas fronteiras. – A partir de agora, se você pegar o mapa, nós estamos no centro, olhando para o Atlântico e o Pacífico. Não estamos mais de costas, estamos de frente para outra realidade – afirma Cerrutti, que parece ter consultado a publicação cartográfica encomendada por Tourinho, para quem o que realmente importa é a concretização de um sonho: – A estrada existe, é real, e você pode pegar uma viatura qualquer no verão e ir daqui tomar banho no Pacífico – afirma ele, com o peito inflado de satisfação.

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A família Saldanha, um casal e três filhos pequenos, realmente foi até o Pacífico tomar banho de mar. Saindo de Porto Velho eles atingiram o trecho brasileiro da Estrada do Pacífico, a BR 317, até a tríplice fronteira entre Brasil, Bolívia e Peru. De lá os viajantes cruzaram a Amazônia peruana e puderam visitar Machu Picchu, em Cusco, de onde seguiram até Arequipa e depois às praias de Camaná. No percurso, além da possibilidade de conhecer outro país, os rondonienses tiveram o primeiro contato com a neve, algo realmente impressionante para quem está acostumado a um calor com temperatura média anual de 26 graus. Foram 15 dias de férias para o pai Sandoval, o caminhoneiro que soube calcular as distâncias para concluir que a viagem sairia muito mais barata. Para alguns, trata-se de um trajeto muito mais interessante, além de mais curto, do que percorrer o caminho oposto, em direção ao Nordeste brasileiro. De Porto Velho a Recife, por exemplo, a distância é de aproximadamente 4.712 quilômetros, enquanto que para Lima é de cerca de 2.200 e para o litoral sul do Peru apenas 1.900. Em maio de 2009, começou a operar a primeira linha de ônibus que sai de Rio Branco para Puerto Maldonado, a capital do Departamento de Madre de Dios, cidade que concentra os turistas estrangeiros que desejam conhecer a selva peruana. A empresa Movil Tours opera com capacidade para 44 passageiros, com partidas diárias às 12h e chegada às 20h. O valor da passagem é de aproximadamente R$ 70,00, interligando a nova rota de turismo internacional. Entretanto, o Pacífico ainda pode ser uma realidade distante, principalmente para aqueles acostumados à viagem entre Porto Velho (RO) e Rio Branco (AC) pela BR 364. Os percalços têm início ainda em território brasileiro. A ligação de 544 quilômetros entre as duas cidades é uma rodovia onde os veículos trafegam na maior parte do tempo 29

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ocupando as duas pistas para fugir dos gigantescos buracos. Além disso, há uma parada em um rio sem ponte. A travessia do rio Abunã, no km 937, depende exclusivamente de balsas, apenas duas, que operam das cinco horas da manhã até a meia noite. São caminhões carregados de mercadorias, ônibus lotados de turistas, moradores da região em trânsito, todos esperando em média duas horas para conseguir atravessar o rio. E tudo depende da sorte. Se o veículo chega à margem quando a balsa está saindo, ótimo, mas se essa acabou de sair, o processo com certeza será mais demorado. Em épocas de seca a situação se agrava devido à formação de bancos de areia, provocando longas filas. No final de agosto de 2010, a espera chegava a quatro horas e a fila se estendia por quatro quilômetros. Por mais que o sonho da saída para o Pacífico esteja se tornando concreto, a realidade se manifesta e o caminho se complica logo no início. A construção de uma ponte nessa região é imprescindível, mas uma promessa tão velha que ninguém acredita. O motorista da empresa Real Norte, Cean Ferreira Pinheiro, de 34 anos, que faz esse trajeto há mais de quatro anos, três vezes por semana, acha que nunca verá uma ponte erguida sobre o rio: – Quem sabe os netos dos meus netos um dia possam passar por aqui sem ter que pegar a balsa – declara resignado. Enquanto isso, o Acre ainda entrevê muito de perto o fantasma do isolamento, pois qualquer impedimento nessa travessia o deixa sem receber mantimentos e combustível do resto do Brasil – mais um exemplo de como para o estado é interessante uma ligação consolidada com o Peru. A c i d a d e d a f l o re s t a Depois de quase 10 horas de ônibus chega-se a Rio Branco, capital do Acre. O estado de aproximadamente 690 mil habitantes que compõe o extremo Oeste do Brasil é pouco conhecido pelo resto do país e talvez por isso mesmo seja tão peculiar. Situado na região Norte, ocupa uma área de 164 mil quilômetros quadrados, correspondente a 1,92% do 30


território nacional, e tem como limite o Amazonas ao Norte, Rondônia a Leste, a Bolívia a Sudeste e o Peru ao Sul e Oeste. Os índios dominaram a região até o início do século XIX, quando aventureiros europeus se arriscavam pelo interior da Amazônia em busca de riquezas como ouro e prata. O que encontraram, no entanto, foi bem diferente: uma árvore chamada Hevea brasiliensis, a mais valiosa espécie de seringueira, de cujo tronco rasgado por faca escorre um líquido branco capaz de produzir borracha da melhor qualidade. Conforme os rumores se espalhavam, o local passou a receber cada vez mais exploradores e os índios começaram a ser pressionados em seu espaço. Muitas aldeias foram destruídas e seus habitantes brutalmente assassinados ou transformados em escravos. Tudo valia em uma terra localizada no interior do continente, tão distante de qualquer centro político que as leis simplesmente se perdiam a caminho do local. Na medida em que o preço da borracha no mercado internacional aumentava, a região se tornava cada vez mais atrativa. Foram muitos os pioneiros que chegavam e cercavam a terra com o tamanho que desejassem, tornando-as imensos seringais. Para enriquecer, bastava arregimentar mão de obra para trabalhar na extração do látex – o que não foi difícil em um país com tantas pessoas vivendo na absoluta miséria – e vender o produto para a Europa. A partir de 1877, sucessivas secas assolaram a região Nordeste ocasionando o êxodo em massa das multidões de famintos, que, por sua vez, eram levadas para trabalhar na Amazônia. Aos poucos, o território antes pertencente à Bolívia e ao Peru foi sendo ocupado por brasileiros. Entre janeiro e junho de 1878, 35 mil cearenses deixaram seu estado de origem rumo à Amazônia. Em 1900, seguiram para o Acre outros 15.773 migrantes. A descrição de Euclides da Cunha no livro À Margem da História representa bem o contexto em que as migrações ocorreram: “Quando as grandes secas... flamejavam sobre os sertões adustos, e as cidades do litoral enchiam-se em poucas semanas de uma população adventícia de famintos assombrosos, devorados das febres e das bexigas – a preocupação exclusiva dos poderes públicos consistia no libertá-las A CONEXÃO COM O ACRE

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quanto antes daquelas invasões de bárbaros moribundos que infestavam o Brasil. Abarrotavam-se, às carreiras, os vapores, com aqueles fardos agitantes consignados à morte. Mandavam-nos para a Amazônia – vastíssima, despovoada, quase ignota – o que equivalia a expatriá-los dentro da própria pátria. A multidão martirizada, perdidos todos os direitos, rotos os laços de família, que se fracionava no tumulto dos embarques acelerados, partia para aquelas bandas levando uma carta de prego para o desconhecido; e ia, com os seus famintos, os seus febrentos e os seus variolosos, em condições de malignar e corromper as localidades mais salubres do mundo. Mas feita a tarefa expurgatória, não se curava mais dela. Cessava a intervenção governamental. Nunca, até aos nossos dias, a acompanhou um só agente oficial, ou um médico. Os banidos levavam a missão dolorosíssima e única de desaparecerem”. (Ed. Martins Fontes, 1999). Com a área se tornando cada vez mais produtiva, os bolivianos passaram a ter interesse em ocupá-la, mas foi então que perceberam a expressiva presença brasileira e procuraram fortalecer as bases do Estado no local, um pouco tardiamente. O governo da Bolívia enviou uma missão de ocupação, instituiu a cobrança de impostos sobre a extração da borracha e fundou um posto alfandegário, em 1899, o que desagradou os seringalistas. Esses reuniram seus trabalhadores nordestinos para lutar contra os bolivianos, organizando uma revolta armada dos colonos brasileiros com o apoio do governo do Amazonas. Em 1899, o espanhol Luis Gálvez, então contratado para liderar o movimento, expulsou os bolivianos e proclamou a República do Acre. O governo federal, no entanto, reconhecia a Bolívia como dona do território e enviou tropas para dissolver a República, o que ocorreu em março do ano seguinte. Mas, em 1901, a Bolívia assinou um acordo de arrendamento do Acre para o Bolivian Syndicate, um grupo de ingleses e norte-americanos que queriam ter controle direto sobre a produção da borracha. Isso implicaria a perda de grande parte dos lucros dos seringalistas que, sob a liderança do gaúcho José Plácido de Castro e com o sangue dos seringueiros, iniciaram a Revolução Acreana. Dessa vez, o governo 32


federal percebeu que poderia perder toda a riqueza produzida na região e apoiou a revolta, que acabou com a conquista de toda a região. Em 1903, foi assinado o Tratado de Petrópolis, acordo estabelecido entre o então ministro do Exterior, o Barão do Rio Branco, e o presidente boliviano na época, José Manuel Pando. No documento, a Bolívia abria mão do território do Acre em troca da quantia de dois milhões de libras esterlinas e da construção da ferrovia Madeira-Mamoré, que, ligando os rios à qual empresta o nome, permitiria o escoamento da produção regional da Bolívia. Em abril de 1904, o Acre foi oficialmente incorporado ao Brasil como Território Federal e mais tarde elevado à condição de estado, em 15 de junho de 1962. Hoje, a Floresta Amazônica, que cobre (ou cobria) todo o território, é a responsável por grande parte da atividade econômica do Acre, a partir da extração de madeira, borracha e castanha. Mas a pecuária se tornou uma das atividades mais produtivas, após a venda dos seringais aos investidores do Sul e Sudeste que transformaram grande parte da Amazônia em imensas pastagens, expulsando índios, ribeirinhos e seringueiros para as cidades. Ainda assim, o Acre é um dos estados menos devastados. Segundo cálculo do Instituto de Pesquisa Ambiental (Ipam), ele conta com aproximadamente 12% do território desmatado, o equivalente a 1,2% de todo o desmatamento da região Norte.

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A COLONIZAÇÃO ACREANA

Com uma história singular de migrações e lutas, o Acre pode realmente surpreender aos brasileiros acostumados com a brincadeira de que o estado não existe, de tão isolado que é. Tal assertiva não exatamente corresponde à realidade do local. A trajetória de seus personagens contemporâneos mais famosos, como Chico Mendes e Marina Silva, contribuiu para produzir um compromisso com os povos da floresta e a valorização de sua cultura. Apesar de também apresentar problemas frequentes na Amazônia, como o desmatamento, a disputa de terras e a formação de imensas periferias nas principais cidades, há de algum modo no Acre certa consciência quanto à preservação da floresta e o bem estar das populações que dependem dela para sobreviver. No estado, o PT surgiu a partir da luta dos Sindicatos dos Trabalhadores Rurais, que reivindicavam os direitos dos seringueiros frente ao assédio dos pecuaristas. A tradição do partido – que há 12 anos governa o estado e deverá se estender pelos próximos quatro com a vitória de Tião Viana no primeiro turno das eleições de 2010 – baseia suas ações em uma publicidade que associa as políticas de governo ao imaginário da floresta. Marketing à parte, existem realmente alguns projetos que tornam o isolamento da região mais ameno e valorizam a luta dos seringueiros. Um exemplo é o programa Floresta Digital, lançado no início de 2010. Ele visa a construção de uma rede de comunicação em banda larga com acesso gratuito à internet em todas as regiões do Acre, inclusive na área rural. Na praça que abriga a Biblioteca Pública de Rio Branco, os bancos ficam constantemente ocupados por pessoas que utilizam seus notebooks para acessar a internet. Lá a rede wi-fi é livre e está por toda parte. A Biblioteca da Floresta, inaugurada em 2007, é uma forma de reconhecimento dos povos amazônicos. Trata-se da primeira biblioteca 35

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do país especializada em assuntos ambientais. O objetivo é a valorização da cultura dos povos da floresta e o diálogo entre esses conhecimentos e o saber científico. Além de incentivar pesquisas e projetos, ela guarda materiais e arquivos de uma história que vai se perdendo à medida que o Brasil se torna cada vez mais urbano. Também registra os conflitos e lutas que contam com a atuação de muitos personagens anônimos, às vezes mais importantes para o povo da região do que aqueles que, como Chico e Marina, ganharam projeção internacional. São os representantes dos milhares de trabalhadores que passaram a vida a caminhar entre as estradas de seringas, sangrando as árvores que cediam seu leite para o sustento das numerosas famílias, separadas por um mar de selva, isoladas entre madeiras nobres e animais ferozes. Uma realidade que era imposta a essa marcha de trabalhadores pobres que partiam do Nordeste para povoar uma região inóspita e desconhecida. Rumo ao desconhecido O primeiro ciclo de migrações à região de Rondônia e Acre chegou ao fim quando os ingleses, os principais interessados na exploração da borracha, conseguiram reproduzir as mudas de seringas roubadas do Brasil em suas colônias na Ásia. Por terem plantado as árvores de forma ordenada, a produtividade desses locais era muito superior à nacional, onde cada seringueiro deveria andar por vários metros até encontrar novos troncos para cortar. Para se ter uma ideia dessa diferença, a maior safra de borracha no Brasil ocorreu em 1912, quando houve a produção de 43 mil toneladas. Apenas oito anos mais tarde, a Ásia alcançou a marca de 300 mil toneladas. Com o declínio da produção, entre 1920 e 1940, 13 mil pessoas deixaram o Acre de volta aos seus lugares de origem. Os que permaneceram, abandonados à própria sorte no meio da floresta, começaram a cultivar seus roçados e viver de caça, pesca e extrativismo. Até então os seringueiros eram proibidos de produzir qualquer alimento, pois todos os bens de consumo deveriam ser comprados exclusivamente no barracão (loja) dos seringais, uma forma de estabelecer a eterna 36


dependência dos trabalhadores por meio de dívidas, constituindo um regime de semi-escravidão. Mas, com a queda da economia da borracha, os seringalistas se retiraram para as cidades e deixaram os seringueiros isolados na floresta. Os que não conseguiram se adaptar ao meio acabaram morrendo sem assistência médica e acesso à alimentação. Anos se passaram e, na década de 40, uma nova guinada traria de volta ao Acre o interesse pelas velhas seringueiras. Durante a Segunda Guerra Mundial, os japoneses ocuparam as áreas produtoras de borracha na Ásia e impediram que o material chegasse à Europa e aos Estados Unidos justamente quando eles mais precisavam do material para a fabricação de artefatos de guerra. Em 1942, o então presidente Getúlio Vargas assinou um tratado com os norte-americanos para a produção e comercialização da borracha, o que acabou sendo a grande contribuição do Brasil ao confronto. Os chamados Acordos de Washington previam que o país produziria a borracha até o final da guerra em troca de US$ 2 milhões (cerca de US$ 25 milhões, ou R$ 44 milhões, a preços de hoje). Em busca de mão de obra, o governo brasileiro incentivou trabalhadores pobres do Nordeste a deixarem suas cidades para servir à pátria nos seringais, agora como soldados da borracha. Ao contrário do primeiro momento, eles seriam transladados pelo próprio governo, que criou uma campanha para a arregimentação dos nordestinos. Ao término do confronto mundial, deveriam ser levados de volta aos seus estados de origem, mas tal acordo não foi honrado. Os trabalhadores simplesmente ficaram esquecidos no meio da selva, cumprindo a mesma sina de seus pares, os nordestinos pioneiros que chegaram à região no primeiro ciclo da borracha.

