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MÁQUINA DE ÓDIO © Cesar Habert Paciornik
“Nada vem sendo feito há trinta anos” POR SERGE HALIMI*
Intervindo em tal contexto, o crime de um islamita fanático, que, com base em um testemunho mentiroso espalhado pelas redes sociais, decapitou um professor que não conhecia, atordoou e revoltou todo um povo. Um checheno sem ligação estreita com uma organização terrorista; poucos cúmplices; apoios quase inexistentes no país: em outros tempos, o assassinato de Samuel Paty teria se parecido com uma tragédia que apenas um demente é capaz de provocar. Mas esse caso incide em uma história marcada por atos de terror islâmicos associados por uma palavra ou duas: Salman Rushdie, 11 de Setembro, Bali, Madri, Mohamed Merah, Charlie Hebdo, Bataclan, Nice... Tantos atentados sangrentos ou ameaças de morte que visaram escritores, juízes, caricaturistas, cristãos. E que também mataram muçulmanos.
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á confrontada com angústias sanitárias, ecológicas, econômicas e sociais, a sociedade francesa precisa lidar também com uma série de golpes sob a forma de atentados terroristas. Querem então mobilizá-la para a “guerra”. Mais uma. Contudo, por ser o inimigo quase sempre indetectável, sua destruição requer sempre um arsenal mais potente que o precedente. Não – ou ainda não – canhões e tanques, mas violações suplementares às liberdades públicas. Quem ousa de fato protegê-las após um atentado ou durante uma epidemia? Restrições são então impostas e aceitas sem debate. Trata-se apenas de um parêntese, dizem-nos; voltarão a fechá-lo tão logo seja vencido o vírus, ou o terrorista, e os dias felizes estejam de volta. E os dias felizes não voltam. Porém, submetida a esse regime, a sociedade pode rachar.
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Medimos então a irresponsabilidade daqueles que, desde que foi revelada a decapitação de Conflans-Sainte-Honorine, prontamente superaram sua emoção para declarar, de modo injusto, que em matéria de vigilância e repressão “nada vem sendo feito nos últimos trinta anos”. E em seguida exige-se que o Estado tome medidas de exceção contra os imigrantes e os muçulmanos. A direita fala em emendar a Constituição; o ministro do Interior se preocupa com “seções de cozinha comunitária” nos hipermercados; jornalistas exigem que silenciem o Conselho de Estado, o Conselho Constitucional e a Corte Europeia de Justiça a fim de que mais nada possa entravar as detenções administrativas arbitrárias e as prisões motivadas por uma mera ficha policial. As mesmas pessoas acrescentam que é preciso proibir os “discursos de ódio” nas redes sociais, sem perceber que
suas falas são também venenosas, mas em canais de notícia 24 horas. O horror de um crime teria conseguido favorecer o apoio finalmente unânime da população aos professores, que os sucessivos governos reduziram ao papel de variável de ajuste orçamentário e colocaram à mercê das pressões dos pais de alunos. Em vez disso, um cheiro de “guerra de civilização” surge de novo. Isso só fará o povo francês se dividir em frações que serão devolvidas sistematicamente – e não somente os fundamentalistas muçulmanos ou a extrema direita – à sua “comunidade”, à sua família, ao seu Deus.1 É contra essa máquina infernal que “nada vem sendo feito nos últimos trinta anos”. *Serge Halimi é diretor do Le Monde Diplomatique. 1 L er “‘Ahmadinejad, mon héros’” [“Ahmadinejad, meu herói”], Le Monde Diplomatique, ago. 2016.
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Le Monde Diplomatique Brasil
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EDITORIAL
Para você que vai votar! POR SILVIO CACCIA BAVA
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© Claudius
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stamos às vésperas de escolher 5.570 prefeitos(as) e 56.600 vereadores(as). Na cidade de São Paulo são 14 candidatos(as) à prefeitura e 1.997 candidatos(as) à vereança, segundo o TSE. Disputam 55 vagas. Nas capitais são 24.133 candidaturas. Ao todo, são 545.036 pessoas inscritas até 28 de outubro de 2020 para disputar o pleito. É muita gente! Como você vai escolher seu candidato ou candidata em meio a tanta gente? Pouco se conhece da posição dos partidos políticos nestas eleições e dos programas dos(as) candidatos(as) que agora estão defendendo educação, saúde, melhoria na mobilidade, e tudo o mais de que o povo precisa ou quer. Confunde, pois esse discurso aparece com a eleição e some depois dela. A questão não é fácil e merece uma reflexão. Historicamente, as prefeituras e câmaras municipais têm sido controladas pelos interesses de grupos empresariais que não estão preocupados com a qualidade de vida da população. Encaram a cidade como uma oportunidade de negócios e atuam na prestação de serviços às prefeituras e/ou exploram o mercado imobiliário e de obras públicas. Eles ajudam financiando as campanhas eleitorais e depois cobram dos eleitos que defendam seus interesses. São grupos econômicos fortes na área dos transportes coletivos, da coleta e destinação do lixo, do asfaltamento de ruas; são incorporadoras que querem mudar o zoneamento da cidade para facilitar seus empreendimentos imobiliários; são prestadores de serviços de manutenção da cidade etc. Controle de qualidade dos serviços, nem falar! A lógica é: se eu ajudo você a se eleger, você me ajuda a ganhar o dinheiro público. Esse “me ajuda” não tem nada de democrático ou republicano. É falcatrua. É crime. Em alguns casos, como a aprovação de leis, é legal, mas atende ao interesse privado, não ao interesse público. Tudo isso só aumenta a desigualdade entre os territórios e moradores e moradoras da cidade. Para enfrentar a pandemia, a recessão, o desemprego e toda a crise social que se aprofunda, um governo precisa atender ao interesse público, formular novas políticas públicas e se preocupar em resolver os problemas das maiorias empobrecidas. Então não dá para colocar o lobo tomando conta das galinhas. Não pode ser mais do mesmo. É preciso mudar o
que está aí e colocar gente nova no governo da cidade. Mas então quais são os critérios para escolher seu candidato ou candidata? Há novidades na conjuntura. Foram se constituindo ao longo dos anos atores coletivos que lutam contra as desigualdades sociais e discriminações impostas por esta sociedade dominantemente patriarcal, branca, machista, racista, homofóbica, fundamentalista, conservadora, destruidora do meio ambiente. É preciso reconhecer a importância desses atores que impulsionam as mudanças. É preciso delinear novas possibilidades de futuro, expressas nas candidaturas de jovens, mulheres, negros, sobretudo das mulheres negras, para que participem das decisões públicas. Por esse raciocínio, cabe fazer algumas perguntas que talvez ajudem você a identificar o melhor candidato ou a melhor candidata.
Quais candidatos ou candidatas se propõem a enfrentar a desigualdade social, a orientar as políticas públicas para beneficiar os mais pobres, a aumentar os tributos dos mais ricos? A defender os direitos das mulheres? A lutar contra o racismo e o genocídio dos jovens negros e pobres? A defender a diversidade sexual e a liberdade de ser o que se quiser? A defender o meio ambiente, o verde, o manejo dos resíduos sólidos e ser contra a poluição nas cidades? A enfrentar a violência e a segregação nas cidades? A valorizar as múltiplas e diversas expressões da cultura em nosso meio? A respeitar e valorizar todos os tipos de religião? Há poucos dias assistimos à vitória eleitoral do MAS, na Bolívia. Uma vitória dos interesses das maiorias – no caso, dos povos originários, como eles se definem. Mas essa vitória eleitoral só foi respeita-
da pelos que deram antes o golpe no governo de Evo Morales porque a organização e a mobilização popular garantiram isso. Antes mesmo das eleições havia mais de 150 bloqueios de estradas pressionando por eleições limpas. O mesmo está acontecendo no Chile. Dezenas de milhares de chilenos e chilenas se mantiveram mobilizados e se concentram há um ano em praças públicas. Pressionaram durante todo ano – e também agora na reta final – para que fosse respeitada a consulta popular que, afinal, decidiu que haverá uma Constituinte independente, especialmente eleita para fazer a nova Constituição democrática. Esses acontecimentos, pouco divulgados por aqui, dizem alguma coisa. Que a cidadania, quando mobilizada, garante a democracia e faz prevalecer os interesses das maiorias.
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CAPA
O poder local tem papel crucial na reconstrução da democracia Desde o fortalecimento da extrema direita, a partir de 2016, os embates em favor da democracia se fizeram urgentes. Contudo, a agenda política progressista parece não ter dado a devida importância às conexões entre a questão municipal, a questão democrática e as políticas urbanas POR BEATRIZ FLEURY E SILVA, CARINA SERRA AMANCIO, CLARICE OLIVEIRA, CESAR VIEIRA, CONRADO FERRATO, ION DE ANDRADE, JOSÉ RICARDO FARIA, MARCELO LEÃO E MARIA CAROLINA MAZIVIERO*
EXPERIÊNCIAS RECENTES DA DIREITA NOS MUNICÍPIOS Precisamos ser sinceros: a destruição de políticas públicas de amparo social é figurinha repetida na história brasileira. O discurso da direita por um Estado mais enxuto é como um vilão de filme ruim, que eternamente reaparece para assombrar a história, não importa quão abalado ele esteja. Mesmo depois de inúmeros exemplos ao redor do planeta de que o receituário do Consenso de Washington não é capaz de produzir governos sustentáveis e satisfatórios para as populações que eles tutelam, nos planos de gover-
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© Jonas Pacheco/Unsplash
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m 2020 teremos as primeiras eleições após a ascensão dos partidos de ultradireita para o centro do cenário político brasileiro, ainda na esteira do golpe de 2016. Com praticamente metade de seu mandato completo, a eleição pode servir de referendo para o governo Bolsonaro e sua avalanche conservadora no Congresso, nas assembleias e nos governos estaduais. Ainda que uma guinada à direita ou à esquerda nas prefeituras e câmaras de vereadores possa indicar se existe esperança de um fim para a tresloucada aventura fascista em que o Brasil se enfiou neste começo de século XXI – aventura com resultados possivelmente catastróficos para o futuro tanto de nossa população e da nação quanto do próprio bioma em que estamos inseridos –, é uma pena que esse embate ofusque a importância das eleições municipais, onde deveriam ser apresentadas e debatidas as políticas públicas que atingem de maneira mais direta a população. Precisamos falar sobre o avanço predatório da direita não apenas sobre as instituições democráticas da República, mas também sobre os efeitos práticos que uma avalanche conservadora nas eleições municipais teria para o futuro das cidades brasileiras, principalmente em tempos de pandemia.
Precisamos falar sobre o avanço da direita nas eleições municipais no dos partidos da direita brasileira ainda borbulham os temas da austeridade fiscal, sempre em oposição ao mito da “ineficiência do Estado”. Na prática, estamos comprando a solução de quem criou o problema: a ideologia neoliberal fomenta o desmonte de políticas públicas construídas arduamente durante anos em nome de uma suposta prosperidade econômica que nunca chega, é sempre adiada para amanhã, enquanto os trabalhadores seguem cada vez menos amparados pelos direitos historicamente conquistados no agora. Quanto mais tempo se alongar um governo de direita, mais frágeis se tornarão o Estado democrático de direito e as instituições que o suportam, capazes de promover o mínimo de equanimidade social. Enquanto nossas cidades continuarem brutalmente desiguais como estão, o receituário da direita fará sucesso nas terras tupiniquins. Então se engana quem pensa que essa ascensão da direita por toda parte foi uma colheita inesperada: estamos plantando as sementes dessa crise há décadas.
Vejam, por exemplo, que o último ciclo de gestões municipais já foi muito marcado pelo arrocho dos servidores públicos. Na onda do ajuste fiscal que ganhou força no nível federal com a gestão Temer, diversos municípios colocaram em prática suas próprias medidas de ataque aos funcionários públicos. Em Curitiba, o ajuste ficou conhecido como “Pacotaço do Greca” e promoveu a suspensão de planos de carreira, desvalorização dos salários, limitações às atividades sindicais, entre outros aspectos, causando a revolta dos servidores – especialmente os da educação –, que foram fortemente reprimidos em suas manifestações. Por outro lado, com a justificativa dos prejuízos decorrentes da pandemia, a Prefeitura destinou dezenas de milhões de reais para as concessionárias do transporte público sem nenhuma contrapartida, evidenciando também a subordinação do governo aos interesses empresariais. Outro caso emblemático ficou escancarado por causa da pandemia. No falso Fla-Flu entre a economia e a
vida, prefeituras que foram menos assertivas nas medidas de distanciamento e mais lenientes com a abertura do comércio e as aglomerações tiveram pior desempenho no enfrentamento à pandemia. Uma pesquisa realizada em março e divulgada no jornal O Globo mostrava a relação diretamente proporcional entre o aumento do contágio e o maior apoio dos eleitores a Bolsonaro, o que permite atribuir parte desse resultado aos comportamentos induzidos pelo presidente. Não fosse a atuação decisiva dos governos estaduais e municipais para colocar em prática e endossar as medidas na redução do contágio, de assistência social e médica e de transparência de informações aos cidadãos, a resposta brasileira à pandemia, que já é uma das piores do mundo, seria ainda mais lúgubre. No campo da segurança pública, o xodó da direita raivosa e saudosa da ditadura militar, a ascensão conservadora também significou a intensificação da criminalização dos mais pobres e o aprofundamento do massacre da juventude negra. Apesar de
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curso, a participação nos Conselhos Municipais foi cerceada, o quadro técnico municipal sistematicamente desvalorizado e a Secretaria de Urbanismo extinta. A revisão do Plano Diretor tem sido realizada por decreto, ignorando o processo participativo previsto por lei.
EXISTEM ALTERNATIVAS PARA EVITAR O DESASTRE? O BrCidades, uma rede formada por urbanistas, engenheiros, jornalistas, membros do Judiciário, profissionais da área de saúde, entre outros especialistas, cujo objetivo é propor um debate profundo sobre nossas cidades e as alternativas para as políticas urbanas deste país, tem se debruçado sobre o assunto a fim de encontrar caminhos e alternativas diante desse cenário desastroso. Por exemplo, em Curitiba, membros da Rede BrCidades criaram um documento elaborado com base em diálogos entre movimentos sociais, grupos organizados e lideranças para incluir e pautar pontos centrais para as candidaturas de 2020. A Plataforma da Política Urbana – Por um Projeto Popular para Curitiba procura conectar as questões que atravessam o cotidiano das pessoas e as candidaturas do Legislativo local, já tendo sido subscrita por 45 entidades. Em Maringá, os membros do BrCidades, estruturados no grupo de trabalho denominado Eleições 2020, lançaram a Agenda Urbana Maringá, um conjunto de ações de incidência na eleição municipal. Foi criada uma Carta Compromisso, elaborada com base na Agenda Urbana Maringá. A Carta foi amplamente divulgada e apresentada às candidaturas à Prefeitura de Maringá, convidando-as, uma vez eleitas, a orientar sua gestão pela plataforma do direito à cidade, que tem como objetivo a configuração de uma nova agenda urbana para promover cidades socialmente justas, inclusivas, democráticas e ambientalmente sustentáveis. Em Porto Alegre, o Núcleo BrCidades atuou em conjunto com outros coletivos e organizações locais engajados na construção de cidades mais equânimes e democráticas. O Núcleo contribuiu com a Plataforma Atua PoA, um coletivo que surgiu em meados de 2019, formado para atuar na garantia dos direitos perante a revisão do Plano Diretor. O Atua PoA, em conjunto com diversas organizações, participa da mesa de negociações no Ministério Público Estadual junto à Prefeitura. Em março de 2020, o MP recomendou que a revisão fosse suspensa por ocasião da pandemia de Covid-19. O Núcleo também participou da formulação da Carta aos Candidatos
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ser um tema bastante afeto aos governos estaduais, que gerem as forças policiais militares, o aumento das atribuições das guardas municipais, a partir de 2014, coloca esse tema também na agenda dos municípios. É nas políticas urbanas, porém, que os impactos das gestões municipais dos partidos do campo conservador se tornam ainda mais evidentes. Transporte público, moradia, saneamento ambiental, infraestrutura e serviços urbanos, gestão de resíduos e regulação do uso e ocupação do solo são alguns dos temas mais importantes nas políticas municipais e se relacionam tanto com a garantia de direitos humanos e sociais quanto com os interesses empresariais das indústrias da construção civil, dos transportes e do mercado imobiliário. Exatamente por esse motivo, o viés ideológico dos governos municipais é fundamental para as possibilidades de construção da justiça urbana e do direito à cidade. Nos municípios administrados por partidos de corte neoliberal, ou politicamente conservadores, é fácil constatar a ampliação dos casos de despejos forçados, a redução de recursos para a política habitacional e a instituição de privilégios para o capital imobiliário e setores empresariais do transporte e da construção civil. A recorrente flexibilização de normas de uso e ocupação do solo, a concessão de benefícios como cotas de potencial construtivo e a revisão dos planos diretores com a adoção de diretrizes pró-mercado têm sido a tônica dos governos municipais de direita. Durante a pandemia, essas práticas ganharam a “oportunidade” de serem adotadas com a supressão dos processos públicos de consulta e deliberação, configurando o que se convencionou chamar de “boiadas urbanísticas”, inspirado nas boiadas ambientais do ministro Ricardo Salles. Em Maringá, cidade média no norte do Paraná, assiste-se, neste momento, a uma intensa movimentação por parte da gestão pública na busca por alteração da legislação urbanística, em sua maioria voltada à intensificação do solo ou à mudança de uso. Essas solicitações de mudança têm ocorrido em plena revisão do Plano Diretor, a qual deveria ser suspensa pela impossibilidade de eventos participativos. Em Porto Alegre, capital reconhecida internacionalmente pela experiência pioneira do Orçamento Participativo (OP), o cenário atual é de descaso com as esferas de participação social. O OP chegou a ser cancelado temporariamente em 2017, com a justificativa de falta de recursos. Projetos de lei para a extinção dos fundos municipais foram postos em
da Rede do Urbanismo contra o Corona RS, desenvolvida durante a pandemia, e da criação do documento unificado no combate à Covid-19 nas periferias urbanas, favelas e junto aos grupos sociais vulneráveis.
PARTICIPAR É PRECISO Desde o fortalecimento da extrema direita, a partir de 2016, os embates em favor da democracia se fizeram urgentes. A agenda política progressista parece não ter dado a devida importância às conexões entre a questão municipal, a questão democrática e as políticas urbanas. No entanto, o poder local tem papel crucial na reconstrução da democracia, pois é nesse nível que a população vivencia cotidianamente retrocessos e avanços na experiência urbana que são a expressão perceptível da sociedade como ela é. Como exemplo, a gestão orçamentária participativa, a urbanização de favelas, a criação dos corredores de ônibus, as melhorias habitacionais e urbanas por autogestão e muitos outros programas assinaram um marco de esperança para a superação de uma sociedade atrasada e extremamente desigual. Em contrapartida, as mobilizações e a multiplicação de iniciativas periféricas espalhadas pelos municípios brasileiros sinalizam para necessidades não atendidas e mudanças sociais e urbanas possíveis. A gestão das cidades nos próximos anos será tarefa das mais complexas, em virtude da emergência de uma imensa diversidade de problemas a resolver nos territórios e de um protagonismo local com reivindicações específicas, representatividade e capacidade de mobilização. Tal configuração pressionará as atuais formas de tomada de decisão, baseadas na liturgia da democracia representativa, repondo na ordem do dia elementos incontornáveis de democracia direta, sobretudo no que toca às questões locais que agregam no Brasil um imenso passivo produzido por séculos de exclusão social. A incorporação de elementos de democracia direta à tomada de decisões nas cidades posiciona a esquerda em vantagem se vier a buscar inspiração em experiências como a do Orçamento Participativo. Os exercícios importantes de discussão dos planos diretores municipais, arena onde se enfrentam projetos de cidade muitas vezes irreconciliáveis e cruciais para a definição da macropolítica urbana, não são suficientes para resolver os desafios colocados por questões importantes nos contextos locais que escapam às definições do Plano Diretor. A esquerda, com sua tradição
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mais colegiada e participativa na tomada de decisões, está mais bem posicionada para construir as pontes entre a macro e a micropolítica urbana e as saídas que escapam à formalidade institucional. Outro aspecto crucial é o que se refere à disponibilização dos orçamentos públicos para a agenda do direito à cidade. De fato, a democracia participativa no nível local, aliada à ampliação da democracia representativa nos níveis macro da tomada de decisões nas cidades, se não estiverem acompanhadas da disponibilização de orçamentos públicos para essa agenda, serão como “fé sem obras” ou como um discurso teórico sem conteúdo prático. Portanto, os orçamentos públicos devem estar voltados para o enfrentamento dessa problemática que incorpora uma imensa diversidade, uma vez que a exclusão social se exprime como um caleidoscópio de problemas extremamente complexo. É a razão por que seu uso só poderá ter foco e alcance na medida em que esteja guiado pela única chave de leitura coerente dessa diversidade: a materialização da vontade coletiva da população que vive nesses territórios reais e heterogêneos. Some-se ao aprofundamento da democracia e à disponibilização de orçamentos públicos o entendimento de que esse processo participativo fortalece o protagonismo popular, produzindo em número e qualidade uma cidadania participativa que tem papel na estabilização do Estado de direito e na continuidade da ampliação dos espaços democráticos, viabilizando, com sua participação cidadã, a agenda do direito à cidade. É essa a receita que vêm seguindo diversas experiências acompanhadas de perto pelo BrCidades. O Orçamento Legislativo Participativo de Florianópolis, a gestão municipal participativa da Prefeitura do Conde, na Paraíba, ou a Rede Inclusão de Natal ilustram o que nossa rede enxerga como caminho para a construção do Projeto Popular de Cidades em alternativa às políticas neoliberais que vêm nos afligindo nos últimos anos. Precisamos direcionar nossas energias para repensar a vida urbana e apostar nos protagonismos dos novos movimentos sociais periféricos. É hora de propor cidades mais justas, democráticas e ambientalmente viáveis.
*Beatriz Fleury e Silva, Carina Serra Amancio, Clarice Oliveira, Cesar Vieira, Conrado Ferrato, Ion de Andrade, José Ricardo Faria, Marcelo Leão e Maria Carolina Maziviero são membros da Rede BrCidades.
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DESPERSONALIZAÇÃO E POSITIVAÇÃO
A direita disputa Fortaleza A entrada de Bolsonaro na disputa municipal de Fortaleza ocorreu no início de outubro. Em live transmitida no dia 8, o presidente afirmou: “Em Fortaleza tem um capitão lá. Se Deus quiser vai dar certo, já está na frente”, numa clara referência ao Capitão Wagner, que despontou em primeiro lugar nas pesquisas POR MONALISA SOARES LOPES* © Rodrigo Capote/WRI Brasil
Duas candidaturas de direita disputam a Prefeitura de Fortaleza
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esde 2018, especula-se em que medida a onda conservadora e de direita conseguirá se reproduzir em nível municipal. Na análise de Antonio Lavareda e Antônio Fernandes,1 os aspectos que tornaram 2018 uma disputa crítica já estavam anunciados no último pleito municipal: crise econômica, rejeição ao PT e candidatos outsiders vitoriosos. Devemos, portanto, pensar as candidaturas de direita, na atual disputa, não apenas como um reflexo da organização de 2018, mas também como fluxo de um processo que obteve destaque nas grandes cidades já em 2016. Apresento as estratégias e embates de duas candidaturas que disputam votos, no campo da direita, para a Prefeitura de Fortaleza: Capitão Wagner (Pros), representante do fluxo iniciado em 2016, e Heitor Freire (PSL), que emergiu na onda de 2018. Wagner é deputado federal (20192022), foi vereador (2013-2014) e deputado estadual (2015-2018). Em sua trajetória prévia à carreira política, evidenciou sua vinculação às forças de segurança pública, na condição de capitão da Polícia Militar do estado do Ceará. Heitor Freire, também deputado federal (2019-2022), em sua trajetória destaca a relação com a Igreja evangélica, que lhe concedeu a oportunidade de estudar fora do país e trabalhar em bancos internacionais. Apesar de disputarem o mesmo espectro político e terem feito campanha para Bolsonaro em 2018, foi em torno da candidatura de Capitão Wagner que se reuniram as lideranças eleitas na onda bolsonarista: o senador Eduardo Girão (Podemos), o deputado federal André Fernandes (Republicanos), além de figuras já estabelecidas, como os deputados estaduais Dra. Silvana (PL) e delegado Cavalcante (PSL), entre outros. É relevante destacar que o distanciamento de Freire do núcleo bolsonarista ocorreu em 2019 por um dissenso com o presidente, que o acusou de ter vazado o áudio de uma conversa entre os dois. Wagner reuniu nove partidos em sua coligação (Pros, Republicanos, Podemos, Avante, PSC, PMN, PMB,
PTC e DC), tendo como vice a advogada Kamila Cardoso (Podemos). Já Heitor Freire firmou aliança apenas com o PRTB, do vice-presidente Hamilton Mourão, e a cabo da Polícia Militar Laurice Maia (PSL), filiada no dia da convenção, ficou como vice. Se a campanha de Wagner foi exitosa em reunir as lideranças bolsonaristas, o léxico e os símbolos mais expressivos da direita que compuseram a campanha do presidente em 2018 não ganham notoriedade em sua propaganda eleitoral na TV. Os programas têm sido dedicados à produção da imagem retomando sua trajetória pessoal e profissional. Busca-se apresentá-lo como alguém oriundo da periferia, que “venceu na vida” pelo esforço na educação. Por isso, conheceria os problemas da maioria da população. A pauta da segurança, que marcou sua inserção na vida pública, fica esmaecida diante de novas imagens, como a de professor e liderança política independente. A relação com o bolsonarismo emerge na menção ao governo federal, não diretamente ao presidente, e à conquista de recursos para o enfrentamento à Covid-19 no Ceará. A bandeira do Brasil aparece rápida e sutilmente; as cores que marcam a comunicação visual são o branco, o roxo e o azul. Os programas de Heitor Freire, por sua vez, emulam os signos mobilizados na campanha de Bolsonaro em 2018. As referências às redes sociais, às cores da bandeira nacional, à
ideia da necessidade de “endireitar” Fortaleza, entre outras, fazem a linha direta com a onda que se espalhou no último pleito nacional. A direita, como espectro político, é acionada explicitamente no mote “a direita faz direito”. Uma das peças veiculadas chama atenção: num quiz de conhecimento sobre o candidato, são lidas perguntas que envolvem informações sobre Freire e seus concorrentes. Na tela, dividida em duas colunas, SIM e NÃO, o candidato se posiciona quando da leitura. Chamam atenção as assertivas que demarcam críticas a Wagner. São elas: a) Precisa de colete à prova de balas para entrar na favela?; e b) Já esteve do lado do PT alguma vez na vida? A segunda pergunta sinaliza uma disputa sobre o monopólio da representação da direita, buscando sugerir falta de pureza e/ou oportunismo do adversário na defesa das causas e valores. A entrada de Bolsonaro na disputa municipal de Fortaleza ocorreu no início de outubro. Em live transmitida no dia 8, o presidente afirmou: “Em Fortaleza tem um capitão lá. Se Deus quiser vai dar certo, já está na frente”, numa clara referência a Wagner, que despontou em primeiro lugar nas pesquisas. Na mesma ocasião, Bolsonaro também se referiu, de modo negativo, a Freire, chamando-o de “cara de pau” pelo fato de ter rompido com o grupo e estar usando sua imagem. Os comentários do presidente repercutiram na imprensa local.
