As Lendas de Yelena Zaltana 01

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Doce Veneno MarĂ­a V. Snyder Serie Study, 01


Pesquisa: Jo Slavic Tradução : Leniria Santos Revisão: Liege Matos Formatação: Graco

Série Study 1 - Doce veneno 2 – Doce magia 3 – Doce fogo Série em revisão com o Grupo Revisões e Traduções RS & RTS


Comentário da revisora Gostei da história, é envolvente e a gente fica esperando o próximo passo que ela vai dar, a próxima coisa que vai acontecer com ela, mas o mocinho não é tão apaixonante de primeira, ele parece meio carrasco no início, e tem poucas cenas de beijo. Mas é uma história bem fascinante.

Liege Matos


Sinopse:

Quando estava prestes a ser executada por assassinato, Yelena recebeu uma oferta extraordinária. Iria comer as iguarias mais deliciosas, viver em um palácio... E correria o risco de ser assassinada por alguém que tentou matar o comandante de Ixia. Foi assim que Yelena escolheu se tornar uma provadora de comida. Mas o chefe da segurança não quis deixar nada ao acaso e decidiu lhe dar de comer Pó de Mariposa... Yelena precisa ter doses do antídoto diariamente, mas o tempo passa e aumenta a agonia de morrer por causa do veneno. Yelena, ao tentar fugir desse dilema começa a passar por desastres. Os rebeldes planejando se aproveitar da Ixia, e Yelena adquire poderes mágicos que não pode controlar. Sua vida fica em perigo novamente, então tem que tomar uma decisão mais uma vez, mas desta vez de conseqüências inesperadas...


Capítulo 1

Envolta em uma escuridão que me abraçava como um sudário, não tinha nada que pudesse me distrair de minhas lembranças, vivas imagens que me assaltavam em qualquer lugar que vagasse minha mente. Junto a tal negrume, eu recordava ardentes chamas que lambiam meu rosto. Embora tivessem amarrado minhas mãos a um poste que me cravava com força nas costas, eu tinha conseguido escapar daquele violento ataque. O fogo se apartou de mim antes que pudesse me queimar a pele, mas não sem que me chamuscassem sobrancelhas e pestanas. —Apaga as chamas! —tinha ordenado uma arruda voz de homem. Eu soprei com força através dos ressecados lábios. Abrasada pelo fogo e o medo, tinha perdido toda umidade na boca e os dentes me irradiavam calor como se os tivessem estado cozinhando em um forno. —Idiota — amaldiçoou o homem— Não com a boca. Utiliza a mente. Apaga as chamas com o poder de sua mente. Fechei os olhos e tratei de centrar meus pensamentos na extinção daquele inferno. Estava disposta a fazer algo, por muito irracional que pudesse parecer, para conseguir que aquele homem se detivesse. — Te esforce um pouco mais. Uma vez mais, notei como o calor se aproximava de meu rosto. Apesar de que tinha as pálpebras fechadas, notei como a brilhante luz me cegava. — Prendam o cabelo — ordenou uma voz diferente. Aquela parecia mais jovem e mais ansiosa que a do outro, esse homem deveria animá-la. Deixe a mim, pai. Um intenso medo sacudiu todo meu corpo ao reconhecer aquela voz. Tratei de soltar as ligaduras que me sujeitavam, consumida em um revolto de sensações, enquanto meus pensamentos se transformavam em um zumbido. Aquele ruído surdo que me saía da garganta se foi fazendo cada vez mais forte, até que conseguiu invadir toda a sala e apagar as chamas.


O estrondo metálico da fechadura me tirou daquela lembrança de pesadelo. Uma mortiça luz começou a atravessar a escuridão e viajou ao longo da parede à medida que a porta se abria. Tanta luz me fez mal aos olhos. Apertei-os com força e me encolhi em um rincão. — Te mova rato, ou tiraremos o látego1! Dois guardiões das masmorras me engancharam uma cadeia ao colar de metal que tinha ao redor do pescoço e me obrigaram a me pôr de pé. Eu dava um tropeção e senti uma aguda dor ao redor da garganta. Enquanto me punha de pé sobre minhas trementes pernas, os guardiões me encadearam as mãos às costas e me puseram uns grilhões nos pés. Apartei os olhos da cegadora luz da tocha enquanto eles me conduziam pelo corredor principal das masmorras. Um ar rançoso me golpeou o rosto. Com os pés nus, avançava pisando em atoleiros de imundícies que preferia não identificar. Sem fazer caso dos gritos e os gemidos dos outros prisioneiros, os guardiões nem sequer se alteraram. Eu, pelo contrário, sentia que me detinha o coração com cada palavra. —Ho, ho, ho... vão pendurar a alguém. —Crash! Crack! Então, quão último tenha comido te escorrega pelas pernas. —Um rato menos que alimentar. —Me levem! Levem-me! Eu também quero morrer. Detivemo-nos. Através dos olhos meio fechados vi uma escada. Ao realizar o esforço de colocar o pé sobre o primeiro degrau, tropecei com as cadeias e caí. Os guardiões me levantaram. As duras bordas dos degraus de pedra me tiraram pedaços da carne, me levantando a pele de braços e pernas. Depois de que me fizeram passar por duas grossas portas de metal, jogaram-me no chão. Os raios do sol me feriram os olhos. Fechei-os tão forte como pude a tempo das lágrimas começarem a rolar pelas bochechas. Era a primeira vez que via a luz do sol em muitos meses. Chegou minha hora, pensei. Presa do pânico. Entretanto, o fato de saber que minha execução terminaria com minha miserável existência nas masmorras me tranqüilizou. Uma vez mais, me obrigaram a pôr-me de pé. Então, às cegas, segui os guardiões. O corpo me ardia pelas picadas dos insetos e por dormir sobre a palha suja. Empestada de ratos. Como só me davam uma pequena ração de água, não a desperdiçava em me lavar.

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Açoite ou chicote de cordas ou correias


Quando os olhos me ajustaram à luz, olhei ao meu redor. As paredes estavam nuas, sem os fabulosos adornos dourados nem as elaboradas tapeçarias com os que me haviam descrito os principais corredores do castelo. O frio chão de pedra estava muito gasto no centro. Certamente, avançávamos pelos corredores ocultos que só utilizavam serventes e guardas. Quando passamos por diante de duas janelas abertas, olhei por elas com uma fome que nenhum alimento poderia satisfazer. O brilhante verde esmeralda da erva me feria os olhos. As árvores se cobriam com capas de folhas. As flores emolduravam os atalhos e adornavam os vasos de barro. A brisa fresca cheirava como um muito caro perfume e a aspirei com vontade. Depois dos fedores ácidos de excrementos e de meu próprio aroma corporal, o sabor do ar era como um sorvo de bom vinho. Sua calidez me acariciava a pele, um contato muito tranqüilizador comparado com a constante umidade da fria masmorra. Supunha que o verão estava começando, o que significava que tinha estado encerrada naquela cela durante cinco estações. Só me tinha faltado uma para cumprir um ano inteiro. Parecia um período de tempo muito longo para alguém a quem se ia executar. Esgotada pelo esforço de ter que andar com os pés encadeados, conduziram-me por fim a um espaçoso gabinete. As paredes estavam cobertas de mapas do território da Ixia e das terras colindantes. Sobre o chão se acumulavam tantos livros que resultava quase impossível caminhar em linha reta. A sala se iluminava com velas cuja diferente longitude indicava suas horas de uso. Uma enorme mesa, coberta por completo de documentos e rodeada por meia dúzia de cadeiras, ocupava o centro da sala. Ao lado oposto do gabinete se via um homem sentado frente a um escritório. As suas costas, uma janela totalmente aberta, pela qual atravessava uma brisa que lhe revolvia ligeiramente o longo cabelo. Eu pus-me a tremer, o que fez com que as cadeias tilintassem. Por isso tinha podido ouvir das conversações que se produziam entre as masmorras, eu tinha deduzido que se levava aos prisioneiros ante um oficial para que confessassem seus delitos antes que ser pendurados. O homem ia embelezado com umas calças e uma camisa de cor negra. Esta última tinha bordados dois diamantes vermelhos no pescoço. Aquele uniforme correspondia ao dos conselheiros do Comandante. O rosto pálido daquele oficial carecia por completo de expressão. Enquanto aqueles olhos de safira me observavam, pareceram surpreender-se do que viam. De repente, fui consciente de meu aspecto. Olhei-me, o puído vestido vermelho da prisão e os sujos pés nus, endurecidos de amarelados calos. A pele suja se revelava através


dos farrapos do fino tecido. Meu comprido cabelo negro caía em gordurentas meadas. Empapada de suor, senti com todo rigor o peso de época como prisioneira. —Uma mulher? A seguinte prisioneira que vai se executar é uma mulher? — perguntou aquele homem com voz gélida. O meu corpo tremeu ao ouvir que ele pronunciava a palavra executar em voz alta. A calma que me havia possuído até então me abandonou. Se os guardiões não me tivessem estado sujeitando, eu teria desmoronado sobre o chão para pedir clemência. Os guardiões atormentavam a todos os que mostravam debilidade. O homem se atirou do negro cabelo. —Deveria ter tomado mais tempo para ler seu relatório — disse, fazendo um gesto com a mão dirigido aos guardiões— Podem partir. Quando os guardiões saíram, indicou-me que me aproximasse da cadeira que havia diante do escritório. Com cada um de meus movimentos o ruído das algemas ressonou na sala. O oficial abriu uma pasta e examinou as páginas. —Yelena, hoje poderia ser seu dia de sorte — disse. Afoguei um comentário sarcástico. Durante minha estadia nas masmorras tinha aprendido a não replicar. Em vez disso, inclinei a cabeça para evitar o contato visual com aquele homem. Ele guardou silêncio durante um momento. — Com boas maneiras e respeitosa. Está começando a me parecer uma boa candidata. A pesar da desordem que reinava no gabinete, o escritório estava muito ordenado. Além de minha pasta e de alguns utensílios de escritura, sobre a mesa só havia duas pequenas estátuas negras adornadas de reluzente prata, umas panteras esculpidas com incrível perfeição. —Te julgou e te tem culpado do assassinato do Reyad, o único filho do general Brazell. Isso explica por que Brazell esteve aqui esta semana e por que se mostrou tão interessado no calendário de execuções — disse o oficial, falando mais consigo mesmo que comigo. Ao ouvir o nome do Brazell, o medo se apoderou de mim. Animou-me o fato de recordar que, muito em breve, estaria fora de seu alcance para sempre.


O exército do território da Ixia tinha adquirido o poder fazia menos de uma geração, mas o regime tinha produzido leis muito estritas que se denominavam o Código do Comportamento. Durante tempos de paz, que, apesar de estar sob o poder militar, era a constante, uma conduta adequada não permitia matar a ninguém. Se uma pessoa cometia um assassinato, o castigo era a execução. A autodefesa ou a morte acidental não se consideravam desculpas aceitáveis. Se decidia-se que era culpado, o assassino era enviado a uma das masmorras do Comandante à espera de uma execução pública na forca. —Suponho que vais dizer-me que a sentença foi injusta. Que lhe tenderam uma armadilha ou que o matou em defesa própria — disse ele, recostando-se na cadeira, como esperando com uma esgotada paciência. —Não, senhor — sussurrei. Aquilo foi tudo o que pude dizer pela inatividade de minhas cordas vocais — Eu o matei. O homem se incorporou em sua poltrona e me olhou com dureza. Então, lançou uma gargalhada. —Isto poderia resultar muito melhor do que eu tinha planejado Yelena. Ofereço-te uma eleição. Pode ser executada ou te converter na nova provadora de comida do Comandante Ambrose. Seu último provador faleceu recentemente e precisamos ocupar a vacante. Eu o olhei boquiaberta. O coração me saltava no peito. Aquele homem devia estar brincando. Certamente estava rindo de mim. Que maneira de divertir-se! Ver como a esperança e a alegria se desenhavam no rosto do prisioneiro e logo as fazer pedaços enviando-o a soga2. Eu decidi seguir o jogo. — Só um inepto rechaçaria esse trabalho — pungente com um pouco mais de força naquela ocasião. — Bom, o posto é vitalício. O adestramento pode ser letal, depois de tudo, como se podem identificar os venenos na comida do Comandante se não se conhecer seu sabor? — perguntou, sem esperar resposta — Terá uma habitação no castelo para que possa dormir, mas a maior parte do dia estará com o Comandante. Não há dias livres. Não terá nem marido nem filhos. Alguns prisioneiros preferiram que os executassem. Ao menos, assim sabem exatamente quando vão morrer em vez de perguntar-se constantemente se for ser com o seguinte bocado — concluiu, apertando os dentes com um selvagem sorriso no rosto. 2

cordas de couro, com que se prende o animal em campo aberto


Falava a sério. Senti que tremia todo o meu corpo. Uma oportunidade para viver! Servir ao Comandante era melhor que as masmorras e imensamente melhor que a soga. Uma série de perguntas me ocorreu imediatamente. Eu era uma assassina confessa, como podiam confiar em mim? O que poderia me impedir de matar ao Comandante ou escapar? — Quem prova agora a comida do Comandante? — perguntei-lhe, temendo que se realizassem as outras perguntas me enviariam ao cadafalso. — Eu. Encontro-me ansioso por encontrar um substituto. Além disso, o Código de Comportamento especifica que se deve oferecer o trabalho a uma pessoa cuja vida está sentenciada. Incapaz de seguir sentada pus-me de pé e caminhei com muita dificuldade pelo gabinete, arrastando minhas cadeias. Os mapas das paredes mostravam posições militares estratégicas. Os títulos dos livros tinham que ver com a segurança e com técnicas de espionagem. O estado e a quantidade das velas sugeriam uma pessoa que trabalhava até altas horas da noite. Voltei-me de novo para olhar ao homem que ia embelezado com o uniforme de conselheiro de guerra. Tinha que ser Valek, o chefe da segurança pessoal do Comandante e o líder do imenso vigamento da inteligência do território da Ixia. — O que devo lhe dizer ao verdugo? — pergunto-me Valek. — Que não sou uma inepta.


Capítulo 2

Valek fechou a pasta. Dirigiu-se à porta com um passo tão elegante e ligeiro como o do tigre de neve quando atravessa uma magra capa de gelo. Os guardiões, que o esperavam no corredor, quadraram-se ante ele quando a porta se abriu. Valek falou com eles e os dois homens assentiram. Um dos guardiões se dirigiu a mim. Eu o olhei horrorizada. Retornar à masmorra não tinha formado parte da oferta do Valek. Poderia escapar? Examinei o gabinete. O guardião fez que eu desse a volta e tirou os grilhões e as cadeias que me tinham acompanhado desde que me prenderam. Sobre as bonecas ensangüentadas tinha duas marcas com a pele em carne viva. Toquei o meu pescoço, sentindo por fim a pele onde estava acostumada haver metal. Notei algo pegajoso nos dedos. Era sangue. A prova procurei a cadeira. O fato de estar liberada do peso das cadeias me produziu uma estranha sensação. Sentia-me como se fora a me deprimir ou a sair flutuando. Respirei profundamente até que passou a sensação de debilidade. Quando recuperei a compostura, precavi-me que Valek voltava a estar junto a seu escritório e que estava servindo duas taças. Uma porta aberta de um pequeno armário mostrava garrafas de estranhas formas e multicoloridas. Valek colocou a garrafa que tinha a mão no interior do armário e fechou a porta com chave. — Enquanto esperamos a Margg, pensei que te viria bem tomar uma taça — disse, me entregando uma delicada taça de estanho que continha um líquido de cor âmbar. Então, levantou a que ele tinha entre os dedos e realizou um brinde. — Pela Yelena, nossa última provadora de comida. Que sua vida seja mais larga que a de seu predecessor — comentou. Eu detive minha taça ao bordo dos lábios. —Tranqüila. É um brinde típico nestes casos. Eu dava um comprido gole da bebida. O suave líquido me queimou um pouco ao deslizar-se pela garganta. Durante um instante, acreditei que o estômago ia me revelar. Aquela era a primeira vez que tomava algo que não fora água. Em seguida, me tranqüilizei. Antes que eu pudesse lhe perguntar o que lhe tinha ocorrido exatamente ao anterior provador de comida, Valek me pediu que identificasse os ingredientes da bebida. Depois de tomar uma porção menor, repliquei:


— Pêssegos adoçados com mel. — Bem. Agora, dá outro gole. Nesta ocasião, deixa que o líquido se deslize pela garganta antes de tragá-lo. Eu fiz o que ele tinha pedido e me surpreendi ao captar um ligeiro aroma cítrico. — Laranja? — Assim é. Agora, faz gargarejos. — Gargarejos? — perguntei. Ele assentiu. Sentindo-me como uma idiota, fiz gargarejos com o resto de minha bebida. Então, estive a ponto de cuspi-la. — Laranjas podres! A pele que havia ao redor dos olhos do Valek se enrugou quando ele soltou uma gargalhada. Tinha um rosto forte, anguloso, como se alguém o tivesse esculpido de uma folha de metal. Entretanto, suavizava-se muito quando sorria. Entregou-me sua taça e me pediu que repetisse o experimento. Com certa trepidação, tomei um sorvo e, uma vez mais, detectei o suave aroma a laranjas. Preparei-me para o sabor rançoso e fiz gargarejos com a bebida do Valek. Senti-me aliviada ao ver que os gargarejos só contribuíam a acrescentar a essência de laranja. —Melhor? —perguntou-me Valek enquanto tomava a taça vazia. —Sim. Ele tomou assento e abriu minha pasta uma vez mais. Tomou a pluma e, enquanto escrevia, seguiu conversando comigo. — Acaba de tomar sua primeira lição na prova de comida. Sua bebida estava enfeitada com um veneno chamado Pó de Mariposa. O meu não. O único modo de detectar o Pó de Mariposa em um líquido é fazendo gargarejos. Esse sabor a laranjas podres que notaste era o veneno. — É letal? — perguntei, me pondo de pé. — Uma dose o suficientemente grande poderia te matar em dois dias. Os sintomas não se notam até o segundo dia, mas, para então, já é muito tarde. — É letal a dose que eu tomei? —quis saber, contendo o fôlego. — É obvio — Se não, não teria podido saborear o veneno. Senti náuseas no estômago e comecei a dar arcadas. Tratei de me conter para não ter que me enfrentar à indignidade de vomitar sobre o escritório do Valek. Valek levantou o olhar dos papéis e estudou meu rosto.


—Adverti-te que o adestramento seria perigoso, mas eu não te daria um veneno ao que seu corpo tivesse que enfrentar-se enquanto sofre de má nutrição. O Pó de Mariposa tem um antídoto — acrescentou, me mostrando um pequeno vidro que continha um líquido branco. Voltei a me desmoronar sobre minha cadeira e suspirei. Então, notei que o rosto do Valek

tinha

recuperado

sua

aparência

pétrea.

Compreendi

que

não

me

tinha

devotado o antídoto. —Em resposta à pergunta que não perguntaste, mas que deveria ter feito, assim — disse, me mostrando o pequeno vidro — é como evitamos que o provador do Comandante escape. Eu o olhei fixamente, tratando de compreender as implicações daquelas palavras. — Yelena, confessaste um assassinato. Seríamos uns néscios ao permitir que servisse ao Comandante sem garantias. Os guardas vigiam ao Comandante a todo o momento, por isso não é muito provável que pudesse te aproximar dele com uma arma. Para o resto dos modos de vingança, utilizamos o Pó de Mariposa — afirmou Valek, tomando o vidro com o antídoto e fazendo girar o líquido à luz do sol — Necessita uma dose diária disto para seguir com vida. O antídoto evita que o veneno lhe mate. Enquanto te apresente todas as manhãs em meu gabinete, dar-te-ei o antídoto. Se não te apresentar ante mim uma manhã, estará morta ao dia seguinte. Se cometer um delito ou um ato de traição, enviará às masmorras até que o veneno acabe contigo. Asseguro-te que eu trataria de evitar esse destino se estivesse em seu lugar. O veneno causa dores de estômago muito fortes e vômitos incontroláveis. Antes que eu pudesse assimilar por completo a situação em que me encontrava, Valek olhou por cima de mim. Eu dava a volta e vi uma mulher muito robusta que, vestida com o uniforme de ama de chaves, acabava de entrar pela porta. Valek a apresentou como Margg, a pessoa que se ocuparia de minhas necessidades básicas. Margg voltou a sair pela porta, esperando que eu a seguisse. Eu olhei uma vez mais o vidro que Valek tinha deixado sobre o escritório. —Retorna a este gabinete amanhã pela manhã. Margg te indicará. Evidentemente, aquilo tinha sido uma despedida, mas eu me detive na porta. Apesar das muitas perguntas que se amontoavam nos lábios, decidi tragar isso. Pesavam-me como pedras no estômago quando fechei a porta e saí correndo atrás de Margg, quem não se dignou a me esperar.


Margg não diminuiu o passo. Eu comecei a ofegar pelo esforço de alcançá-la. Tratei de recordar os corredores que atravessávamos, mas me rendi muito em breve e centrei minha atenção em Margg, sua larga saia negra parecia flutuar sobre o chão. O uniforme das amas de chaves incluía um avental branco e uma camisa negra. O avental incluía duas filas verticais de pequenos rombos vermelhos que se conectavam em seus extremos. Quando Margg por fim se deteve, diante dos banhos, eu tive que me sentar no chão. A cabeça não deixava de me dar voltas. — Empresta — comentou Margg, enrugando o rosto. Então, indicou ao lado mais afastado dos banhos de um modo que indicava que estava acostumada a que a obedecesse — Lave-Te duas vezes e logo te enxágüe trarei um uniforme. Então abandonou a sala. O incrível desejo de tornar um banho me proporcionou uma energia que não acreditava ter. Com força, despojei-me do uniforme da prisão e me dirigi a toda velocidade à zona de lavagem. A água quente começou a cair em cascata quando abri o conduto que tinha por cima da cabeça. O castelo do Comandante estava equipado com tanques de água quente que estavam localizados um piso por cima dos banhos, um luxo que nem sequer a extravagante casa solariega do Brazell tinha. Permaneci de pé um comprido tempo, esperando erradicar assim de minha cabeça todo pensamento de venenos. Obedientemente lavei o corpo e o cabelo duas vezes. O pescoço, as bonecas e os tornozelos me ardiam com o sabão, mas não me importou. Esfreguei e esfreguei os pontos de sujeira que se via em minha pele, me detendo só quando me precavia de que eram hematomas. Sentia-me completamente alheia ao corpo que havia baixo aquela cascata. A dor e a humilhação de ser presa e encerrada tinham sido infligidas ao meu corpo, mas minha alma o tinha abandonado durante os dois últimos anos que tinha vivido na mansão do Brazell. De repente, apresentou-se ante mim uma imagem do filho do Brazell. O formoso rosto do Reyad distorcido pela ira. Dava um passo atrás, levantando instintivamente as mãos para me proteger dele. A imagem desapareceu, mas eu fiquei tremendo. Custou-me um grande esforço me envolver e me secar com uma toalha. Tratei de me centrar em procurar um pente em vez de nas feias lembranças que despertava em mim o rosto de Reyad. Apesar de que estava limpo, meu enredado cabelo resistia ao pente. Enquanto tratava de encontrar um par de tesouras, de soslaio vi que havia alguém mais nos banheiros. Olhei-o. O que parecia um cadáver me devolveu o olhar. Os olhos verdes eram os únicos


sinais de vida naquele desajeitado rosto. Umas pernas magras como paus pareciam incapazes de sustentar o resto do corpo. Quando reconheci de quem se tratava, senti a gélida quebra de onda do medo. Era eu. Apartei os olhos do espelho, dado que não tinha desejos de comprovar os estragos que tinham causado as masmorras. Covarde, pensei. Então, com decisão, voltei a me olhar. Mentalmente, tratei de religar meu corpo e meu espírito. Por que acreditava que minha alma retornaria se meu corpo seguia sem ser meu? Pertencia-lhe à Comandante Ambrose, para que ele pudesse utilizá-lo como ferramenta para filtrar e provar venenos. Apartei o olhar. Com o pente, comecei a me arrancar os nós de cabelo. Quando consegui alisá-lo, penteei-me com uma singela trança ao longo das costas. Não fazia muito tempo que quão único tinha desejado era ter um uniforme limpo antes que me executassem e, naqueles momentos, estava desfrutando dos famosos banhos quentes do Comandante. —Já está bom — rugiu Margg, me tirando de meu devaneio — Aqui tem seus uniformes. Veste-te. O rosto da ama de chaves irradiava desaprovação. Enquanto me secava, sentia sua impaciência. Junto com os objetos interiores, o uniforme do provador de comida consistia em umas calças negras, um largo cinturão de cetim vermelho e uma camisa de cetim vermelho com uma linha de rombos negros unidos os uns aos outros sobre as mangas. Evidentemente, as roupas estavam pensadas para um homem. Eu, que estava mal nutrida e que media pouco mais de metro e meio, parecia uma menina disfarçada com a roupa de seu pai. Rodeei-me a cintura três vezes com o cinturão e arregacei as mangas e as pernas da calça. Margg lançou um bufo. —Valek só me disse que te desse de comer e que te mostrasse sua habitação, mas acredito que passaremos primeiro pela costureira — disse Margg. Enquanto abria a porta, franziu os lábios — Também necessitará umas botas. Eu segui Margg Obedientemente, como se fosse um cachorrinho perdido à costureira. Dilana pôs-se a rir ao ver meu aspecto. Tinha o rosto oval e um cabelo loiro e encaracolado que lhe emoldurava o rosto como se tratasse de um halo. Os olhos cor mel e umas largas pestanas acrescentavam sua beleza. — As moças de estábulo levam às mesmas calças e as donzelas da cozinha as camisas vermelhas — disse quando conseguiu sossegar as risadas. Então, arreganhou a


Margg por não ter acontecido o tempo suficiente para me encontrar um uniforme algo melhor. Margg franziu ainda mais os lábios. Como me tratava mais como se fora uma avó em vez de uma moça, os cuidados de Dilana me emocionaram. Imaginei que poderíamos ser amigas. Senti desejos de me sentir perto dela. Depois de anotar minhas medidas. Dilana rebuscou entre os montões de roupagens vermelhas, negros e brancos que tinha por toda a estadia. Todos os que trabalhavam na Ixia deviam levar uniforme. Os serventes e guardiões do castelo do Comandante levavam uma variedade de roupas de cor vermelha, negro e branco, adornadas com rombos nas mangas das camisas ou nas calças. Os conselheiros e os oficiais de maior graduação normalmente iam completamente vestidos de negro com pequenos rombos vermelhos bordados no pescoço para mostrar sua fila. O sistema de uniforme se estabeleceu quando o Comandante se fez com o poder para que todo mundo soubesse com apenas uma olhada com quem estava tratando. O vermelho e o negro eram as cores do Comandante Ambrose. O território da Ixia se viu separado em oito Distritos Militares, cada um dos quais estava governado por um general. Os uniformes dos oito distritos eram idênticos aos do Comandante à exceção da cor. Um ama de chaves que fora vestida de negro com pequenos rombos morados no avental pertencia ao Distrito Militar 3 ou DM-3. —Acredito que estas roupas lhe sentarão melhor — disse Dilana, me entregando vários objetos ao tempo que me indicava a intimidade de um biombo que havia ao outro lado da sala. Enquanto estava me trocando, ouvi que a costureira dizia: —Necessitará umas botas. Embelezada já com meu novo uniforme e me sentindo menos ridícula, recolhi o velho uniforme e o dava a Dilana. —Estas roupas deveram pertencer ao Oscove, o antigo provador de comida — comentou Dilana. Uma expressão de tristeza se apoderou de seu rosto. Então, sacudiu a cabeça como se queria livrar-se de um pensamento pouco desejado. Todas minhas fantasias de amizade me abandonaram repentinamente. Acabava de compreender que ser amiga do provador do Comandante representava um grande risco emocional. Senti uma grande amargura interior. Uma profunda sensação de solidão se apoderou de mim ao pensar em Mai e Carra, que ainda viviam na casa solariega do Brazell.


Então, Dilana me conduziu a uma cadeira. Depois de ajoelhar-se no chão, colocoume umas meias três-quartos e um par de botas. Estas estavam fabricadas de uma suave pele negra. Chegavam-me até meia perna, onde a pele se dobrava para baixo. Dilana colocou as pernas das calças de minhas calças nas botas e me ajudou a me pôr de pé. Não tinha levado classe alguma de calçado desde fazia muito tempo, por isso esperei que me roçassem. Entretanto, as botas se acomodavam a meus pés perfeitamente. Sorri a Dilana. Aquelas eram os melhores calçados que tinha levado nunca. Dilana me devolveu o sorriso e disse: —Sempre sei escolher a talha do calçado adequado sem ter que medir. —Pois te equivocou nas do pobre Rand, mas ele está muito apaixonado por ti para queixar-se. Agora vai coxeando pela cozinha — replicou Margg. —Não lhe faça caso — me disse Dilana— Margg, acaso não tem trabalho que fazer? Parte daqui ou me meterei em suas habitações e te cortarei todas as saias — acrescentou, nos empurrando para a porta com bom humor. Margg me levou ao comilão dos serventes e me serviu pequenas porções de sopa e pão. A sopa estava divina. Depois de terminar, pedi mais. —Não. Muita comida ficaria doente — foi sua resposta. A contra gosto, deixei meu prato sobre a mesa e segui Margg à minha habitação— Esteja disposta para começar a trabalhar à saída do sol. Uma vez mais, observei como se afastava. Minha pequena habitação continha uma estreita cama, com um único colchão manchado sobre um somier de metal, um singelo escritório de madeira e uma cadeira, um urinol, um armário, um abajur de azeite, uma pequena estufa de madeira e uma janela fechada à cal e canto. As paredes cinza eram de pedra e careciam de algum adorno. Provei o colchão. Era muito duro, mas supunha uma grande melhora comparado com minha masmorra. Não obstante, encontrei-me um pouco desiludida. Não havia nada na habitação que sugerisse comodidade. Com a mente cheia das imagens do rosto pétreo do Valek e da censura das palavras do Margg, desejei com todas minhas forças ter um travesseiro ou uma manta. Sentia-me como uma menina perdida, que ansiava algo que abraçar, algo suave que não terminasse me fazendo dano. Depois de pendurar o resto de meu uniforme no armário, aproximei-me da janela. Tinha um batente o suficientemente amplo para poder sentar-se. As venezianas estavam fechadas, mas os fechos estavam no interior. Com mãos trementes, abri-os de par em par. A


repentina luz me fez piscar. Protegi meus olhos e observei a cena que se desenvolvia ante mim com incredulidade. Estava no primeiro piso do castelo! Não o estou acostumada, estava a pouco mais de metro e meio mais abaixo. Entre minha habitação e os estábulos estavam os canis do Comande e o pátio de exercícios para os cavalos. Aos moços de estábulo e aos preparadores dos cães não lhes importaria que eu me escapasse. Poderia me deixar cair sem esforço algum e partir. Resultava muito tentador, à exceção de que estaria morta em dois dias. Talvez em outra ocasião, quando dois dias de liberdade compensassem o preço que terei que pagar por eles. Ao menos podia ter esperança.


Capítulo 3

O látego de Reyad me rasgou a pele, me cortando a carne com uma profunda dor. — se mova — me ordenou. Eu tratei de esquivá-lo sem consegui-lo, dado que me impedia uma corda que tinha atada à boneca e que ancorava a um poste que havia no centro da habitação. — Te mova mais rápido! Segue te movendo! —gritava Reyad. O látego estalava uma e outra vez. Rasgada a camisa que eu levava posta não me oferecia amparo alguma da ardência do corpo. De repente, uma fresca e tranqüilizadora voz penetrou em meu cérebro. —Parte — sussurrou — Envia a mente a um lugar longínquo, a um lugar quente e acolhedor. Deixe ir... A sedosa voz não pertencia nem ao Reyad nem ao Brazell. A um salvador, talvez? Uma maneira muito fácil de escapar à tortura, tentadora, mas decidi esperar outra oportunidade. Decidida, concentrei-me em evitar o látego. Quando o esgotamento me reclamou, meu corpo começou a vibrar de modo próprio. Como um colibri fora de controle, comecei a dar voltas pela habitação, tratando de evitar o látego. Despertei na escuridão, empapada de suor. O enrugado uniforme me rodeava com força ao corpo. A vibração de meus sonhos se viu substituída por um tamborilar, antes de ficar adormecida, tinha trancado a porta com a cadeira para impedir que alguém pudesse entrar. A cadeira se agitava com cada golpe. —Estou acordada — gritei. O tamborilar cessou. Quando abri, vi que Margg franzia o cenho com um abajur nas mãos. Apressei-me a trocar de uniforme e me reuni com ela no corredor — Acreditava que havia dito quando saísse o sol. —Já saiu o sol — respondeu ela com desaprovação. Segui Margg através do labirinto dos corredores do castelo à medida que o dia começava a clarear. Minha habitação estava orientada a oeste, o que me impedia de ver o sol da manhã. Margg apagou o abajur justo quando o aroma de uns pasteizinhos doces começou a encher o ar. Aspirando com força, perguntei com voz esperançada e quase suplicante: —Leva-me a tomar o café da manhã? —Não. Valek te dará de comer.


A imagem de um café da manhã enfeitado com veneno fez maravilhas na hora de me tirar o apetite. O estômago me esticou ao recordar o Pó de Mariposa do Valek. Quando chegamos a seu gabinete, tinha-me convencido de que estava a ponto de me desmoronar, derrotada pelo veneno se não recebia logo o antídoto. Quando entrei na sala, Valek estava colocando uns pratos de fumegante comida. Tinha limpado uma parte do escritório e os papéis se amontoavam em desordenadas pilhas. Indicou-me uma cadeira. Eu tomei assento, procurando na mesa o pequeno vidro do antídoto. —Espero que você... Valek estudou atentamente meu rosto. Eu lhe devolvi o olhar, tratando de não me acovardar baixo aquele escrutínio. —Resulta surpreendente a diferença que podem supor um banho e um uniforme — acrescentou, mordiscando com gesto ausente uma parte de bacon — Terei que recordá-lo. Poderia me resultar útil no futuro — acrescentou. Então, colocou dois pratos de uma mescla de presunto e ovos ante mim— Comecemos. Sentindo-me um pouco enjoada e avermelhada, eu lhe espetei: —Preferiria começar com o antídoto. Outra larga pausa por parte do Valek fez que me reanimasse em meu assento. —Não deveria sentir ainda nenhum sintoma. Não chegarão até primeiras horas da tarde. Apesar de tudo, encolheu-se de ombros e se dirigiu ao armário. Com uma pipeta, extraiu a medida exata do líquido branco de uma grande garrafa e logo voltou a guardar sob chave o antídoto no armário. Deveu resultar evidente o interesse que me produzia o lugar onde guardava a chave porque Valek utilizou um gesto da mão para fazê-la desaparecer. Continuando, entregou-me a pipeta e se sentou no lado oposto da mesa. — Beba-lhe isso para que possamos começar com as classes de hoje — disse. Esvaziei o conteúdo da pipeta na boca com um gesto de repugnância ante o amargo sabor. Então, Valek me tirou a pipeta da mão e a trocou por uma jarra de cor azul. —Cheira isto. A jarra continha um pó branco, que parecia açúcar, mas que cheirava a madeira de rosa. Então, Valek assinalou os dois pratos que tinha colocado frente a mim e me pediu que escolhesse o que tinha sido envenenado. Olisque é a comida como um cão que procurava a sua presa. Do prato da esquerda emanava um ligeiro aroma de madeira de rosa.


—Bem. Se notares esse aroma na comida do Comandante, rechaça-a imediatamente. Esse veneno se chama Tigtus e um único grão pode matar em menos de uma hora — me explicou Valek, apartando a comida envenenada— Agora, tome seu café da manhã — acrescentou, indicando o outro prato— Necessitará forças. Passei-me o resto do dia cheirando venenos até que a cabeça começou a me dar voltas. A multidão de nomes e aromas começou a me confundir, por isso pedi ao Valek papel, pluma e tinta. Ele deu um coice. —Não sei por que não faz mais que me surpreender. Teria que ter recordado que o general Brazell se ocupa da educação de seus órfãos — disse. Valek entregou uma caderneta de papel, uma pluma e tinta—

Leva isso a sua habitação. Já trabalhamos

bastante por hoje. Em silêncio, amaldiçoei-me por haver recordado ao Valek por que eu ia ser a seguinte pessoa em ser executada. O duro e implacável olhar do Valek revelava seus pensamentos. Depois de que Brazell me recolhesse das ruas, alimentasse-me e me educasse, eu tinha pago sua caridade comigo assassinando a seu único filho. Sabia que Valek jamais acreditaria a verdade sobre o Brazell e Reyad. O orfanato do general Brazell era objeto do ridículo por parte do resto dos generais. Pensavam que Brazell se abrandou depois da revolução na Ixia fazia quinze anos. Aquela imagem convinha ao Brazell. O fato de que o considerassem como um benfeitor provocava que pudesse continuar sem que ninguém o questionasse com sua administração do Distrito Militar 5. Ao chegar à porta do gabinete do Valek duvidei. Pela primeira vez, dava-me conta das três complexas fechaduras que havia na porta. Permaneci ali, as tocando brandamente, até que Valek me perguntou: —E agora o que? —Não sei onde está minha habitação. —Pergunta à primeira ama de chaves ou à primeira donzela que te encontre — disse ele, como se estivesse falando com uma menina atrasada— Dava que está na asa oeste dos serventes, na planta baixa. Mostrar-lhe-ão isso. A donzela com a que me encontrei era muito mais faladora que Margg, e eu me aproveitei plenamente de sua boa natureza. Acompanhou-me à lavanderia para que me dessem lençóis para minha cama. Então, eu fiz que me mostrasse onde estavam os banhos e a habitação da costureira. Algum dia, os uniformes de Dilana me poderiam vir muito bem.


Uma vez em minha habitação, abri as venezianas para deixar que entrasse a luz do sol, que estava começando a ficar no horizonte. Sentei-me frente a meu escritório e escrevi notas detalhadas sobre o que tinha aprendido aquele dia, junto com um mapa muito pouco exato da asa dos serventes. Considerei sair a explorar um pouco mais o castelo, mas decidi que Valek tinha razão. Precisava recuperar forças. Já teria tempo de sair a explorar mais tarde. Durante as seguintes duas semanas o adestramento prosseguiu de um modo tão similar ao primeiro dia que me deixei cair na rotina. Depois de quatorze dias de cheirar venenos, descobri que meu sentido do olfato se desenvolveu muito. Então, Valek decidiu que eu estava preparada para começar a saborear venenos. —Começarei com o mais mortal — disse —

Se não morre com este, outros

tampouco lhe matarão. Não quero desperdiçar todo meu tempo te adestrando para ver que termina morrendo — acrescentou. Então, colocou uma garrafa vermelha em cima do escritório— É muito desagradável. Afeta ao corpo imediatamente — comentou. Os olhos lhe iluminaram enquanto admirava o veneno— Chama-se “Tomemos uma taça, meu amor” ou “Meu amor” para abreviar, porque este veneno foi utilizado ao longo da história por algemas sem coração — me explicou, enquanto servia duas gotas do veneno em uma fumegante taça—

Uma dose maior te mataria irremediavelmente. Com uma menor, existe a

possibilidade de que sobreviva, mas terá alucinações, voltar-te-á paranóica e se sentirá completamente desorientada durante os próximos dias. —Valek, por que tenho que provar “Meu amor” se tiver imediatos resultados? Não é precisamente esse o trabalho de um provador de comida? Eu provo a comida do Comandante, caio-me ao chão e morro. Fim da história. Tratei de passear pelo gabinete, mas não fazia mais que me tropeçar com os montões de livros. Cheia de frustração, dava-lhe uma patada a dois montões e os esparramei pelo chão. O olhar de Valek me atravessou, me arrebatando a estranha sensação de satisfação que eu tinha obtido daquela patada. —O trabalho de um provador de comida é muito mais complexo que isso — me explicou Valek, apartando o cabelo do rosto — O fato de ser capaz de identificar que veneno se esconde na comida do Comandante pode me conduzir ao envenenador — afirmou, me entregando a taça — Embora só tenha um décimo de segundo de vida para poder gritar o nome do veneno, isso poderia reduzir bastante a lista de suspeitos. Por exemplo, só há um número muito limitado de assassinos que poderiam utilizar o “Meu amor”. O veneno se


prepara em Sitia, as terras do sul. Antes que os militares assumissem o poder, resultava fácil consegui-lo. Agora, com o fechamento da fronteira sul, só há um punhado de pessoas que tenham o suficiente dinheiro para poder comprá-lo ilegalmente. Valek se dirigiu ao montão de livros que eu tinha esparramado pelo chão e começou a recolhê-los. Seus movimentos eram tão graciosos que me perguntei se teria sido bailarino. Entretanto, suas palavras me sugeriam que seus fluidos gestos eram os de um assassino muito preparado. —Yelena, seu trabalho é muito importante. Por isso passo tanto tempo te adestrando. Um assassino ardiloso pode observar a um provador de comidas durante dias para descobrir seus costumes. Por exemplo, poderia dar o caso de que o provador sempre corte uma parte de carne do lado esquerdo ou que não remova jamais uma bebida. Alguns venenos se inundam no fundo das taças. Se o provador só beber da parte superior, o assassino sabe perfeitamente onde colocar o veneno para acabar com sua vítima — concluiu, terminando também de colocar os livros — Quando beber o veneno, Margg te levará a seu quarto e se ocupará de ti. Eu darei a ela sua dose diária do antídoto do Pó de Mariposa. Eu observei a fumegante taça e tomei entre as mãos. O calor que emanava dela me esquentou os dedos. Quando Margg entrou na sala, pareceu-me que era como se o verdugo tivesse terminado de colocar a soga e se dispusera a atirar da alavanca. Deveria me sentar ou me tombar? Olhei a meu redor e não vi nada. Senti um formigamento nos braços e me dava conta de que tinha estado contendo a respiração. Então, levantei a taça e, depois de realizar um gesto a modo de saudação militar, tomei seu conteúdo. — Maçãs amargas — disse. Valek assentiu. Só ficou tempo de voltar a colocar a taça sobre a mesa. Então, meu mundo começou a desmoronar-se. O corpo do Margg parecia ondular-se para mim. Sua cabeça se voltou enorme e começaram a lhe brotar flores das conchas dos olhos. Um instante mais tarde, seu corpo ocupou todo o gabinete ao tempo que lhe encolhia a cabeça. Senti movimento. As paredes cinza tinham braços e pernas com os que tratavam de me agarrar, de me utilizar em sua luta contra o chão. De debaixo de meus pés surgiam espíritos de cor cinza que pareciam significar a liberdade. Tratei de apartar a aquela coisa em que se converteu Margg, mas ela me envolvia, me colocando os dedos nos ouvidos e me golpeando a cabeça.


—Assassina — sussurrava — Zorra rasteira. Provavelmente lhe degolou enquanto dormia. O modo mais fácil de matar. Desfrutou vendo como o sangue ia empapando os lençóis? Não é mais que um rato. Agarrei a aquela voz, tratando de evitar que seguisse falando, mas se converteu em dois soldados de brinquedo verdes e negros que me agarraram com força. — Morrerá do veneno. Se não, lhes podem ficar isso — disse o que parecia ser Margg aos soldados. Eles empurraram a um escuro poço. Inundei-me em sua escuridão. O fedor a vômito e a excrementos saudou quando recuperei a consciência. Eram os inconfundíveis aromas das masmorras. Incorporei-me, perguntando como tinha retornado a minha antiga cela. As náuseas reclamaram minha atenção. Às pressas, procurei a escarradeira e me encontrei com a pata de metal da cama, a que me aferrei enquanto umas secas arcadas convulsionavam meu corpo. Quando cessaram, apoiei-me contra a parede, agradecida de estar no chão de minha habitação e não de volta às masmorras. As camas eram um luxo que não se incluía nas habitações subterrâneas. Depois de reunir a força necessária para me levantar, localizei e acendi meu abajur. Tinha o rosto coberto de vômito seco. As calças e a camisa estavam completamente empapadas e fediam. Os conteúdos líquidos de meu corpo se reuniram em um atoleiro sobre o chão. “Efetivamente, Margg se ocupou que mim”, pensei com sarcasmo. Ao menos, tinha sido prática. Se me tivesse convexo na cama, teria quebrado o colchão. Dava as graças ao destino por ter sobrevivido ao veneno e por haver despertado em meio da noite. Incapaz de suportar o uniforme empapado nem um minuto mais, dirigi-me para os banhos. A minha volta, umas vozes me detiveram antes que alcançasse o corredor que conduzia a minha habitação. Apaguei meu abajur com um rápido movimento e apareci pela esquina. Diante de minha porta havia dois soldados. A suave luz da lanterna que levavam refletia o verde e o negro de seus uniformes. Eram as cores do Brazell.


Capítulo 4

—Crê que deveríamos comprovar se estiver morta? —perguntou um dos soldados do Brazell. Tinha o abajur contra a porta de minha habitação. —Não. Essa ama de chaves vem a vê-la todas as manhãs e lhe dá uma poção. Já nos inteiraremos logo. Além disso, aí dentro fede — respondeu o outro soldado, agitando uma mão diante do nariz. —Sim. Se esse aroma não nos tirar as vontades, o fato de ter que tirá-la esse uniforme cheio de vômito faria vomitar a qualquer homem. Embora... Poderíamos levá-la aos banhos, lavá-la e nos divertir um pouco com ela antes que morra — comentou o soldado que levava o abajur. —Não. Alguém poderia nos ver. Se sobreviver, teremos tempo de sobra para lhe tirar o uniforme. Será como abrir um presente e te asseguro que será muito mais entretido quando estiver acordada — repôs o segundo com uma expressão lasciva no rosto. Os dois soldados puseram-se a rir e puseram-se a andar. Muito em breve, tinham desaparecido. Eu me aferrei à parede e me perguntei se o que acabava de ver tinha sido real. Estaria tendo ainda alucinações paranóicas? Sentia a cabeça como se a tivesse tido muito tempo em uma tina de água. Além disso, meu corpo não tinha deixado de experimentar em nenhum momento enjôos e náuseas. Passou muito tempo desde que partiram os soldados até que eu consegui reunir o valor de retornar a minha habitação. Abri a porta de par em par e iluminei a estadia com o abajur, me assegurando de que a luz chegava a todos os rincões e debaixo da cama. O único que me atacou foi um fedor azedo e desagradável. Entre arcadas, consegui abrir as venezianas e assim poder respirar baforadas de ar fresco e purificador. Olhei o desagradável atoleiro que havia no chão. Quão último desejava era ter que limpar tudo aquilo, mas sabia que não poderia dormir enquanto tivesse que respirar aquele desagradável aroma. Depois de procurar e reunir alguns úteis de limpeza e ter que me deter pelas náuseas que sentia de vez em quando, consegui limpar o chão sem me deprimir. Esgotada, tombei-me por fim na cama. O colchão parecia cheio de vultos. Dava-me a volta, esperando encontrar uma postura mais cômoda. E se retornassem os soldados do Brazell? Dormindo na cama, eu seria uma presa fácil. Tinha-me lavado, por isso não haveria


necessidade de me levar aos banhos. A habitação cheirava a desinfetante e me tinha esquecido trancar a porta com a cadeira. Minha imaginação jogou asas, representando ante meus olhos uma nítida cena de mim atada à cama, indefesa enquanto os soldados me despiam lentamente para incrementar sua antecipação e saborear meu temor. As paredes de minha habitação pareceram cobrar vida. Sem poder me conter, saí ao corredor, quase esperando me encontrar com os soldados do Brazell frente a minha porta. Entretanto, o corredor estava escuro e deserto. Quando tratei de voltar a entrar em minha habitação, senti-me como se alguém me apertasse um travesseiro contra o rosto. Não podia atravessar a soleira. Minha habitação me parecia uma armadilha. Seria o efeito da paranóia que provocava o “Meu amor” ou meu próprio sentido comum? A indecisão me manteve na porta até que o estômago começou a me grunhir. Guiada por minha própria fome, fui em busca de comida. Esperando encontrar a cozinha vazia, levei uma grande desilusão ao ver um homem muito alto, embelezado com um uniforme branco com dois diamantes negros no peitilho da camisa. Estava murmurando para si enquanto examinava os fornos. A perna esquerda não lhe dobrava. Tratei de sair sem que ele me visse, mas não o consegui. —Está me procurando? —perguntou-me. —Não! — disse eu — Estava... Estava procurando algo de comer — respondi. O homem franziu o cenho e apoiou seu peso sobre a perna boa enquanto estudava meu uniforme. Pensei que era muito magro para ser cozinheiro, mas levava o uniforme correspondente e, além disso, só um cozinheiro estaria levantado tão cedo. Tinha uma beleza sutil, com olhos marrons claros e cabelo da mesma cor. Perguntei-me se seria Rand, o homem de quem Margg tinha falado com relação à Dilana. —Te sirva você mesma — disse me assinalando duas barras de pão recém tiradas do forno — Acabo de ganhar o salário de uma semana graças a ti. —Perdoe, mas, como é isso possível? — perguntei, enquanto cortava uma boa parte de pão. —É a nova provadora de comida, não? — quis saber. Eu assenti— Todo mundo sabe que Valek te deu uma dose de “Meu amor”. Eu apostei o salário de uma semana a que você sobreviveria — acrescentou, enquanto tirava de trás barras de pão de um dos fornos— Foi um grande risco, dado que você é a provadora mais magra e miúda das que nunca houve. Quase todo mundo apostou a que não sobreviveria, inclusive Margg. O cozinheiro começou a rebuscar em um dos armários.


—Toda — acrescentou, me entregando uma parte de manteiga— Agora, prepararte-ei uns pasteizinhos doces. Então, tirou o resto dos ingredientes e começou a mesclá-los. —Quantos mais houve? —perguntei entre bocado e bocado de pão com manteiga. Com as mãos em constante movimento, o cozinheiro respondeu: —Cinco, desde que o Comandante Ambrose leva no poder. Ao Valek adora os venenos. Envenenou a muitos dos inimigos do Comandante e gosta de seguir praticando. Já sabe, pôr a prova aos provadores da comida do Comandante de vez em quando, para assegurar-se de que não se relaxaram muito. As palavras do cozinheiro me provocaram um calafrio pelas costas. Senti-me como se meu corpo se liquidificou e vertido em um daqueles gigantes bules. Eu só era um punhado de ingredientes que mesclar, cozinhar e utilizar. Quando o cozinheiro verteu a mescla na churrasqueira ardendo, o sangue me chispou ao uníssono dos pasteizinhos. —Pobre Oscove... Jamais gozou das simpatias do Valek. Punha-o a prova constantemente até que ele já não pôde seguir agüentando a pressão. A causa oficial de sua morte foi o suicídio, mas eu acredito que Valek o matou. Volta. Observei como o cozinheiro dava a volta distraidamente aos pasteizinhos com um giro de boneca. Meus músculos pareciam tremer em sincronia com o som que os pasteizinhos produziam ao cozinhar-se. Eu estava preocupada com o Brazell quando um mau passo com o Valek poderia... Volta. Eu teria desaparecido. Provavelmente teria um par de venenos reservados se por acaso decidia substituir ao provador. Olhei por cima do ombro e imaginei ao Valek entrando na cozinha para me envenenar o café da manhã. Nem sequer podia desfrutar de meu batepapo com um cozinheiro sem que me recordasse que o fato de saborear comida que poderia ter sido envenenada não era o único perigo de meu novo trabalho. O cozinheiro entregou um prato cheio de pasteizinhos doces, tirou três barras de pão do forno e voltou a encher os moldes de massa. Aqueles pasteizinhos me pareciam uma delícia tal que os devorei apesar da estranha sensação que tinha no estômago. —Oscove era meu amigo. Era o melhor provador de comida que o Comandante teve jamais. Estava acostumado a vir a minha cozinha todas as manhãs depois de tomar o café da manhã para me ajudar a inventar novas receitas. Tenho que manter meus pratos interessantes, porque se não o Comandante começará a procurar um novo cozinheiro. Sabe ao que me refiro?


Eu assenti e me limpei a manteiga que tinha no queixo. Então, o cozinheiro estendeu a mão. —Meu nome é Rand. —Yelena — disse eu, estreitando-lhe a mão.

Detive-me junto a uma janela aberta quando me dirigia ao gabinete do Valek. O sol estava saindo por cima das montanhas da Alma, ao leste do castelo. As cores do céu pareciam uma pintura danificada, como se um menino tivesse vertido água sobre um tecido. Eu deixei que meus olhos gozassem com aquela vibrante amostra de vida e inalei o ar fresco da manhã. Todas as flores tinham florescido e muito em breve a fresca brisa da manhã se esquentaria até resultar mais cômoda. A estação cálida estava começando. Os dias de cansativo calor e noites úmidas estavam ainda por chegar. Eu levava quinze dias estudando com o Valek antes que ele me administrasse “Meu amor”. Me perguntei quanto tempo teria estado inconsciente. Separei-me da janela e me dirigi ao despacho do Valek. Cheguei à porta justo quando ele partia. —Yelena! Conseguiste-o! —disse com um sorriso—

Aconteceram três dias.

Estava começando a me preocupar. Eu estudei atentamente seu rosto. Sua alegria parecia sincera. —Onde está Margg? —perguntou-me. —Não a vi —respondi. “Felizmente”. —Nesse caso, necessita seu antídoto —disse Valek, enquanto retornava junto ao armário. Quando traguei o líquido, Valek se dirigiu uma vez mais para a porta. Quando viu que eu não o seguia, fez-me uma indicação. —Tenho que provar o café da manhã do Comandante —disse, apertando o passo— Além disso, já vai sendo hora de que conheça o comandante e veja como se deve provar a comida. Saímos por fim ao corredor principal do castelo. Valek não se alterou, mas eu tropecei e afoguei um grito. As famosas tapeçarias da era do Rei estavam rasgadas e manchadas de pintura negra. No orfanato do Brazell, nos tinha ensinado que cada tapeçaria representava uma província do antigo reino e que contava sua história. Naqueles momentos, apesar de estar destroçados, falavam poderosamente sobre o mandato do Comandante.


O desdém que este sentia pela opulência, os excessos e as injustiças do anterior chefe do estado e de sua família era bem conhecido por todos os rincões da Ixia. Da monarquia até o mandato militar, as mudanças na Ixia tinham sido radicais. Enquanto que alguns cidadãos aceitavam de bom grado às singelas, mas estritas regras do Código de Comportamento, outros se rebelavam e se negavam a levar uniforme, não pediam permissão para viajar e escapavam ao sul. Segundo o delito que se cometesse, o castigo se correspondia exatamente com o estipulado no Código. O fato de não levar uniforme supunha dois dias encadeado completamente nu na praça da cidade. Não importava que o acusado tivesse uma boa razão para isso. O castigo era sempre o mesmo. Tampouco serviam de nada os subornos nem as influências de amigos. Segundo o Comandante, terei que viver segundo o Código ou pagarei às conseqüências. Apartei os olhos das tapeçarias a tempo para ver como Valek desaparecia através de uma porta decorada com uma intrincada decoração de pedra. Pelo contrário, pesada-a porta de madeira, pendurava, completamente estilhaçada, das dobradiças, embora ainda se distinguisse a formosa talha que se realizou na madeira. Sem dúvida, aquela porta tinha sido outra vítima da mudança de regime. Outro aviso das intenções do Comandante. Depois de franquear a soleira da porta, detive-me completamente atônita. Aquele era o salão do trono. Em seu interior havia numerosas mesas ocupadas por numerosos conselheiros e oficiais militares de todos os Distritos Militares do Território. A sala vibrava com atividade. Resultava difícil distinguir a ninguém naquele mar de gente. Ao final, consegui ver o Valek antes que atravessasse uma porta aberta que havia ao fundo da sala. Demorei alguns instantes em encontrar o modo de atravessar as mesas. Quando cheguei à porta, ouvi que um homem se queixava de que os pasteizinhos doces estavam frios. O Comandante Ambrose estava sentado detrás de um escritório de madeira muito singelo. Seu escritório era muito austero em comparação com o do Valek e carecia de elementos decorativos pessoais. O único objeto da sala que não tinha um propósito concreto era uma estátua do tamanho de uma mão que mostrava um tigre de neve. Os olhos do felino reluziam graças à prata e umas brilhantes bolinhas do mesmo metal se estendiam pelas poderosas costas da besta. O uniforme do Comandante Brazell tinha um corte imaculado e era idêntico ao do Valek, à exceção que os rombos que tinha no pescoço eram diamantes de verdade e reluziam


sob a luz da manhã. O cabelo negro do Comandante estava começando a cobrir-se de cinza e era tão curto que a parte superior ficava de ponta. Nas salas de aula do Brazell, eu tinha aprendido que o Comandante evitava as aparições públicas e que se pintasse seu retrato. Quanto menos pessoas conhecessem seu aspecto, menos possibilidades tinha que o assassinassem. Alguns acreditavam que era um paranóico, mas eu era da opinião de que, dado que tinha adquirido o poder utilizando a assassinos e guerra suja, simplesmente se mostrava realista. Aquele homem não se parecia em nada ao Comandante que eu me tinha imaginado: grosso, com barba e carregado de medalhas e armas. Era um homem magro, bem barbeado e com rasgos delicados. —Comandante, esta é Yelena, sua nova provadora de comida — disse Valek, me fazendo entrar na sala. Os olhos amendoados do Comandante se cruzaram com meus. Seu olhar tinha a acuidade da ponta de uma espada e me senti completamente imobilizada por ele. Quando olhou ao Valek, respirei aliviada. —Por isso esteve rugindo Brazell, esperava que esta mulher respirasse fogo — disse o Comandante. Para ouvir que nomeava ao Brazell, estiquei-me. Se o general começava a queixarse ao Comandante, poderia voltar a ser candidata à forca. —Brazell é um néscio — respondeu Valek— Queria o drama de uma execução pública para a assassina de seu filho. Eu, pessoalmente, me teria ocupado dela imediatamente. Teria tido pleno direito — acrescentou, enquanto provava o chá do Comandante e observava os pasteizinhos—

Além disso, o Código de Comportamento

estipula claramente que o seguinte réu que vá ser executado se converte no novo provador e Brazell foi um de seus autores —explicou. Cortou o pastelzinho pelo centro e tomou uma parte, que se meteu na boca. Continuando, fez a mesma com uma parte dos laterais— Tenha — concluiu, oferecendo ao Comandante o prato. —Não falta razão ao Brazell — disse o Comandante. Então, tomou seu chá e observou o líquido — Quando vai começar? Estou-me cansando da comida fria. —uns quantos dias mais. —Bem — replicou o Comandante. Então, voltou a dirigir-se a mim— Quero que chegue com minha comida e a prove com rapidez. Não quero ter que estar te buscando. Compreendido?


—Sim, senhor — respondi. —Valek, estou perdendo peso por sua culpa. O almoço é na sala de Guerra. Não chegue tarde. —Sim, senhor — afirmou Valek. Então, dirigiu-se para a porta. Eu o segui. Uma vez mais, tivemos que sortear as mesas para poder encontrar a saída. Quando Valek se deteve para conversar com outro conselheiro, eu olhei para ao redor de mim. Um punhado dos conselheiros do Comandante eram mulheres e notei que haviam duas capitãs e uma coronel. Aquele novo papel da mulher era um dos benefícios da mudança de regime. O Comandante atribuía os postos apoiando-se na preparação e na inteligência, não no sexo. Enquanto que a monarquia tinha preferido que o papel da mulher se limitasse ao de donzelas, ajudantes de cozinha e esposa, o Comandante lhes dava a liberdade de escolher o que queriam fazer. Algumas mulheres preferiam as anteriores ocupações, enquanto que outras aproveitavam a oportunidade de ser algo diferente. Quando por fim chegamos ao gabinete do Valek, Margg estava limpando os montões de papéis que haviam sobre a mesa. Pareceu-me como se estivesse passando mais tempo lendo os papéis que os ordenando. Não se tinha dado conta Valek? Perguntei-me o que Margg faria para ele além de limpar. Margg se voltou a olhar ao Valek com um agradável gesto no rosto, mas, assim que ele não pôde vê-la dedicou um gesto de desprezo. Certamente devia ter perdido muito dinheiro por minha sobrevivência. Apesar de tudo, sorri. Quando viu que Valek se dava a volta, controlou a desagradável expressão de seu rosto. —Yelena, parece esgotada. Faz-me sentir cansado com apenas te olhar. Vá descansar. Retorna depois do almoço e prosseguiremos com seu adestramento. Em realidade, não me sentia cansada, mas aquela sugestão me pareceu uma excelente ideia. Não obstante, quando comecei a percorrer os corredores para me dirigir a minha habitação, o cansaço começou a apoderar-se de mim. Tanto me custava andar que me encontrei com dois dos soldados do Brazell sem que pudesse evitá-lo. —Olhe Wren! Encontrei um rato! —exclamou um dos guardas, me agarrando pela boneca. —Me alegro por ti — respondeu o tal Wren — Vamos mostrar-lhe sua captura ao general Brazell. — O general não gosta dos ratos vivos. Em especial este.


O soldado me sacudiu com força. A dor se estendeu rapidamente pelo braço, ombro e pescoço. Presa do pânico, olhei por toda parte para ver se encontrava ajuda: O corredor estava completamente deserto. —É certo, prefere que os esfolem vivos. Já tinha escutado mais que suficiente. Fiz o que qualquer rato tivesse feito. Mordi a mão do soldado até que notei o sabor do sangue. Entre gritos e maldições do soldado, aproveitei o fator surpresa para escapar. Atirei com força de meu braço e pus-me a correr.