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Me m ó r i a v i v a “Eu vou pra guerra Maria, amor não fique triste não, eu volto, Maria, eu volto, volto para pedir a tua mão. Maria, deixe a porta aberta, espere que a vitória é certa” Quem entoa esses versos é Vicência, a cearense dona Vicência Bezerra da Costa, de 81 anos, que em palavras canta um povo inteiro: os soldados da borracha que deixaram sua terra natal para uma aventura sofrida e ingrata chamada Amazônia. Hoje proprietária de um conhecido restaurante de Xapuri, cidade natal de Chico Mendes, por onde passa a Estrada do Pacífico depois de Rio Branco, a velha senhora vive entre imensas panelas de caldos borbulhantes e tempero antigo, cujo gosto lembra o tempo dos seringais. É noite de quinta-feira e o restaurante está com quase todas as mesas ocupadas, mas isso não incomoda Vicência, há muito acostumada a cozinhar para um batalhão de famintos seringueiros nas festas que animavam os trabalhadores. Na varanda mal iluminada é difícil separar a gordura da carne endurecida ou mesmo escolher o melhor pedaço disposto na bandeja. A refeição não varia daquela sempre encontrada na região: salada, carne ou frango, arroz, feijão grosso, farinha e macarrão sem molho e bem cozido. Nesse dia, a comida acaba ficando em segundo plano assim que a melancólica senhora aparece para receber a equipe, após ter percebido ‘gente estranha’ à mesa. Armada com uma sequência de perguntas incisivas, Vicência quer saber quem são seus interlocutores. Quando vê gente com o perfil de quem veio do Sudeste, o povo da Amazônia já sabe: ou é pesquisador, ou jornalista. No caso, ela quer se certificar de que seus clientes não são jornalistas, pois diz estar cansada dessa história de ficar contando a vida para todo mundo que aparece. É que dona Vicência já conhece a fama 38


por meio de algumas matérias locais realizadas sobre sua história e da participação no documentário Mais borracha para a vitória, de 2004. Por isso, ela se afasta rapidamente da mesa ao descobrir a presença de pelo menos um “indivíduo suspeito” no local: esta repórter. Para conversar com Vicência é melhor mesmo marcar outro dia, pois o relógio está próximo das dez horas e a energia da velha senhora está perto do fim. Mas antes de se recolher, a figura de pele escura, magra como uma varetinha, e de cara amarrada se aproxima novamente da mesa. Na verdade, ela gosta mesmo é de contar a vida e aquela birra com os jornalistas não passou de um dengo de uma mulher charmosa como ela só, em seu vestido longo que abraça o corpo com folga, deixando aparecer a pele morena e enrugada no colo e nos braços compridos. – A melhor coisa do mundo é o mundo. O mundo é o mestre, o mundo ensina – declara ela em tom quase profético. São sábios os velhos senhores da floresta, de aspecto simples, cansados, e às vezes tímidos, ou desconfiados, que só fazem falar verdades e ensinar sobre a vida. Observando Tia Vicência, assim é chamado o seu restaurante, é possível perceber que os cabelos ralos e embranquecidos, firmemente domados em um coque atrás da cabeça, contribuem para tornar suas expressões ainda mais vivas. Faz tempo que ela chegou ao Acre. Veio com a família, aos 15 anos de idade, todos conduzidos pelo Serviço Especial de Mobilização de Trabalhadores para a Amazônia (Semta), que na época arregimentou a maioria dos nordestinos enviados à Amazônia. Foi a primeira vez que andou de navio e passou muito medo porque sabia que era possível que eles afundassem, sobrecarregados de trabalhadores dispostos a lutar pelo Brasil na fabricação de borracha, um produto que iria alimentar uma guerra ainda mais abstrata e distante do que a brusca mudança de vida que lhes era imposta: do Nordeste seco e arenoso, onde o sol é impiedoso e o céu sempre visível, para o clima úmido e escuro das profundezas da floresta. Os primeiros dias em sua nova realidade foram os mais difíceis, acuada em um casebre sem o menor sinal de outros seres humanos que não fossem os membros de sua família, tão assustados quanto a A COLONIZAÇÃO ACREANA

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pequena jovem. Vicência fala sobre essa experiência no documentário Mais borracha para a vitória: – Quando foi de noite era bicho cantando pra todo lado, a mata alta ao redor da casa. Meu Deus, nós chorava, chorava. Eu pergunto, meu pai, por que você trouxe nós pruma mata dessas meu pai! E ele responde: ‘Minha filha eu trouxe oceis pruma terra que tudo que nós planta aqui nós vamo ter progresso’ – conta ela. Infelizmente, não era bem essa a realidade dos nordestinos seringueiros, que foram ludibriados pelas campanhas publicitárias do governo de Getúlio Vargas achando que além de servir ao país teriam uma chance de enriquecer. As relações de produção, baseadas no endividamento, os tornavam escravos com aparente liberdade. Assim que chegavam, cobravam-lhes por todo o material de trabalho que recebiam e já começavam a nova vida devendo para os patrões. Teoricamente, ninguém os impedia de ir embora, mas na prática isso era impossível, principalmente com os altos preços cobrados pelos mantimentos fornecidos nas sedes dos seringais em contraste ao baixo preço pago pela borracha. Isolados em suas colocações, local onde ficava a casa do seringueiro e o defumador utilizado para a fabricação do produto, os seringueiros receberam um destino de muito sofrimento. A rotina consistia em levantar cedo na madrugada, por volta das três da manhã, para caminhar entre as estradas de seringa, cortando cada uma das árvores que lhes cabia, por um trajeto extenso, de inúmeros quilômetros, com a barriga forrada apenas de café e farinha. Uma estrada dessas poderia conter até 250 árvores espalhadas pela floresta. Durante a tarde eles voltavam a percorrer o mesmo caminho para recolher o látex que ficava retido nas tigelas presas aos troncos das seringueiras. Quando chegavam de volta à colocação, no início da noite, ainda deveriam defumar o látex para produzir a borracha. Dos 53 mil nordestinos enviados à Amazônia entre 1942 e 1945, 20 mil morreram vítimas de epidemias, doenças tropicais ou encontros com animais da floresta, como onças e cobras. Isso sem mencionar as mulheres que faleceram durante o parto, isoladas em sua dor, ou as crianças que morreram ainda sem poder desfrutar do mundo, por 40


doenças que poderiam ser simplesmente tratadas se houvesse acesso à saúde. Dona Vicência passou 34 anos trabalhando no seringal São Francisco de Iracema, teve cinco filhos por lá e, se não fosse pelo restaurante, viveria a velhice com uma pensão estabelecida na Constituição de 1988 que determina o valor de dois salários mínimos, sem décimo terceiro. Os soldados da borracha reivindicam a equiparação de sua pensão ao valor pago aos ex-combatentes militares na Itália: dez salários mais o benefício das férias. Dos 20 mil pracinhas enviados ao exterior, apenas 454 faleceram. Em relação à participação brasileira na guerra, enfrentar um exército parece ter sido uma batalha bem menos perigosa do que a dos seringueiros em luta pela sobrevivência na Amazônia. Como explica Vicência, seus conterrâneos tinham duas opções: ou combater nos campos de batalha ou aceitar o desafio de viver no Norte. Grande parte escolheu o que parecia mais seguro, e se arrependeu. Ela ainda teve a sorte de chegar ao Acre com a família, pois a maioria dos que partiam eram obrigados a deixar seus entes queridos em casa. Apenas mais tarde, quando as brigas por falta de mulher se tornaram um grave problema nos seringais, os patrões flexibilizaram as regras e permitiram a chegada de esposas e filhos. Na história desses heróicos nordestinos, foram poucos os que realmente conseguiram voltar para casa ao término da guerra. Muitos se despediram de suas famílias como se fossem ficar fora por apenas alguns anos, deixando mães e até noivas esperando um retorno que jamais se efetivaria. No início, quando ainda não houve uma queda brusca na demanda pela produção, os donos dos seringais se valiam das dívidas desses trabalhadores para mantê-los à força em suas terras, ou, em muitos casos, nem avisavam aos trabalhadores isolados que o conflito tinha chegado ao fim. No futuro, a borracha se tornaria pouco lucrativa e os seringalistas não teriam mais interesse em sua comercialização. Mais uma vez mudaramse para as cidades e abandonaram os seringueiros à sua própria sorte. Esses, que dependiam completamente dos mantimentos vendidos nos barracões, ficaram esquecidos nas profundezas das florestas. Com o A COLONIZAÇÃO ACREANA

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passar dos anos, aqueles que não partiram para tentar a vida nas cidades ou retornar ao Nordeste construíram suas casas próximas à margem dos rios, diminuindo o isolamento. Lá se adaptaram, se desenvolveram, estabeleceram seus roçados e viveram em paz até a venda de grandes lotes da Amazônia aos proprietários do Sul e do Sudeste. Vicência tem convicção de que o Brasil ganhou a guerra, apesar de não saber explicar contra quem, com quem ou dar qualquer outra informação. Ela sabe é do que viveu e isso não lhe deixa dúvidas quanto ao destino da nação: – Como que não ia ganhar a guerra com a borracha toda que a gente estava fazendo? A gente veio lá do sertão do Ceará, esse sofrimento todo, e não ia ganhar? O Brasil ganhou a guerra e foi com a nossa borracha – sentencia ela, até um pouco indignada frente à pergunta tão óbvia. Para a ex-seringueira, o momento de deixar a terra natal ficaria marcado para sempre. Ela revela a sua trajetória de modo confuso, sempre muito alegre, interpelando seus interlocutores e representando em gestos e canções a vida de milhares de nordestinos. Em vários momentos abandona a mesa de repente, como se o assunto tivesse acabado, para voltar minutos depois e continuar a prosa. Deixa os forasteiros viverem a suspensão do momento em que parte, sentir falta da sua figura curvada e conversadora, para depois os presentear com mais detalhes de sua história e novas músicas que gosta de cantar. Numa ocasião ela se afasta bruscamente e se desloca até a mesa ao lado para buscar um guardanapo. Com cuidado, junta as pontas do papel branco e começa a acenar com a mão lá no alto: – Tudinho parece que combinaram pra botar o lenço na mão, pra rodar assim – explica Vicência representando o momento em que deixou a cidade de Alto Santo, onde nasceu. Erguendo os braços e balançando todo o corpo, é possível até vêla, no alto de um imenso navio, com as saudades brotando ainda na despedida. Com a voz rouca e embargada ela canta os versos da partida: 42


“Adeus terra da infância querida, Adeus terra onde eu me criei Adeus pai, adeus mãe adeus tudo Eu não sei quando aqui voltarei” Vicência já foi muito afinada um dia, e é prazeroso ouvi-la cantar ainda hoje, mesmo que a voz esteja cada vez mais rouca e falhe abruptamente, anunciando a fragilidade física da velhice. A cabocla que conheceu dois mundos completamente distintos revela em cada gesto, ruga e expressão, a história e o sentimento de milhares de brasileiros. Conformada, como normalmente são os que não podem esperar muito da vida, ela aceita o destino que lhe foi reservado sem bronca, mas sempre fiel à sua origem. – Eu não me arrependo de ter vindo morar pra cá, mas só que aqui não é minha terra né – afirma com eterna saudade.

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A INVASÃO DOS PAULISTAS 5 Próximo a Xapuri é a vida de outro seringueiro que conta o resto da história do Acre, depois da chegada dos chamados “paulistas”, os produtores do Sul e Sudeste que compraram os grandes seringais da Amazônia para transformar em pastagens. Quando o governo militar passou a incentivar a ocupação da região, os seringalistas venderam suas terras sem se importar com a presença de centenas de posseiros – os seringueiros de outra época que foram esquecidos após o término da Segunda Guerra Mundial e agora viviam da pesca, caça, pequenas roças e também do extrativismo do látex e da castanha. Em Brasiléia, a 220 km de Rio Branco pela BR 317, cidade de 18 mil habitantes localizada na fronteira com Cobija, a capital do Departamento de Pando, na Bolívia, há certa desconfiança sobre a figura do mais famoso defensor da floresta amazônica, Chico Mendes. Seu trabalho não é negado, mas o que o Brasil não sabe é que ele foi pupilo de outro combatente, que, assim como Chico, também foi assassinado, oito anos antes. Seu nome é Wilson de Souza Pinheiro, considerado pelos seringueiros da região o verdadeiro líder da luta pela terra e pela preservação da floresta no Acre. Aos 62 anos, o ex-seringueiro Francisco Alves Pereira é responsável por cuidar do memorial localizado na sede do Sindicato dos Trabalhadores Rurais em homenagem a Wilson Pinheiro, que também registra a história da região. Seu Chicão, como é conhecido, tem autoridade para falar sobre o assunto, pois ele mesmo foi um dos membros do Sindicato fundado em 1975 para combater a ação dos fazendeiros. Ele é autor de mais de 46 canções inspiradas na vida sofrida do seringueiro: – Era o trabalho mais escravizado, das duas da manhã ate às dez e meia da noite. A gente saía para trabalhar bem cedo, andava a floresta toda cortando seringa e à tarde tinha que voltar tudo para recolher o látex. Chegava em casa no fim da tarde, comia comida fria e ainda tinha que defumar a borracha. 45


Mas saber ler e escrever, como é o caso de seu Chicão, não era comum. Nascido em 1948, no seringal Quixadá, a 29 quilômetros de Brasiléia, ele cresceu no interior da floresta cortando seringa com a família de 14 irmãos. Só aprendeu a ler porque o pai contratou um professor para ensinar aos filhos no próprio seringal. E o sistema era de revezamento, enquanto uns estudavam, outros trabalhavam e no dia seguinte se alternavam. Sempre que vai ao memorial, seu Chicão revive um pouco da luta de seus companheiros. Ele conhece todos os que ilustram as fotos do primeiro empate, realizado no seringal Carmem, em 1976, e fala com saudades de Pinheiro, mostrando o lugar em que ele foi assassinado com três tiros disparados pelas costas. A sala onde o líder sindical assistia à morte de um personagem da novela Água Viva quando foi atingido, no dia 21 de julho de 1980, é hoje um dos ambientes do museu. O loteamento da Amazônia Em 1966, o então presidente Castelo Branco criou alguns órgãos gestores para o novo projeto de ocupação econômica da Amazônia, entre eles o Banco da Amazônia (Basa) e a Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam). O objetivo era oferecer incentivos fiscais para os investidores do Sul e Sudeste. Mas foi só a partir do início da década de 70 que os “empresários” começaram a chegar, após vencer as dificuldades de acesso das estradas de terra que se tornavam intransitáveis no inverno, a época de chuvas na região. O Acre foi então tomado por fazendeiros que compravam as terras dos seringalistas endividados e não se importavam com o destino dos posseiros que lá viviam. Foi assim que começaram os conflitos, com a expulsão de índios, ribeirinhos e seringueiros pelos novos proprietários legitimadas por órgãos como o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e o Ministério da Agricultura, que alegavam que os “paulistas” tinham pago um preço justo pela terra e foram enganados por não saberem da existência de posseiros nos lotes adquiridos. 46


Os trabalhadores começaram a ficar desesperados ao receber a notícia de que estavam invadindo suas terras e seriam obrigados a se retirar do local em que passaram a vida. Sem acesso a educação, eles sequer conheciam seus direitos e baixaram a cabeça rumo a um destino de pobreza extrema e desemprego na periferia de Rio Branco. Os que resistiam eram pressionados por pistoleiros, tinham suas casas queimadas e perdiam tudo o que tinham. – O patrão do seringal dizia que o problema era para ser resolvido com o fazendeiro e o fazendeiro dizia: “eu comprei, a terra é minha” – explica seu Chicão, mostrando a origem dos conflitos. A única alternativa além de ir para a cidade seria trabalhar como peão, destruindo a floresta que lhes dava sustento, uma possibilidade que nem era considerada pelos seringueiros mais conscientes. Para ajudar a luta dos trabalhadores, a Igreja – representada pela figura de Dom Moacyr Grechi, o bispo da Prelazia do Acre e Purus que era partidário da Teologia da Libertação – criou as Comunidades Eclesiais de Base com a missão de conscientizar os posseiros sobre seus direitos e formar líderes que pudessem repassar a mensagem para suas comunidades. A Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) também apoiou essa luta e incentivou a formação de Sindicatos dos Trabalhadores Rurais para unir o povo da região. Começando a se organizar, eles fundaram o Sindicato de Brasiléia no dia 2 de dezembro de 1975, com a ascensão de Wilson Pinheiro como o grande líder. Também participaram da fundação do Partido dos Trabalhadores, uma tradição que continua viva para os ex-seringueiros. Seu Chicão, por exemplo, tem orgulho de ter 108 netos e bisnetos, todos petistas, como faz questão de afirmar. Com mutirões começaram os empates para impedir a derrubada da mata, condição imperativa para a defesa dos seringueiros, índios e ribeirinhos, que têm na floresta em pé o seu meio de vida. Vinham todos os trabalhadores da região de influência da BR 317, hoje a Estrada do Pacífico, caminhando até o lugar onde os peões estavam prontos para iniciar o desmate. Surgiam de repente, centenas de homens, mulheres e crianças, todos de mãos dadas para formar uma corrente humana A I N VA S Ã O D O S P A U L I S TA S

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que cercava a área prestes a ser devastada. Do outro lado estavam trabalhadores pobres, armados com facões e motosserras, sem saber o que fazer. Por alguns segundos esses grupos se encaravam em silêncio, o ar pesado com a tensão; travavam um embate entre pobres, a serviço dos ricos. À medida que os sindicatos se fortaleciam e se multiplicavam – em poucos anos eram oito deles na região, com 25 mil associados – os fazendeiros passaram a propor indenizações irrisórias aos seringueiros. Muitos acabavam aceitando e contribuindo para a desarticulação do movimento. Enquanto isso, os novos donos da terra procuravam se armar, contratando mais jagunços e comprando armas cada vez mais poderosas, facilmente adquiridas na vizinha Bolívia. A luta era desigual, pois os fazendeiros tinham o apoio do Estado, representado por policiais, advogados, juízes e políticos. Mas com a organização da população em associações, os poderosos não poderiam mais tomar as terras à força e mudaram a estratégia, procurando neutralizar os dirigentes sindicais. Nessa época, Pinheiro, presidente do Sindicato de Brasiléia desde 1977, era o principal alvo. Como conta Chicão: – Até carta com dinheiro dentro chegava pedindo o afastamento do Wilsão por 90 dias, bem na época do desmate. A morte anunciada Em uma reunião promovida em Xapuri, um mês antes do assassinato de Pinheiro, o ex-seringalista Guilherme Lopes sugeriu uma solução para acabar com os empates da região. Na presença de fazendeiros, representantes do Incra e do Banco da Amazônia, o aposentado pegou o microfone da rádio que transmitia o encontro e declarou a plenos pulmões: – Para resolver o problema do Acre é preciso matar o presidente do Sindicato, os padres e o delegado da Contag. A sugestão aparentemente foi bem recebida, pois as autoridades federais reunidas no evento deram respaldo à ação permanecendo em 48


silêncio frente a uma declaração tão grave, mostrando aos fazendeiros que poderiam fazer o que quisessem. O anúncio foi levado aos membros do Sindicato para ser repassado ao presidente como forma de pressão. Corajoso, Pinheiro não se abalou e deu continuidade ao seu trabalho sem jamais se afastar do movimento. Negro, com quase dois metros de altura, magro e de olhar triste, o líder dos seringueiros era um homem de poucas palavras e muita ação. Em 1980 ele comandou o evento que foi chamado de “mutirão contra a jagunçada”, quando cerca de 300 sindicalistas marcharam contra os capatazes tomando seus rifles e entregando as armas ao Exército. Confiante com o feito, Pinheiro declarou na época: “Nós não vamos permitir desmatamentos no Acre”. Dizem que foi essa frase o estopim de seu assassinato. Tinha 49 anos e estava em seu segundo mandato como presidente do Sindicato quando foi atingido pelos disparos fatais na sede da organização. A notícia repercutiu pela floresta tão rápida como as balas que o atingiram. No dia seguinte, uma procissão de seringueiros começou a chegar a Brasiléia, após ter caminhado a noite toda pela Estrada do Pacífico, com barro até os joelhos, para prestar homenagem ao morto. Mais de mil pessoas se despediram do cadáver que estava sendo velado na sede do Sindicato. Muitos prometiam vingança. Nessa terra de bravos, ninguém quis esperar pela ação da Justiça. Na noite de 27 de julho ocorreu um protesto contra a morte de Pinheiro, diante da sede do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Brasiléia, com a presença de mais de quatro mil trabalhadores de todo Acre. Na madrugada do dia seguinte, o capataz Nilo Sergio de Oliveira, principal suspeito de ser o mandante do crime, foi morto na estrada Assis BrasilBrasiléia. – Quando assassinaram o Wilson veio gente pendurada nos caminhões, todo mundo indignado. O Lula tava aqui e falou em comício: ‘tá na hora da onça beber água’. No outro dia apareceu o fazendeiro morto no quilômetro 65 da estrada de Assis Brasil. Depois era só polícia aqui. Quarenta seringueiros foram presos – conta Chicão. Muitos afirmam que o ato público organizado em Brasiléia pelo A I N VA S Ã O D O S P A U L I S TA S