Wagner afirmou a relevância do apoio, enquadrando-o na perspectiva da importância do acesso a recursos para a cidade. Heitor Freire, por sua vez, afirmou que o desentendimento com o presidente foi fruto de fofoca e voltou a disputar com Wagner o posto de bolsonarista autêntico: “Sou o deputado mais fiel a Bolsonaro nas votações”. Estendendo sua disputa para o espectro da direita, Freire continuou: “Votou contra a reforma da Previdência. Já apoiou o PT no passado [...]”, referindo-se a Wagner. A pesquisa Datafolha de 17 de outubro trouxe os candidatos de direita em posições opostas: de um lado, Capitão Wagner, consolidado em primeiro lugar (33%); de outro, Heitor Freire, que nem sequer pontuou. Um dado relevante nesse levantamento é a rejeição do eleitorado a um candidato apoiado pelo presidente (64% dizem não votar de jeito nenhum). Wagner, por sua vez, é o candidato mais mencionado (27%) diante da questão: “Quem Bolsonaro apoia na disputa?”. Tal dado levanta questões sobre como é possível ao candidato do Pros, que reúne o apoio do presidente e das principais lideranças bolsonaristas do estado, ter uma performance tão positiva nas pesquisas. Elenco dois motivos: 1) o recall do pleito de 2016, no qual ele foi ao segundo turno; e 2) a pré-campanha, que foi bastante presente nas redes sociais e na cobertura midiática. Mais especificamente sobre a associação com Bolsonaro, é relevante ainda destacar que a campanha de Wagner tem buscado despersonalizar e positivar a relação, mencionando o governo federal e a conquista de recursos, em vez de nominar diretamente o presidente. Por ora, Capitão Wagner não tem precisado lidar com a campanha negativa que o associa a Bolsonaro. Seus opositores diretos, Luizianne Lins (PT) e Sarto Nogueira (PDT), segunda e terceiro colocados nas pesquisas, respectivamente, não propuseram tal associação. O fato de estar isolado no primeiro lugar e ter vaga praticamente assegurada no segundo turno parece garantir ao candidato do Pros a possibilidade de enfrentar o imbróglio da rejeição de Bolsonaro em Fortaleza somente na segunda volta. Até lá veremos se a estratégia de despersonalização e positivação terá funcionado. *Monalisa Soares Lopes é professora do Departamento de Ciências Sociais da UFC e pesquisadora do Laboratório de Estudos sobre Política, Eleições e Mídia (Lepem/UFC). 1 A ntonio Lavareda e Antônio Fernandes, “Um ciclo de eleições críticas: 2018 começou em 2016”. In: Antonio Lavareda e Helcimara Telles, Eleições municipais: novas ondas na política, FGV Editora, Rio de Janeiro, 2020.
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DIREITA AVALIA APOIO DE BOLSONARO
Porto Alegre e suas contradições eleitorais Não há dúvida de que Porto Alegre fez uma virada à direita no século XXI, mas é preciso pontuar dois aspectos: há um eleitorado de esquerda e centro-esquerda expressivo na cidade e o município – assim como o estado do Rio Grande do Sul – nunca elegeu governadores e prefeitos da extrema direita POR CÉLI PINTO*
o PT. Em 2012, Fortunati, no PDT, ganhou em primeiro turno, com 65,22% dos votos e, em 2016, pela primeira vez desde 1988, a esquerda sequer chegou ao segundo turno. Não há dúvida de que Porto Alegre fez uma virada à direita no século XXI, mas é preciso pontuar dois aspectos: há um eleitorado de esquerda e centro-esquerda expressivo na cidade e o município – assim como o estado do Rio Grande do Sul – nunca elegeu governadores e prefeitos da extrema direita, não embarcando em candidaturas do tipo Witzel no Rio, Zema em Minas Gerais ou Moisés em Santa Catarina. Visto o quadro formado pelas eleições majoritárias, vale chamar atenção para a composição da Câmara Municipal de Porto Alegre. Tomando as três últimas legislaturas, é expressivo o aumento de vereadores de partidos de direita. De 2012 para 2016, a esquerda e o centro perderam 33% de sua representação, enquanto os partidos de direita aumentaram 41%. Por isso, ao pensar na virada para a direita da cidade, uma pergunta se impõe: como os candidatos de centro e de direita à prefeitura, em 2020, se relacionarão com o governo Bolsonaro? Na nominata de treze candidatos, tirando Manuela d’Ávila, da coligação PCdoB-PT, Fernanda Melchionna, do Psol, Juliana Brizola, do PDT, Luiz Delvair, do PCO, e Julio Flores, do PSTU; os demais candidatos, todos homens, representam partidos de centro ou de direita. Três deles têm trajetórias curiosas, pois saíram de partidos de esquerda e agora são candidatos da direita. João Derly foi vereador pelo PCdoB e é candidato pelo PR. Rodrigo Maroni foi vereador pelo PCdoB, passou pelo PT, Psol, PR, Podemos e agora é candidato do Pros. José Fortunati é o mais surpreendente, pois foi líder sindical dos bancários na juventude, fundador do PT, prefeito eleito pelo PDT de Porto Alegre e é candidato pelo PTB, partido
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orto Alegre é uma cidade eleitoralmente complexa. Nas últimas cinco eleições presidenciais, desde a primeira vitória de Lula até a de Bolsonaro, seus eleitores votaram majoritariamente, por duas vezes, em candidatos vencedores, por coincidência com a mesma proporção de votos no segundo turno. Em 2002, Lula obteve 56,23%; em 2018, Bolsonaro teve 56,84%. As demais eleições na capital gaúcha deram vitória aos perdedores: em 2006, Alckmin obteve 53,08%; em 2010, Serra teve 55,93%; e, em 2018, Aécio teve 53,93%. Desavisadamente, seria possível concluir que a votação de 2002 foi um descuido desta população conservadora, que se entusiasmou com a força do PT no Brasil. O fenômeno, contudo, é mais complexo. A cidade foi a única capital do país que teve, por dezesseis anos seguidos, a partir de 1989, prefeitos do PT: Olívio Dutra, Tarso Genro, Raul Pont e novamente Tarso Genro. Na primeira década do século XXI, apesar dos resultados adversos para a esquerda nas eleições presidenciais, o voto para governador não repetiu resultado semelhante na capital. Em 2002, o estado elegeu o PMDB, mas o PT ganhou em Porto Alegre (50,1% versus 49,8%). Em 2006, o PSDB se elegeu, mas perdeu em Porto Alegre por centésimos para Olívio, do PT. Já em 2010, Tarso se elegeu governador do estado em primeiro turno, com 51,04% dos votos da capital, contra 26,1% do candidato do PMDB. A partir de 2014, o PT passou a mostrar fragilidades cada vez maiores. Nesse ano, Tarso não se reelegeu e, em 2018, a esquerda não chegou ao segundo turno. Também nas eleições para prefeito, após dezesseis anos de hegemonia, a esquerda não chegou mais ao poder. As quatro eleições municipais que se sucederam foram ganhas por candidatos de partidos de centro: em 2004 e 2008, venceu Fogaça, do PMDB, nas duas vezes em disputa contra
de Roberto Jefferson, um dos grandes apoiadores do governo Bolsonaro. Representam partidos de centro o atual prefeito Marchezan Junior,1 do PSDB, e o deputado estadual Sebastião Mello, do MDB. Aparece ainda, em uma posição muito secundária, o candidato do PV, Montserrat Martins. Marchezan e Mello, que já disputaram um segundo turno em eleições municipais passadas, devem se manter na mesma toada de centro. Nenhum se arriscará defendendo a cloroquina ou negando a pandemia. O atual prefeito tem se esforçado para passar a imagem de preocupado com a Covid e de seguidor de normas científicas. Mello, por sua vez, está em um MDB gaúcho, mais distanciado do bolsonarismo do que o nacional. Cinco candidatos estão no campo estrito da direita, dois sem nenhuma expressão política: João Derly (PR) e Rodrigo Maroni (Pros). Outros três representam uma direita com tradição política: Fortunati (PTB), Gustavo Paim (PP), que foi vice-prefeito de Marchezan, e Valter Nagelstein (PSD), um vereador de muitas legislaturas. Entre eles, há muitas diferenças: o primeiro foi prefeito pelo PDT e provavelmente explorará a condição de ex-prefeito durante a Copa do Mundo. Ainda há na cidade obras inacabadas da Copa, mas ele enfatizará suas realizações. Mesmo em um partido que hoje é íntimo do presidente da República, Fortunati deverá tentar se afastar do governo federal para manter um eleitorado que supõe cativo, ou mesmo nostálgico, de seu tempo de militante de esquerda. Os outros dois candidatos, Paim e Nagelstein, em debates e na propaganda política, se declaram de direita. O primeiro, autodeclarado de centro-direita, fala em lei e ordem, defende as escolas cívico-militares e a cloroquina. O outro define-se como o candidato mais à direita e foi protagonista de um escândalo, no início do ano, quando postou uma coreografia caseira do “meme do caixão”, com sua
família dançando, com máscaras nas mãos, enquanto simulava o cortejo fúnebre de alguém que havia morrido de Covid.2 Na propaganda eleitoral, repete o mantra bolsonarista de que a saúde é tão importante quanto a economia. Não cita o presidente, mas se declara repetidamente um conservador nos costumes. Em diversas oportunidades, diz que é casado com a mesma mulher há 27 anos, com a qual tem todos os seus filhos. Isso soa irônico, pois Bolsonaro, o conservador, é casado pela terceira vez e tem filhos com todas as esposas. Os dois candidatos apostam no chamado bolsonarismo de raiz e em uma classe média porto-alegrense que foi amplamente bolsonarista nas eleições de 2018, mas também pró-Sergio Moro e anti-PT, o que complica bastante as pretensões de quaisquer dos candidatos no atual cenário. Escrevo faltando quase um mês para o primeiro turno. Neste momento, parece-me que a tendência é que esses candidatos busquem amealhar votos na direita conservadora da cidade, sem, no entanto, associarem-se fortemente a Bolsonaro, que vem perdendo espaço entre os setores médios “educados” de Porto Alegre. Se um deles chegar ao segundo turno, o que é bem pouco provável, a história será outra e a aproximação com o nome Bolsonaro poderá ser diferente. Isso depende, inclusive, da disposição do próprio presidente de entrar nas disputas municipais fora do eixo Rio-São Paulo, onde tem sua base política e interesses privados a defender. *Céli Pinto, cientista política, é professora emérita da UFRGS. 1 M archezan Junior está passando por um processo de impeachment na Câmara Municipal. Como tem franca minoria na casa, é possível que perca o mandato, não podendo continuar como candidato. 2 Há inúmeras notícias nas redes sociais e na imprensa sobre esse vídeo e ele pode ser visto em clickpb.com.br. Após a repercussão, o vereador pediu desculpas.
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“NÃO HÁ NADA MAIS CONSERVADOR DO QUE UM LIBERAL NO PODER”
O conservadorismo pernambucano: uma breve história Na capital pernambucana, a forma mais sofisticada de a oligarquia se manter no poder foi incorporar parte das lutas da esquerda como plataforma política POR ÉRICO ANDRADE* © Túlio Assis/Wikimedia
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populismo como matéria política da direita está presente com força no Brasil após o período da redemocratização. Ele se espraia de diferentes modos pelo país e na maioria dos estados ainda mantém a forma do coronelismo. Este último tomado – seguindo aqui uma definição mínima – como uma política oligárquica voltada aos interesses regionais e familiares. Essa definição é suficiente para nos fazer perceber como ele ainda pauta a política nacional. A diferença do coronelismo atual em face daquele da Primeira República repousa no fato de que a industrialização das cidades e o aumento de pessoas habilitadas a votar, após a Constituição de 1988, o forçaram a assumir novas camadas e roupagens para manter seu protagonismo político. Estamos falando da força das famílias que comandam o Brasil e que em cidades seculares como o Recife, sobre a qual se volta mais especificamente meu artigo, nunca estiveram dispostas a uma virada política mais à esquerda. Na capital pernambucana, a forma mais sofisticada de a oligarquia se manter no poder foi incorporar parte das lutas da esquerda como plataforma política. Isso explica por que a primeira eleição direta para prefeito da cidade foi ganha por um partido que levava socialismo no nome (Partido Socialista Brasileiro), mas que contava com a anuência de partes das elites, ligadas sobretudo às famílias tradicionais do estado. Nesse sentido, a oligarquia operava com um suposto direcionamento à esquerda, mas que era chancelado por um pacto de centro. Esse pacto selava uma aliança entre Jarbas Vasconcelos, que migrou para o PSB apenas para ser candidato, uma vez que tinha perdido espaço no MDB, e Miguel Arraes, casado com uma das grandes representantes da elite local. Assim, na primeira eleição direta, a oligarquia já passou a governar a ci-
No Recife, a oligarquia incorporou pautas da esquerda na sua plataforma política dade num arranjo político que transformava a esquerda em centro. Esse centro político era composto por certos descendentes da aristocracia canavieira, sobretudo intelectualizados, que se associaram a uma compreensão mais urbanizada da política na qual os interesses aristocráticos não estavam diretamente em questão. Ou seja, a oligarquia se organizou em torno de pautas compatíveis com a cidade, que recebia cada vez mais pessoas oriundas do campo, sem mudar a estrutura fundamental da divisão social do estado como um todo. Os diferentes arranjos políticos subsequentes não alteraram a ordem oligárquica e no máximo mudaram o protagonismo dos atores, que se reorganizaram partidariamente a fim de manter certas famílias, como Cavalcanti e Magalhães, no poder. Só com a vitória de João Paulo Lima e Silva, do Partido dos Trabalhadores, em 2000, a prefeitura passou a ser governada por alguém de fora do sistema político tradicional e com a marca do operariado. Impulsionado pelo crescimento do PT e por fatos internos, como a defesa de uma ocupação
que lhe custou uma vértebra fraturada, João Paulo conseguiu mudar o mapa político da cidade por uma década. Quando o candidato João da Costa, indicado por ele, perdeu a reeleição, as forças aristocráticas retomaram a prefeitura, mas dessa vez com uma vestimenta técnica, na figura de um prefeito advindo do Tribunal de Contas e, como de costume, com uma linhagem aristocrática. Com ele se firmou uma política em que qualquer guinada mais à esquerda é obstada em nome de um governo de coalizão de centro. Essa ordem política sofre novamente uma ameaça, mas agora do espectro da extrema direita. Se é verdade que o bolsonarismo, stricto sensu, não tem o monopólio da direita na cidade, sabemos que ele arrasta consigo, contudo, uma série de oportunistas, e é nesse contexto que a candidatura de Mendonça Filho se coloca como aquela mais capaz de dialogar – submeter-se, se necessário – com o governo federal. Não se trata, nesse caso, de uma candidatura propriamente de extrema direita em seu DNA, mas de um candidato que se
coloca contra o sistema político e com um aceno significativo às pautas moralistas desse campo. Diferentemente de outros bolsonaristas de ocasião, Mendonça Filho e seu partido (Democratas) traduzem a política tradicional e oligárquica que governou a cidade em diferentes momentos, mas notadamente recupera o caráter antissistema por meio da defesa, com a hipocrisia que lhe é própria, de bandeiras de combate à corrupção e pautas morais para agradar aos eleitores(as) estritamente bolsonaristas e que ganharam volume após a eleição de Bolsonaro. Lembrando que o Partido Social Liberal, pelo qual Bolsonaro foi eleito, era presidido pelo político pernambucano Luciano Bivar e que o presidente teve uma expressiva votação em Recife tanto no primeiro turno quanto no segundo. Esse contexto político serve de esteio para a candidatura de direita mais competitiva na corrida pela prefeitura do Recife. E isso se expressa em números que apontam, segundo as últimas pesquisas de opinião, para a concentração do eleitorado mais conservador (católicos e evangélicos com faixa etária de mais de 50 anos) na figura de Mendonça Filho e indicam o fortalecimento da polarização nacional, que parece não comportar uma terceira força política. Essa é a razão pela qual o PT, cuja candidatura é protagonizada por Marília Arraes, também ligada às famílias tradicionais, perde espaço para o postulante de direita, que se coloca como a força de oposição mais consistente. Nessa perspectiva, a estratégia da candidatura de Mendonça Filho consiste, por um lado, em conferir uma conotação de esquerda para o PSB, que esse partido está longe de ter, para lhe ser o polo oposto legítimo, e, por outro, em apostar no desgaste do PT, promovido pelo antipetismo. Com isso, ela se firma como a candidatura de direita no campo conservador e como a única de fato de oposição. Assim, se é verdade que o conservadorismo não é uma posição política monolítica, sendo o bolsonarismo um de seus espectros, em Recife fica clara a máxima do período da regência: “Não há nada mais conservador do que um liberal no poder”. E o que justifica essa asserção é a percepção de que o fim último da política liberal em Recife (dos Democratas e do antigo PFL) é garantir seu modelo de família e aquilo que usurparam tanto dos negros e negras quantos dos indígenas: a propriedade. *Érico Andrade é filósofo, psicanalista em formação e professor da Universidade Federal de Pernambuco.
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À DIREITA NO RIO
Armas, privatizações e tribunais As principais propostas dos seis candidatos mais à direita na disputa para a prefeitura do Rio de Janeiro: Eduardo Paes, Marcelo Crivella, Paulo Messina, Glória Heloíza, Luiz Lima e Fred Luz POR GUILHERME SIMÕES REIS*
de seu filho a deputado federal. O prefeito é alvo ainda na investigação de outros crimes. Paulo Messina, que foi o principal secretário municipal de Crivella, foi acusado pelo Ministério Público do Rio de Janeiro em setembro de 2020 de também participar de esquemas ilegais. Segundo o MPRJ, haveria na prefeitura uma disputa por recursos da corrupção entre dois grupos, um do qual faria parte Mauro Macedo, primo de Edir Macedo e tesoureiro de Crivella, e outro liderado por Messina. Já o ex-prefeito Eduardo Paes, líder nas pesquisas, está envolvido em acusações ou denúncias de caixa dois e de fraudes na contratação das empresas de ônibus e na construção do Complexo Esportivo de Deodoro, utilizado nos Jogos Olímpicos. Eduardo Paes (Democratas) contraria a tendência recente do extremismo de direita e da negação da política. Busca se apresentar como o candidato experiente e bem avaliado que ocuparia o centro ideológico. Sua coligação de sete partidos se chama “A Certeza de um Rio Melhor”. Afirma que vai ampliar os recursos do programa Cartão Família Carioca e criar novos restaurantes e farmácias populares, oferecer tablets com internet móvel para todos os estudantes da rede pública e microcrédito para as pequenas empresas. Crivella (Republicanos) apela diretamente ao eleitorado evangélico sem os pudores laicos da eleição passada: sua coligação de oito partidos se chama “Com Deus, pela Família e pelo Rio”. Segundo a Agência Lupa, Crivella descumpriu 80% das promessas da campanha, mas seu novo plano de governo também é ousado. A meta é 80% dos serviços oferecidos estarem acessíveis pela internet até 2023. Para transformar o Rio em uma smart city, quer instalar, via PPPs, pontos de wi-fi e câmaras com reconhecimento facial. Esse tipo de vigilância e coleta de dados se estenderia às crianças, em outra inovação: a Escola Digital. Esta utilizaria uma plataforma chamada Escola.Rio, em que o registro de
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eleição para a Prefeitura do Rio de Janeiro tem o maior número de candidatos em vinte anos. Concorrem, pela esquerda, Benedita da Silva (PT), Renata Souza (Psol), Henrique Simonard (PCO) e Cyro Garcia (PSTU) e, ao centro, Martha Rocha (PDT), Clarissa Garotinho (Pros), Eduardo Bandeira de Mello (Rede) e Suêd Haidar (PMB). Este artigo apresenta as principais propostas dos seis candidatos mais à direita na disputa: Eduardo Paes, Marcelo Crivella, Paulo Messina, Glória Heloíza, Luiz Lima e Fred Luz. Vários deles anunciam que vão planejar e resolver problemas por meio de diálogo, revisar contratos e licitações, dar continuidade às obras paradas, fomentar os polos industriais e a economia criativa, fortalecer o turismo, tornar a gestão mais ágil e informatizada, integrar e valorizar as diferentes áreas da cidade e, claro, ser transparentes e rigorosos no combate à corrupção. Messina vê o armamento da Guarda Municipal ainda como possibilidade a estudar, enquanto todos os demais cinco candidatos pretendem dotar de armas de fogo ao menos parte do contingente. Por outro lado, mesmo as candidaturas mais alinhadas ao bolsonarismo ou ao conservadorismo de costumes mencionam a população LGBTQI+ em seus programas escritos. O atual governador do Rio de Janeiro está afastado e foram presos os cinco governadores anteriores (não contando os vices que assumiram). Na mesma toada, metade dos candidatos da direita a prefeito na capital do estado é investigada. A situação mais grave é a do atual alcaide, Marcelo Crivella, que tenta a reeleição. Até o envio deste artigo, sua candidatura não estava deferida e aguardava julgamento de recurso, pois foi tornado inelegível pelo TRE por causa de condenação por usar funcionários e veículos da Comlurb, companhia de limpeza urbana, para transportar servidores públicos para a campanha
entrada e saída das crianças, que receberiam notebooks, seria feito por reconhecimento facial. Crivella propõe ainda a criação do Banco Carioca de Fomento para pequenos empreendedores e muitos incentivos fiscais para grandes empresas. Paulo Messina foi líder da bancada de Crivella na Câmara Municipal e seu chefe da Casa Civil, chegando a ser chamado de “primeiro-ministro”. Em 2019, rompeu com ele e se tornou vereador de oposição. Nas duas últimas legislaturas, Messina trocou sete vezes de partido, só entrando no MDB em abril de 2020. Segundo seu programa, promete novos concursos públicos, mas realizará controle digital do ponto dos funcionários de todos os órgãos municipais. Quer revisar a concessão da Cedae, estatal de capital misto, citando o exemplo de Niterói, que privatizou os serviços de fornecimento de água e saneamento. Prevê a coleta seletiva de lixo pela Comlurb e a cessão de terreno para empresas privadas de reciclagem, com isenção de IPTU e linhas de crédito para aquisição de equipamentos.
Crivella apela ao eleitorado evangélico sem os pudores laicos da eleição passada: sua coligação se chama “Com Deus, pela Família e pelo Rio” Glória Heloíza parecia seguir os passos de Wilson Witzel em sua eleição para governador. Em março de 2020, ela pediu exoneração como juíza e filiou-se ao mesmo partido dele, o PSC, em cerimônia com o presidente da legenda, pastor Everaldo. Entretanto, este foi preso sob acusação de liderar esquema de desvio de recursos da saúde destinados ao enfrentamento da pandemia. Denunciado como cúmplice, Witzel foi afastado do cargo e sofre processo de impeachment. Ainda assim, o programa de
Glória Heloíza adota o discurso contra o “toma-lá-dá-cá da velha política” e propõe como alternativa a instituição de emendas impositivas dos vereadores no orçamento, para deixar de existir a troca de emendas dos parlamentares municipais por apoio automático deles aos projetos da prefeitura. Em seus discursos, a candidata enfatiza a necessidade cultural e para o turismo de valorização das identidades de cada bairro. O ex-nadador Luiz Lima (PSL), que ingressou na política como secretário nacional de Esportes de Alto Rendimento de Michel Temer e é vice-líder do governo Bolsonaro, tem histórico de atleta e disputa com Crivella a condição de candidato bolsonarista. Seu programa de governo prevê um “choque fiscal na máquina pública”, ou seja, a demissão de funcionários do município até “eliminar ineficiências e atingir o tamanho ideal para a força de trabalho”. Pretende privatizar a Cidade do Samba e o Sambódromo. Curiosamente, quer incentivar ensaios técnicos das escolas de samba nesse mesmo Sambódromo que pretende vender. Também visa privatizar a Cedae. Bandeira de Mello não é o único ex-dirigente do Flamengo a disputar a eleição. O candidato do Novo, Fred Luz, foi diretor-geral do clube. No partido, coordenou a campanha presidencial de João Amoêdo e participou da equipe de transição de Romeu Zema no governo de Minas Gerais. Fred Luz propõe descentralizar a gestão, fortalecendo subprefeituras. No mesmo estilo do recrutamento dos candidatos de seu partido, a escolha dos administradores regionais seguiria critérios empresariais. Faria o mesmo com os secretários municipais, vedando esses cargos aos vereadores. Zema, no entanto, fez o inverso no governo mineiro, indicando vereador do Novo para chefe da Secretaria Geral. *Guilherme Simões Reis é professor da Escola de Ciência Política da Unirio.
