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ENTREVISTA REALIZADA E PUBLICADA PELA LITERAFRO EM 2015

literafro: Oswaldo, fale um pouco sobre a criação de Luana. Oswaldo Faustino: A melhor pessoa para falar sobre a criação de Luana, de seu pioneirismo ou não, é o criador da personagem: Aroldo Macedo. Ele a pensou, quando dirigia a revista Raça Brasil, encomendou trabalho de um ilustrador, que não só a desenhou, mas a todos os demais personagens. Aroldo Macedo: Eu estava numa dentista em São Paulo, quando ela me contou que uma amiga não sabia o que fazer porque a filha, negra como a mãe, queria ter o cabelo como o da Xuxa, que nessa época tinha um programa infantil na TV. A menina chorava sem parar e a mãe para satisfazer o seu desejo, comprou uma peruca loira para a menina. Eu dei um pulo da cadeira (ainda bem que estava anestesiado...). No mesmo dia comecei a observar que as mulheres com suas jornadas múltiplas: cuidar da casa, do trabalho e dos filhos (muitas vezes também, tendo que cuidar do seu “filho mais velho” que é seu marido), deixavam, pela manhã, para ter tempo de fazer coisas, a criança em frente a TV,. E, todas as apresentadoras de TV- tanto dos programas infantis quanto de adultos- na época, eram loiras (Xuxa, Eliana, Angélica, Hebe Camargo, Ana Maria Braga, entre outras). Estamos em 1997, por aí. Nada mais óbvio que a criança se identificasse com elas e quisesse ser igual a elas fisicamente. Isso é muito grave. Por que além de reforçar estereótipos, afeta a auto-estima, porque ela olha o entorno e nenhuma pessoa da sua família se parece com a apresentadora, portanto todos são feios. Ser negro deve ser feio, pensam elas. Fiquei com esse pesadelo de crianças negras balançando sem parar perucas loiras e resolvi fazer alguma coisa. Assim nasceu Luana. literafro: Como foi a sua parceria com Aroldo Macedo no processo de criação da personagem? 1


Oswaldo Faustino: Eu escrevia para a revista raça Brasil e um dia o Aroldo me apresentou a Luana, dizendo que precisava de alguém para escrever sobre essa menina de 8 anos, que vive com a família num remanescente de quilombo, joga capoeira, e que nasceu para protagonizar uma aventura heroica. Nasceu como personagem-espelho para dar visibilidade à criança negra, de preferência no universo escolar. Nosso método de trabalho: temos uma ideia, eu geralmente escrevo um primeiro texto e Aroldo faz uma análise crítica que servirá de base para uma refação. Conversamos todo o tempo, durante a criação de uma nova obra. Daí a compreensão de que é um trabalho a quatro mãos. Aroldo Macedo: Uma curiosidade: No livro sobre Capoeira e Liberdade foi difícil colocar um ponto final. Eu tive a ideia, a sinopse da história, enquanto estava dentro daquele tubo horroroso fazendo uma ressonância magnética. Conversei com Faustino sobre a idéia e começamos a escrever. Eu moro no Rio de Janeiro e ele em São Paulo. Eu mandava uma parte por e-mail pro Faustino e ele, prosseguia o capítulo e devolvia com uma passagem mais brilhante, eu então me desdobrava e enviava o meu melhor, ele mandava uma passagem excelente. O livro parecia não ter fim. Cada vez um aparecia com uma ideia mais original para a história. Foi a “competição” mais saudável, sem nenhuma vaidade, que tivemos e quem ganhou foi o leitor. literafro: E o berimbau, como ele entra na história? Oswaldo Faustino: Ainda não havia o berimbau mágico. Conversamos sobre ela poder se transformar numa série literária e ele já pensava nos quadrinhos. Concordamos que ela poderia viajar pelas histórias afro-brasileira e africana. Foi então que escrevi a primeira história, por sugestão de uma editora da FTD, e encontrei o elemento-gatilho para as viagens: um berimbau que se torna mágico, não só pelo raio que o atinge, mas a partir de um grande desejo ou de uma grande necessidade da menina ou de algum outro personagem. Literafro: o berimbau mágico seria uma resposta paródica ao pó de pirlimpimpim do Monteiro Lobato? Aroldo Macedo: Na verdade, isso partiu uma história que eu soube, há muito tempo, do paranormal mineiro Thomas Green Morton. Ele estava pescando num riacho, caiu um raio na vara de pescar e a partir desse evento ele se 2