Capítulo 5

Estava a pouca distância dos soldados do Brazell quando estes se recuperaram da surpresa e começaram a me perseguir. Ao estar completamente aterrorizada e livre de armas, tinha uma ligeira vantagem sobre eles, mas sabia que não duraria. O esforço já me estava passando fatura. Os corredores estavam misteriosamente vazios. Desgraçadamente, embora me encontrasse com alguém, não estava segura de que fossem ajudar-me nem de que pudessem fazê-lo. Como um rato, minha única esperança de poder escapar era encontrar um buraco no que me esconder. Corria sem plano algum. Só me importava manter à dianteira que tinha com os soldados. Muito em breve deixei de reconhecer onde estava. A luz se ia fazendo cada vez mais tênue. Meus passos levantavam pó do chão. Tinha-me dirigido a uma parte desabitada do castelo, um lugar perfeito para um assassinato silencioso. Silencioso porque não ficaria ar nos pulmões para poder gritar. Girei à direita e me introduzi em um corredor que estava sumido na mais profunda escuridão. Como, momentaneamente, tinha perdido de vista aos soldados, empurrei a primeira porta que encontrei. Esta se abriu um pouco e logo se entupiu por completo. O oco resultante era o suficientemente grande para que me entrasse o corpo, mas não a cabeça. Para ouvir que os soldados se aproximavam, lancei-me contra a porta. Moveu-se um pouco mais, o suficiente para me permitir acesso à escura habitação. Então, caí ao chão. Os soldados encontraram a porta. Horrorizada, observei como tratavam de abri-la. O oco começou a fazer-se cada vez maior. Examinei a habitação quando os olhos se acostumaram à escuridão. A sala estava amontoada de tapetes, talher de barris vazios e sacos de grão podres. Sob uma janela, havia um montão de tapetes. A porta se abriu um pouco mais antes de entupir-se de novo. Eu me pus de pé e amontoei os barris em cima dos tapetes. Com dificuldade, subi a eles e alcancei a janela. Então, descobri que era muito pequena para que eu pudesse atravessá-la. A porta rangeu. Com o cotovelo, rompi o cristal da janela e, depois de retirar as partes de cristal, joguei-os no chão. O braço começou a cobrir-se me de sangue. Sem me preocupar com a dor, baixei-me rapidamente e me apertei com força contra a parede que havia junto à porta. Então, esforcei-me por controlar minha agitada respiração. Com um forte


grunhido, a porta se deteve poucos centímetros de meu rosto quando os soldados entraram na habitação. —Olhe pela janela. Eu cobrirei a porta — disse o chamado Wren. Compreendi que meu plano não ia funcionar. Wren bloqueava minha única maneira de escapar. A janela rota só conseguiria atrasar o inevitável. —É muito pequena. Segue aqui — afirmou o outro soldado. A respiração me acelerou em rápidos intentos por tomar ar. Estava em uma ratoeira. Meus pensamentos começaram a tecer um matagal de imagens. Aferrei-me à porta para não cair. Um ronrono começou a escapar da garganta. Resultava-me impossível contêlo. Esforçar-me por fazê-lo só parecia provocar que soasse com mais força. Saí de detrás da porta. Apesar de todo o ruído que estava fazendo, os soldados nem sequer se voltaram para me olhar. Pareciam completamente imóveis. Meus pulmões tratavam de tomar ar. Quando estava a ponto de me deprimir, o som cessou. Ainda seguia ressonando na sala, mas não provinha de mim. Os soldados seguiram sem mover-se. Depois de respirar profundamente várias vezes, saí correndo da habitação. Não ia perder tempo tratando de compreender. O ronrono me seguia enquanto punha-se a correr pelo caminho que me tinha levado até ali. Aquele estranho zumbido cessou assim que comecei a ver outras pessoas nos corredores. Todos me olhavam de modo estranho, por isso compreendi que meu aspecto devia ser espantoso. Obriguei-me a deixar de correr e a tratar de me acalmar. A garganta ardia e tinha o uniforme manchado. O cotovelo doía muito e tinha os dedos manchados de sangue. Ao me olhar, compreendi que me tinha talhado ao tratar de retirar os cristais. Então, vi o sangue no chão. Dava-me a volta e vi que havia gotas pelo chão, indicando o caminho que tinha tomado. Levei-me os braços ao peito, mas já era muito tarde. Tinha deixado um rastro de sangue e certamente os soldados do Brazell, que eram como cães de presa, estariam me seguindo. De fato, acabavam de dar a volta à esquina e tinham tomado o corredor no que me encontrava. Como sabia que qualquer movimento brusco lhes chamaria a atenção, reuni-me com um grupo de criados, esperando passar despercebida entre eles. Quando cheguei a uma esquina, arrisquei-me a olhar por cima do ombro. Os guardas estavam no lugar exato no que terminava o rastro de sangue. Wren fazia gestos como se estivesse discutindo com seus


companheiros. Eu dava a volta à esquina sem que se fixassem em mim. Então, encontrei-me com o Valek. —Yelena! O que te ocorreu? —perguntou-me, me agarrando pelo braço. Eu fiz um gesto de dor e ele me soltou. —Eu... caí... sobre uns cristais quebrados — menti — Ia lavar-me. Quando tratei de seguir com meu caminho, Valek me agarrou pelo ombro e fez que desse a volta. —Necessita que veja um médico. —Eu... Está bem — disse, tratando de seguir com meu caminho. —O médico está por aqui — replicou Valek, me obrigando a dar a volta e a tomar o corredor em direção para os soldados. Eu tinha esperado que não me vissem, mas, quando passamos a seu lado, sorriram e começaram a caminhar detrás de nós. Eu olhei ao Valek. Não havia expressão alguma em seu rosto, mas esticou ainda mais a mão com que me agarrava pelo nomeio. Acaso conduzia a algum lugar escondido no que os três pudessem me matar? Deveria tratar de escapar? Entretanto, se Valek me queria morta, só tinha que negar-se a me dar o antídoto para o Pó de Mariposa. Quando o corredor ficou deserto, Valek me soltou e se deu a volta para olhar aos soldados. Eu fiquei perto dele. —Perdeste-lhes? —perguntou-lhes. —Não, senhor — respondeu Wren— Só queremos reclamar a nossa prisioneira — acrescentou, tratando de me agarrar. —Sua prisioneira? —replicou Valek, cortando o ar com uma gélida voz de aço. Os soldados se olharam o um ao outro completamente incrédulos. Valek não tinha armas. Os dois intercambiaram um arrogante sorriso. Certamente, Rand o cozinheiro apostaria o salário de um mês a que os dois soldados ganhariam aquela discussão. —Em realidade, é a prisioneira do general Brazell, senhor. Agora, se não lhe importar... —disse Wren, fazendo um gesto ao Valek para que se apartasse. — Digam a seu chefe que o Valek não gosta que se persiga a sua nova pupila por todo o castelo. E que eu gostaria que a deixasse em paz. Os guardas voltaram a olhar-se. Eu estava começando a suspeitar que compartilhavam um único cérebro. Imediatamente, adotaram uma postura mais ofensiva.


—Nos ordenou que levemos a garota ao general. Não quer mensagens — replicou Wren, tirando-a espada da vagem. Ao ver seu companheiro, o segundo soldado tirou também sua arma. Wren voltou a lhe pedir ao Valek que se fizesse a um lado. O que poderia fazer Valek ao ver-se enfrentado com duas espadas? O que eu pensava fazer era pôr-se a correr, assim que me preparei para fugir. A mão direita do Valek ficou em movimento. Realizou um rápido gesto, como se tivesse saudado militarmente aos dois soldados. Antes que os homens pudessem reagir, colocou-se entre eles, muito perto para que pudessem utilizar as espadas. Então, agachouse, pôs as mãos sobre o chão e se deu a volta. Com as pernas, realizou um molinete que deu com os ossos dos dois soldados sobre o chão. Os dois caíram entre o estrondo do metal contra o chão e ficaram completamente imóveis. Atônita, observei como Valek se separava de seus inimigos. Contou em voz muito baixa. Quando chegou a dez, inclinou-se sobre cada um dos homens e retirou um pequeno dardo dos pescoços de ambos. —Não é um modo muito limpo de lutar, mas chego tarde para almoçar.


Capítulo 6

Por cima dos corpos dos dois soldados, Valek tomou o braço e o examinou. —Não é tão grave como parece. Sobreviverá. Primeiro, iremos ver a Comandante e depois ao médico. Valek me conduziu apressadamente através do castelo. O braço tinha começado a doer bastante, por isso comecei a ficar atrás. Além disso, a perspectiva de me encontrar com o Comandante me impedia de caminhar. Ir ver o médico e tomar um banho quente resultava sem dúvida muito mais atraente. Entramos em uma espaçosa sala redonda que servia como sala de Guerra do Comandante. Umas esbeltas vidraças decoravam as paredes do chão até o teto. O crisol de cores me fez sentir como uma peonza. Tão enjoada estava que teria cansado ao chão se não tivesse sido porque algo me cravou sobre o chão. Uma larga mesa de madeira ocupava o centro da sala. À cabeça da mesma, protegido por dois soldados, estava o Comandante. Tinha o cenho franzido em um gesto de irritação. A seu lado, havia uma bandeja de comida intacta. Junto a ele, estavam sentados três de seus generais. Dois deles estavam ocupados comendo enquanto o garfo do terceiro parecia haver-se detido no ar. Centrei-me na mão. Os nódulos estavam brancos pela raiva. A contra gosto, enfrentei ao olhar do general Brazell. Este desceu por fim o garfo. Tinha o rosto muito tenso. Eu era o branco de sua ira, e, como um coelho surpreso no claro de um bosque, sentia-me muito assustada para me mover. —Valek... —começou o Comandante Ambrose. —Chegou tarde — terminou Valek—

Sei. Sofremos uma ligeira briga —

acrescentou, fazendo que me aproximasse um pouco mais. Intrigados, os outros dois generais deixaram de comer. Eu me ruborizei e experimentei um profundo desejo de sair fugindo. Como não tinha tido contato com oficiais de alta fila, reconheci aos generais por seus uniformes. Minha viagem às masmorras do Comandante tinha sido a primeira vez que atravessava os limites do DM-5. De fato, durante os dez primeiros anos de minha vida no orfanato do Brazell, só tinha visto sua família e a ele em contadas ocasiões.


Desgraçadamente, depois de cumprir os dezesseis anos, a imagem do Brazell e de seu filho Reyad se converteu em meu pesadelo diário. Ao princípio, senti-me adulada pela atenção de meu benfeitor. Com seu cabelo cinza, seu rosto agradável e seu ar de respeitabilidade representava para mim a imagem perfeita da figura paterna. Brazell me disse que eu era a mais linda de seus meninos “adotados” e pediu minha ajuda em alguns experimentos. É obvio, eu me mostrei encantada de poder participar. A lembrança da ingênua e agradecida que eu tinha me mostrado me provocava náuseas. Isso tinha sido fazia três anos. Eu tinha sido um cachorrinho que não fazia mais que menear a cauda ao escutar a voz de seu amo. Tive que sofrer durante dois anos. Minha mente tratava de esquecer as lembranças. Olhei ao Brazell sentado à mesa do Comandante. Tinha os lábios muito apertados e a mandíbula lhe tremia. Quase não podia conter seu ódio. Muito tênue, o fantasma de Reyad apareceu detrás de seu pai. Tinha um profundo corte aberto na garganta, de que jorrava abundante sangue que lhe manchava a camisola. Não deixava de recordar um conto que dizia que as vítimas de um assassinato não cessavam de acossar a seus assassinos até que concluem sua vingança. Esfreguei os olhos. Via alguém mais a aquele espectro? Se era assim, ocultavamno muito bem. Olhei ao Valek. Perseguiriam-lhe os fantasmas? Se aquela velha história era certa, ele deveria estar acossado por eles. Apesar de tudo, não lamentava o fato. O único que me arrependia era de não ter tido o valor de matar ao Brazell quando tive a oportunidade. Desde não ter podido salvar a minhas irmãs e irmãos do orfanato do horror que lhes esperava ao cumprir os dezesseis. Desde não ter podido advertir a Mai e a Carra nem de ajudá-las a escapar. A voz do Comandante me obrigou a me centrar na sala. —Uma briga, Valek? —perguntou, com o tom que utilizaria um pai indulgente— Quantos mortos? —Nenhum. Não podia justificar a morte de uns soldados só porque obedeciam as ordens do Brazell de caçar e assassinar à nova provadora de sua comida Comandante. Além disso, não eram muito preparados. De fato, parece-me que ela estava a ponto de lhes dar um desdobro quando se encontrou comigo. Menos mal que não pôde fazê-lo, porque se não, jamais me teria informado do ocorrido. O Comandante me observou durante um instante antes de centrar-se no Brazell. Aquilo lhe bastou ao general. Levantou-se de um salto e começou a gritar.


—Essa mulher deveria estar morta! Quero-a morta! Matou a meu filho! —Mas o Código de Comportamento... —recordou-lhe Valek. —Ao diabo com o Código. Sou um general. Ela matou ao filho de um general e está aqui... A emoção lhe impediu de seguir falando. Os dedos lhe tremiam como se quisesse me agarrar pelo pescoço e me estrangular. O fantasma do Reyad flutuava detrás de seu pai, com um sorriso nos lábios. —Para mim, que esta mulher siga com vida representa uma desonra. Um insulto — prosseguiu Brazell — Adestrem a outro prisioneiro. Quero-a morta! Instintivamente, escondi-me detrás do Valek. Os outros generais assentiam e indicavam sua aprovação. Eu me sentia muito aterrorizada para olhar ao Comandante. —Tem razão — disse este, sem emoção alguma na voz. —Jamais nos desviamos do que diz o Código de Comportamento — replicou Valek— Se começarmos agora, sentaremos precedente. Além disso, teremos terminado com a melhor provadora de comida que nunca tivemos. Quase terminei de adestrá-la — acrescentou, indicando a bandeja de comida do Comandante. Eu apareci um pouco para ver a expressão que se desenhava no rosto do Comandante. Enquanto considerava o raciocínio do Valek, parecia pensativo. Eu cruzei meus braços e, sem poder evitá-lo, cravei-me as unhas na carne. Brazell, sentindo que o Comandante trocava de parecer, aproximou-se dele. —É boa porque eu a eduquei. Não me posso acreditar que vás escutar a este ladrão mentiroso e intrigante... —disse. Deteve-se imediatamente. Sabia que havia dito muito. Tinha insultado ao Valek e inclusive eu tinha compreendido o muito que o Comandante apreciava seu conselheiro. —Brazell, deixa em paz a minha provadora de comida. Eu respirei aliviada. Brazell tratou de replicar, mas o Comandante o silenciou. —É uma ordem. Constrói sua nova fábrica. Considera que tem minha aprovação — disse. Acaso valia mais uma fábrica nova que minha morte? Todo mundo esperou em silêncio a resposta do Brazell. Ele me lançou um olhar envenenado. O fantasma do Reyad sorriu e eu deduzi que aquela permissão era muito


importante para o Brazell. Certamente, estava pensando que poderia construir sua fábrica primeiro e me matar depois. Sabia perfeitamente onde me encontrar. Brazell se levantou e partiu da sala sem dizer uma palavra mais. O divertido fantasma se despediu de mim pronunciando em silêncio as palavras “Já nos veremos”. Então, seguiu a seu pai. Quando os outros generais começaram a protestar pela concessão daquela permissão, o Comandante escutou seus argumentos em silêncio. Como momentaneamente se esqueceram de mim, estudei-os a ambos. Seus uniformes eram parecidos com os do Comandante, à exceção de que levavam jaquetas negras com botões de ouro. Em vez de diamantes de verdade no pescoço, cada um tinha cinco rombos bordados sobre o peito esquerdo. Não havia medalha alguma que decorasse seus uniformes. Os rombos do general que tinham sentado perto do Comandante eram azuis. Era o general Hazal, que estava a cargo do Distrito Militar 6, ao oeste do Brazell. Os do general Tesso eram chapeados, que indicavam o DM-4, que ficava ao norte do Brazell. Se um distrito planejava um grande projeto, como o era construir uma nova fábrica ou criar mais terras de cultivo, requeria-se a permissão do Comandante. Para os projetos de menor importância, como instalar um novo forno em uma tahona ou construir uma casa, só se necessitava a aprovação do general do distrito. A maioria dos generais tinha pessoal que se ocupava da tramitação das novas permissões. Resultava evidente pelas queixas dos dois generais que a permissão do Brazell ainda estava em seu processo inicial. Dito processo terminava com a assinatura do Comandante, embora este tinha o poder de acelerar os trâmites. Tinha-nos ensinado o Código de Comportamento no orfanato qualquer que desejasse ter a honra de realizar recados na cidade tinha que memorizar e recitar o Código à perfeição antes que lhe concedesse tal privilégio. Além de ler e escrever, a educação que eu tinha recebido do Brazell tinha incluído também matemática e a história da mudança de regime da Ixia. Desde dita mudança de poder, todo mundo tinha direito a receber educação. Esta tinha deixado de ser privilégio dos homens das classes acomodadas. Não obstante, minha educação deu um giro à pior quando comecei a “ajudar” ao Brazell. As lembranças ameaçaram me afligindo. A pele parecia haver me esticado. Pus-se a tremer e me obriguei a retornar ao presente. Os generais tinham deixado de replicar a decisão do Comandante. Valek estava provando a comida fria do Comandante para aproximar-lhe depois.


—Suas preocupações ficam cotadas, mas minha ordem segue em pé — disse o Comandante. Então, voltou-se para o Valek— Espero que esta moça seja digna de todos os elogios que tem feito dela. Um engano e terá que preparar o seu substituto antes de te buscar um novo destino. Pode partir. Valek me agarrou pelo braço e me tirou da sala. Quando fechou a porta, voltou-se para me olhar. Seu rosto parecia uma máscara de porcelana. —Yelena... —Não diga nada. Não me ameace nem trate de me intimidar. Já tive bastante com o Brazell. Esforçarei-me tudo o que possa por ser a melhor e porque eu gosto da idéia de seguir com vida. Além disso, não quero lhe dar ao Brazell a satisfação de lombriga morta. Dito isto, separei-me dele. Valek me seguiu. Quando chegamos a uma intercessão, ele me agarrou pelo cotovelo. Ouvi que pronunciava a palavra “médico” e me guiava à esquerda. Sem voltar a olhá-lo, deixei que me levasse à enfermaria. Levaram-me ao lado de uma mesa. Dali, contemplei o uniforme do médico, que era tudo branco. A única nota de cor eram dois pequenos rombos vermelhos no pescoço. Estava tão fatigada que demorei algum tempo em me dar conta de que se tratava de uma mulher. Depois de lançar um grunhido, tombei-me na mesa. Quando a mulher partiu para ir recolher o que necessitava, Valek me disse: —Porei guardas na porta, se por acaso Brazell trocar de opinião. Antes de partir da enfermaria, vi que falava com a médica. Ela assentiu e me olhou. Retornou a meu lado com uma bandeja cheia de instrumental médico, que incluía uma jarra de uma substância que parecia geléia. Ela esfregou meus braços com álcool, fazendo que as feridas ardessem. Mordi o lábio para não gritar. —São todas superficiais, à exceção desta — disse, me assinalando o cotovelo com o que tinha quebrado o cristal— Terei que selar esta ferida. —Selá-la? A doutora tomou a jarra de geléia. — Relaxe. É um novo método para tratar as lacerações profundas. Utilizamos esta cola para selar a pele. Quando a ferida cicatriza, o corpo o absorve — me explicou. Então, tirou uma boa quantidade do ungüento com os dedos e o aplicou ao corte. Eu fiz um gesto de dor. Ela me beliscou a pele, unindo com força os borde da ferida. As lágrimas começaram a me rodar pelas bochechas.


—Inventou-o o cozinheiro do Comandante. Não há efeitos secundários e sabe muito bem no chá. —Rand? —perguntei, surpreendida. Ela assentiu. Sem me soltar a pele, disse-me: —Terá que levar uma atadura durante uns dias e evitar que o corte molhe. Então, começou a soprar sobre a geléia para que se secasse. Quando terminou, enfaixou-me o braço. —Valek quer que fique aqui esta noite. Trarei-te o jantar para que possa descansar. Eu acreditava que comer ia custar um grande esforço, mas, quando a doutora me levou a comida, dava-me conta de que estava morta de fome. Não obstante, um sabor estranho no chá me tirou imediatamente o apetite. Alguém tinha envenenado meu chá.


Capítulo 7

Fiz um sinal à doutora com a mão. —Há algo em meu chá — gritei. Estava começando a me sentir um pouco enjoada— Chama o Valek. Talvez ele tivesse um antídoto. A mulher me olhou com uns enormes olhos pardos. Tinha o rosto comprido e magro e o cabelo muito curto. —É uma pílula para dormir. Ordens do Valek — respondeu. Deixei escapar um suspiro. Sentia-me melhor. A doutora me dedicou um olhar divertido antes de partir. Como já não tinha apetite algum, apartei a comida. Não necessitava pílulas para dormir que me ajudassem a me render ao esgotamento que tinha terminado com todas minhas forças. Quando despertei à manhã seguinte, vi um vulto branco aos pés de minha cama. Movia-se. Pisquei até que consegui centrar a imagem. Era a doutora. —Passaste boa noite? —Sim — respondi. De fato, tinha sido primeira em muito tempo sem pesadelos. Não obstante, sentia a cabeça como se tivessem enchido de lã. Além disso, o gosto amargo que sentia na boca não pressagiava uma boa manhã. A doutora examinou a vendagem e, depois de lançar um som que não significava nada, disse-me que o café da manhã demoraria um momento. Enquanto esperava, examinei a enfermaria. A sala retangular tinha doze camas, seis a cada lado. Os lençóis de cada uma delas estavam tensas como a corda de um arco. A ordem e a precisão que reinava na sala me incomodavam. Sentia-me como uma cama revolta. Já não podia controlar nem minha alma nem meu corpo nem meu mundo. Angustiada rodeada por tanta ordem que me incomodava. Senti um desejo irrefreável de saltar em cima das camas para desfazê-las. Eu estava na mais afastada da porta. Continuando, havia duas camas vazias entre mim e os outros três pacientes, que dormiam placidamente. Não tinha ninguém com quem falar. As paredes careciam por completo de decoração. De fato, as de minha cela tinham sido mais interessantes. Ao menos, na enfermaria cheirava melhor. Respirei profundamente. Notei o duro aroma do álcool misturado com o do desinfetante, tão diferente do ar fétido das


masmorras. Muito melhor. Ou não? Havia outro aroma misturado. Voltei a aspirar e me dava conta de que o amargo aroma do medo emanava de mim. Não deveria ter sobrevivido ao dia anterior. Os soldados do Brazell me tinham encurralada. Não havia escapatória. Entretanto, um estranho zumbido que surgiu de minha garganta me tinha salvado. Tratei de evitar pensar que aquele som era um velho amigo meu, mas as lembranças resultavam implacáveis. Depois de examinar os três anos anteriores, obriguei-me a me concentrar no momento no que tinha começado a notar aquele zumbido. Os dois primeiros meses dos experimentos do Brazell se limitaram a pôr a prova meus reflexos. Quão rápido era capaz de esquivar uma bola ou me agachar sob um pau. Tudo tinha resultado bastante inofensivo até que a bola se transformou em uma faca e o pau em uma espada. O coração começou a pulsar com força. Com a mão suarenta, toquei uma cicatriz que tinha no pescoço. “Não sinto nada”, disse-me, apartando as mãos como se assim pudesse afastar também o medo. O que veio depois? Provas de força e resistência. Tarefas singelas nas que se levantavam pesos, que depois se converteram em pedras que terei que sustentar por cima da cabeça, primeiro durante minutos e logo durante horas. Se a pedra caía antes que o tempo terminasse, vinham as chicotadas. Depois, veio o de agarrar-se a cadeias que penduravam do teto, sustentando o peso a centímetros por cima do chão. Foi então quando começou o zumbido. Eu tinha solto as cadeias muito logo em muitas ocasiões, o que provocava a ira do Reyad. Então, ele me obrigou a sair a uma janela, que estava situada a seis metros do chão. Ali, disse-me que devia me sujeitar ao batente com as mãos. —Tentemo-lo de novo — disse Reyad— Agora que há muito mais que perder, talvez dure a hora inteira. Eu tinha os braços debilitados por me haver passado o dia pendurando das cadeias e os dedos úmidos de suor. Os músculos tremiam de fadiga. Tive medo. Quando os dedos escorregaram do batente, comecei a uivar como um recém-nascido. O uivo se transformou em substância. Pareceu expandir-se, me acariciar a pele por todos os lados. Sentia-me como se descansasse em um quente lago de água.

Continuando, vi-me sentada no chão. Olhei para a janela e vi que Reyad me observava atônito. Tinha o cabelo revolto. Encantado, atirou-me um beijo. O único modo no


que eu poderia ter sobrevivido tinha que ter sido graças à magia. Não. Tinha que ter sido por umas estranhas correntes de ar que tinham me levado até o chão. Não pela magia. A palavra magia estava proibida na Ixia desde que o Comandante Ambrose tinha assumido o poder. Tratou-se aos magos como se fossem uma praga de mosquitos. Tinhalhes caçado, apanhado e exterminado. Qualquer sugestão de que alguém tinha poderes mágicos era uma sentença de morte. A única oportunidade de sobreviver era escapar a Sitia. Para me distrair das lembranças, contei as gretas que havia no teto. Tinha chegado a cinqüenta e seis quando Valek apareceu na enfermaria. Levava uma bandeja de comida em uma mão e uma pasta na outra. Examinei a omelete com certa suspeita. —O que tem? —perguntei—

Mais pílulas para dormir? Ou acaso um novo

veneno? O que há sobre me dar algo que me faça sentir bem, para variar? —O que te parece melhor para te manter com vida? —replicou ele. Incorporei-me na cama e me ofereceu a pipeta com meu antídoto. Então, colocou-me a bandeja no regaço— Já não necessita pílulas para dormir. A doutora há me dito que notou o sabor ontem à noite — acrescentou com uma nota de aprovação na voz— Saboreia seu café da manhã e me diga se permitiria que o Comandante tomasse. Valek não tinha exagerado quando me disse que eu não tinha dias livres. Suspirei e cheirei a omelete. Não notei nada estranho. Cortei a omelete em quartos e examinei cada um deles. Então, tomei um pouquinho de cada seção e coloquei um por um na boca, mastigando cuidadosamente. Traguei e esperei para ver se tinham algum gosto estranho. Então, cheirei o chá e o movi com uma colher antes de lhe dar um sorvo. Antes de tragá-lo, notei um sabor doce. —A menos que o Comandante não goste de mel no chá, eu não rechaçaria este café da manhã. —Então, come-o. Duvidei. Acaso estava Valek tratando de me enganar? A menos que tivesse utilizado um veneno que eu não tinha aprendido, o café da manhã estava limpo. Comi-o todo e logo bebi o chá enquanto Valek me observava. —Não esteve mal — disse— Hoje... Não houve venenos. Um dos doutores levou outra bandeja ao Valek. Aquela tinha quatro taças brancas com uma líquida cor azeitona que cheirava a hortelã.


—Quero repassar contigo algumas técnicas. Cada uma destas taças contém uma infusão de hortelã. Saboreia uma delas. Agarrei a mais próxima e dava um sorvo. Um entristecedor sabor a hortelã alagou meus papilas gustativas, tanto que me engasguei. Valek sorriu. —Notas algo mais? Eu tomei outro sorvo, mas a hortelã era o sabor predominante. —Não. —Muito bem. Agora, belisque o nariz e prova de novo. Depois de fazer certo malabarismo com o braço que tinha enfaixado, consegui tomar o chá com o nariz tampado. Maravilhei-me ante o sabor que notava. —É doce. Nada de memora — disse. Como minha voz soava ridícula, soltei-me o nariz. Imediatamente, o sabor a hortelã eclipsou todo o resto. —Correto. Agora prova com os outros. A seguinte taça escondia um sabor azedo. A terceira é amarga e a última salgado. —Esta técnica funciona para qualquer outra comida ou bebida. Quando se bloqueia o sentido do olfato, todos outros aromas desaparecem, à exceção do doce, do amargo, do azedo e do salgado. Alguns venenos podem reconhecer-se só por um desses quatro sabores — disse Valek. Então, examinou a pasta que tinha na mão— Aqui tem uma boa completa de todos os venenos humanos e seus distintos sabores para que a memorize. Há cinqüenta e dois venenos conhecidos. Examinei o inventário de venenos. Alguns já os conhecia. “Meu amor” encabeçava a boa. Aquela contagem me teria evitado dores de cabeça, náuseas, enjôos e paranóias. —Por que não me deu esta boa em vez de me fazer saborear o “Meu amor”? —E o que é o que se pode aprender de uma boa? O Kattsgut sabe doce. Como exatamente? Doce como o mel? Como uma maçã? Há diferentes níveis de doçura e o único modo de aprendê-los é saboreando-os pessoalmente. A única razão pela que te dou esta boa é porque o Comandante quer que se ponha a trabalhar o antes possível. Só porque não vás saborear estes venenos agora não significa que não vás fazer o no futuro. Memoriza-a. Quando o médico te dê alta, porei a prova seus conhecimentos. Se passar, poderá começar a trabalhar. —E se fracasso? —Então, começarei a adestrar a um novo provador. A voz de Valek ressonou monótona, sem emoção, mas o significado das palavras fez que me detivesse o coração.


—Brazell estará duas semanas mais no castelo. Tem mais assuntos dos que ocupar-se. Não posso te ter vigiada todo o dia, por isso Margg te está preparando uma habitação nas minhas. Retornarei mais tarde para ver quando o médico vai dar alta. Observei como Valek se dirigia à porta. O fazia de um modo equilibrado e atlético. Sacudi a cabeça. Pensar no Valek era quão pior eu poderia fazer. Em vez disso, centrei-me na boa de venenos. Alegrou-me ver que a caligrafia resultava legível, por isso comecei a estudar. Quase não me dava conta do momento que a doutora se aproximou para ver como tinha o braço. Deveu haver-se levado a bandeja com as taças, porque esta tinha desaparecido de meu regaço. Tinha-me concentrado tanto que me sobressaltei profundamente quando me colocaram sob o nariz um prato com um bolo redondo. O braço que sustentava aquele prato era o do Rand. Tinha um alegre sorriso no rosto. —Olhe o que consegui te trazer apesar da doutora! Venha, comete-o antes que ela retorne. A quente sobremesa cheirava a canela. A calda de açúcar caía pelos lados, provocando que me pegassem os dedos. Examinei cuidadosamente o bolo, tratando de encontrar algum aroma estranho. Um pequeno bocado revelou múltiplas capas de massa e canela. —Meu deus, Yelena. Acaso pensa que sou capaz de havê-lo envenenado? — perguntou Rand, muito ofendido. Aquilo era exatamente o que tinha estado pensando, mas não queria admiti-lo diante do Rand. Os motivos de sua visita resultavam algo escuro. Parecia amável e simpático, mas podia ser que seguisse molesto pelo ocorrido a seu amigo Oscove, o anterior provador. Não obstante, podia ser um aliado potencial. A quem melhor poderia ter a meu lado? Ao Rand, o cozinheiro, cuja comida estaria provando diariamente ou ao Valek, o assassino, que tinha a desagradável tendência a envenenar minhas comidas? —Deformação profissional — respondi. Ele grunhiu. Ainda parecia molesto. Dava um bocado maior ao bolo— Maravilhoso — acrescentei, apelando a seu ego para que me desse outra oportunidade. —A que sim? —replicou ele, mais contente— É minha última criação. Entretanto, está-me custando lhe encontrar nome. É obvio, não o diga à doutora. Não gosta que seus


pacientes comam nada mais que uma papa que ela prepara. Diz que essa papa beneficia a cura. É obvio que produz seu efeito! Sabem tão mal que todo mundo quer partir quanto antes para poder tomar uma comida decente. Bom, como te encontra? —acrescentou, inclinando-se sobre mim para que não pudessem lhe escutar o resto dos pacientes. Voltei a sentir certa cautela. Por que tinha que lhe importar a ele? —Acaso tornaste a realizar uma aposta? —Sempre estamos apostando — admitiu— As apostas e as intrigas é quão único fazemos os criados. O que outra coisa se pode fazer? Deveria ter visto a comoção e as apostas que tiveram lugar quando viram que lhe perseguiam os gorilas do Brazell. Ninguém veio me ajudar — disse, um pouco afligida— Os corredores estavam completamente desertos. —Isso teria sido implicar-se em uma situação que não nos afeta diretamente. Os criados jamais fazem algo assim. Somos como baratas na escuridão. Se brilhar uma luz... puf! Evaporamo-nos — acrescentou, estalando os dedos para dar ênfase a suas palavras. Eu me senti como a barata a que sempre surpreendia a luz. —Bom — prosseguiu — Todas as apostas foram em seu contrário. A maioria perdeu muito dinheiro enquanto que só uns poucos... ganharam muitos. —E, dado que você está aqui, suponho que você foi dos que ganharam. —Yelena — disse ele com um sorriso — Eu sempre vou apostar por ti. É como um dos cães do Comandante. Pequeno, ladrador, um cão ao que ninguém lhe emprestaria atenção, mas, que quando remói, não solta sua presa facilmente. —Se envenenar a carne do cão, este não voltará a incomodar. —Problemas? —perguntou Rand com tom preocupado. Surpreendida de que os canais de fofoca do castelo não tivessem começado a realizar apostas sobre a prova do Valek, duvidei. Ao Rand gostava de muito falar e poderia me colocar em uma confusão. —Não. É que isto de ser a provadora da comida... Rand assentiu, aparentemente satisfeito com a explicação. Passou-se o resto da tarde alternando as lembranças do Oscove com as possíveis novas receitas. Quando Valek chegou, deixou de falar, empalideceu e partiu com a desculpa de que tinha que comprovar como ia o jantar. Valek o observou atentamente enquanto saía da enfermaria. —O que estava fazendo aqui?


A expressão de seu rosto era neutra, mas a atitude de seu corpo mostrava que estava zangado. Escolhendo as palavras com muito cuidado, expliquei-lhe que Rand tinha ido visitar-me. —Quando o conheceu? —Depois de que me recuperei de “Meu amor” fui procurar comida e me encontrei com o Rand na cozinha. —Tome cuidado com o que diz em sua presença. Não te pode confiar nele. Eu não lhe teria confirmado em seu posto, mas o Comandante insistiu em que ficasse. É um gênio na cozinha, uma espécie de protegido. Começou a cozinhar para o Rei quando era muito jovem. Valek me observava com frios olhos. Talvez aquela fosse a razão pelo que não tinha sentido simpatia pelo Oscove. Compreendi que ser amiga de alguém que tinha sido leal ao Rei poderia me ocasionar problemas. Entretanto, consentir que Valek me colocasse medo... Olhei-o fixamente, tanto que consegui que ele apartasse o olhar. Senti-me jubilosa. Ao fim lhe tinha ganho uma vez. —Dar-lhe-ão alta amanhã pela manhã — me informou Valek— Te Arrume e te apresente em meu gabinete para realizar sua prova. Embora passe, não acreditarei que esteja preparada, mas o Comandante me ordenou que esteja disponível na hora de comer. É um atalho — acrescentou, meneando a cabeça — E eu não gosto dos atalhos. —Por quê? Assim não terá que seguir te pondo em perigo — repliquei, me arrependendo em seguida de ter pronunciado aquelas palavras. —Em minha experiência, os atalhos normalmente conduzem à morte. —É isso o que ocorreu a meu predecessor? — Perguntei, incapaz de aguentar a curiosidade. Confirmaria ou negaria Valek às teorias do Rand? —Oscove? Não tinha estômago para isto.


Capítulo 8

Quando despertei à manhã seguinte, ainda tinha a boa de venenos do Valek na mão. Estive repassando o inventário de venenos até que a doutora me deu alta. Enquanto me dirigia à porta, meus machucados músculos protestavam com cada movimento. Deveria haver me sentido contente por poder abandonar a enfermaria, mas me sentia muito nervosa. Parecia que tinha um camundongo vivo no estômago, que não fazia mais que me mordiscar por dentro para conseguir escapar. Os guardas que estavam postados nas portas da enfermaria me assustaram. Entretanto, não foram embelezados com as cores do Brazell. Então, recordei que Valek havia dito que estariam ali para me proteger até que eu me apresentasse em seu gabinete. Olhei ao meu redor para averiguar onde estava, mas não tinha nem idéia de que caminho tomar para ir a minha habitação. Levava dezoito dias vivendo no castelo, mas ainda não estava segura de sua disposição interna. Além disso, desconhecia como era sua forma exterior, dado que jamais o tinha visto por fora. A carruagem da prisão tinha me levado ao castelo e, é obvio, este carecia de janelas. Só tinha uns pequenos buracos pelos que eu tinha me negado a olhar para não parecer um animal enjaulado, portanto, não ficou mais remédio que pedir aos soldados que me indicassem o caminho. Eles me guiaram sem palavras. Levava um diante e outro detrás e só me permitiram entrar em meu quarto depois que o primeiro se assegurou de que era um lugar seguro. Meu uniforme seguia no armário tal e como eu o tinha deixado, mas alguém tinha estado folheando meu jornal. Em vez de estar na gaveta da mesa, onde eu o tinha guardado, jazia aberto sobre esta. Alguém tinha estado lendo as notas que tinha estado realizando sobre os venenos. Senti uma dura e fria sensação. Imediatamente, suspeitei do Valek. Ele era o suficientemente ousado para registrar meus papéis pessoais. Provavelmente até tinha decidido que era seu dever assegurar-se de que não estava tramando nada. Depois de tudo, eu só era uma provadora de comida. Não tinha direito a nenhuma classe de intimidade. Tomei meu jornal e meu uniforme e saí de minha habitação. Então, dirigi aos banhos. Os guardas esperaram no exterior enquanto tomava um banho. Tomei meu tempo. Valek e sua prova poderiam esperar. Não ia obedecer


suas ordens como um cordeiro. Quando por fim cheguei ao gabinete do Valek, cortei todo comentário que ele pudesse fazer lhe perguntando: —Onde está minha prova? Um gesto de diversão lhe desenhou no rosto. Levantou-se e, com um dramático gesto, mostrou-me duas filas de comida e bebidas sobre a mesa. —Só um destes artigos não está envenenado. Encontra-o. Então, come ou bebe o que tenha elegido. Provei-os um por um. Cheirei, fiz gargarejos, tampei-me o nariz, dava pequenos bocados, cuspi... A maior parte das comidas resultava muito insípida, por isso resultava muito fácil descobrir o veneno. Pelo contrário, as bebidas de frutas mascaravam o veneno. Quando terminei, voltei-me para o Valek. —É um canalha. Estão todas envenenadas. —Está segura? —É obvio. Eu não comeria nem beberia nada do que há sobre essa mesa. Valek se dirigiu à mesa com rosto pétreo. —Sinto muito, Yelena. Falhaste. Senti que a alma caía aos pés. O camundongo pareceu ressuscitar e começou de novo a me fazer buracos nas tripas. Voltei a examinar a mesa. O que tinha passado por cima? Nada. Eu estava no certo. Desafiei ao Valek para que me demonstrasse que me tinha equivocado. Sem duvidá-lo, ele levantou uma taça. —Esta não está envenenada. —Beba. Repliquei-lhe. Recordava perfeitamente aquela taça. Estava enfeitada com um veneno amargo. A mão do Valek tremeu um pouco. Deu um sorvo. Talvez eu tivesse me equivocado. Talvez tenha sido a taça do lado... Valek olhou aos meus olhos enquanto fazia que o líquido lhe percorresse a língua. Então, cuspiu-o. Eu queria saltar, gritar de alegria, dançar a seu redor. Em vez disso, disse: —Veneno de amoras. —Assim é — admitiu, sem deixar de examinar a taça que tinha na mão e o resto da comida. —Aprovei?


Sem deixar de parecer distraído, assentiu. Então, dirigiu-se a seu escritório e, brandamente, deixou a taça sobre sua superfície. Sacudindo a cabeça, tomou uns papéis para voltar a deixá-los sobre a mesa sem ler. —Teria que haver imaginado que trataria de me enganar. O tom esquentado de minha voz fez que Valek me olhasse. Então, desejei ter guardado silêncio. —Está muito acesa e isto não tem nada que ver com a prova. Te explique. —Explicar? Por que tenho eu que explicar nada? Talvez você deveria me explicar a mim por que teve que ler meu jornal. —Seu jornal? —repetiu Valek, atônito— Eu não tenho lido nada teu, mas, se o tivesse feito, teria estado em meu direito. —Por quê? Valek me olhou com incredulidade. Abriu a boca e a fechou várias vezes antes de poder pôr voz a seus pensamentos. —Yelena, confessou ter cometido um assassinato. De fato, surpreenderam-lhe sentada escarranchada sobre o corpo do Reyad com uma faca ensanguentada na mão. Procurei um motivo em seu expediente. Não encontrei nada. Tão somente que te tinha negado a responder a todas as perguntas. Dado que não conheço os motivos que tem para matar, não sei se voltará a fazê-lo ou o que poderia te provocar a fazê-lo. Como obedeço fielmente o Código de Comportamento, tive que te oferecer o posto de nova provadora. Vais estar muito perto do Comandante diariamente. Até que possa confiar em ti, estarei te vigiando. Minha ira se foi apagando. Por que ia esperar que Valek confiasse em mim quando eu não confiava nele? Recuperei a compostura. —Como posso ganhar sua confiança? —Me dizendo por que matou ao Reyad. —Ainda não está preparado para acreditar. Valek apartou o olhar. Eu cobri a boca com a mão. Por que tinha tido que utilizar a palavra “preparado”? Sorte uma palavra implicava que algum dia poderia me acreditar, algo que só podia ser um desejo por minha parte. —Tem razão — disse ele. —Bem — repliquei eu depois de um comprido silêncio— Aprovei seu exame. Quero meu antídoto. Valek preparou imediatamente uma dose e me entregou.


—Agora o que? —quis saber. —O almoço. Chegaremos tarde — respondeu, me fazendo sair a toda pressa pela porta. Enquanto avançávamos, tomei o líquido esbranquiçado. Enquanto nos aproximávamos da sala do trono, começou a escutar o som de muitas vozes. Dois dos conselheiros do Comandante estavam discutindo. Oficiais e soldados se formavam redemoinhos detrás dos dois conselheiros. O Comandante estava apoiado contra um escritório próximo, escutando atentamente. O grupo discutia o melhor modo de localizar e capturar a um fugitivo. Um dos bandos insistia em uma boa quantidade de soldados e cães, enquanto que o outro afirmava que serviria com um grupo dos melhores soldados. A força bruta contra a inteligência. O intercâmbio, apesar de estar desenvolvendo-se em voz muito alta, não era irado. Todos pareciam bastante relaxados. Dava por sentado que aquela classe de debate era muito comum, mas me perguntei se o fugitivo seria uma pessoa real ou só parte de um exercício hipotético. Valek se aproximou do Comandante. Eu me coloquei atrás deles. O debate fez que me pusesse a tremer porque não pude evitar imaginar como o pobre diabo ao que queria caçar. Imaginei correndo pelos bosques, sem fôlego, incapaz de entrar em uma cidade porque um rosto novo alertaria aos soldados de patrulha, soldados aborrecidos cujo único trabalho era observar e que conheciam todos os habitantes da cidade. Todos os cidadãos da Ixia tinham um trabalho em concreto. Depois da mudança de regime, todo mundo tinha uma ocupação atribuída. Permitia-se que os cidadãos passassem a viver a uma cidade diferente e inclusive a outro Distrito Militar, mas se necessitavam papéis para fazê-lo, a aprovação do supervisor e provas de que se tinha uma ocupação na nova direção. Sem tais documentos, todo cidadão que se encontrasse no bairro equivocado poderia ser detido. Podiam-se visitar outros distritos, mas só quando se tivessem os papéis correspondentes e se mostrassem aos soldados a sua chegada. Enquanto trabalhava para o Brazell e Reyad, tinha pensado obsessivamente na fuga. Pensar na liberdade era melhor que fazê-lo sobre minha vida como rato de laboratório. Sem família nem amigos que me ocultassem, as terras do sul eram minha melhor opção, assumindo que pudesse atravessar a bem protegida fronteira. Tinha imaginado elaboradas fantasias nas que me escapava a Sitia, encontrava uma família adotiva e o amor. Era um lixo troca e sentimental, mas supunha meu elixir. Todos os dias, quando começavam os experimentos, centrava minha mente em Sitia, onde poderia


encontrar cores brilhantes, gestos carinhosos e calor. Conseguia suportar os experimentos do Reyad com aquelas imagens em mente. Entretanto, embora me tivesse dado a oportunidade de escapar, não sei se a tivesse aceito. Embora não recordava nada de minha família biológica, sim que tinha uma família vivendo naquele casarão. Os outros órfãos. Minhas irmãs. Meus irmãos. Aprendia com eles, jogava com eles e cuidava deles. Como podia abandoná-los? Não podia suportar pensar que Mai ou Carra pudessem ocupar meu lugar. Mordi o dedo até que notei o sabor do sangue. Isto me fez retornar ao presente. Tinha escapado do Brazell. Ele partiria do castelo dentro de duas semanas e retornaria a sua casa, provavelmente para começar a seguinte ronda de experimentos com um rato de laboratório diferente. Sofri por ela, fora quem fora. Brazell era brutal. Esperavam-lhe momentos muito duros. Não obstante, ao menos a tinha liberado do Reyad. Apartei a mão da boca e examinei a dentada. Não era muito profundo, por isso não deixaria cicatriz. Risquei com um dedo a rede de pequenas cicatrizes semicirculares que me cobriam os nódulos e os dedos. Quando levantei o olhar, vi que Valek estava me observando. Rapidamente, ocultei as mãos atrás das costas. O Comandante levantou a mão. O silêncio se fez em um instante. —Enumerastes uns motivos excelentes em ambos os bandos. Poremos suas teorias à prova. Duas equipes — disse, assinalando aos dois oradores principais— Vós dois serão os capitães. Formem suas equipes e organizem um plano de ataque. Recrutem a todos os que necessitem. Valek proporcionará um fugitivo entre um de seus homens. Têm quinze dias para preparar tudo. O ruído se acrescentou quando o Comandante se dirigiu a seu escritório, seguido pelo Valek e por mim. Foi Valek o que fechou a porta. —Ainda lhe preocupa que Marrok escapasse a Sitia? —perguntou-lhe. —Sim. Foi uma perseguição nefasta. Marrok devia saber que você estava no DM-8. Deveria adestrar a um par de protegidos. Valek o olhou fingindo horror. —Então, eu não seria indispensável — comentou. O Comandante sorriu e me olhou. —Bom, com esta moça tinha razão. Ela superou sua prova. Vem aqui, jovenzinha — acrescentou. Eu obedeci, apesar dos amalucados batimentos do coração de meu coração— Como a provadora oficial de minha comida, apresentar-te ante mim com meu café da manhã.


Eu te darei o itinerário diário e esperarei que esteja presente em cada comida. Não aceitarei atrasos. Compreendido? —Sim, senhor. —Parece muito frágil, Valek. Está seguro de que serve para isto? —Sim, senhor. Apesar de tudo, o Comandante não parecia estar convencido —Muito bem. Dado que não almocei, Valek, você me acompanhará durante um jantar. Yelena, você começará a trabalhar amanhã. —Sim, senhor — dissemos Valek e eu em uníssono. Então, partimo-nos do despacho. Retornamos ao gabinete do Valek para recolher meu uniforme e meu jornal. Então, Valek acompanhou a suas habitações, que estavam situadas na parte central do castelo. Enquanto percorríamos os corredores, notei que havia uma série de zonas mais claras nas paredes, o que me levou a pensar que se deviam ter desprendido todos os quadros. Ocorreume que o estilo funcional e austero do Comandante lhe tinha arrebatado ao castelo seu caráter. Quão único ficava era a pedra morta com o único fim de resultar útil. Eu era muito jovem para recordar como tinha sido a vida antes da mudança de regime, mas no orfanato do Brazell tinham ensinado que a monarquia era corrupta e que os cidadãos não estavam contentes. A mudança de regime tinha sido precisamente isso. Não se podia chamar guerra. A maioria dos soldados do Rei tinham jurado lealdade ao Comandante. Enojava-lhes que todas as ascensões se apoiassem em subornos ou em vínculos de sangue em vez de no trabalho duro e a perícia. As ordens de executar a pessoas por delitos muito pequenos só porque um membro da elite se sentia ultrajado não caía bem entre os homens. O Comandante tinha incluído as mulheres em sua causa e estas se converteram em excelentes espiões. Valek assassinou aos principais protetores do Rei. Quando este tratou de elevar um exército para enfrentar-se ao do Comandante, não teve ninguém que o defendesse. O Comandante capturou o castelo sem derramamento de sangue. A maior parte dos nobres já tinha morrido e o resto tinha escapado a Sitia. Valek e eu chegamos por fim frente a um par de imponentes leva de madeira, flanqueadas por dois soldados. Valek lhes informou que deveriam me franquear o acesso tal e como eu necessitasse. Entramos em um pequeno saguão com duas portas. Valek abriu a da direita e me explicou que a outra conduzia às habitações do Comandante.


As habitações do Valek eram muito grandes. Depois do escuro corredor, surpreendeu-me a luminosidade do salão. Janelas tão finas como as raias de um tigre permitiam que entrasse a luz a torrentes. Havia livros por toda parte, além de pedras e cristais multicoloridos. Também se distinguiam pequenas estátuas de animais e flores, adornadas com prata. Resultavam muito delicadas e detalhadas e se pareciam com as panteras que tinha visto no gabinete do Valek. Constituíam o único elemento decorativo da sala. Das paredes pendurava uma considerável coleção de armas. Algumas eram velhas e estavam cobertas de pó, o que indicava que não tinham sido utilizadas desde fazia anos. Pelo contrário, outras brilhavam. Uma faca comprida e fina ainda tinha sangue na folha. Aquela visão me fez tremer. Perguntei-me quem teria estado ao outro lado daquela folha. À esquerda da entrada havia uma escada e três portas à direita do salão. Valek assinalou a primeira. —Essa habitação será tua até que Brazell parta do castelo. Sugiro-te que descanse um pouco — disse. Então, tomou três livros de uma mesa— Eu retornarei mais tarde. Não saia. Trareite o jantar. Quando eu tenha partido, fecha com chave a porta. Aqui deve estar a salvo. “A salvo”, pensei, enquanto fechava o ferrolho. Jamais poderia me sentir a salvo ali. Qualquer que soubesse como forçar uma fechadura, poderia entrar, agarrar uma arma e acabar comigo. Examinei as espadas que penduravam da parede e suspirei com alívio. Estavam bem asseguradas sobre a parede. Atirei com força uma maçã, só para me certificar. A desordem que havia ao redor de minha porta era mais do que havia junto às outras duas. Quando entrei, descobri por que. Sobre o chão, havia marcas de caixas sobre a poeirenta superfície do chão. O mesmo pó se adivinhava sobre a cama, a escrivaninha e o escritório. Evidentemente, aquela habitação tinha sido utilizada como armazém. Em vez de limpá-la, Margg se tinha limitado a mover as caixas, considerando assim seu trabalho feito. O mínimo trabalho que realizava era uma indicação muito clara da grande antipatia que sentia por mim. Talvez fosse melhor evitar sua companhia no futuro. A roupa da cama estava muito suja e cheirava a mofo por toda parte. Espirrei. Havia uma pequena janela, que abri depois de brigar com as venezianas. Os móveis estavam realizados com cara madeira de ébano. Intrincadas talhas de folhas e parras adornavam as patas das cadeiras e as gavetas. Quando limpei o pó da cabeceira, descobri uma delicada cena de um jardim, cheio de flores e mariposas.


Depois de tirar os lençóis sujos da cama, tombei-me no colchão. Então, a impressão que eu tinha de Margg como uma mulher resmungona mas inofensiva se esfumou por completo. Acabava de ver uma mensagem que tinha sido escrito sobre o pó do escritório. Dizia: “Assassina. A forca te espera”.


Capítulo 9

Levantei-me de um salto da cama. Imediatamente, a mensagem desapareceu, mas eu não me senti nada melhor. O medo me assaltava o coração imaginando uma situação terrível atrás de outra. Estava Margg me advertindo ou me ameaçando? Estava pensando recuperar o dinheiro que tinha perdido apostando contra mim me entregando aos gorilas do Brazell por uma quantidade? Por que me ia advertir? Tranqüilizei-me. Uma vez mais, minha reação tinha sido exagerada. Por isso tinha visto e ouvido de Margg, sua mensagem respondia tão somente à satisfação de me assustar. Uma pequena vingança por ter que trabalhar mais por minha culpa. Decidi que seria melhor que não soubesse que eu tinha visto aquela infantil nota ou que me havia sentido assustada por ela. Pensando-o bem, estava segura de que tinha sido ela que tinha lido meu jornal e que o tinha deixado aberto sobre o escritório só para me zangar. Valek tinha sugerido que descansasse, mas estava muito nervosa. Fui ao salão. A nota de Margg tinha recordado que não baixasse a guarda e que não confiasse em ninguém. Então, minhas preocupações se reduziriam à comida do Comandante e a evitar ao Brazell. Oxalá fora tão singelo ou eu fora tão forte... Talvez Reyad e Brazell tivessem arrebatado a ingenuidade e a confiança cega em outros, mas, no mais profundo de meu ser, ainda me aferrava à esperança de encontrar um amigo. Até um rato necessita a companhia de outros ratos. Desgraçadamente, naqueles momentos, minha prioridade era seguir viva ao dia seguinte, mas algum dia trataria de encontrar um modo de escapar. O conhecimento supunha poder, por isso eu precisava me sentar, escutar e aprender tudo o que pudesse. Decidi examinar os livros e papéis do Valek. Encontrei um par de textos sobre venenos que me interessaram, mas seus conteúdos tinham haver principalmente com o assassinato e a intriga. Alguns dos livros estavam escritos em uma linguagem arcaica que eu não era capaz de decifrar. Ou era um colecionador, ou tinha roubado aqueles livros da biblioteca do Rei. De repente, ao pé da escada, encontrei um diagrama da distribuição do castelo. Por fim algo que podia ser de utilidade. Decidi deixar para outro momento a inspeção das habitações da planta de cima. Fui por meu jornal. Como o mapa estava à vista de todos, não


acreditava que Valek se incomodasse. Provavelmente, alegrar-se-ia de que não tivesse que lhe pedir indicações constantemente. Limpei uma parte do sofá, pus-me cômoda e comecei a copiar o mapa. Despertei muito sobressaltada. O jornal caiu ao chão. Pisquei e examinei o salão à luz das velas. Então, vi Valek, que estava acendendo os abajures do salão um a um. Tinha estado sonhando com ratos, mas, decididamente, Valek não era um como eu. Era bem mais um felino e não um corrente. Bem mais um tigre de neve. O depredador mais eficaz de todo o território da Ixia. De um branco puro, o tigre de neve era como dois cães enormes juntos. Rápido, ágil e letal, o tigre de neve matava a sua presa antes que esta suspeitasse que houvesse perigo. Permaneciam principalmente no norte, onde as neves eram perpétuas, mas aventuravam-se ao sul quando a comida escasseava. Ninguém na história da Ixia tinha conseguido matar a um tigre de neve. O felino cheirava, ouvia ou via o caçador antes que este pudesse aproximar-se suficientemente para feri-lo. Partiam com a rapidez do raio quando ouviam que se esticava a mola de suspensão. Quão único os habitantes do norte podiam fazer era alimentá-los, esperando mantê-los assim afastados das zonas povoadas. Depois de acender o último abajur, Valek se voltou para me olhar. —Tem algo de mal na sua habitação? —disse, tomando uma bandeja e me entregando. —Não. É que não podia dormir. —Já vejo — replicou ele com ironia—

Sinto que seu jantar esteja frio —

acrescentou, assinalando a bandeja— Entretive-me. Depois de comprovar automaticamente se havia venenos, tomei um par de colheradas. Então, olhei ao Valek para ver se ele se ofendeu pelo gesto. Não era assim. Entre bocado e bocado, perguntei ao Valek se alguém tinha a chave de suas habitações. —Só o Comandante e Margg. Ajudar-te-á isso a dormir melhor? —É Margg sua ama de chaves pessoal? —perguntei-lhe sem responder. —A minha e a do Comandante. Queríamos a alguém em quem pudéssemos confiar. Ela estava conosco antes da mudança de regime, por isso sua lealdade está além de toda dúvida — comentou Valek, sentando-se ao escritório— Lembra-te de quando esteve na sala de guerra? —Sim — respondi, um pouco confundida pela mudança de tema. —Havia três generais na sala. Ao Brazell já o conhecia, mas, pode identificar aos outros dois?


—Tesso e Hazal — respondi, orgulhosa de recordá-lo. —Pode descrevê-los? Me dizer sua cor de cabelo, o de seus olhos? —Não — admiti — Acredito que o general Tesso tinha barba. —Identificou-os por seus uniformes e não lhes olhou o rosto, equivoco-me? —Não. —Isso me tinha parecido. Esse é o problema dos uniformes. Faz que as pessoas se voltem vagas. Um guarda vê o uniforme de uma ama de chaves e dá por sentado que essa pessoa deve estar no castelo. Resulta muito fácil que alguém penetre, razão pela qual o Comandante se rodeia sempre de pessoas de confiança. E a razão pela que Margg é a única ama de chaves a que se permite limpar as habitações e o despacho do Comandante e meus. —Por que não despedistes todos os serventes do castelo e utilizastes a sua gente? —Nosso exército está composto principalmente por soldados. Os civis são conselheiros ou ocupam outros postos de importância. Alguns dos serventes do Rei já estavam em nossa boa de nomes e os outros pagamos o dobro do que ganhavam com o Rei. Os criados bem pagos estão contentes. —Tem um salário todo mundo dentro do castelo? —Sim. —Inclui isso à provadora de comida? —Não. —Por que não? —insisti, apesar de que não me tinha passado pela cabeça reclamar um salário até que Valek falou de dinheiro. —À provadora de comidas lhe paga por antecipado. Quanto crê que vale sua vida?


Capítulo 10

Como não esperava resposta alguma, Valek se dirigiu a seu escritório. Em realidade, tinha razão. Terminei a comida e quando me dispunha a partir a meu dormitório, Valek voltou a centrar sua atenção em mim. —O que compraria com o dinheiro? Uma boa de objetos saiu de minha boca, me surpreendendo a mim mesma. —Uma escova para o cabelo, camisolas e gastaria uma parte no festival. Queria uma camisola porque estava cansada de dormir com o uniforme. Não me atrevia a dormir em roupa interior por medo a ter que sair correndo para salvar a vida em meio da noite. Além disso, o festival do fogo que se celebrava todos os anos se aproximava. Para mim, era como uma espécie de aniversário. Durante o anterior, tinha matado ao Reyad. Embora o comandante tivesse proibido toda forma de religião, promocionava os festivais como uma maneira de aumentar a moral. Só se permitiam dois. Durante o último festival de gelo, eu estava nas masmorras e perdi todos os acontecimentos. O festival de gelo sempre se celebrava durante a estação fria, quando não se podia fazer nada mais que acurralar-se ao lado do fogo e realizar artesanatos. Cada cidade organizava seu próprio festival. Pelo contrário, o festival de fogo era um enorme carnaval que viajava de cidade em cidade durante a estação calorosa. O festival começava no norte, onde a estação cálida só durava umas poucas semanas, e logo ia descendo para o sul. Tradicionalmente, organizavam-se atuações e concursos para as celebrações, que duravam uma semana, no interior do castelo. Eu esperava que me permitisse assistir. Valek tinha indicado que continuaria me ensinando pelas tardes, mas, o resto do tempo entre as comidas tinha sido, até o momento, só meu. Sempre tinha me encantado ir ao festival de fogo. Brazell estava acostumado a dar uma pequena quantidade de dinheiro aos meninos de seu orfanato para que pudessem ir todos os anos. Era o acontecimento mais esperado na casa. Praticávamos todo o ano para poder participar dos concursos e assim poder economizar o dinheiro da entrada. A prática voz do Valek me tirou de meus pensamentos.


—A costureira pode te dar algumas camisolas. De fato, lhe deveria haver dado isso com seus uniformes. Quanto ao resto, terá que se arrumar com o que possa encontrar. As palavras do Valek me devolveram à realidade de minha vida, em que não se incluía o festival de fogo. Talvez pudesse vê-lo, mas não poderia saborear o frango picante ou o vinho. Com um suspiro, recolhi meu jornal e parti a minha habitação. Uma brisa cálida e seca me acariciou o rosto. Limpei o resto do pó, mas tão somente apaguei a metade da mensagem de Margg. Em certo modo, ela tinha razão. A soga me esperava. Meu futuro não incluía uma vida normal. Sua mensagem me serviria como aviso de que não podia me acomodar muito. Ou o danificava tudo e me substituíam em meu posto como provadora de comida ou ia frustrar um intento de assassinato com minha própria morte. Talvez, tecnicamente, não morreria porque me rompesse o pescoço, mas a turbadora imagem da soga me perseguiria para sempre.

À manhã seguinte, detive-me frente à oficina de Dilana. Ela estava sentada em um raio de sol, cantarolando e costurando. Os cachos dourados de seu cabelo reluziam. Como não queria incomodá-la, dava a volta para partir. —Yelena? —chamou-me. Eu voltei a aparecer — Deus santo, moça. Entra. Você sempre é bem-vinda — disse. Deixou sua costura e indicou uma cadeira ao lado da sua para que me sentasse— Está tão magra como meu fio mais fino. Sente-se. Deixa que te traga algo de comer. Meus protestos não impediram que me trouxesse uma grande fatia de pão com manteiga. —Meu Rand me envia uma barra de pão de mel todas as manhãs — disse. Os olhos lhe brilhavam de afeto. Sabia que ela não retrocederia em seu empenho até que tomasse um bocado. Como não queria ferir seus sentimentos, tratei de não provar o pão como se estivesse procurando um veneno. Só quando me viu a boca encher se sentiu satisfeita. —No que posso te ajudar? —perguntou-me. Entre bocado e bocado, pedi-lhe uma camisola— Meu Deus! Como pude esquecer? Pobrezinha. Rapidamente, levantou-se e ficou a percorrer a habitação, reunindo uma boa coleção. —Dilana, só necessito umas poucas coisas.


—Por que não vieste antes? Margg deveria ter dito algo — comentou Dilana muito desgostada. —Margg... Interrompi-me em seguida. Desconhecia a opinião que Dilana tinha sobre ela. —Margg é uma velha má, resmungona e ressentida — disse, me deixando muito surpreendida — Sente uma antipatia imediata por qualquer um que seja novo. Basicamente é um pesadelo para todo mundo. —Entretanto, foi muito amável contigo. —Acossou-me durante semanas quando cheguei aqui. Então, decidi colocar mão em seu armário e lhe apertar todas as saias. Demorou duas semanas de desconforto físico para dar-se conta do que tinha ocorrido. Margg não sabe costurar, assim teve que tragar-se de seu orgulho e me pedir ajuda. Após, tratou-me com respeito. Desgraçadamente, você é seu novo objetivo — acrescentou, me agarrando a mão — Entretanto, não deixe que isso te afete. Se Margg se mostrar desagradável, selo também você com ela. Quando vir que não é uma presa fácil, perderá o interesse. Custava-me acreditar que aquela mulher tão encantada fora capaz de ter feito algo assim. Entregou um bom montão de camisolas e acrescentou uma seleção de brilhantes cintas. —Para o festival, querida minha — me explicou, como resposta a minha perplexidade — Para acrescentar a beleza de seu formoso cabelo escuro. —Encontraste já a quem vai fazer de fugitivo para o exercício? —perguntou- o Comandante ao Valek, quando este chegou a seu escritório para o almoço. Eu estava provando a comida do Comandante quando Valek, uma vez mais, destruiu minha tentativa sensação de bem-estar. Levava dez dias trabalhando como provadora oficial da comida do Comandante e tinha deixado de contrair-se meu estômago cada vez que estava a seu lado. —Sim, conheço a pessoa perfeita para o trabalho — respondeu Valek, sentando-se em frente do Comandante. —Quem? —Yelena.


—Como? —exclamei, deixando em evidência minha dissimulação na hora de escutar a conversação. —lhe explique — lhe ordenou o Comandante. Valek sorriu, como se já tivesse sabido o que ia dizer lhe o Comandante. —Meus soldados estão preparados para evitar que os capturem. Escolher a um deles não seria justo para os perseguidores. Portanto, necessitamos uma pessoa que não esteja versada na arte da evasão, mas que seja o suficientemente inteligente para proporcionar desafio ao exercício — disse, ficando de pé— O fugitivo necessita um incentivo para que a busca seja boa, mas deve retornar ao castelo. Não podemos utilizar um prisioneiro de verdade e nenhum dos criados tem imaginação. Então, me ocorreu que poderia ser Yelena. É inteligente — acrescentou, me assinalando — Terá um incentivo para que sua atuação seja boa e um incentivo para retornar. —Incentivos? —perguntou o Comandante, franzindo o cenho. —Como provadora de comida não recebe remuneração alguma. Entretanto, por este trabalho, e por outros similares no futuro, poderá receber um salário. Quanto mais tempo consiga evadir sua captura, mais alto será seu salário. Quanto ao incentivo para retornar, deveria resultar evidente. Para mim o era. A dose diária do antídoto de Pó de Mariposa me mantinha com vida. Se não retornava ao castelo à manhã seguinte, estariam procurando um cadáver. —E se me nego? —perguntei ao Valek. —O pedirei a um dos soldados, mas me sentirei muito desiludido. Teria acreditado que você gostaria de ter um desafio. —Talvez eu não... —Basta já — disse o Comandante, com voz tensa— É uma loucura, Valek. —Disso se trata. Um soldado realizaria movimentos previsíveis. Ela é uma desconhecida. —Talvez você possa adivinhar os movimentos de nosso fugitivo, mas as pessoas que vão participar do exercício não são tão rápidas. Espero encontrar a alguém a quem se possa adestrar como ajudante teu. Sei o que está esperando, mas não acredito que vá ocorrer em um futuro próximo. Necessitamos a alguém já. Valek, por te nega constantemente as minhas ordens de adestrar um ajudante? —Por que, até agora, estive em desacordo com as pessoas que escolheste. Quando aparecer o candidato adequado, os esforços por lhe adestrar merecerão a pena.


O Comandante olhou a bandeja que eu tinha entre as mãos. Tomou a comida e me ordenou que fosse lhe buscar um chá. É obvio, tratava-se de uma desculpa para livrar-se de mim enquanto os dois discutiam. Eu me mostrei encantada de cumprir seus desejos. De caminho à cozinha, considerei a possibilidade de ser a fugitiva do Valek. Minha primeira reação tinha sido negativa. Não necessitava mais problemas. Entretanto, à medida que considerava o desafio, junto com a possibilidade de ganhar um dinheiro, o exercício começou a parecer uma excelente oportunidade. Quando cheguei à cozinha, esperei de todo coração que Valek se saísse com a sua. Em especial, estaria fora do castelo durante um dia e, além disso, qualquer técnica que pudesse aprender sendo fugitivo me poderia vir muito bem no futuro. —Ocorre

algo

com

o

almoço?