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PERSPECTIVA DESOLADORA NO REDUTO DA ESQUERDA
Salvador tem direita para todos os gostos Com o sucessor do prefeito ACM Neto na liderança, a direita tem ainda um candidato bolsonarista e outro que está na base de apoio do governador Rui Costa, do PT POR NINA SANTOS E THIAGO FERREIRA*
A DIREITA LIBERAL DE ACM NETO E BRUNO REIS Representando a direita (ultra)liberal na disputa, Bruno Reis é cria direta de ACM Neto, do DEM. Foi assessor do atual prefeito, depois eleito deputado estadual pelo PMDB dos irmãos Vieira Lima em 2010, contando com a força do prefeito da capital. Neto viu nesse movimento a possibilidade de atrair o partido para sua base. Em 2016, coube a Bruno o papel de vice de seu padrinho político, em um movimento que colocou para escanteio a então vice, uma mulher negra, Célia Sacramento. Em 2020, após ocupar diferentes funções na administração do DEM e contar com a máquina, ele é o escolhido para suceder a Neto depois de oito anos da volta dos carlistas à Prefeitura de Salvador. Apesar de o PT ser vitorioso em eleições estaduais e nacionais na capital baiana há muitos pleitos, a cidade foi governada pela esquerda apenas uma vez durante todo o período pós-redemocratização. Entre 1993 e 1996, o ciclo do carlismo foi interrompido por Lídice da Mata, hoje deputada federal pelo PSB, mas na época filiada ao PSDB. Lídice teve seu mandato boicotado pelo então governador ACM.
Era uma relação bem diferente da atual cordialidade que marca a relação entre Rui Costa e ACM Neto. Essa postura conciliadora talvez seja a principal diferença entre Bruno Reis e os outros dois candidatos de direita. Sua defesa das liberdades individuais não pode ser desatrelada das posições econômica e sociais. O apoio dele, junto a outros grandes nomes do DEM, como o próprio ACM Neto e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, a projetos como o Teto de Gastos e a Reforma Administrativa, representa uma clara opção pela restrição dos investimentos públicos em áreas essenciais, como a saúde. Se no mar de conservadorismo atual ele pode parecer ter uma posição moderada, não se pode minimizar o impacto que esse tipo de modelo de sociedade tem, em especial sobre os mais pobres.
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ão se pode dizer que Salvador esteja mal servida de direita nestas eleições. Após dois mandatos de ACM Neto (DEM) na prefeitura e catorze anos do Partido dos Trabalhadores à frente do governo estadual, são três os candidatos que dividem a atenção desse eleitorado que se fortaleceu e elegeu, pela primeira vez, um presidente da República de extrema direita: Bruno Reis, atual vice-prefeito e candidato do Democratas à prefeitura da cidade; Cezar Leite, médico que se elegeu vereador pelo PSDB na onda do Movimento Brasil Livre e do bolsonarismo; e pastor sargento Isidório, o fundamentalista que defende a cura gay, candidato da base do governador petista Rui Costa.
O BOLSONARISMO GANHA VERTENTE MÉDICA EM PLENA PANDEMIA Diferentemente da atuação dos democratas, Cezar Leite, vereador do PRTB, se apresenta como legítimo defensor do bolsonarismo. Em uma cidade onde Bolsonaro perdeu em todas as zonas eleitorais e atualmente, segundo o Ibope, tem a menor aprovação entre as capitais, o posicionamento visa, na verdade, alçar espaço em outras casas legislativas. Ex-militante do Movimento Brasil Livre e ex-filiado ao PSDB, Leite tentou uma vaga, em 2018, como deputado federal, mas não foi eleito. Conservador nos costumes e liberal na economia, é assim que Cezar Leite (PRTB) se declara, assumindo um tom que provavelmente seria capaz de agradar tanto à ministra Damares Alves como ao ministro Paulo Guedes. Do partido do vice-presidente Hamilton Mourão, Leite não tem direito a inserções no Horário Eleitoral Gratuito, o que não deveria ser um problema se ele seguir os passos de seu maior exemplo: o presidente Jair Bolsonaro, eleito utilizando amplas estratégias – diversas ve-
zes denunciadas como ilegais – nas mídias digitais. Não deixa de ser interessante acompanhar o desenrolar de candidaturas médicas em pleno cenário de pandemia. Assim como o ex-juiz Sérgio Moro ganhou proeminência como figura política em meio a um suposto combate à corrupção, o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta e seus inúmeros sucessores nos diversos níveis da administração ganharam visibilidade no contexto da crise sanitária. Sempre apontados como figuras técnicas e especializadas – diferentes, portanto, da tradicional imagem dos políticos –, eles tendem a ser vistos como salvadores da pátria, como se a salvação política estivesse em posicionamentos apresentados como apolíticos. A ver como isso se refletirá nestas eleições. Na pesquisa eleitoral realizada pelo Ibope e divulgada no dia 5 de outubro, Leite apareceu empatado tecnicamente com as candidatas do PT e do PCdoB, Major Denice Santiago e Olívia Santana. Elas com 6% e ele com 3%, respectivamente. A margem de erro foi de 4 pontos percentuais.
O PASTOR SARGENTO QUE É BASE DO GOVERNO PETISTA Dividida em muitas candidaturas, a base do governador Rui Costa (PT) também tem um postulante de direita para chamar de seu: o pastor sargento Isidório (Avante). Além dele, são candidatas governistas major Denice (PT), Olívia Santana (PCdoB) e João Carlos Bacelar (Podemos). A estratégia política do governador em fomentar a divisão de sua base foi buscar, segundo ele, forçar a realização do segundo turno. Para tanto, parece valer a pena inclusive incentivar a candidatura de um personagem que, de maneira contraditória, surfa na onda da direita fundamentalista e conservadora afirmando ser ex-gay e, portanto, a prova viva de que a cura gay existe. Pastor e sargento, Isidório mistura
dois campos bastante complexos: o militar e o religioso. Isidório tem na Fundação Dr. Jesus, sua clínica de reabilitação no interior do estado, o ponto de aproximação com os petistas. Com passagens pelo PT e PSB, Isidório expõe as contradições da política nacional, tendo se reaproximado dos petistas após a decisão do governador Jaques Wagner de apoiar sua clínica, sobre a qual recaem acusações de maus-tratos. Deputado federal mais votado do estado em 2018, com mais de 300 mil votos, e com o apoio e estrutura do PSD, partido dos senadores Otto Alencar e Ângelo Coronel, Isidório não é apenas o candidato folclórico (ele próprio se apresenta como o “doido”); é a direita conservadora buscando governar a prefeitura de uma das maiores cidades do país. Ele ocupa atualmente a segunda posição nos levantamentos eleitorais. Declarando-se eleitor de Fernando Haddad, o pastor sargento pede agora reciprocidade do PT caso passe para o segundo turno. Terá de combinar com os russos: a militância de esquerda, em um eventual segundo turno entre a cruz fundamentalista e a espada ultraliberal, já considera dar seus votos para o candidato de ACM Neto, temerosa com a experiência de Marcelo Crivella no Rio e a força da Bancada da Bíblia no Congresso. Em um estado considerado reduto da esquerda, essa parece uma perspectiva nada menos que desoladora. *Nina Santos é pós-doutoranda no Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital (INCT.DD) e pesquisadora associada do Centre d’Analyse et de Recherche Interdisciplinaires sur les Médias (Université Paris II); Thiago Ferreira é jornalista, pesquisador associado ao Centro de Pesquisa em Estudos Culturais e Transformações na Comunicação (Tracc-UFBA) e doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas pelo Póscom-UFBA.
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INCIDIR NA CLASSE TRABALHADORA, MAS SEM ORGANIZÁ-LA
A direita popular em São Paulo
A VIRADA
A direita popular, de Ademar de Barros, Jânio, Maluf e Russomano, está numa encruzilhada: confirmará sua decadência ou ocupará o lugar da esquerda na polarização eleitoral? POR LINCOLN SECCO*
NOVA FASE Na ditadura, a curta experiência eleitoral paulistana se interrompeu e os prefeitos foram nomeados a partir de 1969. Paulo Maluf foi primeiro “prefeito biônico” e, em 1978, eleito governador indiretamente, cargos onde desenvolveu o savoir-faire para se instalar nas franjas periféricas da cidade. Em 1985, a direita popular venceu na última campanha de Jânio. Ele e Maluf recompuseram uma corrente de opinião baseada na exploração da insegurança e em promessas de obras viárias. Só que Maluf herdou a marca ademarista do “ladrão” eficiente, enquanto a imagem de honestidade passou a ser disputada entre o PT e o PSDB. O malufismo dominou a década de 1990 e foi mais eficaz em conquistar votos de trabalhadores e das camadas médias porque ele não se definia ideologicamente e adotava formas pragmáticas. Podia esgrimir tanto o argumento da competência gerencial quanto o social. Já o PSDB transitou de uma indefinição inicial para o compromisso ideológico neoliberal. Claro que há uma zona comum de transição entre as direitas e elas não são separadas por uma fronteira nítida. Jânio foi eleito presidente da República pela UDN com o lema da vassoura que varreria os corruptos. Maluf apresentava-se antes de tudo como competente, mas foi além das promessas de grandes obras viárias e da defesa da “rota na rua” e incorporou a agenda social: um suposto plano de saúde que todo paulistano poderia ter gratuitamente e o Cingapura, projeto de habitação popular que substituiu os mutirões da gestão petista, que era acusada de criar favelas. Tanto aos favelados quanto aos seus vizinhos de classe média, Maluf prometia erradicar os barracos. Ele também apoiou Celso Pitta, o único prefeito negro eleito na história de São Paulo.
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cidade de São Paulo teve prefeitos eleitos na Primeira República, mas só entre 1953 e 1965 (e de novo a partir de 1985) eles se submeteram realmente ao voto popular. Apesar da interrupção do período ditatorial, o sistema partidário orientou o eleitorado e produziu alguns traços de longa duração. Antes de 1964, políticos como Ademar de Barros e Jânio Quadros, embora inimigos políticos, mantiveram uma corrente que podemos chamar de “direita popular”. Ela contrastava com a tradicional, que reproduzia os valores da classe média, e com a esquerda, que buscava organizar os trabalhadores como classe. Jânio conseguia ir além da classe média e disputar com a esquerda a representação dos trabalhadores e marginalizados da cidade. A biografia dele escrita por Vera Chaia mostra que aliava o atendimento a carências da periferia, como iluminação, transporte público e segurança, com uma agenda moralista contra pornografia e prostituição. Sua trajetória errática lhe permitia mobilizar valores de esquerda e direita: atuava contra o comunismo e se solidarizava com Elisa Branco, uma comunista presa injustamente. Defendia grevistas contra a violência policial e a repressão contra servidores públicos; tomava medidas contra o assédio sexual e era acusado de assediar mulheres; prometia ampliar gastos sociais, mas demitia funcionários; defendia o consumidor contra falsificações de produtos e era financiado por empresários; dizia-se liberal e pedia a proibição da Coca-Cola, do álcool aos domingos, das rinhas de galo e de shorts em bailes de Carnaval. Ao contrário de Jânio, um self made man que propagava honestidade e trabalho e teve ascensão meteórica, Ademar de Barros tinha sido interventor nomeado por Vargas e projetava a imagem de quem “rouba, mas faz”. Na década de 1950, desbancou os partidos nacionais em São Paulo.
Em 2000, o fracasso nacional tucano e a gestão mal avaliada de Pitta deixaram Maluf empatado com o PSDB. Maluf ainda dividiu os votos com Romeu Tuma, que lhe roubou a bandeira da repressão policial. A partir de 2004, a direita tucana dominou o campo antipetista. Em 2008, Kassab elegeu-se vencendo forças tradicionais da cidade. Na condição de vice-prefeito que assumiu o cargo numa gestão tucana, ele unificou os eleitores conservadores, mas depois desapareceu do cenário eleitoral. Em 2012, a direita popular foi representada por Celso Russomano. Ele começou sua vida profissional no governo Maluf em 1980; aderiu à onda democrática e se filiou ao PFL e PSDB, mas voltou a ser malufista e atuou no PP de 1997 a 2011. Apesar de ter rompido com Maluf, ele pode ser considerado o herdeiro de sua tradição política pela forma sensacionalista como interpelou os eleitores. Muitos anos antes da ascensão do bolsonarismo, Russomano cultivou valores militares e fez curso para civis na Escola Superior de Guerra, mas sua notoriedade adveio da carreira televisiva, cujo ponto marcante foi a filmagem da morte da própria mulher por falta de atendimento médico. A partir dali, abraçou a defesa do consumidor e prosseguiu em reportagens apelativas, cobertura de bailes carnavalescos e colunismo social. O combate à corrupção foi deixado de lado porque ao longo dos anos ele sofreu várias acusações de exercício ilegal da advocacia, peculato, destinação de verba pública a familiares e associação com bicheiros. Apesar da exploração sexual de seus programas noturnos na TV, ele se aliou aos evangélicos do PSC em 2016. De 2012 a 2020, Russomano candidatou-se pelos Republicanos e teve candidatos a vice do PTB, uma espécie de sublegenda do poder que oscilou entre aliança com a direita, a pro-
moção da família Campos Machado (cuja origem é janista) e o apoio ao governo de plantão. Russomano chegou a liderar as pesquisas em 2012 e 2016, caiu e terminou em terceiro lugar. Em 2020 novamente assumiu a liderança nas enquetes eleitorais, agora defendendo o governo Bolsonaro e a ditadura militar. Não sabemos se basta essa pregação sectária para que ele tenha outra sorte em 2020, pois precisa impedir a esquerda de crescer na periferia.
RESSURREIÇÃO? O bolsonarismo teve sua gênese no Rio de Janeiro, estado que não gerou nenhum político nacional durante a chamada Nova República. Bolsonaro foi o primeiro, mas em São Paulo ainda nenhum candidato conseguiu representá-lo. Ademais, o programa de governo de Russomano não é como seu discurso, copia práticas já existentes e cita olheiros de futebol, parceria com Hollywood e concursos de decoração; e, embora preveja um papel motivacional para as igrejas, não propõe uma guerra cultural. Covas é mais enfático no combate à discriminação racial e de gênero, embora evite citar a população LGBT. O bolsonarismo tem diferenças com a direita popular: é mais “ideológico” e mobilizador, enquanto ela é essencialmente pragmática. O PSDB defendeu o bolsonarismo em 2018, mas o prefeito Covas advoga a “democracia neoliberal”. A direita popular está numa encruzilhada: confirmará sua decadência ou ocupará o lugar da esquerda na polarização eleitoral? Desde 1988, as direitas se revezaram na disputa com o PT. A resposta depende de saber se ainda estamos na maré montante do antipetismo. *Lincoln Secco é professor de História Contemporânea na Universidade de São Paulo e autor do livro História do PT (Ateliê Editorial, Cotia-SP, 2011).
Desempenho das Direitas nas Eleições Municipais de São Paulo % dos votos válidos Maluf/Pitta/Russomanno
PSDB
60 50 40 30 20 10 0
1988
1992
1996
2000
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O IMPACTO DA PANDEMIA SOBRE OS PAÍSES POBRES
No Terceiro Mundo, o confinamento é devastador Com a pandemia de Covid-19, o planeta vive a crise econômica mais grave desde o período entreguerras. Explosão do desemprego, insegurança alimentar, evasão escolar... Se os efeitos do “grande confinamento” são sentidos em toda parte, eles são multiplicados nos países pobres, onde o setor informal, desprovido de proteção social, prevalece
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© Anushree Fadnavis/Reuters
POR GILBERT ACHCAR*
Milhões de indianos deixaram os centros urbanos a pé, de bicicleta ou de carona, buscando voltar para suas vilas
A
ssim como as consequências das mudanças climáticas são sentidas em todas as latitudes, a pandemia de Covid-19 não poupa ninguém, rico ou pobre, chefe de Estado ou refugiado. No entanto, sabemos que essas crises planetárias não atingem da mesma forma todos os seres humanos. Além de haver vulnerabilidades diferentes dependendo da idade e dos diversos fatores de risco, a pandemia, a exemplo do aquecimento global, tem impactos muito diversos ao redor do mundo, bem como dentro de cada país, que acompanham as tradicionais divisões entre ricos e pobres, brancos e não brancos etc. É verdade que a infecção de Donald Trump veio confirmar que o vírus não se importa com posições políticas, porém o tratamento excepcional oferecido ao presidente dos Estados Unidos, a um custo estimado de mais de US$ 100 mil por três dias de hospitalização,1 mostra muito bem que, embora os seres humanos sejam todos iguais diante da doença e da morte, alguns, como escreveu George Or-
well em A revolução do bichos, são “mais iguais que os outros”. Como de costume, o Terceiro Mundo foi o mais afetado pela crise econômica em curso, chamada pelo FMI, em seu relatório semestral de abril de 2020,2 de “grande confinamento” – uma crise que já é a mais grave desde a Grande Depressão do período entreguerras. O Terceiro Mundo é o terceiro estado planetário, do qual apenas alguns países da Ásia oriental conseguiram se separar desde que o economista Alfred Sauvy criou o termo, em 1952. Aqui, ele será definido como o conjunto dos países de renda baixa, média baixa ou média alta, de acordo com a classificação do Banco Mundial, excetuando-se a China e a Rússia, que, embora sejam países de renda média alta, são potências mundiais.
VULNERABILIDADE DOS INFORMAIS Em escala internacional, o “grande confinamento” causou um acentuado aumento do desemprego. Mas o impacto social desse desemprego é
muito mais forte no Terceiro Mundo do que nos países ricos, onde medidas onerosas foram adotadas para mitigar suas consequências. Cerca de 332 milhões de empregos de tempo integral foram destruídos em todo o mundo nos três primeiros trimestres de 2020, uma perda de 11,7% em relação ao último trimestre de 2019. Desses empregos, 143 milhões estavam em países de renda média baixa (–14%), 128 milhões em países de renda média alta (–11%) e 43 milhões nos países ricos (–9,4%), segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT).3 E, embora os países de renda baixa tenham perdido “apenas” o equivalente a 19 milhões de empregos (–9%) nesse período, tal número não reflete o impacto socioeconômico da crise pela qual estão passando. Nesses países, assim como naqueles de renda média baixa, a grande maioria dos empregos e das atividades independentes está no setor informal, que absorve 60% do trabalho global e é, por definição, desprovido de qualquer proteção social.
Em um relatório recente, o Banco Mundial estimou que, sob o efeito da pandemia, em 2020 houve um crescimento da extrema pobreza, definida pela entidade como a situação em que o indivíduo precisa sobreviver com menos de US$ 1,90 por dia – isso não acontecia desde 1998, após a crise financeira asiática de 1997.4 A Ásia meridional foi a mais atingida em números absolutos: entre 49 milhões e 56,5 milhões de pessoas a mais do que o previsto antes da pandemia devem cair abaixo do limite de extrema pobreza este ano, ou permanecer abaixo dele. Para a África subsaariana, serão entre 26 milhões e 40 milhões de pessoas, confirmando a posição do subcontinente como a região do mundo com o maior índice de extrema pobreza. A variação ficará entre 17,6 milhões e 20,7 milhões de pessoas para os países em desenvolvimento da Ásia oriental; 5 na América Latina, o número pode chegar a 4,8 milhões de pessoas, e a 3,4 milhões na região que compreende o Oriente Médio e a África setentrional. No total, de acordo com o Banco Mundial, de 88 milhões a 115 milhões de pessoas cairão abaixo do limite de US$ 1,90 ou permanecerão nessa faixa em 2020, por causa da pandemia. O aumento líquido no número de pessoas muito pobres em relação a 2019 ficará entre 60 milhões e 86 milhões de indivíduos. Desde 2013, com a aceleração das mudanças climáticas, cujas primeiras vítimas são as populações mais pobres, e os novos conflitos, como os da Síria, do Iêmen e do Sudão do Sul, o declínio da pobreza vinha se desacelerando. O “grande confinamento” terminou a tarefa de colocar fora de alcance o “objetivo de desenvolvimento sustentável” estabelecido pela ONU em relação à extrema pobreza: baixar a taxa mundial a 3% até 2030. Em 2015, essa taxa ainda estava em 10%, o equivalente a 736 milhões de pessoas. Segundo o Banco Mundial, em 2030 ela deverá estar em torno de 7%.
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ÊXODO URBANO NA ÍNDIA Além disso, o programa “Cada Mulher, Cada Criança”, lançado pela ONU em 2010 e gerido em conjunto pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), alertou em seu último relatório para o fato de que o fechamento de escolas em decorrência da pandemia significa que muitas crianças e adolescentes provavelmente nunca mais voltarão a estudar em países do Terceiro Mundo.8 Eles estarão, portanto, expostos a maiores níveis de violência doméstica e a altos riscos de gravidez precoce. O mesmo relatório estima que o “grande confinamento” pode reduzir em um terço o avanço conquistado no que concerne à erradicação da violência de gênero até 2030 e ser a
causa de 13 milhões de casamentos infantis a mais na próxima década. “Nada disso é inevitável. Tudo pode ser evitado com dinheiro e vontade política por parte das nações mais ricas”, afirma Lowcock. “Nós estimamos em US$ 90 bilhões o custo de proteger os 10% mais pobres dos piores efeitos da pandemia e da recessão – isso é menos de 1% do pacote de estímulo que os países ricos lançaram para proteger suas economias.” Na verdade, segundo o FMI, o montante total dos pacotes de estímulo à economia anunciados em todo o mundo chegou a US$ 11,7 trilhões em setembro, o equivalente a 12% do PIB mundial, e a maior parte dele está voltada aos países de renda alta.9 O nível geral da dívida pública real nesses países já ultrapassou 120% do PIB – nível alcançado uma única vez na história do capitalismo: no fim da Segunda Guerra Mundial. Mas, de acordo com a OIT, US$ 937 bilhões seriam suficientes para mitigar a perda de empregos nos países de renda média baixa, e US$ 45 bilhões bastariam para os países de renda baixa, totalizando US$ 982 bilhões para um conjunto de países que reúne a grande maioria da população mundial. Modesta quando comparada às medidas tomadas pelos Estados mais ricos, a ajuda requerida pelos países pobres é urgente. Três pesquisadores do FMI alertaram sobre os efeitos de longo prazo da crise nos países de baixa renda. Eles usam o termo scarring (literalmente, “deixar cicatrizes”), que designa uma perda permanente da capacidade produtiva. “O scarring foi o legado das pandemias anteriores: [maior] mortalidade; deterioração da saúde e da educação, diminuindo as rendas futuras; esgotamento de poupanças e ativos, forçando o fechamento de empresas, especialmente as pequenas empresas sem acesso a crédito, e provocando problemas irreparáveis na produção; e superendividamento, sobrecarregando os empréstimos ao setor privado. Após a pandemia da doença causada pelo vírus ebola em 2013, por exemplo, a economia de Serra Leoa nunca recuperou sua trajetória de crescimento pré-crise.”10 País mais populoso do Terceiro Mundo, a Índia também é um dos mais afetados pelo “grande confinamento”. Seu PIB caiu quase um quarto (23,9%) no segundo trimestre de 2020. Isso foi um duro golpe em sua “ambição de se tornar uma potência mundial, sair da pobreza e modernizar suas Forças Armadas”, explica Jeffrey Gettleman, chefe da sucursal do jornal The New York Times em Nova Délhi. A gestão errática do primeiro-ministro de extrema direita, Narendra Modi, contribuiu amplamente para
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Em julho, o Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (Ocha) soou o alarme. Mark Lowcock, secretário-geral adjunto da ONU para Assuntos Humanitários, resumiu a situação na apresentação do relatório: “Estimativas recentes sugerem que até 6 mil crianças podem morrer por dia de causas evitáveis, em decorrência de efeitos diretos ou indiretos da Covid-19. A retenção de recursos da saúde pode dobrar o número de mortes causadas pela aids, a tuberculose e a malária. O fechamento de escolas corroerá a produtividade, reduzirá a renda por toda a vida e aumentará a desigualdade. A desaceleração econômica, o aumento do desemprego e a redução da frequência escolar aumentam a probabilidade de guerra civil, que causa fome e deslocamento populacional”.6 Mesmo sem novas guerras, a fome aumentou muito. Segundo o relatório do Ocha, a pandemia agravou-a em áreas onde já estava estabelecida e criou novos epicentros. Sem uma assistência ampla e rápida por parte dos países ricos, o número de pessoas em situação de insegurança alimentar grave deve chegar a 270 milhões até o final do ano, contra 149 milhões antes da pandemia. Em setembro, porém, dos US$ 10,3 bilhões de solicitados pelo Ocha, apenas US$ 2,5 bilhões haviam sido encaminhados, de acordo com o relatório anual do secretário-geral da ONU.7 E não é o milhão de dólares do Prêmio Nobel da Paz concedido ao Programa Mundial de Alimentos que vai conseguir tapar esse buraco. Seria porque a fome não é contagiosa e não atravessa as fronteiras junto com os migrantes, ao contrário do vírus? No dia 13 de outubro, o Banco Mundial alocou US$ 12 bilhões para um programa de vacinação e testagem de Covid-19 em países em desenvolvimento.