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Partido dos Trabalhadores (PT) com a presença do então presidente regional, Luiz Inácio da Silva, foi a causa do linchamento do suposto mandante do crime. A frase declarada por Lula teria sido uma inspiração no entendimento daqueles homens acostumados à aspereza do dia a dia na floresta. Logo após a morte de Nilo, a polícia finalmente se fez presente em Brasiléia. Não para investigar a morte de Pinheiro, mas sim para fazer prisões em massa e interrogatórios violentos contra os seringueiros. Até hoje, a morte do líder sindical não foi esclarecida e o inquérito policial ficou arquivado no rol dos “crimes insolúveis”. Após a morte de Pinheiro, o Sindicato ficou enfraquecido até a ascensão de um novo líder, Chico Mendes, que havia aprendido muito com seu antecessor. O que incomoda o povo da região é a fama de Chico Mendes ter sido mais expressiva do que a do pioneiro Pinheiro, que estaria esquecido não fosse a memória dos velhos seringueiros. Quando indagado sobre a atuação de Chico Mendes, seu Chicão se retrai, abaixa a cabeça e solta uma risada irônica: – Será que se eu ficar calado não é melhor mesmo? – reflete – Foram oito anos de diferença entre Chico e Wilson. O Chico era discípulo do Wilson e teve a oportunidade de ir pra fora, enquanto o Wilson não teve essa facilidade. Ele sim foi um herói – afirma o ex-seringueiro.

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VIDA EM MOVIMENTO

O comerciante Damião Borges de Melo tem sua história intimamente ligada à Estrada do Pacífico. Não apenas por tê-la percorrido por anos antes de estar asfaltada, mas também porque seu pai foi um dos trabalhadores que ajudou a abrir o caminho pela primeira vez. Por pouco, aliás, ele não herdou o sobrenome completo da família, que selaria definitivamente a relação com a rodovia. Seu pai, João Pacífico de Melo, é um ex-seringueiro que resolveu se mudar para a cidade de Brasiléia para poder colocar os filhos na escola. Acostumado a viver na floresta, seu Pacífico não conhecia os afazeres da cidade e não tinha preparo para se encaixar em nenhum dos empregos que a vida urbana lhe oferecia. Em 1966, o governo municipal anunciou a necessidade de homens para trabalhar na abertura da estrada de 110 quilômetros que ligaria Brasiléia a Assis Brasil e lá se foi o ex-seringueiro para dentro da mata novamente. Dessa vez, no entanto, o trabalho era outro, na companhia de dez homens, entre eles um cozinheiro para se encarregar da marmita, ele era responsável pela abertura de um trecho de dois quilômetros de estrada, com 50 metros de largura. O trabalho era feito com machado e a ajuda de um trator para carregar a madeira. Pacífico costumava ficar um mês inteiro trabalhando dentro da floresta com folga de três dias para voltar para casa. Certa vez, aproveitando esse intervalo, levou Damião, então com sete anos, para passar um dia com ele no ofício. Foi a noite mais mal dormida do garoto. No alto da rede, que era presa entre as árvores a dois ou três metros de altura para impedir o ataque de onças, o menino passou a noite inteira acordado, apavorado com a vulnerabilidade a qual estava submetido. Alto e de aparência saudável, hoje Damião parece ter no mínimo dez anos a menos do que os 51 registrados em seu RG. Ele se tornou uma espécie de caixeiro-viajante, levando encomendas do Brasil para o 51

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Peru em qualquer época do ano, se aventurando pela estrada barrenta mesmo nas estações mais difíceis, como o inverno, quando a chuva cai forte e o barro cobre o joelho. Nesse período, ele transportou de tudo, roupas, remédios, cordões de ouro, mas encontrou sucesso mesmo no comércio de antenas parabólicas. – Eu levava de todos os jeitos, barco, trator, caminhão e às vezes até nas costas – conta ele, que vendia 70 quilos de equipamento por 800 dólares. Damião trabalhou conectando o Brasil ao Peru de 1993 a 2001. No verão, época de seca na Amazônia, fazia de quatro a cinco viagens por mês, mas mesmo quando a estrada estava intransitável ele não deixava de atravessá-la. Muitas vezes percorreu os primeiros 60 quilômetros até a fronteira com o Peru de carro para depois carregar o resto da mercadoria por 40 quilômetros a pé, ou com burro. Conta que era comum enfrentar os morros que constituíam a estrada descendo com o corpo de lado para não escorregar na lama. O feito parece impressionante, mas quem conhece Damião não tem dúvidas de que ele era realmente capaz. Enérgico e muito falador, ele afirma que normalmente perdia dois dias no trajeto de 230 quilômetros entre Iñapari, fronteira com o Brasil, e Puerto Maldonado, percurso que hoje, com a estrada asfaltada, leva pouco mais de duas horas. Fazendo a ligação entre os países, conheceu cada povoado situado às margens da estrada e hoje vê a mudança se instalando nas cidades à medida que o sonho do asfalto se torna cada vez mais concreto. Seu espírito aventureiro é tão forte que trabalhou durante três meses apenas no Peru, no trecho mais complicado do percurso, entre os 510 quilômetros que ligam Puerto Maldonado a Cusco. Mesmo atualmente, com a conexão praticamente consolidada graças à IIRSA, essa é uma das partes mais difíceis da Estrada do Pacífico, pois compreende a subida pela selva e depois pela Cordilheira dos Andes, com terrenos montanhosos e caminhos íngremes e estreitos circundando grandes abismos. Isso sem falar do ar que pesa sobre a cabeça por causa da altitude. – Hoje quando eu passo pela estrada tem momentos em que dá até um arrepio de me ver de moto correndo sobre o asfalto e lembrar 52


o tempo em que eu fazia esse caminho no meio da lama, rodeado pela floresta. De tanto que eu sofri, que meus pais sofreram, eu me emociono de ver o progresso e o desenvolvimento chegando pela estrada asfaltada – conclui Damião. A b a g u n ç a ve m d o m u n d o t o d o O tio de Damião, seu Miguel Pacífico, é um velhinho carismático, sentado em sua varanda muito quieto, balançando na cadeira. Moreno, de bigodes e cabelos brancos, tem sobrancelhas fartas que se curvam sobre os olhos pequenos e estreitos, sempre espertos, observando o movimento da rua. De sorriso maroto, aos 80 anos ele não pode mais mostrar os dentes faltando. Sentindo na pele o sofrimento de ser soldado da borracha, ele nunca deixou os filhos cortarem seringa e assim que pôde enfrentou a cidade para que pudessem aprender a ler e escrever. Cresceram todos para serem professores onde vivem, seja em Brasiléia, na colônia ou no seringal. Seu Pacífico, que hoje tem um cantinho em uma casa ampla e agradável, não sabe explicar bem de onde veio a coragem para abandonar tudo e tentar a vida tão longe, sem se adequar aos empregos que estavam disponíveis na cidade. Declara que foi o destino o responsável pela mudança. – Como foi chegar à Brasiléia, seu Pacífico, depois de só conhecer a vida no seringal? – Eu sou um sujeito que não me espanto de nada, tudo pra mim é normal. Se não deu certo as coisa eu me calo, e se deu, eu me sinto. A bagunça vem do mundo todo. – E sobre a estrada que leva teu nome, o que acha? – Se é pro Pacífico, vamo chegar lá. Ela passa por mim é porque eu sou Pacífico, mas vai em frente. Pegou meu nome, mas é do povo. – Mas o senhor não se surpreende de poder percorrê-la assim toda asfaltada? – Me surpreendo sim. Pra mim, estrada mesmo era só as estrada de seringa.

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Rapaz, tu num é homi não? No caminho de Brasiléia a Assis Brasil, a última cidade brasileira da Estrada do Pacífico, são dois os “Antônios” que conhecem o percurso como ninguém. O primeiro é Antônio Padilha, de 64 anos. Ele ajudou a abrir a estrada que hoje percorre confortavelmente sentado no banco da frente de um táxi coletivo rumo à sua colônia, após ter ido ao banco em Brasiléia. Em 1966, Padilha ficou dois meses dentro da mata, na companhia de outros 15 peões, para derrubar um trecho de floresta que constituiria parte da ligação entre as cidades. O trabalho duro sob o sol escaldante marcou a vida e a memória desse homem pequeno, de óculos grandes e bigodes compridos, mas agora ele não sabe mais dizer qual parte da estrada foi resultado de seu suor: – Eu não sei mais não. Num tem mais colocação [casa dos seringueiros], todo mundo foi embora, tá tudo aberto agora – afirma, referindo-se às fazendas que tomaram conta das margens da estrada depois do asfaltamento, em 2002, desmatando a floresta para o estabelecimento da pecuária. Quando os sofridos colonos finalmente puderam aproveitar a estrada asfaltada para escoar sua produção, o assédio dos grandes fazendeiros acabou pressionando-os a vender suas terras e se estabelecer mais no interior da mata, sofrendo com os mesmos problemas de falta de acesso à saúde e à educação que sempre tiveram e que, segundo os entusiastas da Estrada do Pacífico, seriam resolvidos com o asfaltamento, teoricamente realizado para o benefício do povo. O trabalho de peão era pesado. Tinham que dormir em redes presas no alto das árvores, comer a marmita preparada no meio da mata e carregar todo o equipamento e os objetos pessoais nas costas a cada trecho que era aberto. Mas Padilha estava acostumado. Começou tão cedo a cortar seringa junto ao pai no seringal São Francisco que hoje suas rugas numerosas e profundas nos cantos dos olhos mais se parecem com o corte transversal que os seringueiros cuidadosamente imprimem sobre os troncos das árvores. 54


– Tinha gente que chorava se perguntando: ‘o que eu vim fazer aqui?’ E os outro dizia: ‘rapaz, tu num é homi não? Tá aqui pra trabalhar...’ O cabra morria só se fosse pra morrer mesmo – conta Padilha, com a fala difícil de entender e o sorriso tão banguela que revela a língua entre as gengivas. Gostinho de café O outro Antônio é Moreira de Souza, de 59 anos. Ele tem uma terra de 75 hectares próxima ao quilômetro 69, onde abriu um restaurante chamado Lanche Terra Dourada após o asfaltamento da estrada, no lugar em que antes havia apenas uma pequena venda. Foi no terreno dele que grande parte dos operários que trabalharam na obra de melhoramento da rodovia ficou acampada até a conclusão dos serviços. – Os povo pediram, os político também promete: o nosso Acre todo ele é no pedido – afirma sobre as obras da rodovia. Com o aumento do movimento na estrada, Souza agora pensa em abrir uma pousada para não ficar para trás na corrida pelo desenvolvimento. – O Brasil tá andando e a gente também tá começando a andar. Tamo pensando em seguir, não tamo pensando em parar não. Apesar de estar satisfeito com o asfaltamento, afirmando inclusive que é a melhor coisa que aconteceu para o povo da região, ele está preocupado com o aumento da violência e com o tráfico de drogas. Também reclama que quando a estrada era de barro ele vendia melhor porque a pessoa não tinha alternativa: era comprar ou passar fome. Agora, o percurso entre o seu restaurante e Brasiléia leva apenas 30 minutos, quando no passado a viagem poderia durar até dois dias. – Hoje é que tá muito bom. A gente sai de lá com gostinho de café e chega aqui com o mesmo gostinho na boca.

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Fi s c a i s d o a s f a l t o Mas o que preocupa mesmo os dois Antônios é a qualidade do asfalto. Eles estão achando a estrada fraca em relação ao movimento que tem e mais ainda em relação ao movimento que promete ter. Acostumados ao barro, agora que eles podem usufruir de uma estrada moderna estão é de olho nas rachaduras que já surgem na rodovia, que tem recebido majoritariamente a passagem de carros pequenos. O que será dos grandes caminhões carregados de mercadorias, quando começarem a escoar os produtos brasileiros para o Pacífico?

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A TRÍPLICE FRONTEIRA

A construção da estrada do Pacífico está gerando profundas mudanças nas cidades de Assis Brasil, San Pedro de Bolpebra e Iñapari, municípios que constituem a tríplice fronteira por onde passa a rodovia. São locais que por muito tempo estiveram isolados em relação ao interior de seus respectivos países e por isso acabaram criando fortes laços de comércio e amizade entre si. A estrada, no entanto, surge para re-localizar essas populações, permitindo sua comunicação com os compatriotas e inserindo-as em um novo contexto na medida em que cada Estado se faz presente na região. Tais fenômenos são analisados no livro História e memória das três fronteiras (Ed. Educ, 2009), escrito pelo Grupo Fronteira, composto por pesquisadores de diversas universidades que estudaram o lugar analisando sua trajetória e os desafios que se impõem com a chegada da Interoceânica. A publicação explica que até o início deste século os povos da região viam os poderes centrais de seus países muito distantes, física e simbolicamente, o que acabou criando uma rede de relações locais que se sobrepôs aos âmbitos centrais de decisão política. A situação periférica e o isolamento frente às próprias nações favoreceram a vinculação entre os habitantes a partir da troca de produtos, de conhecimento e do parentesco. Surgiu assim uma fronteira em movimento, bastante permeável. Com a chegada da Estrada do Pacífico, os moradores agora podem se voltar para dentro de seu próprio território, buscando se beneficiar dessa possibilidade e afrouxando a conexão com os vizinhos. Paralelamente a isso, o próprio Estado passa a ser mais efetivo, regulando a fronteira e introduzindo normas que dificultam a relação entre os povos do local. Na visão dos governos centrais, por exemplo, a porosidade da fronteira é um grave problema, pois facilita ações ilícitas, como o narcotráfico, e 57

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se constitui uma ameaça à soberania. Para os habitantes da região, no entanto, essa permeabilidade é parte integrante do cotidiano. Do rio ao asfalto A suntuosa Ponte da Integração, ligação do Brasil ao Peru sobre o rio Acre, foi inaugurada em 2006 com a presença do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o ex-mandatário peruano Alejandro Toledo. Orçada em R$ 25 milhões, ela é uma das grandes contribuições brasileira à Estrada do Pacífico, permitindo a conexão dos dois países. A travessia, até então feita pelo rio em pequenas canoas ou a pé, agora deve ser realizada pela rodovia, alternativa que não favorece os pedestres e sim o serviço de dezenas de táxis e moto-táxis que são obrigados a fazer um desvio para passar pela aduana construída um pouco antes da entrada de Assis Brasil. Ainda de acordo com o livro sobre a região, por muito tempo o rio se constituiu como espaço de comércio, lazer e sociabilidade e os habitantes estiveram acostumados a passar de um país ao outro livremente, sem serem vistos como possíveis contrabandistas. A ponte e a aduana, no entanto, começam a promover a modificação dessas relações, alterando inclusive a ideia de fronteira e criando uma oposição entre o significado da mesma: para o Estado, fronteira é um recurso que garante a segurança e soberania do país, já para a lógica local, é um recurso que garante a manutenção de um espaço de interação cotidiana. Essa questão está presente no dia a dia dessas populações. O Brasil e o Peru, por exemplo, sempre se relacionaram trocando alimentos que são mais baratos em um país ou em outro. No Brasil, é melhor comprar arroz, feijão, azeite e açúcar, enquanto no Peru é mais vantajoso adquirir produtos como hortaliças, verduras e gasolina. A troca entre os países sempre foi realizada pelo rio de forma informal. Com a fiscalização da aduana agora isso pode ser considerado contrabando e um carro que parte de Assis Brasil rumo a Iñapari com algum desses artigos pode ser impedido de passar. 58