—perguntou

Rand,

aproximando-se

precipitadamente. —Não. O Comandante quer um chá. O alívio suavizou os rasgos de Rand. Perguntei-me por que estava tão preocupado porque o almoço não tivesse podido resultar completamente satisfatório. Decidi que seu ego se refletia em suas criações culinárias. Rand jamais serviria uma comida de qualidade inferior. Devia haver algo mais entre o Comandante e ele. Como não estava segura de que a relação que tinha com ele me desse direito a lhe fazer perguntas pessoais e inclusive algo delicadas, contive a língua. Conhecia Rand fazia quase duas semanas, mas ainda não tinha terminado de saber como era. Seu estado de ânimo trocava de uma vez para outra. Gostava de falar. Dominava a maioria das conversações e só fazia umas quantas perguntas pessoais. —Dado que está aqui — disse, tirando um bolo branco da despensa —, importarte-ia provar isto? Me dê sua opinião. Cortou-me uma fatia do bolo. Ia adornado com nata e as capas de bolacha de baunilha estavam separadas por uma mescla de amoras e nata. Como sempre, tratei de mascarar que meu primeiro bocado sempre ia procurando venenos. —É uma boa combinação de sabores — disse. —Não é perfeito, mas não sei assinalar o problema. —Acredito que a nata é muito doce — disse, dando outro bocado — Além disso, a bolacha está um pouco seca. —Voltarei a tentá-lo. Vais vir esta noite? —Por quê?


—Necessito uma opinião perita. Com esse bolo vou participar do concurso de confeitaria do festival de fogo. Vai você? —Não estou segura — respondi. Quando mencionei o festival, Valek não havia dito que eu não pudesse ir. —Vamos uns quantos dos que trabalhamos na cozinha. Você pode vir conosco se quiser. —Obrigado. Já lhes direi isso. Enquanto retornava ao despacho do Comandante, me ocorreu um pensamento muito desagradável. Eu estava perto do Valek porque Brazell estava ainda no castelo. De fato, permaneceria ali até depois do festival. Se eu fazia de fugitiva, o que ocorreria se Brazell se inteirava? E se me encontrasse por acaso no festival? Depois de chegar à conclusão de que era muito mais seguro ficar dentro dos muros do castelo até que Brazell partisse, decidi declinar tanto a oferta do Valek como a do Rand. Entretanto, quando cheguei com o chá ao despacho, Valek já tinha ganho a discussão. Disseme os incentivos que receberia antes que eu pudesse dizer uma palavra. A soma por permanecer livre durante um dia inteiro era considerável. —O exercício terá lugar durante o festival de fogo. É um período muito ocupado para os soldados. Deveríamos pospô-lo até mais tarde? —perguntou-lhe Valek ao Comandante. —Não. A agitação acrescentada incrementará o nível de dificuldade de nossos perseguidores. —Bom, Yelena, isso tão somente te dá uns dias para te preparar. É o justo dado que alguns prisioneiros planejam um modo de escapar enquanto que outros vêem uma oportunidade e a aproveitam. Interessa-te o desafio? —perguntou-me Valek. —Sim — disse antes que pudesse pronunciar a palavra “não”— Com a condição de que não se de relatório ao Brazell de minha participação. —Não te parece que o fato de que te tenha atribuído seu alojamento em minhas habitações pessoais é indicativo de que me preocupa seu bem-estar? —replicou Valek. Naquele momento, compreendi que o tinha insultado. Quando ofendi ao Rand, apressei-me em lhe apresentar minhas desculpas. Entretanto, com o Valek, tratei de pensar em outro comentário que pudesse zangá-lo ainda mais. Desgraçadamente, não pude encontrar nenhum com a suficiente rapidez.


—Falando do Brazell — comentou o Comandante — Deu-me um presente. Uma nova sobremesa que inventou seu cozinheiro. Pensou que eu gostaria. O Comandante Ambrose nos mostrou uma caixa de madeira cheia de grossos quadrados de cor marrom, colocados uns em cima dos outros como se fossem tijolos. Tinham um aspecto suave e brilhante, mas parecia que tinham sido cortados com uma faca pouco afiada, dado que os borde estavam rasgados e se descamavam. Valek tomou uma parte e o cheirou. —Espero que não tenha provado nenhum. —Até para o Brazell, resulta muito descarado que estivessem envenenados, mas não, não os provei. Valek me entregou a caixa. —Yelena, escolhe uns quantos ao azar e prova-os. Selecionei quatro. Cada um deles tinha o tamanho da unha de meu dedo polegar e os quatro me entravam perfeitamente na palma da mão. Se não me houvessem dito que se tratava de uma sobremesa, provavelmente haveria dito que eram partes de cera. Uma de minhas unhas deixou um rastro na parte superior de um dos cubos e os dedos resultavam algo gordurento depois de tocá-los. Duvidei. Eram do Brazell e eu não recordava que seu cozinheiro tivesse sido especialmente imaginativo. Deixei a um lado meus temores. Não ficava eleição. Como pareciam de cera, pensei que teriam esse sabor. Mordi um dos cubos, esperando que se desfizera entre os dentes. Deveu ser a expressão de meu rosto o que provocou a expressão de pânico no rosto do Comandante, dado que não disse nada. As sensações que me produziu aquela sobremesa me envolveram por completo. Em vez de desfazer-se, a sobremesa se desfez e me cobriu a língua com uma cascata de sabores. Doce, amargo, a frutos secos e a fruta fresca. Alguém se produziu detrás de outro. Justo quando podia notar um, voltava a saboreá-los todos. Aquilo não se parecia com nada do que eu tivesse podido provar antes. Quase sem me dar conta, os quatro cubos desapareceram. Desejei provar mais. —Incrível! O que é? Valek e o Comandante intercambiaram olhares de assombro. Foi o Comandante o que tomou a palavra. —Brazell disse que se chamava “Crioulo”. Por quê? Acaso tem veneno?


—Não. Não há venenos. É simplesmente... —disse, tratando de encontrar as palavras adequadas para descrevê-lo, mas sem consegui-lo— Prove-o — acrescentei. Não me ocorreu nada mais. Observei o rosto do Comandante enquanto mordia um dos cubos. Abriu os olhos e arqueou as sobrancelhas cheio de surpresa. Com a língua, lambeu-se os lábios, como se estivesse tratando desesperadamente de absorver todo o sabor que havia neles. Rapidamente, tomou outra parte. —É doce. Diferente, mas eu não noto nada incrível ao respeito — comentou Valek, limpando-os flocos marrons que tinha nos dedos. Naquela ocasião, fui eu a que intercambiou um olhar com o Comandante. Ao contrário do Valek, lhe gostava da boa cozinha. Reconhecia a excelência quando a saboreava. —Arrumado a que esse rato não dura nenhuma hora — murmurou Margg na cozinha. Eu estava a ponto de entrar quando a ouvi— Darei-lhe cinqüenta a um a qualquer que seja o suficientemente estúpido para pensar que esse rato durará todo o dia. E cem a um ao imbecil que pense que não a vão apanhar. Depois de que Margg lançasse suas apostas, a cozinha buliu com os sons das apostas. Escutei com crescente horror. Margg não podia estar falando sobre mim. Por que lhe ia ter contado Valek ao Margg do exercício? Todo o castelo se teria informado ao dia seguinte, e, por conseguinte, Brazell. —Aposto o salário de um mês a que Yelena permanece livre todo o dia — ressonou a voz do Rand. O resto dos empregados da cozinha ficaram completamente em silêncio. Meus sentimentos passaram da traição ao orgulho. Estavam apostando sobre mim. Não podia acreditar que Rand apostou o salário de todo um mês. Tinha mais confiança em mim que eu mesma. A risada de Margg ressonou pelas paredes. —Leva na cozinha muito tempo, Rand. O calor te cozeu o cérebro. Acredito que está começando a gostar desse rato. É melhor que guarde as facas sob chave quando ela está por aqui ou poderia... —Muito bem, já basta — disse Rand— O jantar terminou. Todo mundo fora de minha cozinha. Rapidamente voltei a sair ao corredor e parti. Dado que tinha prometido ao


Rand que provaria seu bolo, retornei quando todos partiram. Rand estava sentado frente a uma das mesas destroçando frutos secos. Sobre a mesa, havia uma porção do bolo. Entregou-me o bolo sem dizer nada. Eu o provei. —Muito melhor. A bolacha está muito suculenta. O que é que trocou? —pergunteilhe. —Acrescentei um pouco de pudim à mescla. Rand se mostrava muito calado, o que não era habitual nele. Não mencionou sua aposta, nem eu estava disposta a perguntar. Terminou de destroçar os frutos secos. Depois de recolhê-lo e limpá-lo tudo, disseme: —É melhor que me vá dormir um pouco. Amanhã de noite vamos ao festival. Vais vir? —Quem vai? —perguntei. Não queria que Brazell danificasse a única diversão que podia ter, mas se Margg ia também, não lhes acompanharia. —Porter, Sammy, Liza e talvez Dilana — comentou Rand. Seus cansados olhos se iluminaram ligeiramente ao mencionar o nome de Dilana— Por quê? —A que hora partem? —Depois do jantar. É o único momento que todo mundo está livre. O Comandante sempre pede um jantar singelo na primeira noite do festival para que todos nós possamos partir logo. Se quiser vir, te reúna conosco aqui amanhã. Rand partiu a suas habitações, que estavam ao lado da cozinha. Eu retornei às do Valek. O escuro apartamento estava vazio. Fechei a porta com chave e, a provas, procurei algo com o que acender os abajures. Enquanto o fazia, passei ao lado do escritório do Valek e me fixei em um papel que havia em cima. Depois de olhar para ao redor para me assegurar de que Valek não estava escondido entre as sombras, examinei a folha. Havia nomes escritos, que logo tinham sido tachados. Meu nome estava em um círculo. Abaixo ele, estava o comentário de que seria a fugitiva perfeita para o exercício. Certamente assim era como Margg se inteirou. Recordei vê-la lendo os papéis do despacho do Valek em outra ocasião. Dependendo do tempo que os papéis levassem ali, poderia ser que ela soubesse desde fazia algum tempo. Aquela mulher ia conseguir que me matassem. Se sobreviver o suficiente, teria que me encarar com ela. Desgraçadamente, teria que esperar até que tivesse representado o papel de fugitivo para o Valek.


Quanto a meu plano para escapar, examinei os livros do Valek. Recordava ter visto alguns títulos apropriados. Por fim, encontrei dois sobre técnicas de perseguição e um sobre as melhores maneiras de evitar uma captura. Ninguém havia dito que não podia investigar um pouco. Tomei emprestados os livros e, depois de tomar um abajur, me retirei a minha habitação. Estive lendo até que os olhos se nublaram da fadiga. Pus-me uma de minhas novas camisolas, apaguei o abajur e me meti na cama. Pouco mais tarde, despertei com a certeza de que havia alguém em minha habitação. O medo se apoderou instantaneamente de mim. Uma sombra negra se equilibrou sobre mim. Tirou-me da cama e me lançou contra a parede. Passaram vários segundos. Não ocorreu nada mais. O ataque tinha parado, mas eu seguia imobilizada. Os olhos se ajustaram à escuridão. Reconheci o rosto de meu atacante. —Valek?


Capítulo 11

O rosto de Valek, que estava a poucos centímetros do meu, parecia o de uma estátua. Silencioso, frio e carente de sentimentos. A porta de minha habitação estava entreaberta e nem sequer o tênue reflexo de um abajur que tinha acendido na sala dava a seus olhos calidez alguma. —Valek, o que ocorre? Sem prévio aviso, soltou-me. Muito tarde, dava-me conta de que tinha tido suspensa sobre o chão. Aterrissei a seus pés. Sem dizer nada mais, saiu de minha habitação. Eu me pus de pé e consegui lhe atalhar no salão. Estava diante de seu escritório. —Se isto for pelos livros... — disse, caso que poderia estar zangado comigo por ter tomado emprestados seus manuais. —Livros? Crê que isto tem que ver com livros? —replicou, cheio de assombro— Fui um néscio. Todo este tempo admirei seu instinto de sobrevivência e sua inteligência, mas agora... Ouvi que uns criados falavam sobre o fato de que você vai ser a fugitiva. Estavam fazendo apostas. Como pudeste ser tão estúpida, tão indiscreta? Advirto-te que considerei te matar agora para me economizar as moléstias de ter que procurar seu cadáver mais tarde. —Eu não o hei dito a ninguém —afirmei — Como pode acreditar que poria em perigo minha vida? —E por que ia eu acreditar? A única outra pessoa que sabia era o Comandante. —Bom, Valek, você é o professor de espiões. Não te parece que alguém poderia ter escutado a conversação? Quem mais tem acesso a esta habitação? Tinha as notas à vista de todos sobre o escritório. Se eu as vi só jogando uma olhada — acrescentei, antes que ele pudesse replicar —, asseguro-te que suplicavam que qualquer que estivesse procurando informação as inspecionasse. —O que é o que está sugerindo? A quem acusa? Valek franziu o cenho. O alarme lhe desenhou no rosto antes de ver-se substituído por seu habitual gesto pétreo. Aquela expressão me revelou muitas coisas. Ou Valek tinha estado tão convencido de que eu tinha estado mexericando com outros criados que não tinha considerado outras opções ou não podia aceitar a possibilidade de que alguém tivesse violado sua segurança. Por uma única vez, eu o tinha desequilibrado, embora só tivesse sido


por um segundo. Algum dia, eu adoraria vê-lo a meus pés, tal e como eu tinha estado ante ele. —Tenho minhas suspeitas — respondi —, mas não vou acusar a ninguém sem provas. É injusto. Além disso, quem ia acreditar-me? —Ninguém. Valek agarrou uma pedra cinza de seu escritório e me lançou isso. Atônita, fiquei completamente imóvel quando a pedra passou junto a mim e se estrelou contra o chão. Os pedaços nos que se converteram me salpicaram e caíram sobre o chão. —Exceto eu — acrescentou, sentando-se em sua cadeira— Acredito que suas palavras estão começando a ter sentido e temos um espião. Seja quem é, temos que encontrá-lo. —Ou encontrá-la. Valek franziu o cenho. —Optamos pelo seguro e procuramos outro fugitivo? Talvez deveríamos cancelar o exercício. Ou seguir como estava planejado. Assim, poderíamos animar a nosso espião a que se manifestasse. Seja homem ou mulher. —Não crê que Brazell viria por mim? —Não. É muito cedo. Não acredito que Brazell tente te matar antes que tenha terminado de construir sua fábrica e esta esteja funcionando. Quando conseguir o que quer, as coisas voltarão a ficar interessantes. —Ah, bom. Já quase não posso me manter acordada do muito que me aborreço — comentei, com a voz cheia de sarcasmo. Só Valek poderia considerar como uma fascinante diversão o fato de que tentassem me matar. —A eleição é tua, Yelena. O que eu queria não estava representado em nenhum das possibilidades que Valek me oferecia. Eu preferiria estar em algum lugar no que minha vida não estivesse em perigo. Onde não tivesse como chefe a um assassino e uma pessoa desconhecida estivesse tentando me complicar ainda mais a vida. Minha eleição era a liberdade. Suspirei. O mais seguro resultava o mais tentador, mas não resolveria nada. Tinha aprendido que evitar os problemas não servia de nada. Meu impulso imediato era pôr-se a correr e me esconder, o que só me conduziria a ficar em um rincão e dar paus de cego.


Os resultados nem sempre eram favoráveis. Incomodava-me a falta de controle. Meu instinto de sobrevivência parecia ter mente própria. Magia. A palavra flutuava em minha mente. Não. Alguém já teria se dado conta. Alguém teria me delatado. Fá-lo-ia se essa pessoa fosse Brazell? Ou Reyad?Sacudi a cabeça me desfazendo de tais pensamentos. Isso ficou no passado. Tinha preocupações mais imediatas. —Muito bem. Jogarei o anzol para ver que peixe sai, mas, quem vai sujeitar a rede? —Eu. Deixei escapar o fôlego. A tensão que sentia no estômago se suavizou um pouco. —Não troque seus planos — comentou Valek, tomando o papel no que estava escrito meu nome— Eu me ocuparei de tudo — acrescentou, antes de queimá-lo com a chama de um dos abajures— Deveria seguir ao festival de fogo amanhã de noite, a menos que a lógica tenha feito rechaçar o convite do Rand e prefira ficar no castelo. —Como há...? Decidi não perguntar. Era bem conhecido por todos que não confiava no Rand, por isso não me surpreenderia que tivesse um delator na cozinha. Valek não havia dito que eu não pudesse ir. Tomei uma decisão. —Vou. É um risco. E o que? Roda-me de riscos cada vez que provo o chá do Comandante. Ao menos esta vez, talvez tenha a possibilidade de me divertir. —Resulta difícil divertir-se no festival sem dinheiro — comentou Valek, enquanto esmagava as brasas do papel com o pé. —Consegui-lo-ei. —Você gostaria de dispor de uma antecipação de seu salário como fugitiva? —Não. Ganharei o dinheiro. Não queria que Valek me fizesse favores. Não estava preparada para que ele me tratasse bem. O fato de que Valek se suavizasse um pouco poderia destruir nossa tensa relação, e não queria que esta trocasse. Além disso, ter bons pensamentos sobre o Valek poderia resultar extremamente perigoso. Eu podia admirar sua habilidade e me sentir aliviada quando ele estava a meu lado em uma briga. Mas que a um rato gostasse do gato? Essa possibilidade só podia terminar de um modo. Com um rato morto. —Como queira—repôs ele—, mas, se trocar de opinião, diga-me isso. E não se preocupe pelos livros. Pode ler todos os que queira. Dirigi-me a minha habitação e me detive junto à porta, com a mão sobre o pomo.


—Obrigado — disse sem me voltar. —Pelos livros? —Não. Pelo oferecimento. —De nada.

O castelo vibrava de atividade. Os criados sorridentes percorriam os corredores e as risadas ressonavam nas paredes do castelo. Era o primeiro dia do festival de fogo e o pessoal do castelo tinha muita pressa por completar suas tarefas para poder assistir à cerimônia de inauguração. Sua alegria era contagiante e inclusive depois de uma noite de insônia, voltava a me sentir como uma menina. Decidida a separar de mim a idéia de alguém me espreitando no festival, permiti-me saborear a antecipação ante os acontecimentos da noite. Durante a classe com o Valek me mostrei muito intranqüila. Felizmente, como Valek compreendeu que não era capaz de me concentrar, decidiu terminar a sessão antecipadamente. Pouco depois, tomei um uniforme limpo e as cintas de cores que Dilana tinha me dado e me dirigi aos banhos. Àquela hora do dia estavam vazios. Meti-me em uma das banheiras e deixei que todos meus músculos se relaxassem. Só abandonei a água quando a pele dos dedos começou a enrugar-se levava um mês evitando o espelho, mas, naquele momento, a curiosidade pôde comigo e me olhei. Não estava tão magra, embora precisasse ganhar algo mais de peso. Tinha as bochechas muito enxutas e as costelas e os quadris se cravavam muito na pele. O que uma vez tinha sido uma juba sem brilho e completamente indomável, brilhava. A cicatriz que tinha no cotovelo direito tinha passado de ser vermelha brilhante a ter uma cor arroxeada muito profunda. Traguei saliva e me olhei no espelho. Tinha retornado minha alma? Não. Em seu lugar, vi o fantasma do Reyad flutuando detrás de mim. Entretanto, quando dava a volta, já tinha partido. Perguntei-me o que queria de mim. Certamente vingança, mas, como se podia enfrentar a um fantasma? Decidi não me preocupar a respeito disso aquela noite. Pus-me um uniforme limpo e entrelacei as brilhantes cintas em meu cabelo, deixando que as pontas caíssem além dos ombros e pendurassem pelas costas. Quando me apresentei ante o Comandante para provar sua comida, esperava que ele fizesse um comentário de desprezo sobre o pouco marcial daquele penteado. Quão único notei foi que ele levantava a sobrancelha. Depois do jantar, voltei correndo à cozinha.


Rand me saudou com um enorme sorriso. As donzelas ainda seguiam limpando, por isso as ajudei para não estar ali sem fazer nada. Rand queria uma cozinha completamente imaculada e só quando estava impoluta, as donzelas podiam partir. Enquanto Rand trocava de uniforme, vi que um grupo de pessoas estava falando enquanto o esperavam. De vez em quando, alguém olhava com cautela em minha direção. Suprimi um suspiro e tratei de não consentir que sua atitude me preocupasse. Não podia as culpar. Não era um segredo que eu tinha matado ao Reyad. Do grupo, Porter era o maior. Estava a cargo dos canis do Comandante, outra lembrança do Rei que ele tinha considerado muito valioso para prescindir dele. Rand era seu único amigo e me tinha contado histórias sobre o Porter com um tom de voz bastante incrédulo, mas os rumores de que Porter tinha vínculos mentais com os cães o tinham convertido em um emparelha. Parecia muito pouco normal o modo no que os cães lhe respondiam e lhe compreendiam. Era quase mágico. A suspeita de que pudesse haver magia era suficiente como para que todo mundo tratasse ao Porter como se tivesse uma enfermidade contagiosa. De todos os modos, sua relação com os animais era muito útil. Algo que o Comandante entesourava. Sammy era o moço que fazia os recados ao Rand. Liza era uma calada mulher de tão somente uns poucos anos mais que eu. Estava a cargo do inventário da despensa. Parecia nervosa, mas suponho que falar com o Porter era melhor que estar perto de mim. Quando Rand saiu de suas habitações, partimo-nos. Sammy pôs-se a correr diante do grupo, muito excitado para permanecer a nosso lado durante muito tempo. Porter e Liza seguiram com sua discussão, enquanto Rand e eu caminhávamos detrás. O ar da noite resultava muito refrescante. Eu distinguia o limpo aroma da terra molhada misturado com o aroma distante do bosque. Era a primeira vez que saía ao exterior em quase um ano. Por isso, antes de atravessar os muros do castelo, voltei-me para olhar atrás. Sem lua, resultava difícil ver os detalhes do castelo, à exceção de umas quantas janelas iluminadas. Tudo parecia completamente deserto. Sim Valek estava nos seguindo, não podia vê-lo. Quando atravessamos a porta, uma brisa mais forte nos saudou. Caminhamos pelo campo de erva que rodeava os muros do castelo. Não se permitia nenhum tipo de construção a menos de um quarto de milha da fortaleza. A cidade, que se tinha chamado no passado


Jewelstown em honra da Rainha, tinha passado a chamar-se Castletown depois da mudança de regime. As lojas do festival de fogo se colocaram nos campos que havia ao oeste do Castletown. —Não vai vir Dilana? —perguntei ao Rand. —Já está ali. Esta tarde tiveram uma emergência. Quando os bailarinos abriram as caixas com os disfarces, descobriram que algum animal tinha feito buracos nos objetos. Chamaram a Dilana para que os ajudasse a remendá-los antes da cerimônia de inauguração. Estou seguro de que o pânico que se apoderou deles nesses momentos deveu ser muito divertido. —Para ti, mas não para a pobre mulher que está a cargo dos disfarces. —É certo. —Onde está seu bolo? —Sammy o levou esta manhã. O concurso de confeitaria tem lugar o primeiro dia para que possam vender os bolos enquanto ainda estão tenros. Quero comprovar os resultados. Como é que você não participa de nenhum dos concursos? Uma pergunta muito singela. Uma de quão muitas eu tinha estado tratando de evitar com certo êxito desde que Rand e eu nos fizemos amigos. Ao princípio, suspeitei que seu interesse fosse obter informação para a seguinte ronda de apostas, mas terminei me dando conta de que seu interesse era autêntico. —Não tenho dinheiro para pagar a inscrição — disse. Era certo, embora não era a história completa. Teria que confiar plenamente no Rand antes de lhe contar minha relação com o festival de fogo. —Não tem sentido que não paguem à provadora da comida do Comandante — comentou Rand, com certo tom de indignação — Que melhor maneira de obter informação sobre o Comandante que subornar à provadora? Estaria disposta a vender informação por dinheiro? —acrescentou, depois de uma pequena pausa, me olhando com o rosto muito sério.


Capítulo 12

Ao escutar a pergunta de Rand, pus-se a tremer. Estava me perguntando simplesmente ou acaso estava tentando pagar para obter informação? Imaginei a reação do Valek se descobrisse que eu tinha aceitado um suborno. Não ter dinheiro era melhor que enfrentar a sua ira. —Não, não o faria — respondi. Rand lançou um grunhido. Caminhamos perdidos em um incômodo silêncio durante um momento. Perguntei-me se Oscove, o anterior provador do Comandante, tinha aceito dinheiro em troca de informação. Isso explicaria por que Valek não tinha sentido simpatia alguma por ele e por que Rand suspeitava que Valek tivesse assassinado ao Oscove. —Se quiser, eu te pagarei a inscrição. Sua ajuda foi muito valiosa para mim e certamente ganhei muito dinheiro graças a ti — comentou Rand. —Obrigado, mas não estou preparada. Seria uma perda de dinheiro. Além disso, estava decidida a desfrutar do festival sem dinheiro, só para demonstrar ao Valek que podia fazer. Apesar de haver prometido mesmo que não o faria, olhei por cima do ombro. Nada. Tratei de me convencer de que não ver o Valek só podia significar algo bom. Se eu podia vê-lo, vê-lo-ia qualquer um. Entretanto, não podia esquecer a estranha sensação de que, talvez, tinha decidido me deixar a minha sorte. Sentia-me como se estivesse fazendo equilíbrios sobre um cabo, tentando não cair. Não podia me proteger e me divertir ao mesmo tempo? Não sabia, mas estava decidida a tentá-lo. —Em que concurso teria participado? —quis saber Rand. Antes que eu pudesse responder, agitou as mãos diante de mim— Não! Não me diga isso! Quero adivinhá-lo. —Adiante — comentei com um sorriso. —Vejamos. É miúda, magra e elegante. Bailarina? —Volta a tentá-lo. —Muito bem. Recorda a um passarinho, que deseja sentar-se em um batente enquanto ninguém se aproxime muito. Um passarinho que canta. É cantante? —Evidentemente, jamais me escutaste cantar. Acaso vais analisar minha personalidade cada vez que diga algo?


—Não. Cale-te. Estou tratando de pensar. Bom, tem uns dedos largos e finos. Talvez te dês bem fiar. —Equivoca-te. —Cavaleiro? —De verdade crê que eu me poderia permitir um cavalo? —perguntei, surpreendida. Só os cidadãos muito ricos tinham cavalos para fazer esporte. No exército, só os oficiais de mais alta graduação utilizavam cavalos. Também os conselheiros. Todos outros foram caminhando. —As pessoas que possuem cavalos de carreiras normalmente não os monta. Contratam cavaleiros. Seu tamanho é perfeito, assim deixa de me olhar como se fora um imbecil. Quando chegamos à primeira das enormes tendas multicoloridas, nossa conversação cessou. Vimo-nos envoltos na frenética atividade que nos assaltou ao entrar. Quando eu era mais jovem, estava acostumada a desfrutar em meio daquele caos. Sempre tinha acreditado que o nome do festival era perfeito, não só porque se celebrasse na estação mais cálida, mas sim porque os sons e os aromas vibravam como se fossem quebras de onda de calor, que provocavam que o sangue fervesse. Entretanto, depois de passar um ano em uma masmorra, senti que sua força me golpeava como se tratasse de uma parede de tijolos. Uma parede cujo morteiro ameaçava desmoronando-se pelo amontoado de sensações. As tochas e as fogueiras ardiam por toda parte. Era como se, de repente, tivesse se feito dia. As lojas de atuações e de competição estavam pulverizadas por toda parte, com pequenos postos que se aferravam a elas como meninos às saias de suas mães. Havia algo, desde gemas exóticas a palmatórias mata-moscas. O aroma da comida provocava que o meu estômago protestasse ao passar por diante das churrasqueiras. Lamentei não ter jantado pela pressa de chegar ao festival. Havia gente por toda parte. Alguma vez, a maré humana nos empurrava para diante e outras vezes nos detinha. Tínhamos perdido aos outros. De fato, se Rand não tivesse entrelaçado seu braço com o meu provavelmente o teria perdido a ele também. Havia distrações por toda parte. Eu teria gostado de ir escutar a música, mas Rand estava interessado em conhecer os resultados do concurso de confeitaria. Enquanto avançávamos, examinava os rostos das pessoas, procurando uniformes verdes e negros apesar de que Valek havia dito que Brazell não representaria uma ameaça. Apesar de tudo, pareceu-me prudente evitá-lo a ele e a seus soldados.


Reunimo-nos por fim com o Porter e Liza em uma pequena loja com um aroma tão doce que provocou que o estômago me doesse de fome. Estavam falando com um homem com o uniforme de cozinheiro, mas se detiveram ao nos ver entrar. Imediatamente, todos rodearam ao Rand e o felicitaram por ter conseguido o primeiro posto. O homem declarou que Rand tinha quebrado o recorde do festival, ganhando cinco anos consecutivos. Enquanto Rand examinava os bolos, eu perguntei ao homem quem tinha ganho no Distrito Militar 5. Sentia curiosidade por ver se o cozinheiro do Brazell tinha ganho ali com seu Crioulo. O homem franziu o cenho pela concentração. —Ah, sim! Ganhou Branda, com um bolo de limão celestial. Por quê? —Acreditava que o teria ganho o cozinheiro do general Brazell, Ving. Eu estava acostumado a trabalhar em sua casa. —Bom, Ving ganhou faz dois anos com um bolo de nata e agora participa todos os anos com o mesmo, esperando voltar a ganhar. Pareceu-me estranho que não tivesse participado com seu Crioulo. Entretanto, antes que pudesse encontrar uma razão, Rand, cheio de júbilo, tirou-nos todos da loja. Queria nos convidar a todos a uma taça de vinho para celebrar sua vitória. Tomamos o vinho e seguimos percorrendo o festival. Em duas ocasiões, vi uma mulher com uma expressão muito séria no rosto. Levava o cabelo negro recolhido na nuca e levava o uniforme de falcoeira. Movia-se com a graça de alguém acostumado ao exercício físico. A segunda vez que a vi, estava muito mais perto e consegui estabelecer contato visual com ela. Entreabriu os olhos verdes esmeralda e me olhou descaradamente até que eu apartei o olhar. Havia algo familiar naquela mulher. Demorei algum tempo em descobri-lo. Recordava aos meninos que estavam a cargo do Brazell. Seus rasgos se pareciam mais aos meus que à pele marfim da maioria dos habitantes do Território. A pele daquela mulher era morena, não por efeito do sol, mas sim por uma pigmentação natural. De repente, nosso grupo se viu empurrado por outro a uma loja. Era a dos acrobatas, em que homens e mulheres embelezados com trajes de brilhantes cores realizavam seus exercícios sobre camas elásticas, cabos e colchonetes. Todos estavam tratando de superar a ronda de classificação. Vi como um homem realizava uma série de maravilhosos exercícios no cabo. De soslaio, vi que Rand estava me observando. Tinha uma expressão triunfante no rosto. —O que? —perguntei-lhe. —É acrobata!


—Era-o. —Não importa. Eu tinha razão! —exclamou, aplaudindo. Sim me importava. Reyad tinha corrompido o mundo da acrobacia. Longe ficava o tempo no que tinha sentido satisfação e gozo. Já não imaginava que pudesse obter satisfação alguma. Todos observavam aos participantes dos bancos. Os grunhidos de esforço, os trajes empapados de suor e o tamborilar dos pés me fizeram desejar os dias quando o único que me preocupava era encontrar o tempo necessário para praticar. Quatro dos que residíamos no orfanato do Brazell nos tinham inclinado pela acrobacia. Tínhamos conseguido ter uma zona de práticas detrás dos estábulos. Nossos enganos nos enviavam contra a erva até que o capataz teve piedade de nossos machucados corpos. Um dia, encontramos uma grosa capa de palha atapetando nossa zona de práticas. Os professores do Brazell nos animavam a encontrar algo no que pudéssemos se sobressair. Tinha-me fascinado o mundo da acrobacia do primeiro festival de fogo. Apesar das horas de prática, falhei durante a ronda de classificação da primeira competição em que participei. A desilusão foi grande, mas me curei isso com resolução. Ao ano seguinte, consegui superar a ronda de classificação para cair na seguinte. Cada ano ia avançando uma ronda mais até que, o ano antes que Brazell e Reyad me reclamassem como rato de laboratório, cheguei a final. Eles não me permitiam praticar acrobacias, mas isso não impediu que eu me escapasse para poder fazê-lo. Desgraçadamente, Reyad me surpreendeu uma semana antes do festival, quando retornou com antecipação de uma viagem. Estava tão concentrada que não o vi montado em seu cavalo até que terminei meu exercício. Sua expressão, uma mescla de ira e gozo, provocou que as gotas de suor me convertessem em cristais gelados. Aquele ano me proibiu ir ao festival por ter desobedecido a suas ordens. Além disso, como castigo adicional, cada tarde durante cinco noites, Reyad me obrigou a me despir. Com um cruel sorriso no rosto, olhava-me fixamente enquanto eu tremia apesar do calor da noite. Pendurava-me pesadas cadeias de um colar de metal que me colocava no pescoço. As cadeias chegavam até as algemas que tinha colocado em bonecas e tornozelos. Eu queria gritar, lhe golpear com os punhos, mas estava muito aterrada para lhe zangar ainda mais. Com o rosto cheio de agradar ao ver meu medo e minha humilhação, obrigava-me a realizar exercícios de acrobacia com um pequeno látego. Uma chicotada era minha reprimenda por me mover muito lentamente. As cadeias golpeavam meu corpo com cada


movimento. Seu peso provocava que cada cambalhota fora exaustiva. As algemas me esfolavam as bonecas e os tornozelos. O sangue me corria por braços e pernas. Quando Brazell participava dos experimentos, Reyad seguia meticulosamente as ordens de seu pai. Entretanto, quando estava a sós comigo, os exercícios se voltavam mais cruéis. Algumas vezes, convidava a seu amigo Mogkan para que o ajudasse e convertiam meu inferno em um concurso para ver quem inventava o melhor modo de pôr a prova minha resistência. Eu temia constantemente que enfurecesse ao Reyad o suficiente como para que ultrapassasse a linha que parecia ter esboçado. Apesar da tortura e a dor que me infligia, jamais me violou. Por isso, eu dava cambalhotas e saltos com cadeias para evitar que ele cruzasse essa linha. O braço do Rand sobre os ombros me devolveu ao presente. —Yelena, o que te passa? —perguntou, com os olhos cheios de preocupação— Parecia como se estivesse tendo um pesadelo com os olhos abertos. —Sinto muito. —Não tem por que te desculpar comigo — disse, me entregando um bolo de carne— Sammy nos trouxe isso. Dava- as graças ao Sammy. Quando centrei minha atenção nele, abriu muito os olhos e empalideceu. Então, apartou o olhar imediatamente. Sem pensar, dava um pequeno bocado e provei cuidadosamente se por acaso havia veneno. Ao não encontrar nada, comecei a comer pensando nas histórias que lhe teriam contado ao Sammy para que tivesse tanto medo de mim. Os meninos da idade do Sammy normalmente desfrutam assustando-os uns aos outros com contos de terror. Nós estávamos acostumados a fazê-lo no orfanato, quando tinham apagado os abajures e estávamos na cama esperando o sonho. Sussurrávamos histórias de monstros e de maldições de magos, ou sobre os antigos alunos do orfanato, que simplesmente parecia que desapareciam. Não nos dava explicação alguma de onde trabalhavam e jamais encontrávamos a nenhum na cidade ou na casa. Portanto, criávamos horríveis explicações de seu destino. Eu jogava muito menos aquelas noites, quando por fim podia descansar depois de passar o dia com o Reyad. Ele me isolava os outros. Tinha-me tirado do dormitório das garotas e me tinha instalado em uma habitação ao lado da sua. De noite, com o corpo machucado e a alma humilhada, ficava acordada e recitava mentalmente aquelas histórias até que dormia.


—Yelena, podemos ir. —Como? —Se o espetáculo está te desgostando, vamos. Há uma dança do fogo espetacular. —Podemos ficar. Simplesmente... estava recordando. Entretanto, se vocês preferem ver a dança de fogo, acompanhar-lhes-ei. —Recordando? Deveu odiar ser acrobata. —OH, não. Eu adorava. Não dava mais explicações. A confusão que se refletiu no rosto do Rand me fazia querer rir e chorar ao mesmo tempo. Como podia lhe explicar que não era a acrobacia o que me desgostava, a não ser os acontecimentos que tinha desencadeado? O cruel castigo do Reyad por praticá-la. Escapar para participar do festival ao ano seguinte, o que tinha desembocado na morte do Reyad. Pus-se a tremer. As lembranças do Reyad eram como uma armadilha que não estava disposta a fazer saltar. —Explicar-lhe-ei isso algum dia, Rand, mas, no momento, eu gostaria de ver a dança de fogo. Ele entrelaçou seu braço com o meu enquanto todos saíamos da loja. De repente, um bêbado se tropeçou comigo, murmurou uma desculpa e me saudou com sua jarra de cerveja. Ao tratar de fazer uma reverência, caiu a meus pés. Teria-me detido para ajudá-lo, mas me distraiu o fogo. Senti que o ritmo da dança de fogo se apoderou de mim ao ver como as bailarinas lançavam seus utensílios ardentes ao ar e entravam em sua loja. Assombrada pelos intrincados movimentos das bailarinas, passei por cima do bêbado. A excitação e a pressão da gente na entrada fez que me soltasse do Rand. Não me preocupei até que me vi rodeada por quatro imensos homens. Dois deles, levavam uniformes de ferreiro, enquanto que os outros dois os levavam de granjeiros. Desculpei-me e tratei de deixá-los atrás, mas eles se apertaram mais contra mim, me apanhando.


Capítulo 13

O terror se apoderou de mim. Estava metida em uma confusão. Gritei para pedir ajuda, mas uma mão enluvada me tampou a boca. Ao morder o couro, notei o sabor da cinza, mas não pude chegar à pele. Os ferreiros me agarraram pelos braços e me empurraram enquanto que os granjeiros caminhavam diante, impedindo que ninguém me visse. De fato, com o rebuliço que havia ao redor da loja, ninguém se deu conta de que estavam me seqüestrando. Resisti, arrastei os pés e peguei patadas. Eles jamais diminuíram o passo. Afastaram-me das luzes e da segurança do festival. Estirei o pescoço para ver se encontrava um modo de escapar, mas um dos ferreiros me bloqueou a visão. Tinha a espessa barba cheia de fuligem, embora a metade estivesse chamuscada. Detivemo-nos detrás de uma loja que estava às escuras. Os granjeiros se apartaram e vi uma sombra que apartava o tecido. —Dá-se dado conta alguém? Seguiu-lhes alguém? —perguntou a sombra, com voz de mulher. —Tudo saiu à perfeição. Todo mundo estava absorto nas bailarinas — disse o ferreiro das luvas de couro. —Bem. Matem-na agora mesmo — lhes ordenou a mulher. O homem das luvas de couro tirou uma faca. Eu comecei de novo a resistir e consegui me soltar durante um instante. Entretanto, os granjeiros imobilizaram meus braços enquanto o da barba chamuscada me sujeitava as pernas. Tinham-me sujeita por cima do chão o das luvas de couro levantou a arma. —Nada de facas, idiota! Pensa em como ia se pôr tudo de sangue. Utiliza isto. A mulher entregou ao ferreiro uma larga e fina cinta. Em um abrir e fechar de olhos, a faca desapareceu e o homem colocou a cinta ao redor do meu pescoço. —Nãaa... —gritei, mas meus protestos se cortaram junto com o fornecimento de ar. O homem começou a apertar a corda. Uma intensa pressão me rodeava o pescoço. Agitei os membros em vão. Notei uns pontos brancos diante dos olhos. Um débil zumbido começou a escapar dos lábios. Muito fraco. O instinto de sobrevivência tinha me salvado dos soldados do Brazell e das torturas do Reyad, mas era muito fraco naquela


ocasião. Por cima do rugido do sangue que zumbia em minhas orelhas, ouvi o que a mulher dizia. —Depressa! Está começando a projetar! Quando estava a ponto de perder a consciência, a voz de um bêbado disse; —Me perdoem, senhores. Sabem onde podem me encher a jarra? A pressão do pescoço aliviou um pouco quando o ferreiro tirou sua faca. Deixei que meu corpo se relaxasse e senti que caía ao chão. Os outros três se colocaram diante de mim para evitar que o intruso me visse. Eu comecei a tomar ar com desespero, mas o fiz com cuidado, para que ninguém se desse conta de que ainda podia respirar. Desde minha nova situação, vi que o ferreiro das luvas de couro se equilibrou sobre o bêbado. O som do metal estalou no ar quando a faca se chocou contra a jarra de metal do bêbado. Com um giro brusco da boneca, a jarra ficou em movimento. A faca voou pelos ares, atravessando o tecido da loja. Então, o bêbado golpeou ao ferreiro com a jarra na cabeça. O das luvas de couro se desmoronou sobre o chão. Ao ver o ocorrido, os outros três entraram em ação. Os granjeiros agarraram ao intruso pelos braços enquanto o da barba queimada lhe golpeava no rosto. Então, utilizando aos granjeiros para apoiar seu peso, o bêbado levantou as duas pernas e rodeou o pescoço de seu oponente com elas. Depois de um agudo rangido, o segundo ferreiro caiu também ao chão. Sem soltar a jarra, o bêbado golpeou a virilha de um dos granjeiros. Enquanto este se dobrava pela dor, o bêbado levantou a jarra e lhe golpeou com força na cara. Continuando, centrou-se no outro granjeiro e lhe esmagou o nariz com a jarra. Com o sangue lhe emanando abundantemente, o granjeiro, presa da dor, soltou-o. Então, o bêbado lançou um segundo golpe contra a têmpora do granjeiro. Este caiu ao chão sem emitir nem um só som. A briga tinha durado segundos. A mulher não se moveu, sem deixar de olhar a escaramuça. Então, olhei-a e a reconheci como a mulher de pele escura que tinha visto duas vezes aquela noite. Perguntei-me o que faria ao ver que seus gorilas estavam inconscientes. Como tinha recuperado um pouco as forças, considerei as possibilidades que tinha de alcançar a faca antes que ela. O bêbado tinha o rosto coberto de sangue. A seus pés, estavam os corpos dos quatro homens. Tratei de me pôr de pé. A mulher me olhou repentinamente, como se tivesse esquecido de que eu estava ali. Então, começou a cantar. Sua doce e melodiosa voz se meteu em minha cabeça. Dizia-me que relaxasse, que tombasse, que estivesse quieta. Sem poder me negar, obedeci-a. Sentia-me como se


estivessem me metendo na cama, me cobrindo com uma manta até o queixo. De repente, a manta começou a cobrir a minha cabeça. Estava me afogando. Resisti, me arranhando loucamente o rosto para me retirar aquela manta imaginária. De repente, Valek apareceu diante de mim,

gritando ao meu ouvido e me

sacudindo pelos ombros. Foi então que me dei conta de que ele era o bêbado. Quem, se não ele, poderia ter ganho uma briga a quatro homens tão corpulentos com tão somente uma jarra de cerveja? —Recita mentalmente os venenos! —gritou. Não fiz conta. A relaxação foi apoderando-se de mim. Deixei de lutar. Quão único queria fazer era me afundar naquela escuridão e seguir a música... —Recita! Agora! É uma ordem! O costume me salvou. Sem pensá-lo, obedeci ao Valek. Comecei a repassar mentalmente os nomes dos venenos. A música se deteve. A pressão que sentia no rosto se aliviou. Pude voltar a respirar. Fiz-o ruidosamente. —Segue recitando — me disse ele. A mulher e a faca tinham desaparecido. Valek me obrigou a ficar de pé. Eu cambaleei, mas ele me sujeitou, colocando uma mão no ombro. Eu a agarrei durante um instante, tratando de reprimir a necessidade de arrojar, soluçando a seus braços. Tinha salvo minha vida. Quando recuperei o equilíbrio, Valek se concentrou nos homens. Sabia que o da barba queimada estava morto, mas não estava tão segura de outros. —São suboas — disse Valek, com asco, enquanto tomava o pulso — Dois estão vivos. Terei que levar eles ao castelo para interrogá-los. —E a mulher? —coaxei. Resultava-me difícil falar. —Foi-se. —Vai procurá-la? Valek me dedicou um estranho olhar. —Yelena, é uma maga do sul. Apartei o olhar dela, assim já não há maneira alguma de poder encontrá-la — explicou. Então, agarrou-me por braço e me conduziu para o festival. Eu não deixava de tremer enquanto que a comoção do ataque me percorria o corpo. Demorei um momento em compreender as palavras do Valek. —Uma maga? —perguntei— Acreditava que as tinham banido da Ixia. —Embora não são bem-vindas, algumas vêm de visita.


—Mas eu acreditava... —Agora não. Explicarei-lhe isso mais tarde. Agora, quero que se reúna com o Rand e seus amigos. Finge que não ocorreu nada. Duvido que o volte a tentar esta noite. Valek e eu permanecemos nas sombras até que vimos ao Rand perto da loja das acrobacias. Estavam me procurando e não deixavam de me chamar. Valek indicou que me reunisse com meu amigo. Eu só tinha dado um par de passos quando Valek me chamou. —Yelena, espera. Dava a volta. Ele indicou que me aproximasse. Quando o fiz, levantou a mão. Eu dava um passo atrás, mas me recuperei e fiquei imóvel. Com muito cuidado, ele tirou a cinta do pescoço e me entregou como se fosse uma serpente venenosa. Enojada, joguei-a no chão. O alívio que Rand mostrou, me pareceu exagerado. Eu duvidei. Por que tinha se preocupado tanto? Para ele, eu simplesmente tinha me perdido. Quando ele se aproximou de mim, notei o doce aroma do vinho. —Yelena, onde estiveste? Não tinha me dado conta de que ele tinha bebido tanto vinho. Aquilo podia explicar por que havia se sentido tão desesperado por me encontrar. O álcool envenena a mente e exagera as emoções. —Havia muita gente na loja. Necessitava um pouco de ar — menti, não sem certa angústia ao pronunciar a palavra “ar” quando acabavam de tentar me estrangular. Voltei a olhar às sombras. Estava Valek ainda me observando ou partiu para prender a aqueles homens? Onde estaria a mulher de pele escura? Antes tinha estado tão contente de poder sair do castelo, mas naqueles momentos, não havia nada que desejasse mais que retornar, sentir aqueles fortes muros ao redor de mim, voltar a estar na segurança das habitações do Valek. Essa sim que era uma estranha combinação. Valek e a palavra segurança na mesma frase... Não tinha gostado de ter que mentir ao Rand. Depois de tudo, era meu amigo. Talvez o único que se haveria sentido aborrecido por minha morte. Apesar de que tinha me salvado a vida, estava segura de que Valek só se teria mostrado contrariado por ter que adestrar a um novo provador. Como a dança de fogo tinha terminado, o resto do grupo estava esperando fora da loja. Dilana estava por fim com eles. Rand me soltou imediatamente e foi para ela. Dilana


sorriu, lhe dizendo em brincadeira que foi perseguir à provadora quando tinha prometido reunir-se com ela. Rand lhe suplicou que o perdoasse e lhe explicou que não podia permitirse me perder dado que eu lhe tinha ajudado a ganhar o concurso de confeitaria. Dilana pôsse a rir e abraçou ao Rand. De braços dados, os dois se dirigiram ao castelo. Outros os seguimos. Encontrei-me a última da procissão, mas aquela vez tinha a Liza como companheira. —Não sei o que Rand vê em ti — me espetou. Certamente, não era um modo muito amistoso de começar uma conversação. —Como diz? —Perdeu a dança de fogo por ir te buscar. Desde que você apareceu, a rotina da cozinha desapareceu e todos os que trabalham nela estão transtornados. —Do que está falando? —Antes que você

se apresentasse, os estados de ânimo do Rand eram

previsíveis. Mostrava-se alegre e contente quando Dilana estava contente e as apostas lhe beneficiavam e áspero e hostil quando não era assim. Então... você se fez amiga dele. Rand começa a grunhir a todo mundo sem motivo. Até ganhando muito dinheiro com suas apostas, está deprimido. Resulta muito lhe frustrem. Chegamos à conclusão de que deve estar tratando de tirar-lhe a Dilana. Queremos que o deixe em paz e que permaneça afastada da cozinha. Liza tinha escolhido o pior momento para aquela conversação. O fato de ter escapado da morte fazia só um momento punha as coisas em perspectiva, mas a ira se apoderou de mim. Agarrei-a pelo braço e atirei dele para que se voltasse para me olhar. —Chegastes à conclusão? Certamente o poder mental de todos vocês não poderia nem acender uma vela. A amizade que Rand e eu temos não é seu assunto, portanto, sugirolhes que vocês repensem sua hipótese. Se houver um problema na cozinha, tratem de solucioná-lo. Estão perdendo o tempo se queixando sobre mim. Apartei-a bruscamente. Pela expressão de seu rosto, deduzi que Liza não se esperou uma resposta tão fera. “Pior para ela”, pensei, enquanto apertava o passo para me reunir com os outros. O que queria que eu fizesse? Tinha assumido que eu deixaria obedientemente de falar com o Rand só para que tudo fosse melhor na cozinha. Não ia consentir que descarregasse seus problemas sobre mim. Já tinha bastante com meus, como por que poderia querer me matar uma maga de Sitia.


Já no castelo, despedi-me de Rand e da Dilana e dirigi-me às habitações do Valek. Antes de entrar, pedi a um dos guardiões que examinasse o interior. Os intentos de assassinato junto com uma imaginação desbocada me punham muito nervosa. Não me senti segura até que Valek chegou, já perto da alvorada. —Não dormiste? —perguntou-me. Um hematoma do tamanho de um punho contrastava com sua pálida pele. —Não, mas você tampouco. —Eu posso dormir durante o dia. Você tem que provar a comida do Comandante dentro de uma hora. —Necessito respostas. —A que perguntas? —perguntou-me Valek, enquanto começava a apagar os abajures. —Por que quer me matar uma maga do sul? —Boa pergunta. Eu ia perguntar-te o mesmo. —E como quer que eu saiba? —repliquei, cheia de frustração— Os soldados do Brazell o entendo, mas uma maga... Eu não fui por aí, zangando às magas que me encontrei. —É uma pena, dado que tem um verdadeiro talento para zangar às pessoas — repôs Valek. Sentou-se em seu escritório e apoiou a cabeça entre as mãos— Uma maga do sul, Yelena... Uma maga do sul com fila de professora... Sabe que só há quatro magas professoras em Sitia? Quatro. E, da mudança de regime, permaneceram em Sitia. Em certas ocasiões, mandam uma maga de menor importância para ver o que estamos fazendo. Até agora, interceptamos a todos os espiões. O Comandante Ambrose não tolera a magia na Ixia. Durante a época do Rei, aos magos lhes tinha considerado uma elite, lhes tratava como se fossem membros da realeza e tinham tido muita influência com o Rei. Segundo a história da mudança de regime, Valek os tinha assassinado a todos. Perguntei-me como, dado que não tinha podido capturar à mulher daquela noite. Ele ficou de pé. Agarrou uma pedra cinza. Enquanto a atirava de mão em mão, percorreu a sala. Como recordava as práticas que tinha realizado com a última pedra que tomou, permaneci sentada no sofá, mas levantei os pés do chão e levei os joelhos ao peito, esperando me converter no branco menor possível. —Para que os suboas tenham posto em perigo a uma de suas magas professoras, a razão tem que ser... por que vão detrás de ti? —perguntou-me, sentando-se a meu lado— Tratemos de raciociná-lo. Evidentemente, tem sangue do sul.


—Como? Jamais tinha pensado em minha família. Tinham-me encontrado nas ruas, sem casa e Brazell me tinha acolhido. A única especulação que se produziu sobre meus pais tinha sido sobre se estavam mortos ou simplesmente me tinham abandonado. Não tinha lembranças de minha vida antes de chegar ao orfanato. Principalmente, havia-me sentido agradecida de que Brazell me desse um teto. O fato de que Valek realizasse aquela afirmação me surpreendeu. —A cor de sua pele é algo mais escuro que o do nortista típico. Seus rasgos têm influências do sul. Os olhos verdes são muito estranhos em nosso território, mas muito mais comuns em Sitia. Asseguro-te que não é nada do que envergonhar-se — disse, interpretando mal a expressão de meu rosto. Durante os tempos do Rei, a fronteira de Sitia estava aberta para realizar intercâmbios comerciais. As pessoas se moviam livremente entre as regiões e os matrimônios eram inevitáveis. Eu diria que você ficou atrás depois da mudança de regime, quando a gente teve medo e fugiu ao sul antes que fechássemos a fronteira. Não sei o que esperavam. Assassinatos em massa? Quão único fizemos foi lhe dar a todo mundo um uniforme e um trabalho. O meu pensamento dava voltas. Por que não havia sentido mais curiosidade por minha família? Nem sequer sabia em que cidade tinham me encontrado. Todos os dias, recordavam-nos quão afortunados fomos por ter roupa, comida, um teto, professores e inclusive uma pequena quantidade de dinheiro a nossa disposição. Repetidamente nos havia dito que muitos meninos órfãos não tinham tanta sorte como nós. Acaso nos estavam lavando assim o cérebro? —Duvido que fora um membro de sua família — comentou Valek, ficando de pé e seguindo com seu passeio — Não quereriam te matar. Há algo mais, além do assassinato do Reyad, que fizesse no passado? Foi testemunha de um crime? Escutou por acaso os planos de uma rebelião? Algo assim? —Não, nada. —Então, temos que dar por sensato que isto tem que ver com o Reyad. Talvez ele se relacionasse com os suboas e o fato de que você o matasse danificou seus planos. Talvez estão planejando invadir Ixia ou acreditam que você sabe algo sobre este complô. Entretanto, não tenho notícias de que Sitia queira nos atacar. Além disso, por que foram fazer-lo? Sitia sabe que o Comandante deseja permanecer no norte e vice-versa. Pode que Brazell se tornou mais imaginativo com a idade e tenha contratado a uns suboas para que te matem.


Assim, poderia ver completo o desejo de ver-te morta sem implicar-se diretamente... Não. Isso não tem sentido. Brazell teria contratado a uns delinqüentes. Não teria necessitado uma maga. A menos que tenha vínculos que eu desconheço, o que resulta bastante duvidoso. De repente, interrompeu-se como se lhe tivesse ocorrido algo repentinamente e me olhou muito fixamente. —O que? —As magas poderiam vir ao norte para pôr a um dos seus a salvo. Entretanto, por que foram matar-te? —perguntou, antes que eu pudesse dizer nada— A menos que fosse uma Buscadora de Almas, não lhe quereriam morta. Bom, estou muito cansado para pensar. Vou à cama — acrescentou, dirigindo-se às escadas. Buscadora de Almas? Não tinha nem ideia do que poderia ser isso, mas tinha coisas mais importantes das que me preocupar. —Valek, meu antídoto. —É obvio — respondeu, sem deixar de subir as escadas. Enquanto ele estava acima, perguntei-me quantas vezes no futuro teria que pedir meu antídoto. Saber que me mantinha viva me envenenava a mente tanto como o Pó de Mariposa me envenenava o corpo. À medida que foi clareando a manhã, pensei em minha cama com certo desejo. Valek podia dormir, mas eu tinha que provar a comida do Comandante muito em breve. Por fim baixou e me deu meu antídoto. —Talvez hoje queira soltar o cabelo. —Por quê? —perguntei, embora soubesse que as cintas estavam rasgadas e cheias de nós. —Para cobrir as marcas que tem no pescoço.

Antes de ir ao despacho do Comandante, fui correndo aos banhos. Tinha o tempo suficiente para me lavar e me pôr um uniforme limpo antes de me apresentar ante ele. A cinta de couro tinha deixado uma marca muito visível no pescoço, que resultava impossível cobrir penteando-me como fosse. De caminho ao despacho do Comandante, vi a Liza. Ela franziu os lábios e apartou o olhar ao passar a meu lado. Outra pessoa a que tinha zangado. Lamentei lhe haver feito branco de minha ira, mas não pensava em me desculpar, depois de tudo, tinha começado ela.


A maioria das manhãs, o Comandante não me emprestava atenção quando chegava. Eu provava seu café da manhã e logo escolhia uma parte de Crioulo para verificar que ninguém o tinha envenenado durante a noite. Todas as manhãs, se me fazia a boca água ao pensar na deliciosa sobremesa. O Comandante guardava com zelo seu estoque, e limitava o consumo a uma parte depois de cada comida. Além disso, Rand havia me dito já tinha pedido mais ao Brazell, junto com uma cópia da receita do Ving, seu cozinheiro. Depois de colocar a comida na bandeja do Comandante, recolhia o horário diário e partia sem intercambiar palavra com ele. Entretanto, aquela manhã, ele pediu que me sentasse. Tomei assento no bordo da cadeira. Sentia um pouco de medo, por isso entrelacei os dedos para manter impassível o rosto. —Valek me informou que ontem à noite teve um incidente. Preocupa-me outro tento por te arrebatar a vida ponha em perigo nosso exercício. Quero que me convença de que poderá te fazer de fugitivo sem que lhe matem. Segundo Valek, não o reconheceu quando se tropeçou contigo. Para ouvir aquelas palavras, fiquei boquiaberta, mas fechei a boca ao considerar suas palavras. Ao Comandante não lhe bastaria uma explicação precipitada ou um argumento ilógico. Além disso, acabava de proporcionar uma saída fácil. Por que tinha que arriscar o pescoço por aquele exercício? Eu não tinha treinamento de espião. Não tinha podido identificar ao Valek nem sequer quando sabia que ele estava me seguindo. Além disso, uns misteriosos personagens tinham tentado me matar. —Sou nova no jogo da caça e a busca. Para uma pessoa sem preparação, resulta difícil reconhecer a ninguém em um festival tão cheio de gente. É como lhe pedir a um menino que se ponha a correr quando acaba de aprender a andar. Nos bosques, resultasse-me mais fácil dado que estarei sozinha e terei que evitar a todo mundo. Pode-se conseguir que essa maga volte a fazer ato de presença, poderemos descobrir por que quer me matar. Além disso, Valek me assegurou que ele me seguirá. —Está bem. Procederemos como tínhamos planejado. Não espero que vá muito longe, assim duvido que vejamos essa maga — disse o Comandante, pronunciando a palavra como se lhe deixasse um mau sabor na boca— Entretanto, espero que mantenha a discrição sobre todo este assunto. Considera-o uma ordem. Pode partir. —Sim, senhor.


Parti do despacho. Passei o resto do dia compilando e tomando emprestadas coisas que podia necessitar para o exercício, que ia começar no dia seguinte ao romper o dia. Fui à oficina da Dilana e à ferraria. Só mencionando o nome do Valek, produziu notáveis resultados nos ferreiros, que se apressaram a me proporcionar tudo o que Valek necessitava. Por sua parte, Dilana, que teria dado tudo o que lhe tivesse pedido, mostrou-se um pouco desiludida quando lhe disse que só queria tomar emprestada uma mochila de couro. —Fique com ela. Ninguém a reclamou. Leva aqui desde que eu comecei. A fiz companhia enquanto remendava os uniformes. Contou-me as últimas intrigas e insistiu em que devia comer mais. Minha última parada foi a cozinha. Com a esperança de encontrar ao Rand a sós, esperei até que o resto partiu. Rand estava de pé, trabalhando em seus menus. Cada semana, o Comandante tinha que aprovar os menus antes que Rand os pudesse dar a Liza para que esta se assegurasse de que todos os ingredientes estavam disponíveis. —Tem melhor aspecto do que eu me sinto — disse Rand — Hoje não tenho nada para que o prove. Não tive forças. —Não importa — repliquei. Fixei-me na palidez de seu corpo e nas escuras olheiras— Não te entreterei. Só preciso tomar emprestadas algumas costure. —O que? —perguntou-me, mais interessado. —Pão. E um pouco dessa cola que inventou. A doutora o utilizou para me selar um corte do braço. É maravilhoso! —A cola é uma das melhores receitas que inventei. Contou-te a doutora como o descobri? Estava tratando de fazer um adesivo comestível para um enorme bolo de bodas de dez pisos Y... —Rand — disse, interrompendo-o— Eu adoraria escutar a história, mas prefiro que me conte isso em outro momento. O dois deveria estar já dormindo. —Sim, tem razão — replicou, me assinalando um montão de barras de pão — Toma o que necessite. Enquanto tomava o pão, Rand rebuscou em uma gaveta. Então, entregou um pote de cola branca. —Não é permanente. A cola permanecerá uma semana e logo se soltará. Algo mais? —Bom... Sim — sussurrei, sem saber se podia fazer minha petição, que era precisamente a razão principal pela que queria estar a sós com o Rand.


—O que? —Necessito uma faca. Rand voltou bruscamente a cabeça. Vi que lhe refletia uma faísca nos olhos quando recordou como tinha matado ao Reyad. Vi que, mentalmente, sopesava nossa recente amizade contra aquela petição tão pouco usual. Esperava que me perguntasse por que necessitava uma faca. Não foi assim. —Qual quer? —A que mais dê medo.