tornou paranormal. Conversei com o Faustino e achamos interesse acrescentar esse elemento lúdico. Mas, interessante, em nenhum momento pensamos em pó de pirlimpimpim, mesmo Monteiro Lobato tendo sido um dos meus autores mais lidos quando criança. Oswaldo Faustino: Sem dúvida o berimbau mágico tem uma função semelhante: proporcionar uma viagem. Defere, porém, por se tratar de algo concreto que a criança pode visualizar e que tem presença marcante em manifestações da cultura afro-brasileira, como a capoeira. É um instrumento ao mesmo tempo percussivo e melódico, com uma sonoridade resultante da vibração da corda do arco, atingida pela vareta e pressionada pelo dobrão em posições diferentes alterando essa sonoridade. Em tudo isso a ação motivada é pelo desejo de quem toca o instrumento. A magia da viagem, parte da necessidade e do desejo profundo de Luana. Mais que no tempo e no espaço, é observa tudo e reflete a respeito. Não quer ser só expectadora da história, mas agente. Sem dúvida é uma resposta, mas a intensão é de que vá muito além da paródia: que desperte dos leitores e leitoras um desejo de mergulhar cada vez mais na cultura do povo de Luana. literafro: como você analisa o perfil da personagem? Oswaldo Faustino: Quando a chamamos de heroína não pensamos no preciosismo do arquétipo do herói épico. Porém, guardadas as devidas proporções, imaginamos que ela deveria trazer em si certa complexidade psicológica, social e ética, transcendendo características comuns de sua condição humana – criança, mulher, negra – movida por fé, por seu conteúdo étnico, coragem, ética, força de vontade, determinação, solidariedade, altruísmo, entre outros aspectos próprios ao herói, que servirá de espelho para uma criança. literafro: Considerando que existem outras personagens negras em nossa literatura infantojuvenil, o que Luana tem de especial para você e o Aroldo a considerarem a primeira heroína negra da literatura infantil brasileira? Oswaldo Faustino: Quando olhamos, por exemplo, para o consagrado Menina Bonita do Laço de Fita, de Ana Maria Machado, vemos uma protagonista deslocada do contexto familiar, social e histórico, sem nome e sem objetivo próprio. Desperta o olhar e o encantamento e outros personagens e do leitor 3


ou leitora, mas por si só e não por seus atos e comportamento. A obra pode ter o objetivo de despertar nas meninas negras um entendimento de beleza pessoal e, com isso elevar sua autoestima e, nos demais leitores, um olhar menos racista. E o faz, conforme vários depoimentos que já ouvimos. Porém Luana faz na literatura infantil o que reivindicávamos nas novelas de TV: personagens contextualizados socialmente, com relação familiar, com um olhar crítico, com disposição de lutar (não só a capoeira, mas também em outros enfrentamentos) para transformar realidades, mesmo que no passado. Podem sim, ter existido outras antes dela, mas desconhecemos. Daí o entendimento desse suposto pioneirismo. Aroldo Macedo: Só existe a "primeira" quando não existe nenhuma outra anterior, correto? Dentro do contexto em que ela vive aventuras em diversos tempos, se torna automaticamente uma heroína, pelo menos, para as meninas e meninos que acompanham as histórias. Quanto a questão técnica do termo "heroína", só tivemos um probleminha facilmente resolvido quando o projeto foi apresentado nos Estados Unidos numa palestra em evento que envolvia toda a mídia negra norte-americana. Trocamos heroin por hero, por questões óbvias que o sentido do termo em inglês heroin poderia sugerir... O que faz toda a diferença para outros livros com personagens infantis negros, é o núcleo familiar envolvido nas histórias da Luana: ela tem pai, mãe, irmão e avó. Não é meramente uma ilustração de uma menina negra num livro de literatura infantil. Mesmo se criássemos um herói infantil negro, um menino, ainda sim ele seria o primeiro, porque o Cascão, mesmo sendo negro não é herói, pois ele vive rodeado de moscas, com o rosto sujo. Para muitos, apontar o Cascão como negro é uma surpresa mas basta comparar com o Cebolinha... Só faltou o Maurício carregar um pouquinho na tinta do personagem para ele assumir a sua identidade completamente. literafro: Em que ano Luana foi concebida como personagem? Aroldo Macedo: Os gibis foram criados em 1998 e a personagem em 1997. literafro: Ao elaborarem a coleção o que vocês objetivavam em relação ao público alvo? 4