Enquanto os moradores devem se adequar a essa nova realidade, comum em qualquer fronteira, a fiscalização quanto a atividades ilícitas é facilmente contornável. Atualmente a aduana fica aberta apenas no horário comercial, então o traficante só precisa se programar para atravessar a ponte de madrugada. Nada mais simples. O aumento do consumo de drogas como maconha e cocaína aumentou significativamente na região. Apesar de não haver ainda um estudo para apontar os números desse crescimento, os moradores já sentem a diferença em seu cotidiano. À medida que os territórios vão se compondo com seus respectivos países e o Estado começa a se tornar mais efetivo, as populações locais promovem tentativas de resistir à imposição dessa nova ordem que altera as relações entre os vizinhos. Um exemplo foi a construção pela prefeitura de Assis Brasil de um caminho alternativo de ligação com Iñapari: uma ponte para pedestres. A ideia era facilitar a comunicação entre os habitantes e promover o turismo na região, tentando de alguma forma manter viva a relação que antes havia entre os dois povos. Mas a Polícia Federal considerou o caminho uma ameaça ao controle estatal e quis desmontar a passagem, o que foi absolutamente contestado pelos locais, que ganharam a briga por enquanto. Com as mudanças acontecendo e o potencial político e econômico do Brasil se apresentando, as relações passam a se estremecer e os brasileiros já começam a ser vistos como imperialistas, apesar das populações em geral, tanto na Bolívia como no Peru, almejarem o status brasileiro, se espelhando em Assis Brasil como uma cidade modelo. A chegada dos estrangeiros A comunicação interna em cada país também incentiva a chegada de migrantes que, muitas vezes, constituem barreiras sociais com os residentes antigos da região. No Brasil isso foi visto nos conflitos entre os migrantes nordestinos e os indígenas que habitavam o local. Posteriormente, os próprios nordestinos acabaram se tornando amazônicos e hoje são chamados de povos da floresta, junto aos A T R Í P L I C E F RO N T E I R A

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povos originários e em contraposição aos fazendeiros “paulistas” que chegaram na década de 70. Na Bolívia e no Peru também ocorre essa re-significação. O imaginário desses países é completamente construído baseado nas populações andinas, enquanto os povos amazônicos mal são considerados. Com a estrada, os andinos chegam para ocupar as terras pouco exploradas – e ainda muito preservadas – trazendo uma nova maneira de entender o mundo e a relação com o meio, e também uma nova maneira de entender a fronteira. Para esses últimos, não existe a vizinhança e sim os estrangeiros. Segundo o livro do Grupo Fronteira, muitos se consideram, por exemplo, os verdadeiros peruanos, em oposição a uma população amazônica que é chamada de “sem identidade”, ou “meio brasileiros”, devido à simbiose de culturas. Para a população do interior do Peru, por exemplo, o Brasil ainda se configura como uma grave ameaça, como demonstra a passagem reproduzida no livro do Grupo Fronteira na qual o ex-presidente do Peru General Juan Velasco Alvarado, que ficou no poder entre 1968 e 1975, se manifesta sobre a Estrada do Pacífico: “Cuidado com o Brasil. Muitas vezes criticaram a minha reação quando me vinham com coisas de ‘integração com o Brasil’. Não percebem que um integra aquilo que desintegra. Sempre afirmei muito claramente que bastava olhar no mapa para dar-se conta onde estavam as maiores porções de terra de nossos territórios perdidos, assim, como fatias. Eu dizia a meus ministros ‘a estrada até a fronteira com o Brasil nem de brincadeira’. Para que nos venham em cima e nos engulam? Eu servi na fronteira e vi a penetração brasileira. Ela existe e não temos como controlá-la”.

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ASSIS BRASIL Assis Brasil foi a primeira das três cidades da fronteira a se conectar com o próprio país. O asfaltamento da BR 317 chegou à cidade em 2002 e contribuiu para o crescimento do setor comercial e de serviços, além do turismo, aumentando sua importância em relação às vizinhas na Bolívia e no Peru. A conexão com o resto do Brasil facilitou o abastecimento de toda a região, mas a continuação da estrada pelo Peru agora preocupa os moradores brasileiros devido ao fraco setor produtivo e à dependência de recursos externos. De acordo com pesquisa do IBGE de 2006, Assis Brasil tinha mais de cinco mil habitantes, número que aumenta a cada dia, à medida que a estrada se consolida em importância. Somente em 1956 a sede do grande seringal Paraguassu foi reconhecida como Vila, após o crescimento do local com a chegada dos primeiros habitantes não indígenas. Porém, a região ficou administrativamente dependente de Brasiléia até o ano de 1976, quando se tornou município. Devido à dificuldade de acesso ao local, durante a década de 80 na cidade não havia telefone, televisão ou água encanada. O abastecimento era feito pelo rio, pois a BR 317, agora batizada de Estrada do Pacífico, funcionava apenas no período da seca, de três a quatro meses ao ano. O ex-prefeito de Assis Brasil Manoel Batista de Araújo, de 42 anos, parece um menino, vestido com camisa polo branca, bermuda jeans e tênis brancos sem meias. Mas quem olha para ele como um garoto com certeza não sabe da sua atuação política na cidade. Com dois mandatos consecutivos pelo PT, de 2000 a 2008, ele foi um dos maiores responsáveis pela organização do município frente às mudanças trazidas pelo asfaltamento da estrada e a conexão rodoviária com o Peru. Depois da pavimentação, a cidade ganhou uma roupagem nova, com ruas de tijolos, reforma das praças, fornecimento de água, telefonia e a instalação de uma agência bancária. – Iñapari e Assis Brasil convivem numa relação muito íntima. 61

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Somos fronteira de paz, mas o pessoal da aduana, da receita, pensa que somos fronteira de guerra, acham que somos bandidos até que se prove o contrário – afirma o ex-prefeito. Essa declaração exemplifica a oposição entre a lógica local e a lógica do Estado em relação à fronteira. Para permitir uma maior flexibilidade entre os habitantes das duas cidades, a aduana foi construída um pouco antes do local exato da divisa, antes até de Assis Brasil, para que a comunicação entre os municípios fosse preservada. Apesar dos esforços, essa tentativa de passagem livre não foi concretizada e para chegar a Assis Brasil de Iñapari é obrigatório esticar o caminho por alguns metros, para permitir a fiscalização realizada pelos agentes da aduana. Existe até um projeto sendo criado em conjunto pelas prefeituras para implantar a carteira de morador fronteiriço e permitir que a relação de amizade entre os habitantes da fronteira seja mantida, mas a ideia deve encontrar forte resistência do governo federal. Araújo conhece bem a região onde nasceu e agora quer preparar o local para receber turistas. Ele teve um destino selado por uma oportunidade que mudaria a sua vida. Nasceu e cresceu em um seringal até que, um ano após a morte de sua mãe, uma tia se ofereceu a levar um de seus sobrinhos para estudar em Rio Branco. A família era composta de 20 irmãos e o garoto, então com oito anos, foi o escolhido para deixar as seringueiras e explorar os livros na capital do estado. Passou sete anos morando em Rio Branco, mas quando voltou a Assis Brasil, se estabeleceu novamente no seringal, onde aprendeu a cortar seringa, como faziam os irmãos, e se tornou professor. Mais tarde, se envolveu com política na área de educação. Concorreu pela primeira vez ao cargo de prefeito em 1992, mas só venceu em 2000, já mais maduro. Araújo fala sobre a diferença entre Assis Brasil e Brasiléia na época em que tomou posse, quando a estrada até a fronteira ainda não era pavimentada. A comparação entre as duas cidades serve para exemplificar as mudanças que o asfaltamento é capaz de causar. Um dos exemplos é a questão da energia elétrica. Na divisa com o Peru, a luz durava até a meia-noite e só a partir de 2000 passou a ser 24 horas. – Doía na gente – conta o ex-prefeito – uma vez teve uma disputa 62


de vôlei entre Assis Brasil e Brasiléia. A gente estava ganhando, a torcida animada, até que alguém do time adversário falou: ‘não se preocupa não que daqui a pouco a luz acaba’. E acabou mesmo, mas foi com a nossa alegria. A torcida murchou. Duas palavras tiraram a moral da gente. No final perdemos. E n t re o i n í c i o e o f i m Atualmente, Assis Brasil já quase se equipara a Brasiléia em termos de infraestrutura. A chegada do progresso é cada vez mais veloz e, apesar de bem vindo, preocupa os moradores, que correm o risco de ficar à margem do desenvolvimento. Uma das estratégias de Araújo é atrair a maior quantidade possível de turistas. Fazer com que os brasileiros que utilizarem a Interoceânica para visitar o Peru parem na cidade para conhecer a Tríplice Fronteira, e com que os estrangeiros que desembarcam em Puerto Maldonado estiquem a viagem para ver também a Amazônia brasileira. Sua ideia é tentar mudar a imagem da região. Em lugar de marco do extremo Oeste, transformá-la na porta da frente do país, “a primeira cara do Brasil”. Mas um dos maiores problemas desse projeto é que a Ponte da Integração foi construída de forma que a cidade brasileira fique fora da rota da rodovia. – A transoceânica será um corredor de exportação. Seria um absurdo passar por dentro da cidade, com uma carreta atrás da outra – justifica o ex-prefeito. No entanto, a exclusão de Assis Brasil, localizada em um vale ao lado do trajeto, implicou a passagem por Iñapari, o que também não era desejo dos peruanos, já que não seria inteligente ter uma estrada da magnitude da Interocênica dentro de uma cidade tão pequena e pacata como é o caso do lugar. Diante do impasse, a importância do Brasil em relação ao Peru falou mais alto e atualmente a rodovia passa em Iñapari, não exatamente pelo centro, mas seguramente acarretando um deslocamento do crescimento do local. Araújo venceu a disputa com os peruanos, mas agora deve ASSIS BRASIL

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lidar com o problema da exclusão de sua cidade. A menos que haja um projeto turístico realmente consolidado, o mais provável é que as pessoas que utilizem a rodovia passem ao lado de Assis Brasil, sem fazer o desvio necessário para descer até a cidade e conhecer o que ela tem a oferecer. Se Iñapari corre o risco de sofrer com acidentes de trânsito e desordem, Assis Brasil corre o risco de ficar apenas como espectadora do prometido desenvolvimento. A aposta do ex-prefeito no investimento em turismo está baseada no estabelecimento de um circuito trinacional. Araújo já pensou até em uma ideia de slogan para atrair os turistas: “Visite três países a pé em três horas e fique em forma, transitando por dentro da floresta”. Parece brincadeira, mas ele fala sério e o caminho inaugurado apenas para pedestres que a PF não aprova, mas que ainda está lá, é essencial para o plano, pois só por ali seria possível cumprir esse percurso por dentro da floresta, conhecendo Bolpebra, Assis Brasil e Iñapari de uma só vez. – Se vai ficar em forma eu não sei, se será em três horas também não, mas que vai trazer turista vai – afirma ele, confiante. Outros possíveis atrativos da cidade são uma pousada ecológica, que até agora não emplacou, e festas como o carnaval fora de época e o Festival de Praia, uma grande folia que ocorre no rio Acre, com muitas bandas e a população da região ocupando as margens de areia para confraternizar. Um evento que acontece há anos e dá resultados, lotando as pousadas da cidade e reunindo brasileiros, peruanos e bolivianos. Se as apostas de Araújo não derem certo, pelo menos o Acre como um todo pode contar com uma novidade que com certeza vai assegurar o crescimento do estado e surge ligada à Estrada. Em julho desse ano foi aprovada a instalação da Zona de Processamento de Exportação (ZPE) do Acre. Criada para priorizar o comércio internacional, ela será implantada na BR 317 próxima a Rio Branco e oferecerá incentivos como a suspensão de impostos e a simplificação de procedimentos administrativos para a exportação e importação. Estudos realizados pela Secretária de Planejamento do estado apontam que a ZPE irá receber, nos próximos dois anos, ao menos 14 empresas que realizarão investimentos de R$ 167 milhões e irão gerar seis mil empregos diretos e indiretos. 64


O CASAMENTO BINACIONAL

Na cidade de Assis Brasil, os ex-seringueiros Alonso Marinho de Castro, de 88 anos, e Áurea Camelo Borges, de 84, estão sentados lado a lado no sofá laranja de sua casa, localizada em um terreno afastado do centro do pequeno município, com os fundos para um riacho de águas contaminadas e o quintal amplo coberto de árvores. A visita inesperada desta repórter, introduzida pela neta do casal, foi aceita com carinho pelos antigos soldados da borracha, acostumados ao tempo que lá passa mais devagar do que nas grandes cidades. – Bom, seu Alonso, o senhor se incomoda se eu gravar a nossa conversa? – indaga esta repórter apoiando o aparelho Panasonic RRUS430 sobre o braço do sofá. O homem não responde, apenas observa demoradamente o pequeno objeto cinza retangular, o modelo mais comum da marca, para depois olhar para a entrevistadora como quem quer dizer, sem colocar em palavras, que não entendeu bem a pergunta e, por isso, não sabe responder. – Isso é um gravador, o senhor conhece? É para gravar a voz da gente. Silêncio. Mais uma vez, Alonso está com a expressão enigmática. – Um gravador é? – pergunta ele tomando o objeto nas mãos enrugadas com um misto de receio e cuidado, como quem tem em seu poder uma peça muito rara. Lentamente, ele afasta e aproxima o aparelho do rosto para conseguir enxergar melhor do que se trata. Quando parece satisfeito com o reconhecimento, chama a atenção da mulher, entretida em uma conversa com a neta: – Olha Áurea, isso aqui é um gravador, vai gravar nós. – Gravador? Mas isso não é um celular não? – pergunta a velha senhora, desconfiada. 65

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– Não é não, dona Áurea, com isso aqui eu vou levar a voz de vocês comigo lá para São Paulo, de onde eu vim, para poder saber o que a gente conversou aqui hoje. Tudo bem? – Tudo bem, minha filha, pode ligar esse negócio aí. A fuga Às oito horas da noite, o seringal São Pedro silencia. No interior das casas de madeira envolvidas pela cobertura de folhas de paxiuba, as crianças bocejam com sono e se preparam para dormir embaladas pela escuridão da selva. Os pais, cansados do dia de trabalho, atiram seus corpos nas redes buscando renovar as forças para o dia que começará cedo, antes mesmo do sol pensar em se levantar. Nessa noite, porém, a jovem Áurea, de 16 anos, está inquieta. Quando percebe que a mãe está prestes a apagar a lamparina, se levanta apressada e pede para ir ao banheiro. – Peraí mãe, eu vou lá embaixo fazer xixi. Nos seringais da floresta amazônica o banheiro fica separado da habitação cerca de 10 metros, em uma casinha construída de madeira sobre um buraco fundo na terra. Áurea desce os degraus disformes de sua casa e, com os pés ágeis, não pensa duas vezes antes de se embrenhar na escuridão completa para nunca mais voltar. Após longos minutos, a mãe ergue os braços que carregam a lamparina, na esperança de conseguir enxergar a filha. Mas não há nada ali. Nervosa, ela grita o nome da moça repetidas vezes, cada vez mais forte, cada vez mais agudo. O barulho dos pés de Áurea, firmes sobre a terra coberta de folhas, correndo cada vez mais rapidamente, não a impede de ouvir a voz desesperada da mãe ecoando pela floresta. Ela aperta os olhos para enxergar na escuridão, protege o coração do apelo materno e segue seu rumo até encontrar um velho compadre que a espera mais adiante. Áurea alcança o homem de meia idade nervosa e ofegante. Esperou até o último minuto antes de tomar a decisão da qual se arrependeria no final da vida. Naquele momento, porém, a garota não tinha como saber 66


disso e, quando viu a mãe prestes a fechar a casa e se deitar, seu instinto rebelde falou mais alto e ela deixou a família sem olhar para trás. Agora, já bem afastada, ao reconhecer o jovem Alonso na escuridão, um rapaz franzino e tímido, que a recebe com um sorriso largo e sincero, ela não tem mais dúvidas, seus olhos brilham, seu coração se aquieta e os três se põem a caminhar pela floresta, contando apenas com a iluminação de uma lanterna. Depois de algumas horas de caminhada, a luz fraca se apaga definitivamente e o grupo prefere esperar o dia clarear para poder seguir viagem até a cidade. Escondidos sob a copa das árvores, Alonso e Áurea aproximam-se discretamente. Ele olha fixamente para frente enquanto estende a mão para alcançar o braço da namorada. Ela não ousa virar o rosto para a direção do pretendente, mas espera ansiosa pelo toque, facilitando como pode a abordagem, oferecendo-se ao impulso do futuro companheiro. Quando as duas mãos se encontram – a dele suada – o coração de ambos bate forte e o movimento acaba chamando a atenção do compadre, cúmplice do casal, mas nem tanto. Irritado, de bigodes compridos e cachimbo entre os lábios, ele ralha com os jovens e levantase apenas para novamente se sentar, dessa vez bem entre os dois. Assim ele permanecerá durante toda a noite, montando guarda para não permitir a aproximação dos namorados. No final da manhã, depois de quase oito horas de caminhada, a comitiva chega à cidade de Assis Brasil e se dirige até a delegacia para consultar o delegado sobre a situação: Áurea e Alonso são vizinhos no seringal São Pedro e estão apaixonados, mas a mãe da menina nutre um ódio inexplicável pelo rapaz e é terminantemente contra o casamento. Por isso, ambos resolvem fugir, fugir para se casar. – Ninguém podia roubar sozinho, se roubasse sozinho eu ia preso – explica Alonso, hoje casado há 66 anos com a esposa roubada. – Ah, então roubar tudo bem, mas não podia ser sozinho, é isso? – É isso mesmo. Se roubasse ela sozinho eu ia preso – repete Alonso, se divertindo com a situação. Já Áurea não vê o caso com tanto bom humor. Para ela, o fato de O CASAMENTO BINACIONAL