Capítulo 14

À manhã seguinte, dirigi-me à porta do sul justo quando o sol coroava as montanhas da Alma. Muito em breve, os gloriosos raios do sol se estenderam pelo vale, indicando assim o início do exercício do Comandante. O meu coração pulsava loucamente de excitação e temor. Era uma estranha combinação de sentimentos, mas os dois aceleraram meus passos. Quase não sentia o peso de minha mochila. Tinha me preocupado que os artigos que levava na mochila pudessem considerarse como uma armadilha. Depois de pensá-lo muito, decidi que um prisioneiro que tem a intenção de escapar guardaria algumas rações de pão e roubaria uma arma e outros objetos. Além disso, ninguém havia dito que devia fugir sem nada. Minha decisão por escapar tinha incrementado desde que me propuseram a idéia pela primeira vez. Naquele momento, o dinheiro era simplesmente um estímulo. Queria demonstrar ao Comandante que se equivocava. O Comandante, que acreditava que eu não chegaria muito longe. O Comandante, ao que lhe preocupava que minha morte pusesse em perigo o exercício. Antes de abandonar o castelo, detive-me um instante para vê-lo a luz do dia. Minha primeira impressão foi que parecia ter sido construído por um menino. A base era retangular e sustentava uma série de níveis superiores de quadrados, triângulos e cilindros, construídos um em cima do outro sem tom nem som. O único intento por conseguir simetria eram as magníficas torres que haviam em cada esquina do castelo. Estavam cobertas de muito belas vidraças e pareciam estender-se até o céu. O desenho tão pouco usual do castelo me intrigou. Eu teria gostado de observá-lo de outro ângulo, mas Valek tinha dado instruções de que saísse do complexo à alvorada, dado que só tinha uma hora de adiantamento sobre os outros. Valek tinha pedido uma de minhas camisas para poder dar aos cães para que a farejassem. Quando eu lhe perguntei quem provaria a comida do Comandante enquanto eu estivesse ausente, ele me deu uma vaga resposta. Disse-me que tinha a outros preparados na arte do veneno que eram muito valiosos para utilizar-se regularmente. Ao contrário de mim. A eleição da rota para o sul era uma eleição evidente, mas não a manteria muito tempo. Esperava que os soldados dessem por certo que me dirigia diretamente à fronteira. O


complexo do castelo estava no DM-6, bastante perto das terras do sul, com o DM-7 ao oeste e o DM-5 ao leste. O antigo Rei, que tinha construído aquele complexo, preferia o bom tempo. Como ia alternando entre andar e correr, muito em breve cheguei ao bosque das Serpentes. A noite anterior, enquanto estudava alguns dos mapas do Valek, tinha-me dado conta de que havia um bosque que rodeava Castletown por três lados. Atravessei correndo o bosque, deixando um rastro muito evidente. Rompi ramos e pisei com força a terra. Segui para o sul até que alcancei um pequeno arroio. A hora que tinha de vantagem estava a ponto de terminar-se. Ajoelhei-me na água e tirei um punhado de barro, deixando que a água escorresse entre meus dedos. Então, lubrifiquei o sedimento sobre a cara e o pescoço. Como tinha recolhido o cabelo, pude esfregar o barro pela nuca e as orelhas sem problemas. Esperava que os homens pensassem que tinha ajoelhado ali para beber. Depois de deixar muitos rastros na borda do rio para que meus perseguidores pensassem que tinha entrado na água. Então, voltei sobre meus passos até que encontrei uma árvore. Com muito cuidado para não deixar rastros, tirei a mochila das costas e deixei um dos objetos que tinha tomado emprestado dos ferreiros. Era um pequeno gancho de metal. Atei-o a uma larga e magra corda que tinha dentro da mochila. Com rapidez, tratei de enganchar o de um ramo, mas falhei. Frenética, voltei a tentá-lo. Uma vez mais, não o consegui. Centrei-me em minha tarefa e voltei a provar sorte. Consegui-o. Depois de me assegurar de que o gancho estava bem assegurado, atei o outro lado do cabo à cintura e coloquei a mochila. Então, atirei da corda com ambas as mãos e levantei meu peso do chão para me enganchar imediatamente à corda. Fazia muito tempo da última vez que tinha escalado assim. Meus músculos se queixaram pela larga inatividade. Quando cheguei ao alto, sentei-me escarranchado sobre o ramo e voltei a guardar a corda e o gancho. Soprava uma forte brisa do oeste. Como queria apartar do vento para que os cães não captassem meu aroma, dirigi-me para o este, saltando de árvore em árvore. Por uma vez, meu pequeno tamanho e minhas habilidades acrobáticas me reportaram um benefício. Quando encontrei com uma árvore da espécie Cheketo, encontrei um lugar seguro para apoiar minha mochila. Esta espécie de árvore é a maior das que crescem no bosque das Serpentes. Tem uma folha de forma circular, com manchas marrons, que era perfeita para minhas necessidades. Permaneci imóvel durante um momento, escutando. Não se ouvia nada mais que o canto dos pássaros e o zumbido dos insetos. Detectei os débeis latidos dos


cães, mas poderia que só se tratasse de minha imaginação. Não se via o Valek por nenhuma parte. Entretanto, conhecendo-o, tinha que estar muito perto. Tirei a cola do Rand e comecei a arrancar folhas da árvore. Quando tive suficientes, tirei a camisa e comecei a pegar as folhas. Como me sentia nervosa por estar em roupa interior, trabalhei com rapidez. Cobri a camisa, as calças, as botas e a mochila com as folhas. Então, preguei uma folha enorme no cabelo e duas menores nas mãos, de modo que os dedos seguissem tendo liberdade para mover-se. Sorri ao pensar no que diria Rand se me visse caminhando com folhas na cabeça e nas mãos por todo o castelo. Não tinha espelho, mas esperava haver camuflado adequadamente todo o corpo de marrom e verde. Como estava muito nervosa para ficar em um lugar muito tempo, segui avançando entre as árvores para o leste. O gancho e a corda me ajudaram em numerosas ocasiões, embora às vezes tive que trocar de rumo para poder utilizar os ramos das árvores mais adequadas. Não obstante, sabia que cedo ou tarde teria que me dirigir para o sul, dado que ali era o único lugar no que um prisioneiro poderia encontrar segurança e asilo. Sitia recebia com os braços abertos aos refugiados da Ixia. Seu governo tinha tido uma excelente relação com o Rei, intercambiando especiarias exóticas, tecidos e mantimentos por metais, pedras preciosas e carvão. Quando o Comandante deu por concluídas as relações comerciais, Ixia perdeu muitos artigos de luxo enquanto que Sitia viu como seus recursos se limitavam. Felizmente, os geólogos de Sitia tinham descoberto minas nas montanhas Esmeralda, por isso, no momento, o território do sul parecia contentar-se vigiando cautelosamente a seu vizinho do norte. Muito em breve, encontrei-me com um atalho muito utilizado no meio do bosque. Tinha profundos rastros de carretas. Deduzi que provavelmente se tratava da rota de comércio que atravessava o país deste o oeste. Sentei-me sobre um enorme ramo para pensar. Decidi que enquanto decidia aonde me dirigir, podia almoçar. Depois de um momento, os relaxantes sons do bosque me fizeram adormecer. —Vê algo? —disse uma voz masculina a meus pés, me tirando de meu torpor. Muito assustada, agarrei ao ramo para não cair. — Não! — replicou a voz de outro homem na distância. Parecia muito aborrecido. Não tinha escutado latidos, por isso deduzi que devia ser a outra equipe, a menor. Muito arrogante. Merecia que me encontrassem logo. Supus que iam ordenar que descesse da árvore, mas não foi assim. Olhei para baixo, mas não pude vê-los. Talvez eles tampouco tivessem me visto. Depois de um


momento, dois homens surgiram de entre os matagais. Eles também levavam camuflagem verde e marrom em suas roupas, embora em seu caso resultassem mais profissionais. —foi uma estupidez vir para o leste. Certamente já chegou à fronteira do sul — disse o da voz resmungona. —Isso foi o que decidiram os dos cães, embora os cães de caça perderam o rastro — replicou o outro. Sorri. Tinha enganado aos cães. Ao menos, isso o tinha conseguido. —Não vejo a lógica de ir ao leste —comentou o da voz resmungona. —Não tem que ver nada. O capitão nos ordenou que fôssemos para o leste e nós vamos para o leste. Parece pensar que essa mulher vai se dirigir ao DM-5. É um território que lhe resulta familiar. —E se não retornar? Outra estupidez o de utilizar à provadora de comida — se queixou o da voz resmungona — É uma assassina. —Isso não é nosso assunto, mas sim do Valek. Estou seguro de que se, conseguisse escapar, ele se ocuparia dela. Perguntei-me se Valek estaria escutando. Os dois sabíamos a razão pela que eu não escaparia, mas encontrei aquele comentário muito instrutivo. Nem todo mundo sabia que tinham me envenenado. —Vamos. Temos que nos reunir com o capitão no lago. Ah, e não faça tanto ruído. Os dois homens partiram, escondendo-se de novo entre os matagais. Esperei pacientemente até que não notei atividade alguma. Os homens tinham decidido meu seguinte movimento. O lago estava para o leste. Sem deixar os ramos das árvores, dirigi-me para o sul. Enquanto avançava, comecei a ter um estranho sentimento. De algum modo, convenci-me de que os homens que eu tinha visto estavam me seguindo e que se aproximavam cada vez mais. Senti um desejo irrefreável de avançar com mais rapidez. Quando já não o pude suportar mais, deixei a um lado todas as precauções e desci das árvores. Comecei a correr desesperadamente. Quando cheguei a um pequeno claro, detive-me. O sentimento de pânico tinha desaparecido. O flanco me doía muito. Deixei cair a mochila e me sentei no chão, tratando de recuperar o fôlego. Amaldiçoei-me por me haver deixado levar pelo pânico. —Bonito traje — me disse uma voz familiar. O medo me deu forças para me pôr de pé.


Não se via ninguém. Ainda. Abri a mochila e tirei a faca. O coração me dava saltos incontrolados no peito. Examinava o bosque enquanto me movia em pequenos círculos, procurando a voz da morte.


Capítulo 15

Uma gargalhada me envolveu por completo. —Sua arma não te servirá de nada. Poderia te convencer de que em realidade, o que desejas é afundá-la em seu próprio coração em vez de no meu. Vi-a do outro lado do claro. Ia embelezada com uma camisa de camuflagem de cor verde, muito ampla e rodeada à cintura, junto com calças da mesma cor. A maga do sul estava apoiada contra uma árvore, com os braços cruzados sobre o peito. Como esperava que seus gorilas me atacassem em qualquer momento, segui bradando a faca. —Tranquila — me disse a maga — Estamos sozinhas. —E por que devo confiar em ti? A última vez que nos encontramos, ordenou que me matassem. Inclusive lhes subministrou a cinta para que o fizessem De repente, compreendi que ela não tinha necessitado absolutamente a aqueles homens. Comecei a recitar nomes de venenos. A maga pôs-se a rir. —Isso não te servirá de nada. A única razão pela que te serviu a noite do festival foi porque Valek estava ali — explicou. Então, aproximou-se um pouco mais. Eu agitei a faca com gesto ameaçador— Yelena, te relaxe. Projetei-me em sua mente para te guiar até aqui. Se te tivesse querido morta, te teria feito cair das árvores. Na Ixia, um acidente supõe menos problemas que um assassinato. De fato, você sabe muito bem. —E por que não tive um “acidente” no festival ou em outro momento? —Preciso estar perto de ti. Faz falta muita energia para matar a alguém. Se for possível, prefiro utilizar métodos mais mundanos. O festival foi a primeira vez que me pude aproximar de ti sem que Valek estivesse perto. Ou isso tinha acreditado eu — acrescentou, com certa frustração. —E por que não matou ao Valek com sua magia durante o festival? Assim eu teria sido uma presa mais fácil. —A magia não funciona com o Valek. Olhe, não tenho tempo de lhe explicar isso tudo. Valek chegará muito em breve, assim tenho que abreviar, Yelena. Estou aqui para te fazer uma oferta. —E o que poderia me oferecer? Tenho trabalho, roupa e um chefe pelo que morrer. Que mais posso necessitar?


—Asilo em Sitia — replicou ela— Para que possa aprender a controlar e utilizar seu poder. —Poder? Do que está falando? —Venha já! Como é possível que não saiba? Utilizaste-o ao menos em duas ocasiões no castelo. A mente começou a me dar voltas. Estava falando de meu instinto de sobrevivência. Aquele estranho zumbido que eu possuía quando minha vida estava a sério perigo. —Estava trabalhando muito perto quando o senti. Quando compreendi que se tratava da provadora da comida do Comandante Ambrose, compreendi que seria impossível te seqüestrar e te levar ao sul. Ou está com o Valek ou ele anda perto. De fato, agora estou correndo um risco extraordinário. Entretanto, resulta muito perigoso ter uma maga sem polir no norte. Surpreende-me que tenha durado tanto tempo sem que lhe descubram. A única eleição que ficava era terminar contigo. Uma tarefa que demonstrou ser mais difícil do que tinha acreditado em um princípio. —Acaso crê que agora vou confiar em ti? Crê que vou seguir-te mansamente, como se fosse um cordeiro a caminho do matadouro? —Yelena, se não estivesse fazendo de fugitiva, o que te tirou do castelo e te afastou do Valek, já estaria morta. Não sabia se acreditá-la. O que podia ganhar ela mentindo? Por que tomar-se tantas moléstias se podia me matar? Devia motivá-la algo mais. —Não me crê. O que te parece uma pequena demonstração? Senti que uma profunda dor me atravessava a mente como o relâmpago. Agarreime a cabeça com as mãos e tratei de impedir o que me estava ocorrendo. Então, uma força incontestável me golpeou na frente. Caí de costas sobre o chão e senti que a dor desaparecia tão rápido como tinha chegado. Apesar de que tinha os olhos cheios de lágrimas, olhei à maga. Vi que ela não se moveu. Não havia me doído, ao menos fisicamente. —Que diabos foi isso? —perguntei-lhe — Por que não utilizaste seus cânticos? — acrescentei, enquanto me sentava. —Cantei no festival porque estava tratando de ser amável. Isto foi um esforço para te convencer de que, se te quisesse morta, não estaria perdendo o tempo falando contigo nem esperaria até que estivesse em Sitia — afirmou. Então, inclinou a cabeça como se


estivesse escutando— Valek se aproxima com rapidez. Dois homens o perseguem, mas eles acreditam que perseguem a ti. Posso diminuir a marcha dos homens, mas não a do Valek. Vais vir comigo? —Não. —Como diz? Acaso desfruta provando comida? —perguntou ela, atônita. —Não, mas morrerei se vou contigo. —E também se ficar. —Correrei o risco. Pus-me de pé e sacudi o pó da roupa. Então, recuperei minha faca. Não queria explicar à maga o veneno. Para que lhe dar outra arma que podia utilizar contra mim? Se era certo que tinha um vínculo mental comigo, averiguaria-o. —Há antídotos — disse. —Pode encontrar um antes da manhã? —Não — admitiu ela —

Necessitaríamos mais tempo. Nossos curandeiros

precisariam compreender onde se oculta o veneno. Poderia estar em seu sangue, em seus músculos ou em qualquer parte. Além disso, precisariam saber como arbusto para poder controlá-lo. Quando se deu conta de que eu não compreendia nada, a maga prosseguiu com sua explicação. —A fonte de nosso poder, o que vós chamais magia, é como uma manta que rodeia o mundo. Nossas mentes conectam com esta fonte e assim aumentam nossas habilidades mágicas. Todo mundo tem o talento latente de ler a mente e influir no mundo físico sem tocá-lo, mas nem todos têm a poder de conectar com a fonte de energia. Yelena, não podemos consentir que seu poder esteja inverificado. Em vez de conectar simplesmente, você absorve toda a energia que há a seu redor. Quando for mais velha, terá amassado tanto poder que explodirá ou sairá ardendo. Isto não só mataria a ti, mas também danificaria a fonte de poder em si mesmo, realizando um buraco na manta. Não podemos nos arriscar a que isto ocorra e muito em breve será impossível te adestrar neste terreno. Por isso, não fica mais eleição que te matar antes que alcance esse ponto. —Quanto tempo fica? —Um ano. Talvez um pouco mais se possa controlar. Depois disso, não poderemos te ajudar. E lhe necessitamos, Yelena. Em Sitia não abundam as magas poderosas.


Rapidamente avaliei minhas opções. A demonstração de poder daquela maga me tinha convencido de que eu seria uma estúpida se confiasse nela. Entretanto, se não a acompanhava, mataria-me ali mesmo. Decidi pospor o inevitável. —Me dê um ano. Um ano para encontrar o antídoto, para encontrar o modo de escapar a Sitia. Um ano no que não me preocuparei de que estejam planejando minha morte. A maga olhou aos olhos. Parecia estar registrando minha mente, procurando uma indicação de que eu a estava mentindo. —Muito bem. Um ano. Prometo-lhe isso. —Sei que quer terminar esta reunião com alguma classe de ameaça — lhe disse — Talvez uma advertência. Faz-o. Estou acostumada. Não saberia como confrontar uma conversação que não incluíra algo assim. —Te faça a valente, mas sei que se desse outro passo para ti, molhar-te-ia as calças. —Com seu sangue — repliquei, brandindo a faca. De repente, dava-me conta de que minha ameaça tinha divulgado muito ridícula. A maga pôs-se a rir. Aquela maneira de liberar a tensão me fez sentir enjoada. Muito em breve comecei a rir e a chorar ao mesmo tempo. A maga recuperou a serenidade. Inclinou a cabeça e pareceu escutar de novo. —Valek está muito perto. Devo ir. —me diga uma coisa mais. —O que? —Como soube que eu seria a fugitiva? Pela magia? —Não. Tenho fontes de informação que me resulta impossível revelar. Eu assenti, mostrando minha compreensão. Tinha valido a pena tentá-lo. —Tome cuidado, Yelena — me recomendou, enquanto desaparecia no bosque. Dava-me conta de que nem sequer sabia o nome daquela mulher. —Irys — acrescentou, me sussurrando mentalmente. Enquanto pensava em tudo o que a maga me havia dito, dava-me conta de que tinha muito mais pergunta que lhe fazer, todas elas muito mais importantes que quem lhe tinha dado a informação. Entretanto, como sabia que já partira, reprimi o desejo de chamá-la. Em vez disso, deixei-me cair ao chão. O corpo tremia violentamente quando coloquei a faca na mochila. Tirei a garrafa de água e dava um comprido trago, desejando que o cantil estivesse cheio de algo um pouco


mais forte. Precisava pensar antes que Valek e os dois homens chegassem onde eu estava. Tirei a corda e o gancho e, uma vez mais, procurei uma árvore adequada para voltar a me refugiar na cúpula do bosque. Sem deixar de avançar para o sul, repassei mentalmente toda a informação que tinha recebido. Quando cheguei a outro atalho do bosque, encontrei um lugar onde me acomodar no ramo de uma das árvores. A maga tinha prometido um ano, mas eu não queria tentá-la com um branco fácil. Podia trocar de opinião. Depois de tudo, como podia saber eu que as magas eram pessoas de palavra? Ela tinha afirmado que eu tinha poderes, uns poderes que eu sempre tinha qualificado como um instinto de sobrevivência. Quando tinha me encontrado em situações extremas, tinha sentido possuída. Era como se alguém mais capacitado de enfrentar à crise tomasse temporalmente o controle de meu corpo, me resgatasse da morte e partisse depois. Podia ser que meu poder fosse igual ao de Irys? Se for assim, devia manter em segredo minha magia. Tinha que aprender a controlar meu poder de algum modo. Como? Resultavame impossível evitar situações nas que minha vida estivesse em perigo. Como não tinha tempo de resolver aqueles complexos assuntos, decidi me centrar no presente. Estudei o atalho que tinha a meus pés e notei que haviam pequenas árvores crescendo no meio, como se estivessem tratando de arrebatar o atalho e voltar a uni-lo ao bosque. Certamente, aquele devia ter sido um dos caminhos abandonados que se utilizavam no comércio com Sitia. Decidi esperar ao Valek. Ele me pediria uma explicação sobre meu encontro com a maga e eu estava disposta a dar-lhe. O único que me advertiu da chegada de Valek foi o ligeiro movimento de um ramo por cima da minha. Levantei os olhos e o vi deslizando-se pelo ramo como uma serpente. Deixou-se cair a meu lado sem fazer ruído. A camuflagem verde parecia a moda do dia. A do Valek ia muito apertado ao corpo e contava com um capuz para cobrir o pescoço e o cabelo. Tinha o rosto pintado de marrom e verde, o que provocava que o azul de seus olhos ressaltasse ainda mais. Observei meu improvisado traje. Algumas das folhas se estavam rompendo e meu uniforme contava já com muitas rasgaduras das árvores. A próxima vez que pensasse fugir pelo bosque, convenceria a Dilana para que me costurasse um traje como o do Valek. —É incrível — me disse ele. —Isso é bom ou mau?


—Bom. Tinha dado por certo que lhes daria trabalho aos soldados e assim o tem feito, mas jamais esperava isto — comentou, assinalando meu uniforme e as árvores — Além disso, para rematá-lo tudo, encontrou-te com a maga e, de algum modo, conseguiu sobreviver. Suponho que aquela era sua maneira de pedir uma explicação. —Não sei o que ocorreu exatamente. Encontrou-me em um claro, depois de percorrer o bosque como uma possessa. Ela estava me esperando. A única coisa que me disse foi que tinha quebrado seus planos matando ao Reyad e logo notei uma forte dor me esmagando a cabeça. Como o ataque ainda estava muito recente, o horror do vivido me refletiu no rosto. Se Valek suspeitava o que tinha ocorrido de verdade, eu jamais viveria o ano que a maga me tinha concedido. Além disso, ao mencionar o nome do Reyad, apoiei uma das teorias do Valek sobre a razão pela que a maga estava detrás de mim. Respirei profundamente. —Comecei a recitar venenos e tratei de apartar a dor. Então, o ataque se deteve e ela disse que você estava aproximando muito. Quando abri os olhos, já tinha desaparecido. —Por que não me esperou no claro? —Não sabia onde se foi. Sentia-me mais segura nas árvores, sabendo que você poderia me encontrar. Valek pensou durante um momento em minha explicação. Eu ocultei meu nervosismo rebuscando em minha mochila. Depois de um instante, ele sorriu. —Já demonstramos que o Comandante estava equivocado. Acreditava que lhe apanhariam no meio da amanhã. Eu sorri aliviada. Aproveitei o bom humor do Valek para perguntar: —Por que odeia tanto o Comandante aos magos? A expressão de felicidade desapareceu do rosto do Valek. —Tem muitas razões. Eram amigos do Rei, aberrações da natureza que utilizavam seu poder por razões complemente egoístas. Amassavam jóias e riquezas, curando aos doentes tão somente se a família do moribundo lhes pagava uma soma de dinheiro exorbitada. Os magos do Rei realizavam jogos mentais com todo mundo e adoravam provocar o caos. O Comandante não quer ter nada haver com eles. —Nem sequer utilizá-los em benefício próprio? —O Comandante acredita que não se pode confiar nos magos, mas eu tenho uma opinião um pouco dividida a respeito — comentou — Compreendo a opinião do Comandante e acredito que matar a todos os magos do Rei foi uma boa estratégia, mas acredito que a


nova geração deveria ser recrutada para nosso serviço de inteligência. O Comandante e eu não estamos de acordo neste ponto e, apesar de meus raciocínios, ele há... —O que? —Ordenou que todos os que nasçam com poderes mágicos, embora seja em quantidades mínimas, devem ser executados imediatamente. Eu sabia da execução dos espiões do sul e dos magos da era do Rei, mas imaginar a meninos arrancados dos braços de seus pais me fez conter a respiração. Sentiame completamente horrorizada. —Pobres meninos... —É algo brutal, mas nem tanto... A habilidade para conectar com a fonte de poder não ocorre até depois da puberdade, mais ou menos à idade de dezesseis anos. Normalmente, demora-se um ano em que alguém que não seja de sua família o note e os delate. Então, ou escapam a Sitia ou eu os descubro. Aquelas palavras tinham o peso de uma viga de madeira sobre meus ombros. Custava-me respirar. Brazell me tinha recrutado à idade de dezesseis anos. Quando meu instinto de sobrevivência começou a surgir, fez-o para me defender das torturas do general e de seu filho. Acaso tratavam de provar minha magia? Por que não me delataram? Por que não apareceu Valek? Não sabia o que Brazell queria. Saber de meu poder só me reportava outra maneira de morrer. Se Valek descobria minha magia, estava morta. Se não encontrava o modo de ir sitia, estava morta. Se alguém envenenava a comida do Comandante, estava morta. Se Brazell construía sua fábrica e retornava para procurar vingança pela morte de seu filho, estava morta. Morta, morta, morta e morta. A morte às mãos do Pó de Mariposa me estava começando a parecer atrativa. Era a única possibilidade em que eu podia escolher quando, onde e como morria. Teria-me deixado levar pela autocompaixão, mas me resultou impossível. Valek me agarrou pelo braço e levou um dedo aos verdes lábios. Escutei sons distantes de homens e cascos de cavalos. Muito em breve, vi mulas que foram atirando de uns carros. A largura das carretas ocupava o caminho inteiro e as arvorezinhas e os ramos de outras árvores golpeavam contra as rodas. Havia em total seis carretas e seis homens que foram conversando entre eles enquanto viajavam. Desde meu posto na árvore, vi que a primeira ia carregada com uns sacos que poderiam estar cheios de farinha ou grão. A última levava umas estranhas vagens amarelas


que tinham forma ovalada. O bosque das Serpentes parecia estar cheio de atividade aquele dia. Valek e eu permanecemos completamente imóveis até que as carretas passaram. Quando desapareceram por fim, Valek me disse: —Não te mova. Retornarei em seguida. Ato seguido, atirou-se ao chão e seguiu à caravana. Eu fiquei inquieta. Não deixava de me perguntar se os dois homens que seguiam ao Valek me encontrariam antes que ele retornasse. O sol estava começando a desaparecer pelo oeste e uma brisa fresca estava levando o calor do dia. Pouco a pouco, senti que as forças me abandonavam. O exaustivo dia estava passando fatura. Pela primeira vez, a possibilidade de passar uma noite a sós no bosque me assustou. Jamais teria imaginado que estaria livre tanto tempo. Por fim, Valek retornou e me indicou que descesse da árvore. Ao chegar a seu lado, vi que tinha um pequeno saco, que me entregou. Em seu interior, havia cinco vagens das que tínhamos visto na última carreta. Tirei uma e a observei. Teria uns vinte centímetros de larga e era muito grosa no centro. Maravilhei-me da habilidade do Valek para roubá-las a plena luz do dia de uma carreta em movimento. —Como as conseguiste? —É um segredo —respondeu ele com um sorriso— Em realidade, conseguir foi fácil, mas tive que esperar a que os homens lhes dessem água às mulas para olhar nos sacos. Quando voltei a colocar a vagem no saco, vi que no fundo havia um montão de calhaus marrons. Coloquei a mão e tirei um punhado. Pareciam grãos. —O que é isto? —perguntei. —São dos sacos —me explicou— Quero que as leve ao Comandante Ambrose. Lhe diga que não sei o que são nem de onde vêm e que vou seguir à caravana para ver aonde se dirigem. —Acaso estão fazendo algo ilegal? —Não estou seguro. Se estas vagens e grãos são de Sitia, então, sim. É ilegal comercializar com o sul. O que sim sei é que esses homens não são comerciantes. Estava a ponto de lhe perguntar como sabia. De repente, recordei as imagens dos homens e o compreendi tudo.


—Os uniformes não lhes estão bem —disse, ao recordar quão mau foram vestidos— Pode que os tenham tomado emprestados ou que os tenham roubado. —Certamente os terão roubado. Se for tomar emprestado um uniforme, tomaria a moléstia de encontrar um que te sente bem. Yelena —disse Valek, depois de uma pausa—, quero que encontre a esses dois homens que viu esta tarde e que lhe escoltem ao castelo. Não quero que esteja sozinha. Se a maga pensa voltar a te atacar, terá que enfrentar-se com dois mais e duvido que tenha forças suficientes. Não diga a ninguém como conseguiste evitar aos soldados durante todo o dia, nem o da maga nem o da caravana. Entretanto, informa ao Comandante tudo detalhadamente. —E meu antídoto? —O Comandante o tem à mão. Ele lhe dará isso. E não se preocupe por seus incentivos. Ganhaste cada moeda. Quando retornar, assegurarei-me de que lhe dêem isso. Agora, tenho que partir ou passarei o resto da noite tratando de alcançar a caravana. —Valek, espera —disse. Pela segunda vez, alguém estava a ponto de desaparecer antes de me explicar tudo o que eu queria saber. Estava-me cansando. —Como vou encontrar aos outros? Sem o sol, não poderei me orientar. —Segue o atalho. Os soldados se dirigiam para o sudoeste. Com isso, Valek partiu. Observei seus movimentos, que eram tão graciosos como os de um cervo. Quando já não pude vê-lo, pisei com força os calhaus que havia sobre o caminho. O crepúsculo roubava às árvores sua cor e a escuridão se apoderava de tudo. Uma profunda intranqüilidade se apropriou de mim. Todos os ruídos me sobressaltavam e não fazia mais que olhar por cima do ombro, desejando que Valek estivesse a meu lado. Um grito atravessou o ar. Antes de que pudesse reagir, um enorme corpo se equilibrou sobre mim e me jogou no chão.


Capítulo 16

—Já te tenho! —exclamou um homem, sentando-se em cima de mim. Apesar de ter o rosto esmagado contra as pedras e a boca cheia de terra, reconheci a voz de um dos homens que tinha visto antes. Obrigou-me a colocar os braços à costas e senti como alguém frite esposas de metal me rodeavam as bonecas. —Não te parece um pouco excessivo, Janco? —perguntou-lhe seu companheiro. Janco se levantou e me obrigou a me pôr de pé. Em meio daquela penumbra, vi que o homem que me sujeitava era magro, com uma pequena cavanhaque. Tinha uma profunda cicatriz na têmpora e lhe faltava a metade da orelha. —Há-nos flanco muito encontrá-la. Não quero que escape —respondeu Janco. Seu companheiro era aproximadamente da mesma idade, mas duas vezes mais corpulento. Tinha uns grossos músculos e os olhos negros. Eu quis sair fugindo. Era quase de noite e eu estava algemada com dois desconhecidos. Logicamente, sabia que eram soldados do Comandante e que eram profissionais, mas isso não me tranqüilizava por completo. —Deixaste-nos em mau lugar —me disse Janco— Certamente todos os soldados vão trocar de posto. Por sua culpa, todos teremos que limpar latrinas. —Já basta, Janco —lhe disse seu companheiro— Nós não vamos ter que esfregar chão. Encontramo-la. Além disso, olhe como vai vestida. Ninguém esperava que fora de camuflagem, por isso nos há flanco tanto encontrá-la. Entretanto, o capitão vai se ficar de pedra. —Está já o capitão no castelo? —perguntei-lhe, tratando de empurrá-los a ir naquela direção. —Não. dirige-se ao sudoeste com o resto dos homens. Teremos que nos apresentar ante ele. Suspirei ao ver que haveria um atraso. Tinha esperado que a viagem de volta fora rápido. —E se envias ao Janco a procurar o capitão enquanto nos dirigimos ao castelo? —Sinto muito, mas não nos permite nos separar. Temos que viajar de duplas. Não há exceções. —Como te chama? —perguntou Janco.


—Yelena. —Por que tem tantos desejos de retornar? —Tenho medo da escuridão. —Duvido-o —comentou o outro soldado, rindo— Janco, lhe tire as algemas. Não vai se escapar. Janco duvidou. —Tem minha palavra, Janco —prometi—

Se me tira os grilhões, não sairei

fugindo. Janco grunhiu, mas me tirou as algemas. Eu limpei a terra da cara. —Obrigada. Janco assentiu e assinalou a seu companheiro. —Chama-se Ardenus. —Ari, para abreviar —comentou este, estendendo a mão. Aquele gesto era uma honra para mim. Se um soldado oferecia a mão, estava me reconhecendo como um igual. Eu a estreitei com força e os três nos dirigimos ao sudoeste para encontrar a seu capitão.

A viagem ao castelo resultou quase cômico. Quase. Se meus doloridos músculos não tivessem protestado a cada passo e se o esgotamento não me tivesse feito arrastar meu corpo como se fora uma capa velha, me teria divertido. Quando encontramos ao capitão de Janco e Ari, ele se mostrou furioso. —Vá, vá, vá. Olhem o que encontraram nossos companheiros —comentou o capitão Parffet. Era um homem calvo e suarento, que resultava velho para ser capitão. Perguntei-me se sua atitude teria algo haver com a falta de ascensões. —Supõe-se que tenho os melhores exploradores do exército do Comandante Ambrose —lhes gritou Parffet ao Ari e ao Janco— Talvez possam nos ilustrar sobre que procedimento utilizaram que lhes levou mais de dezessete horas encontrar a esta zorra. Enquanto Parffet seguia gritando, eu dava a volta e contemplei ao resto da unidade. Um par dos soldados parecia estar de acordo com seu capitão, outros pareciam resignados, como se já estivessem acostumados a seus rabietas. O resto tinha uma expressão aborrecida no rosto. Um homem, que tinha a cabeça completamente barbeada, olhava-me com uma incômoda intensidade. Quando eu olhava para ele, desviava o olhar e se centrava em seu capitão. —Nix, lhe ponha os grilhões a essa zorra —ordenou Parffet— Já vejo que nossas primadonna não se toma as moléstias de seguir os procedimentos habituais desta unidade.


Enquanto Nix se aproximava de mim, procurei a oportunidade de me escapulir. A promessa que tinha feito ao Janco só se aplicava se podia voltar sem algemas ao castelo. Ari, pressentindo o que eu estava pensando, colocou uma mão sobre o ombro e me impediu de me mover. —Senhor, temos sua palavra de que não vai escapar —disse em minha defesa. —Como se isso significasse algo —replicou Parffet, cuspindo no chão. —Deu-me sua palavra —reiterou Ari, quase com um grunhido. A contra gosto, Parffet permitiu aquela nova situação, mas pagou seu mau gênio pondo ao resto dos soldados em formação. Assim, iniciamos uma rápida volta ao castelo. Eu caminhava entre o Ari e Janco, como se fosse um prezado troféu. Ari me explicou que o capitão não aceitava bem as surpresas e que havia se sentido muito frustrado por ter que passar um dia completo no bosque me buscando. —E feito de que lhe tenhamos encontrado nós não ajuda em nada. Nós não formamos parte de sua unidade. Valek nos ordenou que o acompanhássemos —me explicou Janco. O estado de ânimo do Parffet piorou quando nos encontramos com a equipe que contava com cães. Eu experimentei um momento de pânico quando os animais se equilibraram sobre mim, mas logo resultou que o faziam só para me saudar e me lamber. Sua alegria era contagiosa. Eu sorri e lhes arranhei nas orelhas. Deixei de fazê-lo só quando Parffet franziu o cenho e pediu ordem. Os cães não levavam colares. Porter, o funcionário de canil, formava parte da outra equipe e os animais seguiam suas ordens sem pigarrear. A responsável da equipe dos cães parecia desiludida de que os cães do Porter não me tivessem encontrado primeiro, mas tomou com mais graça que o capitão do Parffet. apresentou-se e me disse que era a Capitã Etta e caminhou um momento a meu lado para me fazer perguntas sobre minha “fuga”. Eu me ative à verdade tudo o que foi possível. Quando surgiam perguntas sobre onde tinha desaparecido meu rastro, menti. Expliquei que me tinha dirigido para o norte pela água antes de tomar esta direção. Etta sacudiu a cabeça. —Estávamos tão convencidos de que te dirigiria para o sul... Parffet esteve no certo ao dirigir-se ao leste. —Ao final, queria me dirigir para o sul, é obvio, mas queria confundir aos cães antes de fazê-lo.


—Pois o conseguiste. O Comandante não se sentirá muito contente. Menos mal que Ari e Janco lhe encontraram. Se tivesse permanecido fuga toda a noite, as duas equipes teríamos cansado em desgraça. Durante os últimos quilômetros de volta ao castelo, estava tão cansada que não me fixava em nada. Concentrava minha energia em seguir me movendo. Quando por fim nos detivemos, dava-me conta de que já tínhamos chegado ao castelo. Era mais de meia-noite. Rapidamente, todos nos dirigimos à sala do trono. Ali, comprovamos que um abajur aceso indicava que o Comandante estava ainda em seu escritório. Parffet e Etta compartilharam um olhar de resignação antes de dirigir-se ao gabinete para informar ao Comandante. Eu encontrei uma cadeira e me sentei nela. Muito em breve, os capitães retornaram. O rosto do Parffet ia adornado com um profundo cenho, mas o da Etta não mostrava emoção alguma. Disseram a suas unidades que podiam romper filas. Eu estava tratando de encontrar forças para me pôr de pé quando Etta se aproximou e me ajudou. —Obrigado. —O Comandante espera seu relatório. Eu assenti. Etta partiu com seus homens e eu me dirigi ao despacho. Ao chegar à porta, duvidei. —Entra — ordenou o Comandante. Aproximei-me de seu escritório. Estava tão imóvel e impassível como sempre. Sem poder evitá-lo, perguntei-me sua idade. Sua fila sugeria um homem amadurecido, mas sua constituição e seu jovem rosto parecia indicar que estava mais perto dos quarenta anos. Uns sete anos maior que Valek, se a estimativa que tinha feito sobre a idade deste era correta. —Me informe. Descrevi detalhadamente o que tinha feito ao longo de todo o dia, inclusive minha fuga através das árvores e meu encontro com a maga. Dava-lhe a mesma versão que lhe tinha relatado ao Valek. Concluí meu relatório lhe falando da caravana e do fato de que Valek me tinha ordenado que retornasse. Esperei as perguntas do Comandante. —Significa isso que Ari e Janco não lhe capturaram? —Não, mas foram quão únicos estiveram perto de fazê-lo. Passaram perto de uma árvore que eu tinha me escondido e estiveram seguindo ao Valek durante um tempo. O Comandante guardou silêncio durante um momento. Seus olhos dourados pareciam me transpassar enquanto eu lhe dava a informação. —Onde estão os artigos que Valek te entregou?


Abri a mochila e deixei as vagens e os grãos sobre o escritório. O Comandante tomou a vagem e a examinou na mão. Então, agarrou um punhado de grãos e fez o mesmo. Depois de observar uma, rompeu-a pela metade. —Não são da Ixia. Devem ser de Sitia, Yelena. Leva-lhe isso e investiga um pouco. Descobre o que são e onde crescem. —Eu? —perguntei atônita. Tinha esperado que poderia me esquecer delas assim que as entregasse à Comandante. —Sim. Valek me recorda constantemente que não devo te subestimar e, uma vez mais, demonstraste-me isso. O general Brazell te educou bem. Eu não gostaria que essa educação se desperdiçasse. Eu queria protestar, mas o Comandante me ordenou que partisse. Com um suspiro, levei meu maltratado corpo aos banhos. Ali, tirei dolorosamente a roupa, lavei o barro da cara e do pescoço e me inundei em uma fumegante banheira. Ali, desfrutando da calidez da água, estirei meus doloridos músculos e tratei de relaxar. Com a esperança de tirar a cola do cabelo, inundei a cabeça sob a água e me desfiz o recolhido que levava. Deixei que os relaxantes sons da água me embalassem. De repente, umas fortes mãos me agarraram pelos ombros. A boca e o nariz me encheram de água. Tratei de me soltar e, efetivamente, as mãos se retiraram durante um segundo. Então, comecei a me afundar. Instintivamente, agarrei a meu assaltante, mas, antes de que pudesse fazer nada, este me tirou da água e me jogou no chão. Imediatamente, pus-me de pé para me enfrentar a meu atacante. Vi que se tratava de Margg, que tinha uma expressão de desgosto no rosto. —Que diabos crê que está fazendo? —gritei-lhe. —Salvando sua inútil vida —replicou ela. —Como diz? —Não se preocupe. Não desfrutei de nada com isso. De fato, me teria encantado ver como te afogava, mas o Comandante me ordenou que viesse a me ocupar de suas necessidades —disse a mulher, me arrojando uma toalha em cima— Talvez tenha enganado ao Comandante e ao Valek e eles creem que é muito boa. Entretanto, como vai ser alguém que fica dormido em uma banheira? Tratei de pensar em um modo de lhe replicar, seguindo o conselho da Dilana. Nada. Não me ocorria nada. Não fazia mais que pensar no fato de que talvez Margg acabava de me salvar a vida.


—Recordo-te que seguia ordens —me espetou Margg—

Alguns inclusive

poderiam estar de acordo em que te salvar a vida foi além de meu dever. Não o esqueça, rato. Enquanto eu começava a me secar, deu-se a volta e partiu. Não sentia gratidão alguma pelo fato de que Margg me tivesse salvado a vida, assumindo que isso fora o que tinha feito. Talvez me tinha fundo primeiro para logo fingir que me salvava. Não lhe devia nada. Recordei que me tinha deixado coberta de vômito quando tomei o “Meu amor” e se negou a limpar minha habitação quando Valek me levou às suas, além de escrever uma desagradável mensagem no pó. O pior de tudo era que, certamente, estava-lhe dando informação sobre mim ao Brazell. Se tinha salvado de me afogar, só tinha compensado por tantos desprezos, embora não por todos. Tal e como eu o via, ainda estava em dívida comigo. O caminho de volta às habitações do Valek me pareceu interminável. Meus passos só se viam animados por meu desejo de chegar à cama.

Durante os seguintes dias, caí em uma rotina. Provava as comidas do Comandante, ia à biblioteca para investigar e dava um passeio pelo castelo. Meu dia como fugitiva tinha provocado que sentisse falta do exterior. Se não podia subir nas árvores, ao menos sim podia percorrer os jardins. Utilizei o mapa que tinha copiado em meu jornal para encontrar a biblioteca. Estava constituída por uma série de salas em distintos níveis, que estavam a transbordar de livros. O aroma de pó e abandono flutuava por toda parte. Entristecia-me saber que aquela tremenda fonte de informação se desperdiçava porque o Comandante desanimava aos seus de educarse além do que era necessário para seus trabalhos. Dentro de sua estrutura militar, uma pessoa se preparava exclusivamente para seu trabalho. Não se via bem o fato de aprender simplesmente pelo desejo de aprender. Quando comprovei que a biblioteca era em realidade um lugar completamente esquecido por todos, decidi levar ali as vagens e os grãos em vez de transportar os pesados livros a minha habitação. Encontrei uma mesa ao lado de uma janela, pela que o sol entrava em torrentes. Depois de limpar a mesa de pó, converti aquela zona em meu lugar de trabalho. Cortei as vagens pela metade e descobri que estavam cheias de uma polpa esbranquiçada e pegajosa. Depois de provar a polpa, comprovei que tinha um sabor doce, algo cítrico e com um ponto amargo, como se estivesse começando a apodrecer-se. A polpa continha umas sementes. Contei trinta e seis exatamente e notei que se pareciam com os


grãos da caravana. Minha excitação diminuiu ao comparar os dois grãos contra a luz do sol. A que tinha tirado da vagem era morada em vez de marrom e, quando a mordi, tive que cuspi-la por seu sabor amargo. Não se parecia em nada ao sabor dos grãos marrons. Depois de dar por certo que as vagens eram uma fruta e os grãos comestíveis, tirei todos os livros de botânica que pude encontrar e os amontoei sobre a mesa. Então, voltei a percorrer as estantes. Naquela ocasião, tirei todos os volumes que pude encontrar sobre venenos. Um montão muito menor. Valek certamente levou os mais interessantes a seu escritório. Em meu terceiro percurso pelas prateleiras, tratei de encontrar livros de magia. Nada. Vi que uma das prateleiras estava completamente vazia, uma raridade em uma biblioteca que estava a transbordar. Perguntei-me se ali teriam estado os livros sobre magia. Tendo em conta a opinião do Comandante sobre a magia, resultava lógico que tivesse destruído toda a informação pertinente. Meu instinto me empurrou a olhar nas prateleiras inferiores. Pensei que um livro podia ter escorrido da prateleira superior e ficar oculto baixo os das prateleiras inferiores. Meus esforços se viram recompensados pelo descobrimento de um magro volume titulado “Fontes de poderes mágicos”. Abracei o livro com força quando a paranóia se apoderou de mim. Olhei a meu redor para me assegurar de que não havia ninguém na biblioteca e escondi o livro em minha mochila. Pensava lê-lo mais tarde, preferivelmente em meu dormitório com a porta fechada. Encantada com minha última aquisição, procurei por toda parte até que encontrei uma cadeira que me resultasse cômoda. Antes de levar isso a minha guarida, limpei-lhe o pó, sacudindo com força o veludo arroxeado. Era a cadeira mais elegante que tinha visto no castelo e me perguntei quem a teria utilizado antes de mim. Lhe teriam gostado ao Rei os livros? A considerável coleção parecia indicar isso precisamente. Passei muitas horas naquela cadeira, lendo os livros que tinha escolhido sem encontrar nada. Ao menos, o tedioso trabalho se via dividido em pequenas sessões, obrigado a que tinha que me ausentar para provar a comida do Comandante e por meus passeios vespertinos pelo castelo. Levava quatro dias realizando aquele exercício, mas aquela tarde, meu passeio contava com um propósito. Procurei um lugar ao que se pudesse admirar esta porta, mas do qual não pudessem as pessoas que passavam por ela. Valek ainda não tinha retornado de sua missão e a semana de festejos pelo festival de fogo tinha terminado também. Aquela mesma manhã, Rand tinha me informado que


Brazell e seus soldados por fim partiam do castelo, por esta porta. O desejo de ver como Brazell partia tinha levado a procurar o lugar perfeito. Efetivamente, a informação do Rand resultou ser correta. Muito em breve me vi recompensada por um desfile de soldados vestidos de verde e negro. Vi o Brazell sobre sua égua, cavalgando entre seus conselheiros. Enquanto observava ao Brazell, o fantasma do Reyad apareceu a meu lado. Sorriu e se despediu de seu pai com um gesto da mão. Um calafrio me percorreu as costas. De repente, uma mão tocou o meu braço. O medo me provocou uma pequena convulsão. —Menos mal que se vão —disse Ari. Estava com o Janco ao outro lado da cerca. Os dois levavam as camisetas sem mangas e as calças curtas com os que aos soldados gostava de treinar. —Aposto algo que você está tão contente como nós de que se vão —comentou Janco, enquanto secava o suor da cara com a parte inferior da camiseta. —Assim é —admiti. —Queremos te dar o obrigado, Yelena —afirmou Ari. —Por que? —O Comandante nos nomeou capitães. Disse que você falou muito bem de nós — respondeu Janco. Surpreendida e agradada de que o Comandante tivesse tido em conta minha opinião, sorri. —Agora, formamos parte da guarda de elite do Comandante —acrescentou com a voz cheia de orgulho. —Devemo-lhe uma. Quando necessitar ajuda, só tem que nos dizer. — o disse Ari. Aquelas palavras me deram uma arriscada ideia. Talvez Brazell se partiu, mas ainda seguia sendo uma ameaça. —Necessito ajuda —disse. Seus rostos refletiram uma expressão muito surpreendida. —Para que? —perguntou Ari. —Preciso aprender a me defender. Podem-me ensinar autodefesa e a dirigir uma arma? —perguntei-lhes, sem saber se estava pedindo muito. Entretanto, se me diziam que não, não tinha perdido nada. Ao menos o tinha tentado. Ari e Janco se olharam. —Que classe de arma? —quis saber Ari.


Pensei rapidamente. Necessitava algo que fora o suficientemente pequeno para poder levá-lo escondido no uniforme. —Uma faca —respondi, sabendo que teria que devolver o que me tinha emprestado Rand da cozinha. Os dois homens intercambiaram mais gestos. Pareceu-me que Ari estava de acordo, mas a idéia não parecia ser do gosto do Janco. —Olhem —disse, sem poder suportá-lo mais— Se negarem, compreenderei. Não quero lhes colocar em confusões e sei o que você, Janco, pensa de mim. Acredito que suas palavras exatas foram: “é uma assassina”. Portanto, se a resposta for não, não me importará. Os dois se olharam atônitos. —Como...? —começou a perguntar Janco, antes de que Ari lhe interrompesse com uma cotovelada no braço. —Ouviu-nos no bosque, idiota. A que distância estava? —A cinco ou seis metros. —Maldita seja —comentou Ari, sacudindo a cabeça—

Quem nos preocupa é

Valek. Se ele estiver de acordo, ensinaremo-lhe. De acordo? —De acordo. Ari e eu estreitamos as mãos. Quando me voltei para o Janco, ele parecia perdido em seus pensamentos. —Uma navalha! —exclamou, me agarrando a mão. —Como? —perguntei. —Uma navalha seria melhor que uma faca —explicou. —E onde levaria eu essa navalha? —Atada à coxa. Só tem que fazer um buraco no bolso de suas calças. Então, se lhe atacarem, só tem que tirá-la, abri-la e terá uma arma a sua disposição. —Estupendo! —gritei. Tão entusiasmada estava pela idéia de aprender a me defender que me esqueceu a condição— Quando começamos? —Bom, dado que Valek ainda não retornou —comentou Janco, acariciando-a cavanhaque—, poderíamos começar com uns movimentos de autodefesa básicos. Não acredito que haja nada que objetar a isso. —São movimentos que poderia ter aprendido observando os treinamentos dos soldados —acrescentou Ari, completamente de acordo com seu companheiro, decidiram-se imediatamente.


—Começaremos agora mesmo —disseram ao uníssono.

Capítulo 17

Ao lado dos dois enormes soldados, sentia-me como uma ameixa entre dois melões. Comecei a ter minhas dúvidas. O fato de que eu pudesse me defender contra alguém da corpulência do Ari parecia ridículo. Se ele quisesse, poderia me agarrar e me colocar em cima do ombro sem que eu pudesse fazer nada a respeito. —Muito bem, primeiro começaremos com um pouco de autodefesa —explicou Ari— Não utilizaremos armas até que os movimentos básicos sejam instintivos. É melhor lutar sem armas que com uma que não se saiba utilizar. Um oponente hábil te desarmaria sem esforço e, nesse caso, seus problemas se multiplicariam. Não só lhe poderiam atacar, mas também o estariam fazendo com sua própria arma. Ari deixou a espada de treinamento que ainda levava na mão e olhou o campo de práticas. A maioria dos soldados já partiram, mas ainda ficavam pequenos grupos exercitando-se. —Quais são seus pontos fortes? —perguntou Ari. —Meus pontos fortes? —O que te dá bem? —Se correr com rapidez, é bom —comentou Janco, ao notar minha confusão. —Bom... sou bastante flexível. Estava acostumado a ser acrobata. —Perfeito. A coordenação e a agilidade são umas habilidades excelentes. Y... Naquele momento, Ari me agarrou pela cintura e me atirou ao ar. Minhas extremidades me falharam durante um instante antes de que meu instinto entrasse em ação. Ainda no ar, coloquei o queixo e peguei braços e pernas a meu corpo. Então, executei uma cambalhota para me alinhar e caí de pé, embora me custou um pouco conservar o equilíbrio. Um pouco zangada, voltei-me para o Ari. Antes de que eu pudesse pedir uma explicação, ele me disse:


—Outra vantagem de conhecer as técnicas acrobáticas é que se tem a habilidade de cair sempre de pé. Essa tua manobra poderia significar a diferença entre a vida e a morte. Não é verdade, Janco? —Claro que ajuda —afirmou este. Continuando, Janco e Ari dedicaram toda sua atenção a me mostrar como bloquear murros e patadas. Quando terminamos, tinha os antebraços doloridos. O exercício terminou quando outro soldado se aproximou. Tanto Ari como Janco ficaram muito tensos ao ver que se tratava de Nix, o guarda da unidade do capitão Parffet. Estava talher de suor, certamente pelo exercício. —Que diabos creem que estão fazendo? —espetou a ambos. —Quererá dizer, que diabos acreditam que estão fazendo, senhores? —corrigiu-lhe Janco—

Temos uma fila superiora ao teu. De fato, acredito que estaria bem que nos

saudasse. —Perderão a ascensão quando seu chefe descubra que lhes associastes com uma assassina —replicou Nix — A que descerebrado lhe ocorreu a ideia de ajudá-la a aperfeiçoar suas técnicas de matar? Quando aparecer outro cadáver, os dois serão cúmplices. Janco deu um passo ameaçador para o Nix, mas lhe deteve a mão do Ari. —O que fazemos com nosso tempo livre não é teu assunto, Nix —lhe espetou Ari, com tom ameaçador— Agora, por que não vai com o Parffet? Vi-o em direção às latrinas. Muito em breve, necessitará-te para que lhe limpe o traseiro. Essa é a tarefa para a que está mais qualificado. Apesar de que estava em inferioridade numérica, Nix não pôde resistir a lançar uma pua antes de partir. —Diz-se que essa mulher matou a seu benfeitor. Se estivesse em seu lugar, tomaria cuidado com o pescoço. Ari e Janco não perderam de vista ao Nix até que este abandonou o campo de práticas. Então, voltaram-se para me olhar. —Foi um bom começo —disse Ari, para terminar a classe— Nos vemos amanhã à alvorada. —E Nix? —perguntei. —Não há problema. Eu posso me ocupar dele —replicou Ari. —À alvorada tenho que ir provar a comida do Comandante —disse, enquanto me perguntava se Nix não teria alguma outra razão, além do fato de que eu tivesse matado ao Reyad, para me odiar tanto.


—Então, justo depois. —Para que? —Os soldados correm ao redor do campo de treinamento para manter-se em forma —disse Janco. —Te una a eles —ordenou Ari— Dá ao menos cinco voltas, mais se puder. Iremos incrementando o número até que possa fazê-lo conosco. —Quantas voltas fazem vós? —Cinqüenta. Traguei saliva. Enquanto retornava ao castelo, pensei no trabalho e o tempo que teria que dedicar a treinar. A autodefesa requeria o mesmo nível de compromisso que eu tinha aplicado a minhas acrobacias. Não podia fazê-lo pela metade. Em seu momento, tinha parecido uma boa ideia, mas, quanto mais o pensava, mais me dava conta de que não era algo que se pudesse fazer a capricho. Perguntei-me se não seria melhor utilizar o tempo para aprender sobre venenos e magia. Ao final, nem todo o treinamento físico do mundo conseguiria me salvar dos poderes mágicos do Irys. Quando cheguei ao despacho do Comandante, já tinha decidido que não me viria mal fazê-lo. Além da maga, tinha outros inimigos e o fato de ser capaz de me defender poderia salvar a vida algum dia. O conhecimento, fora na forma que fora, poderia ser tão eficaz como uma arma. Pouco depois de que eu cheguei, um dos tutores entrou no despacho, arrastando pelo braço a uma menina. À idade de doze anos, atribuía-se a todos os meninos uma profissão, dependendo de suas capacidades. Então, lhes enviava ao tutor correspondente para que aprendessem a seu lado durante quatro anos. O uniforme do tutor tinha rombos negros bordados no pescoço. A menina ia embelezada com um singelo pulôver vermelho, que era o que vestiam os estudantes. Tinha os olhos cheios de lágrimas. Supus que teria uns quinze anos. —Qual é o problema, Beevan? —perguntou-lhe o Comandante. —Esta menina desobediente é uma moléstia constante em minha classe. —Em que sentido? —É uma sabichona. Nega-se a resolver problemas Matemáticos à maneira tradicional e tem as guelras de me corrigir diante de toda a classe. —Por que está aqui?


—Quero que lhe castigue. Que lhe dêem chicotadas, preferivelmente, e que se a recoloque como faxineira. Ao ouvir as palavras do tutor, a menina começou a chorar de novo, embora tratou de manter a compostura. O Comandante entrelaçou os dedos e ficou a pensar. —Eu me ocuparei do tema —disse o Comandante, por fim— Pode te retirar. Beevan duvidou durante um instante. Então, depois de abrir e fechar a boca em várias ocasiões, partiu do despacho. O Comandante se levantou e indicou que se aproximasse. —Minha, qual é sua versão da história? —perguntou-lhe à moça. —Me dão muito bem os números, senhor —respondeu a menina, com voz tremente— Me aborrecia de resolver os problemas sempre ao modo do professor Beevan, por isso inventei maneiras mais rápidas e interessantes. A ele não lhe dão bem os números, senhor. Meu equívoco foi dizer seus enganos. Sinto-o muito, senhor. Por favor, não me faça açoitar. Não o voltarei a fazer, senhor. Seguirei todas as indicações do professor Beevan — sussurrou, enquanto abundantes lágrimas lhe caíam pelas bochechas. —Não —respondeu o Comandante. O terror se apoderou da menina— Tranqüila, moça. Yelena... —Sim, senhor —disse. —Vá ao conselheiro Watts. —Sim, senhor. Fui procurar ao Watts imediatamente. Tinha-o visto em uma ocasião. Era o contável do Comandante, que tinha me dado o dinheiro que ganhei fazendo-me de fugitiva. Estava trabalhando, mas me seguiu imediatamente ao despacho do Comandante. —Watts, ainda necessita uma ajudante? —perguntou-lhe o Comandante. —Sim, senhor —replicou Watts. — Minha, tem um dia para demonstrar o que vale. Se não deixar assombrado ao conselheiro Watts com suas habilidades matemáticas, terá que retornar à classe do Beevan. Se o conseguir, o trabalho será teu. De acordo? —Sim, senhor. Obrigado, senhor —disse Minha, com o rosto radiante, enquanto seguia ao Watts. Eu me maravilhei pela atitude do Comandante. O fato de mostrar-se compassivo e de ter escutado a versão de Minha e de lhe haver dado uma oportunidade, era exatamente o


oposto do que eu me tinha imaginado que ocorreria. Por que um homem de tanto poder ia se tomar as moléstias de dar um passo assim? Tinha deslocado o risco de zangar ao Beevan e ao coordenador. Por que queria apoiar a uma estudante? Aquela noite, enquanto me dirigia com um livro de Botânica sob o braço às habitações do Valek, perguntei-me quando deveria me mudar a minha antiga habitação. Como Brazell já partiu, não havia razão lógica para ficar com o Valek. Entretanto, a possibilidade de voltar para a pequena habitação, provocava-me um estranho vazio em meu interior. Era o mesmo vazio que levava já sentindo a quatro dias. Quando entrei nas habitações do Valek, tão somente me saudou uma fria escuridão. Minha desilusão me surpreendeu e me dava conta de que o estava sentindo falta de... Sacudi a cabeça ante tão estranho conceito. Eu? Senhora do Valek? Não podia me permitir pensar algo assim. Em vez disso, centrei-me em minha sobrevivência. Se queria descobrir o antídoto para o Pó de Mariposa, a melhor ideia não era fazê-lo sentada no salão do Valek. É obvio, a situação poderia trocar muito em breve. Quando Valek retornasse e se inteirasse de que Brazell partiu, provavelmente me ordenaria que me retirasse. Depois de acender os abajures, relaxei no sofá com o livro de Botânica. A Biologia jamais tinha sido uma de minhas disciplinas favoritas e, muito em breve, notei que estava pensando em outras coisas. Meus débeis esforços por me manter centrada se perderam em meus pensamentos. Um golpe surdo me chamou a atenção. Parecia que se tratava de um livro que golpeava o chão. Olhei a meu redor, mas o meu ainda estava sobre o regaço. Olhei o salão para ver se tinha desmoronado algum dos montões que Valek tinha sobre o chão. Em meio de tanta desordem, não podia estar segura. Me ocorreu um pensamento que me pôs os cabelos de ponta. Talvez o ruído tinha vindo decima. Talvez não tinha sido um livro a não ser uma pessoa. Alguém que tinha entrado para esconder-se e esperar a que dormisse para poder me matar. Incapaz de permanecer sentada, agarrei um abajur e parti a minha habitação. Minha mochila estava na escrivaninha. Rand ainda não tinha me pedido a faca, por isso eu não a havia devolvido. Tirei-a e imediatamente recordei o conselho do Ari sobre utilizar armas. Provavelmente era uma tolice levar a faca, mas me sentia muito mais tranqüila com ela na mão. Armada daquela guisa, retornei ao salão e pensei no que fazer a seguir. Aquela noite me resultaria impossível dormir até que tivesse registrado as habitações decima.


A escuridão foi abrindo-se à medida que subia com meu pequeno abajur. As escadas terminavam em um salão. Como na planta baixa, havia montões de livros, caixas e móveis por toda parte. Esquivei-as com muito cuidado. O coração pulsava com força enquanto iluminava os rincões escuros com o abajur, virtualmente esperando uma emboscada. O reflexo de uma luz fez que me escapasse um grito. Dava a volta e vi que só tinha sido o brilho de meu próprio abajur sobre as altas janelas que adornavam a parede mais longínqua. À direita do salão, havia três habitações. Depois das examinar rapidamente, comprovei que, à exceção de livros e caixas, estavam vazias. À esquerda, havia um comprido corredor. No lado direito do mesmo, abriam-se portas na parede de pedra. O corredor terminava com uma porta dupla de madeira. Sobre a madeira de ébano, tinha esculpida uma cena de caça. Pela fina capa de pó branco sobre o chão, supus que aquela era a entrada ao dormitório do Valek. O pó mostraria facilmente os rastros de um intruso. Ao ver que o pó estava intacto, respirei mais tranqüila. Sistematicamente, registrei o resto das habitações do corredor. Ao abrir a última, surpreendeu-me muito o que vi, tanto que demorei um instante em compreender o que era. Comparada com o resto, aquela habitação estava vazia. Havia uma larga mesa contra uma das paredes, centrada sob uma janela. Sobre o chão, e ordenadas por seu tamanho, havia pedras cinzas com raias brancas, quão mesmas tinha visto no salão e no gabinete do Valek. Quando entrei, uma espessa capa de pó rangeu sob meus pés. Sobre a mesa havia cinzéis, limas e uma pedra de amolar. Além disso, havia várias estátuas em diversos estádios de criação entre as ferramentas. Compreendi que as pedras, quando se esculpiam e se poliam, metamorfoseavam-se em uma pedra negra lustrosa e muito formosa e as raias brancas em reluzente prata. Deixei o abajur sobre a mesa e tomei uma mariposa, que já estava terminada. Encaixava perfeitamente na palma de minha mão. Os detalhes eram tão deliciosos que parecia que a mariposa podia pôr-se a voar em qualquer momento. Admirei também o resto das estátuas. aplicou-se o mesmo cuidado de cada uma delas. Animais, insetos e flores alinhavam a mesa. Aparentemente, a natureza era o tema favorito do artista. Assombrada, compreendi que o artista devia ser Valek. Tinha ante meus olhos uma faceta da personalidade do Valek que jamais teria imaginado que existisse. Sentia-me como


se me tivesse intrometido em seu segredo mais íntimo, como se tivesse descoberto que tinha esposa e filhos vivendo ali acima em feliz reclusão. É obvio, tinha-me fixado nas estátuas que Valek tinha em seu escritório e no tigre de neve que havia na mesa do despacho do Comandante. Um ruído de passos fez que me desse a volta. Uma sombra negra se abateu sobre mim. Arrebatou-me a faca da mão e me aplicou isso contra o pescoço. Não obstante, o rosto do Valek não mostrava ira, a não ser jocosidade. —Estava farejando? —perguntou-me, dando um passo atrás. Com certo esforço, fiz que o medo desaparecesse de mim e comecei a respirar uma vez mais. —Ouvi um ruído. Vim A... —Investigar. Procurar um intruso é muito diferente de examinar estátuas —disse, assinalando a mariposa que ainda tinha na mão— Estava farejando. —Sim. —Bem. A curiosidade é um rasgo digno de elogio. Já havia me perguntando quanto tempo demoraria para subir aqui acima. Encontraste algo interessante? Eu abri a mão e lhe mostrei a mariposa. —É muito bonita. —Esculpir a pedra me ajuda a pensar —comentou, encolhendo-se de ombros. Coloquei a estátua sobre a mesa, embora sem soltá-la de tudo. Teria gostado de examinar a à luz do dia. Agarrei o abajur e me dispus a sair da sala com o Valek. —De verdade que escutei um ruído —insisti. —Sei. Atirei um livro ao chão para ver o que faria. Entretanto, não esperava que aparecesse com uma faca. É a que falta da cozinha? —Denunciou Rand seu desaparecimento? —perguntei, me sentindo traída. —Não, mas tem sentido ter sempre localizados as facas da cozinha para que, quando desaparece um, ninguém se surpreenda se lhe atacam com ele —replicou ele, me entregando a faca— Deveria devolvê-lo. As facas não lhe servirão de nada ante o calibre das pessoas que vão atrás de ti. Valek e eu baixamos as escadas. Levantei o livro de Botânica do sofá. —O que lhe pareceram as vagens ao Comandante? —perguntou-me. —Acredita que são de Sitia. Devolveu-me isso para que pudesse descobrir o que são. Estive investigando um pouco na biblioteca —expliquei, lhe mostrando o livro.


