História de uma Vida: Editorial Design study

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José Vitaliano

História de uma Vida Romance

Ideia João Pessoa 2013



Este romance é baseado em fatos da vida real. No entanto, os nomes dos personagens secundarios, foram trocados, portanto qualquer semelhança com pessoas vivas ou mortas é mera coincidência.



O autor agradece as informações que lhe foram prestadas, em conversas informais, por Helena, Ismênia, Orlandina, Osmarina e Vilma, todas bisnetas do principal personagem.



N

a manhã de 16 de dezembro de 1922, Victaliano Picado Rocha, popularmente conhecido como Victor Rocha acordou indisposto. Ele, que estava com oitenta e cinco anos de idade, era um homem ainda forte e lúcido. No entanto, aquela dorzinha fina no braço esquerdo estava incomodando muito. Ele levantou-se da cama e calçou os chinelos. Ainda de pijama, saiu do quarto e foi até a sala de banho que se localizava, nos fundos da casa, perto da cozinha. Quando chegou lá, ele pôs em um alguidar de ágata um pouco de água de uma jarra e começou a lavar o rosto. Quando terminou, ele se sentiu melhor e dirigiu-se à sala de visita, onde abriu a janela. De lá, ficou olhando os primeiros raios de sol iluminarem os telhados e as casas de Cabedelo, a localidade onde morava. De algum quintal, um canto de um galo se fez ouvir, saudando aquela manhã de verão. Uma lufada de ar entrou pela janela da sala 09


e envolveu o seu corpo. Sem saber a razão, ele sentiu um calafrio na espinha dorsal. Deus me guarde! Parece até que o sopro da morte veio me visitar - pensou ele e se benzeu. Uma sequência de sons estridentes de uma gaita espraiou-se pelo ar, anunciando que o leiteiro estava entregando o leite aos seus habituais fregueses. — É a gaita de Aspásio — disse ele baixinho para si mesmo, referindo-se ao vendedor de leite. Neste momento, Ritinha, a empregada que era filha de Benedita, a velha e fiel empregada que trabalhou para ele e a esposa desde a época em que os dois haviam se casado, apareceu na sala e disse: — Bom dia “Seu” Victor! Quantos litros de leite eu compro? — Peça a Aspásio dois litros — respondeu ele. A empregada abriu a porta e, com uma vasilha na mão, saiu para comprar o leite. Victor continuou olhando pela janela e viu o mar azul que se descortinava na praia. Uma pontada no coração o fez sentar-se em uma cadeira de balanço. Enquanto massageava o peito, ele viu o jornal em cima de uma mesinha e resolveu ler. Com o jornal nas mãos, ele começou a se recordar de sua vida. Da infância na fazenda do seu avô materno, João Nepomuceno Picado. Ele se recordava vagamente dos seus pais que morreram de tifo quando ele tinha quatro anos de idade e, em decorrência desse fato, fora criado por seu avô materno na fazenda “Riacho Grande” na vila de Assú, na Província do Rio Grande do Norte. Recordava-se da sua adolescência e da fuga que empreendera, aos quatorze anos de idade, para fugir dos severos castigos corporais que o avô lhe aplicava quando ele errava em uma tarefa que 10


lhe fora atribuída. A fuga fora facilitada pelos tropeiros que por lá passavam e que o levaram até à vila de Natal. Ele lembrava-se de que em Natal, se alistara como grumete de uma embarcação. Depois, fora promovido sucessivamente até chegar ao posto de contramestre. Mas, sobretudo, se lembrava da viagem que fizera a bordo do bergatim “Esperança”. Fora nessa viagem que a sua vida mudara completamente. Então, ele começou a fazer uma retrospectiva da sua vida, a partir daquela viagem. E como um filme projetado em uma tela, tudo começou a passar em sua mente. Na madrugada de oito de junho de 1864, há cinquenta e oito anos passados, o bergatim de carga “Esperança”, navegava no Oceano Atlântico, costeando o litoral da Província do Rio Grande do Norte, em direção ao “porto das barcas”, na vila de Parnahyba, na Província do Piauy, onde venderia a carga que transportava em seus porões. Aquela embarcação, de três mastros, com cerca de doze braças de comprimento por duas braças e meia de largura, transportava açúcar mascavo que fora comprado aos donos de engenhos da vila da Parahyba, na Província de mesmo nome. O proprietário do bergatim, Francisco Campelo de Lima, acompanhava a tripulação naquela viagem marítima. Há dois dias, a embarcação saíra do porto fluvial da vila da Parahyba. O bergatim era comandado pelo mestre Sebastião Passos Menezes que, naquela madrugada, estava deitado em um exíguo espaço do seu alojamento, porque compartilhava o mesmo com o proprietário do bergatim que dormia na cama que era destinada ao mestre. O mestre foi acordado pelo contramestre da embarcação que lhe falou baixinho:

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— Senhor, nós iremos enfrentar uma violenta tempestade. O mar está calmo e sem ventos, mas em nossa frente se formam pesadas e baixas nuvens escuras. O mestre levantou-se e foi até o convés. Olhou o céu e o oceano escuros e constatou o que já lhe dissera o contramestre. Ele disse: — Acorde os grumetes e mande-os recolherem as velas, tanto as latinas como a vela redonda. O contramestre saiu para cumprir as ordens recebidas. Ao ficar sozinho, mestre ficou preocupado, pois há dois dias o proprietário do bergatim lhe dera uma ordem para que fosse embarcada uma grande quantidade de açúcar, muito acima do limite de carga da embarcação. Ele havia-o avisado de que com o excesso de peso o bergatim abaixaria muito a sua quilha no mar. Tal fato faria com que as bordas do convés permanecessem muito próximas da linha d’água. Assim, se eles enfrentassem uma tempestade, uma onda mais alta poderia cobrir o convés da embarcação, comprometendo a sua estabilidade. No entanto, o proprietário não deu nenhuma importância àquela observação. Na verdade, ele estava apenas interessado no lucro que iria ter, levando uma quantidade maior de açúcar mascavo para vender. Pouco depois, os grumetes começaram recolher as velas, protegendo-as da tempestade que se aproximava. O mestre foi até onde estava o piloto e lhe perguntou: — O que Vossa Mercê acha dessas nuvens e deste mar calmo, sem ventos? — Senhor, eu penso que iremos enfrentar uma tempestade tropical, daquelas repentinas — respondeu o piloto. Momentos depois, como se surgisse do nada, um enorme clarão iluminou o céu e, instantes depois, um trovão explodiu tão forte 12


sobre suas cabeças que acordou o resto da tripulação e o proprietário do bergatim. Logo em seguida, alguns grossos pingos de chuva começaram a cair sobre o convés. — Depressa, recolham todas as velas! — gritou o contramestre para os grumetes que haviam parado de trabalhar, assustados com os trovões. O oceano começou a ficar encapelado com as suas ondas que aumentavam de tamanho pela força dos ventos. As duas velas latinas foram arriadas, mas a de pano redondo ainda estava a meio mastro. Outro trovão ecoou tão forte que um dos grumetes, assustado, escorregou e caiu sobre o convés. Os ventos apareceram subitamente. Eles vieram de direções diversas, fazendo com que as ondas aumentassem de tamanho, inclinando a embarcação ora para um lado, ora para outro. Meu Deus! O que eu mais temia está acontecendo — pensou o mestre Sebastião Menezes Passos. As primeiras ondas grandes começaram a lavar o convés. O proprietário da embarcação, assustado, aproximou-se do mestre e perguntou: — Isto é normal, mestre? — Não. Estamos enfrentando uma tempestade tropical, senhor. O mar fica revolto desse jeito — respondeu ele. Um trovão explodiu sobre suas cabeças, fazendo-os ficarem atordoados. De repente, uma onda gigantesca lavou o convés, levando para o mar revolto tudo que estava sem amarras. O proprietário da embarcação foi salvo pela mão forte do mestre que o segurou pela gola da camisa, impedindo-o de cair no oceano escuro e encapelado. Ele disse: 13


— Vossa Mercê precisa se agarrar em alguma parte fixa do barco, senão poderá cair no mar. Nervoso e trêmulo, o proprietário da embarcação nem conseguia falar, pois ele nunca enfrentara uma tempestade daquelas proporções. O mestre foi até onde se encontrava o piloto e gritou em seu ouvido: — Tome a direção da costa! A direção da costa! — E os arrecifes, senhor? — perguntou o piloto. — Com o excesso de peso que a embarcação carrega, é melhor nos aproximarmos da costa. A chance de nós nos salvarmos é maior perto da costa, mesmo existindo o perigo dos arrecifes — respondeu ele. Mal ele havia acabado de falar, uma segunda onda gigantesca lavou o convés. Ouviu-se um grito frenético de socorro e depois nada mais se ouviu: o grumete que havia caído no convés fora arrastado para dentro do mar. O piloto segurou com força a roda do leme e tomou a direção da costa conforme determinara o mestre. Localizados perto da costa, os arrecifes se constituíam em uma linha descontínua de banco de corais que ia do litoral da Província de Alagoas até o litoral norte da Província do Rio Grande do Norte. Uma série de trovões ecoou no céu. Era uma sequência de ribombar tão forte que parecia uma campanha de guerra onde as peças de artilharia disparavam uma após outra, ensurdecendo seus artilheiros. O bergatim “Esperança” corcoveava sobre as ondas parecendo um potro selvagem sendo domado. Se, nos porões, as caixas com açúcar se desprenderem, estaremos perdidos. Elas farão a embarcação virar — pensou o mestre. 14