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atualmente depender do apoio de um andador para se locomover é uma punição pela irresponsabilidade que fez com a mãe: – Que sem-vergonhice. Se hoje eu to desse jeito, não posso andar, to de muleta, diz que é a traição que fiz à minha mãe. Dona Áurea é uma mulher muito forte, pariu 14 filhos e viu seis deles morrer. Sempre ajudou o marido trabalhando na roça enquanto viviam na floresta, e depois como lavadeira quando o casal se mudou para a cidade. Mas o resultado de tanto esforço foi um problema nos joelhos (cujo nome exato da doença ela não sabe especificar) que a deixou sem força nas pernas. Agora, passa a maior parte do tempo sentada e só consegue caminhar com ajuda ou sempre curvada, apoiando-se nos móveis da casa com as mãos quase alcançando o chão para sustentar o corpo. – O que o senhor gostou nela quando quis casar, seu Alonso? – Nós era vizinho, aí começamo a se gostar um com o outro, o namorozinho foi crescendo, a amizade foi chegando, foi assim – explica Alonso, no que é interrompido pela mulher: – Sabe o que era? Diz que é porque eu era bonita no tempo de moça. – Eu achava ela bonita, eu não sei se ela me achava, mas eu achava ela. – Mas minha mãe não queria, vixe Maria, minha mãe tinha pavor da família dele, era intrigada com a mãe dele. Ela dizia que ele era feio para casar comigo. – E a senhora achava ele feio? – Eu não achava ele feio não, sabe, diz que o amor cega a gente – diz Áurea, provocando a risada contida do marido. Na maior parte da entrevista é Alonso que está prestando atenção, enquanto dona Áurea fica distraída conversando com a neta, ou mesmo sem escutar o que está sendo dito porque já tem os ouvidos gastos. Mas de tempos em tempos ela quer saber qual o assunto e frequentemente contradiz o companheiro, que em reposta apenas sorri. A relação dos dois é assim, dona Áurea um pouco brava e seu Alonso sempre em paz. Ela critica o temperamento difícil da mãe, mas o marido sabe 68


silenciosamente que a esposa puxou o mesmo perfil de sua sogra. As linhas do rosto dessa mulher decidida denunciam seu gênio forte e marcaram em suas bochechas recheadas a expressão de braveza – ainda que ela negue o gênio complicado. O matrimônio Depois da fuga, Áurea ficou hospedada por dez dias na casa do delegado, que, vendo a menina já roubada, se comprometeu a conversar com a mãe para pedir o consentimento. Mas eles tiveram que se casar no Peru, pois não havia na ocasião autoridades que pudessem oficializar a relação no Brasil. Resultado: acabaram se unindo duas vezes, uma em cada país, selando a relação de apoio que ocorre entre as duas nações vizinhas nesse canto esquecido do mundo. – O problema é que não tavam fazendo casamento desse lado de cá. Era só lá em Iñapari, então a gente teve que se casar no Peru. Aí eu depositei ela na casa do delegado enquanto não se arranjava o casamento – explica Alonso. – Mas depois que o delegado falou com a mãe, ela deu consentimento? – Ah não, deu não – afirma ele em tom sério. – Ela falou bem assim: “se vai se casar pode casar pra lá, eu não quero nem saber”. Depois que tive filhos ela só ia em casa quando o Alonso não tava. Falava “eu quero ir lá visitar os menino, mas se o caboclo tiver eu não vou não” – conta Áurea, sentada no sofá com as pernas inchadas e os pés descalças sobre o chão de madeira. Somente após dois anos a mãe da fugitiva acabou aceitando o casamento, por causa da insistência da avó de Áurea. E depois de tanta implicância, ela acabou gostando do genro que a princípio refutava. Mas Áurea ficou triste por não ter o consentimento da mãe no momento do casório e agora que se tornou evangélica junto com o marido realmente acredita que o motivo de ter a saúde tão debilitada foi a traição que considera ter feito à mãe, um castigo de Deus. – Fiquei infeliz porque ela não deixou. Mas eu já tinha fugido, o jeito O CASAMENTO BINACIONAL

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era casar sem ela dar ordem mesmo. Depois foi que a gente casou no Brasil, já tinha dois filhos quando nós casemo aqui, três anos depois. – Nós queria casar no Brasil, no Peru não valia, os documentos eram tudo peruano, nós casemo no Peru só pra não ficar solteiro porque já tinha roubado ela – conclui Alonso. A vida na floresta Finalmente unidos pelo matrimônio, eles foram morar no seringal, onde Alonso acordava às três horas da madrugada para a labuta. Saía a pé, com o material de trabalho em mãos, para caminhar o dia inteiro sangrando as árvores que despejavam o látex nas tigelas presas nos troncos. Por volta das quatro horas da tarde estava de volta para almoçar e percorrer tudo de novo colhendo o líquido branco. Ao chegar em casa novamente, tinha que defumar o látex para produzir a borracha. – A luta era essa do seringueiro, a gente trabalhava muito, era sofrido demais – conta Alonso que, no entanto, sente falta da floresta – Eu gostava muito da mata. Tinha gosto de caçar, mariscar, aqui a gente não faz nada disso. No seringal tinha mais fartura de tudo e na cidade a gente só come carne se comprar. Lá não, a gente matava muito veado, porquinho, inambu, paca, tatu... – E de bicho, seu Alonso, tinha bicho feroz no seringal? – Ih, tinha bicho feroz, tinha onça mesmo, tinha muita gente que tinha medo das onças, eu nunca tive medo não porque só vi uma onça uma vez, aí nunca mais vi. – No ano que nós se casemo uma vez eu vi o rastro da onça quando precisei ir no banheiro. Eu tinha um medo, um medo mais horrível do mundo. De noite o cachorro latia e eu só faltava morrer de medo, a gente via o rastro dela no terreno – conta Áurea. – É, mas acho que elas tinha medo da gente e a gente medo delas. – E cobra, tinha muito no seringal? – Ixi – diz Alonso. – Ave Maria, cobra eu tenho muito medo – completa Áurea – Morreu muita gente de cobra – continua Alonso – Nunca fui 70


picado não, graças a Deus nunca fui, mas muita gente morreu de picada de cobra, e de ferrão de arraia também. No rio tinha muita arraia. Tive sorte nesse ponto. Hoje é difícil andar no mato, só aqui em casa mesmo, a gente anda é mais na rua mesmo. Enquanto seu Alonso trabalhava cortando seringa, sua mulher ficava em casa plantando milho, feijão, pilando arroz e criando galinha. Até a garapa dona Áurea fazia da cana moída para adoçar o café, assim não precisavam comprar açúcar no barracão. Nessa época, alguns patrões já deixavam os seringueiros produzirem alimentos na roça. Mas além de cuidar da plantação, Áurea tinha que tomar conta do batalhão de filhos. – Foram 14, mas se criou oito – conta ela emocionada – Não tinha médico, morria até de febre. Hoje em dia tem “dipirona” essas coisa que baixa febre, mas naquela época não tinha nada. Aqui na rua [cidade] tinha mais, se um menino doente vinha tratar aqui sempre aparecia uns doutor, mas no seringal não tinha nada disso. As dores dessa corajosa mulher são compartilhadas pelo marido. Ao assentir com a cabeça ele concorda com cada frase concluída por ela. Sentado ao lado da esposa, sempre quieto enquanto ela fala, Alonso acompanha as histórias olhando para a repórter como que para confirmar cada acontecimento. Parece até que ele sabe por antecipação quais palavras dona Áurea utilizará para contar sua vida, afinal ele esteve sempre com ela, acompanhando cada momento. – Eu sofri muito minha filha para criar esses menino. Todos os anos era um filho, não tinha coisa para evitar. Depois chega, eu já tava velha, já tinha tido um monte de filho – conta Áurea – Tive até um par de gêmeo, ainda hoje tão aí. A moça só teve uma filha mulher, o resto tudo é homem e o rapaz só teve um filho homem, o resto tudo é mulher. – Ninguém fala que eles são gêmeos, porque ele é moreno e ela é branca, ele é alto e ela baixa – completa Alonso, no que os dois sorriem juntos, se divertindo com o caso.

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A mudança para a cidade – Nós se criamos tudo no seringal. Trabalhando na seringa fiquei 30 anos. Aí eu vim pra cá para botar os menino pra escola porque lá não tinha escola. No seringal não tinha assistência nenhuma, não tinha doutor, não tinha nada, morria quase à míngua as crianças – explica Alonso, há 38 anos morando na cidade. – E como foi a mudança? – Eu estranhei muito, hoje já to mais acostumado, mas estranhei demais. Eu gostava da mata, era fresco, na cidade é muito quente, tem muita gente. Essa área que nós mora é quieto aqui, para acolá não, para acolá é um furdum de gente. O grande motivo que fez Alonso enfrentar a cidade foi ter acesso à saúde e educação. Foi criado pelo padrasto, o dono do seringal São Pedro, depois que o pai, cearense, morreu quando ele tinha apenas dois anos. No entanto, nunca teve a chance de estudar, pois o seringalista não quis saber de colocar o menino na escola e deixou Alonso trabalhando no corte desde muito pequeno. Hoje ele tem vergonha de não conhecer as letras, ao contrário de Áurea, que teve o privilégio de frequentar a escola. – Quando eu era menina, meu pai botou a gente na escola em Assis Brasil. Tinha um barracão encostado. Sei ler e escrever graças a Deus, era das mais adiantadas – diz Áurea. – Eu não aprendi porque só vivia trabalhando. Meu padrasto só me colocou pra trabalhar, nunca colocou pra estudar. Pergunto se ele sabe assinar o nome, mas sua esposa responde primeiro, em solidariedade ao marido. – Sabe nada. Por isso que minha mãe não queria que eu casasse com ele, falava que é analfabeto. – E o senhor sente falta de não saber ler? – Sente, ele sente muito, tem desgosto de não saber ler – completa dona Áurea, mais uma vez interrompendo o esposo. – Eu sinto e muito. Por isso que trouxe os filhos para cá. Pensei: eles têm que aprender. Tem uma filha que é até professora e tem outro que 72


é doutor em São Paulo, tudo sabe escrever – conta Alonso, orgulhoso pela conquista dos filhos. Quando chegaram a Assis Brasil, a cidade ainda era um povoado, com poucos moradores. Alonso começou a trabalhar no roçado em uma colônia enquanto Áurea lavava roupas para um quartel do Exército, que na época estava instalado na cidade. – Eu lavei muita roupa pra fora, para esse quartel do Exército, pras família. Nesse tempo tinha que arranjar brasa boa, se fosse ruim o ferro não esquentava. Eu engomei muito bem engomado, o pessoal gostava da minha roupa, eu raspava o sabonete e colocava dentro pra ficar cheirando. Se tivesse mal engomada o comandante mandava devolver. Não era toda mulher que sabia engomar. Já trabalhei muito e acho que o Alonso não agradece isso – fala dona Áurea, provocando o marido. – Agradeço, se não agradecesse nós não vivia junto tantos anos né – rebate seu Alonso com paciência. – E hoje, coitado, é ele que tá cuidando de mim. – O casal é para agradecer um ao outro, tantos anos vivendo junto... O ve n t i l a d o r Tantos anos vivendo junto e dona Áurea e seu Alonso ainda brigam por pequenos motivos, como se fossem dois jovens adolescentes começando a namorar. Dessa vez, a causa da discórdia é um ventilador que ela usava frequentemente, mas deu para um neto depois que o marido começou a implicar com o objeto. – O ventilador eu dei pro menino porque o Alonso não queria que eu usasse. – Não, eu queria, eu só não gostava muito do vento dele, todo o tempo ali – tenta remediar seu Alonso, caindo na risada, já prevendo a discussão. – Não você não gostava porque gastava energia, diga a verdade. Sou eu quem paga a luz – rebate Áurea com um argumento mentiroso, mas na briga vale tudo para ter razão. O CASAMENTO BINACIONAL

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– Não, quem paga é eu mesmo – conta seu Alonso, preocupado que a repórter esteja ciente do fato. – Ele é o dono da casa, é quem tem os direitos não é mesmo? – provoca dona Áurea. – Eu jurei de comprar outro para ela, mas ela não quer mais que compre. – O que? Tu jurou de comprar outro? Meu velho, não minta não, você não quer que compre de jeito nenhum. Ele não deixa eu usar porque não quer que gaste energia. – E o que a gente tinha era desses baixinho sabe, bem baixinho, eu ia comprar um daqueles altos, que aí na Bolívia vende desses alto. – Eu tenho que ficar passando calor, minha filha, porque ele não gosta. Se é uma mulher zangada... Agora sim seu Alonso emite uma risada mais forte, olhando para a repórter, cúmplice, que como ele sabe que dona Áurea é zangada, assim como era sua mãe. Nesse jogo de acusações, me torno quase um árbitro com o poder de decidir a pontuação final. Os dois se provocam buscando o respaldo da “juíza” para determinar quem tem razão. – Ela é brava – ri o marido – mais brava de que eu. – Você disse que eu sou mais brava? – pergunta Áurea indignada. – Eu falei que tu é mais brava de que eu – repete Alonso calmamente. – Ele que é mais bravo, ele é que o chefe. Bicho arrematado é nós mulheres. O homi quer mandar no cangote da gente todo tempo. – Não, a mulher tem que mandar. A mulher manda numa metade, o homi noutra metade –afirma seu Alonso, diplomático. – Hum. É, mas cadê, se eu comprar um ventilador e botá aqui ele não quer. – Não, se quiser pode botar, eu não me incomodo mais não. – É, agora eu vou comprar um. – Ela só vivia emprestando ele, então dá logo – provoca seu Alonso bem quando a discussão estava prestes a terminar. – Emprestando ele, que conversa velho. A gente diz a verdade. Eu vou comprar um pra ver. 74


Dessa vez seu Alonso apenas ri. – Ele é o dono da casa, quem pode pagar é ele mesmo não é? – Quem paga tudo é eu mesmo – conclui Alonso encerrando o argumento. A discussão acabou. Alonso está sentado no sofá com as mãos juntas sobre as coxas magras e a camiseta desbotada cuidadosamente enfiada dentro da calça. Ao seu lado, está sua mulher, que mal pode sair de casa devido ao problema nas pernas e por isso anda mais desleixada. Vestida com uma camiseta azul manchada, a saia rosa até os joelhos e com os cabelos ralos embranquecendo na parte superior da cabeça, ela olha para a repórter em silêncio. Alonso, com o olhar bondoso e a calma natural que emana, se dirige para a repórter e afirma com os olhos pequenos quase brilhando de amor: – Meu casamento foi um romance, foi um romance mesmo, mas vencemo, tudo em paz, hoje já tamo com 66 anos junto. – A gente discute assim, mas nunca se deixamo – completa Áurea.

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BOL-PE-bRA. BOLÍVIA PERU BRASIL 10 Na tarde ensolarada do verão de meados de julho, os escassos moradores do pequeno povoado de San Pedro de Bolpebra, localizado na tríplice fronteira entre o Brasil, o Peru e a Bolívia, estão curiosos com a presença de forasteiros no local. A notícia correu no boca a boca e aos poucos eles deixam suas casas ou aparecem nas janelas para saber da novidade. Em sua habitação, Nicolai Cazon Huallpa retira uma garrafa de plástico com um líquido gasoso e escuro, cujo rótulo vermelho informa Ice Cola, do pequeno recipiente térmico apoiado no chão ao lado da parede. Com cuidado, como se tivesse em mãos uma bebida valiosa, retorna à mesa comprida onde estão seus convidados estrangeiros para, ainda em pé, servir os pequenos copos de vidro que se equilibram sobre as tábuas de madeiras desniveladas cobertas por uma toalha encardida. Os braços grossos e as mãos calejadas não atrapalham os movimentos apurados do anfitrião, que despeja o refrigerante com o carinho de quem cultiva a terra. Em pé, comovidos com a solenidade do momento, não resta aos convidados outra ação que não a de aproximar as mãos em frente ao corpo para, em silêncio, aguardar o fim da curta cerimônia. Com um leve sorriso, Huallpa ergue o rosto e o copo para propor um brinde. – Estou muito feliz porque pra mim é uma satisfação ter vocês, brasileiros, em minha humilde residência. Quero agradecer pela presença e dizer que estou à disposição para conversarmos sobre essa que é a minha cidade e que carrega no nome a união dos povos vizinhos de fronteira. Em seguida, convida todos a sentarem-se e esvazia o copo, recomendando a imitação de seu gesto “antes que a bebida esquente”, sábia constatação de alguém que lida com o calor amazônico 365 dias ao ano e que, sem o privilégio da energia elétrica, não pode guardar o refrigerante na geladeira para ser consumido mais tarde. 77