isso, mostrando os riscos que pode haver em copiar medidas tomadas em países com características sociais e demográficas muito diferentes. “No dia 24 de março, às oito da noite”, conta Gettleman, “após ordenar que todos os indianos permanecessem confinados, Narendra Modi fechou a economia – escritórios, fábricas, estradas, trens, fronteiras interestaduais, quase tudo – com quatro horas de antecedência. Dezenas de milhões de indianos perderam o emprego instantaneamente. Muitos trabalhavam em fábricas, canteiros de obras ou em empregos domésticos na cidade, mas eram migrantes da Índia rural. Temendo morrer de fome nas favelas, milhões deixaram os centros urbanos a pé, de bicicleta ou de carona, buscando desesperadamente voltar para suas vilas; uma migração épica, da cidade para o campo, sentido inverso ao habitual, como nunca antes se viu na Índia, e que levou o coronavírus para cada recanto do país de 1,3 bilhão de pessoas”.11 Nem a classe média indiana foi poupada, com 6,6 milhões de colarinhos-brancos desempregados e uma taxa crescente de suicídio entre profissionais de nível superior e liberais.12 O governo de Narendra Modi respondeu a essa crise colossal com um plano de estímulo de... US$ 10 bilhões, anunciado em 12 de outubro – a título de comparação, os Estados Unidos, com uma população quatro vezes menor, adotaram um plano de US$ 2 trilhões em março. Em 6 de outubro, a diretora-geral do FMI, Kristalina Georgieva, comemorou o fato de que as medidas excepcionais adotadas em todo o mundo tenham permitido à economia global resistir melhor do que o previsto ao impacto do confinamento. Se o pior pôde ser evitado até agora, avalia ela, “é em grande parte graças às medidas excepcionais que impediram o colapso da economia mundial. Os poderes públicos disponibilizaram cerca de US$ 12 trilhões de ajuda orçamentária para as famílias e as empresas. E medidas de política monetária sem precedentes mantiveram o fluxo de crédito, ajudando milhões de empresas a se manterem à tona”.13 No entanto, a diretora do FMI foi rápida em acrescentar: “Mas alguns têm sido capazes de fazer mais do que outros. Os países avançados fizeram tudo o que era preciso. Os países mais pobres estão tentando fazer o que é possível”. Seu diagnóstico em relação aos países do Terceiro Mundo: “Os países emergentes, assim como os de renda baixa e os países frágeis, continuam em uma situação precária. Eles têm sistemas de saúde com desempenho pior. Estão altamente expostos aos setores mais afetados, como o turismo e
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a exportação de commodities. E são muito dependentes de financiamento externo. A abundância de liquidez e as baixas taxas de juros ajudaram muitos países emergentes a tomar empréstimos novamente – mas nenhum país da África subsaariana emite dívida externa desde março”. Como de costume, o continente africano foi o mais afetado. Segundo o Banco Africano de Desenvolvimento (BAD), a contração projetada do crescimento em 2020 deve custar à África perdas entre US$ 145 bilhões e US$ 190 bilhões, em relação aos US$ 2,59 trilhões de PIB previstos antes da pandemia.14 O BAD estima que o ano de 2021 pode terminar com um déficit de US$ 28 bilhões a US$ 47 bilhões em comparação com as previsões anteriores. Particularmente vulneráveis são os países “altamente endividados e cuja economia se baseia amplamente em fluxos financeiros internacionais que se tornaram voláteis”. Esse último grupo de países está de fato consideravelmente atrofiado. Além dos efeitos globais do “grande confinamento” sobre suas próprias economias, o Terceiro Mundo como um todo sofre agudamente efeitos derivados da crise que afeta os países ricos. Em particular, a queda brutal dos fluxos monetários e dos investimentos destinados aos países em desenvolvimento, com destaque para o envio de fundos por trabalhadores emigrados. Um dos efeitos da globalização, com a circulação de pessoas e de dinheiro, é que esses envios de fundos – chamados de “remessas migratórias” – têm crescido continuamente desde a virada do século. Em 2019, com um montante recorde de US$ 554 bilhões, eles superaram pela primeira vez o investimento estrangeiro direto (IED), que diminuiu continuamente nos países em desenvolvimento ao longo da última década, após ter atingido um pico de mais de US$ 700 bilhões.15 Além disso, desde a virada do século, as remessas dos migrantes sempre excederam tanto o fluxo de investimentos privados de portfólio em empréstimos e ações para países do Terceiro Mundo quanto a ajuda pública ao desenvolvimento – e muito, mesmo em se tratando desta última, embora ela tenha atingido recorde absoluto em 2019, com US$ 152,8 bilhões.16
UMA DÍVIDA CADA VEZ MAIS PESADA A contribuição dos trabalhadores expatriados é próxima ou superior a 10% do PIB para vários países, incluindo muitos Estados africanos, como Senegal, Zimbábue e Sudão do Sul (mais de 34% neste último); ex-repúblicas soviéticas do Cáucaso e da Ásia central desprovidas de riqueza
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em hidrocarbonetos (quase 30% para o Quirguistão e o Tadjiquistão); Jordânia, Iêmen, Líbano e territórios palestinos no Oriente Médio; Nepal (27%), seguido por Paquistão e Sri Lanka (quase 8% cada), na Ásia meridional; Filipinas, na Ásia oriental; e vários países da América Central, incluindo El Salvador e Honduras (mais de 20%), além do Haiti (37%).17 O Banco Mundial prevê que em 2020 as remessas para países em desenvolvimento cairão 20%, ou mais de US$ 110 bilhões, já que os imigrantes são os mais afetados por demissões e cortes de salários. Além disso, a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad) estima que o IED para países africanos cairá entre 25% e 40% em 2020, após já ter sofrido uma queda de 10% em 2019.18 Para os países em desenvolvimento da Ásia, particularmente sensíveis à perturbação das cadeias de abastecimento globais, o declínio do IED deve atingir de 30% a 45%, e até 50% para a América Latina. A tudo isso se soma o crescente problema da dívida. Seu pagamento pelos países em desenvolvimento atingiu o nível mais alto desde a virada do século.19 Em média, ele deveria representar, em 2020, 14,3% das receitas dos Estados envolvidos, contra 6,7% em 2010. Mas muitos enfrentam situações dramáticas, como o Gabão, cujos pagamentos absorvem 59,5% do total das receitas públicas, Gana (50,2%), Angola (46%) e Paquistão (35%). São 52 os países que dedicam mais de 15% de suas receitas aos pagamentos de dívida, contra 31 em 2018, 27 em 2017, 22 em 2015... Diante dessa situação de emergência, os tomadores de decisões financeiras internacionais multiplicam as declarações de boas intenções, afirmando a necessidade de reduzir a dívida dos países do Terceiro Mundo diante da pandemia. Entre eles, o presidente do Banco Mundial, David
Malpass, e sua economista-chefe, Carmen Reinhart, que defende o cancelamento das dívidas contraídas para permitir que os países em desenvolvimento possam contratar outras.20 Mas a realidade é menos luminosa, como explica o Comitê pela Abolição das Dívidas Ilegítimas (CADTM): “Após a pandemia, os países do G20 concederam moratória aos pagamentos da parte bilateral da dívida para o período de maio a dezembro de 2020. [...] Embora 73 países tenham sido selecionados, apenas 42 chegaram a um acordo com o Clube de Paris”.21 Por que tão poucos? Uma das explicações seria a “chantagem dos credores privados e das agências de classificação”, as quais “indicaram que os países demandantes de moratória corriam o risco de ter sua nota rebaixada pelas agências de classificação e ficar sem acesso aos mercados financeiros privados”. Em suma, “esses países vão pagar quantias maiores, com menos recursos”.22 Encurralados pela crise, os países do Terceiro Mundo pedem mais alívio da dívida.23 A revolta ronda. Em um artigo publicado pelo Financial Times, o ministro das Finanças de Gana, Ken Ofori-Atta, pediu que os Estados africanos “assumam a liderança, estabelecendo um secretariado para coordenar os vários grupos de interesse e centros de poder, com o objetivo de propor uma reestruturação da arquitetura financeira global”, de modo a adaptá-la “às necessidades da África e de outros países em desenvolvimento, em um momento no qual é preciso gerir a recuperação pós-Covid-19”.24 Outros, como o professor universitário de esquerda filipino Walden Bello, defendem que os países do Terceiro Mundo se retirem coletivamente das duas instituições fundamentais da arquitetura financeira global, o FMI e o Banco Mundial.25 No fim das contas, o “grande confinamento”, ao consolidar a posição
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subalterna do Terceiro Mundo no sistema político-econômico do mercado mundial, terá afastado ainda mais a esperança de que ele possa sair dessa situação sem romper com a lógica neoliberal, que revela sua cada vez mais flagrante inadequação às necessidades de uma humanidade que se encontra diante da iminência da catástrofe. *Gilbert Achcar é professor de Estudos de Desenvolvimento na Escola de Estudos Orientais e Africanos (Soas) da Universidade de Londres. 1 S arah Kliff, “How much would Trump’s coronavirus treatment cost most Americans?” [Quanto custaria o tratamento do coronavírus de Trump para o restante dos cidadãos dos Estados Unidos?], The New York Times, 7 out. 2020. 2 “The Great Lockdown” [O grande confinamento], World Economic Outlook, FMI, Washington, DC, abr. 2020. 3 “ ILO Monitor: Covid-19 and the world of work. Sixth edition” [Monitor da OIT: Covid-19 e o mundo do trabalho. Sexta edição], OIT, Genebra, 23 set. 2020. 4 “Reversals of fortune – Poverty and shared prosperity 2020” [A sorte mudou – Pobreza e prosperidade compartilhada 2020], Banco Mundial, Washington, DC, 2020. 5 “ From containment to recovery: Economic update for East Asia and the Pacific” [Do confinamento à recuperação: atualização econômica para a Ásia oriental e o Pacífico], Banco Mundial, out. 2020. 6 “Global Humanitarian Response Plan: Covid-19 (April-December 2020)” [Plano de resposta humanitária global: Covid-19 (abril-dezembro 2020)], Ocha, Genebra, jul. 2020. 7 “ Rapport du secrétaire général sur l’activité de l’Organisation – 2020” [Relatório do secretário-geral sobre a atividade da Organização – 2020], ONU, Nova York, 2020. 8 “ Protect the progress: rise, refocus, recover” [Proteger os avanços: melhorar, reorientar, recuperar], OMS e Unicef, Genebra, 2020. 9 “ Fiscal Monitor: Policies for the recovery” [Monitor fiscal: políticas para a recuperação], FMI, out. 2020. 10 Daniel Gurara, Stefania Fabrizio e Johannes Wiegand, “Covid-19: Without help, low-income developing countries risk a lost decade” [Covid-19: sem ajuda, países em desenvolvimento de baixa renda correm o risco de perder uma década], IMFBlog, 27 ago. 2020. 11 Jeffrey Gettleman, “Coronavirus crisis shatters India’s big dreams” [Crise do coronavírus destrói os grandes sonhos da Índia], The New York Times, 5 set. 2020.
12 Stephanie Findlay, “Suicides rise after virus puts squeeze on India’s middle class” [Suicídios aumentam com arrocho do vírus sobre a classe média indiana], Financial Times, Londres, 6 out. 2020. 13 K ristalina Georgieva, “La longue ascension: surmonter la crise et bâtir une économie plus résiliente” [Uma ascensão longeva: superar a crise e construir uma economia mais resiliente], FMI, 6 out. 2020. 14 “ Perspectives économiques en Afrique 2020” [Perspectivas econômicas na África 2020], BAD, Abidjan, 30 jan. 2020. 15 “Covid-19 crisis through a migration lens” [A crise da Covid-19 pela lente da migração], Migration and Development Brief, n.32, Banco Mundial e Parceria de Conhecimento Global sobre Migração e Desenvolvimento (Knomad), Washington, DC, abr. 2020. 16 “ODA 2019 preliminary data” [Dados preliminares AOD 2019], Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE). Disponível em: www.oecd.org. 17 “Covid-19 crisis through a migration lens”, op. cit. 18 “ World Investment Report 2020: International production beyond the pandemic” [Relatório de investimento mundial 2020: produção internacional para além da pandemia], Unctad, Genebra, 2020. 19 “Debt Data Portal” [Portal de dados da dívida], Jubilee Debt Campaign. Disponível em: data.jubileedebt.org.uk. Ler também “Faut-il payer la dette?” [É preciso pagar a dívida?], Manière de Voir, n.173, out.-nov. 2020. 20 Larry Elliott, “World Bank: Covid-19 pushes poorer nations ‘from recession to depression’” [Banco Mundial: Covid-19 empurra as nações mais pobres “da recessão para a depressão”], The Guardian, Londres, 19 ago. 2020; e Jonathan Wheatley, “Borrow to fight economic impact of pandemic, says World Bank’s chief economist” [Emprestar para combater o impacto da pandemia, diz economista chefe do Banco Mundial], Financial Times, 8 out. 2020. 21 O Clube de Paris é um grupo de credores públicos que inclui a maioria dos membros da OCDE, além do Brasil e da Rússia. 22 Éric Toussaint e Milan Rivié, “Les pays en développement pris dans l’étau de la dette” [Países em desenvolvimento no torniquete da dívida], CADTM, Liège, 6 out. 2020. 23 Jonathan Wheatley, David Pilling e Andres Schipani, “Emerging economies plead for more ambitious debt relief programmes” [Economias emergentes pedem programas mais ambiciosos de alívio da dívida], Financial Times, 12 out. 2020. 24 Ken Ofori-Atta, “Ghanaian finance minister: Africa deserves more Covid help” [Ministro das Finanças de Gana: a África merece mais ajuda contra a Covid], Financial Times, 12 out. 2020. 25 Walden Bello, “The Bretton Woods twins in the era of Covid-19: Time for an exit strategy for the global south” [Os gêmeos de Bretton Woods na era da Covid-19: é hora de uma estratégia de saída para o Sul global?], Focus on the Global South, Bangcoc, 10 out. 2020.
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O LUGAR DOS ESTADOS UNIDOS
A nova ordem mundial que se aproxima A maioria dos Estados europeus deseja a vitória de Joe Biden nas eleições norteamericanas. Eles imaginam que ela favoreceria o retorno a uma ordem mundial menos caótica. Entretanto, a identidade do locatário da Casa Branca e as escolhas diplomáticas dos Estados Unidos não são determinantes para os equilíbrios estratégicos como já foram POR OLIVIER ZAJEC*
© Kevin Lamarque/Reuters
“TUDO OU NADA”
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“G
uiar o mundo democrático.” É esse o slogan que parece resumir o programa de política externa de Joe Biden. Para precisar o conteúdo dessa ambição, o candidato democrata à eleição presidencial norte-americana assinou em março de 2020, na Foreign Affairs, uma coluna com o título “Por que a América deve liderar de novo”. No texto, ele constatava que “o sistema internacional que os Estados Unidos construíram com tanta precaução está se desgastando” e contrapunha esse declínio com os triunfos conquistados por seu país – vitória na Segunda Guerra Mundial, queda da “cortina de ferro” – que definiram a ordem internacional liberal em suas versões bipolares (1947-1991) e em seguida unipolar (1991-2008). O ex-vice-presidente de Barack Obama admite de fato que os males norte-americanos mais graves – da pane geral do sistema educativo à desigualdade do acesso à saúde, passando pela falência da política penitenciária – são hoje de natureza interna. Não deixa de destacar que a diplomacia continua sendo uma das principais fontes da influência de Washington e que a relação dos Estados Unidos com o mundo, danificada pela administração Trump, deve ser restaurada com prioridade, “não apenas pelo exemplo de nosso poder”, escreve ele, “mas também pelo poder de nosso exemplo”.1 Esse conceito de restauração e de exemplaridade impregna toda a plataforma democrata em matéria de política externa. Seus redatores – a imensa maioria dos editorialistas norte-americanos mainstream, cujas contribuições são filtradas pelos especialistas Ely Ratner e Daniel Benaim – julgam que o mundo não saberia “se organizar sozinho”. Não haveria outra solução senão a reconstrução de uma ordem no seio da qual o governo Trump teria apenas representado um parêntese destrui-
gionais podem ter um efeito filtrante que atenua os efeitos de polaridade do primeiro escalão. É o caso, por exemplo, da Associação de Nações do Sudeste Asiático (Asean), cujo fórum permite em certos casos a seus membros manter “opções abertas”, apesar das pressões opostas de Pequim e Washington. Algumas potências médias encontram ali a possibilidade de preservar uma liberdade de ação estratégica ao defenderem interesses concretos em sua vizinhança. Por fim, o terceiro elemento de uma ordem internacional se relaciona com a existência de uma convergência de interesses entre os diversos Estados, sem nenhuma correlação com a compartimentação geográfica. Isso se traduz em acordos internacionais relativos a temáticas de porte universal nos planos sanitário, cultural, comercial, tecnológico, financeiro, de segurança...
Joe Biden admite que os males norte-americanos são de natureza interna dor. Essa ordem deveria, portanto, ser reconstruída, e não repensada. Os Estados Unidos, que detêm as plantas do imóvel original, cujas fundações ainda existem, retomariam logicamente o triplo papel de corretor, mestre de obras e síndico. Caso contrário, advertem Biden e seus conselheiros, “ou outro alguém tomará o lugar dos Estados Unidos, mas não de um modo que beneficiará nossos interesses e nossos valores, ou ninguém o fará, e o caos virá em seguida”. 2 O melhor argumento dessa tese paternalista é naturalmente a brutalidade demonstrada pela administração Trump em diversos casos, desde a retirada unilateral do plano de ação conjunto sobre armas nucleares do Irã até a orientação totalmente partidária impressa na questão israelo-palestina. Porém, por mais convincente que seja para alguns o contraste buscado com a política trumpista, a “restauração” diplomática democrata repousa sobre três erros de perspectiva. Ela se engana em primeiro lugar quanto à própria definição de uma “ordem” internacional, conceito que vislumbra quase sempre em termos exclusivamente hierárquicos. Além
disso, não aceita a evidência da evolução multipolar contemporânea. Enfim, esse projeto democrático sugere que o conjunto das ações da presidência Trump representaria uma derrota ou uma leitura errônea das relações internacionais. Tal análise parece conferir vantagem aos democratas. Mas ela seria de imediato condenada pela rápida derrota das políticas de “restauração” que ambiciona. Uma “ordem” internacional nunca é um bloco, mas uma sobreposição composta de vários níveis. O primeiro (“macropolítico”) conta com o efeito polarizador das relações entre os Estados mais poderosos, na medida em que os outros atores vão orientar uma parte de sua estratégia em função desses antagonismos hierárquicos do primeiro escalão. As relações atuais entre China, União Europeia, Estados Unidos e Rússia ilustram os efeitos de atração-repulsão desse primeiro nível. O segundo (“mesopolítico”) trata da existência de configurações político-estratégicas regionais, que apresentam regimes de cooperação e de competição diferentes em função da identidade e dos interesses dos Estados que os constituem. Essas configurações re-
Como comporta vários níveis distintos, uma “ordem” internacional se baseia então menos na noção de hierarquia propriamente dita do que no ajuste perpétuo de equilíbrios de poder instáveis, sujeitos a sutis efeitos de mudança, em especial no nível regional. Já em 1942, o teórico realista das relações internacionais Nicholas Spykman dava a essa ebulição uma definição surpreendente: “Em um mundo dinâmico no seio do qual as forças evoluem e as ideias mudam”, escreve esse crítico do messianismo norte-americano, “nenhuma estrutura legal pode se ver aceita em definitivo. Preservar a ordem dentro de um Estado não consiste em designar de uma vez por todas uma suposta solução para todos os problemas, e sim, sobretudo, em tomar decisões que, no cotidiano, nivelarão as fricções humanas, equilibrarão as forças sociais e favorecerão os compromissos políticos. Isso implica decidir, em circunstâncias mutáveis, aquilo que merece ser preservado e o que deve ser modificado. Preservar a ordem da sociedade internacional é um problema de igual natureza”.3 A evolução da sociedade internacional atual ilustra a pertinência dessa visão, que, em vez de contrapor inércias geopolíticas e dinâmicas sociais, reconcilia-as no âmbito de uma análise em movimento. Trinta anos após o fim da Guerra Fria, a configuração dos equilíbrios de poder mundiais e regionais mudou de maneira fundamental. Os Estados Unidos, que mantêm um poder militar considerável sobre o resto do mundo, devem levar em conta o progresso evidente de uma China que age com método e a longo prazo. Para seus parceiros que desejariam “em-
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barcar no trem expresso do desenvolvimento chinês” – para retomar a fórmula de Xi Jinping, calorosamente aplaudida em 2017 pelos participantes do Fórum Econômico de Davos –, ela é hoje forte o suficiente para propor quadros de socialização geopolíticos e geoeconômicos alternativos aos dos Estados Unidos. Foi a China, sob vigilância desde a administração Clinton e hoje plenamente “emergida”, que entrou no foco do Exército norte-americano com o estabelecimento em 2018 de um novo comando prospectivo (“The Futures Command”). Sua missão não era, naquele momento, dissertar sobre a maneira de “conquistar corações e espíritos” na “guerra global contra o terrorismo”, mas preparar um conflito armado com um adversário militar de nível equivalente, em campos de confrontação inéditos, como o espaço extra-atmosférico. A escalada de tensão é real: Michael O’Hanlon, especialista da Brookings Institution, chama atenção para o risco doravante plausível de guerras maiores implicando Pequim, que nasceriam no contexto de crises localizadas, inclusive por questões pequenas.4 Essa ascensão aos extremos pode parecer uma fatalidade àqueles que continuam no primeiro nível de análise da ordem internacional. Se nos ativermos de fato aos conceitos clássicos que servem geralmente para pensar o futuro nesse campo, existem duas possibilidades principais: o estabelecimento de um novo equilíbrio dos blocos entre Washington e Pequim, ou a substituição dos Estados Unidos pela China na cúpula da hierarquia do poder mundial no horizonte de 2050. A primeira opção daria razão de maneira póstuma a Kenneth Waltz, teórico do equilíbrio bipolar da Guerra Fria. A segunda nos obrigaria a nos confrontarmos – entre outras – com as análises pessimistas de Robert Gilpin, teórico da estabilidade hegemônica, ou de Charles Doran, pensador dos ciclos de poder, que sugerem que o bipolarismo é apenas um unipolarismo atrasado e que a passagem de controle hegemônico raramente se efetua sem uma guerra geral. Ambos os cenários convêm muito bem para os defensores do “liberalismo hegemônico”.5 Entre os diversos think tanks que apoiam a “chapa” Biden-Harris, o Council of Foreign Relations (CFR) é sem dúvida o representante histórico mais emblemático dessa abordagem. Em uma obra recente, cujo título denota ambições analíticas comedidas (O mundo: uma breve introdução), seu atual presidente, Richard Haass, propõe responder aos novos desafios por meio de receitas que retornam
mais ou menos àquelas que Henry Luce preconizava em 1941 no artigo emblemático que definia a missão do “século norte-americano”. “Os países do mundo”, diagnostica Haass – também autor de livros de gestão –, “desejam encontrar parceiros. É evidente que os parceiros devem compartilhar os mesmos valores. [...] Isso pode não corresponder à imagem que as pessoas têm do mundo e da ação coletiva – a abordagem do ‘tudo ou nada’ sugerida pelas Nações Unidas. Devemos cada vez mais pensar na maneira de forjar o que chamo de coalizões de atores voluntários, capazes e pertinentes, para enfrentar desafios peculiares.”6 Ao sugerir que a ordem internacional liberal, da qual deseja o retorno, é melhor que as abordagens da ONU fadadas ao fracasso, Haass, apoiador fervoroso da candidatura de Biden, pensa, sem dúvida, em demonstrar seu pragmatismo e seu realismo. O resultado é, no entanto, problemático. Em sentido próprio, e contrariamente ao que ele detalha, as Nações Unidas têm menos uma abordagem do “tudo ou nada” do que uma abordagem do todos ou nada. É por ter sido construída – ao menos teoricamente – sobre o princípio da igualdade soberana dos Estados que a ONU representa o único fórum interpaíses legítimo no plano internacional, ao contrário das alianças de defesa coletiva geograficamente limitadas, como a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), ou das “coalizões de voluntários” (coalition of the willing), cuja eficácia instrumental produziu resultados conhecidos nesses vinte últimos anos no Iraque, no Afeganistão e na Líbia. Essa legitimidade da ONU não é tão substituível, visto que a cena mundial vive nesse momento um duplo movimento multipolar e poliárquico, que parece escapar ao autor, além do próprio fato de que ele não hesita em ressuscitar certos conceitos tão datados quanto divisores de opiniões, como o slogan de uma “coalizão de voluntários”, usado pela segunda administração Bush. A lógica do “clube de parceiros” defendida por Haass ilustra sobretudo a esclerose continuísta que afeta o conceito de ordem liberal democrática, sempre no aguardo de uma renovação real. Michael Williams, entre outros, expôs bem o problema principal dessa abordagem: sua incapacidade de pensar o conceito de mudança social na ordem internacional.7
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A AMÉRICA “ANTES” OU “DEPOIS”? O conceito do multilateralismo, utilizado de maneira insistente pelos defensores de uma ordem liberal democrática mais representativa, poderia