Valek me tirou isso e folheou as páginas. —Encontraste algo? —Ainda não. —Seu comportamento como fugitiva deveu impressionar ao Comandante. Normalmente, ele teria atribuído esta classe de tarefa a um de seus conselheiros. As palavras do Valek me incomodaram. Não estava convencida de que pudesse descobrir a origem das vagens e grãos. A idéia de lhe falhar ao Comandante me pôs doente. Rapidamente, troquei de tema. —Aonde se dirigia a caravana? Valek guardou silêncio, sem saber o que dizer. Ao final, tomou a palavra. —À nova fábrica do Brazell —disse. Se lhe tinha surpreso seu descobrimento, não o demonstrou. Me ocorreu que, apesar de toda a discussão sobre a permissão do Brazell, não sabia o que pensava fazer naquela fábrica. —Do que é a fábrica? —Supõe-se que vai ser um moinho de penso—respondeu Valek, me entregando o livro—

Não sei por que necessita essas vagens e grãos. Talvez sejam um ingrediente

secreto. Talvez se acrescentem ao penso para incrementar o fornecimento de leite das vacas. Então, todos os granjeiros comprariam o penso do Brazell em vez de criar o seu próprio. Algo assim. Ou talvez não. Não sou nenhum perito. Seja como for, designei a alguns de meus homens para que vigiem a rota e se infiltrem na fábrica. Neste momento, necessitamos mais informação. —Brazell partiu do castelo esta mesma tarde. —Encontrei-me com seu destacamento quando retornava. Melhor. Uma coisa menos da que me preocupar. Valek se dirigiu a seu escritório e começou a rebuscar entre seus papéis. Observeio de costas durante um instante, esperando. Ele não havia dito nada sobre o fato de que eu tivesse que me mudar. Finalmente, encontrei o valor suficiente. —Devo voltar para minha antiga habitação agora que Brazell se partiu? Ao ver que Valek se detinha, contive o fôlego. —Não —respondeu— Segue em perigo. Ainda não nos temos desfeito da maga. Uma potente sensação de alívio se apoderou de mim, me alarmando ao mesmo tempo. Por que queria permanecer a seu lado? Resultava algo perigoso, ilógico e, por isso me parecia, o pior para mim. Ainda tinha o livro sobre magia escondido na mochila, que levava a


todas partes porque temia que Valek o descobrisse. Maldita seja... Como se não tivesse já bastante do que me preocupar... Não deveria sentir falta do Valek. Deveria me esforçar mais por escapar. De fato, em vez de resolver o enigma dos grãos e as vagens, deveria sabotá-lo. Não deveria admirar e respeitar ao Valek. Deveria, não deveria, deveria, não deveria... —Como se desfaz.. hum...exatamente de uma maga? —perguntei-lhe. —Já lhe hei isso dito —respondeu, voltando-se para me olhar. —Mas seus poderes... —Não têm efeito algum sobre mim. Quando me aproximo, sinto seu poder me apertando e me fazendo vibrar a pele. Custa-me muito esforço, mas ao final termino ganhando. Sempre. —Quanto deve te aproximar? —perguntei. Valek estava no castelo nas duas ocasiões nas que eu tinha utilizado a magia. Suspeitava de mim? —Tenho que estar na mesma habitação —disse. Um profundo alívio se apoderou de mim. Não sabia. Ao menos ainda. —Por que não matou à maga do sul no festival? —Yelena, eu não sou invencível. Resultou-me exaustivo derrotar a quatro homens enquanto ela me fazia branco de seu poder. Não me teria servido de nada persegui-la. —É magia o fato de ser resistente à magia? —quis saber. —Não —respondeu. O rosto lhe endureceu de repente. —E a faca? —perguntei, assinalando a arma que, pendurada da parede, ainda tinha restos de sangue. O sangue reluzia sob a luz do abajur. Nas três semanas que eu levava nas habitações do Valek, não se tinha secado. Valek se pôs-se a rir. —Esse é a faca que utilizei para matar ao Rei. Era um mago. Quando sua magia não pôde me deter lhe afundei essa faca no coração, amaldiçoou-me com seu último fôlego. Resultou bastante melodramático. Desejou-me que me visse afligido pela culpa sobre seu assassinato e que seu sangue me manchasse as mãos para sempre. Com minha peculiar imunidade à magia, a maldição se dirigiu à faca em vez da mim —acrescentou, olhando a parede da que penduravam as armas com gesto pensativo— É uma pena que tivesse que perder minha adaga favorita, mas se converteu em um troféu muito bonito.


Capítulo 18

Os meus pulmões ardiam. Completamente avermelhada e empapada de suor, ia atrás do grupo principal de soldados. A garganta ardia com cada respiração. Era a quarta volta que dava ao redor do castelo. Ficava uma. Depois de provar o café da manhã do Comandante, dirigi-me aos barracões que havia ao nordeste. Quando vi que um grupo de soldados passava correndo a meu lado, vi o Ari, que me saudou e me indicou que unisse a eles. Preocupava-me que o resto dos militares se sentissem molestos por minha presença, mas havia outras pessoas com os soldados, como criados, moços de estábulo e outros trabalhadores do castelo. As primeiras duas voltas me aceleraram o pulso e me deixaram sem fôlego. A dor de pés me começou durante a terceira volta e começou a me percorrer as pernas durante a quarta. Tudo o que me rodeava se esfumou até que quão único vi foi uma pequena parte de terreno diante de mim. Quando, coxeando, cheguei a minha meta, terminou minha agonia. Encontrei um grosso sebe e vomitei os pasteizinhos doces que tinha tomado aquela manhã. Ao me incorporar, vi o Janco me mostrar os polegares de ambas as mãos para cima quando passava a meu lado. Por sua parte, ele nem sequer tinha a decência de parecer cansado. Além disso, ainda tinha seca a camiseta. Enquanto limpava o vômito dos lábios, Ari se deteve meu lado. —Campo de treinamento a dois. Até então —me disse. —Mas... Ari partiu antes de que eu pudesse terminar a frase. Quase não me tinha de pé, por isso não podia imaginar fazendo mais esforços.

Aquela tarde, no campo de treinamento, Ari e Janco se apoiaram contra a cerca enquanto observavam como dois homens brigavam com a espada. Os lutadores tinham atraído a atenção de todos os presentes. Muito surpreendida, dava-me conta de que um deles era Valek. Não o tinha visto desde aquela manhã cedo e tinha dado por sentado que estava descansando depois de estar levantado até muito tarde a noite anterior. Valek era como um líquido em movimento. Enquanto o observava, me ocorreu uma única palavra: beleza. Seus movimentos tinham a velocidade e a cadência de uma complexa dança. Em comparação, seu adversário parecia um bezerro recém-nascido, ao que lhe


resultava impossível controlar braços e pernas. Os rápidos movimentos e os certeiros golpes do Valek desarmaram a seu oponente imediatamente. Com a ponta da espada, Valek enviou a seu derrotado oponente em direção a um pequeno grupo de homens. Então, indicou a outro que atacasse. —O que é o que está passando? —perguntei. —O desafio do Valek. —O que é isso? —Valek declarou um desafio a todos os habitantes da Ixia. Se lhe derrotava com a arma que o outro escolhesse ou mão à mão, o ganhador se converteria no segundo ao mando —explicou Ari, que já estava encetado em combate com um terceiro homem— Lutar com o Valek ao menos em uma ocasião é como uma espécie de graduação para os soldados, embora, é obvio, pode-se tentar tantas vezes como a gente queira. Os capitães observam os combates e encerravam aos soldados mais prometedores. Além disso, se consegue impressionar ao Valek com as habilidades, talvez consiga que ele te ofereça um posto no corpo do serviço de inteligência. —Como foi a vós? —perguntei-lhes. —Bem —respondeu Ari. —Bem diz! —replicou Janco—

Ari esteve a ponto de lhe derrotar. Valek se

mostrou muito contente, mas ao Ari não gosta de ser espião. Seguimos observando. Ari e Janco realizavam comentários técnicos sobre as diferentes briga, mas eu não podia apartar os olhos do Valek. Com os raios do sol refletindose o na espada, desfez-se de dois homens mais. Dava-lhes com a parte plaina da espada para que soubessem que tinha quebrado suas defesas sem derramar nenhuma gota de sangue. O seguinte oponente lhe aproximou com uma faca. —Má eleição —comentou Ari. Valek deixou a espada e tirou a adaga da vagem. A briga terminou em dois movimentos. —Valek é um professor na briga de facas —comentou Janco. A última pessoa que o desafiou era uma mulher. Alta e ágil, lhe aproximou empunhando um comprido fortificação de madeira. Apresentou batalha ao Valek. Seu combate durou mais que os anteriores. Ao fim, o fortificação da mulher se partiu em dois e se terminou a luta. Enquanto a gente se dispersava, Valek começou a falar com a mulher.


—É Maren —disse Ari— Se ela não passar a formar parte do corpo de inteligência, deveria lhe pedir a ela que te ensine o manejo do fortificação. Como é tão miúda, daria-te algo mais de defesa contra um atacante mais alto e forte. —Entretanto, não se pode esconder um fortificação —comentei. —No castelo não, mas se for dar um passeio pelos bosques, não chamaria a atenção que levasse um. Olhei ao Maren e considerei as possibilidades. Quereria ela me ajudar? Provavelmente não. Como se Ari me tivesse lido o pensamento, disse-me: —Dado que muitas mulheres fracassam nas provas físicas, Maren sempre tenta as ajudar. Agora, temos mais mulheres no exército graças a ela. Tratamos de conseguir que nos ensine, os homens, mas não tem interesse por ajudar aos do sexo oposto. —Entretanto, eu não sou uma recruta. Sou a provadora de comida do Comandante. Por que ia perder seu tempo comigo? Eu poderia estar morta amanhã mesmo. —Noto que está um pouco resmungona esta manhã —disse Janco alegremente— Acaso tem feito muito exercício esta manhã? —Cale-se —lhe espetei. Ele limitou-se a sorrir. —Muito bem. Já basta. vamos começar. Passei o resto da tarde aprendendo como dar um murro em alguém sem romper a minha mão e praticando a técnica de patada adequada. Os meus nódulos se puseram vermelhos brilhantes depois de golpear o saco de boxe uma e outra vez. Dominar a patada era um desafio, dado que tinha tensos os músculos da coxa, o que impediam minha flexibilidade. Quando Ari me disse por fim que podia partir, dirigi meu machucado corpo para o castelo. —Até manhã —disse Janco, com um tom alegre na voz. Ao me voltar para lhe dizer onde se podia colocar suas despedidas, encontrei-me cara a cara com o Valek. Contive o fôlego. Ele nos tinha estado observando. Senti-me envergonhada. —Seus murros são muito lentos —comentou. Então, agarrou minha mão e examinou os hematomas, que estavam começando a avermelhar—

Ao menos, tem boa

técnica. Se levantar pesos enquanto treina, seus murros serão muito mais rápidos que sem elas.


—Posso continuar? —perguntei, cheia de incredulidade. Valek não soltava a mão nem eu podia encontrar a força de retirá-la. A calidez do contato me percorreu todo o corpo, fazendo que minhas dores desaparecessem temporariamente. Ainda com a lembrança de sua demonstração física no pensamento, olheilhe o rosto. Seus brilhantes e perigosos olhos azuis sempre tinham chamado minha atenção. Tinha aprendido a ler suas expressões faciais como tática de sobrevivência, mas jamais o tinha visto cuidadoso daquele modo. Era um estudo de contradições. O homem que era capaz de esculpir delicadas estátuas era também capaz de desarmar a sete oponentes sem começar a suar. Minha relação com o Valek parecia um passeio pela corda frouxa. Umas vezes me sentia segura e equilibrada e outras insegura e instável. —Acredito que é uma idéia excelente —disse— Como conseguiu que os gêmeos de poder conseguissem te ajudar? —Gêmeos de poder? —Se combinasse a força do Ari com a velocidade do Janco, o resultado seria um homem indestrutível, mas até agora, não pus a prova minha teoria já que não quiseram brigar de uma vez só comigo. Ninguém me há dito nunca que não podia ter a duas pessoas como segundos ao mando. Você não me vais delatar, verdade? —Não. Valek apertou minha mão e me soltou. —Bem. Provavelmente sejam os melhores instrutores que poderia encontrar no castelo. Como os conheceu? —Foram os homens que me encontraram no bosque. O Comandante os ascendeu e eu me aproveitei de sua gratidão —expliquei. A mão ainda vibrava onde ele havia tocado. —É matreira e oportunista. Eu adoro —replicou ele, rindo. Enquanto me acompanhava de retorno ao castelo, notei que estava de muito bom humor, provavelmente a adrenalina por ter derrotado a tantos oponentes. Antes que alcançássemos a entrada, deteve-se. —Há um problema. —Qual? —Não deveria treinar tão à vista de todo o mundo. Este tipo de coisas corre como a pólvora. Se Brazell se inteira e protesta, o Comandante te ordenará que o deixe. E fará que suspeite. Por que não utiliza os armazéns que há no porão do castelo?


Retomamos o caminho e entramos no castelo. Enquanto o percorríamos, Valek permaneceu em silêncio. Eu me dirigi ao despacho do Comandante para provar sua comida e ele me acompanhou. —Ao mencionar ao Brazell, recordei que levo algum tempo querendo te perguntar sobre esse Crioulo que tanto gosta o Comandante. Você gosta de seu sabor? —Sim, parece-me uma sobremesa excelente —respondi. —Se deixasse de tomá-lo, como se sentiria? —Bom... —duvidei. Não estava segura de aonde se dirigia aquela conversação — Verdadeiramente, sentiria-me desiludida. Estou desejando prová-lo todas as manhãs. —Estiveste pensando antes no Crioulo alguma vez? —Refere a um pouco parecido a um vício? —perguntei, compreendendo por fim aonde ele queria chegar. —Sim. —Não acredito, mas... —O que? —Eu só o como uma vez ao dia. O Comandante toma uma parte depois de cada comida. A que vem esta repentina preocupação? —É tão somente um pressentimento. Poderia não ser nada —replicou Valek. Guardou silêncio durante o resto do trajeto. —Bem, Valek, alguma ascensão hoje? —perguntou-lhe o Comandante, assim que entramos em seu escritório. —Não, mas Maren é uma grande promessa. Desgraçadamente, não quer passar a formar parte de meu serviço de inteligência nem ser minha segunda. Só quer me derrotar — comentou Valek com um sorriso. Parecia encantado com o desafio. —E pode fazê-lo? —quis saber o Comandante. —Com tempo e o treinamento adequado, sim. É letal com sua fortificação. Só precisa melhorar suas táticas. —Então, o que podemos fazer com ela? —Ascendê-la a general e retirar a algum desses velhas raposas. Viria a você bem sangue novo nos postos de comando. —Valek, você jamais compreendeste bem a estrutura miliar. —Então, ascenda a tenente hoje, amanhã a capitão, a coronel o dia depois e a general a seguir.


—Aceitarei-o como sugestão. Algo mais? Eu terminei de provar a comida e coloquei o prato diante do Comandante. Então, dirigi-me para a porta. antes de que pudesse partir, Valek me agarrou por braço. —Eu gostaria de provar um experimento. Quero que Yelena prove o Crioulo cada vez que você tome durante uma semana. À semana seguinte, eu o provarei. Quero ver se lhe ocorre algo quando deixar de tomá-lo. —Não —replicou o Comandante, levantando uma mão quando Valek quis replicar— Admito sua preocupação, mas acredito que te equivoca. —Faça-o por mim. —Poderemos fazer seu experimento quando Rand consiga realizar a sobremesa segundo a receita do general Brazell, de acordo? —Sim, senhor. —Bem. Quero que me acompanhe em uma reunião que tenho com o general Kitvivan. Muito em breve chegará a estação fria e ele está começando a se preocupar com os tigres de neve. Yelena —disse o Comandante, notando-se de repente em mim—, pode partir. —Sim, senhor —repliquei. Depois de parar nos banheiros para me lavar, fui à cozinha para tomar emprestado um bol e um coador, que me levei a biblioteca. Como as quatro vagens que ficavam haviam posto marrons e estavam começando a apodrecer-se, abri-as, tirei a polpa e as sementes, passei-o tudo por um coador e o coloquei no bol. O aroma das sementes era tão forte que decidi deixar o bol no batente da janela. Meu experimento não estava apoiado em provas científicas. Só queria ver se a polpa fermentava. Talvez Brazell a estava utilizando para fazer alguma classe de bebida alcoólica. Meu estudo dos livros de Botânica ainda não tinha revelado nada útil. Os livros de venenos, embora resultavam interessantes, não mencionavam o Pó de Mariposa. Em quatro volumes diferentes sobre venenos, tinha descoberto que faltavam páginas. Valek provavelmente as tinha tirado antecipando o interesse dos provadores pelo Pó de Mariposa. Com um suspiro, empilhei os livros sobre minha mesa. Sabia que Valek estava em uma reunião com o Comandante, por isso tirei o livro de magia de minha mochila. As letras chapeadas da capa reluziam. Me fez um nó no estômago. Abri o magro livro e comecei a ler uma discussão técnica sobre a origem do poder de um mago. Como me resultava impossível compreender todas as descrições, cheguei à


conclusão de que a fonte de poder cobria o mundo inteiro, fazendo que resultasse acessível desde qualquer parte. Os magos utilizavam seu poder de modos diferentes, dependendo de seus talentos. Alguns eram capazes de mover objetos, enquanto que outros podiam ler o pensamento e exercer influência sobre ele. Alguns só tinham uma capacidade, mas, quanto mais forte fora o mago, mais podia fazer. Pus-se a tremer ante o fato de que Irys era capaz de controlar minha mente. Entretanto, os magos tinham que ter muito cuidado na hora de absorver poder. Absorvendo muito ou utilizando-o mau, um mago poderia causar rupturas que podiam causar um efeito em cadeia. Este efeito era capaz de concentrar o poder em certas zonas e deixar outras sem nada. O livro falava de um tempo no que um mago muito capitaboa tinha começado a atirar da fonte de poder. Como era tão poderoso, podia controlar a manta sem causar uma explosão. Entretanto, os outros magos ficaram ao descoberto. Como lhes tinha arrebatado seu poder, uniram-se e partiram a procurar ao que o tinha roubado. Quando o encontraram, e depois de uma batalha que deixou muitos mortos, mataram ele. Por fim, conseguiram que a manta de poder recuperasse seu equilíbrio e retornasse à normalidade, mas isso demorou mais de duzentos anos. Por fim, tinha compreendido o que Irys me explicou no bosque, e o porquê se mostrava tão decidida a que eu recebesse preparação ou minha morte. Não obstante, sentia-me um pouco desiludida de que o livro não contivera feitiços mágicos ou conselhos. Tinha estado esperando uma resposta. Algo que me explicasse por que tinha o poder, como utilizá-lo e, de passagem, como criar o antídoto do Pó de Mariposa. Tinha-me equivocado. Parecia ser que a esperança, a felicidade e a liberdade não eram para mim. Mantive-me sentada em minha cadeira até que ficou o sol. Quando as pernas me começaram a doer pela inatividade, pu-me de pé. Decidi que, se não era capaz de encontrar o antídoto nos livros, faria-o de outro modo. Alguém tinha que saber algo. O Comandante Ambrose tinha provadores de comida desde fazia quinze anos. Se ninguém podia me ajudar, provaria outras maneiras. Talvez roubaria o antídoto ou trataria de averiguar como o conseguia Valek. Faltavam-me conhecimentos, mas estava disposta a aprender.


À manhã seguinte, preparada naquela ocasião com o estômago vazio, reuni-me com os soldados. Ari e Janco já estavam entre eles. Janco me dedicou um descarado sorriso. Mais tarde, quando escutei uns pesados passos a minhas costas, dava por certo que Janco ia fazer branco de uma de suas brincadeiras. Apartei-me para que pudesse passar, mas o corredor se manteve me pisando os talões. Voltei-me a tempo para ver como Nix estendia os braços e me pegava um forte empurrão. Caí de bruços sobre o chão. Nix não se deteve. Passou correndo por cima de mim. Pisou-me nas costelas e me deixou sem respiração. Senti uma profunda dor por todo o peito. Tratei de recuperar o fôlego em posição fetal. Quando o consegui, sentei-me. O grupo de soldados seguia com seu caminho. Perguntei-me se alguém tinha sido testemunha do ocorrido. Se estava tratando de me desanimar, equivocava-se. Nix só conseguia incrementar minha resolução por aprender autodefesa para não ser vítima de valentões como ele. Levantei-me e esperei que voltasse a passar, mas não retornou. Ari se deteve meu lado. —O que ocorreu? —Nada —respondi. Nix, como Margg, era meu problema. —Tem o rosto coberto de sangue. —Tenho-me cansado —respondi, enquanto me limpava. Antes de que pudesse seguir me interrogando, troquei de tema lhe dando algo mais no que pensar. Repeti o conselho do Valek sobre o de ocultar minhas sessões de treinamento. Ari esteve de acordo que aquilo era o mais prudente. Ofereceu-se a me encontrar um lugar adequado.

—É Maren, verdade? —perguntei, enquanto tratava de tomar ar. Levava correndo já uma semana e aquela manhã tinha preparado tudo para correr ao lado do Maren. Ela me lançou um olhar de apreciação. Tinha o cabelo loiro recolhido em um coque. Ombros fortes e musculosos e uma esbelta cintura provocavam que sua figura não parecesse proporcional. Movia-se com atlética facilidade. Tive que me esforçar para lhe manter o passo. —E você é a Vomitona.


Aquele insulto tinha um propósito. Interessava-lhe muito minha resposta. Se tivesse querido desfazer-se de mim, faria seu comentário e teria apertado o passo, sem incomodar-se a esperar uma reação. —Chamaram-me coisas piores. —Por que o faz? —O que? —Correr até que vomita. —Me atribuíram cinco voltas e eu não gosto de falhar. Vi-te lutar com o Valek. Hãome dito que é a melhor com o fortificação e eu gostaria de aprender a utilizá-lo —disse, antes de que o exercício me deixasse sem fôlego. —Quem lhe há isso dito? —Ari e Janco. —São teus amigos? —Sim. —Já recordo. Eles foram os que lhe encontraram no bosque. Se rumoreia que lhe estavam treinando para a luta, mas que você preferiste deixá-lo. Estão tratando de te colocar comigo? —O problema dos rumores é... —sussurrei, ofegando— .. que resulta difícil discernir a verdade das mentiras. —Por que ia eu a querer te dedicar meu tempo? —Informação —respondi. Já tinha antecipado aquela pergunta. —Sobre o que? —Quer derrotar ao Valek, não? Pois veem a entrada a leste esta tarde as duas e lhe direi —murmurei isso, com o último fôlego que ficava. Como me resultava impossível seguir seu ritmo, detive-me. Ela seguiu adiante. Perdi-a de vista em seguida. Com o passar do resto da manhã, repassei a conversação mentalmente, tratando de averiguar qual seria sua resposta. Às duas, dirigi-me à porta leste mordendo o lábio. Ari e Janco faziam correr o rumor de que já não estavam me preparando. Eu tinha arriscado muito sugerindo ao Maren que isto não era certo. Quando vi que se aproximava uma alta figura com duas fortificações, tranqüilizei-me um pouco. Maren se deteve quando me viu apoiada contra o muro. Antes de que pudesse dizer nada, eu lhe disse:


—Me siga. Conduzi-a a um beco, no que nos esperavam Ari e Janco. —Suponho que não me devo confiar nos rumores —comentou Maren. —Não, mas há certos rumores que nós gostaríamos que seguissem como tais — disse Ari, sem ocultar uma certa ameaça na voz. —Muito bem, Vomitona —replicou Maren, sem lhe emprestar atenção— Qual é sua informação? Espero que seja boa ou me vou. —Bom, tal e a meu ver, os quatro nos podemos ajudar mutuamente. Ari, Janco e eu queremos aprender como lutar com o fortificação. Você quer derrotar ao Valek. Se trabalharmos juntos, todos poderemos alcançar nossos objetivos. —Como vai ajudar a mim lhes ensinar em um enfrentamento com o Valek? — perguntou Maren. —Você é muito hábil com o fortificação, mas precisa melhorar suas táticas. Ari e Janco lhe podem ajudar nesse sentido. —Uma semana de treinamentos e a Vomitona acredita que é uma perita —disse Maren ao Ari com voz incrédula. O permaneceu em silêncio. —Eu não sou uma perita, mas Valek, sim. —Ele há dito isso sobre mim? —perguntou Maren, com olhar incrédulo. —Sim. —Quer dizer, eu lhes ensino a lutar com o fortificação, Ari e Jan, táticas. Qual é sua contribuição? —Bom, eu poderia lhes ensinar um pouco de acrobacia e lhes ajudar a ter mais flexibilidade e equilíbrio, o que resulta muito benéfico em uma luta. —Vá —disse Janco, impressionado— Nisso tem razão. Além disso, um grupo de treinamento de quatro é melhor que um de três. Zangada, Maren olhou ao Janco. Ele sorriu docemente. —Muito bem. Provarei-o temporariamente. Se não funcionar, os deixarei. Ah! E não se preocupem. Talvez escute os rumores, mas não participo deles. Quando nos demos as mãos para selar nosso acordo, minha apreensão se dissipou. Mostramos a Maren o lugar no que levávamos uma semana nos reunindo. —Muito acolhedor —comentou ela, quando lhe mostramos nossa sala de treinamentos.


Ari tinha encontrado um armazém abandonado no porão do castelo. Estava na asa sudoeste do castelo, que estava abandonada. Duas janelas que havia perto do teto proporcionavam suficiente luz para trabalhar. Passamo-nos o resto do tempo praticando os conceitos básicos da luta com fortificação. —Não está mau, Vomitona —me comentou Maren ao final da sessão—

Vejo

potencial em ti. Quando recolheu suas fortificações para partir, Ari lhe colocou uma mão no ombro. —Chama-se Yelena. Se não querer chamá-la assim, então não retorne amanhã. Vi minha própria expressão de surpresa refletida no rosto do Maren, mas ela se recuperou com mais rapidez que eu. Assentiu secamente e estreitou a mão do Ari antes de partir. Perguntei-me se voltaria a reunir-se conosco. Voltou para dia seguinte e seguiu fazendo-o sem falta durante os dois meses seguintes. O tempo se foi fazendo mais fresco. As árvores foram tingindo-se de tons laranjas e, ao final, as folhas caíram ao chão. Minha investigação sobre as vagens se estancou por completo. Entretanto, ao Valek não parecia lhe preocupar minha falta de progressos. Em ocasiões, observava-nos enquanto treinávamos e realizava comentários e sugestões. Nix seguiu me incomodando quando corria pelas manhãs. Atirava-me pedras, cuspia-me e me punha a rasteira. Tive que trocar minha rotina para evitar me encontrar com ele e comecei a correr pela parede exterior do castelo. Minhas habilidades defensivas estavam ainda em fraldas e não me resultavam suficientes para um enfrentamento com o Nix. Ao menos, não no momento. Ao final da estação fresca, nossas sessões de treinamento terminavam com pôrdo-sol. Na quase escuridão do crepúsculo, eu me dirigia uma noite aos banhos quando fixei que havia uma sombra à porta. Imediatamente, pus-me em posição de ataque, embora não sabia se teria que me defender nem se seria capaz de fazê-lo. A ampla figura de Margg saiu de entre as sombras. Ao vê-la, relaxei-me um pouco. —O que é que quer? —perguntei-lhe— Está fazendo outro recado para seu dono como uma boa cachorrinha? —É melhor que ser um rato em uma ratoeira. Decidi deixá-la atrás. O intercâmbio de insultos, por muito agradável que pudesse resultar, era uma perda de tempo. —Gostaria ao rato um pouco de queijo? —perguntou-me. —Como diz? —repliquei, me voltando para olhá-la.


—Queijo. Dinheiro. Ouro. Aposto algo a que é a classe de rato que faria algo por uma boa parte de queijo.

Capítulo 19

—E o que teria que fazer eu para obter essa parte de queijo? —perguntei-lhe. Sabia! Margg era a que estava filtrando informação sobre mim e, depois de fazê-lo, queria me utilizar. Por fim tinha provas. —Tenho uma fonte que pagamento muito bem pela informação. É a situação perfeita para um rato. —Que classe de informação? —Algo que possa escutar enquanto esteja no despacho do Comandante ou nas habitações do Valek. Meu contato paga segundo a informação. Quanto mais suculenta seja, maior é a parte de queijo. —E como funciona? —insisti. Naqueles momentos, era a palavra do Margg contra a minha. Necessitava provas que lhe pudesse mostrar ao Valek. Ser capaz de acusar ao Margg e a sua fonte seria maravilhoso. —Você me dá a informação e eu a passo. Eu recolho o dinheiro e lhe dou isso, menos uma comissão de quinze por cento. —E se supõe que tenho que acreditar que te limitaria a tomar quinze por cento de um total que eu desconheço? —Ou isso ou nada —replicou Margg, encolhendo-se de ombros— Eu diria que um rato meio morto de fome se equilibraria sobre qualquer bocado, por pequeno que fora — acrescentou. Então, começou a partir. —E se fôssemos à fonte juntas? —sugeri— Seguiria recebendo sua comissão. Margg se deteve em seco. A incerteza se apoderou dela. —Terei que comprová-lo —disse, antes de desaparecer pelo corredor. Fiquei no exterior dos banhos durante um momento, considerando a possibilidade de segui-la durante um par de dias, mas decidi que não era boa idéia. Se seu contato não


gostasse de minha sugestão, teria que colocar o rabo entre as pernas e suplicar outra oportunidade. A Margg gostaria e muito! Então, seguiria-a. Lhe dizer ao Valek que era uma traidora seria um verdadeiro prazer para mim. A conversação com o Margg tinha consumido o tempo de que dispunha para me dar um banho, por isso me dirigi ao despacho do Comandante. Quando cheguei, Sammy, que realizava os recados para o Rand, estava no exterior da porta fechada com uma bandeja na mão. No interior do despacho, ouviam-se umas vozes iradas. —O que é o que acontece? —perguntei ao Sammy. —Estão discutindo. —Quem? —O Comandante e Valek. Tirei a bandeja ao Sammy. Não havia razão alguma para que os dois estivéssemos ali. —Parte. Estou segura de que Rand te necessita. Sammy sorriu aliviado e partiu correndo. Sabendo que o Comandante não gostava da comida fria, aproximei-me da porta esperando uma pausa na conversação. Então, pude ouvir o Valek muito claramente —O que te levou a trocar seu sucessor? —perguntava-lhe Valek. A suave resposta do Comandante se perdeu ao passar pela porta de madeira. —Nos quinze anos que faz que te conheço, jamais trocaste uma decisão — prosseguiu Valek— Não se trata de um complô para descobrir a seu sucessor. Só quero saber por que trocaste que opinião. Por que agora? A resposta do Comandante não foi do gosto do Valek. Com um tom cheio de sarcasmo, respondeu: —Sempre, senhor. Valek abriu de repente a porta e eu entrei de cabeça no despacho. Ele levava uma expressão glacial no rosto. Só seus olhos demonstravam sua fúria. —Yelena, onde diabos estiveste? O Comandante está esperando seu jantar. Como não esperava uma resposta, Valek atravessou com passo rápido o salão do trono. Todos os pressentes se separaram de seu passo sem pigarrear. A ira de Valek parecia extrema. Todos os habitantes da Ixia sabiam que um dos oito generais tinha sido eleito como sucessor do Comandante. Como produto típico da paranóia do Comandante, o nome permanecia em segredo. Cada general tinha um sobre que continha uma peça de um quebra-cabeças. Quando o Comandante morrera, todos se


reuniriam para montar o quebra-cabeças e revelar assim a mensagem. Para decifrar a nota faria falta uma chave, que estava em poder do Valek. O general eleito teria então o apoio incondicional do exército e do pessoal do Comandante. A teoria que justificava tanto secretismo era que assim se evitaria que alguém pudesse começar uma rebelião em apoio do eleito, dado que não se sabia quem era. O risco era que o eleito fora pior que o Comandante. Em minha opinião, uma mudança de herdeiro não afetaria à vida diária da Ixia. Como não se sabia quem tinha sido eleito em primeiro lugar, a mudança não teria conseqüência alguma até que o Comandante morrera. Aproximei-me do escritório do Comandante. Estava lendo seus informes e parecia pouco afetado pela ira do Valek. Provei rapidamente a comida. Ele me deu um obrigado e deixou de me emprestar atenção. Enquanto retornava aos banhos, perguntei-me se a informação que tinha escutado conseguiria um bom preço do contato do Margg. Decidi conter minha curiosidade. Não tinha desejo algum de cometer traição em troca de dinheiro e, conhecendo o Valek, não me cabia a menor duvida de que ele o descobriria. Só por isso, tinha que demonstrar, acreditasse Margg o que acreditasse, que eu não era nenhuma espiã. Um comprido banho me relaxou profundamente. Ainda era cedo e, como me pareceu que seria prudente evitar ao Valek durante um momento, decidi me passar pela cozinha para jantar. Depois de me servir um pouco de carne assada e uma parte de pão, levei-me o prato ao lugar no que trabalhava Rand. Encontrei um tamborete e me sentei à mesa para comer. —Enviou-te o Comandante? —perguntou-me Rand, de repente. —Não. por que? —Ving me enviou a receita do Crioulo faz dois dias. Pensava que o Comandante se estaria questionando a respeito. —Não me há dito nada. Desde que o general partiu do castelo, tinha mandado dois grandes pacotes de Crioulo para o Comandante, mas sem a receita. Como a quantidade recebida era muito abundante, o Comandante lhe tinha dado ao Rand um pouco da sobremesa para que experimentasse. Rand não se havia sentido desiludido. Com ele tinha experiente com novas receitas e apresentações. —Como vai com a receita? —perguntei-lhe.


—Fatal. Quão único consigo é esta espécie de barro de mau sabor —respondeu, me mostrando o conteúdo de um bol com uma colher— Nem sequer se solidifica. Talvez você possa ver o que estou fazendo mal —acrescentou, me mostrando o papel. Estudei a boa de ingredientes. Parecia uma receita normal, mas eu não era uma perita em cozinha. Entretanto, o de saborear se converteu em meu forte. Tomei um pouco da mescla e me coloquei isso na língua. Um sabor muito enjoativo me invadiu a boca. A textura era similar a do crioulo, mas carecia do sabor a frutos secos, ligeiramente amargo, que compensava a doçura extrema. —Talvez a receita está mau. Ponha no lugar do Ving. O Comandante Ambrose adora o Crioulo e você tem a única cópia da receita. A daria a alguém ou a utilizaria para conseguir uma mudança de posto? —O que posso fazer? Se não souber fazer Crioulo, o Comandante provavelmente mandará a outro posto. Meu ego não o poderá suportar. —Lhe diga ao Comandante que a receita está errada. Jogue a culpa no Ving de sua incapacidade para fazer Crioulo. Rand suspirou e esfregou o rosto com as mãos. —Não posso suportar esta classe de pressão política. Nestes momentos, mataria por uma taça de café, mas suponho que terei que me conformar com vinho —disse, rebuscando em um armário e tirando uma garrafa e duas taças. —Café? —Você é muito jovem para te lembrar, mas antes da mudança de regime, importávamos essa maravilhosa bebida de Sitia. Quando o Comandante fechou a fronteira, perdemos uma boa interminável de artigos de luxo. De todos, ao que mais sinto falta de é o café. —E o mercado negro? —perguntei. —Provavelmente está disponível, mas eu não poderia prepará-lo no castelo sem que me descobrissem. —Por que? —Pelo aroma. O aroma rico e distintivo do café me delataria. O aroma de uma taça de café pode estender-se facilmente por todo o castelo. Todas as manhãs, antes da mudança de regime, despertava e tomava uma taça. O trabalho de minha mãe era moer os grãos e encher as cafeteiras de água. É muito similar à preparação do chá, mas o sabor é superior. Para ouvir a palavra “grãos” me sentei mais erguida na cadeira.


—De que cor são os grãos de café? —Marrons. por que? —Nada, só curiosidade —respondi com um tom tranqüilo, embora a excitação se deu procuração de mim. Meus grãos misteriosos eram marrons e Brazell era o suficientemente adulto para saber do café. Talvez sentia falta da bebida e pensava fabricá-la. Meus esforços por fermentar a polpa da vagem tinham resultado em vão. Então, tirei as sementes e as deixei ao sol, sobre o batente da janela. À medida que se foram secando, ficavam marrons e se pareciam com os outros grãos que tinha encontrado Valek na caravana. Entretanto, até minha conversação com o Rand, não tinha podido averiguar nada mais. — É doce o café? —perguntei. —Não. É amargo. Minha mãe estava acostumada lhe acrescentar leite e açúcar, mas eu gostava de sozinho. Meus grãos eram amargos. Já não podia seguir sentada mais tempo. Tinha que descobrir se Valek se lembrava do café. Sentia-me cômoda lhe perguntando ao Rand, dado que não sabia se Valek quereria que ele soubesse o daquelas vagens. Depois de me despedir do Rand, dirigi-me correndo às habitações do Valek. A minha chegada escutei o som de livros que se fechavam. Valek andava como um louco pelo salão, dando patadas aos montões de livros. Partes de pedra cobriam o chão por toda parte. De fato, tinha uma em cada mão. Morria de vontades por falar com ele do café, mas decidi esperar. —O que é o que quer? —espetou-me. Levava suportando o mau gênio do Valek desde fazia três dias. Como estava já cansada de me esconder dele, decidi lhe abordar. Ele tomou assento frente a seu escritório, de costas a mim. —Talvez tenha descoberto o que são esses grãos —sussurrei. Ele se deu a volta para me olhar. Sua ira parecia haver-se dissipado. —De verdade? —perguntou, sem convicção alguma. Eu dava um passo atrás. Sua indiferença me resultava mais aterradora que sua ira. —Eu... Eu... estive falando com o Rand e ele me há dito que sentia falta do café. Lembra-te você do café? É uma bebida do sul. —Não.


—Acredito que nossos grãos poderiam ser café. Se você não souber o que é o café, talvez deveria mostra-los ao Rand, se te parecer bem. —Adiante, compartilha suas idéias com o Rand, seu companheiro, seu melhor amigo. É como ele —me espetou, cheio de frio sarcasmo. —O que diz? —Que faça o que queira. Não me importa —disse, antes de me dar as costas de novo. Dirigi a minha habitação e fechei a porta com chave. Repassei na semana anterior e tratei de descobrir se tinha havido algo que explicasse a mudança que se produziu no Valek. Não recordei nada. Quase não nos tínhamos falado e, até o momento, eu tinha acreditado que sua ira ia dirigida ao Comandante. Talvez tinha descoberto meu livro de magia. Talvez suspeitava que eu tinha poderes. O medo substituiu à confusão. Tombei-me na cama e me pus a olhar a porta. Com os nervos a flor de pele, esperei o ataque do Valek. Sabia que estava exagerando, mas não podia evitá-lo. Não podia me esquecer do modo no que me tinha cuidadoso, como se já estivesse morta. Por fim chegou o alvorada. Passei aquele dia como um zumbi. Valek não me emprestou atenção alguma. Esperei alguns dias antes de mostrar os grãos ao Rand. Ele estava já de melhor humor. Tinha um grande sorriso no rosto e me saudou com um delicioso pastelzinho de canela. —Não tenho fome —disse. —Leva vários dias sem comer. O que acontece? —perguntou-me Rand. Evitei a resposta lhe perguntando pelo Crioulo— Seu plano funcionou. Disse-lhe ao Comandante que Ving me tinha enviado mal a receita. Ele me disse que se ocuparia disso. Então, perguntoume se os empregados da cozinha trabalhavam bem ou se necessitava mais ajuda. Eu fiquei olhando-o sem poder acreditá-lo porque me pareceu que me tinha equivocado de habitação. Normalmente, o Comandante me recebia com suspeitas e me despedia com ameaças. —Não me parece que tenha boa relação. —Minha relação com o Comandante e com o Valek é tensa em seus melhores momentos. No momento da mudança de regime, eu era bastante jovem e rebelde, por isso provei tudo o que me ocorreu para realizar sabotagens. Servia-lhe ao Comandante leite azedo, pão duro, verduras podres e inclusive carne crua. Nesse momento, eu só queria ser uma moléstia para eles. Converteu-se em uma batalha de engenhos. O Comandante estava


decidido a que eu cozinhasse para ele e eu a que me prendessem ou a que enviassem a outro posto. Então, Valek converteu a minha mãe na provadora de comida do Comandante. Isso foi antes de que criassem o maldito Código de Comportamento. Eu não podia suportar que ela tivesse que provar o lixo que eu lhe preparava ao Comandante. Quando ocorreu o inevitável, tratei de fugir, mas me detiveram muito perto da fronteira do sul —disse Rand, esfregando joelho esquerdo— Me destroçaram a rótula, me deixando aleijado como se fosse um maldito cavalo. Disseram-me que fariam o mesmo na outra perna se voltasse a escapar. E aqui estou. Isso te demonstra o muito que troquei. O Comandante se mostra amável comigo e eu estou contente. Antes sonhava envenenando-o, mas sempre tenho a debilidade de sentir avaliação pelo que prova sua comida. Quando Oscove morreu, prometi-me que não voltaria a fazê-lo. Falhei. Uma vez mais —acrescentou, antes de partir a suas habitações. Inclinei-me sobre a mesa, lamentando que meu comentário tivesse feito mal ao Rand. Compreendia o ocorrido da perspectiva do Rand, mas quando o pensava tudo do ponto de vista do Valek, compreendia-o também. depois de tudo, seu trabalho era proteger ao Comandante. Os dois dias seguintes passaram envoltos na rotina. Quando Margg se materializou uma tarde, depois de uma de minhas sessões de treinamento, para me informar de que se organizou uma reunião com seu contato para a tarde do dia seguinte, fiquei atônita. Não fazia mais que pensar em todas as possibilidades. Quem me acreditaria se informava da reunião? Ninguém. Necessitava uma testemunha que pudesse atuar também como protetor. Pensei no Ari, mas não queria que recaísse sobre ele suspeita alguma. Quanto mais o pensava, mais me centrava em um único nome: Valek. Temia me encontrar com ele. Não falávamos. Até o antídoto me dispensava isso em silêncio. Entretanto, depois de provar o jantar do Comandante, decidi ir buscá-lo. Seu escritório estava fechado, por isso procurei em suas habitações. Não estava no salão, mas ouvi um ruído na planta de acima. Subi as escadas e vi que havia luz no estudo no que esculpia suas pedras. O ruído da pedra de amolar me pôs os cabelos de ponta. Quando estava a ponto de chamar, duvidei. Certamente, aquele era o pior momento para incomodá-lo, mas tinha que me reunir com o contato do Margg ao dia seguinte. Não tinha tempo a perder. Armei-me de coragem e chamei. Então, abri sem esperar a que ele respondesse. —O que quer? —perguntou-me, detendo-se em sua tarefa.


—Recebi uma oferta. Alguém quer me pagar por lhe dar informação sobre o Comandante. Rapidamente se deu a volta. Tinha o rosto médio oculto pelas sombras. —E por que me diz isso? —Pensei que você gostaria de investigar um pouco o assunto. Esta pessoa poderia ser a que esteve filtrando informação sobre mim. Além disso, a espionagem é ilegal. Pensei que talvez quereria prender o responsável ou filtrar informação falsa. —De quem se trata? —perguntou Valek, por fim, depois de um comprido silencio— E quando? —Margg se aproximou e me disse que tinha um contato. Temos uma reunião amanhã de noite —disse, estudando atentamente a expressão do Valek. Sentia-se surpreso ou ferido pela traição do Margg? Não sabia. Averiguar o verdadeiro estado de ânimo do Valek era como tratar de decifrar um idioma desconhecido. —Muito bem. Procede. Eu te seguirei à reunião para ver com quem estamos tratando. Começaremos lhe dando informação verdadeira para que te considere de confiar. Talvez nos serviria o da mudança de sucessor do Comandante. É uma informação inofensiva que, de todos os modos, fará-se pública. Já veremos então. Decidimos os detalhes. Embora estava pondo minha vida em perigo, sentia-me contente. O Valek de antigamente havia tornado. Entretanto, durante quanto tempo? Quando terminamos de prepará-lo tudo, dava a volta para partir. —Yelena. Detive-me na soleira e olhei por cima do ombro. —Uma vez me disse que ainda não estava preparado para acreditar na razão que tinha tido para matar ao Reyad. Acreditarei-te agora. —Entretanto, eu não estou preparada para dizer-lhe repliquei isso. Então, parti-me da sala.


Capítulo 20

Maldito seja Valek! Maldito seja! Levava quatro dias me ignorando e, de repente, esperava que eu confiasse nele. Que admitisse um assassinato. Tinham detido à pessoa adequada. Isso era o que lhe importava. Baixei as escadas me dirigi a minha habitação. “Tenho que sair deste lugar”, pensei de repente, com repentina intensidade. Sentia um profundo desejo de partir e de mandar a passeio ao antídoto. Fugir, fugir, fugir. Um tom familiar. Já o tinha escutado antes quando estava com o Reyad. Lembranças que tinha guardado debaixo de sete chaves ameaçavam voltando a emergir. Maldito Valek! Era culpa dele que já não pudesse conter as lembranças. Fechei a porta de minha habitação com chave. Quando dava a volta, vi o fantasma do Reyad convexo em minha cama. Tinha a ferida do pescoço aberta e a camisola manchada de sangue. Pelo contrário, seu loiro cabelo estava bem penteado, o bigode bem arrumado e os olhos muito brilhantes. —Fora —lhe ordenei, sem medo algum. —Que classe de saudação é esse para um velho amigo? —perguntou Reyad. Tomou um livro de venenos que tinha sobre minha mesinha de noite e começou a folheá-lo. —Está morto —lhe disse — Não se supõe que deveria estar ardendo no fogo eterno? —É muito aplicada —disse, me mostrando o livro— Se tivesse se esforçado tanto para mim, tudo teria sido muito diferente. —Eu gosto de como saiu tudo. —Envenenada, perseguida e vivendo com um psicopata. Não me parece que isso seja uma boa vida. A morte tem suas vantagens. Assim posso contemplar sua miserável existência. Deveria ter eleito o cadafalso, Yelena. Te teria economizado tempo. —Fora —repeti, tratando de ignorar o tom de histeria que tinha na voz e o suor que me corria pelas costas. —Sabe que jamais chegará com vida a Sitia? É uma fracassada. Sempre o foste e sempre o será. Aceita-o. Fracassou em todos os esforços que nós fizemos por te moldar. Lembra-te? Lembra-te de quando por fim meu pai te deixou por impossível? Quando me deixou que ficasse contigo?


Recordava-o perfeitamente. Tinha sido a semana do festival de fogo. Reyad se tinha mostrado tão preocupado pela visita do general Tesso, e em especial de sua filha, que não se preocupou de mim. Dado que eu obedecia em tudo o que me dizia, tinha começado a acreditar que tinha conseguido me submeter. Entretanto, o festival me tentou uma vez mais a desobedecer. As surras e as humilhações do ano anterior eram insuficientes para me desanimar aquele ano. Meu orgulho me impedia intimidada por ele. O festival de fogo era parte de mim. O único momento no que podia saborear a liberdade. Embora fora durante uns poucos instantes, valia a pena enfrentar às conseqüências. Meu desafio me deu uma certa ousadia na hora de realizar minhas acrobacias. Cheguei até a ronda final da competição, que estava programada para o último dia do festival. Consegui preparar o traje que ia levar enquanto Reyad levava a Kanna, a filha do Tesso, e a uns amigos, a uma partida de caça no campo. Quando a competição começou, a loja se encheu de gente. Aquela noite, voei. Meus pés pareciam não tocar o chão. Sentia-me como um pássaro, realizando piruetas por puro prazer. Quando terminei meu exercício, os aplausos de todos os pressentes ressonaram com força no peito. A alegria se apoderou de mim e sorri pela primeira vez em dois anos. Permaneci no cenário para que o mestre de cerimônias me desse meu prêmio. Quando me prendeu uma medalha no peito, que tinha gravada a competição em que se ganhou e o ano, senti que era o momento mais importante de minha vida... seguido pelo pior. Vi que Reyad e Kanna estavam me observando entre o público. Kanna sorria, mas a expressão do Reyad era dura. Tratava de reprimir a ira que lhe escapava através dos lábios. Permaneci muito tempo no vestuário, até que todo mundo se partiu. Havia duas saídas à loja, mas Reyad tinha colocado seus guardas em ambas. Sabendo que Reyad me tiraria a medalha e a destruiria, enterrei-a no chão.Tal e como esperava, Reyad me agarrou assim que saí. Levou-me arrastando à casa e consultou a seu pai. O general se mostrou de acordo em que eu jamais seria “uma dos seus”. Era muito independente, muito teimosa e muito insistente. Então, entregou a seu filho. Já não haveria mais experimentos. Eu tinha fracassado. Aquela noite, Reyad conseguiu controlar sua ira até que estivemos a sós em sua habitação. Entretanto, quando fechou a porta, deu asas a sua ira com punhos e pés. —Queria te matar por me haver desobedecido —disse o fantasma do Reyad, deslizando-se por minha habitação— Planejava saboreá-lo durante um comprido período de tempo, mas você ganhou. Devia fazer algum tempo que tinha a faca debaixo de meu colchão.


Efetivamente, eu tinha roubado e escondido a faca um ano antes, quando Reyad me pegou por praticar. Por que em sua cama? Não tinha nenhuma estratégia, simplesmente uma terrível premonição de que, quando o necessitasse, seria na habitação do Reyad e não na minha. Sonhar com um assassinato tinha sido fácil. Cometê-lo era outra história. Embora tinha suportado muita dor aquele ano, não tinha cruzado ainda a soleira da prudência. Até aquela noite. —O que foi o que te provocou? —perguntou-me o fantasma— Ou acaso estava tonteando, como agora? Aprendendo a lutar! —exclamou entre risadas—

Imagine te

enfrentando a um atacante. Não suportaria nem um assalto direto. Eu sei. —Vá —lhe disse, tratando de não recordar o que ocorreu aquela noite. Tomei meu livro de venenos e me tombei na cama, decidida a não lhe emprestar atenção. Enquanto lia, desvanecia-se um pouco, mas recuperava entidade quando o olhava. —Foi meu jornal a provocação que necessitou? —perguntou-me Reyad. —Não. A palavra me saiu sozinha da boca, me surpreendendo. Tinha-me convencido de que seu jornal tinha sido a gota que tinha repleto dois anos de tortura. As dolorosas lembranças surgiram com uma força que me deixou tremendo. Depois que recuperei o conhecimento pela surra, encontrei-me tombada, completamente nua, sobre a cama do Reyad. Mostrou-me seu jornal e me ordenou que o lesse, gozando com o horror crescente que ia desenhando no rosto. Aquele jornal tinha cotadas todas as coisas nas que eu lhe tinha ofendido nos dois anos que levava com ele. Cada vez que o desobedecia ou o zangava, anotava-o, seguido de uma detalhada descrição de como ia castigar-me. Como Brazell já não me necessitava para seus experimentos, Reyad não tinha limites. Suas inclinações sádicas e sua profunda imaginação estavam escritas ali com todo detalhe. Quando começou a me custar respirar, pensei em procurar a faca e me matar, mas a arma estava ao outro lado, perto da cabeceira. —Esta noite, começaremos com o castigo que aparece na página número um — ronronou Reyad com antecipação, enquanto se dirigia a seu baú de “brinquedos”. Então, tirou cadeias e outras ferramentas de tortura. Com dedos trementes, voltei para a página número um. Ali se registrava que não o tinha chamado senhor a primeira vez que o vi. Por lhe faltar ao respeito, adotaria uma postura de submissão a quatro patas e logo me açoitaria. Ele me pediria que lhe chamasse senhor.


Com cada chicotada, eu responderia com as palavras “Mais, senhor, por favor”. Durante a subseqüente violação, chamaria-lhe “senhor” e lhe suplicaria que continuasse meu castigo. O jornal me caiu das paralisadas mãos. Levantei-me imediatamente da cama, com a intenção de encontrar a faca, mas Reyad, pensando que queria escapar, apanhou-me. Minha resistência foi inútil. Obrigou-me a me pôr de joelhos e, depois de me apertar o rosto contra o duro chão, encadeou-me as mãos atrás do pescoço. A antecipação foi muito pior que o ato em si. Em certo modo, foi um consolo, porque sabia o que esperar e quando terminaria. Representei minha parte, compreendendo que se lhe negava o que queria, só o enfureceria mais. Quando o horror cessou por fim, o sangue me cobria as costas e o interior das coxas. Me encurralei ao bordo da cama de Reyad. Minha mente estava morta. Meu corpo dolorido. Ele tinha os dedos em meu interior. “Onde sempre estaria”, conforme me sussurrou enquanto se tombava a meu lado. Aquela vez, a faca estava a meu alcance. Só pensava no suicídio. Então, Reyad disse: —Suponho que terei que começar um novo jornal. Eu não respondi. —Dado que você falhaste, terei que treinar a uma nova garota —acrescentou, sentando-se na cama e me colocando mais os dedos— Te ponha de joelhos. Chegou a hora para a página número dois. —Não! —gritei— Não o fará! Depois de rebuscar durante um segundo, tirei a faca e lhe fiz um corte na garganta. Só era superficial, mas ele caiu de costas pela surpresa. Eu me sentei em cima dele e lhe cortei mais profundamente. A folha da faca tocou osso. O sangue começou a salpicar por toda parte. Senti uma cálida sensação de satisfação quando me dava conta de que já não podia distinguir se o sangue que tinha entre as coxas era meu ou dele. —Foi isso o que te provocou? O fato de que ia voltar a te violar? —perguntou-me o fantasma do Reyad. —Não. Foi pensar que foste torturar a outra menina do orfanato. —Ah, sim... A suas amigas. —A minhas irmãs —corrigi— Te matei por elas, mas deveria havê-lo feito por mim.


Encurralei ao fantasma em um rincão e comecei a golpeá-lo, até sabendo que não podia lhe fazer danifico. Ele jamais trocou a expressão paga de si mesmo de seu rosto, mas eu segui golpeando-o até que se desvaneceu com os primeiros raios do alvorada. Entre soluços, desmoronei-me no chão. Depois de um momento, dava-me conta de que tinha os punhos cheios de sangre por ter estado golpeando as paredes. Sentia-me esgotada e carente de emoções. E chegava tarde ao café da manhã do Comandante. Maldito Valek! —Disposta atenção —me disse Ari. Golpeou-me no estômago com uma faca de madeira— Está morta. Hoje é a quarta vez. O que te passa? —Falta de sono —respondi— O sinto. Ari me indicou um banco que havia junto à parede. Sentamo-nos e observamos a Maren e ao Janco, que estavam encetados em uma briga de fortificações. A velocidade do Janco tinha superado a perícia do Maren. Ela estava de retirada, metendo-se em um rincão. —É alta e magra, mas não vai ganhar —cantarolou Janco para enfurecer ao Maren ainda mais, uma tática que já lhe tinha funcionado antes. Freqüentemente, sua ira lhe tinha feito perder o controle. Não obstante, aquela vez permaneceu tranqüila. Colocou a ponta de sua fortificação entre os pés do Janco e saltou por cima dele, colocando-se o às costas. Então, agarrou-o pelo pescoço até que ele admitiu sua derrota.Meu triste estado de ânimo melhorou um pouco ao ver que ela utilizava algo que eu lhe tinha ensinado. A expressão de indignação que se refletiu no rosto do Janco não tinha preço. Insistiu em que brigassem uma vez mais. Enquanto o faziam, Ari e eu permanecemos no banco. Ari deveu notar que eu não tinha forças para prosseguir com a classe. —Ocorre-te algo —disse— O que é? —Eu... Não sei. Crê que isto é uma perda de tempo? —perguntei-lhe, para não lhe revelar a verdadeira causa de minha melancolia. Preocupava-me o que me havia dito o fantasma do Reyad. —Se acreditasse, não estaria aqui. Necessita isto, Yelena. —Por que? Talvez eu morra antes de que tenha oportunidade de utilizá-lo. —Em minha opinião, melhoraste muito em correr e em te esconder. Custou-te uma semana reunir a coragem para falar com a Maren e, se fosse por ti, ainda te chamaria


Vomitona. Tem que aprender a lutar pelo que quer. Se segue te preparando, a próxima vez que alguém te insulte terá a segurança suficiente para que se trague suas palavras. —Assim é como pensava me animar? —Sim. Agora, deixa de procurar uma desculpa para deixar de treinar e confia em mim. Que mais necessita? A intensidade da voz do Ari me provocou um calafrio pelas costas. Acaso sabia o que eu estava planejando ou o adivinhava? Minha intenção sempre tinha sido conseguir o antídoto e fugir a Sitia. Entretanto, para poder fazê-lo, tinha que estar em boa condição física e saber como me defender. Entretanto, estava evitando um detalhe muito importante: Valek. Ele me seguiria a Sitia. O fato de cruzar a fronteira não me liberaria dele. Nem sequer a magia do Irys podia me proteger. Consideraria minha captura como uma responsabilidade pessoal. Isso era ao que tinha tanto medo. Centrava-me em meu treinamento para não ter que me enfrentar ao dilema que temia que não poderia resolver. Tinha que ampliar minha estratégia. Não só devia conseguir o antídoto, mas também me ocupar do Valek sem ter que matá-lo. Duvidava que Ari tivesse a solução. —Talvez possa derrotar ao Valek com esses golpes —dizia Janco ao Maren— morreria de risada ao ver quão débeis som. Maren permaneceu em silêncio, mas acrescentou o ritmo de seu ataque. Janco deu um passo atrás. Eu, por minha parte, seguia tratando de formar meu plano. —Ari, pode me ensinar a forçar uma fechadura? —Janco poderia —respondeu ele, depois de considerar minhas palavras durante um instante. —Janco? —Parece um bom menino, mas era uma boa peça em sua infância. Quando se viu metido em uma confusão, deram-lhe a opção de aboar-se no Exército ou ir ao cárcere. Agora, é capitão. Sua principal vantagem é que ninguém acredita que fala a sério. Isso é precisamente o que ele quer. —Tratarei de recordá-lo-a próxima vez que não faça mais que me contar piadas enquanto me dá golpes nas costelas. Vi como Maren derrotava ao Janco pela segunda vez. —Que ganhe três de cinco. Isso não me pode negar —disse Janco, incansável. —Se seu ego lhe permite —replicou iMaren, encolhendo-se de ombros.


Depois do treinamento, os quatro estávamos descansando em um banco quando chegou Valek. Maren ficou de pé imediatamente, como se acreditasse que ele a encontrasse ociosa era um delito. O resto mantivemos nossas posturas relaxadas. Resultava-me fascinante ver as mudanças que se produziam em Maren quando Valek estava presente. Sorria constantemente e tratava de cercar conversação com ele. A maioria das vezes que vinha a nos ver, ela conseguia que se centrasse nela e se comportava como uma gata guia de ruas com o macho dominante. Entretanto, naquela ocasião, Valek queria falar comigo. A sós. Os outros partiram do armazém. Antes de partir, Maren me lançou um olhar de desaprovação. Estava segura de que o pagaria ao dia seguinte, quando me enfrentasse com ela. —O que ocorre? —perguntei-lhe, ao ver que não deixava de passear de um lado a outro— É por esta noite? —Não. Para esta noite já estamos preparados. É pelo Comandante. —O que lhe ocorre? —Reuniu-se com alguém estranho esta semana? —Estranho? —Alguém a quem não conheça ou um conselheiro de outro distrito militar. —Não que eu saiba. Por que? —O Comandante Ambrose aceitou receber a uma delegação de Sitia. —E isso é mau? —perguntei, confusa. —Odeia aos suboas! Eles pediram uma reunião com ele todos os anos da mudança de regime, e durante os últimos quinze anos, ele se negou a recebê-los. Esta vez, vão chegar dentro de uma semana. Desde que você se converteu em sua provadora de comida e chegou esse Crioulo, o Comandante se esteve comportando de um modo estranho. Antes não estava seguro, mas agora já tenho dois fatos que o demonstram. —Refere-te à mudança de sucessor e ao da delegação de Sitia? —Exatamente. Não sabia o que responder. A experiência que eu tinha tido com o Comandante tinha sido completamente diferente do que tinha esperado de um ditador militar. Considerava outras opções. Era firme, decidido e justo. Seu poder era evidente. Todas suas ordens se cumpriam imediatamente. Levava a vida espartana que promulgava. Não havia medo em seus conselheiros e oficiais, simplesmente uma inflexível lealdade e um imenso respeito. A única história de horror que tinha escutado era a da mãe do Rand.


—Consegui pegar uma quantidade de Crioulo. Está em nossa suíte —me disse Valek— Quero que tome uma parte quando tomar o Comandante. Entretanto, não quero que o diga a ninguém, nem sequer ao Comandante. É uma ordem. —Sim, senhor —repliquei automaticamente. Não fazia mais que pensar em que havia dito que a suíte era “nossa”. Lhe teria ouvido bem. —Quanto à reunião com a Margg, não a biombos. Ali estarei. —Devo-lhe dizer ao contato do Margg da delegação do sul? —Não. Utiliza o de mudança do sucessor do Comandante. Já existe como rumor, assim que você confirma-o. Com isso, Valek saiu do armazém. Se por acaso alguém descobria onde treinávamos, sempre escondia as armas e retirava todos os restos visíveis de nossa presença ali. Então, saí e fechei a porta. De caminho aos banhos, não fazia mais que pensar na reunião daquela noite. Estava tão distraída que não me precavi do que acontecia diante de uma porta aberta. Uma raridade. Naquela seção do castelo, a maioria das portas levavam a armazéns e estavam bem fechadas. Notei um ligeiro movimento a minha esquerda. Umas mãos me agarraram o braço e me atiraram ao interior. A porta se fechou de uma vez. Uma completa escuridão descendeu sobre mim. Estava de cara contra uma parede. Como pude, dava a volta. —Quieta —me disse uma voz masculina. Tratei de dar uma patada ao dono daquela voz, mas falhei. Acendeu-se uma vela. A fraca chama amarela se refletiu em uma larga folha chapeada. Aterrada, centrei-me no rosto de meu atacante. Nix.


Capítulo 21

—Por que? —perguntou Nix, enquanto colocava a vela sobre uma mesa— Porque sou eu sempre o mais preparado? Aproximou-se um pouco mais a mim. Tratei de lhe dar uma patada, mas ele me impediu com facilidade. —Por que não serviram que nada meus esforços por te desanimar? Talvez tinha que falar mais claro —disse, me colocando a faca contra a garganta. —Que problema tem? —espetei-lhe com a voz mais acalmada e neutro que pude encontrar. —Meu problema é que ninguém me vê como uma ameaça, mas sou mais preparado que Ari, Janco e Maren. Inclusive sou mais preparado que Valek, verdade? — perguntou-me. Quando viu que eu não respondia, acrescentou pressão à faca— Verdade? Uma magra linha de dor me cruzou o pescoço. —Sim —respondi. detrás do Nix, o fantasma do Reyad surgiu de repente, como sempre com um arrogante sorriso no rosto. —Meu chefe quer que deixe de treinar. Não me permite te matar. Uma pena. Estou aqui só para te advertir. —Parffet? E o que importa a ele? —Nada. O único que lhe importa é que lhe ascenda, ao muito imbecil. Entretanto, ao general Brazell lhe interessa muito seu novo passatempo. Nix colocou a mão que tinha livre entre as pernas e apoiou seu corpo contra o meu. Durante um segundo, o pânico se apoderou de mim e apagou todas as técnicas de autodefesa de meu pensamento. Um suave zumbido começou a surgir no interior da cabeça, mas o afoguei e o transformei em uma singela escala de notas musicais. A calma se apoderou de mim. Diante de meus olhos, apareceram os movimentos de defesa pessoal. Gemi e movi um pouco os quadris, abrindo as pernas.Nix sorriu. —É a zorra que acreditava que foi. Agora, recorda, tem que ser castigada. Uma de suas coxas substituiu à mão. Então, começou a atirar do cinturão. Eu lhe coloquei um joelho entre as pernas e, continuando, golpeei-lhe com força a virilha. Com um gemido de dor, Nix se dobrou sobre si mesmo. Agarrei a faca com ambas as mãos para evitar que me cravasse mais na garganta. Ari sempre me havia dito que era


melhor um corte nas mãos que no pescoço. Pensei em suas palavras enquanto suportava a dor. Apartei a faca de mim e Nix caiu para trás. —Zorra! —gritou. Equilibrou-se sobre mim e tratou de me cortar com a faca. Eu fiz a um lado e, com toda a força que pude reunir, golpeei-lhe no braço. A faca caiu ao chão. Então, agarrei-lhe o braço e o retorci. Depois girei sobre mim mesma e lhe coloquei o ombro direito sob o cotovelo. Então, com todas minhas forças, atirei da mão. Ouviu-se um golpe seco, que indicava que eu tinha quebrado o braço ao Nix. Então, dava-lhe um par de murros no nariz. O sangue começou a emanar com força. Enquanto ele perdia o equilíbrio, peguei-lhe uma patada na rótula e a rompi também. Nix se desmoronou sobre o chão. Continuando, pus-me a lhe dar patadas nas costelas como uma possessa. O sangue me fervia. Os débeis intentos do soldado por me deter só me enfureciam mais. Naquele estado, poderia havê-lo matado. O fantasma do Reyad me animou a fazê-lo. —Isso, Yelena —me animou — Mata a outro homem. Isso te levará a forca com toda segurança. Felizmente, aquelas palavras alcançaram a parte racional de meu cérebro e me detive. Nix estava completamente imóvel. Ajoelhei a seu lado e tomei o pulso. Encontrei-o. O alívio que senti se desvaneceu quando Nix me agarrou pelo cotovelo. Eu lancei um grito e lhe dava um murro no rosto. Soltou-me rapidamente. Então, agarrei a faca do chão e pus-se a correr, embora aquela vez não me fazia presa do medo. Com rapidez, cheguei aos banhos. A aquelas horas do dia estavam vazios, por isso escondi a faca do Nix sob uma das mesas de toalhas e comprovei o alcance de minhas feridas em um espelho. O corte de pescoço tinha deixado de sangrar, mas os que tinha nas Palmas das mãos pareciam sérios. Também tinha um brilho selvagem e irreconhecível nos olhos. Como tinha que provar o jantar do Comandante, decidi ir à enfermaria para que me curassem. A doutora me examinou rapidamente. —Como...? —começou. —Com um cristal quebrado —disse. Ela assentiu em silêncio. —Irei a por minhas ferramentas.