A Bolívia termina aqui O município de Bolpebra é constituído por 18 comunidades espalhadas pelo Departamento de Pando, entre a capital Cobija e a fronteira, que começaram a se formar a partir de 1976, mas a maioria se consolidou apenas nos anos 90. Segundo dados de 2006, ao todo são quase duas mil pessoas vivendo nessa área. Mas no pequeno povoado de San Pedro estão aproximadamente 30 famílias. A colonização desse último foi o resultado da luta pela terra de um grupo de pioneiros que partiu do Departamento de Tarija para conquistar a última fronteira boliviana e consolidar a soberania do país em um local que antes era povoado por peruanos e brasileiros. Huallpa é um dos fundadores e hoje vive satisfeito em Bolpebra, mas ainda muito envolvido na luta por conseguir melhorias para a cidade. Adentrar a sua casa equivale a um pedido de licença para nunca mais ser capaz de enxergar o mundo da mesma forma e é como se a porta comprida e estreita, que deixa passar apenas uma pessoa por vez, quisesse alertar sobre esse perigo. Erguida sobre a altura de quatro degraus, como uma grande caixa retangular, a construção de madeira e teto de zinco foi edificada pelas mãos do próprio residente e o abriga junto com a mulher, os três filhos ainda pequenos (são seis) e uma neta. Sem divisão de cômodos, na casa todos repartem o mesmo espaço. No total, são cinco camas de solteiro enfileiradas no canto esquerdo de quem entra, mas nem todas utilizadas para dormir. No período da reportagem, ao menos duas estavam ocupadas, uma recebendo o peso de uma televisão grande e quadrada – que só pode ser utilizada durante as cinco horas em que o gerador funciona, quando funciona – e outra preenchida por uma pilha de roupas amontoadas. Em um dos extremos, onde fica a cama do casal, uma cortina e uma prateleira permitem um pouco mais de privacidade. Do lado direito de quem entra está a mesa de jantar e uma espécie de cozinha, com um fogão velho e vários objetos empilhados, entre eles panelas, talheres, garrafas de plástico e caixas de papelão. Ao fundo, 78


uma porta como a frontal se abre para um tablado onde a família escova os dentes e lava a louça, utilizando a água amarelada proveniente de um poço de bombeamento, ali retida em dois baldes grandes onde bóiam pequenas cumbucas. As janelas são grandes, sem vidros ou persianas, pois a casa precisa ser arejada. Por fora, a pintura marrom e branca é caprichosamente executada e o teto se estende para formar uma varanda ao lado direito da casa, onde a família costuma tomar banho utilizando grandes bacias. O extenso corredor que se forma dentro da residência é ocupado pela bagunça das crianças e pelas roupas suspensas em uma rede de fios que funcionam como varais, mas lembram os famosos “gatos” da rede elétrica nas periferias das grandes cidades. A cidade inteira é formada por casas desse tipo, algumas maiores, outras menores, mas todas construídas pelos próprios moradores, com a madeira disponível na região, erguidas sobre o chão de barro que se espalha por todo o perímetro urbano. Fisicamente, são apenas cem metros de terra e um rio magro que separam Assis Brasil de Bolpebra. Mas no âmbito da modernidade, se é que é possível utilizar tal expressão, a distância é de quase um século. O rio Acre é facilmente atravessado a pé no verão, época de pouca chuva, mas aqueles que não querem contaminar os pés na água poluída podem utilizar o serviço do único barqueiro operante nessa época: o soldado boliviano que cobra um real pela viagem, um rendimento extra para o residente do quartel instalado para resguardar a fronteira. Na outra margem do rio, um pequeno barranco aguça a curiosidade de quem chega, pois impede a visão do que há do lado de lá. Bolpebra não se revela assim tão facilmente. Após vencer esse primeiro “obstáculo”, o forasteiro se vê diante de uma pequena loja de bugigangas e duas opções de destino (além da de fazer compras aproveitando a valorização do real diante da moeda boliviana): uma estradinha à direita segue para o quartel, e outra, à esquerda, leva até o povoado. Esta última nada mais é do que a continuação da margem do rio, acompanhando seu preguiçoso percurso de curvas suaves. Ao percorrê-la não é possível contemplar a água corrente, pois a vegetação de capoeira se ergue em BOL-PE-BRA. BOLÍVIA PERU BRASIL

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cada lado da estrada barrenta resguardando a vida de animais que se agitam com a passagem dos seres humanos. O pequeno percurso de 15 minutos de caminhada é suficiente para produzir uma suspensão no tempo, quase como um portal para outro mundo, outra época. É impossível ver Bolpebra, como é Bolpebra, sem experimentar essa passagem que expõe a solidão e a vulnerabilidade de quem a percorre. A última curva revela o povoado e termina na rua principal da cidade, que conduz até a praça central. São 12 hectares preenchidos por duas ruas horizontais paralelas cortadas por quatro perpendiculares. Ao fundo, a floresta densa. À esquerda, a estrada que leva para Cobija e para as colônias onde os moradores cultivam suas plantações. À direita, mais floresta. À frente, uma imensa praça de concreto contrasta com as ruas de terra e é o grande símbolo da civilização para os moradores desse povoado distante e desconectado do resto da Bolívia. Um a t e r r a p a r a v a l e n t e s Huallpa surge de shorts, camiseta suja e amassada e os pés descalças sobre o chão de barro. De estatura mediana, nariz levemente inclinado para a direita e sorriso largo de dentes amarelados, o anfitrião de 51 anos, cujo rosto redondo de bochechas salientes e avermelhadas não deixa transparecer a idade, tem o cuidado de limpar as grandes mãos de veias saltadas antes de cumprimentar os visitantes. Depois, pede licença para trocar de roupa. Em alguns minutos retorna de chinelo, calças compridas e uma camisa de manga curta listrada fechada até o segundo botão. Os cabelos sebosos e bem pretos, cortados à moda boliviana, estão cuidadosamente penteados para o lado direito. Ele convida a reportagem para conhecer sua casa, onde conta como o destino o levou até Bolpebra. – Às quatro horas da tarde do dia 22 de setembro de 1992, a ‘pachamama’ [Mãe Terra] nos deu as boas vindas a Bolpebra com uma chuva torrencial. Fomos todos batizados pela terra sagrada – diz sobre o dia em que trouxe a mulher e o filho para se estabelecer em uma terra para finalmente poder chamar de sua. 80


Huallpa tem uma história de militância e luta que o levou a esse improvável encontro com Bolpebra anos atrás, quando pôde estabilizar a vida. Na companhia de outras dez famílias, abriu caminho na selva fechada para se estabelecer e fundar o que viria a ser San Pedro de Bolpebra. Filho de agricultores, nasceu no Departamento de Potosí, próximo à fronteira com a Argentina. Aos dez anos deixou a família para viver na cidade de Salta, no país vizinho, de onde só retornou aos 18 para servir o Exército. Dos 20 aos 22 anos trabalhou como mineiro, quando se tornou sindicalista e aprendeu sobre seus direitos, sendo que um deles especialmente lhe chamou a atenção: ter uma terra para viver e poder construir uma moradia digna. Em seguida, porém, retornou para a Argentina, cumprindo um destino comum aos homens da região em que nasceu: a realização de trabalhos temporários como mão de obra barata no país vizinho. Lá ficou por muitos anos, até constatar que não poderia viver para sempre na condição de estrangeiro, sentindo-se excluído e impossibilitado de usufruir dos benefícios e da segurança de ser um cidadão legítimo. Ao retornar, em 1987, conheceu sua mulher, Emilia Pacheco, a atual professora da escola de San Pedro e sua companheira de lutas desde então. Juntos, eles se reuniram com outras 40 famílias na cidade de Bermejos, extremo sul da Bolívia, no Departamento de Tarija, e organizaram o Juventude Linares, um movimento pela criação de assentamentos agropecuários para os trabalhadores sem terra. Como em Tarija não havia mais áreas disponíveis, foram enviados para o Departamento de Pando, pouco ocupado e pouco conhecido pelo centro de poder do país. A princípio, o objetivo era estabelecer as famílias no município de Santa Rosa Del Abuná, onde chegaram em 1992. A comunicação por estradas dentro da própria Bolívia era tão precária que os trabalhadores foram enviados por Rio Branco. Nicolai e Emília carregavam consigo, além da pouca roupa, dois filhos pequenos e um prestes a nascer. Este veio ao mundo brasileiro, na cidade rondoniense de Guajará-Mirim, um dia antes de a família atravessar a fronteira para a Bolívia. BOL-PE-BRA. BOLÍVIA PERU BRASIL

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O local destinado, no entanto, era conhecido como uma área endêmica de malária e já estava ocupado por comerciantes, o que acabou gerando conflitos. O então prefeito de Cobija, Joselito Padilla, ofereceu a área de Bolpebra para o reconhecimento dos chefes de família e ajudou a transladar os que aceitaram se estabelecer no local. Para alcançar a cidade, o caminho mais fácil seria novamente pelo lado brasileiro, a travessia por Assis Brasil. Para Huallpa, alcançar Bolpebra foi como chegar a um local ao qual estava predestinado. Quando colocou os pés do outro lado do rio, diz ter sentido a terra lhe dando as boas vindas e foi acometido por uma felicidade imediata, a sensação de que poderia viver ali para sempre. Também ficou encantando com a exuberância da mata virgem. A comitiva de trabalhadores pobres, ávidos por uma terra para cultivar, foi recebida por um comandante do posto militar da Bolívia e por algumas famílias de brasileiros que viviam da extração da castanha e do látex. Fizeram uma caminhada de dois quilômetros para o reconhecimento do local, o suficiente para Huallpa e outros dez homens decidirem trazer seus entes queridos para construir uma vida naquele lugar, o extremo mais esquecido de seu país, completamente diferente da região com a qual estavam acostumados. Um desafio para aquelas corajosas pessoas. – Com o coração que bate pelas três cores vivas da Bolívia, vermelho, amarelo e verde, pela primeira vez entoamos nosso hino nacional. Ao içar a bandeira tricolor foi para nós como instalar nosso planeta – relembra Huallpa, em tom solene, sobre o planeta chamado Bolpebra que até hoje parece estar localizado em outra galáxia. Durante as primeiras noites, as famílias tiveram que dormir no posto militar e os dias se seguiram com muito trabalho pela frente: demarcar a área de agricultura destinada a cada uma, derrubar a mata para a plantação, construir a casa com as próprias mãos. A solidariedade brasileira se fez presente nesse período de adaptação e Huallpa, eternamente grato, até se emociona quando fala sobre o assunto. – As autoridades de Assis Brasil trouxeram medicamentos, alimentação. Uma vez por mês, durante um ano e meio, eles vinham 82


para nos dar assistência. O idioma torna a comunicação mais difícil, mas não nos separa. A presença das autoridades estrangeiras foi para nós um acolhimento de amor, principalmente diante da ausência de nossas autoridades nacionais que não nos deram esse apoio – conta ele. Hoje são cerca de 30 famílias instaladas em San Pedro de Bolpebra, mas apenas pouco menos da metade efetivamente vive no local. A maioria se estabeleceu em pequenas casas na cidade de Cobija, onde os filhos podem continuar os estudos, já que no pequeno povoado a escola só chega até o primeiro grau. Em outras épocas a cidade já contou com a presença de 70 famílias, mas não é fácil resistir ao isolamento da região, principalmente porque falta apoio do governo para a fronteira. O povoado recebeu muitas pessoas depois do primeiro momento de colonização. Cada família possui entre 300 e 500 hectares, onde plantam artigos como arroz, mandioca, milho e banana, produtos que tiveram que aprender a cultivar com os vizinhos brasileiros, pois estavam pouco acostumados ao clima e ao solo da Amazônia. – Em Tarija tínhamos mais verduras, aqui, temos arroz e feijão todos os dias – compara Huallpa. Cada lote foi estabelecido conforme a ordem de chegada na cidade. Huallpa caminha cinco quilômetros todos os dias até suas terras de cultivo, mas os que conheceram Bolpebra mais recentemente acabam ficando nas áreas mais distantes e podem ter que andar até 16 quilômetros apenas para começar a trabalhar. Apesar da grande quantidade de terra, a maioria produz apenas para a subsistência, pois a condição precária da única estrada que conecta ao interior do país não permite o escoamento da produção. Uma das maiores dificuldades da população é com relação à comunicação com o resto do mundo. Desde que chegaram ali eles solicitam a abertura de uma estrada até a capital mais próxima, Cobija, que está a apenas 105 km de distância. Como a reivindicação não foi atendida, a comunidade resolveu abrir o caminho com as próprias mãos, como, aliás, as pessoas estão acostumadas a fazer por lá. Foram 36 homens trabalhando por mais de BOL-PE-BRA. BOLÍVIA PERU BRASIL

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um mês na derrubada de uma faixa 50 quilômetros de extensão. Mais tarde o governo concluiu o restante do caminho. Isso foi há quatro anos, agora eles reivindicam o asfaltamento da estrada, mas só o que conseguiram foi o melhoramento de alguns trechos e pontes. – Até cinco anos atrás, tudo o que chegava vinha pelo rio – afirma Huallpa, que costumava levar um dia de barco para ir até Cobija e outros dois ou três para voltar na contracorrente, se o rio não estivesse seco. – Aqui é para os valentes – complementa Santusa Castillo, de 42 anos. Ela mesma uma valente, companheira de militância da família Huallpa, também foi uma das primeiras a chegar a Bolpebra. Com a determinação estampada na expressão dura e séria, ajudou a fundar a escola, em 1993, se tornando a primeira professora, mesmo sem se lembrar muito das regras da escrita. Em 2001, levou a filha adolescente para estudar em Cobija e aproveitou para fazer um curso técnico de auxiliar de enfermagem por dois anos. Voltou para trabalhar no Centro de Saúde de Bolpebra, onde é responsável por atender cerca de 70 pacientes por mês. Segundo ela, os indígenas da etnia Jaminawa que moram espalhados pela região são os que mais utilizam seus serviços. Os principais problemas? Os mesmos do Brasil profundo: febre e diarreia. – Antes utilizávamos muito as plantas medicinais, mas agora com a civilização é mais fácil ir à farmácia – explica Huallpa, que acompanha a visita à enfermeira. Quando o problema é mais grave, é comum que os moradores se tratem em Assis Brasil, onde dizem nunca ter sido negado atendimento. “Assis nos salvou várias vezes” é o que costumam falar. À espera da civilização Hoje Bolpebra aguarda ansiosamente pela consolidação da Estrada do Pacífico e o asfaltamento da ligação com Cobija. A Praça de Armas das Três Fronteiras é o símbolo do progresso que a cidade 84


pretende conquistar, uma forma de mostrar sua inserção no processo de globalização que vem alcançando a região com a pavimentação das rodovias. Extremamente simétrica, a praça forma um quadrado perfeito, constituindo um descampado de concreto com 100 metros de frente e de lado, os canteiros de grama verde envolvidos por guias amarelas e o coreto central coberto de sapê. Ao lado direito, mastros erguem as bandeiras da Bolívia, do Peru e do Brasil, além do símbolo do Departamento. Ao redor da construção, a terra vermelha e a floresta indisciplinada provocam estranhamento em relação ao projeto que apresenta postes de luz – ainda que a cidade não tenha energia elétrica – e possui mais bancos para sentar do que o número de famílias que habita o local. Aparentemente despropositada, a praça, no entanto, tem um efeito importante no imaginário dos habitantes locais. A ausência de uma única árvore no plano revela como essa população, isolada dos centros de poder pela selva amazônica, vê no descampado a imagem da civilização, baseada nos valores da cultura hegemônica que entende o asfalto e o concreto como símbolos do desenvolvimento. Domando a natureza que os cerca por meio da construção quadrada, esses moradores querem mostrar que não estão atrasados, pelo contrário, almejam o progresso que está para chegar. Financiada pela República Bolivariana da Venezuela, com um custo de mais de um milhão de bolivianos, a obra é a principal intervenção urbana planejada do local e levou dois anos para ser inaugurada, em junho de 2010. Atualmente é um dos cartões postais do circuito turístico da tríplice fronteira e foi um desejo dos próprios moradores, que poderiam ter utilizado essa verba para outros fins, mas preferiram começar com a construção da praça. A fala de Huallpa justificando a existência do projeto é sintomática do efeito que a obra gera sobre os moradores: – Os estrangeiros que chegavam aqui sempre perguntavam onde ficava a praça da cidade e nós, por muito tempo, ficamos em silêncio, sem ter o que responder. BOL-PE-BRA. BOLÍVIA PERU BRASIL

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Todos os dias o sol se ergue para esquentar as lajotas da construção, eventualmente a chuva cai no fim da tarde para resfriá-los, mas ninguém realmente ocupa a praça, é como se precisassem saber apenas que ela está ali, como um marco. As crianças, por exemplo, já entendem que ela constitui o que há de mais moderno no povoado e agarram as mãos desta repórter para levá-la a conhecer a grande atração do lugar. Só em Bolpebra é possível fazer um “city-tour” que se esgota em menos de dez minutos e é guiado por duas pequenas almas de cinco e três anos, caminhando descalças sobre o barro úmido até alcançar as cinzentas lajotas molhadas secando sob a luz amarelada do final da tarde. O vazio do espaço é preenchido apenas pelo barulho dos grilos e cigarras e a visão das belas castanheiras na mata ao fundo. A construção representa a esperança da população pela inserção de Bolpebra em um circuito comercial que a comunique com o resto da Bolívia e com o mundo, principalmente o Brasil e o Peru. Os moradores estão satisfeitos, mas fazem questão de dizer que ela ainda não está concluída, falta luz para os postes e música e cultura para dar vida ao local. Mesmo assim, é preciso celebrar o encontro tripartite na Amazônia e, querendo ou não, com a Interoceânica, a região de Assis Brasil, Iñapari e Bolpebra está prestes a entrar em uma rota de turismo. A comunidade já aguarda o fluxo de visitantes ansiosa. A satisfação com a melhoria de vida que se anuncia é evidente, mas os moradores estão cientes dos problemas e têm medo da violência. – Uma vez chegando o desenvolvimento ele chega completo, com as coisas boas e as ruins. Temos que estar preparados – afirma Huallpa, que se preocupa com o possível aumento do consumo de bebidas alcoólicas na cidade. Mesmo diante da falta de planejamento frente aos impactos da chegada da estrada, o que importa para os habitantes é que a cidade agora tem sua praça. A última fronteira boliviana está prestes a ser conectada ao resto do mundo. Daqui a poucos anos Bolpebra não será mais Bolpebra. Será só mais uma cidade da Bolívia. 86