constituir uma resposta às limitações dessa tese na era multipolar? Emmanuel Macron sugere isso quando denuncia o estado de “morte cerebral” da Otan, onde todo debate seria asfixiado por alguns Estados-membros, ou enquanto tenta, evitando qualquer julgamento com ingenuidade, defender uma abordagem mais interacional com a Rússia. Mas o multilateralismo invocado pelo presidente francês possui uma dupla natureza. Exprime por um lado uma diplomacia inclusiva e participativa, respeitosa quanto às soberanias e suas declinações culturais, mas traduz também, para alguns, uma orientação geral que postula uma superação crescente das prerrogativas estatais em benefício de um ideal de governança global. A primeira dimensão do multilateralismo se impõe em nível internacional de maneira relativamente consensual, pois, longe de questionar o princípio da soberania, pelo contrário, apoia-se nele para funcionar. A segunda dimensão é, por outro lado, contestada por um número crescente de Estados, para os quais a governança deve ser reservada ao terceiro nível da ordem internacional (as temáticas de cunho universal), ao passo que os governos devem ser deixados livres, com base em um processo de deliberação nacional legítimo, para escolher seu destino geopolítico no primeiro e no segundo nível (relações com as grandes potências, configurações regionais), de acordo com os valores de que a ONU – e nenhuma outra organização – tem o dever de refletir a diversidade e de organizar o diálogo. Esse é um dos principais problemas do discurso liberal-hegemônico que estrutura a base da ordem internacional que Biden se propõe a restaurar. Ainda que o slogan “América em primeiro lugar” aparentemente pertença a seu adversário republicano, os autores do programa se apropriaram dele sem perceber. Esse “em primeiro lugar” democrata não é expresso em termos de prioridade, mas de posição. Não engloba de fato uma América colocada “antes de quem quer que seja”, como reivindica cruamente a visão autocentrada de Donald Trump, mas posiciona a América “diante de quem quer que seja”, poder-se-ia dizer, em razão de “caber aos Estados Unidos tomar as rédeas”, como escreve Biden. Segundo ele, “nenhuma outra nação tem essa capacidade”, simplesmente porque “nenhuma foi construída sobre esse ideal (de liberdade)”. Tal visão – a ordem norte-americana ou o caos – vem de uma ideia expressa nos anos 2000 pelo subsecretário de Estado norte-americano Strobe Talbott, para quem,
“em especial neste século, os Estados Unidos, de maneira explícita e persistente, buscaram promover ao mesmo tempo seu interesse nacional e seus valores nacionais, sem ver contradição entre esses dois objetivos”.8 Isso supõe que valores nacionais, oriundos de uma experiência histórica específica, poderiam ser aplicados de modo universal. Esse excepcionalismo extrovertido não percebe o disparate crescente entre o papel que os Estados Unidos se atribuem e o poder real do qual dispõem. Está em via de se tornar quase inaudível. Na equação das revoluções internacionais contemporâneas, a exigência de reconhecimento está de fato se impondo. Essa virada “identitária” não parou de se amplificar de alguns anos para cá, seja na China, na Índia, na Rússia ou mesmo no cerne dos bastiões da ordem democrática ocidental, Estados Unidos e países europeus inclusos. Após ter vulgarizado o conceito de “fim da história” pouco tempo depois da Guerra Fria, Francis Fukuyama diagnostica desde então seu retorno, publicando um reexame com o título de Identity: The Demand for Dignity and the Politics of Resentment [Identidade: a exigência de dignidade e a política do ressentimento].9 Embora se posicione contra o que descreve com razão como um “novo tribalismo”, não deixa de associar a noção de identidade à necessidade de dignidade e de reconhecimento das comunidades políticas organizadas (estatais ou não), seja em continentes “novos” ou no “Ocidente”. Constata, além disso, a força das dinâmicas de fragmentação social em um mundo economicamente globalizado. A consideração dessas novas dinâmicas sociais que remodelam a ordem internacional não aparece no programa dos dois principais partidos norte-americanos. É legítimo, para dizer a verdade, interrogar-se se sequer existe um programa diplomático no lado republicano. Seja na teoria ou na prática, tanto um lado como o outro se concentram no primeiro nível da ordem internacional, o da competição de poder hierárquico. Em diferentes palavras, eles se contentam em transpor as consequências para o segundo nível, o das configurações geopolíticas e geoeconômicas regionais. Daí vem o interesse renovado de seus respectivos teóricos pela questão das alianças (em “reconstrução”, o que evita repensá-las). Na próxima ordem internacional, ordem essa que nenhum dos lados saberia deixar aos cuidados da ONU, os Estados Unidos não poderiam ter outra função senão a de leaders de um lado – “o Ocidente”, para o secretário de Estado, Mike Pompeo; o “mundo li-
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OPORTUNIDADE PERDIDA O bloqueio denunciado por Baker ainda está presente no lado republicano – a personalidade de um John Bolton atesta isso. No entanto, a evolução sociológica do partido, cada vez menos elitista eleitoralmente, tem por consequência que os guardiões da chama da Guerra Fria migrem cada vez mais claramente para o lado democrata. A definição da política externa norte-americana parece, em outros termos, estruturada por uma espécie de luta de classes. Esta é ilustrada de maneira improvável, porém eficaz, por Trump, que retoma traços de um Dwight Eisenhower para denunciar o complexo militar-industrial norte-americano: “Eu não digo que os militares estão de acordo comigo. Os soldados estão. Já a alta hierarquia do Pentágono é provável que não esteja, sem dúvida porque só quer guerras que deixem todas essas maravilhosas empresas que fabricam bombas, aviões e todo o resto felizes e que assim permaneçam”.11 Essa linguagem atinge direto o coração dos eleitores de Trump, que preferem esquecer que esse dealmaker [negociador árduo] se regozijou também de ter obtido em 2017 do regime saudita um contrato preliminar de compra de material militar de US$ 460 bilhões.12 Em suma, essas contradições no mínimo grosseiras lhes parecem menos graves que as do lado democrata, que, em nome da mudança, nomeou o senador de um paraíso fiscal, o Delaware, que votou pela guerra no Iraque em 2002. A ordem internacional retém menos a atenção deles do que a pauperização desigual da classe média. Eles querem que os soldados parem de perder a vida em guerras improdutivas. Assinariam, sem dúvida, com as duas mãos, as propostas de Biden para “tornar a diplomacia novamente a prioridade dos Estados Unidos” e acabar com as “guerras intermináveis”, se essas pro-
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vre”, para os estrategistas democratas, que preferem essa outra expressão da Guerra Fria. Como vimos, sem essa restauração, seria o “caos”, segundo as palavras de Biden. Essa tese do “tudo ou nada” subestima ou deslegitima os cenários alternativos de equilíbrio da ordem internacional. Levando-se em conta a inquietude aguda que afeta hoje atores do primeiro escalão, como Japão ou Índia, em razão da escalada de poder chinesa em sua vizinhança, dois atores seriam, no entanto, capazes, juntos ou separados, de perturbar o cenário bipolar em via de reescrita. O primeiro é a Rússia, tão denunciada pelo liberalismo hegemônico na Europa ou nos Estados Unidos que Trump vem ensaiando um pas de deux com Moscou desde sua entrada na presidência. Ainda que possamos reprovar esse país – particularmente desde sua apropriação ilegal da Crimeia em 2014 –, a situação contrasta com as reflexões dos diplomatas norte-americanos realistas dos anos 1990, a exemplo do republicano James Baker, de quem uma biografia esclarecedora acaba de ser publicada. “Hoje, devemos cooperar com a Rússia quando podemos”, estimou em resposta a um jornalista da Newsweek que o entrevistou em 2009 a respeito das tentativas de reaproximação da administração Obama. “Quando a Rússia se opõe a nossos interesses nacionais, devemos confrontá-la. Mas é triste ver que há pessoas em meu partido que lamentam que não tenhamos mais inimigos declarados. Ganhamos muitas eleições durante a Guerra Fria porque éramos o partido da defesa nacional [...]. E alguns querem recriar um inimigo: a China, a Rússia. Não podemos concordar em tudo com esses países. Mas, embora não sejam mais nossos inimigos hoje, o problema é que podemos torná-los inimigos”.10
clamações de bom senso não tivessem sido redigidas por aqueles mesmos que se opuseram a toda mudança fundamental de estratégia no Afeganistão durante dezessete anos. Eles têm, por fim, dificuldade de compreender por que aqueles que denunciam a regressão nostálgica expressa pelo slogan “Torne a América grande de novo” (“Make America great again”) não deveriam intitular seu próprio programa diplomático de “Por que a América deve liderar de novo” (“Why America must lead again”). A última candidata a uma perturbação do cenário bipolar em curso permanece sendo a União Europeia, mais confiável nesse papel que a Rússia. Ela se vê, porém, questionada por alguns de seus próprios Estados-membros, que consideram mais vantajosa a dependência em relação à Otan do que a autonomia estratégica europeia – um conceito trazido por um casal franco-alemão desunido e que faz ranger os dentes, de Haia a Varsóvia, passando por Copenhague. A eleição de Biden não mudaria provavelmente nada nesse estado das coisas. Poderia até agravá-lo. O choque elétrico Trump oferecia ao menos à Europa a possibilidade de retomar progressivamente as rédeas de seu próprio destino estratégico. Essa oportunidade não foi aproveitada, e a provável restauração de uma sociabilidade transatlântica na hipótese de Biden vencer teria por efeito encorajar os aliados a voltar sem remorso a uma nova era de subordinação estratégica. É preciso esperar que evoluções políticas democráticas no continente europeu venham perturbar essa “morte cerebral” ilustrada pelo foco excepcional nos resultados eleitorais do soberano norte-americano. Esse reflexo revela menos sobre a importância dos Estados Unidos na ordem internacional do que a impotência europeia em imaginar outra solução
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estratégica efetiva, apesar das lições da era Trump. *Olivier Zajec é mestre de conferências em Ciência Política da Universidade Jean-Moulin – Lyon-III. 1 J oseph R. Biden Jr, “Why America must lead again. Rescuing US foreign policy after Trump” [Por que a América deve liderar de novo. Salvando a política externa dos EUA após Trump], Foreign Affairs, Nova York, mar.-abr. 2020. 2 Ibidem. 3 Nicholas J. Spykman, Americas Strategy in World Politics: The United States and the Balance of Power [A estratégia da América na política mundial: Os Estados Unidos e o equilíbrio de poder], Harcourt, Brace and Co., Nova York, 1942. 4 M ichael E. O’Hanlon, The Senkaku Paradox: Risking Great Power War Over Small Stakes [O paradoxo Senkaku: correndo o risco de guerra de grande porte por pequenas questões], Brookings Institution Press, Washington, DC, 2019. 5 Stephen Walt, The Hell of Good Intentions: Americas Foreign Policy Elite and the Decline of US Primacy [O inferno das boas intenções: a elite da política externa norte-americana e o declínio da primazia dos EUA], Farrar, Straus and Giroux, Nova York, 2018. 6 “James Manyika speaks with Richard Haass about businesses as global entities” [James Manyika fala com Richard Haass sobre negócios como entidades globais], McKinsey Global Institute, Washington, DC, 16 out. 2020. 7 Michael C. Williams, The Realist Tradition and the Limits of International Relations [A tradição realista e os limites das relações internacionais], Cambridge University Press, 2005. 8 Strobe Talbott, “Self-Determination in an Interdependent World” [Autodeterminação em um mundo interdependente], Foreign Policy, n.118, primeiro semestre de 2000. 9 Francis Fukuyama, Identity: The Demand for Dignity and the Politics of Resentment [Identidade: a demanda por dignidade e a política do ressentimento], Farrar, Straus and Giroux, 2018. 10 Adam B. Kushner, “James Baker on the return to realism” [James Baker sobre o retorno ao realismo], Newsweek , Nova York, 16 jan. 2009. 11 “Trump: Pentagon leaders want war to keep contractors ‘happy’” [Trump: líderes do Pentágono querem a guerra para manter fornecedores “felizes”], Associated Press, 7 set. 2020. 12 Javier E. David, “US-Saudi Arabia seal weapons deal worth nearly $110 billion immediately, $350 billion over 10 years” [EUA-Arábia Saudita selam negócio de armas no valor de quase US$ 110 bilhões imediatamente, US$ 350 bilhões ao longo de dez anos], CNBC, 20 maio 2017.
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COMO A COVID-19 REMODELA A ECONOMIA
Uma pandemia, dois futuros Quase um ano após a irrupção da Covid-19, o mundo permanece indefeso diante da pandemia. As medidas tomadas para contê-la provocaram uma crise tripla: econômica, política e civil. Duas tendências pesadas se apresentam: o triunfo das indústrias digitais e o retorno do Estado como controlador do capitalismo. Dois movimentos complementares... POR ROBERT BOYER*
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longa depressão que se seguiu ao desmoronamento do regime soviético na Rússia testemunha essa lacuna. No entanto, com as devidas proporções, é exatamente essa a questão que surge na saída do coma no qual as economias mergulharam para tentar con-
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s economistas raramente se interessaram pelos processos pelos quais se constroem as regras do jogo, as instituições e as organizações, cuja conjunção garante a resiliência de um regime socioeconômico. Sua incompreensão da
ter pandemia de Covid-19: como reconstituir um sistema econômico funcional a partir de componentes desconectados uns dos outros? Por falta de perspectiva histórica, cada um propõe uma abordagem normativa em função de suas prefe-
rências doutrinárias ou ideológicas. Para facilitar a retomada, é preciso suprimir os impostos de produção, afirmam as patronais. É preciso restabelecer o imposto sobre fortunas, instituir uma taxação transitória, ou até mesmo permanente, sobre os altos salários e caminhar rumo a mais justiça social, clamam os pesquisadores e movimentos de esquerda. Outros sugerem “recomeçar tudo do zero”: levar em consideração a ameaça de desmoronamento ecológico e diminuir o crescimento, coisa que o confinamento mostrou ser possível. Explorar o legado das duas últimas décadas se impõe como uma condição prévia. A pandemia interveio em uma conjuntura marcada pela dificuldade em sair da crise de 2008, que não desembocou em um retorno ao enquadramento estrito da finança. Ao contrário: ela implicou a manutenção das taxas de juros quase zero para estimular a atividade econômica, fonte de empolgações especulativas recorrentes – no caso, sobre o petróleo e as matérias-primas – nas sociedades dominadas pela financeirização.1 O aumento das rendas do capital e a precarização do emprego alimentam um crescimento contínuo das desigualdades. No início de 2020, os dirigentes políticos não podiam imaginar que um vírus fosse capaz de parar essas dinâmicas.
INCERTEZA RADICAL Claro, especialistas em saúde pública tinham concluído, com base na observação da síndrome respiratória aguda severa (Sars) e do H1N1, que seria preciso se preparar para o retorno de epidemias cuja probabilidade aumentava com a mobilidade internacional. A mensagem foi recebida na Ásia, mas não nos Estados Unidos e na Europa – longe disso. Em geral, os governos procuraram limitar o crescimento dos custos de saúde, chegando a subinvestir em equipamentos elementares de luta contra as epidemias. O desamparo foi grande quando a progressão rápida das infecções obrigou a uma medida radical – o confinamento – por não ter havido previsão e preparo dos meios de uma estratégia eficiente: testar, identificar e isolar. Assim se explica a desigual letalidade da pandemia entre as grandes zonas da economia mundial e entre países geograficamente próximos (a França e a Alemanha, por exemplo). A decisão de diversos governos de dar prioridade à defesa da vida humana em vez de continuar na normalidade econômica inverteu a hierarquia tradicional instituída pelos programas anteriores de liberalização, que tinham enfraquecido o sistema de saúde. Essa mudança inesperada e brutal precipitou uma série
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rompe com o projeto de um retorno ao equilíbrio das finanças públicas: foram o imperativo da saúde pública e a urgência – para não dizer o pânico – que justificaram essa reapreciação da doutrina governamental. Mas a esperança de uma rápida vitória sobre o vírus foi desapontada, e é preciso prolongar as medidas sanitárias e, consequentemente, o esforço orçamentário. A vida humana, que parecia não ter nenhum preço, tem um custo. Turismo, manutenção, transporte aéreo, espetáculos: setores inteiros estão próximos da falência e suas organizações profissionais pedem um retorno a uma atividade econômica mais frequente. Esta não pode ser como a que existia em 2019, pois as barreiras à propagação do vírus pesam sobre a produtividade, os custos e a rentabilidade. Logicamente, ainda que a emoção criada pela Covid-19 se revele durável, a pandemia poderia marcar uma tomada de consciência: a busca pelo bem-estar deveria se tornar a pedra angular das sociedades. É preciso moderar esse prognóstico otimista, pois a Covid-19 não deixa o passado para trás. “É preciso que tudo mude para que nada mude”, em particular na distribuição do poder dentro das empresas e entre elas na escala internacional. Por um lado, a Covid-19 já mudou muitos comportamentos e práticas: a estrutura do consumo registrou os riscos das relações cara a cara; o trabalho se transformou em home office, o que permite uma desconexão ao mesmo tempo temporal e geográfica das tarefas que produzem um bem ou um serviço desmaterializado; a mobilidade internacional das pessoas foi duramente impedida; e os valores em escala mundial não vão sair ilesos dos esforços de reconquista de certa soberania nacional sobre a produção de bens reputados estratégicos. Os modos de regulação se encontrarão transformados, com pouca chance de um retorno ao passado. Por outro lado, a Covid-19 acelerou duas tendências observadas desde a década 2010. A primeira tem a ver com o capitalismo de plataforma, centrado na exploração da informação, qualquer que seja ela, que começou a conquistar o mundo. Com a crise sanitária, ele mostrou seu potencial em manter a atividade do comércio eletrônico graças aos seus algoritmos dopados pela inteligência artificial e à sua logística, propondo informações em tempo real sobre todas as atividades, facilitando o trabalho e o ensino a distância, explorando vias abertas em novos setores (veículos autônomos, exploração comercial do espaço, telemedicina, equipamentos médicos). Por sua vez, os economistas apostaram em seu
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de ajustes que percorrem toda a sociedade: pânico na Bolsa, desmoronamento do preço do petróleo, fim do crédito, redução do consumo, volatilidade das taxas de câmbio, abandono da ortodoxia orçamentária etc. A irrupção da Covid-19 primeiramente pegou os comentaristas midiáticos desprevenidos e até mesmo os agentes públicos, incapazes de encontrar palavras para descrever a situação que deviam enfrentar. Depois da guerra ao terrorismo, era apropriado declarar guerra a um vírus? Era pertinente qualificar como “recessão” o que na verdade é uma decisão política e administrativa de parar todas as atividades que não são necessárias à luta contra a pandemia e à vida cotidiana? Não especialistas e dirigentes políticos puderam acreditar que o avanço da biologia permitiria um controle rápido da Covid-19. Isso era o mesmo que ignorar as advertências dos pesquisadores em virologia: não há um vírus típico, cada um tem características que devem ser descobertas ao mesmo tempo que ele se espalha. As autoridades então tiveram de tomar decisões de longo alcance diante de uma incerteza radical. Como decidir hoje, quando ainda não se sabe o que acabaremos sabendo depois de amanhã – infelizmente tarde demais? Adeus ao cálculo econômico racional! O resultado foi um mimetismo geral: mais vale se enganar junto do que ter razão sozinho. Assim, os governos copiaram uns aos outros e acabaram se referindo a um mesmo modelo de difusão da pandemia. Os economistas se contentaram em investir em fundos que copiam um índice da Bolsa, já que não têm informações pertinentes para avaliar os ativos financeiros. Da mesma forma, os governos desprevenidos devem inovar com medidas que não têm precedentes, o que acrescenta uma segunda incerteza radical, pois ninguém conhece o impacto final disso. É isso que explica em parte o caráter das decisões públicas e as contradições que atravessam os discursos oficiais. A sensação de incerteza tem uma consequência importante em matéria de responsabilidade: quando as estratégias reveladas mais eficientes forem conhecidas, os cidadãos lesados por um tratamento inadequado da pandemia poderão prestar queixa contra a administração da saúde ou até mesmo contra as políticas? A decisão de quase interrupção da economia, levando ao risco de falência das empresas mais frágeis e de pauperização dos mais fracos, deveria ser acompanhada por medidas de apoio aos resultados das empresas e às rendas dos trabalhadores. Na França, o aporte maciço do Estado
sucesso a longo prazo, em um contexto de declínio da economia tradicional. Esse capitalismo transnacional invasivo parece ter saído ainda mais poderoso da crise sanitária. No entanto, ele também suscitou sua contrapartida dialética: uma miríade de capitalismos com impulsão do Estado que, empurrados pelos descartados da abertura econômica, pretendem defender as prerrogativas do Estado-nação, incluindo no âmbito econômico. À medida que os benefícios da globalização iam desbotando, diversos tipos de capitalismo de Estado apareceram. Os governos saem ideologicamente reforçados da pandemia, que reabilitou seu papel de protetor das fronteiras. Esta apresentação não pode deixar de suscitar uma objeção de bom senso: como dois regimes tão opostos podem coexistir? Olhando bem, eles se alimentam mutuamente. A ofensiva das multinacionais do digital tem como contrapartida uma desarticulação dos sistemas produtivos nacionais e uma polarização das sociedades, segundo uma linha de fratura entre os grupos e as profissões que prosperam com a concorrência dos territórios e os outros, os que perdem, cujo nível de vida estagna ou até baixa. Esse é o terreno do qual se alimentam os movimentos que defendem a identidade nacional e pedem ao Estado para protegê-los do grande vento da concorrência internacional, que eles não têm meios para enfrentar. Paradoxalmente, a pandemia conforta esses dois tipos de capitalismo. O capitalismo transnacional da informação controla há muito tempo o comércio eletrônico, no qual constrói a logística, e o home office. O distanciamento físico está no coração de seu modelo produtivo, e as medidas de confinamento lhe permitiram conquistar rapidamente clientes, desenvolver novos aplicativos para a medicina, o ensino a distância e as reuniões de trabalho. Os economistas veem na informação e na pesquisa médica os raros setores que saem mais fortes da pandemia. No campo ideológico, os governos qualificados como “populistas” ganham terreno, já que a ameaça de um vírus vindo de fora justifica o controle das fronteiras, a defesa da soberania nacional e o reforço do Estado na esfera econômica. O capitalismo estatal não pretende concorrer com o capitalismo transnacional, mas simplesmente afirmar uma soberania econômica, adquirida em detrimento do nível de vida. Os governos podem se voltar para a China para conter os Gafam (Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft), de forma que uma partilha do espaço mundial entre duas esferas de influência se torne
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possível, sem implicar necessariamente a vitória de uma sobre a outra.
CONSTRUIR UM NOVO COMPROMISSO Neste clima sombrio, os conflitos sociais, não ultrapassados no passado recente, correm o risco de ressurgir, ainda mais porque os empregos destruídos poderiam ser mais numerosos do que os criados nos setores do futuro. No capitalismo, um regime socioeconômico só é viável se repousar em um compromisso fundador que organiza a arquitetura institucional – em particular a da relação salarial e a da concorrência –, pilota o acúmulo e canaliza o conflito entre o capital e o trabalho. A polarização das sociedades torna o exercício extremamente difícil, mas seria ilusório pensar que medidas puramente técnicas, por mais inovadoras que sejam, poderiam substituir o papel do político na construção dos novos compromissos. Como seria em vão buscar uma previsão em um determinismo de ordem tecnológica ou econômica, por que não imaginar como as forças que trabalham as sociedades pós-Covid-19 poderiam chegar a configurações dotadas de certa coerência? Um primeiro futuro poderia resultar de uma aliança entre as técnicas digitais e os avanços da biologia para alcançar uma sociedade de vigilância generalizada que institui e possibilita uma polarização entre um pequeno número de ricos e uma massa de sujeitos que se tornaram impotentes pelo abandono do ideal democrático. O segundo futuro poderia resultar do desmoronamento de tal sociedade. O deslocamento das relações internacionais e o fracasso do estabelecimento de um determinismo biológico mostram a necessidade de um Estado social que se torna o tutor de uma democracia estendida à economia. O sucesso de um número crescente de experiências nacionais torna novamente possível, ao final, a construção de um regime internacional centrado nos bens públicos mundiais e comuns, sem os quais os regimes nacionais não podem prosperar. A história se encarregará de invalidar, ou não, essas duas visões e de nos surpreender, como fez a Covid-19. *Robert Boyer é economista e autor de Les Capitalismes à l’épreuve de la pandémie [Os capitalismos à prova da pandemia], La Découverte, 2020, no qual este texto se inspira.
1 L er Frédéric Lemaire e Dominique Plihon, “Le poison des taux d’intérêt négatifs” [O veneno das taxas de juros negativas], Le Monde Diplomatique, nov. 2019.
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Le Monde Diplomatique Brasil NOVEMBRO 2020
CONFLITOS DE INTERESSE E DESCONFIANÇA
Uma medicina influenciável A França enfrenta a segunda onda de Covid-19 em um clima de ceticismo e desânimo. A desconfiança causada pela negligência e pelo autoritarismo do poder público torna ainda mais árdua a saída de uma crise profunda. A incerteza não poupa nem o saber médico, suspeito de sucumbir às influências políticas, midiáticas e, sobretudo, econômicas POR PHILIPPE DESCAMPS*
De acordo com as pesquisas de opinião, a pandemia teria reforçado sobretudo a visão positiva que os franceses têm da ciência: 69% das pessoas entrevistadas disseram em junho ter “mais confiança na ciência” e 24% afirmaram nela “confiar inteiramente”, um total superior ao do ano passado.3 Em compensação, dois terços dos entrevistados avaliaram que os pesquisadores não “souberam prever a escalada do coronavírus” e 53% que eles “não foram claros”. Será uma desconfiança passageira? É possível colocar isso em dúvida, pois a desconfiança do Estado se inscreve em uma situação mais antiga de desengajamento e monopolização de interesses privados dos quais a ciência médica não escapou.