Tombei-me na cama. Imediatamente, ela retornou com uma bandeja de instrumental. Um pote da cola do Rand parecia desconjurado entre uns elementos tão científicos. As mãos me doíam muito e temia a padre que a doutora fora a me fazer. Naquele momento, Valek entrou na enfermaria. —O que ocorreu? —perguntou-me. Eu olhei à doutora. Como resposta, ela me agarrou a mão e começou a me limpar a ferida. —As feridas de cristais quebrados deixam lacerações —me disse— Estes cortes tão limpos só podem ser de uma faca. Tenho que informar. A doutora tinha informado ao Valek e ele não ia partir sem respostas. Com resignação, olhei-o, esperando me distrair da dor que tinha nas mãos. —Atacaram-me. —Quem? Olhei à doutora. Valek compreendeu. —Poderia-nos desculpar um momento? —Está bem —disse. Então, dirigiu-se ao escritório que tinha ao outro lado da enfermaria. —Quem? —repetiu Valek. —Nix, um soldado da unidade do Parffet. Disse-me que trabalhava para o Brazell e me advertiu que deixasse de me treinar. —Matarei-o. A intensidade da voz do Valek me surpreendeu e alarmou de uma vez. —Não, não o fará. Utilizará-o. É um vínculo com o Brazell. —Onde te atacou? —perguntou-me, depois de considerar minhas palavras. —Em um armazém que estava a quatro ou cinco portas do de onde treinamos. —Provavelmente, já não esteja ali. Enviarei a alguém aos barracões. —Não, estará ali. —Por que ? —Se não esta no armazém, não terá chegado muito longe. Talvez seja melhor que envie um par de homens. —Entendo —comentou Valek — adequadamente? —Melhor que esperado.

Significa isso que o treinamento progrediu


Valek partiu da enfermaria. A doutora retornou a meu lado. Decidi que a próxima vez me curaria eu sozinha para que não pudesse me trair. Ainda tinha um pote com o ungüento do Rand em minha mochila. Não podia ser tão difícil limpar e selar uns cortes. Quando terminou de me enfaixar as feridas, a doutora me disse que não me podia molhar isso durante um dia, que não podia levantar peso algum ou escrever durante uma semana. “Isso significa que tampouco poderei treinar durante um tempo”, pensei. Naquele momento, entraram os homens do Valek. Jogaram no Nix sobre outra cama. A doutora me olhou assombrada e se aproximou rapidamente ao Nix, o que me deu a oportunidade perfeita para partir. Dirigi-me rapidamente ao despacho do Comandante, mas Valek já se ocupou. Fechou a porta e me impediu de entrar. —Encontra ao Margg e cancela a reunião de esta noite. Então, retorna a nossa suíte e descansa. —Cancelá-la? por que? Resultaria suspeito. Porei-me umas luvas para cobrir as vendagens. Agora faz bastante frio de noite e ninguém se fixará. Estou bem —acrescentei, ao ver que ele não dizia nada. —Deveria te olhar em um espelho —disse ele, rindo— Bem. Seguiremos tal e como estava tudo planejado. Detivemo-nos na porta do despacho do Valek. —Tenho trabalho que terminar. Descansa e não se preocupe. Esta noite estarei perto —prometeu. —Valek? —Sim? —O que ocorrerá ao Nix? —Curaremo-lo, ameaçaremo-lo com muitos anos nas masmorras se não cooperar e, quando tiver terminado de nos ajudar, enviarei-o ao Distrito Militar 1. Parece-te bem ou crê que deveria matá-lo? O DM-1 era o mais frio e baldio da Ixia. A possibilidade de que Nix caísse presa de um tigre de neve me provocou um sorriso no rosto. —Parece-me bem. Se o tivesse querido morto, o teria feito eu mesma. Valek se ergueu e me lançou um olhar muito significativo, uma combinação de surpresa, diversão e cautela. Imediatamente, voltou a controlar suas emoções e voltou a me mostrar o rosto pétreo de sempre.


Depois de lhe dedicar um sorriso, parti-me. O descansar teria que esperar, dado que primeiro tinha que fazer alguns recados. Em primeiro lugar, necessitava luvas e uma capa, dado que naquela estação, as noites eram frias. Felizmente, Dilana seguia em sua oficina. Conversei um momento com ela antes de lhe fazer minha petição. —Meu deus —disse, soando como uma mãe preocupada— Não tem objetos para o frio? —perguntou-me, enquanto rebuscava entre seus montões de roupa— Por que não vieste antes? —Até agora não as necessitei. Dilana, comporta-te como uma mãe com todos os habitantes do castelo? —Não, querida. Só com os que o necessitam. —Obrigada —respondi com afeto. Quando Dilana terminou, eu estava completamente equipada para o frio. Objetos interiores de flanela, meias três-quartos de lã, botas mais pesadas... Deixei-o tudo em um rincão e pedi a Dilana que pedisse que alguém levasse isso às habitações do Valek. —Segue aí? —No momento, sim. Entretanto, acredito que quando o todo se tranqüilize, voltarei para minha antiga habitação. Antes de partir, selecionei uma capa do montão e umas luvas e joguei sobre o braço. —Dá-me a sensação de que seguirá ali muito tempo. —Por que? —Acredito que Valek sente algo por ti. Jamais o vi interessar-se tanto por uma provadora de comida. Normalmente, instrui-as e as deixa a seu ar. Se houvesse algum problema, pediria a um de seus homens que se ocupasse. Jamais o faria pessoalmente. E muito menos viver com ela! —Está louca. —De fato, jamais se interessou por uma mulher. Eu estava começando a suspeitar que talvez preferia os homens, mas... agora temos à encantada e inteligente Yelena para que faça pulsar o frio coração do Valek. —Deveria sair desta oficina um pouco mais. Necessita ar fresco e uma dose de realidade —repliquei. Sabia que não devia acreditar em nenhuma só das palavras da Dilana, mas me resultava impossível controlar o estúpido sorriso que tinha desenhado no rosto. A doce e melodiosa voz da Dilana me perseguiu até o corredor.


—Sabe que tenho razão! —gritou. Enquanto percorria os corredores, pensei que a única razão pela que Valek se interessava por mim era porque eu era um enigma para ele. Quando acreditasse que tinha todas as respostas sobre a maga do sul e Brazell, devolveria a meu quarto na asa dos criados. Não podia me permitir outra coisa. Uma coisa era ter uma ligeiro teimosia que não afetaria em nada meus planos e outra... Nem pensar. Pensar que ele sentia o mesmo por mim seria desastroso. Portanto, tratei de me convencer de que Dilana tinha uma imaginação muito ativa e de que se equivocava. Esforcei-me muito. Durante todo o caminho à cozinha, recordeime que Valek era cambiante e lhe exasperem, além de um assassino. Entretanto, por alguma razão, não era capaz de apagar aquele estúpido sorriso de meu rosto. Depois de deixar a capa sobre uma cadeira, servi-me o jantar. Rand terminou de lhe dar a volta a seus leitões e foi sentar se a meu lado. A boca me fez água ante o aroma do leitão assado. —A que se deve isto? —perguntei-lhe. O porco assado era uma comida pouco freqüente. Como requeria um dia inteiro para preparar-se, só se elaborava em ocasiões especiais. —Esta semana vêm a nos visitar os generais. Me pediram os pratos mais especiais. Também me ordenou que devo preparar um festim para a semana que vem. Um festim! Não tive que preparar um desde... Em realidade, jamais tivemos um desde que o Comandante está ao mando... —Crê que tem um minuto para lhe jogar uma olhada a isto? —perguntei-lhe, tirando os grãos de um de meus bolsos. Os entreguei ao Rand. Tinha estado esperando a oportunidade perfeita para fazê-lo, os encontrei em um velho armazém e me pareceu que eram os grãos de café dos que falava. —Não —disse depois de cheirá-los— Desgraçadamente, não. Não sei o que são. Os grãos de café são mais suaves e redondos. Estes são ovalados e rugosos —acrescentou. Então, mordeu um deles, cuspindo-o em seguida por seu sabor amargo— Jamais vi nem cheirei algo assim. Onde os encontraste? —No porão —respondi sem especificar. Sentia-me muito desiludida por não ter podido resolver aquele enigma para o Comandante Ambrose. Rand deveu notar minha frustração. —É algo importante? —Sim.


—Vou ver o que te parece isto. Deixa-me isso aqui e, depois da festa, trabalharei com eles. —Que trabalhará? —Provarei a moê-los ou a cozinhá-los. Os ingredientes podem trocar de sabor e textura quando lhes dá calor. Poderiam converter-se em algo que sim reconhecesse. —Não quero te incomodar... —Tolices. Eu gosto dos desafios. Além disso, depois do festim, voltarei para minha rotina diária. Isto me dará algo interessante no que trabalhar. Jogou os grãos em um pote de cristal e o colocou em uma estante. Estivemos conversando sobre o menu para o festim até que Rand teve que voltar a dar voltas aos porcos. Decidi que tinha que partir, dado que a reunião com a Margg se aproximava. Senti um ligeiro nervosismo ao me despedir de Rand. Passei pelos banhos, com a intenção de recolher a faca de Nix, mas havia muita gente. Talvez seria melhor ir à reunião sem armas. Poderia ser que me revistassem. Se encontrassem uma arma, teria mais problemas. Margg tinha sua habitual expressão de desagrado quando me reuni com ela na porta sul do castelo. Em silêncio, nos dirigimos ao Castletown. Eu esperei que Valek não estivesse muito afastado, mas sabia bem que não podia olhar por cima do ombro para me assegurar. Quando chegamos à cidade, Margg conduziu a uma rua bastante afastada e se deteve diante de uma casa. Chamou duas vezes à porta. Depois de uns instantes, a porta se abriu e uma mulher ruiva alta e de enorme nariz, que ia embelezada com o uniforme de ventera, mostrou a cabeça. Olhou a Margg e assentiu. Continuando, olhou-me e logo apareceu um pouco mais a cabeça para fazer o mesmo com ambos os lados da rua. Por fim, aparentemente, satisfeita, abriu a porta por completo e nos deixou passar. Ninguém intercambiou palavra alguma. Começamos a subir uma escada. A mulher conduziu a uma habitação e se sentou a um escritório. Não nos ofereceu assento algum, por isso Margg e eu continuamos de pé. —A provadora de comida —disse com um sorriso de satisfação— Sabia que só era questão de tempo que trabalhasse para mim. —E quem é você? —Pode me chamar Capitã Star —me informou. Como resposta, eu olhei seu uniforme de ventera—

Não formo parte do exército do Ambrose. Tenho o meu próprio.

Explicou-te Margg como trabalho? —Sim.


—Bem. Isto será um simples intercâmbio. Não é uma visita social. Eu não quero intrigas nem falatórios. E não me pergunte nada sobre meu negócio nem sobre mim. Quão único precisa saber é meu nome. De acordo? —De acordo —afirmei para ganhar sua confiança. —Bem. O que é o que tem? —O Comandante trocou seu sucessor. Star ficou imóvel ao escutar minhas palavras. Então, olhou a Margg, que pareceu algo molesta de que eu fora portadora de notícias tão interessantes. —E como sabe? —perguntou-me Star. —Escutei uma conversação entre o Comandante e Valek. —Ah, sim. Valek —disse a mulher—, por que vive em suas habitações? —Isso não é assunto seu. —E por que deveria eu confiar em ti? —Porque Valek me mataria se soubesse que estive aqui. Sabe tão bem como eu. Quanto vale minha informação? Star abriu uma bolsa de veludo negro e tirou uma moeda de ouro. Arrojou-me isso tal e como um homem lhe arrojaria um osso a um cão. Eu a agarrei no ar, contendo um gemido. Os cortes das mãos me doíam muito. —Seu quinze por cento —disse a Margg lhe lançando uma moeda de prata e uma de cobre. Esta, que conhecia os costumes do Star, apanhou-as ao vôo— Algo mais? — perguntou-me . —No momento não. —Quando tiver algo para mim, diga-lhe a Margg. Ela organizará outra reunião. Em silêncio, segui a Margg ao exterior da casa. Justo quando estávamos atravessando um beco, Valek saiu das sombras. Antes que eu pudesse reagir, atirou de mim e me colocou por uma porta. Aquela aparição tão repentina me confundiu e me surpreendeu de uma vez. Acreditava que esperaria um pouco antes de prender a Margg. Ela me tinha seguido ao interior da casa e tinha um sorriso no rosto. Era uma expressão de prazer, o mais afastado que me teria imaginado quando compreendesse que a tínhamos descoberto. —Eu tinha razão, Valek. Vendeu o Comandante por uma moeda de ouro. Lhe registre o bolso. —Em realidade, Yelena veio falar comigo antes da reunião. Acreditava que ia deixar-te a ti ao descoberto.


O sorriso de satisfação desapareceu do rosto de Margg. —Por que não me disse isso? —perguntou. —Não tive tempo. —Então, Margg não é a espiã? —quis saber, muito confusa. —Não. Margg trabalha para mim. Estivemo-lhe dando ao Star informação privilegiada para ver se descobríamos quem eram seus clientes. Star tinha insistido muito a Margg para que implicasse a ti. Me pareceu uma boa oportunidade de pôr a prova sua lealdade. A ira se apoderou de mim. Como podia ter acreditado que eu podia trair ao Comandante? Acaso não me conhecia? A ira, a desilusão e o alívio se apoderaram de meu coração. Não fui capaz de pronunciar palavra alguma. —Tinha esperado mandar a este rato às masmorras, que é onde deve estar —se queixava Margg ao Valek— Apesar de tudo, segue sendo uma ameaça —concluiu, me dando no braço com um dedo. Eu reagi. Em um abrir e fechar de olhos, retorci-lhe o braço e o coloquei à costas. Ela gritou quando eu lhe levantei a mão um pouco mais, obrigando-a a vencer-se para diante. —Não sou um rato —lhe espetei— demonstrei minha lealdade. Agora, quero que me deixe em paz. Já não quero mais mensagens desagradáveis no pó nem que siga farejando em minhas coisas. Se não, a próxima vez, romperei-te o braço. Soltei-a bruscamente e ela terminou no chão. Muito envergonhada, ficou de pé imediatamente. Quando abria a boca para protestar, Valek o impediu. —Bem dito, Yelena. Agora, Margg, pode partir. Margg fechou a boca imediatamente e deu a volta. Imediatamente, partiu. —Essa mulher não é nada simpática —falei. —Não. Precisamente por isso eu gosto —replicou. Depois de comprovar que Margg partiu, Valek seguiu falando— Yelena, vou te mostrar algo que não vai gostar, mas que acredito que é importante que conheça. —Sim? Como esta pequena prova de lealdade? —espetei-lhe, com a voz cheia de sarcasmo. —Já te adverti que punha a prova aos provadores de comida de vez em quando — comentou. Antes de que eu pudesse responder, voltou a falar— Guarda silêncio e fique detrás de mim.


Voltamos a sair ao beco. Aproveitando as sombras, retornamos para a casa de Star. Ali nos escondemos em uma entrada escura, não longe da porta. —A pessoa que lhe esteve dando informação a Star vai chegar muito em breve — me sussurrou Valek ao ouvido. Seus lábios me roçaram brandamente a bochecha, o que me produziu umas sensações tão agradáveis que me distraíram do que havia dito. Não compreendi o impacto das palavras do Valek até que vi uma solitária figura baixando pela rua com passo irregular.


Capítulo 22

Reconheci rapidamente aquela maneira de andar. O coração me encolheu ao ver como Rand se aproximava coxeando à casa de Star. Igual a Margg, chamou duas vezes. A mulher o deixou entrar sem duvidá-lo nem um momento. O ruído surdo que se ouviu quando se fechava a porta se ecoou em meu peito. —Outra prova? —perguntei ao Valek, com uma desesperada urgência— Está ele trabalhando também para ti? Entretanto, sabia a resposta a aquela pergunta muito antes de que Valek o negasse com a cabeça. Sentia-me vazia, como se me tivessem arrebatado todos meus sentimentos de um golpe. Era muito. Depois do fantasma do Reyad, o ataque do Nix e as provas do Valek, já não me encontrava em disposição de superar outra prova. Limitei-me a olhar ao Valek sem poder pensar, sentir ou desejar nada. Valek me fez um gesto para que o seguisse. Eu obedeci. Demos um rodeio para chegar à parte traseira da casa do Star. Então, entramos na casa que havia a sua esquerda e subimos três pisos. O interior estava muito escuro e vazio à exceção da planta superior. Um dos homens do Valek estava sentado sobre o chão, com as costas contra a parede. Deduzi que ao outro lado da mesma se encontrava o estudo de Star. Escrevia algo em um livro, utilizando só uma vela como iluminação. A voz de Rand se escutava claramente. Com sinais manuais, Valek se comunicou com o homem. Deu o caderno ao Valek e desapareceu escada abaixo. Valek se sentou no mesmo lugar no que tinha estado o homem e eu fiz o mesmo a seu lado. Não gostava nada escutar o que Rand tivesse que dizer, mas não tinha a força de vontade para me negar. Valek assinalou os pequenos buracos que havia na parede. Eu apareci. Quão único pude ver foi a parte traseira de um móvel. Supus então que os buracos só serviam para escutar. Apoiei a frente contra a parede e fechei os olhos para escutar o que Rand tivesse que dizer. —Os generais vão vir esta semana. Não há nada novo além do fato de que o Comandante pediu um festim para os tratar com atenção, o que indica que ocorre algo. Algo importante. Entretanto, ainda não consegui averiguar do que se trata. —Diga-me isso assim que possa —replicou Star— Talvez Yelena saiba o que está passando.


O coração se encolheu para ouvir meu nome. Queria escapar, mas o único que pude fazer foi apertar mais a frente contra a parede. —Duvido-o. Ela se surpreendeu muito quando eu lhe mencionei o festim, por isso não lhe perguntei nada. Talvez saiba algo mais no fim de semana. Voltarei a tentá-lo. —Não te incomode. O perguntarei eu mesma. —A Yelena? —replicou Rand, atônito— Acaso trabalha para ti? Impossível. Não é seu estilo. —Acaso me está sugerindo que trabalha para o Valek? —perguntou a mulher, alarmada. Muito angustiada, olhei ao Valek. Ele negou com a cabeça e me indicou com um gesto que não me preocupasse. —Não. É obvio que não —disse Rand— Simplesmente me surpreende, embora não deveria ser assim. O dinheiro lhe vem muito bem. Além disso, quem sou eu para pensar mal dela porque o tenha feito? —Bom, não deveria estar pensando nela absolutamente. Tal e a meu ver, essa mulher é algo descartável. A única preocupação que terei quando morra é quem vai substituíla e se poderei suborná-la antes que a ela. —Star, uma vez mais, demonstraste-me que modo mais repugnante que, quanto antes pague a dívida que tenho contigo, melhor. Quanto crédito vai dar pela informação de esta noite? —Duas moedas de prata. Anotarei-o em meu livro, mas não te servirá de muito. —O que quer dizer? —Não te deste conta ainda? Você jamais pagará sua dívida. Assim que esteja a ponto de fazê-lo, meterá-te em outro buraco com suas apostas. É muito fraco. Deixa-te levar muito por seus sentimentos. Faz-te viciado em seguida e carece de força de vontade. —Ah, claro. Afirma ser uma maga. Acaso me tem lido o pensamento, capitã? “Capatiã Star” Que graça! Se realmente tivesse poderes mágicos,Valek se teria ocupado de ti faz já muito tempo. Sei que não é tão preparada como afirma ser... Pesados passos ressonaram através da parede, o que indicou que Rand partia. Fiquei atônita. Jamais antes tinha escutado ao Rand falar com sarcasmo e, mais que isso, se Star era uma maga, eu poderia estar em sério perigo. A mente me dava voltas, mas tudo resultava muito complexo para analisá-lo naquele momento. —Não tenho que te ler o pensamento —lhe gritou Star— Quão único tenho que fazer é repassar sua história, Rand. Tenho tudo ali.


O silêncio se apoderou da sala. O único ruído que se ouvia no estudo de Star, era o ruído de papéis. Valek ficou de pé e fez me levantar. Seu homem tinha retornado. Entregoulhe o caderno e começou a descer pelas escadas. Segui Valek através das escuras ruas do Castletown. Mantínhamo-nos nas sombras, evitando às patrulhas de soldados que controlavam o toque de silêncio. Quando conseguimos sair da cidade, ele se relaxou um pouco mais e começou a caminhar a meu lado pela estrada que conduzia ao castelo. —Sinto-o —me disse— Sei que Rand era seu amigo. O fato de que utilizasse o tempo passado foi como se me cravasse uma adaga entre as costelas. —Quanto tempo faz que sabe? —perguntei-lhe. —Levo três meses suspeitando-o, mas consegui as provas este mês. —O que foi o que te deu a chave? —Rand e seus empregados me ajudaram a preparar a prova de venenos pela que eu te fiz passar. Ele permaneceu a meu lado enquanto envenenava a comida. Deixei a taça do suco de pêssego em cima de meu escritório para não envenená-la. Era uma prova justa. Depois, havia veneno de amoras na taça, mas eu não o joguei. Uma propriedade muito interessante das amoras é que só se voltam venenosas quando se preparam em uma solução especial de álcool e levedura e se cozinham com extremo cuidado. A maioria dos cozinheiros, e certamente não seus ajudantes, não possuem o conhecimento nem a habilidade para consegui-lo —acrescentou Valek, como se admirasse a habilidade do Rand para preparar o veneno. Compreender que Rand tinha tratado de me envenenar me deixou atônita. Senti náuseas no estômago e tive que me aproximar do bordo da estrada para vomitar. Só quando deixei de sentir as arcadas, notei que Valek estava a meu lado. Tinha-me agarrado a cintura com um braço e tinha colocado uma fria mão sobre a frente. —Obrigada —disse, depois de limpar o queixo com algumas folhas. Com pernas trementes, deixei que Valek me conduzisse ao castelo. Se não tivesse estado sustentando, haveria deitado no chão para poder dormir. —Há mais. Quer ouvi-lo? —perguntou-me. —Não —respondi. Entretanto, quando nos aproximávamos do castelo, me ocorreu uma idéia muito desagradável— Me vendeu Rand no festival? —Em certo modo. —Essa não é resposta.


—Os gorilas que lhe apanharam lhe esperaram perto da loja de confeitaria, por isso suspeitei que Rand havia dito a Star que estariam ali. Entretanto, logo não te perdia de vista em nenhum momento. Era como se te estivesse protegendo. Recorda o muito que se desgostou quando não pôde te encontrar e o aliviado que se sentiu quando te viu sã e salva? —Eu acreditava que estava bêbado. —Suspeito que Rand participa de tudo isto muito a seu pesar. Quando ocorreu a prova de venenos, quase não te conhecia. Imagino que se encontra em uma situação difícil. Não quer te fazer dano, mas precisa pagar suas dívidas de jogo. Star tem uma organização muito extensa, com muitos gorilas que estão dispostos a romper uns quantos ossos por seu chefe. Faz-te isto sentir melhor? —Não. A reação que tinha produzido a traição do Rand me parecia extrema, mas não podia evitá-lo. Não era a primeira vez que alguém me enganava nem seria a última. Brazell tinha enganado. Eu o tinha querido como um pai e lhe tinha sido muito leal. Demorei quase um ano, depois de suportar seus experimentos, em me dar conta do que era de verdade, embora sempre tinha suspeitado que a devoção que eu sentia por ele não era correspondida. Dado que jamais tinha dado razão alguma para pensar que me queria, tinha-me resultado mais fácil suportar o ocorrido. A amizade do Rand, por outro lado, tinha-me parecido genuína. Tinha começado a sentir como se por fim tivesse conseguido fazer um buraco na barricada de pedras depois da que me protegia. Desgraçadamente, tinha me equivocado. —Há algo mais que queira me dizer? —perguntei ao Valek, quando nos detivemos a pouca distância da entrada do castelo— Acaso prepararam Ari e Janco o ataque do Nix? Tem outra prova de lealdade na manga que queira me fazer? Talvez a próxima vez, falta. Quando me advertiu que me poria a prova de vez em quando, pensei que falava sobre a comida. Entretanto, parece que há mais de uma maneira de envenenar a uma pessoa. —Todo mundo é eleito na vida. Algumas eleições são boas e outras más. Se quer deixar de tomar decisões, você terá, mas não o faça pela metade. Não te refugie na autocompaixão —replicou Valek— Não sei que horrores teve que viver nas masmorras antes de vir conosco. Se tivesse que adivinhá-lo, diria que foram muito piores que o que tiveste que descobrir esta noite. Talvez isso te ajude a pôr as coisas em perspectiva. Com isso, entrou no castelo. Eu me apoiei contra o frio muro e apoiei a cabeça sobre as duras pedras. Talvez se permanecesse ali

tempo suficiente, o coração se


converteria em um órgão de pedra. Então, as traições, as provas de lealdade e os venenos não teriam efeito em mim. Entretanto, o frio da noite terminou por me fazer entrar. —Faz força na chave, mas não muita. Tem que te esforçar com firmeza e delicadeza de uma vez —me disse Janco. Como as mãos ainda não tinham curado, coloquei torpemente a chave no buraco e apliquei uma ligeira pressão. —Agora, utiliza o punção de diamante para levantar a peça que ficou apanhada pela pressão. Levanta-a até que se rompa —me ordenou. —Até que se rompa? —Bom, até que alcance seu alinhamento. Quando se mete uma chave em uma fechadura, borde-os de metal levantam as peças correspondentes para que possa fazer girar o cilindro e abrir a fechadura. Por isso, tem que ir levantando as peças móveis uma a uma sem afrouxar a pressão. Coloquei o punção na fechadura, por detrás da chave, e o fiz girar, levantando cada uma das cinco peças móveis. Quando todas estiveram alinhadas, o cilindro se girou e a porta se abriu. —Muito bem! Yelena, aprende muito rápido. Espero que não vás utilizar isto para cometer uma estupidez, verdade? Não irás nos meter em uma confusão? —Não se preocupe. Eu sou quão única poderia meter-se em uma confusão. Janco se relaxou. Eu me pus a praticar em outra fechadura. Estávamos no porão do castelo, onde ninguém poderia nos surpreender. Tinham passado quatro dias da noite em que me inteirei do Rand. Valek tinha ordenado que me comportasse tal e como se não tivesse ocorrido nada. Queria descobrir até onde chegava a organização de Star antes de deixá-los ao descoberto. Valek era um verdadeiro predador. Sabia que não estava pronta para fingir que não tinha passado nada com o Rand, por isso tinha estado evitando-o. Isto não me custou muito. O castelo estava cheio de generais e de seus homens, o que provocava que todos os trabalhadores do castelo estivessem muito ocupados, Rand entre eles. Brazell era outra razão pela que me alegrava de não estar visível. Seus soldados tinham infectado o castelo e me estava custando bastante me manter afastada deles. Entretanto, não me importava me esconder nas habitações do Valek. Ele tinha roubado uma


caixa de Crioulo e eu desfrutava tomando uma parte cada vez que provava a comida do Comandante. Ari, Janco e eu havíamos posposto nossas sessões de treinamento durante a visita dos generais, mas eu tinha conseguido convencer ao Janco para que me ensinasse a forçar fechaduras. A moeda de ouro que Star tinha me dado lhe pareceu um bom incentivo. Valek havia dito que podia ficar com ela, dado que minha missão daquela noite tinha sido extraordinária. Entretanto, seu constante peso no bolso tinha sido uma lembrança da traição do Rand, por isso decidi me desprender dela. —Esta última fechadura tem dez peças móveis. Se for capaz de abrir esta, poderá fazê-lo com qualquer das fechaduras que há no castelo, à exceção das masmorras. Essas são muito complicadas e, além disso, não podemos praticar com elas. Não vais precisar abrir uma dessas, verdade? —perguntou-me Janco. —Sinceramente espero que não. —Bem. Depois de vários intentos faltados, consegui abrir a fechadura. —Agora, quão único precisa é praticar. Quanto menos demore para abri-lo, melhor. Deixaria-te que tomasse emprestadas minhas ferramentas, mas nunca se sabe quando um pode as necessitar —acrescentou com um brilho pícaro nos olhos—, mas... utilizei essa moeda que me deu para comprar um jogo. Entregou uma bolsa de tecido negro. —Esse dinheiro era para ti. —Bom, ficou-me muito inclusive depois de comprar isto —disse. Então, tirou o que parecia um pau de cor marfim, tão largo como minha mão. Estava decorado com um brilhante botão de prata e tinha uns símbolos de prata gravados em um lado. —O que é? —perguntei. —Apura o botão. Fiz o que ele me tinha pedido e me sobressaltei muito quando saiu uma brilhante folha de aço. Era uma navalha automática. —Obrigada, Janco —disse, muito surpreendida por meus presentes— Por que me compraste estas coisas? —Suponho que por um sentimento de culpabilidade. —Culpabilidade? —repeti. Não era a resposta que esperava.


—Porque foi uma assassina. Eu também fui um delinqüente, mas o superei e ninguém me jogou isso em cara. Além disso, dá-me a sensação de que poderia necessitá-la. Os soldados do Brazell estiveram lançando fanfarronadas sobre quem vai se encarregar da assassina do Reyad. Têm uma grande imaginação e tudo o que impede que Ari os desafiasse em um par de ocasiões. Dez contra um não é uma boa proporção, nem sequer para ele e para mim. —Manterei-me afastada deles. —Bem. Bom, agora é melhor que vá. Tenho o turno de noite, mas, primeiro, acompanharei a sua habitação. —Não é necessário. —Ari me mataria se não o fizesse. Caminhamos juntos para a suíte do Valek. Quando demos a volta à esquina que havia antes de chegar à porta principal, Janco se deteve em seco. —Quase me tinha esquecido —disse, metendo-a mão no bolso de seu uniforme. Tirou uma vagem para a navalha— Coloque isso ao redor da coxa direita. Lembre de fazer um bom buraco no bolso das calças para que quando tirar a navalha não te enganche no tecido. Estava a ponto de partir quando o detive. —Janco, o que significam estes símbolos? —perguntei, assinalando a manga da navalha. Janco sorriu. —São velhos símbolos da batalha que utilizava o Rei quando enviava mensagens e ordens em tempos de guerra. Não importava que o inimigo os interceptasse, porque resultavam ininteligíveis para qualquer um que não soubesse como decifrá-los. Alguns dos soldados seguem usando-os. Funcionam muito bem nos exercícios militares. —E o que é o que dizem? —É muito fácil, Yelena —disse ele com um amplo sorriso— Estou seguro de que resolverá... cedo ou tarde —acrescentou. Tão brincalhão como sempre, Janco se pôs-se a rir. —Vêem aqui para que possa te dar um murro. —Eu adoraria te obedecer, querida minha —replicou ele, afastando-se de mim—, mas chego tarde.


Capítulo 23 Depois de guardar os presentes do Janco no bolso do uniforme, entrei na suíte do Valek. Ele estava trabalhando em seu escritório, mas levantou a vista assim que eu entrei. Deu-me a impressão de que estava me esperando. —Onde estiveste? —perguntou-me. —Com o Janco —respondi, embora sentiu saudades a pergunta. Valek jamais me perguntava o que fazia com meu tempo livre enquanto chegasse a minhas obrigações durante o dia. —Fazendo o que? —insistiu com as mãos nos quadris. A imagem cômica de um marido ciumento me assaltou o pensamento. Afoguei um sorriso. —Conversando sobre táticas de luta. —OH... —sussurrou. Relaxou-se um pouco, mas se comportou de um modo estranho, como se sentisse que se excedeu em sua reação e estivesse tratando de dissimular— Bom, está bem, mas, de agora em diante, tenho que saber onde está em todo momento. Além disso, sugiro-te que permaneça no castelo e que trate de passar desapercebida durante um tempo. Os soldados do general Brazell puseram preço a sua cabeça. —Preço? —repeti muito assustada. —Poderia ser só um rumor ou fanfarronadas de soldados bêbados, mas, até que partam, quero que te proteja. Não desejo ter que adestrar a outro provador de comidas. —Tomarei cuidado. —Não. Seu zelo bordeará com a paranóia. Estará sempre rodeada de gente, manterá-te em zonas bem iluminadas e te assegurará de que alguém te acompanhe sempre que ir por corredores vazios a altas horas da noite. Compreendeste-me? —Sim. —Bem. A reunião do brandy dos generais se celebrará amanhã. Cada general trará uma garrafa de seu melhor brandy para compartilhá-lo com outros enquanto falam dos assuntos da Ixia até altas horas da noite. Você terá que provar a bebida do Comandante — disse Valek. Então, mostrou-me uma caixa com oito garrafas. Continuando, tirou uma pequena taça— Quero que prove cada brandy uma vez esta noite e ao menos duas amanhã


para que estejamos seguros de como sabe cada um deles sem venenos. Cada garrafa está etiquetada e se especifica o general que o trouxe. Tomei uma ao azar. Era o brandy de cerejas do general Dinno, do DM-8. Tomei um sorvo e o saboreei antes de tragá-lo, tratando de recordar seu sabor. O forte álcool me queimou a garganta, me deixando um pequeno rastro de fogo no peito. O rosto me avermelhou com o calor. —Sugiro-te que cuspa o brandy depois de saboreá-lo para que não te embebede —comentou Valek. —Tem razão Encontrei outra taça para poder cuspir e me pus a trabalhar com o resto das garrafas.

No dia da reunião, provei as garrafas em duas ocasiões na suíte do Valek e, continuando, pus-me a prova a mim mesma com uma terceira ronda. Só fiquei satisfeita quando pude indicar só por seu sabor que garrafa pertencia a que general. Aquela noite, esperei a que Valek viesse me buscar para me acompanhar à sala de guerra. Chegou com seu uniforme de ornamento. Tinha galões vermelhos sobre os ombros e uma grande quantidade de medalhas sobre o lado esquerdo do peito. Gotejava dignidade, importância. Haveria-me sentido impressionada a não ser tivesse sido porque ele parecia incômodo. Era como se sentisse como um menino ao que lhe obrigou a ficar suas melhores roupas. Tampei-me a boca, mas não pude evitar que me escapasse a risada. —Já basta. Tenho que me vestir assim uma vez ao ano e, por isso se refere, é muito. Vamos? Uni-me com ele na porta. O uniforme fazia ressaltar seu atlético corpo. Não pude deixar de pensar quão magnífico estava com o uniforme. —Está muito bonito — falei sem pensar. Então, ruborizei-me vivamente. Devia haver tragado mais brandy do que tinha pensado. —De verdade? —replicou. De repente, pareceu sentir-se mais cômodo e esboçou um sorriso. —Sim. Chegamos à sala de guerra justo quando os generais se reuniam. As largas vidraças refulgiam com os últimos raios do sol. Os criados percorriam nervosamente a sala, colocando pratos de comida em cima da mesa. Todo o pessoal militar estava embelezado


com o uniforme de ornamento. As medalhas e os botões reluziam. De vista, só conhecia três generais. Deduzi quem eram outros pela cor de seus diamantes no uniforme negro. Examinei cuidadosamente seus rostos, no caso de Valek me punha a prova mais tarde. Brazell me olhou com desaprovação. A seu lado, estava o conselheiro Mogkan e tremi ao ver como este me olhava. Quando Brazell e Reyad realizavam seus experimentos comigo, Mogkan sempre estava perto. Sua presença, freqüentemente mais pressentida que vista, tinha-me provocado violentos pesadelos. Os habituais conselheiros do Brazell não estavam. Perguntei-me por que se teria levado ao Mogkan. O Comandante se sentou à cabeceira da mesa. Seu uniforme era singelo e elegante, com diamantes de verdade no pescoço. Os generais, flanqueados por seus conselheiros, tomaram assento também. O lugar do Valek estava à direita do Comandante e meu tamborete estava detrás deles, contra a parede. Sabia que a reunião duraria toda a noite e me alegrava poder descansar as costas contra as pedras. Outra vantagem de minha posição é que não estava em linha direta com o Brazell. Entretanto, embora podia evitar ver seus olhares envenenados, não podia me esconder das do Mogkan. O Comandante golpeou a mesa. Fez-se o silêncio. —Antes que abordemos os temas estipulados —disse, assinalando a agenda que todos dispunham—, tenho que realizar um anúncio de importância. Designei a um novo sucessor. Um murmúrio se estendeu por toda a sala. Então, o Comandante se levantou e lhes entregou um sobre selado a cada general. Em seu interior, estavam as oito peças do quebracabeças codificado que revelava o nome do novo sucessor, quando se pudesse decifrar com a chave do Valek. A tensão se apalpava na sala. Sobre os rostos dos generais, adivinhava-se uma maré de sentimentos: surpresa, ira, preocupação... Entretanto, a tensão foi aplacando-se lentamente e passou quando o Comandante começou a reunião. O primeiro ponto da reunião tinha que ver com o DM-1, seguido de cada distrito em ordem. Enquanto saboreavam a garrafa de brandy do general Kitvivan, pressente-os falaram de tigres de neve e direitos mineiros. —Vamos, Kit. Já basta de falar de felinos. Lhes dê de comer como fazemos nós e não lhe incomodarão —disse o general Chenzo, do DM-2. —Lhes dar de comer para que fiquem fortes e comecem a procriar como coelhos? Arruinaríamo-nos lhes dando carne —replicou Kitvivan.


Meu interesse na reunião ia e vinha, dependendo do tema que se falasse. Depois de um momento, comecei a me sentir sob os efeitos do brandy, dado que o protocolo ditava que, naquele caso, devia tragá-lo. Os generais votaram sobre vários tópicos, mas o Comandante sempre tinha o voto final. Principalmente, inclinava-se a favor da maioria. Ninguém se atrevia a protestar quando não era assim. O Comandante Ambrose tinha vivido no DM-3, lutando por viver com sua família nas saias das montanhas da Alma. Entre as montanhas e a geleira, seu lar estava sobre uma enorme mina de diamantes. Quando se encontrou o rico filão, o Rei reclamou todos os diamantes e “permitiu” que a família do Comandante vivesse ali e trabalhasse nas minas. Ele perdeu a muitos membros de sua família nas minas. Como jovem que sofreu as injustiças da monarquia, Ambrose se instruiu a si mesmo e começou a pregar sobre a reforma. Sua inteligência e persuasão lhe reportaram muitos seguidores. Voltei a me centrar na reunião quando os generais começaram a abordar os temas do DM-5. O general Brazell provocou um revôo considerável. Em vez de repartir seu melhor brandy, tirou uma bandeja que continha o que pareciam pequenas pedras marrons. Valek me entregou uma. Era uma parte redonda do Crioulo. Antes de que os protestos sobre o fato de ignorar a tradição se fizessem inconcebiveis, Brazell se levantou e convidou a todo mundo a dar um bocado. Depois de um breve momento de silêncio, as exclamações de gozo encheram a sala de guerra. O Crioulo estava cheio de brandy de morangos. Dava-lhe à Comandante o sinal que indicava que podia tomá-lo para que eu pudesse saborear o resto de meu bocado. A combinação do delicioso sabor do Crioulo com o brandy era algo divino. Rand se sentiria muito aborrecido de que não lhe tivesse ocorrido a ele. Então, lamentei-me por me haver causar pena do Rand, ao recordar que me tinha enganado. Depois de que os elogios se sossegassem, Brazell anunciou que já tinha terminado de construir sua nova fábrica. Então, seguiu falando de assuntos muito mais mundanos, como por exemplo de quanta lã se tosquiou ou a colheita que se esperava obter das plantações. O DM-5 produzia e tingia todo o fio da Ixia. Continuando, enviava-o ao DM-3 para que o tecessem. O general Franis, que estava a cargo do DM-3 sacudiu a cabeça com preocupação enquanto anotava as cifras do Brazell. Era o mais jovem dos generais. Eu comecei a dormitar sobre meu tamborete e tive estranhos sonhos sobre brandy e patrulhas fronteiriças. Então, as imagens se fizeram nítidas e brilhantes ao tempo que a imagem de uma jovem vestida com peles brancas me assaltava o pensamento.


Levantava uma lança no ar a modo de celebração. A seus pés, jazia um tigre de neve. Então, tirou uma faca. Depois de fazer um corte na pele do animal, utilizou uma taça para recolher o sangue que se derramava da ferida. Enquanto bebia, uns riachos de cor avermelhada lhe derramavam pelo queixo. Escutei claramente suas palavras. —Ninguém conseguiu nunca esta façanha! Ninguém mais que eu. Sua alegria me encheu o coração. —Isso demonstra que sou uma jaqueta forte e ardilosa. Que tiraram minha dignidade. Que sou um homem. Os homens não governarão nunca mais. Te converta em um tigre de neve vivendo com tigres de neve e em um homem vivendo com homens. A jaqueta girou o rosto. Ao princípio, pensei que era a irmã do Comandante, dado que ambos compartilhavam os mesmos delicados rasgos e idêntico cabelo negro. Transmitia segurança em si mesmo e poder. Quando me olhou, seus olhos amendoados me atravessaram como uma lança. Quando me dava conta de que era o Comandante, despertei sobressaltada. O coração me pulsava a toda velocidade e a cabeça me doía muito. Então, dava-me conta de que Mogkan me estava olhando muito intensamente. Então, o conselheiro sorriu de satisfação. As razões que tinha o Comandante para odiar aos magos resultaram claras como a água. Ele era uma mulher, mas com a profunda convicção de que tinha que ter nascido homem. Aquele cruel destino o tinha feito carregar com uma mutação que tinha que superar e o Comandante temia que um mago pudesse lhe arrancar seu segredo. “Tolices”, pensei, enquanto tratava de me esquecer de tudo. Só porque tivesse sonhado com uma mulher não significava que o Comandante o fora. Era uma tolice. Ou não? Esfreguei meus olhos e olhei a meu redor para comprovar se alguém mais se deu conta de que eu tinha adormecido. O Comandante tinha o olhar perdido na distância e Valek estava sentado muito erguido e alerta, examinando a sala como se estivesse procurando algo ou a alguém. O general Tesso tinha a palavra.Valek olhou ao Comandante e lhe golpeou no braço, alarmado. —O que lhe passa? —perguntou-lhe com urgência— Onde estava? —Simplesmente recordava um passado muito longínquo —disse o Comandante com voz pensativa—

Resulta mais agradável que escutar os aborrecidos e detalhados

informem do general Tesso sobre a colheita de trigo do DM-4.


Estudei os rasgos do Comandante, tratando de compará-los com os da mulher de meu sonho. Encaixavam

perfeitamente,

mas

isso

não

significava

nada.

Os

sonhos

tergiversavam a realidade e resultava fácil imaginar-se ao Comandante matando um tigre de neve. O resto da reunião prosseguiu sem incidentes. Eu dormitava em meu tamborete de vez em quando, já sem que me incomodassem sonhos desagradáveis. Quando o Comandante tomou a palavra, despertei imediatamente. —O último ponto, cavalheiros —anunciou— Uma delegação de Sitia pediu uma reunião. As vozes ressonaram por toda a sala. Os generais começaram a discutir, retomando o debate e seus argumentos onde o tinham deixado. Falaram de antigos tratados de comércio e discutiram sobre um eventual ataque a Sitia. Em vez de comercializar, por que não arrebatar-lhe, queriam expandir seus distritos e contar com mais homens e recursos. Assim, terminariam também com a preocupação de que fora Sitia a que terminasse atacando a Ixia. O Comandante permaneceu em silencio durante a discussão. Os generais declararam sua opinião sobre a visita da delegação de Sitia. Os quatro generais do norte, (Kitvivan, Chenzo, Franis e Diño) não queriam que esta se produzira. Pelo contrário, os quatro do sul (Tesso, Rasmussen, Hazal e Brazell) estavam a favor. O Comandante sacudiu a cabeça. —Sei a opinião que têm sobre Sitia, mas os suboas preferem comercializar conosco a nos atacar. Nós temos mais homens e metal, um fato do que eles são muito conscientes. Atacar Sitia significaria perder muitas vidas humanas e gastar grandes quantidades de dinheiro. Para que? Seus artigos de luxo não valem tanto. Eu estou contente com a Ixia. Curamos a esta terra da enfermidade do Rei. Talvez meu sucessor queira mais. Terão que esperar até então. Um murmúrio se estendeu entre os generais. Brazell assentiu para mostrar seu acordo. —Eu já aceitei receber à delegação de Sitia —prosseguiu o general— Vão chegar dentro de quatro dias. Têm até então para expressar suas preocupações específicas antes de partir. Termina-se a reunião. Então, o Comandante ficou de pé seguido de seu guarda-costas e do Valek e se dispôs a partir. Valek me indicou que unisse a eles. Eu me pus de pé, mas o efeito do brandy


que tinha tomado se apoderou por completo de mim. Com muita dificuldade, pude seguir aos outros fora da sala. Uma explosão de vozes estalou a nossas costas quando a porta se fechou. —Isso deveria animar um pouco as coisas —comentou o Comandante com um débil sorriso. —Eu não lhe aconselharia que se tomasse suas férias no DM-8 este ano —disse Valek, cheio de sarcasmo— O modo no que reagiu Dinno quando você anunciou a visita da delegação do sul me faz pesar que adornaria sua casa da praia com aranhas de areia — acrescentou, tremendo— Um modo terrível de morrer. Eu senti um calafrio ao pensar nas letais arranhas, que eram do tamanho de cães pequenos. Nossa procissão prosseguiu em silencio durante um momento enquanto nos dirigíamos à suíte do Comandante. Eu andava com passo instável. Parecia-me que as paredes de pedra se moviam e que eu era a que estava imóvel. Frente à suíte do Comandante, Valek disse: —Eu também tomaria cuidado com o Rasmussen. Não tomou muito bem as notícias da mudança de sucessor. O Comandante abriu a porta. Eu consegui jogar uma olhada no interior de sua suíte. O mesmo estilo espartano que decorava seu escritório e o resto do castelo. O que tinha esperado? Talvez uma nota de cor ou um pouco mais feminina? Sacudi a cabeça para me desprender de pensamentos tão absurdos. —Tomarei cuidado com todo mundo, Valek. Já sabe —disse antes de fechar a porta. Ao entrar em nossa suíte, Valek tirou a jaqueta do uniforme e a jogou sobre o sofá. Indicou-me uma cadeira e me disse: —Sente-se. Temos que falar. Eu obedeci e observei como Valek percorria a habitação com sua camiseta sem mangas e umas favorecedoras calças. Imaginei que minhas mãos lhe ajudavam a desfazer-se da tensão que se acumulava naqueles fortes músculos e quase estive a ponto de soltar a gargalhada. O brandy fluía com força pelo sangue e me fazia perder o controle. —Esta noite saíram mau duas coisas —disse. —Venha já. Só dormitei durante um minuto —protestei. —Não, não. Você levou bem —comentou, me olhando com surpresa— Me referia à reunião. Aos generais. Em primeiro lugar, Brazell pareceu extremamente contente pela mudança de sucessor e pela visita da delegação de Sitia. Ele sempre quis um tratado de


comércio, mas habitualmente se mostra mais cauteloso. Em segundo lugar, havia um mago na sala. —Como? —perguntei, atônita. Acaso me tinha descoberto? —Magia. Sutil, mas muito profissional. Só a senti em uma ocasião, mas não pude averiguar de onde vinha. Entretanto, o mago tinha que estar na sala ou não o haveria sentido. —Quando foi? —Durante a aborrecida dissertação do Tesso sobre o trigo —comentou Valek, algo mais depravado, como se o fato de falar do tema lhe ajudasse— Ao mesmo tempo que seus roncos podiam escutar-se por toda a sala. —Já —repliquei— Você estava tão rígido na reunião que pensei que tinha rigor mortis. Valek se pôs-se a rir. —Duvido que você tivesse tido melhor aspecto se tivesse tido que estar sentada com um incômodo uniforme toda a noite. Acredito que Dilana me pôs mais amido que de costume. Por certo —acrescentou, em tom mais sério—, conhece conselheiro Mogkan? Esteve te olhando quase toda a noite. —Sim. Era o conselheiro principal do Reyad. Também caçavam juntos. —Como é? —A mesma classe de animália que Reyad e Nix —respondi, sem poder me conter. Quando tampei a boca com as mãos, era já muito tarde. Valek me observou durante um instante. —Na reunião haviam vários conselheiros novos. Suponho que terei que investigálos um a um. Parece-me que temos um espião do sul com habilidades mágicas. Nunca se acaba... —sussurrou, ao tempo que se deixava cair sobre o sofá, preso de um profundo esgotamento. —Se terminasse, ficaria sem trabalho. Quase sem me dar conta, coloquei-me detrás dele e comecei a lhe dar uma massagem nos ombros. O álcool feito dono de meus movimentos e a pequena seção de meu cérebro que ainda se mantinha sóbria não podia fazer nada mais que gritar advertências inúteis.


Capítulo 24 Valek se esticou ao notar o contato. Acaso estava esperando que eu fora a lhe estrangular? À medida que minhas mãos começaram a lhe massagear os músculos, foi relaxando-se. —O que faria se, de repente, o mundo fosse perfeito e não tivesse a ninguém a quem espiar? —perguntei-lhe. —Aborreceria-me —admitiu. —Venha, sério. Teria que trocar de profissão. —Não sei... Instrutor de armas? —Não. É um mundo perfeito. Não se permitem as armas —disse, baixando as mãos pelas costas— O que te parece um erudito? Tem lido todos estes livros, não? Ou acaso os tem aqui para que lhes custe trabalho aos intrusos penetrar? —Os livros me servem de muitos modos diferentes, mas duvido que sua sociedade perfeita necessitasse um perito em assassinatos. —Não —sussurrei, me detendo um instante— É obvio que não. —O que te parece escultor? Poderia esculpir estátuas extravagantes. Poderíamos redecorar o castelo e animá-lo um pouco. E você? O que faria você? —Seria acrobata —respondi, enquanto lhe massageava a zona lombar. —Acrobata! Bom, isso explica muitas coisas. Excitada pelo contato com o esculpido corpo do Valek, deslizei-lhe as mãos para o estômago. Ao diabo com o Reyad. O brandy me tinha depravado mais à frente do medo. Comecei a desabotoar as calças do Valek. Ele me agarrou com força as bonecas e me deteve as mãos. —Yelena, está bebida —disse com voz rouca. Soltou-me as mãos e ficou de pé. Eu permaneci sentada, observando com surpresa que ele se inclinava sobre mim e tomava em braços. Sem dizer uma palavra, levoume a minha habitação e me tombou na cama. —Dorme um pouco, Yelena —murmurou, antes de sair da habitação. Enquanto observava a escuridão, o mundo dava voltas ao meu redor. Coloquei uma mão sobre a parede que havia junto a minha cama para tranqüilizar meus pensamentos. Já sabia. Valek não tinha mais interesse em mim que em meu trabalho como provadora de


comidas. Tinha-me deixado apanhar pelas fofocas da Dilana e o ciúmes de Maren. A dor do rechaço que sentia na alma era minha culpa. Por que não tinha aprendido já? Em minha experiência, as pessoas se convertiam em monstros. Brazell, Rand, a presença constante do Reyad... E Valek? transformaria-se em um ou acaso o tinha feito já? Como Star havia dito, eu não deveria estar pensando nele absolutamente, ao menos não como companheiro nem para encher o vazio de morte que me ocupava o coração. Como se isso fora possível. Pus-se a rir. “te olhe, Yelena. É uma provadora de comida que conversa com fantasmas”. Tinha que me sentir agradecida por respirar, por seguir viva. Não deveria desejar mais que a liberdade em Sitia. Então poderia encher o vazio. Decidi me esquecer de todo pensamento sentimental e me concentrar em seguir viva. O fato de escapar a Sitia romperia os vínculos com o Valek. Quando tivesse obtido o antídoto do Pó de Mariposa, poderia pôr meus planos em movimento. Decidida, repassei mentalmente o que tinha aprendido para forçar fechaduras e, por fim, adormeci. Despertei uma hora antes da alvorada com uma terrível dor de cabeça. Tinha a boca seca. Com muito cuidado, levantei-me da cama e cobri os ombros com uma manta. Então, fui procurar algo de beber. Valek gostava da água fria e sempre tinha uma jarra no balcão. O frio ar da noite me limpou. Os muros do castelo reluziam por efeito do fantasmal reflexo da lua cheia. Vi a jarra de metal. Tinha uma fina capa de gelo sobre a parte superior. Rompi-a com o dedo e joguei a água diretamente à boca. Quando inclinei a cabeça para tomar um segundo gole, notei um objeto com forma de aranha negra que se aferrava à parede do castelo, por cima de minha cabeça. Com crescente alarme, dava-me conta de que a forma descendia para mim. Não era uma aranha, a não ser uma pessoa. Procurei um lugar no que me esconder, mas decidi que o intruso certamente já tinha me visto. Pareceu-me que seria melhor me encerrar na suíte e procurar o Valek. Entretanto, antes de que pudesse voltar a entrar no salão, duvidei. No interior, as roupas negras do intruso resultariam difíceis de detectar. Desde que Janco me tinha ensinado a forçar fechaduras, uma porta fechada já não me dava sensação de segurança. Depois de me amaldiçoar por ter deixado minha navalha na habitação, dirigi-me ao lado mais afastado do balcão com a jarra na mão. O intruso salvou a distância que ficava saltando ao balcão. Algo em seus movimentos me resultou familiar.


—Valek? Valek sorriu e tirou um par de óculos escuros. O resto de seu rosto estava escondido depois de um capuz que lhe cobria por completo a cabeça e que formava parte de uma rodeada malha corporal. —O que está fazendo? —perguntei. —Reconhecimento. Os generais revistam ficar levantados até tarde depois de que o Comandante abandona a reunião do brandy. Por isso tive que esperar até que todo mundo partiu à cama. Valek entrou na suíte e tirou o capuz. Depois de acender o abajur que havia sobre a mesa, tirou um papel de um bolso. —Eu não gosto dos mistérios. Teria deixado que a identidade do sucessor do Comandante permanecesse em segredo, tal e como o tenho feito durante quinze anos, mas a oportunidade de esta noite resultava muito tentadora. Com oito generais bêbados dormindo a Mona, poderia-me ter posto a dançar sobre suas camas sem que se inteirassem. Nem sequer um deles tem imaginação. Vi que todos se metiam o sobre que lhes deu o Comandante em sua maleta —acrescentou. Então, indicou-me que me aproximasse do escritório— Vêem, me ajude a decifrar isto. Entregou uma dura parte de papel, sobre o que tinha riscados uma série de palavras e números. Tinha copiado as oito partes da mensagem cifrada do Comandante entrando em cada um dos dormitórios dos generais. Perguntei-me por que confiava em mim, mas, como sentia muita curiosidade, aproximei uma cadeira para lhe ajudar. —Como rompeu o selo de cera? —perguntei. —Um velho truque. O único que se precisa é uma faca afiada e uma pequena chama. Agora, me leia o primeiro grupo de letras. Escreveu-o e logo ordenou as letras até que teve criado a palavra “assedio”. Então, abriu um livro e passou as páginas, que estavam cheias de símbolos como os que havia em minha navalha. A página em que se deteve estava decorada com um enorme símbolo azul que parecia uma estrela em meio de três círculos. —O que é isso? —O velho símbolo da batalha para a palavra “assedio”. O rei morto utilizava estes símbolos para comunicar-se com seus capitães durante tempos de guerra. Criou-os faz centenas de anos um grande estrategista. Leia o seguinte texto. Deveriam ser números. Disse-lhe os números. Ele começou a contar as linhas do texto.


Enquanto o fazia, me ocorreu que poderia utilizar aquele libero para decifrar a mensagem de minha navalha. Nada de cedo ou tarde. Janco se surpreenderia. Quando Valek alcançou um número, escreveu uma letra em uma página em branco. Quando terminou de decifrar a mensagem, ficou completamente imóvel e conteve o fôlego. —Quem é? —perguntei, incapaz de esperar um momento mais. Olhei-o. Estava cansado e parecia algo receoso. —Darei-te uma pista. Quem se mostrou mais contente pela mudança? Que nome não faz mais que sair nas situações mais estranhas? O terror me abraçou como se fora uma capa. Se algo lhe ocorria ao Comandante, Brazell estaria ao mando. Provavelmente, eu seria uma de suas prioridades. Certamente, não viveria o suficiente para ser testemunha das mudanças que ele efetuaria na Ixia. Valek compreendeu imediatamente o gesto de meu rosto. —Assim é. Brazell.

Durante dois dias, o Comandante foi reunindo-se um a um com cada um dos generais. Minhas breves e periódicas interrupções para provar a comida do Comandante provocavam incômodos momentos de silêncio. A tensão era evidente no castelo, como o eram as constantes brigas dos soldados dos generais. Ao terceiro dia, quando cheguei para provar o café da manhã do Comandante, encontrei-o sumido em uma profunda conversação com o Brazell e o conselheiro Mogkan. Os olhos do Comandante estavam frágeis e sua voz era monótona. —Fora daqui! —rugiu Brazell. Mogkan me obrigou a sair à sala do trono. —Espera aqui até que lhe chamemos —me ordenou. Duvidei um instante, sem saber se devia obedecer aquela petição tão incomum. Se me tivesse ordenado isso Valek ou o Comandante, não teria duvidado, mas me incomodava obedecer ao Mogkan. Minhas preocupações se acrescentaram dado que tinha começado a imaginar que Brazell tinha a intenção de assassinar ao Comandante. Estava a ponto de ir procurar ao Valek quando ele mesmo entrou na sala do trono e, com uma expressão dura no rosto, dirigiu-se ao despacho do Comandante.


—O que está fazendo aqui? —perguntou-me—, não provaste o café da manhã do Comandante? —Me ordenou esperar. Está com o Brazell e Mogkan. O medo se refletiu no rosto do Valek. Entrou no despacho e eu o segui. Mogkan estava de pé atrás do Comandante, lhe apertando as têmporas com os dedos. Quando Valek apareceu, Mogkan deu um passo atrás. —Já verá, senhor, que este é um modo excelente de aliviar os dores de cabeça — disse brandamente. O rosto do Comandante recuperou de novo a animação. —Obrigado, Mogkan —respondeu. Então, olhou com frieza ao Valek— O que é tão importante? —Tenho notícias preocupantes, senhor —respondeu Valek, lançando dardos com o olhar ao Brazell e ao Mogkan— Gostaria das discutir com você em privado. O Comandante programou a reunião para mais tarde e o general e o conselheiro partiram. —Yelena, prova o café da manhã do Comandante agora mesmo. —Em seguida. Valek observou como eu provava o café da manhã com uma intensa expressão no rosto que me pôs muito nervosa. Acaso acreditava que a comida estava envenenada? Provei o chá e a omelete, mas não detectei nada estranho. Coloquei a bandeja sobre o escritório do Comandante. —Yelena, se tiver que voltar a tomar a comida fria, farei que lhe açoitem, compreende-me? —espetou-me. A voz do Comandante carecia de paixão, mas a ameaça era genuína. —Sim, senhor —falei, sabendo que não serviria de nada me explicar. —Pode partir. Saí correndo do despacho, quase sem me fixar na incrível atividade da sala do trono. De repente, notei que uma voz me sussurrava algo na cabeça. “Tem fome”. Efetivamente, de repente me senti muito faminta, por isso me dirigi rapidamente à cozinha. Quando dava a volta a uma esquina, encontrei-me com o conselheiro Mogkan. Entrelaçou seu braço com o meu e guiou a uma parte isolada do castelo. Ir com ele parecia algo natural, mas eu queria partir. Queria ter medo, terror, mas não podia experimentar emoção alguma. Minha fome se dissipou. Senti-me satisfeita.


Mogkan me levou a um corredor deserto. Compreendi que era um beco sem saída, mas me resultou impossível reagir de modo algum. Os olhos cinzas do Mogkan me olharam durante um instante antes de que me soltasse o braço. Com os dedos riscou a linha de rombos negros que tinha pela manga do uniforme. —Minha Yelena —disse, possessivamente. O medo se apoderou de mim no momento no que se rompeu o contato físico. Apesar de tudo, não podia me mover. Os músculos de meu corpo não respondiam às frenéticas ordens que eu lhes enviava para poder sair fugindo. Um mago! Mogkan tinha poderes. Tinha-os utilizado durante a reunião do brandy, o que tinha alertado ao Valek. Entretanto, não pude seguir pensando mais no tema quando Mogkan me aproximou. —Se me tivesse imaginado que causaria tantos problemas, jamais teria te levado ao orfanato do Brazell —disse com um sorriso ao notar minha confusão— Não te disse Reyad que eu tinha te encontrado? —Não. —Estava perdida no bosque. Só tinha seis anos. Foi uma menina tão formosa e inteligente... Uma delícia. Resgatei-te das garras de um leopardo porque sabia que tinha potencial. Entretanto, foi muito teimosa, muito independente. Quanto mais nos esforçávamos, mais resistia. Inclusive agora, quando estou unido a ti, segue resistindo. Posso lhe dar ordens a seu corpo —disse. Então, levantou o braço esquerdo e o meu se levantou, repetindo de modo idêntico os movimentos dele. —Entretanto, se tratasse de controlar seu corpo e sua mente, você terminaria me derrotando —concluiu, sacudindo a cabeça com incredulidade, como se o conceito lhe surpreendesse— Felizmente, o único que se precisa é uma suave pressão. Apartou a mão e realizou um gesto com os dedos, como se estivesse dando um beliscão. Então, senti que me fechava a garganta. Incapaz de me defender, caí ao chão. Tratei de gritar, mas não pude. Minha mente me impediu isso. Mogkan estava utilizando a magia. Talvez pudesse bloqueá-lo antes de perder o conhecimento. Tratei de recitar venenos mentalmente. —Que força —disse Mogkan com admiração—, mas esta vez não te servirá de nada.


Inclinou-se sobre mim e me beijou meigamente na frente, como se tratasse de um pai. Senti que se estendia por meu corpo uma profunda paz. Deixei de resistir. A visão me nublou. Senti que Mogkan tomava a mão e a sustentava entre as suas.

Capítulo 25 Enquanto me reclinava contra a parede, aferrei-me à mão do Mogkan. Sentia que o mundo se esfumava ao meu redor. De repente, senti um incômodo puxão e o bloqueio que oprimia minha garganta desapareceu. Ao tempo que tratava de recuperar o fôlego, recuperei os sentidos e me dava conta de que estava tombada no chão. A meu lado, Valek estava sentado sobre o peito do Mogkan. Tinha-o agarrado pelo pescoço, mas não deixava de olhar para mim. Mogkan sorriu quando Valek ficou de pé e obrigou ele a fazer o mesmo. —Espero que seja consciente da pena que te espera por ser mago no território da Ixia —disse Valek— Se não, eu estarei encantado de lhe dizer isso. Mogkan estirou o uniforme e ajustou a larga e escura trança em que tinha recolhido seu cabelo. —Alguns diriam que sua habilidade para te opor à magia converte a ti em um mago, Valek. —O Comandante é de outra opinião. Está detido. —Nesse caso, você levará uma grande surpresa. Sugiro-te que fale com o Comandante antes que faça algo muito drástico. —O que te parece se te mato agora mesmo? —espetou-lhe Valek, aproximando-se perigosamente. Uma profunda dor atravessou meu abdômen. Eu lancei um grito e me enrolei sobre mim mesma. A agonia era insuportável. Valek deu outro passo à frente. Eu gritei ao experimentar uma sensação parecida com a de fogo nas costas e na cabeça. —Te aproxime mais e ela se converterá em cadáver —disse Mogkan, com a voz cheia de astúcia. Com os olhos cheios de angústia, Valek tratou de seguir adiante, mas ao final permaneceu imóvel.