A ENTRADA PARA O PERU 11

Iñapari está em reforma. A capital da província de Tahuamanu, no Departamento de Madre de Dios, vive uma acelerada expansão impulsionada pela chegada da Estrada do Pacífico, a partir daqui conhecida como “Carretera Interoceánica”. Em 2005, o censo populacional apontava a presença de 791 habitantes no local. Em 2010, a prefeitura calcula que esse número subiu para três mil, um crescimento significativo que demanda mudanças estruturais na pequena cidade. A ponte binacional na fronteira entre Iñapari e Assis Brasil desemboca na terra molhada, que está sendo preparada para receber asfalto, assim como deve acontecer com o resto das ruas. Uma nova praça também será construída para atrair turistas. No município peruano tudo muda rapidamente. Até a inauguração da ponte, a cidade era o fim do Peru, agora ela pode ser considerada também a entrada para o país, o que alterou completamente o seu posicionamento no mundo. O atual prefeito da província de Tahuamanu, Bernardo Cardozo Mouzully, nasceu e cresceu na região e está tentando prepará-la para o futuro. Ele era um dos que não queriam a estrada passando por dentro da cidade, mas acabou perdendo a briga com o Brasil e teve que acolher a rodovia no interior do município. Ao menos, o caminho não corta Iñapari ao meio e, sim, uma de suas margens. Do lado esquerdo de quem vem do território brasileiro está o município, do outro está uma mata até agora preservada, mas que deve ser ocupada rapidamente com construções. De qualquer forma, a cidade ainda pode optar por se expandir para o lado esquerdo, mitigando um pouco os impactos da estrada. A principal preocupação de Mouzully é o Estado não ter preparado a população da região para o advento da estrada com programas de capacitação ou incentivos à agricultura e ao comércio. Ele explica que, com a queda no custo do frete proporcionada pela boa condição da 87


rodovia, a ação madeireira se tornou mais intensa e o governo não realiza fiscalizações. – Até existem algumas empresas que trabalham com o manejo sustentável, mas quem atua de forma ilegal acaba vendendo mais barato porque não paga impostos – conta ele, identificando um dos mais graves problemas da região, intensificado com a chegada da rodovia. O setor madeireiro se tornou muito forte no local, principalmente a partir da década de 80, quando o Peru passou a adotar medidas de liberalização da economia. Até essa data, a extração do látex era subsidiada pelo Banco Agrário e por isso a atividade persistiu por mais tempo e mais forte do que em Assis Brasil. Mas, com a extinção do banco, a atividade caiu no ostracismo – apesar de ainda existir, como também acontece no lado brasileiro – e a extração da madeira cresceu em importância, tornando-se um dos grandes dínamos da economia local. Cada vez mais o setor é financiado pelo capital externo, muitos chineses e até brasileiros estão atuando ali, beneficiando-se da falta de fiscalização para burlar o sistema de concessão baseado no manejo sustentável e expandir o negócio extraindo madeira ilegal. O prefeito também afirma que os posseiros da margem da estrada já estão vendendo seus lotes para compradores estrangeiros. A falta de financiamento à agricultura acaba contribuindo para esse fato, já que, sem amparo, os pequenos produtores se veem tentados a vender suas terras por um montante de dinheiro jamais visto por eles. O destino desses trabalhadores é a cidade, aonde chegam junto com migrantes atraídos pela criação de empregos proporcionada pelo setor madeireiro ou pelo fortalecimento do comércio. Mouzully se preocupa com o expressivo crescimento de Iñapari e teme um colapso do sistema de assistência básica, como o fornecimento de água e luz, já que a cidade, por mais que se tente, não está preparada para uma expansão tão acelerada como a que está por vir. Por outro lado, o prefeito, que termina seu mandato em dezembro e deve disputar a reeleição, tem indicadores positivos para apresentar sobre sua gestão: a taxa de analfabetismo está próxima de zero e a rede de esgoto foi implantada em toda a região central – um alívio para o 88


Rio Acre, que divide as fronteiras e recebe em troca grande parte do esgoto das duas cidades vizinhas. A política corre nas veias da família Mouzully: o avô era português e chegou à região no início do século XX para comercializar borracha. Casou-se com uma peruana e acabou ficando, mais tarde tornandose prefeito. O pai, que teve 12 filhos, seguiu o mesmo caminho e foi prefeito quatro vezes. Alfonso e os irmãos, por sua vez, se dividiram em três grupos políticos distintos e disputam eleições constantemente como rivais. Atualmente cinco deles são vereadores. Quem sofre é a mãe, que vê a família fragmentada a cada nova disputa. Para as próximas eleições, no entanto, ele espera contar com o apoio dos doze irmãos e quem sabe do pai, que nas últimas eleições foi opositor de sua candidatura. Casado com uma brasileira, Mouzully divide sua vida entre o Peru e o Brasil, tornando-se parte dessa população que vê o estrangeiro como amigo e não quer ver as relações modificadas pela chegada do Estado e suas instituições de controle. – Quando dividiram a fronteira, não dividiram os povos – afirma o prefeito, para quem Assis Brasil e Iñapari dependem uma da outra e possuem um vínculo cultural e familiar, já que, como ele, muitos peruanos e brasileiros estabeleceram uma relação de parentesco. Mouzully teme que a fronteira acabe perdendo sua identidade, se tornando como as outras tantas espalhadas pelo mundo, desorganizada e com altos índices de violência e tráfico de drogas. Por isso, ele é adepto da criação da identidade do cidadão fronteiriço, aquele que vive na região e poderá se deslocar, a princípio por 20 quilômetros para dentro de cada país, sem ter que passar pelos trâmites burocráticos que cada vez estão mais consolidados. Mas ele sabe que o projeto encontrará resistências e considera o Brasil um país difícil de negociar quando se trata de fronteiras. Enquanto isso, tenta como pode preparar a sua cidade para as mudanças que estão alcançando a região.

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E n t re o s o n h o e a r e a l i d a d e A comerciante Emilda Suaña Yanarico, de 35 anos, moradora de Iñapari, conheceu o lugar antes e depois da estrada. Ela é dona de um restaurante que funciona na varanda de sua casa, onde serve pratos da culinária local. Ao perceber a presença da reportagem em seu estabelecimento, se aproxima da mesa e declara, tímida, porém decidida: – Vocês são jornalistas? Eu quero falar. Emilda observa as mudanças que estão ocorrendo em sua pequena cidade e tem uma série de considerações a fazer sobre o curso dos acontecimentos, mas infelizmente ninguém ali está disposto a ouvila. Os moradores são os que mais sofrem com os impactos negativos da estrada e ainda assim eles raramente foram ouvidos durante todo o processo da construção. A sala de sua casa é conectada com a varanda por uma porta e duas janelas grandes, uma de cada lado, que estão sempre abertas. É lá dentro que fica a família, marido, filhos e pai, todos entretidos por uma televisão no alto de um móvel, sempre ligada. Quando se cansam da programação repetitiva, a janela da casa faz as vezes de televisão e as crianças curiosas de rostos redondos observam os clientes prontos para almoçar. No dia seguinte, Emilda está ligeiramente nervosa com a entrevista. Pequenina, ela se vestiu para a ocasião com uma blusa de mangas compridas que deixa transparecer o sutiã de rendas, saia florida até o joelho e uma sandália preta, que combina com seus cabelos longos, muito escuros, presos por um rabo de cavalo. A peruana tem o rosto redondo, o nariz adunco, a pela escura e os dentes brancos enfileirados que se mostram em alguns poucos momentos de descontração. Minutos antes do início da conversa, que será gravada em vídeo, é possível vê-la no fundo da casa, por entre as cortinas que dividem a sala da cozinha, andando para lá e para cá com bobs enrolados na franja. Logo depois ela aparece, ajeitando a roupa, pronta para conceder a entrevista. Sentada na varanda, em uma cadeira ao lado de uma mesa com frutas da estação, refrigerantes e bebidas de caixinha, aguarda

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pacientemente as perguntas, com as pequenas mãos unidas sobre as pernas cruzadas. Atrás dela a televisão brilha, voltada para o canto direito da sala, onde sua família se reúne para um pouco assistir tevê, um pouco assistir Emilda, que, na percepção deles, também está sendo capturada por uma espécie de televisão. Nascida em Puno, Emilda chegou a Iñapari em 1989, ainda pequena, com outras 60 famílias estimuladas pelo governo a colonizar a fronteira e ocupar a região mais desconhecida e uma das mais isoladas do país. – Nós éramos diferentes, mas com o passar do tempo aprendemos a conviver – e também a cultivar uma terra completamente diferente daquela conhecida no Peru andino. Com a falta de oportunidades e de educação de qualidade, aos 18 anos partiu para estudar em Arequipa, mas seus planos foram alterados pela necessidade de se sustentar, e ela acabou trabalhando com a venda de ervas medicinais. Decidiu retornar, 18 anos depois, casada e com três filhos, para ficar com o pai, nessa mesma casa alugada em que hoje tem o restaurante. Encontrou uma cidade radicalmente diferente com a expectativa da estrada e vê uma oportunidade de receber turistas em seu restaurante. Emilda está ciente de que o comércio será muito intenso com a chegada da estrada, mas tem medo, pois sabe que em Iñapari e em toda a região os peruanos não estão preparados para a exportação de seus produtos e, portanto, correm o risco de se transformar em apenas um ponto de passagem, sem benefícios reais para a população. – Nossa agricultura não é apoiada pelo governo, como podemos estar preparados para nos beneficiar com a estrada? – indaga. Outro fator que a preocupa é a crescente destruição da floresta, visível nos arredores da cidade. No final das tardes é possível observar uma fila de caminhões que surgem de um ramal da Interoceânica, carregados com toras enormes de madeira. Um por um, eles desfilam pela Estrada do Pacífico, às margens de Iñapari, até uma serralheria próxima, mostrando que a exploração madeireira está aquecendo a economia e o bolso de uns poucos empresários, a maioria deles chineses que estão no Peru explorando as reservas naturais do país. A E N T R A D A PA R A O PE RU

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Nenhum tipo de benefício é deixado em troca para os cidadãos da região, por isso, Emilda reivindica uma lei que garanta no mínimo uma contrapartida para a retirada dos recursos naturais do local em que vive, mas sua voz não alcança os ouvidos das autoridades. Enquanto ela discorre sobre os problemas que atentamente observa, a televisão mostra outra realidade, um mundo mágico, super colorido e alegre, que em nada lembra o clima nublado, chuvoso e úmido, sempre quente, que caracteriza a região. O programa infantil no qual adolescentes abobalhados realizam performances de dança e mímica para crianças de pele branca e cabelos claros parece ter sido feito para mostrar ao Peru como não ser Peru. O plástico do cenário colorido simplesmente não combina com o barro alaranjado da realidade que espreita a porta da varanda de Emilda. Quem contempla a felicidade alheia pela telinha são seus três filhos, crianças morenas, de cabelos lisos e escuros, rostos redondos e narizes curvos, que carregam a origem indígena do país, visível na fisionomia do avô, um senhor tão cansado quanto velho, sentado no canto direito da sala ligeiramente escura, um pouco dormindo, um pouco assistindo à programação, com a indiferença de quem já se despede desse mundo. De vez em quando ele se levanta, ajeita os chinelos, sai da sala arrastando os pés para acompanhar por alguns minutos a entrevista da filha, com a mesma sonolência com que assiste à televisão. O velho magro, ligeiramente curvado, de calças compridas, camisa listrada e boné preto, vive com o olhar distante de quem espera o momento de descansar para sempre. Sua expressividade só não é nula devido às rugas que sulcam seu rosto, sinais profundos na pele avermelhada, que marcam para sempre sentimentos de outros tempos. Em alguns momentos ele até contrai o rosto como que para entender algo, mas logo relaxa a expressão, lembrando-se de que esses assuntos não lhe interessam mais. Emilda é parecida com o pai no olhar distante, um pouco triste, dos que conhecem as dificuldades da vida, mas ela ainda não desistiu de lutar por um futuro melhor para seus filhos. Reclama muito da falta de união da população local para se organizar por melhores condições 92


de vida. Ela gostaria de participar de programas de capacitação para poder trabalhar com conhecimento de causa, não apenas fazendo o que é indispensável para viver. Desde que retornou de Arequipa, atua também como cambista, uma atividade difícil e arriscada, cuja concorrência acirrada gera inimizade entre as mulheres que exercem o ofício. A peruana gostaria que Iñapari se tornasse como Assis Brasil. É comum que o país ao lado, gigante em suas dimensões, seja visto pelos vizinhos como uma potência econômica, por isso ela espera uma maior comunicação entre ambos. – Como fronteiriços temos que estar unidos para lidar com as mudanças trazidas pela estrada – afirma. A realidade do outro lado do rio, entretanto, também alerta para um novo problema: a violência. – Hoje meus filhos não têm mais que caminhar duas horas para chegar à escola, como acontecia comigo, mas em breve não poderão estar nas ruas com a tranquilidade que antes existia, a violência está chegando também – constata Emilda, preocupada.

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A FLORESTA SE APRESENTA 12

Deixar o Acre e entrar no Peru marca uma significativa mudança de paisagem. Até a fronteira, a Estrada do Pacífico tem suas margens completamente desmatadas, com pequenas áreas de reserva e algumas castanheiras secas espalhadas pelos pastos. Já em Iñapari a visão é completamente diferente. Todo o percurso da Interoceânica é preenchido pelo verde da vegetação abundante e firme sobre a terra. São centenas de quilômetros envoltos pela floresta com pequenos intervalos onde nasceram povoados de moradores pobres – normalmente migrantes que vivem da plantação de mandioca, banana, milho e arroz e da extração de recursos naturais, como a madeira e o látex. Em alguns anos, porém, a realidade deverá ser completamente diferente. Muitos desses povoados inflaram com a chegada de milhares de operários para trabalhar na construção da rodovia e outros novos “pueblos” se formaram a partir do tráfico de drogas. Milhares de garimpeiros já ergueram barracas às margens da estrada em busca de ouro e alteraram completamente a paisagem do local. Os troncos das árvores à beira da estrada escondem enormes crateras mais ao fundo, rios contaminados e casas de plástico azul formando imensas cidadesfavelas onde impera a desordem e a prostituição – entidades de defesa dos direitos humanos estimam a chegada de mais de mil jovens entre 12 e 17 anos aos bordéis localizados nas áreas de garimpo da região. A estrada cruza o Departamento de Madre de Dios, que compreende a região da Amazônia peruana, passa pela capital do estado, Puerto Maldonado, e dali se bifurca em dois trechos, um chamado de turístico, que leva a Cusco, e outro chamado de comercial, em direção a Puno, no lago Titicaca. A partir de ambos ela segue até o mar por diferentes rotas que levam a três portos no oceano Pacífico. 95


A sociedade peruana se cala – O que nós vamos vender por essa estrada? Essa é uma pergunta que ecoa incansavelmente pela floresta, instigando as comunidades locais a achar um modo de não serem atropeladas pelo desenvolvimento. Mas o silêncio paira sobre os moradores; eles simplesmente não sabem o que responder. Sem apoio do governo e com meios de produção precários e antigos, fica difícil destacar algum artigo para ser comercializado por essas populações. Alternativas como o arroz e o milho são facilmente descartáveis, pois ambos são mais baratos no Brasil ou em Arequipa, e a madeira acaba surgindo como a grande aposta, principalmente agora que as toras podem ser facilmente transportadas. Frente à falta de respostas significativas surge um dos maiores problemas identificados por estudos da iniciativa MAP (Madre de Dios, Acre e Pando), um projeto que busca mitigar os impactos negativos da pavimentação de rodovias: a especulação de terras nos arredores da estrada. A organização identificou que grande parte dos pequenos produtores ao longo do percurso vendeu seus lotes e migrou ou para o interior da floresta, vivendo na mesma condição de antes, ou para as cidades mais próximas, provocando o inchaço populacional dos centros urbanos. O estudo mostrou que essas pessoas estão mais pobres, pois chegam sem preparo técnico para enfrentar a vida nas cidades. A peruana Elsa Mendoza, especialista em planejamento regional associado aos impactos do asfaltamento das estradas na Amazônia SulOcidental, coordena a Iniciativa MAP. O programa é ligado ao Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) e reúne pesquisadores e instituições com o objetivo de fortalecer as comunidades locais e contribuir para a consolidação de políticas públicas na região. – Essas populações não estavam preparadas para o que comercializar, então a primeira coisa a ofertar é a própria área, um dinheiro que eles nunca viram na vida, mas que depois acaba rapidamente. Até agora não existe política de governo que segure o pequeno e médio agricultor ao longo da estrada – denuncia Elsa. 96


Ela percorre periodicamente as comunidades do entorno da Interoceânica desde 1999 e acompanha de perto as mudanças que atingiram os habitantes a partir do início da construção, em 2006. – Em 2002 fiz uma viagem em que passei muitos dias conversando com os líderes locais sobre a estrada. Eles não acreditavam que o asfaltamento aconteceria, mas diziam que seria a solução de todos os problemas. De fato, não podiam transportar os doentes, nessa parte entre Iñapari e Iberia o boi caminhava mais rápido que um carro, as pessoas queriam muito o asfaltamento. Defendemos que as populações se preparassem com um plano trinacional para mitigar os impactos do asfaltamento, mas infelizmente esse projeto ficou na gaveta. A dinâmica vem acontecendo, mas as populações não estão preparadas para usufruir esses benefícios. Outro problema gerado pela falta de apoio do governo para controlar o desenvolvimento que chega sem aviso é a questão das drogas. Essa região do país é composta de muitos migrantes andinos que ali se instalaram em busca de terras e passaram a plantar a coca. Também está muito próxima à Bolívia, uma tradicional produtora da planta. – Antes de a estrada ser asfaltada a droga passava, mas como num corredor. Agora, além de passar, ela também é consumida, inclusive nos pequenos povoados, onde antes não se usava. Atualmente você pode encontrar gente muito humilde consumindo cocaína. A distância se fez mais curta e a acessibilidade mais rápida, então mudou o sistema, tornou a droga mais barata. Para um negociador de Madre de Dios não é necessário muito dinheiro para levar cocaína até Assis Brasil, onde o poder aquisitivo é maior – explica Elsa, que afirma que no Peru as leis não são tão rígidas como no Brasil, aumentando o incentivo à violência à ilegalidade. A f e b re d o o u r o No percurso de 185 quilômetros entre Puerto Maldonado e Mazuco, a última cidade amazônica, quem divide o táxi coletivo com a reportagem é Tirsa Valencia Castilla, uma jovem de 24 anos a caminho A F L O R E S TA S E A P R E S E N TA