Oswaldo Faustino: No meu entender, antes de tudo, um espelho para as crianças afro-brasileiras buscarem seu próprio reflexo, o que pode resultar em elevação de autoestima e autorreconhecimento que, segundo a tese de mestrado de Márcia Gonçalves, pela Unifesp (2001) “é o primeiro passo da criança rumo à formação de sua personalidade". Eu costumo dizer: “Quem não se vê não se reconhece. Quem não se reconhece não se identifica. Quem não se identifica não se ama, tem baixa autoestima e se desinteressa tanto por si próprio quanto pelo outro”. E para crianças das demais etnias Luana visa proporcionar uma imagem positiva de criança negra, que ela não está acostumada a encontrar na mídia, na educação e muitas vezes nas influências familiares. literafro: Com que objetivo vocês fazem Luana revisitar fatos históricos como a descoberta do Brasil, o Quilombo de Palmares e outros eventos? Aroldo Macedo: Através do berimbau, um elemento mágico, ela pode revisitar fatos históricos e trazer essas histórias para o presente com o olhar e o entendimento de uma menina de oito anos. Oswaldo Faustino: A “descoberta do Brasil” atendeu a um convite da própria editora para iniciar a coleção, uma vez que em 2000 completavam-se 500 anos desse fato. Aproveitamos, porém, esse livro de estreia para falar de quilombos e seus remanescentes e do orgulho de Luana com relação à própria origem. Também para revelar o berimbau mágico e essa forma de viagem, durante a qual ela ouve um canto de capoeira sobre a volta no mundo. E chega como uma preparação para os demais que se seguiram e se seguirão, ora com história afro-brasileira, ora com fantasia que levem a refletir sobre temos relacionados com nossa cultura e também outros que são universais. literafro: vocês têm planos de fazê-la conviver também com outras figuras históricas da resistência negra como Chico Rei, Chica da Silva, Luiza Mahin, Luiz Gama, João Cândido e outros? Aroldo Macedo: Sim, já estamos, inclusive, pensando o quinto livro editado pela FTD, provavelmente, com um tema que até agora foi tratado superficialmente no Brasil. A surpresa será revelada no ano que vem na Bienal do Livro. Me lembro que quando editava e dirigia a revista Brasil, muitos afirmavam que depois de um tempo, não teria mais o que mostrar, como se a 5


nossa história se resumisse a algumas “celebridades negras”. Nossa argamassa cultural é muito mais densa na construção da identidade desse nosso país. Existem fatos ainda não contados, heróis com relevância nacional. Essa coleção nunca terá fim. Oswaldo Faustino: Sem dúvida, como esses e outros mais. O ideal seria poder biografar o maior número possível de personagens – inicialmente seriam também africanos tanto em África quanto na Diáspora –, bem como contar histórias as mais diversas e apresentar nossas manifestações culturais, mas temos uma limitação estabelecida pela editora, que a relaciona exclusivamente com história e cultura afro-brasileiras. Os gibis possibilitam uma amplitude de atuação da personagem. literafro: Aroldo, diante da avalanche digital contemporânea, que seduz fortemente as crianças, como você vê o futuro das histórias em quadrinhos? Aroldo Macedo: Acho que essa explosão digital seduz muito mais os adultos. Adultos querem saber da vida dos outros, precisam de muita informação. A tecnologia digital bem utilizada pode ser bem útil. Mas, crianças querem saber além da fantasia, querem sonhar seus sonhos. Acredito que num futuro muito próximo as abordagens nas mídias serão diferentes. Nos E-books é claro que pode-se dar mais vida às tirinhas, mais movimento. Entretanto, um ponto importante precisa ser ressaltado, todos tem e-reader? Aquela criança da escola pública em lugares distantes tem acesso pleno á tecnologia digital? Particularmente, eu noto uma certa impaciência das pessoas com o volume grande e disponibilidade de acesso no mundo digital. Não há tempo suficiente para se digerir tudo. As crianças, mesmo tendo nascido, nessa era, ainda não têm repertório para serem completamente dominadas, por exemplo, pela tecnologia móvel, como são os adultos. Ainda haverá espaço para uma boneca, um carrinho, um ursinho de pelúcia e para as histórias em quadrinhos. literafro: Há planos para levar Luana aos palcos ou ao cinema? Aroldo Macedo: sim literafro: E para a TV? Aroldo Macedo: Humm...Talvez 6


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