—Vá, vá... Isso sim que é interessante. Ao Valek de antigamente não lhe teria importado que eu matasse a um simples provador de comida. Yelena, minha menina, acabo de me dar conta de quão útil vais ser para mim. A intensa dor resultava insuportável. Teria morrido agradada, tão somente para escapar dele. Antes de perder o conhecimento, quão último vi foi como Mogkan partia, sem que Valek o impedisse. Despertei envolta na escuridão. Tinha um pouco pesado sobre a frente. Alarmada, tratei de me incorporar. —Tranqüila —disse Valek, me obrigando a me deitar. Toquei a cabeça e notei um pano úmido. Pisquei para que os olhos se acostumassem à luz e comprovei que estava em minha habitação. Valek estava de pé ao meu lado com uma taça na mão. —Beba isto. Tomei um sorvo. Repugnou-me o sabor o remédio, mas Valek insistiu em que terminasse tudo. Quando a taça esteve vazia, colocou-a sobre a mesinha de noite. —Descansa —me ordenou. Então, deu a volta para partir. —Valek —disse, para que se detivesse— Por que não matou ao Mogkan? —Uma manobra tática. Mogkan teria matado a ti antes de que eu tivesse podido acabar com ele. Você é a chave de muitos enigmas. Necessito-te. Dirigiu-se de novo à porta, mas se deteve na soleira. —Denunciei ao Mogkan ante o Comandante, mas ele se mostrou... impassível — acrescentou, agarrando com força o pomo da porta—

Eu me encarregarei de vigiar ao

Comandante até que Brazell e Mogkan partam. Designei ao Ari e ao Janco como seus guarda-costas pessoais. Não parta destas habitações sem eles. E deixa de comer Crioulo. Eu me encarregarei de provar o do Comandante. Quero ver se te ocorre algo. Valek partiu, me deixando a sós com meus conturbados pensamentos. Tal e como tinha prometido e para irritação do Comandante, Valek não se separou de seu lado. Ari e e Janco gostaram de poder dispor de uma mudança de rotina, mas eu lhes fiz trabalhar muito. Quando não estava provando as comidas do Comandante, fazia que Ari me instruísse nas brigas a faca e que Janco me desse mais aulas sobre abrir fechaduras. A marcha do Comandante estava programada para o dia seguinte, o que significava que tinha chegado o momento de realizar meu próprio reconhecimento. Era meio tarde, e sabia que Valek estaria com o Comandante até muito tarde. Disse ao Ari e ao Janco


que me ia deitar cedo e lhes dava boa noite na soleira da porta das habitações do Valek. Depois de esperar durante uma hora, saí ao corredor. Os corredores do castelo não estavam tão desertos como tinha esperado, mas, felizmente, o despacho do Valek estava situado em uma parte bastante tranqüila do castelo. Aproximei-me da porta e, depois de me assegurar de que não havia ninguém, coloquei minhas punções na primeira das três fechaduras. Entretanto, os nervos fizeram que resultasse impossível fazer saltar a fechadura. Respirei profundamente e voltei a tentá-lo. Tinha conseguido abrir duas das fechaduras quando ouvi vozes. Rapidamente, tirei os punções da fechadura e bati na porta justo quando os dois homens apareciam no corredor. —Está com o Comandante —disse um deles. —Obrigado —repliquei. Então, comecei a caminhar na direção oposta. O coração pulsava com a mesma velocidade que as asas de um colibri. Quando vi que os homens partiram, retornei ao despacho do Valek. A terceira fechadura resultou ser a mais difícil. Quando consegui abri-la, estava completamente coberta de suor. Entrei rapidamente no despacho e fechei a porta a minhas costas. Minha primeira tarefa era abrir o armário que guardava meu antídoto. Talvez Valek tinha ali cotada a receita. Quando o consegui, acendi um pequeno abajur para olhar em seu interior. Havia muitas garrafas e frascos. A tensão foi tomando conta de mim. Quão único descobri foi uma grande garrafa que continha o antídoto. Verti umas quantas doses no frasco que levava no bolso, sabendo que Valek se daria conta se tomava muito. Depois de voltar a fechar o armário, comecei a registrar os arquivos de Valek. Felizmente, seus papéis pessoais estavam muito bem organizados. Encontrei informe sobre a Margg e o Comandante. Senti a tentação de lê-los, mas me centrei em procurar o arquivo que continha meu nome ou alguma referência ao Pó de Mariposa. Em meu arquivo pessoal, Valek tinha escrito uns comentários muito interessantes sobre minha habilidade para notar sabores, mas não havia menção alguma do veneno nem do antídoto. Quando terminei com o escritório, dirigi-me à mesa de conferências. Rebusquei entre livros e pastas, mas era consciente de que o tempo estava acabando. Tinha que retornar a minha habitação antes de que Valek acompanhasse o Comandante a sua suíte. Terminei com a mesa. Senti uma profunda desilusão ao me dar conta de que ainda ficava por registrar a metade do despacho. De repente, ouvi o distintivo som que fazia uma chave ao introduzir-se na fechadura. Um clique. Retirou-se a chave. Apaguei a luz enquanto


soava o clique correspondente à segunda fechadura. Lancei-me sob a mesa de conferências, esperando que as caixas que se empilhavam debaixo dela me ocultassem por completo. Rezei para que fosse Margg e não Valek. O terceiro clique fez que me detivesse o coração. A porta se abriu e se fechou. Uns passos cruzaram a sala e alguém se sentou ao escritório. Não me arrisquei a olhar para ver de quem se tratava, mas sabia que era Valek. Retirou-se logo o Comandante? Repassei as opções que tinha: ser descoberta ou esperar que Valek partisse. Pus-me cômoda. Uns minutos depois, alguém bateu na porta. —Entre —disse Valek. —Seu... seu pacote chegou, senhor —anunciou uma voz masculina. —Faça-o passar. Imediatamente, ouvi um ruído de cadeias e alguém que arrastava os pés ao andar. —Pode partir —ordenou Valek. A porta se fechou. Imediatamente, captei o aroma rançoso das masmorras. —Bem, Tentil. É consciente de que é o seguinte em ir ao cadafalso? —perguntou Valek. —Sim, senhor —sussurrou uma voz. —Está aqui porque matou a seu filho de três anos com um arado e afirmou que se tratava de um acidente. É correto? —Sim, senhor. Minha esposa acabava de morrer. Eu não podia permitir uma babá para o menino. Não sabia que ele se colocou debaixo —murmurou o homem, com a voz arrancada pela dor. —Tentil, na Ixia não valem as desculpas. —Sim, senhor. Sei, senhor. Quero morrer, senhor. Resulta-me impossível suportar a culpa. —Nesse caso, a morte não seria um castigo adequado, não te parece? Viver seria uma sentença muito mais dura. De fato, eu conheço uma granja muito produtiva no DM-4 que, tragicamente, perdeu ao granjeiro e a sua esposa. Ficaram três órfãos com menos de seis anos. Tentil morrerá na forca amanhã mesmo, ou isso será o que crê todo mundo. Entretanto, você se dirigirá ao DM-4 para te fazer encarregado de uma granja de trigo e de criar a esses três meninos. Sugiro-te que o primeiro que faça seja contratar a uma babá. Compreendido? —Mas... —O Código de Comportamento realizou um papel fundamental na hora de liberar a Ixia dos indesejáveis, mas também carece em certo modo de compreensão humana. Apesar


de meus argumentos, o Comandante não consegue compreender este ponto, por isso em ocasiões eu me ocupo pessoalmente de alguns assuntos. Mantém a boca fechada e sobreviverá. Um de meus homens de confiança irá te ver de vez em quando... Eu escutei completamente incrédula aquelas palavras. Não podia acreditar o que acabava de ouvir. Naquele momento, alguém bateu na porta. —Entre —disse Valek— No momento justo, como sempre Wing. Trouxeste os documentos? —perguntou. Ouvi o ruído de uns papéis— Sua nova identidade, Tentil. Wing te acompanhará ao DM-4. Pode partir. —Sim, senhor —repôs Tentil, com a voz rota pela emoção. Certamente se sentia afligido. Eu sabia como me sentiria se Valek me oferecesse uma vida em liberdade. Quando os homens partiram, um doloroso silêncio se apoderou do despacho. Temi-me que o som de minha respiração me delatasse. De repente, a cadeira do Valek se deslizou sobre o chão. Então, ele bocejou ruidosamente. —Bom, Yelena, pareceu-te interessante essa conversação? Mantive-me imóvel, esperando que ele estivesse brincando. Entretanto, sua seguinte frase não me deixou dúvidas. —Sei que está detrás da mesa. Pus-me de pé. Não havia ira em sua voz. Reclinou-se sobre a cadeira e tinha posto os pés no escritório. —Como há...? —comecei. —Você gosta do sabão de lavanda e eu não seguiria com vida se não pudesse me dar conta de que alguém forçou minhas fechaduras. Aos assassinos adoram as emboscadas e isso de deixar cadáveres detrás de portas misteriosamente fechadas. Muito divertido. —Não está zangado comigo? —Não. Em realidade, sinto-me aliviado. Já estava perguntando quando registraria meu escritório para procurar a receita do antídoto. —Aliviado? —repeti, furiosa—

De que tenha tentado escapar? De que tenha

rebuscado em seus papéis? Tão seguro está de que não vou conseguir nada? —Não. O que me alivia é que vá seguindo os passos habituais dos intentos de escapada e que não tenha inventado um plano diferente. Se souber o que está fazendo, posso antecipar seu seguinte movimento. Se não for assim, poderia ser que escapasse algo. Naturalmente, o fato de aprender a forçar fechaduras conduz a isto. Não obstante, dado que a


fórmula do antídoto não está escrita e só a conheço eu, estou seguro de que não a encontrará. Cheia de fúria, apertei com força os punhos para não estrangular ao senhor sabichão. —Muito bem. Não tenho possibilidade de escapar. O que te parece isto? Deste ao Tentil uma nova vida. Por que não a mim? —Como sabe que não o tenho feito já? —replicou Valek, ficando de pé— Por que crê que esteve um ano nas masmorras? Foi só a sorte a que provocou que você fosse a seguinte quando Oscove morreu? Talvez simplesmente estava atuando em nossa primeira reunião, quando pareceu que me surpreendia tanto de que fosse uma mulher. Aquilo me resultava insuportável. —O que é que quer, Valek? —perguntei— Quer que deixe de tentá-lo? Ou que me contente com uma vida envenenada? —De verdade quer saber? —Sim... —Quero-te... não como faxineira, mas sim como colaboradora leal. É inteligente, rápida e está te convertendo em uma lutadora decente. Quero ver-te tão dedicada como eu na hora de preservar a vida do Comandante. Sim, é um trabalho perigoso, mas, por outro lado, um salto mal calculado sobre o cabo poderia te fazer romper o pescoço. Isso é o que quero. Será capaz de me dar isso? Disse, me olhando atentamente aos olhos — Além disso, aonde iria? Seu lugar é este. Senti a tentação de ceder. Entretanto, sabia que se não morria vítima do veneno ou assassinada pelo Brazell, a magia selvagem que havia em meu sangue terminaria por explorar e me levaria com ela. A única marca física que deixaria no mundo seria uma pequena ruga na fonte de poder. Além disso, sem o antídoto, estava perdida de todos os modos. —Não sei. Há muito... —Que não me tem dito? Assenti, incapaz de falar. Lhe falar sobre minhas habilidades mágicas só serviria para que me matassem antes. —Resulta difícil confiar e muito mais saber em quem fazê-lo —disse. —E minha experiência foi horrenda. É uma de minhas debilidades.


—Não, um de seus pontos fortes. Olhe ao Ari e ao Janco. converteram-se em seus protetores muito antes de que eu os atribuísse para que fossem, tudo porque você os defendeu diante do Comandante quando não o fez nem seu próprio capitão. Pensa no que tem agora antes de que me dê uma resposta. Ganhaste-te o respeito do Comandante e de Maren e a lealdade do Ari e Janco. —E o que ganhei de ti, Valek? Lealdade? Respeito? Confiança? —Tem minha atenção, mas, se me der o que quero, poderá ter tudo.

À manhã seguinte, os generais se prepararam para partir. Os soldados demoraram quatro horas em reunir-se. Quatro horas de ruído e confusão. Quando por fim todos tiveram passado pelas portas exteriores da muralha, pareceu que o castelo exalava um suspiro de alívio. Então, o Comandante informou que a delegação de Sitia chegaria ao dia seguinte. Suas palavras provocaram um enorme revôo. O silêncio inicial se viu seguido por uma frenética atividade enquanto os serventes se dispunham a levar a cabo suas obrigações. Embora me alegrava de que Mogkan e Brazell partiram, sentia-me sem forças. Ainda não tinha dado a Valek sua resposta. Para seguir com vida, tinha que partir ao sul, mas, sem o antídoto, não sobreviveria. O temor encheu meu coração ao compreender a realidade de meu inevitável destino. Ao dia seguinte, requereu-se minha presença na cerimônia de boas vindas que se organizou para a chegada da delegação de Sitia. Eu sentia uma certa apreensão ante a presença dos suboas. Parecia-me como se alguém estivesse dizendo que olhasse o que não podia ter. Desde que a sala do trono se converteu em um enorme despacho, o único lugar do castelo que podia albergar aquela classe de acontecimentos era a sala de guerra do Comandante. Uma vez mais, Valek teve que ficar com seu uniforme de ornamento e colocarse ao lado direito do Comandante enquanto eu esperava atrás deles. Por fim, quando se anunciou a chegada da delegação, apareci um pouco para ver melhor. Os de Sitia entraram na sala como se estivessem flutuando. Seus exóticos e coloridos vestidos eram largos e lhes cobriam por completo os pés. Além disso, completavam seu traje com máscaras animais adornadas com brilhantes plumas e peles. Detiveram-se diante do Comandante e se abriram até formar um v. Sua líder, que levava a máscara de um falcão, falou com voz muito formal.


—Trazemo-lhe as saudações de seus vizinhos do sul. Esperamos que esta reunião aproxime mais a nossos dois países. Para mostrar nosso compromisso com este empenho, viemos preparados para nos mostrar ante você. Então, os cinco tiraram as máscaras com um estudado movimento. Pisquei várias vezes de assombro, esperando que tudo trocasse durante aqueles segundos de escuridão. Desgraçadamente, meu mundo tinha passado de mal a pior. Valek me olhou com rosto resignado, como se ele tampouco pudesse acreditar o giro que tinham dado os acontecimentos. A pessoa que se ocultava sob a máscara do falcão era Irys. Sua líder era uma maga professora que estava a uma curta distância do Comandante Ambrose.


Capítulo 26

—Ixia lhes dá boas vindas a nossa terra e espera que todos possamos começar de novo —anunciou o Comandante ante a delegação do sul. Enquanto eu esperava atrás do Comandante, perguntei-me o que ocorreria aos de Sitia quando Valek informasse ao Comandante de que Irys era uma maga. Preferi não pensar no caos que ela poderia causar no castelo antes de partir e tratei de imaginar uma situação mais favorável. Fracassei, me dando conta de que, provavelmente, aquele era o princípio do fim. Valek observou atentamente como os suboas e o Comandante intercambiavam saudações mais formais. Pela atitude do Valek, adivinhei que Irys não tinha utilizado sua magia. Depois de que concluíra a cerimônia oficial de boas vindas, acompanhou-se à delegação a seus aposentos para que pudessem descansar de sua viagem e esperar ali o festim da noite. O protocolo decretava que as galanterias e o entretenimento deviam preceder às duras negociações. Todos, à exceção do Comandante e Valek, partiram da sala de guerra. Eu fiz gesto de partir também, mas Valek me agarrou pelo braço. —Muito bem, Valek. Você dirá. Suponho que se trata de alguma perigosa advertência, não? —perguntou o Comandante com um suspiro. —A líder da delegação de Sitia é uma maga professora —disse Valek, molesto pela atitude do Comandante. —Era de se esperar. Como não poderiam saber que somos sinceros na hora de querer estabelecer um tratado de comércio? Tudo isto poderia ter sido uma emboscada. É lógico. Sem mostrar preocupação alguma, o Comandante se dirigiu para a porta. —Essa mulher não lhe preocupa? —insistiu Valek— Tratou que matar a Yelena. O Comandante me olhou pela primeira vez desde que tínhamos entrado na sala de guerra. —Seria pouco inteligente matar à provadora de minha comida. Um ato assim poderia interpretar-se como intento de assassinato e deter as negociações. Yelena está a salvo... no momento. Com isso, partiu da sala.


—Maldita seja —sussurrou Valek. —E agora o que? —perguntei eu. —Tinha antecipado que um mago ou maga participaria deste encontro, mas jamais tinha pensado que seria ela. Enquanto esteja aqui, Ari e Janco seguirão ocupando-se de ti embora, se for isso o que quer, não haverá nada que eles ou eu possamos fazer a respeito. Com o Mogkan tive sorte. Estava perto quando senti seu poder. Esperemos que essa mulher se comporte como uma convidada enquanto esteja em nossas terras. Ao menos agora sei onde estão os magos. Mogkan foi o que senti durante a reunião de generais. E a maga do sul está agora no castelo. A menos que venham mais, estaremos a sós. —E a Capitã Star? —Star é uma charlatã. Suas afirmações de que é maga só são uma tática para assustar a seus mexeriqueiros e evitar que se enfrentem a ela. Recordo-te que terá que assistir ao festim esta noite. Um pesar, mas ao menos a comida deve ser boa. Ouvi que Rand queria utilizar o Crioulo para uma nova sobremesa, mas o Comandante se negou. Outro enigma, dado que Brazell o enviou em quantidades industriais e prometeu fazer o mesmo com os outros generais. O pediam como se fora ouro. Sente-se estranha desde que deixaste que tomá-lo? —perguntou-me. Tinham passado três dias desde que tomei a última parte. Não recordava ter notado sintomas físicos. O fato de me comê-lo tinha levantado o ânimo e tinha suposto um incremento de energia para mim. Desejava seu doce sabor, especialmente naqueles momentos, quando minhas oportunidades de ser livre eram mais reduzidas que nunca. —Um certo desejo por tomá-lo, mas não se pode considerar vício —disse ao Valek— Penso nisso de vez em quando e eu gostaria de tomar uma parte. —Talvez seja muito cedo —comentou Valek, franzindo o cenho— Pode que ainda o tenha no sangue. Informará-me se ocorrer algo? —Sim. —Bem. Até esta noite. “Pobre Valek”, pensei. Tinha tido que ficar com seu uniforme de ornamento em três ocasiões. No comilão, colocaram-se elaborados adornos para o festim. A sala estava muito iluminada. Construiu-se uma plataforma para colocar a mesa principal em que a delegação do sul, o Comandante e Valek estivessem sentados com seus melhores ornamentos. O resto, estava sentado ao redor em mesas redondas, formando um círculo na sala. O espaço no


meio ficava vazio. Em um rincão, uma pequena orquestra tocava música relaxante, o que resultou uma surpresa. O Comandante desprezava a música, dado que a considerava uma perda de tempo. Eu tomei assento ao lado do Comandante Ambrose de modo que ele pudesse me passar seu prato. Como era de esperar, a comida era maravilhosa. Rand tinha superado a si mesmo. Por sua parte, Irys e os seus estavam colocados à esquerda do Comandante. Seus formosos trajes tinham redemoinhos de cor que brilhavam à luz dos abajures. Irys levava um pendente de diamantes com forma de flor, que reluzia sobre seu peito. Ignorou minha presença, o que não me incomodou absolutamente. Depois que os criados recolhessem as mesas, apagaram a metade dos abajures. A orquestra começou a tocar uma música mais animada e, então, uns bailarinos disfarçados irromperam na sala, sujeitando paus ardendo por cima de suas cabeças. Bailarinos de fogo! Realizaram uma complexa dança que deixou todo mundo boquiaberto. Compreendi perfeitamente por que durante o festival sua loja tinha estado sempre cheia. Valek se reclinou em sua cadeira e me disse: —Não acredito que tivesse passado as provas, Yelena. Provavelmente, a estas alturas da dança já teria o cabelo em chamas. —O que tem que mau em uma cabeça chamuscada pelo bem da arte? —brinquei. Ele se pôs a rir. Todo mundo parecia estar muito contente. Esperei de todo coração que o Comandante não esperasse outros quinze anos para celebrar outro festim. Os bailarinos terminaram seu segundo baile e saíram da sala. Irys se levantou para propor um brinde. Os de Sitia tinham levado seu melhor brandy. Irys serviu uma taça ao Comandante, ao Valek e a si mesma. Não pareceu ofender-se quando o Comandante me entregou sua taça. Fiz que o líquido desse voltas na taça e aspirei o aroma. Tomei um pequeno sorvo e saboreei o brandy e logo o cuspi ao chão. Entre arcadas e escarros, tratei de jogá-lo tudo. Valek me olhou alarmado. —Meu amor —sussurrei. Valek atirou as outras duas taças e verteu seus conteúdos sobre a mesa. À medida que meu corpo foi reagindo ao veneno, vi que Valek ia se convertendo em um ponto negro e que as paredes se cobriam de sangue. Eu flutuava em um mar vermelho. As cores pareciam flutuar e dar voltas ao meu redor. O som do cristal quebrado sobre a pedra criou uma estranha melodia em minha mente. Navegava à


deriva sobre uma balsa feita de cabelo branco encaracolado, que era empurrada por uma forte corrente. A suave voz do Irys falou em meio daquela tempestade de cores. —Estará bem... agarre-te a sua balsa. Poderá escapar a esta tormenta.

Despertei em minha habitação. Alguém tinha aceso um abajur e Janco estava sentado em uma cadeira, lendo um livro. Aquilo resultava muito mais agradável que a última vez que tinha provado “Meu amor”. Uma cômoda cama era preferível a jazer em um atoleiro de meus próprios vômitos. —Janco. Não sabia era capaz de ler —brinquei. Tinha a voz rouca e doíam a cabeça e a garganta. —Sou homem de talentos desconhecidos. Bem-vinda. —Quanto tempo estive inconsciente? —Dois dias. —O que ocorreu? —Depois de que te convertesse em uma louca? Ou refere-te ao depois que te converteu-te em uma? —Depois. —Resulta surpreendente o rápido que se pode mover Valek —disse Janco com admiração— Colocou a ti no chão enquanto punha a cortiça da garrafa envenenada e a trocava por outra com um rápido movimento de mãos. Desculpou-se de sua estupidez e serviu outras três taças para que essa bruxa do sul pudesse fazer seu brinde. Todo o incidente se tampou tão rapidamente que só os da mesa principal se deram conta do ocorrido. Bom, Ari também —acrescentou, tocando o cavanhaque— Não tirou os olhos de cima de ti em toda a noite, por isso, quando caiu ao chão, levantamo-nos. Deslizamo-nos até chegar detrás da mesa principal e ele te trouxe aqui. Ainda estaria a seu lado, mas eu lhe obriguei a que se fosse dormir um pouco. Isso explicava o fato de que minha balsa fosse de cabelo encaracolado, dado que era assim como o tinha Ari. Sentei-me, mas a dor de cabeça se intensificou. Ao ver que havia uma jarra de água sobre minha mesinha, servi-me um copo que esvaziei de um gole. —Valek disse que teria sede. Esteve aqui em um par de ocasiões, mas esteve muito ocupado com os suboas. Não posso acreditar que essa bruxa tivesse a audácia de tratar de envenenar ao Comandante.


—Não foi assim. É que não te lembra? Serve três taças da mesma garrafa. Deve ter sido outra pessoa. —A menos que estivesse disposta a suicidar-se para cometer o assassinato. Uma morte rápida em vez de esperar em nossas masmorras a que a pendurassem. —Pode ser —disse, embora me parecia pouco provável. —Valek deve ser da mesma opinião. As conversações sobre o tratado seguiram como se não tivesse ocorrido nada — comentou Janco, entre bocejos — Bom, agora que volta a estar acordada, vou dormir um momento. Ficam quatro horas até que amanheça. Descansa você também um pouco. Voltaremos pela manhã —acrescentou, me obrigando a me deitar. Então, estudou-me atentamente, com o rosto cheio de indecisão— Ari me disse que gritou muito enquanto ele te cuidava. De fato, disse que se Reyad seguisse com vida, mataria-lhe sem duvidá-lo um momento. Pareceu-me que você gostaria de sabê-lo. Com isso, Janco me deu um beijo fraternal na face e partiu. Genial. Que mais sabia Ari? Como poderia eu enfrentar a ele pela manhã? De momento, não podia fazer nada a respeito. Tratei de dormir um pouco, mas o estômago vazio não fazia mais que protestar. Só podia pensar na comida. Quando me decidi a correr o risco de ir procurar algo à cozinha, coloquei minha navalha e me dirigi com pernas trementes à cozinha. Ali esperava encontrar um pouco de pão sem que Rand me visse. Consegui o pão e estava cortando uma parte de queijo quando a porta do Rand se abriu. —Yelena —disse, muito surpreso. —Bom dia, Rand. Só estava roubando um pouco de comida. —Faz semanas que não te vejo —se queixou — Onde estiveste? —Ocupada. Já sabe. Os generais, a delegação, o festim... Por certo, este foi magnífico. Rand, é um gênio. Rand pareceu animar-se um pouco. Resignei-me ao feito de que, se queria que ele pensasse que seguíamos sendo amigos, teria que conversar um momento com ele. Coloquei meu café da manhã sobre a mesa e aproximei um tamborete. —Alguém me disse que estava doente —comentou, aproximando-se de mim. —Sim. Um vírus estomacal. Não comi em dois dias, mas agora estou melhor. —Espera, farei-te uns pasteizinhos. Observei como mesclava os ingredientes e me assegurei de que não jogava nenhum veneno. Quando os pasteizinhos estiveram a meu alcance, lancei a eles com


completo abandono. A cena me resultava tão familiar que se dissolveu o desconforto entre nós. Muito em breve estivemos conversando e rindo. Até que suas perguntas se fizeram mais concretas, não compreendi que estava tratando de tirar informação sobre o Comandante e Valek. —Sabe algo sobre esse tratado do sul? —perguntou Rand. —Não —disse com um tom tão duro que provoquei que ele me olhasse com curiosidade— O sinto. Estou cansada. É melhor que volte para a cama. —Antes de que vá, é melhor que leve estes grãos. Preparei-os que todas as maneiras possíveis, mas seu sabor resulta horrível e irreconhecível. Jogou-os em uma bolsa e foi comprovar os fornos. Ao ver como avivava o fogo, tive uma idéia. —Talvez não sejam para comer —disse— Talvez sejam uma fonte de energia. —Bom, vale a pena tentá-lo. Arrojou os grãos ao fogo. Esperamos um momento, mas não se produziram repentinas chamas nem nenhum aumentou da temperatura. Enquanto Rand se ocupava de seus pães, olhei as brasas, pensando que, no mistério dos grãos, já não ficavam opções. Quando Rand voltou para a carga com suas perguntas, apartei os olhos do fogo. Sentia uma pressão na garganta. —É melhor que vá ou Valek se perguntará onde estou. —Sim, vá. Notei que Valek e você estão agora muito unidos. Lhe diga de minha parte que não mate a ninguém, sim? —disse, com a voz cheia de sarcasmo. Ao escutá-lo, eu perdi o controle. —Ao menos, Valek tem a decência de me informar que me envenenou —lhe espetei sem poder me conter. A expressão de seu rosto passou da surpresa à culpabilidade em um instante. —Disse-lhe isso Star? —perguntou. —Ah... Não sabia o que dizer. Se dizia que sim, Star lhe confirmaria que eu lhe tinha mentido e se dizia que não, insistiria em conhecer minha fonte. Fora como fora, descobriria-o. Acabava de deixar ao descoberto as investigações secretas do Valek. Felizmente, Rand não esperou a que eu respondesse. —Teria que haver imaginado que lhe diria isso. Adora jogar malotes passados. Quando você apareceu, não queria te conhecer. Quão único queria era o montão de dinheiro


que Star me ofereceu para cancelar minha dívida se danificava a prova ao Valek. Então, minha moralidade e o boa pessoa que você é complicaram as coisas. Vender informação sobre ti e logo ter que te proteger sem que parecesse que estava te protegendo converteu minha vida em um inferno. —Sinto haver te incomodado. Suponho que, além de envenenamentos e seqüestros, deveria te agradecer. Rand esfregou o rosto com as mãos. —Sinto muito, Yelena. Estava encurralado e não podia sair sem fazer danos a alguém. —Por que queria Star que me envenenasse? —O general Brazell a encarregou. Isso sim que não deveria ser uma surpresa. —Não... Rand, há alguém que possa te ajudar a sair desta confusão? Valek, talvez? —É obvio que não! Por que tem tão boa opinião dele? É um assassino. Deveria odiá-lo por haver te dado o Pó de Mariposa. Eu o odiaria. —Quem lhe há isso dito? Quem mais sabe? Pensei que só sabiam Valek e o Comandante. —Seu predecessor, Oscove, disse-me por que jamais tratava de fugir e não, não lhe vendi essa informação a ninguém. Tenho meus limites. O ódio que Oscove sentia pelo Valek rivalizava com o meu. Compreendi-o. Entretanto, sua relação com o Valek... Está apaixonada por ele, verdade? —disse-me, inesperadamente. —Isso é uma tolice —gritei. Olhamo-nos mutuamente com a boca aberta, muito atônitos para dizer nada mais. Então, um doce aroma a frutos secos alcançou o nariz. Rand também o notou. Segui o aroma até o forno ao que tinha arrojado os misteriosos grãos. Ao abrir a porta, vi-me assaltado pelo forte aroma de uma essência celestial. Crioulo.


Capítulo 27

—Onde encontrou esses grãos? —perguntou-me Rand— São o ingrediente que me falta para a receita do Crioulo. Não me ocorreu torrá-los para trocar seu sabor. —Em um armazém do porão —menti. Não estava disposta a lhe dizer que Valek e eu os tínhamos interceptado de caminho à nova fábrica do Brazell, que, certamente, não produzia piensos a não ser Crioulo. —Que armazém? —insistiu Rand, complemente desesperado. —Não me lembro. —Te esforce um pouco. Se posso fazer Crioulo, talvez não me transfiram. —Aonde? —Está me dizendo que Valek ainda não lhe disse? Leva querendo livrar-se de mim da mudança de regime. Enviam-me à casa do Brazell para que Ving possa vir aqui. Não durará nenhuma semana! —exclamou com amargura. —Quando? —Não sei. Meus papéis ainda não estão preparados, por isso ainda fica esperança de impedi-lo. Se me pode encontrar esses grãos. Acreditava que ainda éramos amigos. Inclusive depois de admitir que tinha tentado me envenenar, ainda acreditava que eu seria capaz de fazer algo por ele. —Tentarei-o —disse antes de partir precipitadamente. Os primeiros raios do sol estavam despontando nas montanhas da Alma quando cheguei à suíte do Valek sem que ninguém me visse. Graças a tênue luz, vi que Valek estava me esperando sentado no sofá. —Tão logo volta? —perguntou-me Valek—

Uma pena. Estava a ponto de

organizar uma partida de busca de seu cadáver. O que ocorreu quando bateu na porta da maga do sul para te sacrificar? Jogaram a patadas, pensando que foi muito parva como para que perdessem seu tempo contigo? Sentei-me em uma cadeira para escutar o bate-papo de Valek. Nenhuma desculpa que eu lhe dissesse lhe satisfaria. Tinha razão. Tinha sido uma tolice sair sozinha, mas a lógica e o estômago vazio eram como o azeite e a água. Não se mesclam. Quando terminou, perguntei-lhe: —Terminaste já?


—Não vais refutar o que acabo de te dizer? —Não. —Nesse caso, terminei. —Bem. Dado que já está de mau humor, talvez te diga o que ocorreu enquanto estava na cozinha. Em realidade, duas coisas. Uma má e uma boa. Qual você gostaria de escutar primeiro? —A má. Isso sempre transmite a esperança de que a boa equilibre um pouco as coisas. Armei-me de coragem e admiti ter revelado sua operação de investigações secretas. O rosto do Valek se endureceu. —É tua culpa. Estava-te defendendo! —Por proteger minha honra, deixaste ao descoberto meses de trabalho. Crê que deveria me sentir adulado? —Sim. Não pensava me sentir culpada. Se não tivesse posto a prova minha lealdade com o Star e logo me tivesse utilizado em sua investigação, não estaria naquela situação. —Não tinha planejado realizar arrestos até finais de mês. Será melhor que comece antes de que Rand tenha tempo de alertar ao Star. Não obstante, isto poderia nos beneficiar. Acredito que Star está começando a suspeitar. Se a detiver agora, talvez descubra quem a contratou para que pusesse o veneno na garrafa de Sitia. —Star? Como? —Ela tem empregado a um assassino do sul. Seria o único que teve a oportunidade e a habilidade de fazê-lo. Estou seguro de que o envenenamento não foi o resultado dos pontos de vista políticos do Star. Sua organização faria algo por um bom preço. Devo descobrir quem arriscou tanto para comprometer à delegação. Bom, quais são as boas notícias? —Os grãos misteriosos são um ingrediente do Crioulo. —Então, por que mentiu Brazell em sua solicitude? —disse Valek, pensando igual a min na verdadeira natureza da fábrica do Brazell. —Talvez porque importa os grãos de Sitia —sugeri— Isso seria ilegal, ao menos até que o tratado de comércio esteja finalizado. Pode que tenha estado utilizando mais matérias primas ou equipamento.


—É possível, o que explicaria seu interesse por ter um tratado. Terá que te fixar muito bem quando visitar a fábrica. —O que? —O Comandante preparou uma viagem ao DM-5 quando partirem os de Sitia. E, onde vai o Comandante, você o acompanha. —E você? Você vai também, verdade? —disse, cheia de pânico. —Não. Me ordenou que permaneça aqui. —Um e dois e três, quatro e cinco... Segue brigando assim e morrerá —cantarolou Janco. Eu estava imobilizada contra a parede. Minha fortificação caiu ao chão. Janco me golpeou na têmpora com o seu, para enfatizar suas palavras. —O que te passa? Normalmente não resulta tão fácil ganhar. —Estou muito distraída —disse. Só fazia um dia que Valek tinha me informado dos planos do Comandante. —Então, o que estamos fazendo aqui? —perguntou Ari. Maren e ele nos estavam observando. —Prometo-lhes que me esforçarei um pouco mais na seguinte ronda. Janco, por que alguma vez deixa de falar enquanto brigas? —Ajuda-me com o ritmo. —Não tiram o sarro os outros soldados? —Não quando os derroto. Começamos uma nova briga. Fiz um esforço maior por me concentrar, mas Janco voltou a me derrotar. —Agora está te esforçando muito. Planeja cada movimento de ataque. Delata-te — me comentou— Por isso, eu te posso bloquear os golpes antes que os dê. —Ensaiamos por uma razão. Os movimentos ofensivos e defensivos devem ser instintivos —acrescentou Ari—

Deixa que sua mente se relaxe, mas permanece alerta.

Bloqueia todas as distrações. Permanece centrada em seu oponente, mas não muito. —É uma contradição! —gritei, cheia de frustração. —Funciona —respondeu Ari. Respirei profundamente e tratei de apartar os turbadores pensamentos de minha próxima visita ao distrito do Brazell. Concentrei-me na solidez e suavidade de minha arma e tratei de estabelecer um vínculo com ela, como se tratasse de uma extensão de mim mesma.


Ao tocar a madeira de novo, senti uma ligeira vibração nos dedos. Minha consciência fluía através do fortificação, me unindo por completo a ele.Começamos a terceira ronda com uma sensação diferente. Instintivamente, comecei a adivinhar o que Janco planejava. Um décimo de segundo antes de que ele estabelecesse um movimento, eu o bloqueava com minha arma. Em vez de lutar por me defender, o fazia por atacar. Encurralei ao Janco. Uma música começou a vibrar na mente e eu lhe permiti guiar meu ataque. Ganhei a briga. —Surpreendente —disse Janco— Seguiste o conselho do Ari? —Ao pé da letra. —Pode voltar a fazê-lo? —quis saber Ari. —Não sei. —Ponha a prova a mim. Ari tomou sua fortificação e se colocou em posição. Eu esfreguei de novo o fortificação com os dedos, deixando que minha mente retornasse à mesma zona mental em que tinha estado antes. A segunda vez, resultou-me mais fácil. Ari era um oponente mais complicado que Janco. O que lhe faltava de velocidade, compensava-o com a força. Tive que modificar minha defesa e utilizei meu menor tamanho para penetrar abaixo de um de seus cotovelos. Então, coloquei minha fortificação detrás dos tornozelos e atirei. Caiu ao chão como um saco de batatas. Havia tornado a ganhar. —Incrível —disse Janco. —Toca-me

—me desafiou Maren. Uma vez mais, voltei para a mesma zona

mental. Os ataques de Maren eram rápidos como os de uma pantera. Era uma oponente muito boa, que aplicava a tática em vez da força e a velocidade. Apesar de tudo, também consegui derrotá-la. —Maldita seja! —exclamou— Quando uma estudante começa a derrotar a sua professora, significa que a primeira já não a necessita. Parto-me. Ari, Janco e eu nos olhamos. —Está de brincadeira, verdade? —perguntei. —Deixa-a. Já lhe acontecerá —comentou Ari— A menos que comece a derrotá-la em cada briga. —Não acredito que isso seja muito provável. —Isso digo eu —apostilou Janco, que certamente também estava tratando de animar a seu derrotado ego.


—Já basta de brigas —disse Ari— Yelena, por que não faz algums katas para ir relaxando e o deixamos por hoje? Um kata era uma rotina de bloqueios e golpes defensivos e ofensivos. Cada uma tinha um nome e se foram fazendo mais complexas à medida que se ia avançando. Eu comecei com um mais singelo. Enquanto eu me exercitava, Ari e Janco estavam absortos em sua conversação. Eu sorri, pensando que pareciam um casal de casados. Enquanto realizava meus exercícios, notei que alguém estava me observando da porta com muito interesse. Era Irys. Levava um uniforme de falcoeira e o cabelo recolhido segundo as regras militares da Ixia. Certamente tinha conseguido percorrer o castelo sem que ninguém a detivesse. Olhei a meu guarda-costas e vi que seguiam perdidos em sua conversação e que não faziam caso nem de Irys nem de mim. A intranqüilidade se apoderou de mim. Ao ver que ela entrava no armazém, aproximei-me um pouco mais a meus companheiros. —Não sentirá Valek sua magia? —perguntei-lhe, assinalando ao Ari e ao Janco. —Ele está no outro lado do castelo, mas senti que alguém utilizava o poder antes de que chegássemos. Uns momentos breves. Assim há ou houve outro mago no castelo. —Não sabe você? —Desgraçadamente, não. —Mas sabe de quem se trata, verdade? —Não. Há vários magos que desapareceram. Ou estão mortos ou escondidos. Alguns são muito reservados, por isso nunca sabemos nada deles. Poderia ser qualquer um. Eu só posso identificar a um mago se tiver estabelecido um vínculo com ele ou ela, tal e como tenho feito contigo. O que lhe passa ao Comandante? —perguntou-me, depois de inspecionar as armas que havia contra a parede—

Os pensamentos virtualmente lhe escapam da

cabeça. É tão aberto... Eu poderia lhe tirar toda a informação que quisesse se não fora porque vai contra nosso código de ética. Eu não podia lhe responder a isso. —O que está fazendo aqui? —quis saber. Irys sorriu. Indicou o fortificação que eu tinha entre as mãos. —O que faz você com essa arma? Como não via razão alguma para mentir, expliquei meu treinamento. —Como foi hoje? —perguntou-me. —Pela primeira vez, derrotei a meus três companheiros.


—Interessante —comentou Irys. Parecia contente. —Por que está aqui? —insisti, depois de olhar ao Ari e ao Janco, que seguiam perdidos em sua profunda conversação—

Me prometeu um ano. Estou perto de sair

ardendo? —Ainda fica tempo. No momento, estabilizaste-te, mas, como de perto está de vir a Sitia? —Não posso conseguir o antídoto, a menos que você lhe possa tirar a informação da mente. —Impossível. Entretanto, meus curandeiros dizem que se pode conseguir suficiente antídoto para que dure um mês, há uma possibilidade de que lhe possamos tirar o veneno do corpo. Vêem conosco quando partirmos. Tenho uma conselheira que é justo de seu tamanho. Ela ficará sua uniforme e afastará ao Valek e a seus homens enquanto você ocupa seu lugar. Com uma máscara posta, ninguém se daria conta. A esperança despertou dentro de mim. O coração me acelerou. Tinha que me tranqüilizar. Irys havia dito que existia a possibilidade de tirar o veneno do meu corpo, mas não havia garantias. O plano de fuga parecia singelo, mas eu procurei possíveis falhas. Sabia muito bem que não devia confiar por completo dela. —O conselheiro Mogkan esteve aqui a semana passada —disse— É ele um de seus espiões? —Mogkan... Mogkan... —É um homem alto, de olhos cinzas. Tem o cabelo comprido e o tem recolhido com uma única trança. Valek me disse que tem poderes. —Kangom! Que pouco original! Perdi-o de vista faz dez anos. Produziu-se um grande escândalo sobre sua implicação em uma banda de seqüestradores. OH —sussurrou, me olhando fixamente— Onde está agora? —No DM-5. Lhe busca? —Só se converte em um perigo para Sitia, mas isso explica por que estive captando emanações de poder nessa direção —disse— De fato, há um débil fluxo de magia no castelo. Poderia ser do Kangom... Ou Mogkan, embora não acredito. Ele não tem essa aura de força. Provavelmente não seja nada de importância. Entretanto, hei sentido que alguém absorvia poder recentemente. Bom, vem comigo?


Talvez a magia do Mogkan não preocupasse a ela, mas a mim sim. Parecia existir um vínculo entre a magia do Mogkan e o incomum comportamento do Comandante, mas não podia entender por que. Não sabia o que fazer. O fato de escapar sempre tinha sido um reflexo defensivo. Partir ao sul oferecia minha melhor possibilidade de sobrevivência. Meses antes, teria obstinado à possibilidade, mas naquele momento, parecia-me que era como abandonar o navio muito cedo. —Não. Ainda não. —Está louca? —Provavelmente, mas primeiro tenho que terminar uma coisa. Então, manterei minha promessa e partirei a Sitia. —Se seguir com vida. —Talvez você possa me ajudar. Há algum modo no que possa proteger minha mente de influências mágicas? —Te preocupa Kangom? —Muito. —Acredito que sim. É o suficientemente forte para dirigi-lo —disse, me entregando minha fortificação— Faz uma de seus katas, fecha os olhos e esclarece mente. Comecei com uma de bloqueio. —Imagine um tijolo. Coloca um tijolo no chão e logo faz uma fila deles. Utilizando um morteiro imaginário, constrói outra fila. Segue construindo até que tenha uma parede tão alta como sua cabeça. Fiz o que Irys me dizia. Quando por fim terminei, tinha formado uma resistente parede mental. —Basta —me ordenou— Agora, abre os olhos —acrescentou. Minha parede desapareceu —Agora, me bloqueie! Uma música ressonou em minha cabeça, me afligindo. —Imagina sua parede —me gritou Irys. Meu muro se erigiu imediatamente. A música se deteve em seco. —Muito bem. Sugiro que termine tudo o que tenha que terminar aqui e venha ao sul. Com essa classe de força, se não conseguir controlar sua magia por completo, alguém poderia tirar isso e utilizá-la, te convertendo em um escravo sem mente.


Com isso, deu-se a volta e partiu do armazém. No momento no que a porta se fechou, Ari e Janco terminaram sua conversação e piscaram como se se estivessem despertando de um profundo sonho. —Terminaste já? Quantas katas? —perguntou-me Ari. Eu pus-me a rir e deixei o fortificação. —Vamos, tenho fome.

Quando a delegação de Sitia partiu três dias depois, tive um repentino ataque de pânico. Que diabos estava fazendo? Era a oportunidade perfeita para escapar ao sul, mas eu tinha decidido ficar no castelo e me preparar para ir à casa do Brazell. Irys tinha razão. Estava louca. Cada vez que pensava na viagem, o coração acelerava. O Comandante tinha preparado tudo para sair ao dia seguinte. Comecei a preparar minhas provisões especiais para a viagem. O rosto triste da Dilana me recebeu quando fui pedir-lhe roupa de viagem. Os papéis do Rand já estavam preparados. Vinha conosco. —Eu pedi um traslado, mas duvido que me concedam isso. Se esse imbecil se casasse comigo, não estaríamos nesta situação. —Ainda têm tempo de fazer a solicitude. Se passar, poderá viajar ao DM-5 para as bodas. —Não quer que ninguém saiba o que sente por mim. Preocupa-lhe que me pudessem utilizar para vingar-se dele. Dilana estava inconsolável. Nem sequer se alegrou quando lhe disse que, com o novo tratado de comércio, poderia importar seda. Quando me deu a roupa, parti-me de sua oficina sem ter conseguido animá-la. A manhã seguinte amanheceu cinza e nublada. A estação fria estava começando, o que normalmente indicava o fim das viagens, não o início. As neves provavelmente manteriam nossa partida em casa do Brazell até que chegasse a estação das geadas. Tremi só de pensá-lo. Valek me deteve antes de que me partisse de nossa suíte. —Esta é uma viagem muito perigosa para ti. Tenta passar desapercebida e mantém os olhos abertos. Questiona os pensamentos que tenha, porque poderiam não ser teus —disse. Então, entregou uma cigarreira de prata— O Comandante tem sua dose de antídoto, mas, se lhe esquecesse, aqui tem um fornecimento de apoio. Não diga a ninguém que o tem e mantém oculto.


Pela primeira vez, Valek tinha crédulo em mim. —Obrigada. O medo me roçou o estômago enquanto colocava a cigarreira em minha mochila. Outro perigo que não tinha reconhecido. Que mais tinha passado por cima? —Espera, Yelena, há uma coisa mais. Quero que tenha isto. Estendeu a mão e nela vi a formosa mariposa de pedra que ele tinha esculpido. Os pontos de prata reluziam maravilhosamente. Uma cadeia de prata pendurava de um pequeno buraco que tinha no corpo. Valek colocou a cadeia ao redor do meu pescoço. —Quando a esculpi, pensava em ti. Delicada na aparência, mas com uma força que não se nota a primeira vista. Senti uma estranha tensão no peito. Valek se comportava como se não fosse voltar para ver-me. Seu medo por minha segurança parecia autêntico. Entretanto, preocupava-lhe eu ou sua valiosa provadora de comidas?


Capítulo 28 O séquito de viagem do Comandante Ambrose consistia de quase cinqüenta soldados de sua guarda de elite. Alguns precediam à caravana, outros partiam a seu lado. Os soldados também protegiam aos serventes, que precediam aos cavalos. O resto dos soldados fechava o cortejo. Ari e Janco foram examinando a rota da viagem, por isso levavam horas de adiantamento. Avançávamos a passo rápido no frio ar da manhã. Eu tinha metido a mariposa do Valek sob a camisa e me surpreendi tocando-a através do tecido em várias ocasiões. O presente provocava um tumulto em meus sentimentos. Quando acreditava que já o conhecia, ele voltava a me surpreender. Junto com minha mochila, também levava um fortificação, que utilizava como se o necessitasse para caminhar. Alguns dos soldados me olhavam com certa suspeita, mas não me importava. Rand se negava a me olhar aos olhos. Olhava para diante em completo silêncio. Não demorou muito em ficar atrás. Sua perna lhe impedia de manter o passo. Depois de nos deter para almoçar, seguimos até uma hora antes do pôr-do-sol. O maior Granten, o oficial ao mando da expedição, queria montar o acampamento à luz do dia. Umas espaçosas barracas se erigiram para o Comandante e seus conselheiros e duas menores para os serventes. Descobri que compartilharia meu espaço com uma mulher chamada Bria, que fazia recados e servia aos conselheiros do Comandante. Acomodei-me na loja enquanto Bria se esquentava ao lado do fogo. Acendi um pequeno abajur e tirei o livro sobre símbolos de guerra que tinha tomado emprestado do Valek. Depois de decifrar o nome do sucessor, não tinha tido tempo de interpretar os símbolos da navalha que Janco tinha me dado. Quando terminei de traduzir os seis símbolos, esbocei um sorriso. Janco podia resultar muito irritante, mas, abaixo essa aparência, era um homem muito doce. Quando Bria entrou na loja, guardei rapidamente o livro. Uns conturbados sonhos fizeram que não descansasse muito aquela noite. À alvorada, despertei completamente esgotada. Com o tempo que a procissão demorava a comer e reagrupar-se, além disso, o fato de que havia menos horas de sol, estimei que a viagem à casa do Brazell nos levaria uns cinco dias. Na segunda noite de viagem, encontrei uma nota em minha loja. Era uma entrevista. À tarde seguinte, enquanto os soldados montavam o acampamento, eu tinha que seguir um pequeno atalho que levava para o norte. A mensagem ia assinada pelo Janco. Examinei cuidadosamente a assinatura, tratando de


recordar se tinha visto alguma vez a caligrafia do Janco. Seria uma armadilha? Deveria ir ou ficar no acampamento, onde estava a salvo? O que faria Valek naquela situação em particular? A resposta me ajudou a formar um plano. Quando ouvi o sinal de que nos detínhamos para passar a noite, esperei a que todo mundo estivesse ocupado para deixar o claro. Quando ninguém podia me ver, tirei a capa e me pus ao reverso. Antes de partir do castelo, tinha pedido a Dilana que me desse tecido cinza, que tinha costurado ao forro de minha capa se por acaso tinha que escapar e me ocultar na paisagem invernal. Esperava que aquela improvisada camuflagem me ajudasse a ocultar minha presença quando me aproximasse do lugar da reunião. Atei a fortificação às costas e coloquei a navalha na coxa direita. Então, agarrei minha corda e meu gancho. Encontrei o atalho do norte. Em vez de ir andando por ele, procurei uma árvore adequada e enganchei minha corda entre os ramos. O primeiro que me preocupou foi o ruído que poderia fazer ao me mover entre os ramos, mas muito em breve descobri que as árvores sem folhas só rangiam levemente sob meu peso. Quando me aproximei do lugar, vi um homem alto, de cabelo escuro. Parecia inquieto e agitado. Era muito magro para ser Janco. Então, deu-se a volta. Era Rand. O que estava fazendo ali? Rodeei o claro. Ao descobrir que não havia ameaça alguma entre as árvores, baixei ao atalho, embora deixei a corda pendurando da árvore. Por último, escondi minha mochila no tronco de uma árvore. —Maldita seja —disse Rand— Acreditava que não foste vir —acrescentou. Seu esgotado rosto mostrava profundas olheiras. —E eu acreditava que Janco era o que ia estar aqui. — Queria explicar isso, mas já não há tempo, Yelena-afirmou, me olhando fixamente aos olhos— É uma armadilha! Corre! —Quantos? Onde? —perguntei, tirando a fortificação das costas. —Star e dois gorilas. Estão muito perto. Supunha-se que te guiar até aqui me reportaria o cancelamento de minha dívida —sussurrou Rand com lágrimas nos olhos. —Pois tem feito um bom trabalho —lhe espetei— Vejo que cumpriste com seu encargo. —Não! —gritou— Não posso fazê-lo!. Corre!, Maldita seja, corre!... Não! Rand me apartou para um lado. Algo me passou assobiando ao lado da orelha enquanto caía ao chão. Rand caiu a meu lado, com uma flecha cravada no coração. O sangue emanava abundantemente e empapava a camisa branca de seu uniforme.


—Corre —sussurrou— Corre... —Não, Rand. Estou cansada de correr. —Me perdoe, por favor —suplicou, me agarrando a mão. —Está perdoado. Suspirou uma vez e então deixou de respirar. O brilho de seus olhos se apagou. Cobri-lhe a cabeça com seu capuz. —Se levante —me ordenou a voz de um homem. Me apoiando em minha fortificação, obedeci. Brandamente, comecei a esfregar a madeira, encontrando rapidamente minha zona de concentração. —A zona está controlada, Capitã —disse o homem gritando para o bosque— Você não te mova —acrescentou, referindo-se a mim, enquanto me apontava com sua arma ao peito. Ouviram-se passos. O homem apartou os olhos de mim para procurar a seus companheiros. Eu ataquei. Dava-lhe o primeiro golpe nos antebraços. A mola de suspensão lhe caiu das mãos e se disparou para o bosque. O segundo golpe aterrissou na parte posterior dos joelhos, o que lhe fez cair de bruços ao chão. Dali, olhou-me com uma expressão atônita no rosto. Antes que pudesse reagir, golpeei-lhe no pescoço, lhe esmagando a traquéia. Quando olhei por cima do ombro, vi que Star e outro homem se aproximavam rapidamente ao claro. Star começou a gritar. Seu gorila tirou a espada. Eu pus-se a correr pelo atalho. Pesados passos do homem ressoavam a minhas costas. Quando alcancei a corda, arrojei o fortificação ao bosque e subi à árvore. A espada do homem me roçou as pernas. O fio cortou o tecido das calças e o tato frio do aço me animou a subir mais às pressas. Enquanto subia a seguinte árvore, lançou uma maldição. Eu me movia com rapidez pelas copas das árvores. Quando o som de seus passos ficou atrás, encontrei um lugar no que me esconder. Envolvi-me em minha capa e esperei. O gorila não demorou para aparecer. Não longe de onde eu estava, deteve-se para escutar e para examinar as copas das árvores. Os batimentos do coração se aceleraram. Quando notei que estava debaixo de mim, atirei a capa e me lancei, lhe golpeando as costas com os pés. Caímos ao chão. Eu me pus de pé antes que ele pudesse recuperar-se, então, tirei-lhe a espada das mãos com uma patada, mas ele se mostrou mais rápido do que eu tinha antecipado. Agarrou-me pelo tornozelo e me fez cair ao chão. Antes que eu pudesse reagir,


senti seu peso em cima e suas mãos ao redor do pescoço. Enquanto me golpeava a cabeça contra o estou acostumado e murmurou: —Isto é por me dar problemas! Então, começou a me apertar a garganta com os polegares. Eu comecei a lhe atirar dos braços, tratando de apartá-los. Então, recordei minha navalha. Rebusquei no bolso enquanto a vista começava a se pôr imprecisa. Nesse momento, notei o suave tato da madeira. Agarrei com força a manga, tirei a navalha e apertei o botão. O som da folha provocou medo nos olhos do homem. Antes que pudesse reagir, afundei-lhe a navalha no estômago. Com um grunhido, ele incrementou a pressão que estava aplicando à garganta. O sangue correu por meus braços, molhando minha camisa. Apesar da asfixia que tinha, levantei a navalha e enfiei outra vez. Nesta ocasião, apontei diretamente ao coração. O homem se desmoronou para diante e morreu. Com um grande esforço, apartei-me do cadáver. Sentia-me como presa em um sonho. Limpei a navalha na terra, encontrei minha fortificação e fui em busca de Star. Dois homens. Acabava de matar a dois homens. Nem sequer tinha duvidado. O medo e a raiva se instalaram no em meu peito, me rodeando o coração de uma capa de gelo. Star não tinha ido muito longe. Estava esperando no claro. Seu vermelho cabelo destacava sobre o fundo cinza do bosque. Muito em breve cairia a noite. Lançou-me um pequeno som de surpresa. Então, fixou-se no sangue que eu tinha na camisa. Quando viu que eu não estava ferida, olhou a seu redor procurando a seu gorila. —Está morto —lhe disse. Star empalideceu em seguida. —Podemos solucionar tudo isto —suplicou. —Não, não podemos. Se te deixo partir, retornará com mais homens. Se te levar a presença do Comandante, teria que responder pela morte de seus gorilas. Não fica opção. Dava um passo para ela. Tinha o corpo paralisado pelo medo. Tinha matado aos outros em defesa própria. Matar premeditadamente seria mais difícil. —Yelena, para! Dava a volta para ver quem tinha me chamado. Um dos soldados do Comandante se aproximava com a espada na mão. Deveu dar-se conta de que eu estava boa para apresentar batalha porque se deteve e embainhou sua espada. Então, tirou-se o chapéu de lã que lhe cobria a cabeça e deixou solto seu cabelo negro.


—Pensei que tinha ordens de ficar no castelo —disse ao Valek— Não suporá isso um conselho de guerra? —E eu que acreditava que seus dias de matar tinham terminado —replicou ele, examinando o cadáver do gorila de Star— A ver o que te parece isto. Se você não disser nada, eu tampouco. Assim os dois poderemos evitar a soga. Trato feito? —E ela? —Há uma ordem de arresto a seu nome. Pensou em algum momento levá-la ante o Comandante? —Não. —Por que não? O assassinato não é a única solução a um problema. Foi essa sempre sua maneira? —Minha maneira! Perdoa, senhor Assassino, que ria. Vou recordar minhas lições de história sobre como terminar com um monarca tirânico matando-o a ele e a sua família. Valek me lançou um perigoso olhar. Então, decidi trocar de tática. —Apoiei minhas ações no que acreditava que você faria se fosse objeto de uma emboscada. Valek considerou minhas palavras em silêncio durante uma incômoda porção de tempo. Star parecia horroriza com nossa discussão. Não deixava de olhar a seu redor, como se estivesse pensando escapar. —Não me conhece absolutamente —disse Valek. —Pensa-o, Valek. Se a levar ao Comandante e lhe explico os detalhes, o que me ocorreria? A expressão do rosto de Valek me valeu como resposta. —Nesse caso, foi uma sorte para as duas que eu cheguei —comentou. No momento em que Star punha-se a correr, Valek lançou um estranho assobio. A mulher pôs-se a correr pelo caminho. Eu tratei de segui-la, mas Valek me disse que esperasse. Duas formas se materializaram entre as árvores, a ambos os lados do caminho. Agarraram a Star. A mulher gritou de surpresa. —Levem ao castelo —ordenou Valek— Já me ocuparei dela quando retornar. E enviem a alguém que recolha tudo isto. Não quero que ninguém se encontre com isto. Imediatamente, os homens começaram a levar-se a Star. —Esperem —disse —

Tenho informação. Se me soltarem, direi-lhes quem

planejou danificar o tratado de comércio com Sitia.


—Não te incomode —lhe espetou Valek— Vais me dizer isso de todos os modos. Entretanto, se quer revelar o nome de seu patrão agora mesmo, poderemo-nos saltar um interrogatório muito mais doloroso mais tarde, mas te advirto que mentir só pioraria sua situação. —Kangom —disse, muito a seu pesar— Levava um uniforme de soldado do DM-8. —O general Dinno —disse Valek, sem surpresa. —Descreve a esse Kangom —ordenei, sabendo que era o outro nome do conselheiro Mogkan. Não obstante, não podia lhe dizer ao Valek como tinha descoberto esta informação. —Alto, com cabelo comprido e negro, recolhido em uma trança. Um canalha arrogante. Quase o joguei a patadas, mas me mostrou um montão de dinheiro que não pude rechaçar. —Algo mais? —perguntou Valek. Star negou com a cabeça. Valek estalou os dedos e os dois homens a levaram. —Poderia ser Mogkan? —Mogkan? Não. Brazell estava muito contente com a visita da delegação. Por que ia querer pôr em perigo o tratado? Não tem sentido. Por outro lado, Dinno se mostrou furioso com o Comandante. Provavelmente enviou a um de seus homens para contratar a Star. Tratei de encontrar uma razão pela que Mogkan queria por em perigo o tratado com Sitia, mas não achei nenhuma. Perguntei-me como poderia convencer ao Valek de que Mogkan tinha contratado a Star. Comecei a tremer. O sangue empapava o uniforme e as mãos. Sequei-me nas calças e me pus a procurar minha capa. Entretanto, antes que pudesse por a capa Valek me disse: —É melhor que deixe essas roupas aqui. Montaria-se uma boa confusão se te apresentasse para jantar coberta de sangue. Retirei minha mochila de onde a tinha guardado e, enquanto Valek não olhava, pus-me um uniforme limpo. Então, dirigimo-nos ao acampamento. —Por certo, muito bem —me disse— Vi a briga. Não estava o suficientemente perto para poder te ajudar, mas te defendeu bem. Quem te deu a navalha? —Comprei-a com o dinheiro do Star —respondi. Em parte, era verdade. Não queria colocar ao Janco em uma confusão. —Muito apropriado.


Quando chegamos, Valek se mesclou com os soldados enquanto eu me dirigia rapidamente à loja do Comandante para provar sua comida. Aquela noite, enquanto estava sentada junto ao fogo do acampamento, comecei a reagir ante o ocorrido aquela tarde. Senti uma imensa pena pelo Rand e a melancolia se apoderou de mim. Talvez seria melhor que partisse ao sul e deixar que Valek se ocupasse do Comandante e do Brazell... As dúvidas me assaltaram de repente. Estaria alguém me influenciando para que tivesse esses pensamentos? Erigi minha muralha de amparo e consegui dissipar algumas dúvidas, mas não todas. O desaparecimento de Rand não tirou o chapéu até a manhã seguinte. O maior Granten, que acreditava que se escapou, mandou uma pequena partida para buscá-lo enquanto outros íamos entrando no distrito do Brazell. O resto da viagem transcorreu sem incidentes, à exceção do turbador feito de que, quanto mais nos aproximávamos da casa, mais ausente parecia o Comandante. Tinha deixado de dar ordens ou de mostrar interesse pelo que lhe rodeava. A faísca inteligente e letal que adornava seu olhar ia desaparecendo com cada passo. Pelo contrário, eu me sentia cada vez pior. À medida que avançávamos, convencia-me mais de que tinha sido um profundo engano. Quando o pânico se apoderava de mim, refugiava-me atrás de meu muro de amparo e centrava em meus pensamentos de sobrevivência. A uma hora de caminho da casa do Brazell, o rico aroma do Crioulo flutuava quase palpável no ar. Como precaução, eu me deslizei no bosque e, depois de tomar só o imprescindível, escondi minha mochila e o fortificação em uma árvore. Quando por fim chegamos à casa, os soldados exalaram um suspiro de alívio. Já tinham entregue são e salvo o Comandante. A partir de então, poderiam descansar nos barracões até que chegasse o momento de voltar para casa. Pelo contrário, meus sentimentos eram completamente opostos. Enquanto seguia o Comandante e a seus conselheiros ao despacho do Brazell, ia custando mais respirar. Ao entrar, Brazell nos recebeu com um enorme sorriso. Mogkan o acompanhava. Coloquei em seu lugar meu escudo mental e permaneci perto da porta. —Cavalheiros, devem estar muito cansados —disse Brazell, referindo-se aos conselheiros do Comandante— Minha ama de chaves os conduzirá a seus aposentos. Enquanto os conselheiros partiam, tratei de partir com eles, mas Mogkan me agarrou pelo braço. —Ainda não —me disse— Para ti temos planos especiais.


Alarmada, olhei ao Comandante. Carecia por completo de expressão. Tinha o olhar perdido na distância. Era como uma marionete esperando que seu dono atirasse dos fios. —E agora o que? —perguntou- Brazell ao Mogkan. —Dissimularemos durante uns dias. Levaremo-lo a ver a fábrica, tal e como estava planejado. Manteremos contentes a seus conselheiros. Quando todo mundo esteja enganchado, não teremos que fingir mais. —E ela? —perguntou Brazell com satisfação. Eu me centrei na imagem de meu muro de tijolos. —Yelena —comentou Mogkan— aprendeste um truque novo. Tijolo vermelho, que vulgar. Entretanto… —Escutei um ruído, como o que pode fazer a pedra esfregando-se contra a pedra. —Há pontos débeis aqui e aqui —disse, assinalando no ar— E acredito que este tijolo está solto... O morteiro começou a desmoronar-se. Apareceram pequenos buracos em minha parede mental. —Quando tiver um momento, farei pedaços suas defesas —prometeu Mogkan. —Por que perder o tempo? —perguntou Brazell, tirando a espada—

A quero

morta. Agora mesmo. —Quieto —lhe ordenou Mogkan— A necessitamos para ter ao Valek a raia. —Mas se tivermos ao Comandante... —É muito evidente. Terá que considerar a outros sete generais. Se matarmos ao Comandante enquanto esteja aqui, suspeitarão. Jamais te converteria em seu sucessor. Valek sabe, por isso não nos servirá ameaçar à Comandante. Entretanto, quem se preocupa com uma provadora de comida? Ninguém menos Valek. Se ela morrer aqui, os generais acreditarão que está justificado. Mogkan se inclinou sobre o Comandante e lhe sussurrou ao ouvido. O Comandante abriu sua maleta, tirou uma cigarreira e a entregou ao Mogkan. Meu antídoto. —A partir de agora, terá que vir para mim para que te dê seu antídoto —disse Mogkan, sorrindo. antes de que eu pudesse reagir, alguém bateu na porta. Entraram dois soldados sem pedir permissão.


—Estes são suas escoltas, Yelena. Ocuparam-se bem de ti —comentou. Então, voltou-se para os soldados— Não necessita que lhe deem um passeio para que o conheça tudo. Nossa infame Yelena voltou para casa.