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do povoado de Lamal, no quilômetro 102 da Interoceânica, trecho que liga a Cusco. De cabelos negros, rosto quadrado e boca de lábios finos e compridos, Tirsa tem uma beleza incomum e uma expressividade marcante e atraente. Munida de um pequeno aparelho mp3, ela cumprimenta o motorista com um sorriso ligeiro e imediatamente se desconecta do mundo enchendo os ouvidos com música e os olhos com a paisagem nublada vista pela janela do carro. Seu destino, em Lamal, ou lamaçal, como a palavra sugere, não combina com a jovem moderna e aparentemente despreocupada sentada no banco da frente. Mas essa é apenas uma primeira impressão; observando de perto é possível reparar que a garota às vezes se descuida e deixa os olhos negros e brilhantes perdidos no infinito e a expressão alegre também pode se tornar um pouco distante. Lamal não tem esse nome por acaso. O lugar é uma precária comunidade que se formou em torno de uma região abundante em ouro. Lá não existe passado e nem futuro e ninguém sabe ao certo quando o povoado começou ou como será daqui a alguns anos; na verdade, ninguém se preocupa, pois as pessoas ali estão apenas de passagem. A história de formação deste garimpo é a mesma de todos os outros espalhados ao longo da rodovia: um tesouro é encontrado, a notícia corre rapidamente e as pessoas começam a chegar dos mais variados lugares. Em pouco tempo, um imenso buraco é aberto em meio à floresta e o rio, antes cristalino e abundante em peixes, se torna marrom, perde seu rumo e é envenenado por mercúrio. Naquela tarde de chuva fina, Tirsa está indo ajudar no negócio da família: um pequeno restaurante que serve os trabalhadores informais. A estudante de computação faz esse percurso três vezes por semana, às terças, quintas e sábados, uma hora e meia na estrada que serve como um intervalo entre o futuro promissor em Puerto Maldonado e a realidade lamacenta no garimpo. – Não gosto de trabalhar no restaurante, é um pouco perigoso. O que mais tem são os bares. O cotidiano é um só: tirar o ouro e ir pro 98


bar. Saem todos bêbados. Mas é ali que está o dinheiro e eu tenho que ajudar a minha mãe. Segundo Tirsa, são cerca de 300 pessoas vivendo neste garimpo, que, depois de um ano, já vê seus moradores irem embora, pois o ouro está cada vez mais escasso. O processo de mudança, no entanto, é trabalhoso e desgastante. Os habitantes realizam todo o translado de moto, carregando praticamente a casa inteira nas costas. Devem levar os móveis e as lonas para construir todas as barracas novamente. – No lugar onde estamos tinha bastante gente, mas a maioria se foi. Onde encontram mais ouro é para onde vão as pessoas. Ali já está terminando. Estão indo pro quilômetro 108, dizem que tem mais ouro por lá – conta Tirsa, que deseja intimamente que esta seja a última parada da vida nômade da família. No percurso da estrada, o verde sempre constante de repente é substituído por centenas de barracos que se dispõem ao longo das margens por vários quilômetros. É possível observar os rios assoreados e os troncos com as raízes voltadas para cima, como que pedindo socorro diante do grande vácuo que se abre no interior da floresta. A cena é desoladora. Tudo ali é marrom e azul. A terra lamacenta dá sustentação a restaurantes, bares e prostíbulos montados sobre paus de madeira cobertos com lonas. Estimativas de ambientalistas peruanos apontam que a busca pelo ouro causou a devastação de pelo menos 150 mil hectares de florestas no país até agora. Número que deve aumentar devido à facilidade de acesso que o asfaltamento permite. Lamal faz parte dessa estatística, é um dos vários povoados da região de Guacamayo, uma gigantesca cratera aberta na floresta que abriga cerca de 10 mil pessoas. Depois de algum tempo observando essa realidade nas margens da estrada, o táxi para na beira da rodovia. Chegamos a Lamal. A enérgica Tirsa se despede com carinho e deixa o carro para pisar na terra molhada e profunda. Debaixo da chuva, agora mais forte e pesada, ela sobe na garupa de um moto-táxi que rapidamente dá a volta, vira as costas para o carro e se perde entre os estreitos caminhos que levam ao interior do garimpo. A F L O R E S TA S E A P R E S E N TA

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PERIGO, HOMENS TRABALHANDO 13 A chegada de milhares de pessoas para trabalhar nas obras da construção da estrada também foi um dos grandes impactos encontrados no lado peruano. De uma hora para outra, as pequenas vilas foram tomadas por um batalhão de operários. Na cidade de Iberia, por exemplo, onde se instalou um dos acampamentos da Odebrecht, a população de 1.500 pessoas de repente teve que lidar com a chegada de cerca de mil trabalhadores em menos de um mês, vindos das mais diversas regiões. O impacto foi brutal e os restaurantes não conseguiram absorver tanta procura. A prostituição também aumentou significativamente, como mostra a peruana Elsa, da Iniciativa MAP. – A gente contou dois ou três bares em Iberia antes da instalação das obras, depois existiam mais de 50 discotecas. Apareceu assim, de repente, você olhava e estava tudo piscando. Os frequentadores eram os operários, até o diretor da parte social pediu para levarem bailarinas para tentar apaziguar os mil homens. Com o asfaltamento da estrada, os habitantes pensavam que poderiam oferecer duas coisas: madeira e mão de obra. Mas eles se enganaram quanto a este último. Com a educação precária e a vida distante dos grandes centros, os moradores não sabiam manejar o maquinário sofisticado empregado em uma obra dessa magnitude. Os trabalhadores tiveram que vir de fora, Lima, Arequipa, e até do Brasil (principalmente os engenheiros são brasileiros). Foram necessários cerca de seis meses para que os primeiros operários da região pudessem ser capacitados para o trabalho. – O impacto social foi muito forte – continua Elsa – a gravidez de jovens, famílias desestabilizadas, a falta de estrutura era visível. Por isso te digo, nem o próprio governo estava preparado e mesmo assim começou a fazer. Veio de cima para baixo, veio porque todo mundo queria, mas não houve planejamento para a população. 101


Da selva para o altiplano O trecho quatro da Interoceânica ligará Iñapari a Puno e representa um grande desafio de engenharia. O percurso abrange a transição da selva amazônica para o altiplano peruano e implica a passagem pela cordilheira. No total são 306 quilômetros sob a responsabilidade do consórcio Intersur, formado pela Camargo Corrêa, Queiroz Galvão e Andrade Gutierrez. O trecho interligará a cidade de Inambari, em Madre de Dios, a Azángaro, na região de Puno. O maior pesadelo das empreiteiras são os chamados “derrumbes”, violentos deslizamentos de terra que podem ocorrer a qualquer momento. Muitos acidentes foram registrados, principalmente no trecho entre Macusani e Ollaechea, onde há picos de 4.870 metros de altitude. O trabalho nessas regiões é muito perigoso, pois o terreno é acidentado, com características geológicas variadas e condições climáticas extremas. A altitude também atrapalha o desempenho tanto das máquinas quanto dos operários, que frequentemente devem realizar operações à beira de precipícios e nas perigosas escavações de túneis. Até o momento foram registrados sete acidentes de trabalho resultando em mortes. Outra polêmica que envolve o consórcio Intersur é a denúncia do Instituto Estatal de Cultura de Puno sobre a danificação de sítios arqueológicos da cultura Qolla na região de Ollachea. A ansiedade pela construção da estrada permitiu a sua execução sem o Certificado da Inexistência de Restos Arqueológicos (Cira). A aprovação dos estudos de Impacto Ambiental também ocorreu com atraso, oito meses depois do início da obra. Atualmente, restam menos de 60 quilômetros para a conclusão desse trecho da estrada, programada para março de 2011. A obra teve início no altiplano e está com um acampamento montado em San Gabán, a primeira cidade amazônica. Em conversas informais, os funcionários da Intersur não escondem os problemas que encontraram ao longo de quatro anos de obra, ainda que não aceitem revelar seus nomes na reportagem, com medo de se comprometerem. Um deles afirma que a estrada é muito inferior em 102


relação às construídas no Brasil. Outro diz nunca ter sentido tanto medo como quando chegou para trabalhar no local. Segundo ele, o ideal para fazer uma obra realmente segura demandaria quase o dobro do valor que está sendo gasto nesse trecho. – Em mais de 30 anos de obra, a primeira vez que tive medo foi aqui – conta um dos funcionários. Os riscos são enormes, mas, como os peruanos nunca trabalharam com esse tipo de projeto, não sabem avaliar a periculosidade de uma determinada função e acabam se submetendo a fazer tarefas altamente perigosas como se fossem atividades normais do trabalho de um operário. E para as empreiteiras talvez seja melhor que pensem assim, caso contrário a obra não avança. Futuro incerto As cidades onde os acampamentos do consórcio se instalam crescem violentamente. No caso de San Gabán, uma vila arraigada entre os morros amazônicos, tudo está em obras. As ruas têm as veias abertas para a passagem de tubulação, as casas crescem verticalmente para abrigar o máximo de gente possível e dezenas de faixas amarelas alertando “perigo, homens trabalhando”, se espalham por todos os lados demarcando o espaço para a atuação dos operários vestidos de roupas cor de laranja e capacetes amarelos. A auxiliar administrativa Margot Valdez Illanes, de 20 anos, viu sua vida mudar há pouco mais de um ano, quando conseguiu um emprego no setor administrativo do acampamento de obras. Ao lado da assessora de imprensa do consórcio, que faz questão de acompanhar todas as entrevistas, ela diz estar satisfeita com a chegada das empreiteiras a San Gabán. Com a movimentação na cidade, a jovem aumenta a sua renda alugando a casa onde mora para oito inquilinos. Além disso, joga no time de futebol feminino no campeonato dos funcionários e foi beneficiária de uma capacitação profissional concedida pela Intersur que a deixa mais confiante para o futuro. PERIGO, HOMENS TRABALHANDO

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Margot acorda às 5 horas da manhã para se preparar para o trabalho, que inicia às 8 horas, e alimentar a filha recém-nascida. Sua vida mudou para melhor, mas existe uma preocupação que atinge a maior parte dos empregados na obra, que ela só revela quando a assessora de imprensa se afasta. A estrada está chegando ao fim e ninguém sabe como será a vida dos milhares de trabalhadores atualmente empregados na construção. – Se não tivermos outras opções depois das obras, as pessoas vão embora e a cidade ficará abandonada. Os sonhos para daqui a 10 anos terão que esperar por mais 50 – afirma. Para não ter que voltar a produzir abacaxi, a principal atividade econômica de San Gabán, Margot, assim como a maioria dos trabalhadores de todo o percurso da estrada, tem esperança de poder participar de novas obras que estão sendo projetadas para a região. Uma delas é a construção da polêmica hidrelétrica de Inambari, parte de um convênio firmado entre o Brasil e o Peru, em 2009, que prevê seis hidrelétricas no país vizinho. A construção exigirá um investimento de quatro bilhões de dólares e deve criar quatro mil novos empregos, gerando 2.000MW de potência. O convênio permite que o Brasil financie, construa e opere as seis hidrelétricas com o comprometimento de comprar do Peru a maior parte da energia produzida. Os primeiros estudos sobre os impactos ambientais do projeto apontam a remoção de 3.400 pessoas dos Departamentos de Puno, Cusco e Madre de Dios e até a estrada Interoceânica, o grande investimento do Peru no momento, deve ter entre 90 e 125 quilômetros inundados. Trata-se de uma obra que provoca violentos protestos na sociedade peruana. Sob ameaça Para se tornar uma conexão definitiva entre o Atlântico e o Pacífico, atualmente a estrada só depende da construção de uma ponte que irá cruzar o Rio Madre de Dios, na localidade de Puerto Maldonado. A rodovia está asfaltada nas duas direções, mas o rio barrento e largo exige a contratação de balsas para transladar veículos e pessoas. A chamada 104


Ponte Continental já surge nas suas extremidades, mas enquanto ela não fica pronta os automóveis e caminhões ainda devem seguir o “script” antigo: equilibrar-se sobre tábuas de madeira para alcançar as embarcações precárias. Com a chuva forte, comum na região amazônica, a operação se torna ainda mais arriscada e muitas vezes o próprio rio pode estar inavegável. A obra, prevista para ser concluída em dezembro de 2010, está a cargo do Conirsa, o consórcio liderado pela Odebrecht. A extensão de 722 metros de concreto deverá selar definitivamente o corredor bioceânico, com custo estimado em 27 milhões de dólares. A população da região espera desde os anos 80 pela construção, mas há aqueles que a veem com enorme preocupação: são os barqueiros que carregam os passageiros de uma margem à outra. Há 20 anos atuando no ramo, Eric Pinto Mendoza, de 44 anos, não se conforma com a extinção anunciada de seu trabalho. Reunidos em associações, os cerca de 50 profissionais que fazem o translado estão se mobilizando para receber uma indenização pelo menos até conseguirem encontrar outras formas de sobrevivência. – Enquanto a ponte se transforma de ilusão em realidade, nós estamos contando os dias com aflição. Em poucos meses estaremos sem trabalho e até agora o governo fechou todas as portas. Não nos restou esperança alguma – afirma Mendoza com tristeza. Ao longo de todo o seu percurso, a Estrada do Pacífico carrega mudanças que alteram profundamente a vida de quem está no entorno. Sem pedir licença, ela avança por uma das florestas ainda mais preservadas do planeta trazendo conflitos em seu encalço, sob a égide do progresso. A rapidez com que a rodovia surgiu impediu o planejamento das comunidades e a obra foi iniciada sem ter sido realizado um estudo de impactos ambientais e sociais, o que foi remediado mais tarde com relatórios superficiais. Tarefa difícil, no entanto, é convencer os habitantes da região, que passaram anos sem ter como se comunicar com o resto do país, do outro aspecto do desenvolvimento e os problemas que estão a caminho com a Interoceânica. PERIGO, HOMENS TRABALHANDO

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Os estudos elaborados pela iniciativa MAP apontam que, se as políticas de governo não forem alteradas no Peru, de 60 a 70% das florestas ao longo da estrada serão desmatadas até 2030. Também mostram uma tendência para que a região fique mais pobre e só uma elite se beneficie com a rodovia. Atualmente, o Departamento de Madre de Dios tem apenas cerca de 1% de suas florestas desmatas e 70% de seu território protegido por reservas, mas isso ocorre em parte porque a região nunca foi valorizada e sempre foi vista como um lugar distante e pobre. Agora a situação se inverteu, a Amazônia peruana se tornou a menina dos olhos do projeto de expansão econômica do Peru. Lá foram descobertas reservas de petróleo, gás e ouro, além da madeira. Frente a tamanha pressão, não seria difícil diminuir as áreas de proteção ambiental para servir aos interesses econômicos dos grandes investidores. Nesse contexto, a estrada surge para inaugurar o leilão. É provável que em pouco tempo as riquezas naturais do Peru sejam vendidas, o que já ocorre, e o país experimente o processo que o Brasil viveu nos anos 70, com o incentivo à colonização da região amazônica sem planejamento. O exemplo do perigo está ao lado. Basta aproveitar a mobilidade que a Interoceânica proporciona para visitar a região brasileira onde a estrada começa e onde já existe asfalto há alguns anos. A visão da superfície é uma só: desmatamento. O problema não é a existência da estrada em si, mas a falta de mecanismos públicos que permitam mitigar os impactos ambientais e sociais previstos. Só o tempo irá dizer como essa rodovia realmente afetará a vida das pessoas que vivem no entorno e a preservação da imensa floresta amazônica.

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Foto da pĂĄgina dupla anterior Placa marca a entrada de Assis Brasil, localizada em um vale ao lado da rodovia

Entre Rio Branco a BrasilĂŠia, os pastos dominam a paisagem Ă beira da estrada

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As castanheiras resistem, marco da floresta que um dia existiu Ă s margens da estrada

CADERNO DE FOTOS

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A cidade de Brasiléia faz divisa com Cobija, na Bolívia

Assis Brasil começa a se modernizar após a chegada da estrada

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Alonso e テ「rea, o casal de ex-seringueiros comemora 66 anos juntos

A entrada da Ponte de Integraテァテ」o Brasil-Peru, que une os dois paテュses CADERNO DE FOTOS

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Trecho da estrada ainda em construção, no lado peruano

Em Iñapari, tríplice fronteira, a estrada desemboca na terra molhada

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Menino atravessa a fronteira entre o Brasil e o Peru

Habitação de Nicolai Huallpa, em Bolpebra CADERNO DE FOTOS

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Bolpebra aguarda a chegada do desenvolvimento

Em Bolpebra, quando é noite de lua cheia as crianças até confundem a claridade emitida pelo satélite com a luz do dia

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A enérgica neta de Huallpa passa horas sobre a copa da árvore

O garoto tenta subir na árvore, mas ainda é muito pequeno e não consegue CADERNO DE FOTOS

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As crianças que acompanharam a repórter pelo “city-tour” de Bolpebra

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A praça de concreto, símbolo do progresso em Bolpebra

A quadra de futebol foi construída junto com a praça CADERNO DE FOTOS

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O filho de Huallpa no interior da habitação

A delegacia de Bolpebra tem a mesma estrutura das casas

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Na porta da casa de Huallpa, as crianรงas observam os visitantes CADERNO DE FOTOS

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A escavação de um túnel no trecho do consórcio Intersur

A estrada corta a Amazônia peruana, ainda muito preservada

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A ponte de Puerto Maldonado é a única obra restante para a conclusão da Interocêanica

Enquanto a ponte ainda não está pronta, os barqueiros são responsáveis por transladar os veículos CADERNO DE FOTOS

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Depois da selva, a estrada avanรงa pelo altiplano

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Foto da página dupla a seguir Na selva amazônica, faixa indica a execução das obras

Habitante da região andina do Peru

CADERNO DE FOTOS

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