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“E
u me recuso, hoje, a recomendar o uso da máscara para todos e jamais o governo a recomendou. Se a recomendássemos, seria incompreensível.” Afirmações como essas não emanam de “negacionistas” nem de outros “conspiradores”. Elas foram proferidas pelo presidente da República francesa em meados de abril de 2020,1 quando a Covid-19 já tinha causado a morte de mais de 17 mil pessoas no país. No entanto, desde seu primeiro informe, o Conselho Científico francês recomendou o reforço de medidas de prevenção, “garantindo a disponibilidade de álcool gel e máscaras cirúrgicas para a população”. O mesmo Conselho considerou também que é “importante para a credibilidade de todas as medidas propostas que elas se mostrem privadas de qualquer estratégia política”. A partir de então, não usar máscara se tornou passível de multa. O hiato entre as promessas sucessivas sobre as máscaras, os testes ou o acompanhamento das pessoas infectadas e a realidade explica a prioridade anunciada pelo primeiro-ministro Jean Castex ao chegar a Matignon no mês de julho: “É preciso restabelecer a confiança!”. A tarefa será ainda mais difícil porque a desconfiança atinge por capilaridade a expertise em saúde pública.2 “Vê-se claramente que, em relação à primeira onda, os cidadãos têm mais dificuldade de aderir às recomendações”, constata Dominique Le Guludec, presidente da Haute Autorité de Santé (HAS). Presidente da Société de Pathologie Infectieuse de Langue Française (Spilf, Sociedade de Patologia Infecciosa de Língua Francesa), Pierre Tattevin se inquieta: “Trata-se de uma doença muito grave, a crise de confiança. E vai se estender se não adotarmos as medidas adequadas”.
INCERTEZA “Como este foi o único assunto na ordem do dia, com a redução diária do número de mortes, convidamos finalmente o grande público para participar dos grupos de crise”, observa Tattevin. “As pessoas se deram conta muito rapidamente de que os especialistas se enganaram. Não por serem ruins, mas porque isso é novo. Neste caso, muitos dizem que vão refletir por si sós.” Chefe do serviço de doenças infecciosas no Hospital Bichat e membro do Conselho Científico, Yazdan Yazdanpanah faz parte dos que anunciaram em janeiro que não haveria epidemia. Atualmente, ele acha importante reconhecer seus erros: “Não convém tratar as pessoas como crianças. É preciso envolvê-las, ter uma mensagem clara; ainda é tempo. Deveria ter sido mais prudente. Fui sincero, não queria esconder alguma coisa, raciocinei com base em meus conhecimentos sobre essa família de coronavírus. Depois, entendi que era possível transmitir essa doença sem ter sintomas, ou vários dias antes de senti-los”.
“A incerteza é angustiante, mas é uma realidade. Temo que, ao querer se mostrar muito afirmativo ou apagar as incertezas, não se construa a confiança. Os cientistas não estão aí para tranquilizar”, considera Le Guludec. Na direção do Haut Conseil de la Santé Publique [Alto Conselho da Saúde Pública], Franck Chauvin declara na mesma direção: “Pedimos aos especialistas que revelem certezas. Ora, a ciência é construída progressivamente. Na medicina, acima de tudo, agregam-se evidências parciais para com elas chegar a uma certeza”. Desde o fim de março, as declarações do professor Didier Raoult, natural de Marselha, defendendo um tratamento à base de hidroxicloroquina e azitromicina monopolizaram a atenção. Chauvin reage: “A ciência é construída por meio da controvérsia, e isso é normal. Mas tornou-se um espetáculo transmitido pela televisão, que transformou os cientistas em gladiadores”.
CONTROVÉRSIAS A questão ganhou outra dimensão quando o presidente dos Estados Unidos e, em seguida, o do Brasil passaram a promover a hidroxicloroquina. Todo o mundo foi intimado a ter um ponto de vista, enquanto os feitos científicos continuavam indefinidos. “Nós que, todo ano, avaliamos os medicamentos guardamos um enorme silêncio sobre o assunto porque não tínhamos dados. Não queríamos acrescentar cacofonia à cacofonia”, reconhece Le Guludec. A Splif, que reúne mais de quinhentos especialistas em doenças infecciosas, acabou registrando uma queixa contra Raoult no Conseil de l’Ordre des Médecins (Conselho da Ordem dos Médicos), lembrando o Código de Deontologia: “Os médicos não devem divulgar nos ambientes médicos um novo procedimento de diagnóstico ou de tratamento insuficientemente comprovado sem acompanhar seu comunicado das preocupações que se impõem. Eles não devem fazer esse tipo de divulgação para um público que não seja médico”.4 A amplitude dessa polêmica, que minou a confiança, provavelmente se deve muito às redes sociais e às emissões das redes de televisão, mas também às falhas na organização dos tratamentos e da produção do saber. A equipe do Institut Hospitalo-Universitaire (Instituto Hospitalar Universitário) de Marselha testou em massa a população, quando isso era praticamente impossível em outros lugares. Ela correspondeu também a uma expectativa, quando a maior parte dos pacientes sofria sozinha com a instrução de só chamar se seu estado se agravasse. Pressionada a desqualifi-
car a hidroxicloroquina, uma das revistas médicas mais prestigiadas do mundo, The Lancet, teve de admitir não poder garantir a veracidade das fontes utilizadas e acabou tendo de desabonar um artigo que apresentava o tratamento como perigoso.5 Entrementes, essa publicação levou à interrupção do teste desse tratamento no ensaio clínico francês Discovery… Chefe do serviço de doenças infecciosas do Hospital Saint-Antoine, Karine Lacombe tentou soar o alarme sobre a baixa relação custo-benefício da hidroxicloroquina. Mas seus inúmeros vínculos com a indústria farmacêutica se voltaram contra ela como um bumerangue, especialmente com o Gilead, que fabrica o Remdesivir, outro remédio cogitado – também ineficaz, de acordo com o teste em grande escala da Organização Mundial da Saúde (OMS).6 Ela se defende: “Houve acusações de conflito de interesses, quando são vínculos enquadrados pela lei. Além disso, esses vínculos dizem respeito ao HIV e à hepatite viral, de forma alguma à Covid. Isso é, de fato, uma manipulação. Penso que foram ataques pessoais por causa do que represento: a emergência de mulheres competentes, capazes de se expressar”. Suas desventuras evidenciaram, sobretudo, a onipresença da indústria farmacêutica na pesquisa médica e na formação dos médicos. Mesmo que ela tenha sido instrumentalizada pelos aliados de Raoult, a influência dos interesses industriais representa uma questão essencial, com frequência dissimulada. A prova disso é a rapidez com que foram constituídos o Conseil Scientifique Covid-19 (Conselho Científico Covid-19) e o Comité Analyse Recherche et Expertise (Comitê de Análise, Pesquisa e Expertise), dos quais vários membros se beneficiam de remunerações, “hospitalidades” ou contratos diversos, às vezes declarados tardiamente. “Infelizmente, isso é revelador da situação atual. Apesar de todos os escândalos e desastres, isso continua. Muitos especialistas têm vínculos de interesses e estarão em situação de conflito de interesses quando mobilizados para atender ao interesse geral”, comenta Bruno Toussaint, diretor editorial da revista Prescrire. Fundada em 1981, a Prescrire funciona sem publicidade, sem subvenções e com uma prática de revisão rigorosa. Ela avalia com regularidade os medicamentos e publica anualmente uma lista dos que precisariam ser descartados. Bem cedo, ela alertou sobre o perigo do Mediator, assim como de outros produtos na origem de catástrofes sanitárias, todos indissociáveis de conflitos de interesses.
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UMA DERIVA SISTÊMICA Para a opinião pública, a imagem da “Big Pharma” continua deplorável. As empresas farmacêuticas se preocupam bastante com isso, a ponto de financiar um “Observatório Societal do Medicamento”. A última pesquisa da entidade é eloquente. Somente uma minoria de pessoas entrevistadas (16%) não tem confiança em seus produtos, mas essa proporção dobrou em oito anos, e dois terços não confiam nas empresas farmacêuticas “em matéria de informação sobre os medicamentos”.7 No entanto, elas não economizam o dinheiro que destinam à propaganda ou à sedução de médicos e especialistas... “O mundo da saúde está ligado de forma sistêmica aos interesses industriais, desde a pesquisa, a formação dos enfermeiros, a expertise regulamentar, até as práticas dos médicos e a informação ao público. Esse conjunto de vínculos de interesses influencia os tratamentos, e essa influência tem um risco tanto para a saúde pública como para o equilíbrio das contas sociais. Ele constitui uma perda de oportunidade para os pacientes”.8 Ao tirar lições dessa crise, a Association pour une Information et une Formation Médicale Indépendantes (Formindep, Associação para uma Informação e uma Formação Médica Independentes) lembrou que não se pode mais deixar de levar em conta essas questões e sua dimensão política. Essa associação reúne profissionais da saúde e cidadãos preocupados em alertar sobre as formas visíveis e invisíveis de influência da indústria. “São ainda muito poucos
os professores que declaram seus vínculos de interesses no início de seus cursos, que abordam esses assuntos ou tomam iniciativas proativas para preparar melhor seus estudantes”, lamenta seu presidente, Paul Scheffer. A associação ajudou a Troupe du R.I.R.E. (Rede de Iniciativas e Reações Estudantis), um coletivo de estudantes de medicina, a produzir um livrinho que explica de forma detalhada os métodos de influência da indústria, a fim de ensinar a escapar deles.9 A Formindep também salientou os “esforços raros e tímidos” dos Centres Hospitaliers Universitaires (CHU, Centros de Hospitais Universitários) franceses, dos quais ela estabeleceu uma classificação em função de sua política de prevenção dos conflitos de interesses.10 Ela publicará, também em janeiro de 2021, sua terceira classificação das faculdades de medicina de acordo com sua independência. Somente uma (a Universidade de Tours) obteve a média na classificação anterior, que mediu o grau de aplicação da Constituição Ética e Deontológica adotada em 2017 pelos Congressos Nacionais de Decanos de Medicina e Odontologia. A Formindep age também na justiça para fazer respeitar acordos prometidos, mas raramente cumpridos. Em 2011, por exemplo, o Conselho de Estado ordenou à HAS suprimir uma recomendação sobre o tratamento da diabetes. A autoridade “independente” não teve “condições de incorporar ao dossiê a integralidade das declarações de interesses cujo cumprimento era obrigatório”.11 Vários membros do grupo de trabalho estavam em conflito de interesses flagrante, pois eram ligados a empresas que intervinham na responsabilização por essa doença. Demonstrar sua independência e sua autoridade não é uma tarefa fácil para a atual presidente da HAS, de quem uma das missões principais é avaliar o “serviço médico prestado” pelos produtos autorizados pela Agence Européenne du Médicament (Agência Europeia de Medicamentos) antes de seu possível reembolso aos pacientes.12 Ela sucedeu a Agnès Buzyn quando esta foi para o governo, em 2017. A ex-ministra da Saúde tinha sucedido a Jean-Luc Harousseau, ex-presidente (partido União por um Movimento Popular – UMP) do conselho regional do Pays de la Loire e que se tornou, em 2019, presidente da Fondation des Entreprises du Médicament [Fundação das Empresas de Medicamentos]! “Os profissionais da saúde compreenderam a importância das declarações de interesses. Isso requer tempo, trata-se de uma aculturação. Essa cultura se adquire com o tempo”, assegura Le Guludec.
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“Para nós, o Mediator é simplesmente revelador. Ao longo de décadas, observamos que, quando os medicamentos começam a ser conhecidos, sua eficácia é globalmente superestimada e seus riscos são mundialmente subestimados. Visto seu peso na economia e sua grande influência no mundo da saúde, as empresas farmacêuticas estão na origem de ensaios enviesados, de uma promoção precipitada etc. Mas elas não têm o monopólio deles! Existem muitos exemplos na história, e vivenciamos uma real dimensão deles na primavera de 2020. Um especialista ou um grupo de especialistas pode ter uma convicção e virar as coisas do lado avesso, decidindo que os dados estarão de acordo com sua convicção”, declara Toussaint. Desde o início de abril, a Prescrire recomendou prudência: “Os resultados observados em Marselha não permitem validar nem excluir o interesse de um tratamento particular”. Antes do final de julho: “a balança benefício-risco parece cada vez mais claramente desfavorável”.
UMA TRANSPARÊNCIA INCOMPLETA A lei “antipresentes” de 1993 foi reforçada em 2011 após a questão do Mediator. Os vínculos contratuais e financeiros entre as empresas e os profissionais devem ser publicados em um único site, público. Mas vários anos se passaram antes que o site Transparence Santé13 mostrasse os primeiros montantes, e de maneira muito pouco legível. Graças a um coletivo voluntário, o site EurosForDocs14 permite atualmente que se tenha uma ideia mais clara das vantagens, acordos e remunerações desde 2012. São 144 milhões de declarações detalhadas, representando mais de 6 bilhões de euros. Os jornalistas utilizaram esses dados. Em janeiro de 2020, por exemplo, um grupo de uma dezena de jornais regionais revelou os vínculos de interesses dos principais CHU. Em Clermont-Ferrand, um professor “recebe mais de 120 mil” sem o conhecimento de seu estabelecimento, salienta La Montagne.15 Ele teve de pedir demissão. A perseverança da Formindep leva a administração a aplicar seus próprios textos. Mas a transparência permanece incompleta: mais de 3 milhões de contratos continuam registrados sem que seus montantes apareçam. A Cour des Comptes [semelhante ao Tribunal de Contas no Brasil (N.T.)] observa: “A análise dos acordos entre médicos e indústria, até 2018, era extremamente inoperante [...]. Nenhum médico foi convocado pelo Conselho Nacional e não foi feita nenhuma acusação disciplinar por desrespeito a uma advertência sobre um contrato irregular”.16 Um novo dispositivo antipresentes previsto pelos textos “para no mais tardar 1º de julho de 2018” entrou em vigor em 1º de outubro de 2020. Ele reforça as proibições, reduz os limites que definem um “presente” (30 euros por uma refeição, 150 euros por um abono etc.) e dá um papel mais importante para as ordens profissionais, que deverão autorizar os acordos. Todavia, esses dispositivos sucessivos tropeçam na ausência de sanção. “A dificuldade jurídica está ligada principalmente ao fato de um conflito de interesses não ser uma infração penal. E os casos que permitem fazer uso da reprimenda para conflito de interesses são bastante limitados. No quadro de uma prescrição médica, por exemplo, é muito difícil provar que, se um médico recomenda um medicamento que não é o mais barato ou o mais adequado, é porque ele está ligado ao fabricante”, explica Farah Zaoui, responsável pela expertise jurídica na associação Anticor. Essa associação de luta contra a corrupção, da mesma
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maneira, lamentou a “apreensão ilegal de interesses” e, em 2018, redigiu uma recomendação da HAS. Esta teria levado ao tratamento de metade dos franceses de mais de 60 anos de idade com estatina sob o pretexto de prevenir um risco cardiovascular... Suas declarações públicas de interesses se revelaram mais do que incompletas. Embora a HAS tenha retirado essa recomendação logo após um novo recurso da Formindep dirigido ao Conselho de Estado, a informação judicial, confiada a um juiz em novembro de 2019, ainda não deu lugar a nenhuma intimação. “Ainda não tínhamos todos os instrumentos de transparência. Desde então, revimos as declarações públicas de interesses de todos os grupos de trabalho daquele período”, explica Le Guludec.
DO VÍNCULO AO CONFLITO DE INTERESSES A doutrina estabelece uma nítida distinção entre os vínculos de interesses – autorizados – e os conflitos de interesses – proscritos. A argumentação encontra-se no regulamento interno do Conselho Científico: “Um conflito de interesses nasce de uma situação em que os vínculos de interesses de um especialista são suscetíveis, por sua natureza ou sua intensidade, de colocar em questão sua imparcialidade ou sua independência no exercício de sua missão de expertise em relação ao que vai ser tratado”. Ex-diretora de redação da prestigiada revista New England Journal of Medicine, Marcia Angell criticou em 2009 esse tipo de raciocínio: “Parece haver uma vontade de eliminar o cheiro da corrupção e, ao mesmo tempo, conservar o dinheiro. Romper a dependência da profissão médica relativa à indústria farmacêutica demandará mais que a nomeação de comitês e outros gestos. Será preciso uma nítida ruptura com um comportamento extremamente lucrativo”.17 A indústria sabe jogar com rivalidades pecuniárias entre médicos. Ela tem como alvo os líderes de opinião, em primeiro lugar os especialistas e os professores universitários que exercem a medicina em hospitais (PU-PH), que trabalham no serviço público. Um PU-PH que não seja profissional liberal inicia sua carreira ganhando cerca de 6.400 euros líquidos por mês e a termina com um salário de 10.500 euros líquidos, sem contar diversos benefícios e a remuneração dos plantões.18 Mas seus colegas das clínicas ou os que têm uma atividade liberal no próprio hospital ganham muito mais. Bruno Toussaint se tornou pedagogo: “Uma vez no exercício profissional, no cuidado ou na redação científica, no ensino, na participação
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em qualquer expertise, o vínculo é uma fonte de conflito. A pessoa que tem um vínculo de interesse com uma empresa farmacêutica é de fato influenciada em tudo o que concerne a essa área, não só para defender um medicamento ou outro”. A influência é bem mais difusa do que a corrupção. Vários estudos revelaram, assim, que os médicos generalistas franceses que aceitam os presentes das empresas são também aqueles cujas prescrições se mostram menos em harmonia com o estado dos conhecimentos e as mais dispendiosas para o seguro-saúde.19 Longe de garantir a independência, a transparência talvez represente um primeiro passo. Em matéria de financiamento político, lembremos que o Parlamento tinha autorizado num primeiro momento o das campanhas eleitorais pelas empresas, com uma obrigação de publicidade. A revelação do apoio maciço a alguns eleitos por parte de empresas do tratamento de águas ou da construção e obras públicas durante a campanha legislativa de 1993 tornara a situação insustentável; o Legislativo acabou proibindo e organizando um financiamento público. Até hoje, a população se mostra mais exigente quanto à probidade dos políticos do que a dos médicos ou especialistas, mas isso pode mudar. “Muitos clínicos estão tomando consciência e isso está prestes a acabar”, garante Chauvin. E Yazdanpanah o testemunha: “Em 2017, pensava que, dadas minhas novas responsabilidades no Inserm [Institut National de la Santé et de la Recherche Médicale (Instituto Nacional da Saúde e da Pesquisa Médica)], era melhor parar. Isso está mais claro em minha cabeça; estou menos preocupado”.
CIÊNCIA E LUCROS Muito além dos presentes e dos representantes de vendas que cortejam os médicos generalistas, a indústria farmacêutica preserva sua grande lucratividade tornando-se indispensável na elaboração de conhecimentos. Inclusive utilizando-se da conduta científica para seus próprios fins, ressalta John Abramson, professor da Harvard Medical School (Faculdade de Medicina de Harvard): “Os laboratórios farmacêuticos transmitem informações aos médicos para convencê-los a exercer da melhor forma seus interesses. O problema é que os médicos não se encontram suficientemente armados para desvendar essas manobras. A medicina fundamentada nas provas e a medicina de alto nível são muitas vezes mais influenciadas pelos interesses das empresas farmacêuticas do que pela saúde dos pacientes”.20 A indústria joga, sobre-
tudo, pelo viés da publicação: quando um estudo não é bom, ele pode continuar na gaveta. Constatando que cerca da “metade dos ensaios clínicos realizados jamais é relatada”, principalmente os resultados negativos, um coletivo internacional criado em 2013 milita em prol de sua publicação integral.21 As melhores ferramentas podem ser mal utilizadas, explica Toussaint: “A medicina baseada nas provas continua a ser muito importante quando se trata de estudar a eficácia de uma intervenção. Em compensação, quando se trata de gerar efeitos indesejáveis, é a prudência que manda. Não havia necessidade de cinquenta ensaios para provar que o Mediator era muito perigoso. Tínhamos dados de química e de farmacologia suficientes para prever o que ia acontecer. Desde os primeiros casos, demorou muito tempo para estancar os estragos”.
INOVAÇÃO? Como as empresas conseguiram ter esse poder? “Se você é infectologista e quer fazer pesquisa clínica, você não tem outra solução a não ser trabalhar com a indústria. Caso contrário, você não tem as moléculas ou as vacinas em desenvolvimento”, explica Chauvin. “Felizmente, existe parceria público-privada”, assegura Tattevin, que não esconde seus próprios vínculos de interesse. E prossegue: “Se não houvesse a indústria farmacêutica, de um lado, e o hospital, do outro, jamais haveria esse progresso, como vi para a aids”. Lacombe se mostra ainda mais categórica: “É preciso olhar as coisas de frente. Não se pode produzir inovação científica sem a indústria. É por isso que as coisas são enquadradas”. Toussaint confirma. “É claro, há uma regulação. Os poderes públicos dizem: ‘Vocês têm uma autorização para colocar no mercado quando comprovar que seu medicamento tem certa eficácia e não é extremamente perigoso. Uma vez feitos os estudos, observaremos o relatório. Você terá o retorno de seu investimento, graças ao preço do medicamento’. A curto prazo, isso não custa muito para a coletividade. É depois que isso se torna um problema! Os medicamentos são produzidos por iniciativa das empresas nas áreas que lhes interessam, do modo como as interessa. Sem dúvida, elas devem a transparência às autoridades, mas detêm os dados. E, com o passar dos anos, o regulador torna-se mais fraco que o regulado.” “A inovação é uma palavra-chave muito poderosa, que permite suscitar a adesão da opinião pública e dos que tomam as decisões. Nós brandimos o
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progresso terapêutico para não calar a indústria farmacêutica. Mais de perto, isso parece muito menos evidente. As cifras da comissão da transparência da HAS ou da Prescrire mostram que, dos novos medicamentos, poucos são melhores do que aqueles de que já dispúnhamos. Observamos, sobretudo, um papel insignificante da inovação”, analisa Scheffer. Entre as 1.292 novas especialidades ou novas indicações estudadas pela Prescrire entre 2007 e 2019, apenas 7,7% corresponderam a um progresso “notável”; 1% representou um progresso “mínimo”; nada foi demonstrado para 59,1%; e 16,3% se mostraram mais perigosas do que úteis. A indústria gasta bem mais com a comercialização de seus produtos do que com a pesquisa e o desenvolvimento. Os estudos comparados de moléculas existentes para as populações mais reduzidas, como as crianças, as pessoas idosas e as grávidas, não interessam muito. No entanto, ela conserva as benesses do Estado e alcança o segundo lugar relativo à distribuição do crédito dos impostos para pesquisa na França.22 No entanto, se concedidos a laboratórios públicos, esses fundos permitiriam reduzir a influência das empresas sobre a produção e a difusão do saber médico. Em 2005, a Itália abriu o caminho ao instaurar uma taxa de 5% sobre os gastos promocionais das empresas farmacêuticas visando aos profissionais da saúde. O dinheiro recolhido por um fundo nacional permite financiar uma pesquisa clínica conduzida diretamente pela Agência Italiana de Medicamentos, que não se contenta mais em apenas ler os estudos que lhe são submetidos. Seus pesquisadores controlam inteiramente os dados e os estudos que devem ser publicados em sua integralidade. Além dos medicamentos, o maná que representam os serviços, os dispositivos e os aparelhos médicos ou os dados de saúde suscita cobiças e tentativas de corrupção. A chegada de novas moléculas e de possíveis vacinas contra a Covid-19 demandará a maior vigilância, pois os lucros previstos pela indústria estão à altura da angústia que se apoderou do planeta. Fenômeno com consequências ainda mais pesadas: os interesses financeiros e os jogos de influência põem o foco da atenção nas terapêuticas, nos tratamentos, no modelo hospitalar; ora, essa crise é testemunho, antes de mais nada, de uma falência da saúde pública, da prevenção, da redução do risco, dos cuidados primários, que simboliza a ruína do “testar, traçar, isolar”. *Philippe Descamps é jornalista do Le Monde Diplomatique.
1 “ Emmanuel Macron: ‘Ce moment ébranle beaucoup de choses en moi’” [Emmanuel Macron: “Este momento provoca muitas coisas em mim”], Le Point , Paris, 15 abr. 2020. 2 L er Renaud Lambert, “Plombiers en blouse blanche” [Encanadores com jaleco branco], Le Monde Diplomatique, jul. 2020. 3 Pesquisa on-line da Harris Interactive encomendada pela Philip Morris France, realizada em 15 e 16 de junho de 2020 com uma amostra representativa de 1.032 pessoas. 4 Artigo 14 do Código de Deontologia, artigo R. 4127-14 do Código da Saúde Pública. 5 M andeep R. Mehra, Frank Ruschitzka e Amit N. Patel, “Retraction – Hydroxychloroquine or chloroquine with or without a macrolide for treatment of COVID-19: a multinational registry analysis” [Retração – Hidroxicloroquina ou cloroquina com ou sem um macrolídeo para o tratamento de Covid-19: registro de análise multinacional] The Lancet , Londres, 5 jun. 2020. 6 “ Repurposed antiviral drugs for COVID-19; interim WHO Solidarity trial results” [Drogas antivirais reindicadas para Covid-19; resultados de testes da OMS Solidariedade], MedRxiv, 15 out. 2020. Disponível em: www.medrxiv.org. 7 Pesquisa realizada pela Ipsos para Les Entreprises du médicament, de 26 a 29 de novembro de 2019, com uma amostra representativa de 1.029 pessoas. 8 “Quelques leçons de la crise” [Algumas lições da crise], Formindep, 3 jul. 2020. Disponível em: https://formindep.fr. 9 “ Pourquoi garder son indépendance face aux laboratoires pharmaceutiques?” [Por que manter a independência dos laboratórios farmacêuticos?], La Troupe du R.I.R.E., 2014. Documento inspirado no manual “Comprendre la promotion pharmaceutique et y répondre” [Compreender a propaganda farmacêutica e reagir a ela], OMS e Action Internationale pour la Santé, 2013. 10 “Classement 2018 des facultés françaises en matière d’indépendance” [Classificação 2018 das faculdades francesas em matéria de independência]. Disponível em: https:// formindep.fr. 11 Arrêt du Conseil d’État [Decisão do Conselho de Estado] n.334396, 27 abr. 2011. 12 Sobre as missões dos órgãos públicos, ler “Un empilement d’institutions” [Uma pilha de instituições]. Disponível em: https://www. monde-diplomatique.fr/. 13 w ww.transparence.sante.gouv.fr. 14 w ww.eurosfordocs.fr. 15 “‘Transparence CHU’: notre enquête sur les liens entre médecins et groupes pharmaceutiques à Clermont-Ferrand” [“Transparência CHU”: nossa pesquisa sobre os vínculos entre médicos e grupos farmacêuticos em Clermont-Ferrand], La Montagne, Clermont-Ferrand, 10 jan. 2020. 16 “ L’ordre des médecins” [A Ordem dos Médicos], Cour des Comptes, Paris, dez. 2019. 17 Marcia Angell, “Drug companies and doctors: A story of corruption” [Empresas de medicamentos e médicos: uma história de corrupção], The New York Review of Books , 15 jan. 2009. 18 De acordo com as últimas informações do Ségur, os status dos clínicos de hospitais e dos professores universitários. 19 C f. especialmente Bruno Goupil et al., “Association between gifts from pharmaceutical companies to French general practitioners and their drug prescribing patterns in 2016” [Associação entre presentes das empresas farmacêuticas para médicos generalistas franceses e seus métodos de prescrição de medicamentos em 2016], British Medical Journal, v.367, n.8221, Londres, Pequim, Délhi, Nova York, 6 nov. 2019. 20 “ Big Pharma, labos tout puissants” [Big Pharma, laboratórios todo-poderosos], documentário de Luc Hermann e Claire Lasko, Arte, 2020. 21 w ww.alltrials.net. 22 “L’évolution et les conditions de maîtrise du crédit d’impôt en faveur de la recherche” [A evolução e as condições de controle do crédito de impostos em favor da pesquisa], Cour des Comptes, jul. 2013.