A chuva forte e os ventos não paravam. Os relâmpagos no céu anunciavam antecipadamente a chegada dos trovões. A visibilidade era muito pouca, pois a escuridão somente era iluminada, de quando e vez, pelos relâmpagos. Na escuridão da madrugada, céu e mar se confundiam. Uma forte rajada de vento fez rodopiar a vela de pano redondo no mastro da popa, rasgando-a em pedaços. Logo em seguida, uma onda fez a embarcação inclinar-se perigosamente para um dos lados, fazendo com que o seu casco rangesse devido ao atrito entre as tábuas de madeira e seus enclaves fixados na sua estrutura. Pouco a pouco, a embarcação voltou à posição de navegação. Por pouco, nós não afundamos — pensou o mestre. Teimosamente, o bergatim resistia à fúria do mar e insistia em navegar em direção à costa. O piloto fazia enorme esforço para segurar a roda do leme a fim de proporcionar uma dirigibilidade à embarcação. A chuva continuava caindo forte e os ventos sopravam em todas as direções fazendo com que as ondas continuassem lavando o convés. Aqueles que se descuidassem, seriam levados por elas e seriam tragados pelo mar bravio. O mestre aproximou-se do piloto e disse: — Pela Virgem Santíssima! Não solte esta roda do leme, senão a força das ondas poderá quebrar o eixo de madeira do leme! — Está certo, senhor — respondera ele, já com as mãos doídas de tanto sustentar a roda do leme. O mestre mal havia acabado de falar, quando o piloto soltou um grito de dor. Em decorrência da força das ondas, a roda do leme girou fortemente em sentido contrário, fraturando o seu antebraço. Devido a dor, ele soltou a roda do leme. Pouco depois, se ouviu um estalido forte. O eixo de madeira que fazia girar o leme havia-se partido. 15


A embarcação ficou à deriva. — Meu Deus! Agora só nos resta orar — disse o mestre para si mesmo. O piloto olhou para o mestre e disse, segurando o antebraço direito com a mão esquerda: — Senhor, eu fiz o que pude e acho que machuquei o meu antebraço com o reverso da roda de leme. — Eu sei Jorge. Eu reconheço o seu esforço — respondeu ele. — Agora, nós estamos dependendo das correntezas — disse o piloto. — Eu irei falar com o senhor Francisco Campelo de Lima. Vou lhe sugerir que joguemos o excesso da carga de açúcar no mar — disse o mestre. Depois de improvisar uma tala para o braço machucado do piloto, o mestre foi explanar ao proprietário do bergatim a situação. Ele argumentava que, se o barco navegasse com menos peso, teria uma chance de atingir a costa. — Esta carga me custou muito dinheiro e não posso me desfazer dela da maneira que Vossa Mercê está me sugerindo — respondeu o proprietário da embarcação. — Senhor, se a embarcação estiver com menos peso, com um pouco de sorte e com a maré alta, poderemos passar por cima dos arrecifes sem bater neles. Caso contrário, o “Esperança” baterá seu casco, pois navega com a quilha muito baixa — explicou o mestre. Ainda relutante, o proprietário da embarcação concordou em se desfazer do excesso de carga.

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Quando a tempestade começou a amainar, as ondas diminuíram de tamanho, a chuva foi cessando e os relâmpagos e trovões aconteciam cada vez mais distantes da embarcação. Pouco a pouco, os primeiros raios de sol apareceram no céu, o mar que antes estivera encapelado e agressivo parecia até um grande lago que espelhava a luz do amanhecer. O mestre foi informado de que dos quinze tripulantes, apenas treze estavam a bordo. Estavam ausentes o contramentre e um grumete. Era grande a possibilidade de que eles tivessem sido jogados ao mar pelas ondas que cobriram o convés da embarcação. Os homens da tripulação começaram a jogar no mar o excesso das caixas de açúcar que havia sido uma das causas da quebra do eixo do leme da embarcação. Com a diminuição do peso, o bergatim levantou a quilha conforme previra o mestre. Lentamente, as correntes marítimas levaram a embarcação em direção à costa. Ao meio-dia, o grumete que havia subido em um dos mastros, gritou: — Arrecifes à vista! — Nós iremos colidir! — gritou um. — A maré está alta! Mesmo assim, não tem jeito, iremos bater nos arrecifes — gritou outro. Impassível, e em pé na proa da embarcação, o mestre ordenava a um grumete que medisse a profundida da água com uma corda. — Senhor, dez braças de profundidade! — Vamos rezar para que o impacto do casco nos arrecifes não produza algum rasgo. E assim, possamos chegar à praia — disse o mestre ao piloto. O bergatim aproximava-se lentamente dos arrecifes. Em dado momento, se ouviu o barulho do casco raspando os bancos de co17