Capítulo 29 Examinei aos dois soldados e comprovei que estavam muito bem armados. Toquei a navalha através do bolso, mas decidi que não podia fazer nada. Esperaria até que tivesse mais possibilidades a meu favor. Os guardas indicaram que os acompanhasse. Lancei um último olhar ao Comandante, mas nada parecia ter trocado em sua atitude. Quando os guardas me levaram a uma pequena habitação da asa de convidados em vez da as celas do porão, senti uma pequena quebra de onda de esperança. Passei em uma delas uma semana depois de matar ao Reyad e odiava a idéia de voltar para aquelas celas fedorentas e infestadas de ratos. Depois que fecharam a porta com chave, tirei os punções com os que tinha recolhido o cabelo. A fechadura era muito básica e não demoraria muito em abri-la. Entretanto, antes de forçá-la, decidi utilizar um punção que tinha um pequeno espelho na ponta para olhar por debaixo da porta. Pude ver que havia um par de botas a cada lado da porta. Os guardas estavam montando guarda diante de minha habitação. Dirigi-me à janela. Minha habitação estava no segundo andar. Se me sentia desesperada, podia saltar, mas no momento decidi esperar. No dia seguinte, me permitiu sair de minha habitação tão somente para provar as comidas do Comandante. Depois do café da manhã, Mogkan me mostrou uma porção de meu antídoto. —Se quiser isto, deve responder a uma pergunta. —Isto é uma fanfarronada —repliquei— Se me quisesse morta, não estaria de pé agora mesmo. —Asseguro-te que se trata só de uma situação temporária. Simplesmente te ofereço uma eleição. A morte por Pó de Mariposa é larga e feia enquanto que, por exemplo, morrer degolada é só um momento de dor. —Qual é a pergunta?


—Onde está Valek? —Não sei —disse. Era certo. Não havia tornado a vê-lo da briga do bosque. Mogkan considerou minha resposta. Então, aproveitando sua distração, arrebateilhe o vidro e tomei de um gole. O rosto do Mogkan avermelhou de fúria. Agarrou-me pelos ombros e me empurrou para os guardas. —Levem a sua habitação. Ali me perguntei o que estaria tramando Valek. Duvidava que estivesse ocioso. Além disso, as perguntas do Mogkan confirmavam minhas suspeitas. Durante minhas visitas ao Comandante nos dias sucessivos, comecei a reconhecer que minha presença formava parte do espetáculo do Mogkan para evitar que os conselheiros do Comandante suspeitassem. Brazell, por sua parte, fingia que o Comandante seguia dando ordens. Durante a visita à fábrica, me permitiu acompanhar ao grupo. Isto me surpreendeu quase tanto como o fato de que nenhum dos conselheiros do Comandante protestasse de que estivesse fabricando Crioulo em vez de penso para os animais, tal e como tinha refletido em sua permissão. Limitavam-se a comer barras de Crioulo e lhes bastava assentindo a tudo e dar a razão ao Brazell. Os grãos se torravam em enormes fornos. Quando estavam preparados, transportavam-se a outra zona em que uns trabalhadores partiam os grãos e tiravam uma espécie de broto marrom escuro. Uns enormes paus de macarrão convertiam os brotos em uma massa, que se mesclava com açúcar, leite e manteiga em enormes contêineres. Outros trabalhadores removiam constantemente a mescla até que esta se convertia em um líquido suave e espesso, que se vertia a seguir em moldes retangulares. Apesar dos deliciosos aromas que se respiravam ali, a fábrica era um lugar triste e sombrio. Durante a visita, examinei cuidadosamente as zonas de trabalho para comprovar que não se vertiam ingredientes venenosos ou aditivos. Não encontrei nada. Quando o grupo retornou à casa, observei que as animadas expressões dos conselheiros desapareciam, para ver-se substituídas pelo mesmo olhar perdido que adornava o rosto do Comandante. Isso devia significar que existia um vínculo entre o Crioulo e o fato de sucumbir ante a magia do Mogkan. Certamente, o fingimento do Mogkan e Brazell terminaria quando o primeiro tivesse o controle absoluto das mentes dos conselheiros. Quando isso


ocorresse, meu lugar de alojamento pioraria notavelmente. Aquela noite, arrojei minha capa pela janela e bati na porta imediatamente. Quando os guardas a abriram, disse: —Necessito um banho. Sem esperar resposta, saí decididamente ao corredor. Os guardas me seguiram. Nos banheiros, um guarda me deteve no corredor enquanto seu companheiro olhava no interior. Quando se assegurou de que estaria sozinha, deixaram-me passar. No interior, dirigi-me à parede mais afastada da porta. Ali, oculta à vista de todos, havia outra entrada. Os guardas trabalhavam ali, mas eu tinha crescido naquela casa. Conhecia todos seus rincões, à exceção da suíte do Brazell e seu escritório. Tratei de abrir a porta e me encontrei com a primeira surpresa. Estava fechada com chave. Não obstante, não supunha nenhum problema. Tomei minhas punções e a fiz saltar com facilidade. Então, descobri uma segunda e desagradável surpresa. Um dos guardas me esperava ao outro lado. O soldado sorriu. Então, aproveitei a situação e lhe dava uma patada na virilha. Então, pus-se a correr pelo corredor. Saí pela porta sul, recolhi minha capa e me dirigi ao oeste para recuperar minha mochila e minha fortificação. A brilhante luz da lua iluminava o atalho, mas meu verdadeiro caminho não ficava tão claro. Sabia que não podia ajudar ao Comandante encerrada em uma habitação, mas não estava segura do que podia fazer do lado de fora. Precisava falar com o Valek. Como me pareceu que seria muito arriscado ir aos barracões, subi às árvores. Quando soubesse que tinha escapado, buscaria-me ali. Quando cheguei à zona em que se estava acostumado a instalar o festival de fogo, detive-me. Amassei bem em minha capa e me apoiei contra uma árvore. Em uma ocasião escutei o latido dos cães e gritos longínquos, mas ninguém se aproximou de minha improvisada cama. Não conseguia dormir. Tinha muito frio e me sentia muito nervosa. Para me tranqüilizar, imaginei os festivais de fogo que se celebraram ali. Perdi-me nesses pensamentos, imaginando que voltava a assistir a eles. Tão vivos foram minhas lembranças que desci da árvore e comecei a realizar minha rotina de exercícios, o que me ajudou a entrar em calor. De repente, dava-me conta de que podia me pôr em contato com a natureza que me rodeava e inclusive sentir a quão animais havia no bosque. Vi como um mocho seguia desde uma das árvores os movimentos de um camundongo de campo. Uma mulher, que estava acocorada detrás de uma pedra, observava-me. Me colocar no pensamento de Irys me resultou tão fácil como me pôr um par de luvas. Seus pensamentos fluíam dentro de mim como a seda. Eu recordava a sua irmã menor, Lily e ansiava retornar a Sitia com sua família e


não estar na horrível e fria Ixia. A situação no norte se estava fazendo perigosa. Como maga professora, não podia consentir o abuso do poder que se estava produzindo naquela zona. Kangom, ou Mogkan, estava produzindo Theobroma em alarmantes quantidades. Também tinha conseguido intensificar seu poder. “Yelena, o que está fazendo em minha mente?” “Não estou segura de como cheguei até aqui”. —”Ainda não te deste conta? Projeta a mente quando luta. Por isso, instintivamente, antecipa os movimentos de seus oponentes. Senti-te no castelo quando lutava com seus amigos. Agora que aprendeste a refrear seu poder, deste o passo lógico de expandi-lo além da zona que te rodeia...” Minha surpresa rompeu nosso vínculo. Naquele momento, Irys saiu do bosque. —Significa isso que não vou sair ardendo? —perguntei. —Estabilizaste-te, mas não te fará menos perigosa a menos que receba um adestramento adequado. Não pode perder seu potencial. Vêem o sul agora. Seus perseguidores estão longe daqui... —O Comandante... —Está enfeitiçado. Não há nada que possa fazer. Certamente perdeu a mente para sempre. Mogkan lhe esteve dando Theobroma. Cheirei-o assim que cheguei. —Theobroma? Refere-te ao Crioulo, esse doce de aspecto marrom que Brazell fabrica? —Acredito que sim. Abre a mente às influências mágicas. Relaxa as defesas mentais e permite o fácil acesso à mente de uma pessoa. Usamo-lo como ferramenta para controlar situações nas que um aprendiz de mago está perto da substância. O Comandante tem uma personalidade muito forte, muito resistente às sugestões da magia, mas a Theobroma rompe essas barreiras, o que ajuda a um estudante quando está aprendendo. Utilizá-lo para fazer-se com o controle da mente do Comandante é como se fosse uma violação. Inclusive com a Theobroma, um mago não deveria poder alcançar a mente do Comandante desde esta distância, mas Mogkan o tem feito. Encontrou um modo de acrescentar seu poder. Acredito que a visita que Mogkan realizou ao castelo teve por objeto encerrar-se na mente do Comandante para poder tirá-lo dali. —O que podemos fazer para romper esse vínculo? —Matar ao Mogkan, mas será difícil. É muito poderoso. —Há alguma outra maneira?


—Bloquear o fornecimento de poder do Mogkan poderia servir. Seguiria tendo sua magia, mas não seria tão poderosa. —Como podemos fazê-lo? —Acredito que o que fez foi recrutar a uma série de magos para reunir seu poder em si mesmo. Ou pode que tenha encontrado o modo de absorver mais poder sem romper o equilíbrio... Diamantes —acrescentou, depois de pensá-lo um momento. —Diamantes? —perguntei, atônita. —Sim. Resulta muito caro, mas os diamantes reúnem e acumulam o poder como as brasas guardam o calor. Talvez esteja utilizando diamantes para potencializar sua magia. Necessitaria um círculo de diamantes do tamanho de um homem, o que não resulta fácil de ocultar. Se pudéssemos encontrar este círculo, poderíamos bloquear seu poder ou, ao menos, interrompê-lo o tempo suficiente para que você pudesse despertar o Comandante. —E se a fonte é um grupo de magos? Como poderia reconhecê-los? —Desgraçadamente, Ixia não dispõe de um uniforme para os magos —comentou Irys, com a voz cheia de sarcasmo— Em vez de buscá-los, poderíamos procurar uma sala vazia com o desenho de uma roda de carro pintado no chão. Para vincular o poder mágico, cada mago deve estar perfeitamente alinhado ao redor de um círculo. —Posso revistar a casa, mas necessitarei ajuda. Necessito ao Valek. —O que precisa é um milagre. —Pode dirigir ao Valek para cá? —Já está a caminho. Os dois forjaram um vínculo muito forte, embora não sei se é de origem mágica.... —comentou Irys, franzindo o cenho— É melhor que vá antes de que ele chegue. Se descobrir a fonte do poder extra do Mogkan, entoa meu nome mentalmente em um cântico. Eu te escutarei porque nós também criamos um vínculo. Tratarei de te ajudar com o Comandante, mas não te prometo nada. Vou atrás do Mogkan. Com isso, Irys desapareceu. Enquanto esperava ao Valek, tratei de pensar no modo de encontrar a fonte de poder do Mogkan. Efetivamente, tal e como Irys havia dito, necessitaria um milagre. Para me distrair enquanto esperava, olhei para meu redor. Tinham passado dois anos da última vez que estive ali. Recordei que tinha enterrado em alguma parte a medalha que ganhei na competição de acrobacia para que não caísse nas mãos do Reyad. Como prova, tratei de utilizar meus poderes mágicos para encontrá-la. Percorri o terreno palmo a palmo. Estava começando a me aborrecer quando, de repente, as novelo de meus pés


ficaram ao vermelho vivo. Quando segui andando, esfriaram-se. Ao voltar para lugar no que tinha estado antes, esquentaram-se de novo. Tirei o gancho da mochila e comecei a escavar. Meus esforços deixaram ao descoberto um pouco de tecido. Segui escavando e, muito em breve, voltei a ter entre minhas mãos a apreciada medalha. Tinha perdido o brilho e estava suja. A cinta estava rasgada e manchada. Apertei a medalha contra meu peito e senti o calor que emanava dela, como se fosse um amuleto. Limpei-a um pouco e pendurei ao pescoço, junto com a mariposa do Valek. —Não é o melhor esconderijo, não te parece? Estão lhe procurando. Por que fugiste? Rapidamente, contei ao Valek tudo o referente ao Comandante, ao Mogkan, à fábrica e aos conselheiros, esperando que ele tirasse as mesmas conclusões que eu. —Quer dizer, está utilizando o Crioulo para fazer-se dono de suas mentes. Entretanto, de onde tira o poder? —Não sei. Temos que registrar a casa. Eu cresci nela. Conheço-a bem. Quando começamos? —Agora. Ficam quatro horas até o alvorada. O que é exatamente o que estamos procurando? Quando lhe contei tudo o que Irys me tinha explicado sem lhe revelar a fonte que me tinha contado isso, Valek franziu o cenho, como se quisesse me interrogar a respeito. Entretanto, guardou silêncio e nos dirigimos aos barracões. Eu esperei fora enquanto vestia sua malha negra. Tirou uma camisa negra para que eu pusesse sobre a vermelha de meu uniforme. Além disso, levava um discreto abajur sem acender. Como minha capa resultaria algo molesta, escondi-a entre os matagais. Encontramos uma porta perto da asa dos serventes. Valek acendeu o abajur e deixou que escapasse só um pequeno raio de luz. Já no interior da casa, eu tomei a dianteira. Meu interesse principal se centrava na zona dos experimentos do Reyad, sobre tudo em seu laboratório. Dispunha de uma asa inteira e havia portas que sempre tinha tido fechadas com chave durante o tempo no que eu fui seu rato de laboratório. Enquanto procurávamos, os horrores de antigamente se apoderaram de mim. Entramos no laboratório e a só visão dos instrumentos que penduravam das paredes me acelerou os batimentos do coração. A sala parecia uma câmara de tortura em vez de um lugar para experimentos. Sentia-me como um animal apanhado. Queria sair correndo, fugir. Por


que tinha tido que levar ao Valek ali? Depois de tudo, certamente o círculo de poder estava perto das habitações do Mogkan, não ali. Valek não havia dito nenhuma palavra desde que acendeu o abajur. No corredor que havia frente à porta do dormitório do Reyad, senti que uma força física me impedia de entrar. Os músculos me tremiam. Um suor frio me cobria todo o corpo. Eu esperei fora enquanto Valek entrava. Não queria voltar a ver o diabólico baú no que Reyad guardava seus “brinquedos”. Se o queimava, cessariam meus pesadelos? —Não se eu posso impedi-lo —disse o fantasma do Reyad, materializando-se a meu lado. Dava a volta muito sobressaltada. Sem que pudesse evitá-lo, um grito me escapou dos lábios. —Acreditava que tinha desaparecido para sempre —repliquei. —Jamais, Yelena. Sempre estarei a seu lado. Meu sangue te manchou a alma. Não tem possibilidade alguma de lavá-la. —Eu não tenho alma. —Sua alma está coberta com o sangue de suas vítimas, por isso não pode vê-la. Quando morrer, essa pesada essência manchada de sangue se afundará no fundo da terra e ali arderá por toda a eternidade por seus crimes. —Diz-o a voz da experiência... Naquele momento, Valek saiu da habitação do Reyad. Com o rosto pálido como a morte, olhou-me durante um momento com uma expressão de horror tal que me perguntei se teria ficado mudo. Por fim, fechou a porta e passou ao lado do fantasma sem vê-lo e se deteve frente à seguinte porta, que estava fechada com chave. Ali, inclinou a cabeça e cobriu o rosto com uma mão. Eu me esqueci do Reyad e segui ao Valek. Continuamos com nossa busca, mas resultava evidente que, à exceção do laboratório, a asa estava completamente abandonada. Ficavam três salas por examinar. O conteúdo de uma delas reclamou toda minha atenção. Em seu interior, dúzias de mulheres e uns quantos homens se encolheram ao notar o raio de luz do abajur do Valek. O cabelo gordurento obscurecia seus sujos rostos. Seus emaciados corpos estavam só talheres com farrapos. Nenhum deles falou nem gritou. Horrorizada, vi que estavam encadeados ao chão. Em círculos. Um círculo exterior e dois círculos interiores com linhas pintadas entre eles. Quando Valek e eu entramos na sala, o fedor de corpos sujos e de excrementos se apoderou de nós. Valek começou a lhes fazer perguntas, que se responderam com silêncio.


Eu comecei a reconhecer alguns dos rostos. Tinham vivido no orfanato comigo. Eram as garotas e meninos que se graduaram” e que se supunha que partiram da casa. Uma moça, de cabelo vermelho, fez-me gritar de dor. Os olhos de Carra não mostraram sinal algum de inteligência enquanto lhe acariciei o ombro e sussurrei seu nome. A menina alegre que eu tinha conhecido se converteu em uma quebrada mulher, vazia e sem espírito. —Meus alunos —disse Reyad, voltando a aparecer— Os que não falharam... —E agora o que? —perguntei ao Valek com voz tremente. —Estão presos —respondeu Mogkan. Valek e eu nos demos a volta ao uníssono. Mogkan estava na porta. Valek se lançou contra ele com os olhos cheios de fúria. Antes que pudesse alcançá-lo, Mogkan se tornou a um lado, provocando que Valek caísse ao chão. Eu me apressei a sair da sala para ajudá-lo. Como um covarde, Mogkan estava detrás de oito guardas. As pontas das espadas de todos eles se dirigiam ao peito do Valek, a poucos centímetros de sua pele.


Capítulo 30 Enquanto as pontas das espadas cravavam em minhas costas, observei ao Valek. Esperava que ele ficasse em ação durante a miserável viagem para as celas do Brazell. Esperei que ficasse em movimento enquanto nos despiam e nos revistavam, tendo que suportar a humilhação do contato com aquelas ásperas mãos enquanto confiscavam minha mochila, minha navalha e meu colar. Perder minha roupa não me doeu tanto como perder a mariposa do Valek e meu amuleto. Continuando, levaram-nos a prisão e nos colocaram em celas contíguas. Contive o fôlego ao escutar o som da fechadura. Os soldados nos atiraram a roupa através dos barrotes antes de partir, nos deixando perdidos na escuridão. Eu me vesti rapidamente. Ali estava de novo. Um pesadelo feito realidade. Aquele aroma rançoso me saudou de novo. O ar estava tão viciado que demorei um momento em me dar conta de que fomos os únicos ocupantes. —Valek? —O que? —Por que não enfrentou aos guardas? Eu teria te ajudado. —Adula-me que confie tanto em mim, mas oito homens armados e suas correspondentes espadas me apontando ao peito é muito. Quatro, talvez, mas oito... —Forçamos as fechaduras para escapar ? —Isso seria fenomenal, se tivéssemos algo com o que fazê-lo... Era esse seu destino? —perguntou, depois de uma pequena pausa— Se não tivesse matado ao Reyad, teria terminado encadeada ao chão? A imagem daqueles cativos voltou a me atormentar. Pela primeira vez me alegrei de ter acabado com o Reyad. Efetivamente, Mogkan absorvia o poder daquelas pessoas. Brazell, Reyad e Mogkan deviam procurar pessoas com potencial mágico. Então, enquanto experimentavam com os escolhidos, Mogkan lhes apagava a mente e os convertia em quebrasse das que podia extrair seu poder. —Acredito que Brazell e Reyad queriam me reduzir a esse estado mental, mas eu resisti —disse. Então, expliquei-lhe minha teoria sobre os cativos ao Valek. —Me conte o que te passou. Depois de uma pausa, a história começou a fluir de meus lábios, ao princípio em retalhos, mas logo em toda sua extensão. As lágrimas me caíam abundantemente pelo rosto.


Não economizei nenhum detalhe nem tratei de lhe tirar horror às partes mais desagradáveis. Contei ao Valek todo o vivido durante aqueles dois anos de horror, as humilhações, os torturas, os jogos cruéis e, por último, a violação que precedeu ao assassinato. Assim, purguei-me do sangue do Reyad que cobria minha alma. Senti-me bem por isso. Valek permaneceu em silêncio. Por fim, sua voz cristalizou e disse: —Brazell e Mogkan serão destruídos. Eu não sabia se tratava-se de uma promessa ou de uma ameaça. Então, como se tivessem escutado seus nomes, Brazell e Mogkan se apresentaram nas masmorras. Escoltavam-os quatro guardas com abajures acesos. —Me alegro de voltar a ver-te aonde deve estar —me disse Brazell— Hei sentido a tentação de molhar as mãos com seu sangue, mas Mogkan me informou do destino que te espera se não receber seu antídoto —acrescentou, sorrindo de satisfação— Ver como a assassina de meu filho se retorce de dor será muito melhor. Deverei te visitar mais tarde para escutar seus gritos. Se me suplicar isso, talvez te ajude a morrer, embora só seja para poder respirar o aroma quente de seu sangue. Quanto a ti, Valek, desobedecer uma ordem direta se castiga com a pena capital. O Comandante Ambrose assinou sua pena de morte. Sua execução se levará a cabo amanhã ao meio-dia. Acredito que farei que me dê sua cabeça. Converterá-te em um bonito elemento de decoração para meu escritório quando me converter em Comandante. Entre risadas, os dois partiram. A escuridão em que ficamos perdidos resultou mais pesada que antes. As emoções que sentia passavam do terror ao desprezo mais absoluto. Dava uma patada aos barrotes da cela e comecei a golpear as paredes. —Yelena, te tranqüilize. Dorme um pouco. Necessitará as forças mais tarde. —Sim, claro. Todo mundo deveria estar descansado para morrer —repliquei. Então, lamentei minha dureza ao recordar que Valek também enfrentava à morte—

O

tentarei. Deitei-me na suja palha, sabendo que não poderia descansar. Como podia alguém dormir em suas últimas horas de vida? Aparentemente, eu. Despertei com um grito. O pesadelo de ratos se transformou em realidade. Tinha um enorme sobre a perna. Dava-lhe uma patada que o mandou contra a parede. —Dormiste bem? —perguntou-me Valek.


—Melhor em outras ocasiões. Meu companheiro de sonhos roncava —brinquei— Quanto tempo estive dormindo? —Resulta difícil sabê-lo sem o sol, mas eu diria que está a ponto de ficar sol. Eu tinha recebido minha última dose de antídoto no dia anterior pela manhã. Isso significava que tinha até o dia seguinte pela manhã, mas os sintomas começariam certamente muito antes. —Valek, tenho uma confissão... De repente, os músculos do estômago contraíram com tal severidade que me senti como se alguém estivesse tratando de me arrancar ele. —O que sente? —Uma forte dor de estômago. É o começo? —Sim. Começam muito lentamente, mas muito em breve as convulsões serão contínuas. Ao notar outra forte dor, me acocorei no chão. Quando passou, preparei-me sobre a palha do chão, esperando o seguinte assalto. —Valek, fale comigo. Necessito algo que me distraia. —Pois te direi uma coisa que talvez te console. Não existe nenhum veneno chamado Pó de Mariposa. —Como diz? —Vais querer morrer, a desejar que já estivesse morta, mas, ao final, seguirá com vida. —Por que me diz isso agora? —A mente controla ao corpo. Se acredita que vais morrer, teria morrido só por essa crença. —E por que esperaste até agora para me dizer isso? Espetei-lhe, cheia de fúria. —Uma decisão tática. Tratei de compreender ao Valek. Decidi que, talvez, durante o dia nos teria apresentado a oportunidade de escapar. Nesse caso, Valek não teria tido que me contar a verdade. —E as retorções que sinto? —É síndrome de abstinência. —Do que?


—De seu suposto antídoto. É uma beberagem muito interessante. Eu o utilizo para provocar os vômitos. À medida que passa o tempo, produz fortes dores de estômago que duram um dia inteiro. Se beber com continuidade, os sintomas não se manifestam até que se deixa de tomar. —Como se chama? —perguntei, recordando os livros que tinha estudado. —Susto Branco. —E o Pó de Mariposa? —quis saber, mais tranqüila dado que conhecia que não ia morrer. Este fato me ajudou a suportar os dores mais estoicamente. —Não existe. Eu o inventei. Soava-me muito bem. Necessitava algo para evitar que os provadores de comida escapassem sem ter que utilizar guardas nem portas fechadas. —Sabe o Comandante que é uma mentira? —inquiri. Se ele sabia, Mogkan também estaria à corrente. —Não. Ele acredita que foste envenenada. Durante aquela noite, resultou-me difícil acreditar que não tinha nenhum veneno no corpo. As dores resultavam insuportáveis. Não fazia mais que percorrer a cela, gritando e vomitando. Por fim, o esgotamento me levou a ficar adormecida. Despertei deitada sobre o chão da cela. Tinha o braço direito estendido através dos barrotes. Surpreendeu-me mais o fato de que estivesse na mão do Valek do que estivesse viva. —Yelena, encontra-te bem? —perguntou ele, com certa preocupação. —Acredito que sim. De repente, a porta da prisão se abriu com um forte estrondo. —Te faça a morta —me sussurrou Valek, me soltando a mão— Tenta que se aproximem de minha cela —acrescentou, enquanto dois guardas entravam na masmorra. —Maldita seja! O aroma que há aqui é pior que o das latrinas depois da festa da cerveja —disse um dos guardas. —Crê que está morta? —perguntou o segundo. Tinha o rosto contra a parede, mas fechei os olhos de todos os modos e contive o fôlego enquanto a luz do abajur me percorria o corpo. O guarda se inclinou para me tocar a mão esquerda que, ao não ter estado em contato com a do Valek, estava geada.


—Fria como a ferrugem do tigre de neve. Tiremos a daqui antes de que comece a apodrecer-se. Se cre que agora cheira mau... A porta da cela se abriu. Eu me concentrei em me fazer de morta enquanto o guarda me tirava pelos pés. Quando passávamos por diante da cela do Valek, agarrei os barrotes com as mãos aproveitando a penumbra que reinava a nível do chão. —Espera um momento. Enganchou-se. —Com o que? —perguntou o que levava o abajur. —Não sei. Retorna aqui com essa maldita luz. Eu me soltei e enganchei o braço entre os barrotes da cela. —Lhe aparte —disse o guarda ao Valek. Começou a tirar o braço com força. Então, soltou um grunhido. Abri os olhos a tempo para ver como a luz do abajur se apagava quando esta caiu contra o chão. —Que diabos? —exclamou o que tinha arranca-rabo pelos pés. Separou-se dos barrotes do Valek. Eu dobrei as pernas e me aproximei de suas botas. Ao sentir que eu lhe agarrava os tornozelos, gritou com força. Então, tropeçou e caiu. O horrível som do osso rompendo-se contra o chão não foi o que eu esperava. Pus-me de pé. Ao escutar o tinido das chaves, voltei-me e vi o Valek acendendo o abajur. O outro guarda estava apoiado contra os barrotes. Tinha a cabeça colocada num ângulo pouco natural. Eu olhei ao outro soldado e vi que tinha quebrado a cabeça contra o chão. Ao ver o enorme atoleiro de sangue, pensei que tinha matado a outro homem. Comecei a tremer. Tinha-me convertido em uma assassina sem coração? Sentia Valek remorsos quando tirava uma vida? Tão eficaz como sempre, Valek tirou as armas aos soldados mortos. —Espera aqui —me ordenou. Então, abriu a porta principal das masmorras e saiu. Escutaram-se gritos e o som de uma briga. Não havia culpabilidade nem remorso algum no caso do Valek. Ele fazia o que tinha que fazer para ganhar. Quando me indicou que me reunisse com ele, vi que tinha o rosto, o peito e os braços manchados de sangue. Havia três guardas, ou inconscientes ou mortos, tombados sobre o chão. Minha mochila estava sobre uma mesa, sobre a qual estavam pulverizados todos seus conteúdos. Recolhi tudo enquanto Valek abria a porta que ficava para alcançar a liberdade. Quando tive a mariposa e meu amuleto pendurados do pescoço, senti-me muito otimista. —Maldita seja...


—O que ocorre, Valek? —O Capitão deve ter a única chave desta porta. Abrirá-a quando chegar o momento de fazer a mudança de guarda. —Prova com estes —lhe disse, lhe entregando minhas punções. Ele sorriu. Rapidamente abriu a fechadura e apareceu ao exterior. —Perfeito. Não há guardas. Vamos —sussurrou. Então, agarrou-me pela mão e deu a volta do que significava nossa única saída. Conduziu-me à prisão, detendo-se para deixar completamente aberta a porta das celas. —Está louco? —perguntei-lhe, ao ver que me levava a última cela— A liberdade não está por aqui. —Confia em mim. Este é o lugar perfeito para nos esconder. Muito em breve descobrirão o ocorrido e enviarão partidas de busca por toda parte. Quando todos os soldados tenham abandonado a casa, sairemos daqui. Até esse momento, esconderemo-nos. Depois de apagar o abajur, fez-me deitar sobre a palha. Eu me acocorei de flanco, de costas a ele. Então, Valek nos cobriu com palha e me tomou entre seus braços. Eu me estiquei ao notar o contato, mas seu calor corporal me fez entrar em calor e muito em breve me relaxei. A comoção que se produziu quando chegou o conhecimento de nossa fuga foi ensurdecedora. Escutavam-se vozes e gritos por toda parte. Organizaram-se partidas de busca, mas Brazell e Mogkan não pareciam de acordo sobre que direção deviam tomar. —Valek provavelmente se retirará a um território que conheça bem —afirmou Brazell. —Entretanto, o sul é o mais lógico. Nós temos o Comandante. Não podem fazer nada. Fogem para salvar a vida. Tomarei um cavalo e registrarei o bosque com minha magia. Quando a prisão ficou em silencio por fim e esteve vazia durante umas horas, eu comecei a me sentir inquieta. —Podemos partir já? —Ainda não. Acredito que ainda é de dia. Esperaremos até que escureça. Para ajudar a que passasse o tempo, perguntei ao Valek como tinha começado sua relação com o Comandante. Depois de uma larga pausa, durante a qual me arrependi de minha curiosidade, ele tomou a palavra. —Minha família vivia na província do Icefaren, antes que esta adotasse o nome do DM-1. Um inverno particularmente duro, provocou que a casa que albergava o negócio de


peles de meu pai desmoronasse, lhe destroçando todas suas ferramentas. Necessitava outras para poder seguir trabalhando, mas os soldados que vieram a minha casa para recolher o dinheiro dos tributos não escutaram as razões. Naquela época, eu só era um menino, mas tinha três irmãos maiores. Todos eram fortes e grandes. Quando meu pai disse aos soldados que se pagava os impostos não teria dinheiro para dar de comer a sua família, eles mataram a meus irmãos. Puseram-se a rir e disseram a meu pai que já tinha o problema solucionado porque tinha três bocas menos que alimentar. Naturalmente, eu queria me vingar, mas não dos soldados. Eles só eram mensageiros. Eu queria ao Rei. O homem que tinha permitido que seus soldados assassinassem a meus irmãos em seu nome. Aprendi a brigar e estudei a arte de matar até que me converti em um homem invencível. Comecei a viajar e utilizei minhas habilidades para ganhar dinheiro. Os da classe alta eram tão corruptos que me pagavam para matar-se uns aos outros. Então, encarregaram-me que matasse a um jovem chamado Ambrose, cujos discursos incitavam à rebelião e que estavam pondo muito nervosos à realeza. Tinha desaparecido com um exército cada vez mais numeroso e realizava operações secretas contra a monarquia. O pagamento que me deram para matar ao Ambrose era muito significativo. Tendi-lhe uma emboscada, esperando que poderia matá-lo antes de que se desse conta. Entretanto, ele me parou o golpe e me encontrei lutando para salvar a vida. Quando perdi, em vez de me matar, Ambrose me gravou uma letra c no peito com minha própria faca, por certo, o mesmo que usei para matar ao Rei. Então, Ambrose se declarou meu Comandante e anunciou que eu trabalhava para ele. Estive de acordo e lhe prometi que se me facilitava a aproximação ao Rei para que eu pudesse matá-lo, seria-lhe leal para sempre. Ao longo de todos estes anos, vi-o ir alcançando seus objetivos um a um sem excessos nem violência. O poder e a avareza não conseguiram lhe corromper. É muito leal aos seus e não houve ninguém no mundo ao que apreciasse mais. Até agora. Eu contive o fôlego. Tinha sido uma pergunta muito singela. Jamais teria esperado uma resposta tão íntima. —Yelena, estiveste me voltando louco. Causaste-me consideráveis problemas e pensei em te tirar a vida em duas ocasiões desde que te conheço —confessou. O fato de sentir seu fôlego contra a orelha me provocou um calafrio pelas costas— Entretanto, te colocaste muito dentro e me roubaste o coração. —Isso parece mais um veneno que uma pessoa —disse. Sua confissão tinha me pego de surpresa e emocionado de uma só vez.


—Isso. Envenenaste-me —sussurrou com a voz rouca, dando a volta para me pôr cara a cara com ele. Antes de que eu pudesse dizer nada mais, beijou-me. Um desejo reprimido durante muito tempo cobrou vida. Abracei-o com força e lhe devolvi o beijo com idêntica paixão. Minha resposta foi uma deliciosa surpresa. Tinha temido que, depois dos abusos do Reyad, o corpo sentisse pânico e repulsão ante a cercania de um homem. Não foi assim. O som distante da música vibrou no ar. Pouco a pouco, a mágica harmonia foi acrescentando seu tempo e nos cobriu como se fosse uma cálida manta. Esquecemo-nos da pressão e da suja palha. Àquele nível, fomos companheiros, iguais. Nossas almas se uniram. Seu prazer era meu êxtase. Meu sangue começou a bombear seu coração. O gozo em estado puro só se conseguia em pequenos retalhos, mas Valek e eu estávamos dispostos a voltá-lo para tentar. Tínhamo-nos fundido, tínhamo-nos convertido em um. Eu entesourava sua essência e gozava com o fato de sentir seu corpo dentro do meu. Valek tinha preenchido o vazio que havia em meu coração com luz e alegria. Embora estávamos tombados sobre suja palha e enfrentávamos a um futuro incerto, um profundo zumbido de felicidade vibrava por todo meu corpo.


Capítulo 31 A realidade e o fedor das celas entremeteu em nossa felicidade. Tinha escurecido. —Vamos —disse Valek, me pondo de pé. —Onde? —perguntei enquanto ajustava o uniforme. —À habitação do Comandante para que possa voltar a nos levar ao castelo. —Isso não servirá de nada. —Por que não? —perguntou Valek. —Assim que o toque, Mogkan saberá —respondi, explicando o vínculo que o mago tinha com ele através da utilização do Crioulo. —Como podemos romper esse vínculo? Tinha chegado o momento de lhe falar de minha magia. Sentia-me enjoada, como se estivesse nos limites do mundo. Respirei profundamente e relatei os encontros e as conversações que tinha tido com o Irys e como ela poderia nos ajudar. —Confia nela? —Sim, Valek. —Há algo mais que não me haja dito? A cabeça começou a me dar voltas. Tinham ocorrido tantas coisas... A morte ainda era uma possibilidade muito real. Queria que Valek soubesse o que sentia. —Quero-te. Valek me tomou entre seus braços. —Meu amor foi teu no festival de fogo. Se esses gorilas lhe tivessem matado, a vida não teria sido igual para mim. Nem desejava nem esperava que ocorresse isto, mas não pude resistir a ti. Agora, vamos. Antes de sair ao corredor, trocamo-nos de uniforme na sala de guarda. Embelezados com o verde e negro dos soldados do Brazell, esperávamos evitar que nos descobrissem. Então, retornamos aos barracões para que ele pudesse recolher algumas armas. Tal e como havia predito, estavam vazios. Todos os soldados tinham saído para nos buscar. Fui recolher minha capa e enquanto esperava, comecei a invocar a Irys. Necessitávamos um plano de ataque. De repente, escutei gritos e maldições procedentes do interior do barracão. Entrei rapidamente e vi o Ari e ao Janco apontando ao Valek com suas espadas. —Quietos —disse.


Os dois guardaram suas armas e me abraçaram com força. —Acreditávamos que Valek se escapou sem ti —disse Ari. —Não deveriam estar em uma dessas partidas de busca? —perguntou Valek, enquanto tirava uma bolsa negra de debaixo de um beliche. Ficou uma malha cor marfim com numerosos bolsos. —Estávamos muito doentes —comentou Janco, com seu melhor sorriso. —Como? —perguntei. —Resultava tão evidente que os delitos que lhes acusava eram inventados que nos negamos a tomar parte na busca —explicou Janco. —Isso é insubordinação —comentou Valek, tirando uma comprido faca e vários dardos de sua bolsa. —Disso se tratava precisamente. O que terá que fazer para que lhe prendam e lhe levem às masmorras? Eu olhei ao Janco completamente atônita. Tinham estado dispostos a enfrentar-se a uma corte marcial com tal de me ajudar. Dizia muito a sério o que me tinha escrito sobre a navalha. —Que direção tomaram? —perguntou Valek enquanto metia facas em vários bolsos e se colocava o cinturão que sujeitava sua espada e sua adaga. —Principalmente ao sul e ao leste, embora alguns foram para o norte e o oeste — replicou Ari. —Cães? —Sim. —E a casa? —Um guarda mínimo. —Muito bem —disse Valek— Estão conosco? —Sim, senhor —responderam os dois, quadrando-se ante ele. —Vamos então. —Um momento —intervi— Não quero que Ari e Janco se metam em confusões — acrescentei. Ainda não tinha podido assimilar o que tinham estado a ponto de fazer por mim. —Necessitamos sua ajuda —afirmou Valek. —Vão necessitar muito mais que isso —disse Irys, aparecendo de repente na escuridão.


Automaticamente, os três homens tiraram suas espadas. Entretanto, quando ela se aproximou do abajur, Valek se relaxou. —Tranqüilos —disse ao Ari e ao Janco. —É uma amiga —afirmei, ao ver que não estavam de todo seguros — Veio para nos ajudar. Temos descoberto a fonte de poder do Mogkan —acrescentei, me dirigindo a ela. —Do que se trata? Falei-lhe dos cativos e da situação tão horrível em que se encontravam. Enquanto o fazia, Ari e Janco escutavam horrorizados. —Do que está falando? —perguntou Ari. —Já lhes explicarei isso mais tarde. Agora, quero que os dois protejam Irys com sua vida —lhes pedi, compreendendo que Valek tinha razão e que os necessitávamos a ambos— É muito importante. —Sim, senhor —disseram ambos. Olhei-os completamente atônita. Tinham-me chamado “senhor”, o que significava que estavam dispostos a seguir minhas ordens, embora estas os levassem a morte. —Tem algum plano? —perguntou-me Valek. —Sim. —Conta-nos.

Através de escuros corredores, dirigimo-nos à habitação do Comandante. Ali, esperamos uns instantes para dar aos outros tempo de colocar-se. Em poucos minutos, Valek forçou a fechadura. Entramos na habitação e ele a fechou imediatamente. Acendemos um abajur e nos aproximamos da cama com dossel. O Comandante estava convexo em cima dos lençóis, completamente vestido. Tinha os olhos abertos, embora com o olhar perdido no teto. Não pareceu dar-se conta de nossa presença. Eu sentei a seu lado e tomei a mão. Seguindo as breves instruções de Irys, imaginei minha parede de tijolos, embora logo a expandi até convertê-la em uma cúpula de tijolos que protegesse a ambos. Valek se colocou contra a parede para esperar ao Mogkan. A porta não demorou para abrir-se. Quatro guardas armados entraram precipitadamente, Valek acabou com um antes que o homem pudesse reagir. O som das espadas encheu o dormitório.


Mogkan entrou quando seus homens tinham entretido ao Valek. Evitou a luta e se aproximou de mim. Tinha um condescendente sorriso nos lábios. —Um iglu de tijolo. Que bonito. Vamos, Yelena, me dê um pouco de crédito. Uma fortaleza de pedra ou aço teriam suposto um maior desafio. Senti um golpe forte contra minhas defesas mentais. O tijolo começou a desmoronar-se. Cheia de desespero, rezei para que Ari, Janco e Irys tivessem conseguido chegar à sala em que Mogkan tinha encadeados aos prisioneiros. Não obstante, embora conseguissem bloquear a fonte de poder, ainda teria que me enfrentar ao poder do Mogkan. O mago deteve seu ataque contra mim durante um segundo e inclinou a cabeça. —Bonito truque —disse— São teus amigos? Estão no corredor da asa do Reyad, mas, a menos que possam derrotar a dez homens, não poderão chegar a meus meninos. Então, Mogkan reatou seu ataque com maior determinação. Por sorte, ao Valek só ficava já um guarda dos quatro que tinham entrado, mas minhas defesas se debilitavam com cada golpe. Logo, minha cúpula se derrubou entre uma nuvem de pó. O poder de Mogkan me agarrou como se fosse o punho de um gigante e me apertou com força as costelas. Eu gritei de dor e soltei a mão do Comandante. Justo naquele momento, Valek terminou com o último guarda. —Quieto ou ela morre —ordenou Mogkan. Valek se deteve imediatamente. Três guardas mais entraram na habitação, seguidos do Brazell. Rodearam ao Valek, tiraram-lhe a espada e lhe obrigaram a ficar de joelhos com as mãos na cabeça. —Adiante, general. Mata-a — disse Mogkan, fazendo-se a um lado para que Brazell pudesse aproximar-se. — Deveria haver permitido que lhe fatiasse o pescoço o primeiro dia. — Por que escutas ao Mogkan? —perguntei ao Brazell—

Não é digno de

confiança. A dor voltou a apoderar-se de mim quando Mogkan me olhou de novo. —O que quer dizer? —perguntou Brazell. Mogkan se pôs-se a rir. —Só está tratando de atrasar o inevitável —disse. —Como quando você tratou de atrasar as negociações com Sitia envenenando o brandy? Ou acaso estava tratando de evitar que se produzissem? —perguntei-lhe. A surpresa de Mogkan revelou sua culpabilidade. Embora Valek também ficou atônito, guardou silêncio.


—Isso não tem sentido —comentou Brazell. —Mogkan quer evitar o contato com os do sul. Eles saberiam que... Senti que a garganta me fechava. Agarrei-me com força ao pescoço, mas resultava impossível respirar. Brazell se voltou para o Mogkan e o interrogou com o olhar. —O que estiveste tramando? —quis saber. —Não necessitamos nenhum tratado com Sitia. Vamos conseguir nossos fornecimentos sem problemas. Por que não quer me escutar? Terá que ser avaro. Com um tratado de comércio, os suboas não demorariam para cruzar a fronteira e começar a farejar tudo —explicou Mogkan, sem mostrar temor algum para o Brazell, só ira por ter que explicar seus atos— Agora, vais matar a ou quer que o eu faça? Eu estava a ponto de perder o conhecimento, mas, antes que ocorresse e de que Brazell pudesse responder, Mogkan cambaleou. A pressão a que estava submetida se afrouxou um pouco. Pude tomar ar. —Meus meninos! —gritou o mago — Mas até sem eles tenho mais poder que você! Como se fosse um peixe enganchado a um anzol, senti que meus pés abandonavam o chão e que me lançava contra a parede. Minha cabeça golpeou contra a pedra, mas não caí ao chão. Mogkan me sustentou no ar. Vi que Valek estava lutando com seus guardas para tratar de chegar a ele. Muito tarde para mim. Fui caindo inconsciente até que o negrume encheu meu mundo. Então, escutei a voz de Irys. —Me deixe te ajudar... Senti que um poder puro fluía dentro de mim. Reconstruí meu escudo mental e rechacei o ataque de Mogkan. Ele se estatelou contra a parede oposta. Entretanto, devido a minha inexperiência, não pude contê-lo. Saiu rapidamente da sala. Valek, com uma faca na mão, lutava contra soldados com espadas. Quando me dispunha a ajudar ao Valek, Brazell me agarrou pelo braço. Levantou a espada. Eu dava um salto atrás para evitar o primeiro golpe, mas me choquei contra a cama do Comandante. Subi nela para evitar o seguinte golpe. O terceiro, cortou um dos postes da cama. Rapidamente desci da cama e agarrei o poste. Por fim estava armada. Brazell era um bom competidor. Com cada golpe de sua espada, ia arrancando partes de meu poste. —O que crê que está fazendo? Estriparei-te com dois golpes.


Quando consegui encontrar minha zona de poder, ele deixou de gastar saliva. Desgraçadamente, meu poste não era rival para sua espada. O fantasma de Reyad se materializou na sala. Animava a seu pai, tratando de me distrair. Sua tática funcionou. Minhas costas tocaram a parede e a espada de Brazell cortou o poste em dois. —Está morta —disse. Com grande satisfação, levantou a espada, mas quando este se aproximava, eu desviei a trajetória com meu poste quebrado. A ponta da espada roçou minha cintura. O sangue começou a empapar a camisa de meu uniforme. Então, Brazell cometeu seu primeiro engano. Pensando que eu estava acabada, baixou o guarda, mas eu ainda seguia de pé. Levantei minha arma e, com uma força desesperada, golpeei-lhe na têmpora. Os dois caímos juntos ao chão. Vi que Valek se aproximava imediatamente, mas lhe indiquei que partisse. —Vá procurar Mogkan. Desapareceu imediatamente. Quando recuperei minha força, examinei minha ferida. Pareceu-me que quão único necessitaria para curá-la seria um pouco da cola do Rand. O fantasma de Reyad ainda seguia presente, com seu eterno sorriso. —Vá daqui —lhe espetei. —Me obrigue a fazê-lo desafiou. Como podia enfrentar a um fantasma? Com uma briga mental. Pensei no que tinha conseguido no ano e meio desde que matei ao Reyad. Compreendi que era uma pessoa completamente diferente. Olhei ao Brazell e vi que ainda respirava. Estava a meu cargo. Eu já não era sua vítima. Já não era o rato apanhado na ratoeira. —Parte — ordenei ao fantasma do Reyad. Sua expressão de horror me reportou um grande prazer enquanto desaparecia. Entretanto, a alegria era como uma mariposa que se detém em uma flor. Um breve descanso antes de voltar a sair voando. —Janco está ferido —disse a voz de Irys, ressonando em minha cabeça— Vêem agora mesmo. Com as cadeias de um guarda morto, encadeei ao Brazell à cama. Então, saí correndo da sala. Janco não... Não podia morrer... Não poderia suportar sua morte. Tão preocupada estava que me encontrei com Valek e Mogkan sem reconhecê-los. Estavam


lutando com espadas. Mogkan parecia levar a dianteira. Valek estava muito pálido. Sujeitava a espada como se fosse um peso morto. O que lhe ocorria? Seria a magia do Mogkan? Não. Valek era imune. Então, compreendi-o tudo. Valek havia me dito que estar perto de um mago era como envolver-se em um espesso xarope. Valek tinha derrotado a sete guardas depois de passar-se dois dias nas masmorras sem comida nem bebida. O esgotamento tinha terminado por poder com ele. Mogkan sorriu. Então, executou um rápido movimento. A espada do Valek caiu ao chão ao mesmo tempo que o braço lhe tingia de sangue. —Que incrível jornada! —exclamou Mogkan— vou poder matar ao famoso Valek e a infame Yelena ao mesmo tempo. Eu tirei minha navalha. Mogkan se pôs-se a rir. Então, voltei a escutar a voz do Irys. —O que é o que acontece, Yelena? por que não vem? —Necessito ajuda! —gritei, mentalmente De repente, o poder me encheu por completo. Estendi um dedo para o Mogkan. A espada lhe caiu imediatamente da mão. O terror o paralisou por completo. A magia o envolvia, esticando-se a seu redor como se fosse uma soga. Estava completamente paralisado... —Você, maldita filha do demônio! —gritou— É uma maldição para esta terra. Uma encarnação do inferno. É como o resto deles... A linhagem dos Zaltana deveria ser exterminado, apagado da face da terra... Mogkan seguiu me insultando, mas eu tinha deixado de lhe escutar. Valek tomou minha navalha e se aproximou dele. Depois de um grito de dor, Mogkan ficou por fim em silêncio. Seu corpo caiu ao chão. Valek entregou minha navalha ensangüentada. Com uma esgotada reverência, disse-me: —Para ti, meu amor.


Capítulo 32

De repente, recordei de novo ao Janco. Agarrei ao Valek pelo braço, avançando e explicando o que passava enquanto os dois corríamos. Fomos procurar ao médico e, com a persuasão de uma faca, Valek conseguiu que nos acompanhasse. Quando entramos na asa do Reyad, senti náuseas. Havia partes de braços e pernas por toda parte, como se alguém tivesse sido amputando-os sobre a marcha. As paredes estavam cobertas de sangue, igual ao chão. O médico queria deter-se com o primeiro homem, mas Valek o pôs de pé e seguimos avançando até que vimos o Janco. Estava convexo de costas, com a cabeça no regaço de Ari. Estava inconsciente, felizmente, uma espada lhe tinha atravessado o ventre. A ponta lhe saía pelas costas. O rosto empapado de sangue de Ari tinha uma expressão sombria. A seu lado, jazia uma tocha, responsável por aquele açougue. Irys estava sentada no centro do círculo dos prisioneiros. Tinha a frente coberta de suor e uma expressão distante no rosto. Os homens e mulheres encadeados contemplavam a cena com olhos impassíveis. A viagem à enfermaria foi como um pesadelo. Tudo passou como envolto em um redemoinho até que me vi tombada junto ao Janco, lhe sujeitando a mão. O médico fez todo o possível, mas se a espada tinha atravessado algum órgão vital de Janco, não sobreviveria. Tinham curado minha ferida e quase não notava dor alguma. Toda minha energia e força foram dirigidas ao Janco. Mais tarde, naquele mesmo dia, despertei depois de um ligeiro sonho. —Dormindo em seu posto de trabalho? —sussurrou-me Janco com um débil sorriso em seu pálido rosto. Respirei aliviada. Se tinha forças suficientes para me insultar, certamente sobreviveria. Desgraçadamente, Irys não nos pôde dizer o mesmo sobre o Comandante. Quatro dias depois da morte de Mogkan, ainda não tinha recuperado seu espírito. Seus conselheiros sim se recuperaram e se feito cargo do controle militar do DM-5 e enviaram mensageiros ao general Tesso, do DM-4 e ao general Hazal, do 6, requerendo sua presença imediatamente. Os generais teriam a protestado de decidir o que se faria a seguir se o Comandante não conseguisse sobreviver.


Igual e desconcertante foi que nenhuma das vítimas do Brazell, Reyad e Mogkan despertou de sua letargia. Irys nos disse que suas mentes eram como casas abandonadas... Irys e eu nos resignamos a pensar que viveriam o resto de seus dias perdidos naquela letargia. Sofri em especial a perda de Carra, embora descobri que Mai seguia viva e bem, dentre o resto dos órfãos. Eu decidi ir visita-la assim que Janco recuperasse as forças. —Resulta evidente que os meninos do orfanato do Brazell procediam de Sitia — explicou Irys, que tinha vindo me visitar na enfermaria— Mogkan espaçou suficientemente os seqüestros para não despertar suspeitas. A magia está acostumada ser mais forte nas mulheres, o que explica que haja mais garotas. Certamente, Mogkan e Brazell estiveram muito tempo planejando isto. Não acredito que resulte difícil encontrar a sua família, Yelena. —Não sei... antes de morrer, Mogkan mencionou algo sobre a linhagem dos Zaltana — respondi. —Zaltana! —exclamou Irys entre risadas—

Agora que me lembro, sim que

perderam uma filha. Meu deus. Se formas partir do clã dos Zaltana, espera-te uma boa surpresa. Isso explicaria por que você foi quão única não se rendeu aos desejos do Mogkan. Milhares de perguntas me amontoavam na garganta. Queria saber mais sobre aquela família, mas não desejava ter esperanças. Talvez eu não fosse uma Zaltana. Supus que o averiguaria quando chegássemos a Sitia. Irys queria começar meu adestramento imediatamente. Não obstante, sentia certa intranqüilidade por ter que abandonar Ixia. Troquei de tema. —Como está o Comandante? — É diferente de outros. Os prisioneiros não têm nada na cabeça, mas ele se retirou a um lugar muito branco. Se pudesse descobrir onde está, talvez poderia fazê-lo retornar.Considerei aquelas palavras durante uns instantes e pensei em um momento no que fiquei adormecida na sala de guerra. —Posso tentá-lo? —Por que não? Irys me acompanhou à habitação do Comandante. Sentei-me na cama e tomei sua fria mão entre as minhas. Fechei os olhos e enviei meu poder mental para ele. Meus pés pisaram em gelo. Um frio vento me açoitou o rosto. Estava rodeada por um branco cegador. Pó de diamantes ou flocos de neve, não estava segura. Caminhei durante um comprido momento, me enfrentando ao gélido vento sem encontrar nada.


Estava a ponto de admitir minha derrota quando recordei por que pensei que poderia encontrar ao Comandante. Centrei-me na cena de uma jovem mulher cheia de alegria sobre o corpo sem vida de um tigre de neve. De repente, o vento se deteve. Estava ao lado de Ambrose. Ia vestido com umas peles brancas que pareciam as do tigre. —Retorna —disse. —Não posso... Ao olhar ao redor, vi que uns barrotes nos rodeavam por toda parte. Pareceu-me uma jaula a primeira vista, mas, quando me fixei melhor, descobri que eram soldados armados com espadas. —Cada vez que trato de partir, eles me impedem. —Mas você é o Comandante. —Aqui não. Aqui só sou Ambrosia, apanhada em um corpo equivocado. Os soldados conhecem minha maldição. Olhei o corpo do tigre. —Como o matou? O rosto da moça se animou. Contou-me que se banhou na essência do animal e que passou semanas envolto em peles de tigre. Fingiu ser um dos tigres, até que estes a admitiram em sua manada. Ao final, conseguir seu troféu só foi questão de tempo. —Isso demonstra que sou um homem. Que ganhei o direito de ser um homem. —Nesse caso, talvez deva pôr seu troféu. As peles não lhe ajudarão contra seus soldados. A mulher compreendeu de repente. Olhou ao tigre morto e se metamorfoseou no Comandante. Seu comprido cabelo se cortou e lhe surgiram rugas no rosto. As peles caíram ao chão ao tempo que se materializava em seu impoluto uniforme. Separou-se das peles lhes dando patadas. —Não deveria fazer isso —disse— Poderia as necessitar de novo. —Necessito a ti, Yelena? —perguntou-me— Posso confiar em que mantenha em segredo minha mutação? —Vim aqui para te fazer voltar. Serve-te isso como resposta? —Valek me jurou lealdade quando lhe gravei um c no peito. Faria você o mesmo? —Sabe Valek da Ambrosia? —Não. Não respondeste a minha pergunta. Mostrei-lhe ao Comandante a mariposa do Valek.


—Levo isto contra meu peito. Jurei lealdade ao Valek, que a sua vez é leal a ti. O Comandante alcançou a mariposa. Eu permaneci imóvel enquanto me tirava isso do pescoço. Então, tirou uma faca das peles e cortou a palma direita. Sustentou o pendente na mão ensangüentada e me estendeu a faca. Eu estendi a mão e fiz um gesto de dor ao notar o contato com a folha. Nossos sangues se mesclaram enquanto sustentávamos a mariposa. Quando me soltou, o presente do Valek estava em minha mão. Voltei a colocar em seu lugar, sobre meu coração. —Como vamos retornar? —perguntou-me o Comandante. —Você é quem manda. —Lutaremos —disse, tirando a espada. Eu agarrei uma lança que havia junto ao corpo do tigre. Era mais ligeira que minha fortificação, mas me serviria. Enfrentamos aos soldados. Eram muito hábeis, mas o

Comandante era um

espadachim estupendo. Era como lutar com cinco homens mais. Não demoramos para nos desfazer de todos os homens. —Muito bem —disse o Comandante— Me ajudaste a me redescobrir, a matar a todos meus demônios. Tomou a mão e a levou aos lábios. De repente, a cena invernal se desvaneceu e me encontrei de novo sentada na cama, olhando aos poderosos olhos do Comandante.

Aquela noite, Valek e eu informamos ao Comandante de tudo o que tinha ocorrido na reunião do brandy. Valek tinha interrogado ao Brazell e tinha descoberto que Mogkan e ele levavam dez anos preparando o golpe. O Crioulo tinha sido o último elo de um plano muito elaborado. —E a fábrica? —perguntou o Comandante. —Detivemos a produção —disse Valek. —Bem. Salvem os materiais que possam e logo queimem a fábrica e todo o Crioulo que possam encontrar. —Sim, senhor. —Algo mais? —Sim. Brazell me contou que, quando tivessem conseguido o controle da Ixia, planejavam invadir Sitia.


Ao dia seguinte, o Comandante celebrou o julgamento do Brazell com o Valek a sua direita. Como se esperava, Brazell foi despojado de sua fila e sentenciada a passar o resto de sua vida nas masmorras do Comandante. Como lhe permitiram umas últimas palavras, Brazell começou a gritar; —Idiotas! Seu Comandante é um mentiroso! Leva anos lhes mentindo! Em realidade, trata-se de uma mulher vestido de homem! O silêncio se apoderou da sala, mas o Comandante não variou a expressão neutra de seu rosto. Muito em breve, as risadas estalaram entre as quatro paredes da sala. Quem ia acreditar nas palavras de um lunático? É obvio, as risadas não se deviam a que ninguém acreditasse que a idéia de uma mulher ostentando o poder era ridícula, mas sim porque o Comandante Ambrose tinha uma presença muito poderosa. Além disso, devido a suas crenças e convicções, eu, que sabia a verdade, não podia pensar nele de nenhum outro modo. Mais tarde naquele dia, fui visitar o orfanato. Encontrei a Mai no dormitório. Ela levantou-se de sua cama e se lançou com força contra mim. —Yelena! Acreditei que jamais voltaria a verte... Eu a apertei com força. Quando ela se retirou, sorri ao vê-la. Sua alegria se desvaneceu ao saber de Carra. Então, vi o muito que a menina que eu recordava tinha crescido. —Vamos contigo a Sitia! —exclamou Mai de repente, cheia de alegria. Indicou-me uma mala que havia na porta. —Como? —A dama do sul nos disse que nos levaria a nosso lar para nos ajudar a encontrar a nossas famílias. Senti uma estranha dor no coração. Para mim, a palavra família tinha um significado diferente. Valek, Ari e Janco eram minha família. Até a Maren era como uma resmungona irmã mais velha. —É maravilhoso —disse, tratando de igualar seu entusiasmo. —Desgraçadamente, ficamos tão poucos... —Valek se assegurará de que Carra e os outros estejam bem cuidados. —Valek! Que bonito! Janco, por outro lado, recebeu-me com um rosto muito triste quando fui despedirme dele. Irys, que se mostrava ansiosa por ir ao sul, queria estar de caminho ao dia seguinte pela manhã. Ari tinha-se feito a cargo de Janco e estava sentado a seu lado.


—O que passou com a mensagem de amizade eterno que me escreveu na navalha? —Vá, vá... Já o traduziste? Eu sorri. —Assim que Janco esteja melhor, partiremo-nos ao sul —prometeu Ari. —E o que ides fazer ali? —Virão-nos muito bem umas férias —comentou Janco, sorrindo. —Te cuide —disse Ari. —No sul não necessito amparo. Além disso, parece-me que não faz muito tempo, superei a meus dois instrutores. Além disso, não devem se preocupar comigo. Retornarei muito em breve. —Isso espero. Quero a revanche —replicou Janco. Entretanto, eu tinha falado muito cedo sobre a volta. Valek, Irys e eu tínhamos falado de meu futuro, mas o Comandante parecia ter outros planos. Aquela tarde, o Comandante Ambrose convocou uma reunião. A sós com o Valek, Irys e Ari no velho despacho do general Brazell. Prometeu respeitar o tratado. Logo me disse meu destino. —Yelena, salvaste minha vida e, por isso te dou obrigado. Entretanto, tem poderes mágicos que não se toleram na Ixia. Não fica eleição mais que ordenar sua execução. Todos os presentes ficaram atônitos. Quando o Comandante estendeu um papel ao Valek, senti uma estranha frieza na pele. Valek não se moveu. —Senhor, sempre acreditei que ter um mago trabalhando para nós nos beneficiaria e, por exemplo, teria impedido esta situação em particular. Podemos confiar na Yelena. —Tem razão —afirmou o Comandante— Embora possamos confiar nela, embora me salvou a vida, devemos cumprir o Código de Comportamento. O contrário, seria um sinal de debilidade, algo que não posso permitir agora, sobre tudo depois do assunto com o Mogkan. Além disso, os generais e meus conselheiros não confiam nela. Uma vez mais, o Comandante estendeu a ordem de execução ao Valek. Mentalmente, escutei que Irys dizia que saísse fugindo. Neguei-me. Seguiria ali até o final. Não fugiria. —Não vou aceitar-la —disse Valek. —Vais desobedecer uma ordem direta? —Não. Se não a tomo, não terei que desobedecê-la. —E se fizer que seja verbal?


—Obedecerei, mas será a última vez —replicou Valek, tirando uma adaga do cinturão. Ari também desembainhou sua espada. —Terá que acabar primeiro comigo —disse, colocando-se diante de mim. —Não, Ari... Obriguei-o a baixar a espada e me coloquei ao lado de Valek. Olhamo-nos nos olhos. Compreendi que sua lealdade ao Comandante não tinha limites. Compreendi que, depois de me tirar a vida, tiraria a sua. O Comandante nos observou atentamente. —assinei essa ordem pelo Código — disse por fim— Atribuirei a outra pessoa para que a leve a cabo. Talvez tarde uns dias em encontrar a pessoa adequada... Aquela era a oportunidade que nos dava para que Irys e eu partíssemos da Ixia. —Lembrem-se que esta ordem só é válida na Ixia —acrescentou— Agora, podemlhes partir. Todos saímos imediatamente. Ari me abraçou com força. Entretanto, eu senti uma profunda amargura ao saber que me separaria de Valek tão logo depois de nos unir. Quando tivemos organizada nossa “fuga”, Valek me separou de outros. Beijamonos com paixão e urgência desesperadas. Quando recuperamos o fôlego, disse: —Vêem comigo... —Não posso Yelena, tem que aprender, tem que encontrar a sua família, tem que estender as asas e ver até onde pode voar. Nestes momentos não me necessita, mas o Comandante sim. Abracei-o com força. Tinha razão. Não o necessitava, mas queria que ele estivesse comigo para sempre.

Partimo-nos aquela noite. Irys, oito garotas, dois meninos e eu. Caminhamos durante várias horas até que encontramos um claro adequado para acampar aquela noite. Ari nos tinha subministrado tudo o que poderíamos necessitar durante a viagem. Levantamos seis pequenas barracas e Irys surpreendeu aos meninos acendendo o fogo tão somente com um gesto da mão. Quando todos estiveram dormidos, eu me sentei ao lado do fogo. Pela centésima vez, perguntei-me por que Valek não teria ido a despedir-se de mim.


De repente, senti movimento. Pus-me de pé e tomei minha fortificação. Uma sombra se separou de uma árvore. Irys tinha criado uma barreira mágica ao redor das barracas. Segundo ela, a barreira nos ocultaria e provocaria que a pessoa que nos aproximasse só visse um claro. A sombra me sorriu. Não parecia afetado pela magia. Era Valek. Estendeu a mão. Eu agarrei os frios dedos entre os meus e deixei que ele me separasse das barracas e me conduzisse ao bosque. —Por que não veio antes de que nos partíssemos? —perguntei-lhe quando nos detivemos. —Estava ocupado me assegurando de que o Comandante tinha problemas na hora de encontrar a alguém que levasse a cabo suas ordens. É surpreendente a quantidade de trabalho que há depois do Brazell —acrescentou com um sorriso. —Quem prova agora a comida do Comandante? —No momento, eu, mas acredito que a Capitã Star seria uma excelente candidata. Dado que ela sabe quem são todos os assassinos, parece-me que sua ajuda seria muito valiosa. Tocou-me sorrir. Star o faria bem, se conseguisse superar o adestramento... —Já basta de bate-papo. Preciso me despedir de ti adequadamente... Passei minha última noite na Ixia com o Valek debaixo daquela árvore. As horas voaram. Quando o sol começou a entremeter-se entre nós, despertando-me de um feliz descanso entre os braços de Valek, obrigou-me a enfrentar ao dia em que tinha que me separar dele. Pressentindo meu estado de ânimo, Valek disse: —Uma ordem de execução não nos conseguiu separar antes. Não o vai conseguir agora. Estaremos juntos. —É uma ordem? —Não, uma promessa.

Fim Nosso Blog: http://traducoes-revisoes-rs-rts.blogspot.com/


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