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UMA TRANSIÇÃO ENERGÉTICA MAL CONDUZIDA
A Polônia apega-se ao seu carvão Último país da União Europeia a se opor ao objetivo de uma neutralidade de carbono em 2050, a Polônia continua dependente do carvão, que fornece mais de 80% de sua eletricidade. A posição explica-se mais pela estruturação da economia e pelas reformas feitas desde 1989 do que por uma preocupação popular menos forte do que em outros lugares a respeito das mudanças climáticas POR AGATHE OSINSKI E MATTHIAS PETEL*
© Greenpeace Polônia
de fato entre os cidadãos menos preocupados com esse assunto no seio da União Europeia, mas outras pesquisas, bem como as marchas pelo clima organizadas no outono de 2019 em Varsóvia, sugerem que essa percepção está evoluindo. Em 2018, pouco antes da COP-24, que ocorreu em Katowice, quase um terço das pessoas interrogadas considerava que as mudanças climáticas representavam uma das maiores ameaças para a civilização contemporânea, contra 18% em 2014 e apenas 15% em 2009. Segundo um estudo do Banco Europeu de Investimento, também realizado em 2018, 75% dos poloneses reconheciam os perigos das mudanças climáticas, contra 78% dos europeus em média. “O discurso evoluiu de maneira significativa”, confirma Ka-
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m 2018, a Polônia extraiu 63,4 milhões de toneladas de carvão (fora o linhito), ou seja, 86% da produção total da União Europeia. Embora, desde 2012, esse número tenha caído 20%, a redução parece fraca em comparação à da Alemanha durante o mesmo período: 76%, apesar de possuir reservas mais significativas.1 Todavia, esse rico vizinho possui os meios de importar a energia da qual precisa e continua sendo o principal consumidor de produtos derivados de carvão, com 35% do total europeu em 2019, contra 23% da Polônia. Já vistos como retrógrados em razão de seu apego a um clero católico muito conservador, os poloneses seriam também indiferentes às mudanças climáticas? Alguns estudos de opinião mostram que eles figuram
mila Proninska, professora da Universidade de Varsóvia e especialista em segurança energética. “Aqueles que negam o problema são cada vez menos numerosos, e o assunto aparece enfim na mídia.” Na Polônia, a transição do comunismo soviético para o capitalismo, “um processo difícil e traumático do ponto de vista sociológico”, segundo as palavras de Pawel Ruszkowski, professor de Sociologia do Collegium Civitas, de Varsóvia, deixou marcas profundas. Essa ruptura extremamente brutal polarizou o país entre vencedores e perdedores da entrada na globalização. Uma parte da população salvou a própria pele e encontrou empregos remunerados no setor privado. Essa nova classe gerencial, bastante urbana, adotou valores liberais. De modo inverso, uma periferia rural, apegada ao catolicismo, preconiza a defesa das tradições contra o modelo ocidental.
“RESISTÊNCIA” CONTRA BRUXELAS
Protesto pede providências em relação às mudanças climáticas
Longe da dicotomia direita-esquerda habitual na Europa ocidental, a paisagem política polonesa opõe uma direita conservadora (o Partido Direito e Justiça, PiS), que se apoia em um discurso nacionalista e em um programa socioambiental – em especial locações familiares generosas –, a uma direita liberal (Plataforma Cívica, PO) pró-europeia e glorificadora do livre-comércio. No poder desde 2015, o PiS foi o primeiro partido político a propor uma redistribuição do crescimento gerado desde o “tratamento de choque” administrado a partir de 1989,2 ao mesmo tempo jogando com o elo patriótico diante de uma população marcada por séculos de dominação estrangeira.3 Já as forças progressistas têm dificuldade para existir, na medida em que aquelas levadas ao poder nos anos 1990 foram moldadas no neoliberalismo. A Polônia periférica mantém a resistência e sustenta maciçamente o
partido conservador no poder, que se posiciona como uma barreira às políticas europeias, apresentadas como uma nova tentativa de submeter o povo polonês a uma dominação estrangeira – em particular a alemã. Desde então, as medidas climáticas são consideradas por alguns como uma ingerência externa que poderia prejudicar o desenvolvimento econômico. Com a recusa do objetivo de neutralidade de carbono em 2050, o poder envia acima de tudo um sinal forte à sua base eleitoral. A mensagem é clara: “Não cederemos a Bruxelas”. Mas se trata na verdade de um truque de comunicação, pois as diretrizes europeias continuam sendo aplicadas. Ao longo dos cinco primeiros anos que se seguiram à queda do comunismo, três quartos das 8 mil empresas públicas foram privatizadas, principalmente em proveito de acionistas estrangeiros, dada a falta de capital nacional. O setor da energia foi excluído do processo por razões estratégicas. Após sucessivas fusões, quatro empresas estatais abastecem atualmente o país: Polska Grupa Energetyczna (PGE), Enea, Energa e Tauron, cujos diretores são designados pelo ministro da Indústria. Durante cada mudança de maioria, esses dirigentes se reciclam no setor privado e são substituídos por pessoas próximas ao novo partido eleito – o PiS, nesse quesito, apenas imitou seus predecessores. Contando os empregados das quatro empresas estatais, fornecedores de empresas mineradoras e os mineradores propriamente ditos, esse ramo de atividade emprega em média meio milhão de pessoas em um país que contabiliza 18 milhões de ativos (de 38 milhões de habitantes)4 em 2019. Assim, embora os mineiros sejam apenas 80 mil, o total de profissões ligadas a essa atividade constitui um curral eleitoral. A significativa taxa de sindicalização reforça seu peso: ao passo que na média geral esta fica estagnada em 15%, no setor de energia ela é claramente mais elevada, chegando a 100% em algumas minas.5 Além disso, os mineiros desfrutam de um capital simbólico considerável: “Eles eram heróis na Bélgica e na Alemanha, no Vale do Ruhr. É uma história que continua na Polônia. Os mineiros recebem o dobro do salário médio, e seu lugar na sociedade continua prestigioso”, explica Bela Galgoczi, pesquisador do Instituto Europeu de Sindicatos. Todos esses elementos explicam a capacidade do setor de bloquear ou frear uma transição para um resultado incerto. No entanto, a exploração do carvão não arruína apenas o meio ambiente, mas também a economia. Entre 2016 e 2018, mais de 4
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dental). Por fim, um novo gasoduto permitirá em breve à Polônia importar gás norueguês via Dinamarca – e cruzará com os gasodutos russos que alimentam a Alemanha... Segundo o plano do governo atual, o país será totalmente independente do antigo “irmão mais velho” a partir de 2022. “É uma maneira de mostrar que não precisamos do gás russo”, explica Proninska. “Não consideramos a Rússia um fornecedor confiável, pois ela utiliza a entrega de recursos naturais como uma arma.”
As medidas climáticas são consideradas por alguns como uma ingerência externa que poderia prejudicar o desenvolvimento econômico Nesse contexto, os sucessivos governos apresentaram os derivados de carvão como uma das chaves da soberania energética. “Há uma verdadeira ansiedade geopolítica, que, fundamentada ou não, impede a Polônia de se desapegar do carvão”, completa Galgoczi. Isso não ocorre sem contradições: para atenuar o déficit de competitividade da produção nacional, o país foi levado a importar em média 40% de suas necessidades dirigindo-se... à Rússia! Isso permitiu manter em funcionamento as estruturas mineradoras a um custo menor e adiar ainda a transição. Algumas comunidades dependem inteiramente dessa indústria. Os fechamentos de minas são vividos como dramas sociais por populações cuja vida inteira estava centrada nesse recurso nacional. Após os fechamentos, a sobrevivência de alguns ainda depende da exploração clandestina do que chamamos de “escavação da pobreza”, uma prática peri-
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bilhões de zlotys (R$ 5,8 bilhões) de dinheiro público foram injetados diretamente para sustentar as empresas estatais. Estas, já amplamente subvencionadas, só podem sobreviver com um grande reforço de empréstimos acordados pelos bancos públicos, garantidores em última instância de uma atividade em déficit crônico, que se tornou tão pouco rentável que nenhum ator privado deseja investir nela. “Nesse momento, custa mais caro produzir eletricidade com carvão que com turbinas eólicas, por exemplo”, explica Ilona Jedrasik, da ONG ClientEarth. Os sucessivos governos estão cientes de que a era do carvão está terminando, mas continuam a manter a indústria em respiração artificial para evitar uma contestação social e uma derrota eleitoral. O medo de novas greves é real após a revolta de 2015 na Silésia. A França serve de contraexemplo: a mídia evoca com frequência a possibilidade de um cenário parecido com o dos “coletes amarelos”. Todo mundo sabe: independentemente até da questão climática, o carvão está condenado a desaparecer, mas ninguém quer assumir a responsabilidade. Após ter sido dominada durante séculos por potências vizinhas, a Polônia teve por prioridade garantir sua independência e sua segurança energéticas. Durante as três últimas décadas, buscou diversificar suas fontes de energia a fim de assentar sua independência em relação à Rússia, de onde provinham 90% do petróleo e do gás importados no momento da entrada do país na União Europeia em 2004. Para se desfazer dessa dependência, dedicou-se a investimentos importantes: construção da rede de gás, reconversão de refinarias, edificação e em seguida ampliação de um terminal de gás natural liquefeito (GNL) às margens do Mar Báltico, em Swinoujscie (Pomerânia Oci-
gosa e reprimida com severidade. Os mineiros temem passar do status de heróis da era industrial ao de abandonados à própria sorte da sociedade ecológica; as classes populares desconfiam de uma transição teleguiada por Bruxelas que ocorreria em detrimento de seus interesses. Apenas um programa ambiental aliando justiça social e ambição ecológica poderia desbloquear a situação.
FINANCIAMENTOS EUROPEUS Quanto a isso, o Pacto Verde pela Europa, adotado em 2019, poderia mudar o contexto. Entre as medidas anunciadas, a criação de um “Fundo para uma Transição Justa” deve possibilitar alocar montantes importantes a fim de permitir uma transformação das regiões dependentes de indústrias poluentes. No entanto, grandes interrogações ainda existem sobre esse programa, em especial sobre o tamanho do financiamento desejado. Este foi com certeza ampliado desde a proposição inicial, passando de 7,5 bilhões de euros a quase 40 bilhões de euros, antes de ser reduzido na metade de julho: nas negociações sobre o plano de retomada, o Conselho Europeu propôs 17,5 bilhões de euros. Esse montante fica longe das necessidades, segundo o governo polonês. Contudo, sem financiamento à altura dos desafios, a transição polonesa não ocorrerá, afirma Adam Guibourgé-Czetwertyński, vice-ministro do Clima: “Não adianta nada falar de objetivo para 2050 sem discutir os meios financeiros. A Comissão Europeia estima que mais de 300 bilhões de euros por ano serão necessários em toda a União Europeia apenas para atingir os objetivos para 2030. E a Polônia em especial precisa disso, pois não acumulamos capital durante gerações como em outros países”. Além disso, um aumento do “Fundo para uma Transição Justa” corre o grande risco de se fazer em detri-
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mento dos recursos estruturais dos quais os países-membros se beneficiam a título da Política Agrícola Comum, e sobretudo do Fundo de Coesão, destinado aos países da Europa central que produzem menos riqueza que a média comunitária.6 “O anúncio de um reforço dos fundos é bem-vindo, mas devemos nos assegurar de que esse mecanismo virá em complemento, e não no lugar dos orçamentos atuais de coesão”, resume Galgoczi. Por fim, enquanto esse fundo deveria ser utilizado para apoiar financeiramente os trabalhadores das indústrias fósseis e permitir sua transferência para outros empregos, parece, até o momento, um mero aporte destinado aos países mais reticentes. Como explica Pawel Wargan, coordenador da campanha Green New Deal for Europe, “os fundos não garantem em absoluto que o dinheiro vai efetivamente fluir e beneficiar as pessoas mais vulneráveis ou as mais abaladas pela transição”. *Agathe Osinski e Matthias Petel são doutorandos na Universidade Católica de Louvain, Bélgica. 1 C oal production and consumption statistics [Produção de carvão e estatísticas de consumo], Eurostat, jun. 2019. 2 Ler Julien Vercueil, “Thérapie de choc ou gradualisme?” [Terapia de choque ou gradualismo?], Le Monde Diplomatique, jun. 2020. 3 Thibault Deleixhe, “Dans les coulisses de la Pologne de Kaczynski” [Nos bastidores da Polônia de Kaczynski], Politique, 13 dez. 2019. Disponível em: www.revuepolitique.be. 4 B ase de dados do Banco Mundial. 5 Aleksander Szpor, “The changing role of coal in the Polish economy” [A mudança do papel do carvão na economia polonesa]. In: Bela Galgoczi (org.), Towards a just transition: coal, cars and the world of work [Em direção a uma transição justa: carvão, carros e o mundo do trabalho], Instituto Europeu de Sindicatos, Bruxelas, 2019. 6 Simone Bennazzo, “Un vent de l’Est contre le Green Deal de la Commission européenne” [Um vento do Leste contra o Green Deal da Comissão Europeia], Courrier International, Paris, 28 jun. 2020.
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MERCADO DE TOLOS
PPPs, as “privatizações disfarçadas” na África Em reunião virtual entre ministros e empresários, em 15 de setembro de 2020, o Banco Africano de Desenvolvimento decidiu promover as parcerias público-privadas (PPPs) para relançar as economias castigadas pela crise sanitária. A experiência mostra, no entanto, que, destinadas a atrair capital privado, as PPPs na verdade sobrecarregam o orçamento público POR JEAN-CHRISTOPHE SERVANT*
esses dois atores e, em tese, reduzir a restrição orçamentária do Estado”, completa. Muitas vezes, assumem a forma de contratos de construção, manutenção e operação de equipamentos públicos (estradas, hospitais, aeroportos, centrais elétricas, ferrovias etc.) com duração de vinte a trinta anos. O usuário público paga o aluguel no ato do recebimento da obra e durante a concessão, ao fim da qual ele recupera a propriedade do bem em questão. As instituições financeiras internacionais (IFIs) – principais financiadoras – e as organizações regionais tornaram as PPPs o motor do crescimento africano, em particular para atingir rapidamente os “objetivos de desenvolvimento sustentável” definidos pelas Nações Unidas. “Nos últimos quinze anos, os fundos de desenvolvimento têm sido usados para incentivar o setor privado a investir em países mais pobres. Em vez de ajudá-los diretamente a criar serviços públicos ou a arrecadar impostos de empresas multinacionais que já trabalham lá, a ideia tem sido usar recursos públicos para tornar o am-
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ada vez mais criticadas no Ocidente, as parcerias público-privadas (PPPs) estão se multiplicando na África. Em 2018, o Banco Mundial identificou 460 em todo o continente. África do Sul, Nigéria e Quênia foram os pioneiros desses contratos, que agora se estendem em direção ao oeste africano: Gana, Costa do Marfim e Senegal. Elogiadas por sua suposta eficiência, na prática aumentam o déficit público enquanto conferem vantagens exorbitantes às empresas privadas. Com a recessão causada pela pandemia de Covid-19, sua nocividade pode vir à tona. “O vírus afetará muito as PPPs, seus usuários, o setor privado e o setor público por semanas, meses ou anos”,1 alerta David Baxter, da Associação Internacional de Profissionais de PPP (Wappp). “Essas parcerias são firmadas entre uma empresa privada e um órgão público”, descreve o economista Romain Gelin, membro do Grupo de Pesquisa por uma Estratégia Econômica Alternativa (Gresea). “Consistem em distribuir recursos, riscos, responsabilidades e benefícios entre
biente ‘mais propício’ aos investimentos de capital privado. As parcerias público-privadas cresceram rapidamente, realizando o que fazem de melhor: transformar as necessidades públicas em fontes de renda de longo prazo para seus financiadores”, 2 explica Nick Dearden, chefe da rede Global Justice Now. Assim, o Banco Mundial e seu braço armado para o desenvolvimento do setor privado nos países do Sul, a Corporação Financeira Internacional (IFC), estão fazendo campanha por PPPs junto aos governos africanos e investidores privados, com o apoio de algumas agências da ONU e da União Europeia. Os resultados desses contratos no Velho Continente, onde foram inventados no início da década de 1990, reclamam, entretanto, um exame cauteloso. Em 2018, um relatório especial do Tribunal de Contas da União Europeia realizado sobre doze PPPs ofereceu uma análise severa: “A maioria dos projetos auditados sofreu atrasos de construção consideráveis e estourou significativamente os custos previstos”.3
CONTRATOS NEGOCIADOS ÀS PRESSAS Apesar dessas advertências, as PPPs prosperam na África com base na visão neoliberal de que Estados são necessariamente burocráticos e possuem gestões ineficientes, devendo confiar grandes projetos ao setor privado e fornecer financiamento garantido de longo prazo para que isso se concretize. “Enfeitadas como ‘ajuda ao desenvolvimento’, ‘adaptação às mudanças climáticas’ ou ainda ‘incentivo à quarta revolução industrial’, as PPPs justificam uma nova onda de privatizações”, analisa o socialista sul-africano Trevor Ngwane, cofundador, durante a década de 2000, do Fórum Antiprivatização, uma coligação de associações que se opunham ao desmantelamento do setor público de água e eletricidade sob a presidência de Thabo Mbeki. Segundo ele, apesar da retórica, essas políticas ignoram a satisfação das necessidades das populações. Em 2017, Jim Yong Kim, então presidente do Banco Mundial, vendeu o peixe da seguinte forma: “Uma das coisas que gostaríamos de fazer, por exemplo, é encontrar um caminho para que um fundo de pensão no Reino Unido invista na construção de estradas em Dar-es-Salam, para obter um retorno razoável sobre esse investimento e contribuir muito para o processo local”.4 Apresentadas como parcerias entre atores iguais, as PPPs são, na verdade, o resultado de brutais lutas de poder muito desfavoráveis aos Estados africanos, que se sentam à mesa de negociações enfraquecidos pela dívida e incapazes de produzir uma experiência que se contraponha ao discurso dos grandes escritórios de advocacia a serviço das multinacionais. “Os governos africanos carecem de competências técnicas e jurídicas para que essas parcerias sirvam às suas finanças públicas”, explica Phi-
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CLÁSSICOS DA LITERATURA UNESP Cinco volumes chegam para integrar sua biblioteca com os principais cânones da literatura nacional e universal, para seu deleite e passeio pelos grandes textos que marcaram a humanidade. Confira também os títulos já publicados: Quincas Borba, de Machado de Assis; Histórias extraordinárias, de Edgar Allan Poe; A relíquia, de Eça de Queirós; Contos, de Guy de Maupassant; Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto.
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© Afolabi Sotunde/Reuters
Em 2018, foram identificadas 460 parceria público-privadas no continente
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lip Alston, que até o início deste ano era o relator especial para pobreza extrema e direitos humanos das Nações Unidas. Dois anos antes, ele se inquietava com o “tsunami” de privatizações que as PPPs gerariam.5 Esse ponto de vista era partilhado pelo advogado senegalês Aliou Saware: “Quando o setor privado, muitas vezes uma multinacional, prepara o contrato com um Estado africano, já está um passo à frente. Na verdade, o setor privado nunca pode perder”. As autoridades públicas se endividam profundamente ao longo de várias décadas, enquanto os contratos fornecem todos os tipos de brecha para os parceiros privados, se necessário, fugirem às suas obrigações. Muitas dessas PPPs são de fato “contratos secos”, assinados sem cláusula de renegociação, e montados às pressas para cumprir os objetivos de curto prazo das promessas eleitorais. Podem incluir todos os tipos de encargo para os governos, dependendo das circunstâncias, como o pagamento de compensação por uma queda na taxa de câmbio ou uma queda acentuada nos lucros. O projeto de gás offshore Sankofa, uma PPP apoiada pelo Banco Mundial em Gana, tornou-se uma bomba-relógio para Acra. De acordo com uma cláusula baseada no mecanismo take or pay (literalmente, “pegar ou pagar”), o Estado é obrigado a recomprar 90% da produção, podendo ou não utilizá-la. A demanda interna, contudo, mostrou-se muito fraca, enquanto a construção da infraestrutura associada, necessária para a extração de combustível, estava atrasada. Como resultado, em 2019 Gana pagou US$ 250 milhões pelo gás não utilizado. Inaugurada em 2016 com grande alarde pelo presidente senegalês, Macky Sall, a “Rodovia do Futuro”, que liga o novo aeroporto internacional de Blaise-Diagne à capital, Dacar, primeira via com pedágios aberta na África ocidental, é um caso emblemático de arranjo desfavorável ao governo contratante. A concepção, construção e gestão foram confiadas à Senac SA, subsidiária local do grupo francês Eiffage, no âmbito de uma PPP apoiada pela IFC: “A Senac investiu 70 bilhões de francos CFA (R$ 700 milhões), e o Estado senegalês, três vezes mais. Ao final da concessão, daqui a trinta anos, a Senac terá ganho quase 300 bilhões de francos CFA (R$ 3 bilhões). O Estado senegalês, por outro lado, embolsará apenas o IVA e terá de reembolsar a dívida contraída junto aos doadores das agências de desenvolvimento, ou seja, mais de 200 bilhões de francos CFA (R$ 2 bilhões) até 2059”, sublinha Saware. Todos os setores com alta rentabilidade são afetados, seja energia, re-
des de telefonia móvel e cabos de internet de alta velocidade, seja estradas, portos, ferrovias ou aeroportos. Mas a IFC também recomenda o uso de PPPs no campo social, por exemplo, para a construção ou reforma de hospitais, a fabricação e distribuição de medicamentos. “Ao contrário da crença popular, essa nova fronteira na saúde não é um território de risco para os investidores”, explica, de Londres, Anna Marriott, consultora de políticas de saúde da sede britânica da Oxfam. “Os países mais desiguais do continente, como Quênia, Nigéria, África do Sul, também têm uma minoria urbana – a classe média alta – disposta a pagar por cuidados de saúde de qualidade”, explica. Os primeiros estudos mostram, entretanto, que as PPPs concluídas no setor da saúde estão se revelando tão perigosas para os Estados como as outras. Em Uganda, por exemplo, a construção e gestão do hospital de Lubowa, nos arredores de Kampala, foram objeto de uma PPP não competitiva concedida a um consórcio ítalo-ugandense. O custo da obra acaba de se revelar US$ 130 milhões mais alto para os cofres públicos do que os US$ 250 milhões prometidos na assinatura do contrato.6 No Lesoto, o Queen Mahomato Memorial Hospital – único especializado do país e construído, financiado e operado desde 2011 por uma PPP – deveria, segundo a IFC, custar três vezes
menos do que a instalação substituída. Três anos após sua inauguração, em 2014, a unidade de 425 leitos engolfou 51% do orçamento nacional de saúde para cobrir a explosão de seus custos operacionais e empréstimos. Embora se mostrasse muito lucrativo (25% do lucro) para os parceiros privados do consórcio Tsepong Ltd, liderado pelo gigante sul-africano da saúde Netcare, o hospital estava onerando o país para atender às necessidades de saúde de populações rurais. Hoje, o Queen Mahomato Memorial Hospital consome apenas um terço do orçamento nacional de saúde. Mas esse valor triplicou desde 2014. A Netcare, que terá investido apenas 4% do valor total do projeto, é acusada pelos demais sócios minoritários privados do consórcio de ter desviado parte das receitas geradas pelo hospital em benefício próprio. Engajada em um impasse jurídico com o Lesoto e doadores, a operadora sul-africana ameaça: se o hospital falir, o reino montanhoso poderá enfrentar uma crise de dívida soberana. Na África, as PPPs correm o risco de se transformar em armas fiscais à medida que uma nova crise da dívida se aproxima.7
“PROBLEMAS, PROBLEMAS, PROBLEMAS” “Certamente podemos criticar a forma como os países gerem seus negó-
cios, mas são de fato as causas externas que obrigam os Estados africanos a continuar cumprindo o ditame das instituições de Bretton Woods”, sintetiza Romain Gelin, do Gresea. Entre essas principais razões exógenas, estão os fluxos financeiros ilícitos e os paraísos fiscais. Embora em 2018 o continente tenha recebido US$ 29,7 bilhões da Assistência Oficial ao Desenvolvimento (AOD), ele perdeu simultaneamente mais de US$ 50 bilhões em fluxos financeiros ilícitos.8 A dívida pública do continente era de US$ 350 bilhões antes da irrupção do coronavírus. Assim como no início dos anos 2000, as iniciativas a favor da redução ou anulação das dívidas africanas voltam a pairar no ar sob a bandeira das agências financeiras internacionais e suas “condicionantes” neoliberais. Mas, quarenta anos depois, as greves e manifestações marcadas pela oposição aos planos de ajuste estrutural desapareceram, e as PPPs, apelidadas por alguns de “problemas, problemas, problemas”, mobilizam menos nas ruas. Em Dacar, Saware (que denuncia o escândalo da “Rodovia do Futuro”) convida a “parar e fazer um diagnóstico global para determinar não apenas se o que tem sido feito no campo das PPPs é lucrativo, mas se também contribui para o desenvolvimento sustentável e para as gerações futuras”. *Jean-Christophe Servant é jornalista.