rais. A embarcação estremeceu a sua estrutura, mas conseguiu passar. — Graças à Virgem Santíssima, nós conseguimos passar — exultou o mestre. O grumete na proa não parava de medir a profundidade da água. Dizia ele, de vez e quando: — Seis braças, senhor! Cinco braças! Quatro braças! Três braças! — Lançar âncoras! — gritou o mestre. As duas pesadas âncoras foram lançadas até encontrarem o fundo do mar. Em seguida, o mestre gritou para o restante da tripulação: — Desçam os escaleres! Prontamente, os três pequenos barcos a remos foram lançados ao mar, enquanto a tripulação entrava neles. Em pouco tempo, os barcos, sendo remados pelos homens, atingiram a foz de um rio e eles seguiram remando rio a dentro, até avistarem um povoado. Nele existiam algumas casas. Guiados pelo mestre, os escaleres foram para a margem do rio e a tripulação desembarcou naquele desconhecido local. Quando os homens do bergatim “Esperança” colocaram os barcos a remos em um local seguro, na margem do rio, eles viram alguns homens brancos se aproximando de onde eles estavam. Um deles, que parecia ser o líder do grupo disse: — Salve! Foi a tempestade que trouxe a embarcação de Vossas Mercês até a praia? O mestre Sebastião deu um passo à frente e respondeu: — Foi ela, sim. Qual é o nome deste lugar? — O lugar se chama Guamaré, na Província do Rio Grande do Norte — respondeu o homem. 18


— Quando nós estávamos na embarcação, avistamos três desembocaduras de rios. Que rios são estes? — perguntou o proprietário do bergatim. — São os rios Aratuá, que é este em que vossas Mercês entraram. Os outros dois são o Miassaba e o rio Camurupim — respondeu o homem do povoado. — Meu nome é Sebastião Menezes Passos, sou o mestre da embarcação que aportou na praia. Este é o senhor Francisco Campelo de Lima, o proprietário da embarcação — disse ele. — Meu nome é Joaquim Vidigal — respondeu o homem. — Eu irei necessitar de contratar alguns homens deste povoado para ajudar a minha tripulação a consertar o eixo do leme. — De quantos homens Vossa Mercê irá precisar? — perguntou Joaquim Vidigal. — De uns dez homens. Mas o serviço a ser feito poderá ficar para amanhã — respondeu ele. — Então, venham Vossas Mercês conhecer nosso povoado — convidou Joaquim Vidigal Soares. Os homens se encaminharam para o aglomerado de casas, seguindo o homem que os convidara. Mais tarde, em torno de uma improvisada e tosca mesa de madeira que fora colocada embaixo de uma frondosa jaqueira, estavam reunidos todos os homens da tripulação do bergatim “Esperança”. A comida era farta: cuscuz de milho, galinha d’Angola assada, carne de porco, feijão de Makassar, farinha de mandioca e algumas frutas foram colocadas sobre a improvisada mesa. Os homens comeram vorazmente. Ao final da refeição, Francisco Campelo de Lima levantou-se e disse: — Primeiro, quero agradecer a Deus por nos ter protegido durante a tempestade que enfrentamos e por nos ter trazido a este povoado. Quero agradecer a Joaquim Vidigal à hospitalidade que 19


nos tem dado. Pagarei, de bom grado, todas as despesas que eu e meus homens fizermos, enquanto permanecermos neste local. E, por último, agradeço ao mestre Sebastião Menezes Passos, homem valoroso que, com a ajuda de Deus, nos trouxe a Guamaré. Todos aplaudiram o discurso do proprietário do bergatim “Esperança”. Em seguida, o mestre levantou-se e disse: — Eu serei breve em minhas palavras. Mas quero incluir o meu agradecimento ao jovem Victor, o contramestre que foi levado pelas ondas. Se não fosse a sua vigilante observação do mar e dos ventos, nós teríamos sido pegos de surpresa pela tempestade. Deus tenha piedade de sua alma. Agradeço ainda ao grumete que também foi jogado no mar pelas ondas. Outro agradecimento, eu faço ao piloto Jorge e aos demais membros da tripulação que me auxiliaram a trazer o “Esperança” a este hospitaleiro povoado. Todos o aplaudiram. Já era noite quando os homens se levantaram da mesa e foram dormir nas improvisadas instalações que lhes foram reservadas. Eles precisavam descansar, pois na manhã seguinte começaria o difícil trabalho da troca do eixo do leme da embarcação.

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