1 “How will coronavirus affect public-private partnerships?” [Como o coronavírus afetará as parcerias público-privadas?], Blog do Banco Mundial, 10 mar. 2020. Disponível em: https://blogs.worldbank.org. 2 “The free market will only deepen the coronavirus crisis” [O livre mercado só vai aprofundar a crise do coronavírus], Al Jazeera, 8 abr. 2020. Disponível em: www.aljazeera.com. 3 “Les partenariats public-privé dans l’Union européenne: de multiples insuffisances et des avantages limites” [Parcerias público-privadas na União Europeia: deficiências múltiplas e benefícios limitados], Relatório especial n.9, Tribunal de Contas Europeu, Luxemburgo, 2018. 4 Discurso de 11 de abril de 2017. Disponível em: www.worldbank.org. 5 “ UN poverty expert warns against tsunami of unchecked privatisation” [Especialista em pobreza da ONU adverte contra tsunami de privatização desenfreada], Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para Direitos Humanos, 19 out. 2018. Disponível em: www.ohchr.org. 6 “ Fears raised about cost of PPP hospital in Uganda” [Surgem receios em relação ao custo de PPP para construção de hospital em Uganda], Campanha do Jubileu da Dívida, 8 jul. 2019. Disponível em: https://jubileedebt.org.uk. 7 L er Ndongo Samba Sylla, “En Afrique, la promesse de l’émergence reste un mirage” [Na África, a promessa de emergência permanece uma miragem], Le Monde Diplomatique, jun. 2020. 8 C f. Romain Gelin, “Qui finance les infrastructures en Afrique” [Quem financia infraestrutura na África], Comitê pelo Cancelamento de Dívida Ilegítima, Bruxelas, 9 nov. 2018. Disponível em: www.cadtm.org.
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UMA NOVA GERAÇÃO DE FEMINISTAS
A revolta das sul-coreanas Por trás da fachada moderna e do impulso das novas tecnologias, a Coreia do Sul permanece uma sociedade muito machista, onde as mulheres devem ser devotas à sua família. Entretanto, em outubro, o governo apresentou um projeto de lei que autoriza o aborto, uma proposta que as feministas julgam muito tímida, enquanto as jovens militantes preparam a revolta POR FRÉDÉRIC OJARDIAS*
em agosto de 2019 e em seguida em maio de 2020, a um reforço da lei que pune os crimes sexuais on-line. “As manifestações de 2018 foram as primeiras reuniões feministas das quais ousei participar”, conta Seo Ji-eun, de 22 anos, jornalista. Pois, na Coreia do Sul, até a palavra é um tabu: dizer-se “feminista” é provocar a ira de sua família, de seus colegas homens, dos internautas... “Na época, eu me escondia, tinha medo de que me identificassem como militante e me transformassem em alvo. Mas as coisas mudaram.” Prova disso é o sucesso de Kim Ji-young, nascida em 1982,1 romance de Cho Nam-joo, com mais de 1 milhão de exemplares vendidos. Sua heroína, jovem casada, vê-se destruída pelas expectativas de uma sociedade ultrapatriarcal, bem como pelas humilhações cotidianas e insidiosas impostas às mulheres. Desse modo, pouco a pouco, alguns tabus caem. “Quando criamos nossa organização, em 1991, nem sequer podíamos pronunciar as palavras ‘violência sexual’”, recorda-se Park A-reum, representante do Centro de Ajuda contra as Violências Sexuais. “Agora, as vítimas têm coragem de falar. É uma grande mudança.” O assassinato, em maio de 2016, perto da estação de metrô Gangnam, em Seul, de uma transeunte de 23 anos por um desconhecido de 34 anos que confessou ter desejado matar uma mulher ao acaso desencadeou uma onda de militância. Como explica Lee Min-kyung, autora feminista: “Essa vítima poderia ter sido eu. Após esse crime, o movimento feminista explodiu”.
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m 11 de abril de 2019, os juízes da Corte Constitucional da Coreia do Sul proferiram um veredicto histórico: por sete votos a dois, decidiram que a criminalização do aborto, em vigor havia décadas, era ilegal. As sul-coreanas não precisam mais se esconder; uma grande vitória para as associações feministas. “O resultado de anos de luta”, exclamou uma militante, com a voz alterada pela emoção, após o anúncio do julgamento. Outros avanços significativos foram obtidos com esforço nos últimos anos. O movimento #metoo, que chegou tarde ao país, teve um impacto considerável. No começo de 2018, a procuradora Seo Ji-hyun acusou publicamente seu superior de tê-la tocado de maneira indevida e contou como sua carreira foi destruída após ter ousado protestar. Outras seguiram seu exemplo, quebrando a lei do silêncio. Dirigentes políticos, cineastas, artistas, universitários: diversos casos de impacto surgiram, assinalando a todos que as agressões sexuais, outrora abafadas, não o seriam mais. Após tais revelações, muitas mulheres que ainda hesitavam se juntaram ao movimento, dando-lhe cara e voz. No verão de 2018, as mais importantes manifestações feministas da história do país ocorreram em Seul. Aos gritos de “Minha vida não é seu filme pornô”, dezenas de milhares de mulheres denunciaram a inércia das autoridades em relação à proliferação de câmeras-espiãs, batizadas de molka, instaladas em locais públicos (banheiros, saunas) para filmá-las sem que percebessem. Esses vídeos, bem como sex tapes roubadas, eram difundidos e vendidos na internet, arruinando a vida das vítimas. A polícia e a justiça foram acusadas de demonstrar laxismo e clemência culposa. Essas manifestações de cólera levaram,
MÃES SOLTEIRAS, ESSAS “DEPRAVADAS” Quatro anos depois, em abril de 2020, o primeiro partido feminista sul-coreano se apresentou às elei-
ções legislativas. Não obteve nenhum assento, mas sua existência por si só constitui uma pequena revolução. A Assembleia Nacional tem hoje 19% de deputadas – um recorde... para a Coreia do Sul. A democracia taiwanesa vizinha conta com 41,6% de mulheres no Parlamento. Sob sua aparência moderna e ultraconectada, a sociedade continua na verdade muito impregnada da ideologia neoconfuciana, que serviu de coluna vertebral à dinastia Joseon (1392-1910) e promove valores ferozmente patriarcais e conservadores: ao longo da vida, a mulher deve ser submissa a seu pai, a seu marido e em seguida a seu filho mais velho. Sem dúvida, a Coreia do Sul é uma democracia vigorosa que, em 2017, soube destituir sua presidenta, Park Geun-hye – primeira mulher eleita para esse posto –, após meses de manifestações maciças e pacíficas.2 Mas continua impressionantemente atrasada na questão da igualdade entre os sexos. E as sul-coreanas continuam batendo a cabeça em um teto de vidro muito baixo. As pressões sociais e familiares para que elas peçam demissão após o primeiro filho continuam esmagadoras. A figura tradicional permanece aquela da hyobu, a nora modelo que cozinha, cuida da casa e se dedica aos filhos, ao marido e aos sogros – um destino que quase não está mais nos sonhos das jovens sul-coreanas, modernas, muito estudadas e abertas ao mundo. As mães solteiras sofrem muito com os efeitos desse patriarcado tenaz. Os nascimentos fora do casamento são raros (1,9% do total em 2018, contra 59,1% na França)3 e reprovados com violência. As solteiras grávidas sofrem enormes pressões para abortar ou para abandonar seu bebê no nascimento. “Até meus pais me aconselharam a abandonar meu filho”, testemunha Kim Do-kyung, presidente da Associação Coreana de Famílias de Mães Não Casadas (Korean Unwed Mothers Families Association, Kumfa). “Somos vistas como depravadas. Muitas perdem o emprego: ficar com seu bebê significa tornar-se mais precária. Na escola, os pais pedem a seus filhos que não brinquem com o meu. Murmuram pelas minhas costas. Não sou convidada para reuniões de pais de alunos. Na certidão de nascimento do meu filho, está indicado ‘nascido fora do casamento’. Ele foi etiquetado desde o primeiro dia.” Jovem mãe de uma filha de 14 anos e membro da associação, Jeong Su-jin acrescenta: “Quando meu patrão soube que eu estava grávida e solteira, me mandou embora. Ele me disse: ‘Eu não quero alguém como você aqui’. Até meus colegas me
apontaram o dedo.” A Kumfa provê uma assistência financeira e psicológica para essas mães, mas não recebe nenhuma subvenção. Muitas solteiras são excluídas de fato de certos programas municipais de natalidade. Frequentemente rejeitadas por sua própria família, foram por muito tempo presa de agências de adoção internacional pouco escrupulosas que as acolhiam antes do parto e se aproveitavam de sua angústia para forçá-las a abandonar seu bebê. Esse patriarcado profundamente enraizado explica por que a Coreia do Sul, embora rica e industrializada, continuou fornecendo milhares de crianças para adoção no exterior. Isso também tem um peso enorme no mundo do trabalho. As sul-coreanas, apesar de serem as mulheres mais numerosas em termos de formação universitária de todos os países da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), ocupam os empregos mais precários e menos bem pagos. “A discriminação começa desde a entrevista de contratação”, explica Bae Jin-kyung, diretora da Associação das Trabalhadoras da Coreia (Korea Women Workers Association). “É comum que os recrutadores perguntem a uma candidata se ela tem namorado, sobre os planos de casamento ou de filhos. Uma vez no posto, serão confiadas a ela responsabilidades menores.” Ela também será excluída dos huesik, os jantares de empresas bem alcoólicos (que terminam às vezes no bordel) que servem para negociar contratos, bem como para reforçar os laços no seio de uma equipe ou para facilitar as promoções. Para muitos empregadores, o mais simples é evitar recrutar mulheres, suscetíveis de deixar a empresa a partir do primeiro filho. Em 2018, três dos maiores bancos da Coreia do Sul, Hana Bank, Shinhan Bank e Kookmin Bank, foram condenados por ter falsificado seus processos de recrutamento: tinham baixado as notas das candidatas a fim de privilegiar o recrutamento de homens. As contratadas de certas profissões muito feminizadas, como as enfermeiras, enfrentam sempre pressões de seus superiores hierárquicos para que só engravidem uma de cada vez. “Em outros setores, as pessoas se contentam em demitir aquelas que engravidam. As leis sobre igualdade dos sexos no trabalho existem, mas são ignoradas”, denuncia Bae Jin-kyung. Segundo ela, a crise financeira asiática de 1997, ao ter provocado uma grande precarização do mercado de trabalho – sob a égide do FMI, que veio “em socorro” –, tornou tacitamente aceitável o desrespeito ao código trabalhista. Quanto ao salário
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timas de discriminações se agrupam no seio de associações masculinistas e usam seu longo serviço militar obrigatório para justificar seus privilégios tradicionais. A controvérsia tem consequências políticas: o presidente de centro-esquerda, Moon Jae-in, com ideias vistas como próximas às das feministas, viu sua taxa de apoio cair entre os jovens eleitores. O conflito se agravou com o aumento do desemprego dos jovens e a estagnação da economia. Muitos homens jovens não têm os meios de se conformar às normas sociais rígidas: para se casarem, precisam ganhar o suficiente para comprar uma moradia e pagar pela escolaridade de seus futuros filhos. Sentem-se espoliados. Frustrados diante da nova concor-
rência das mulheres no mundo do trabalho, muitos se recusam a ver que as expectativas delas mudaram. “A nova geração de garotos não é nada diferente! Eles cresceram observando seus pais”, ironiza uma estudante de Seul. Para as sul-coreanas, o combate ainda corre o risco de ser longo.
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*Frédéric Ojardias é jornalista (Seul) e autor do ensaio Les Sud-Coréens (As sul-coreanas), Ateliers Henry Dougier, Paris, 2017.
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1 C ho Nam-joo, Kim Ji-young, née en 1982 [Kim Ji-young, nascida em 1982], NiL Éditions, Paris, 2020 (1. ed.: 2016). 2 Ler Sung Il-kwon, “‘Révolution des bougies’ à Séoul” [“Revolução das velas” em Seul], Le Monde Diplomatique, jan. 2017. 3 “ Population trend investigations” [Investigações de tendências de população], Kosistat (em coreano), maio 2020; e, sobre a França, “Naissances hors mariage” [Nascimentos
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fora do casamento], Instituto Nacional de Estudos Demográficos, Paris, mar. 2020. Ministério do Emprego e do Trabalho, Seul, 2019. Disponível em: www.wage.go.kr. O ck Hyun-ju, “At workplaces and home, female workers hit harder by Covid-19 outbreak” [Nos locais de trabalho e em casa, mulheres trabalhadoras mais atingidas pela pandemia de Covid-19], The Korea Herald , Seul, 18 maio 2020. “ Diplômés de l’enseignement supérieur” [Formados no ensino superior], Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE). Disponível em: www.oecd-ilibrary.org. “Till death do I stay single: South Korea’s #NoMarriage women” [Solteira até a morte: as mulheres #SemCasamento da Coreia do Sul], AFP, 6 dez. 2019. “S. Korea’s total fertility rate hits new low in 2019” [A taxa total de fertilidade da Coreia do Sul atinge novo ponto mais baixo em 2019], Yonhap News Agency, Seul, 26 fev. 2020. Jake Kwon, “South Korea’s young men are fighting against feminism” [Homens jovens da Coreia do Sul estão lutando contra o feminismo], CNN, 24 set. 2019.
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médio das mulheres, chega apenas a 68,5% da remuneração dos homens4 – a discrepância mais elevada entre as economias ditas “desenvolvidas”. Apenas 52% das mulheres em idade de trabalhar ocupam um emprego, contra 72,3% dos homens, e a crise ligada à Covid-19 atingiu mais duramente as assalariadas.5 Os 15 mil altos postos das quinhentas maiores empresas do país contam em suas fileiras com apenas 3,6% de mulheres. As sul-coreanas possuem, no entanto, mais formação universitária que seus homólogos masculinos: enquanto, há duas gerações, apenas seus irmãos eram enviados à universidade, hoje 75,7% das mulheres de 25 a 34 anos possuem diploma universitário, contra 64,1% dos homens.6 Obrigadas a escolher entre carreira e filhos, rejeitando as expectativas arcaicas de uma sociedade de evolução bastante lenta, muitas preferem manter sua independência e renunciam ao casamento. Apenas 22% das mulheres consideram o casamento indispensável; elas eram 47% há dez anos.7 Como as sul-coreanas se casam cada vez menos e cada vez mais tarde, os nascimentos diminuíram. Em 2019, a taxa de fecundidade caiu para 0,92 filho por mulher: um recorde.8 Os programas de recuperação da natalidade, realizados desde 2005 tanto pelos governos de direita como pelos de centro-esquerda, custaram uma fortuna – 123 bilhões de euros no total – e se revelaram de uma ineficácia espetacular. Teriam errado de alvo? “Não é por acaso que a região que exibe a taxa de natalidade mais forte é a de Sejong”, observa Bae Jin-kyung. Na nova capital administrativa, situada ao sul de Seul, a maior parte dos residentes são funcionários públicos; a igualdade dos sexos no trabalho, portanto, é maior ali, e a segurança do emprego é mais forte.
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Já Lee Min-kyung lamenta que o governo “persista em analisar a queda da natalidade apenas do ponto de vista econômico, já que ela é devida a uma guerra dos sexos”. Na verdade, as recentes vitórias das mulheres provocaram uma radicalização do discurso misógino, em particular entre as novas gerações. “Muitos homens odeiam as feministas. Eles nos insultam”, conta Seo Ji-eun. Os de 20 a 30 anos se mostram até mais virulentos que os de 30 a 40 anos; 76% desses jovens declaram abertamente sua oposição ao feminismo.9 Em setembro de 2019, a adaptação para o cinema de Kim Ji-young, nascida em 1982 causou uma corrente de ódio e de insultos on-line, expondo a nova onda de cisão que percorre a sociedade. Os homens que se dizem ví-
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“ELES NÃO ESTÃO BRINCANDO...”
Mistérios e o poder da frota pesqueira chinesa Ninguém sabe exatamente quantos navios tem a frota pesqueira chinesa. Mas não há dúvida de que essa armada, que cruza todo o planeta, é maior do que qualquer outra, tanto em termos de porte quanto de raio de ação. Para o governo chinês, ela tem um papel crucial, seja alimentando seu povo, seja posicionando suas peças no tabuleiro geopolítico POR IAN URBINA*, ENVIADO ESPECIAL
PÉSSIMO ENCONTRO A recente descoberta de oitocentos arrastões chineses presentes ilegalmente nas águas norte-coreanas pode explicar o desaparecimento de mais de 70% das lulas que outrora eram ali abundantes.4 Com sua armada de navios industriais avançando sobre essas águas proibidas, a China não ape-
nas exauriu os recursos pesqueiros, mas também expulsou sem cerimônia os pequenos barcos norte-coreanos que ali navegavam. Essa presença naval, antes invisível, foi detectada pelo site Global Fishing Watch com o uso de uma nova tecnologia de satélite. Questionado sobre essa revelação pelo canal NBC, o ministro das Relações Exteriores chinês não confirmou nem negou. Ele apenas se contentou em responder que seu país “respeita conscienciosamente” as resoluções do Conselho de Segurança da ONU, que proíbem a pesca estrangeira em águas norte-coreanas, e é “implacável” na punição de práticas ilegais. Encorajados por sua própria quantidade e pelos agentes de segurança armados que muitas vezes viajam ao seu lado, os navios chineses costumam ser agressivos com os concorrentes ou com qualquer embarcação considerada ameaçadora. Tivemos a oportunidade de observar isso em maio de 2019, quando, interessados em verificar pessoalmente sua presença ilegal no Mar do Japão, embarcamos, mediante pagamento, em um barco sul-coreano de pesca de lula. O capitão era um homenzinho magro, de seus 70 anos, olhos fundos e pele enrugada. Na manhã da partida, todos os tripulantes contratados para a ocasião desertaram: eles explicaram que não queriam se envolver em uma reportagem sobre a Coreia do Norte nem chegar perto demais dos pescadores chineses. O capitão declarou-se pronto a continuar a expedição com o auxílio de seu imediato, desde que aceitássemos condições um pouco mais caóticas e menos confortáveis que o normal e que eu estivesse disponível para ajudá-lo quando ele pedisse. Ele não mentiu sobre as condições da viagem. Nossa embarcação – um barco de madeira com cerca de 20 metros de comprimento – não pôde ser limpo depois da última viagem. Um forte odor de isca podre pairava no convés, que escorregava
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ara quem navega em alto-mar, o poder e o destemor da frota pesqueira chinesa são incontestáveis. Em 2019, quando passamos uma semana a bordo de uma unidade da polícia marítima da Gâmbia patrulhando mais de 150 quilômetros de costa, assistimos à inspeção de quinze embarcações estrangeiras acusadas de violações do direito trabalhista e pesca ilegal. Apenas uma não era chinesa. Nesse mesmo ano, um pouco antes, passamos um mês a bordo de um espinheleiro que zarpou do porto chileno de Punta Arenas para a pesca da merluza-negra no Oceano Glacial Antártico, e em nossa rota não cruzamos com praticamente nada além de navios cerqueiros1 chineses, uma dúzia deles, todos em péssimo estado de conservação. Em agosto de 2020, mais de 340 navios pesqueiros chineses foram avistados nos arredores da reserva marinha das Ilhas Galápagos, pertencente ao Equador, cuja fauna excepcional é considerada patrimônio mundial pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).2 A maioria deles havia sido fretada por armadores envolvidos em atividades de pesca ilegal, como revelou o Center for Advanced Defense Studies (C4ADS, Centro de Estudos de Defesa Avançados).3 No verão de 2017, uma flotilha chinesa quase tão grande como essa já havia sido vista rondando o santuário da vida marinha. Um barco foi apreendido com quase 300 toneladas de pesca ilegal a bordo, incluindo espécies ameaçadas de extinção, como o tubarão-martelo-entalhado.
feito gelo por causa dos resíduos da pesca anterior, e as instalações reservadas à tripulação estavam cheias de lixo. Para piorar, o motor nos deixou na mão quando estávamos a centenas de quilômetros da costa, e foi somente após duas horas de um suspense agonizante que conseguimos retomar a rota. Na primeira noite, logo após o anoitecer, o radar alertou sobre a proximidade de um barco. Acelerando, conseguimos alcançar o que se revelou ser não um, mas duas dúzias de navios que seguiam em fila rumo às águas territoriais da Coreia do Norte, desprezando as resoluções da ONU. Todos hasteavam a bandeira chinesa, e todos estavam com o transponder desligado, ao contrário do que exigem as regulamentações sul-coreanas. Após cerca de 45 minutos de observação, ao longo dos quais fizemos vídeos e gravamos os números de identificação dos barcos, decidimos mandar um drone sobrevoá-los para darmos uma olhada mais de perto. A reação chinesa não se fez esperar. Um dos capitães soou a sirene de neblina e piscou as luzes de navegação, desviando repentinamente seu curso em nossa direção. Mantivemos o curso, e ele continuava se aproximando. Finalmente, quando estava a menos de 10 metros, nosso capitão virou apressadamente para evitar a colisão. Foi o suficiente para o velho capitão. Considerando que era perigoso demais continuar por ali, ele deu meia-volta e rumou para o porto. Durante as oito horas de trajeto, ele pareceu agitado e manteve-se surpreendentemente silencioso, apenas sussurrando de vez em quando: “Eles não estão brincando...”. Enquanto isso, os pescadores chineses mantiveram organizadamente sua jornada rumo às águas norte-coreanas. Oferecendo amplos subsídios à pesca, a China colaborou para a formação de uma monumental e poderosa frota, hábil em aproveitar a fragilidade das regulamentações para se
desenvolver fora de qualquer controle. Mas também insuflou em seus marinheiros uma ambição, uma vontade e uma ousadia que poucos Estados – e ainda menos seus capitães pesqueiros – ousam ou conseguem desafiar. E qual é a razão disso? A China está interessada em posicionar suas peças no tabuleiro mundial e garantir sua segurança alimentar. Na África ocidental e na Península Arábica, ela conseguiu ocupar o lugar vago deixado pela Marinha dos Estados Unidos, intensificando suas atividades pesqueiras. Paralelamente, no Mar da China Meridional e ao longo da Passagem do Nordeste, ela reivindica sua soberania sobre corredores de navegação muito valorizados, bem como sobre campos submarinos de petróleo e gás. “Com uma frota tão gigantesca e agressiva, a China está claramente no comando”, comenta Greg Poling, diretor da Asia Maritime Transparency Initiative (Iniciativa de Transparência Marítima da Ásia), que integra o Center for Strategic and International Studies (Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais), em Washington. E, acrescenta o pesquisador, ela intimida: raros são os países que ousam retaliar quando os navios chineses invadem suas águas territoriais. A China precisa alimentar 1,4 bilhão de pessoas. Com a redução dos estoques de peixes em sua costa, por causa da pesca predatória e da industrialização, seus navios são forçados a aventurar-se cada vez mais longe para encher as redes. Segundo um relatório recente do Stimson Center, think tank norte-americano que trabalha com questões de segurança, os cerca de 2.600 navios de pesca de grande escala em alto-mar relatados pela China5 representam o triplo da frota combinada dos quatro países classificados logo atrás dela: Taiwan, Japão, Coreia do Sul e Espanha. E essa é uma estimativa baixa: em um relatório de junho de 2020, o Overseas Development Institute, do Reino Unido, calculou a frota de alto-mar
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da China em 16.966 embarcações (contra treze, em meados da década de 1980). Uma potência que, segundo Poling, deve tudo às subvenções: “Sem essa fonte de recursos, não apenas a frota seria infinitamente mais modesta, como também não poderia estar presente no Mar da China Meridional”. Por e-mail, a professora da Universidade de Washington e especialista em políticas de pesca chinesas Tabitha Grace Mallory nos deu detalhes sobre os sistemas de ajuda que há duas décadas funcionam na China. Em 2018, as subvenções oferecidas por esse sistema foram da ordem de US$ 7,2 bilhões, ao passo que o montante total estimado no mundo foi de US$ 35,4 bilhões. Segundo Mallory, esses recursos têm um efeito globalmente “nocivo”, pois ajudam a expandir, e não a reduzir, a frota, inclusive por meio de auxílio para a compra de combustível e a entrada em serviço de embarcações adicionais. Apenas uma pequena parte desses fundos é destinada ao desmantelamento de barcos que chegaram ao fim de sua vida útil.
ESPÉCIES AMEAÇADAS Os subsídios chineses também ajudam a renovar motores e a adquirir cascos de aço mais duráveis para os barcos de arrastão. Eles ainda cobrem parte dos custos ocasionados pela mobilização, nos locais de pesca, de agentes de segurança armados e de embarcações médicas, para que os capitães possam permanecer mais tempo no mar. Por fim, os marinheiros chineses podem contar com dados fornecidos pelo governo para localizar as áreas mais piscosas. Para o pesquisador Daniel Pauly, diretor do projeto Sea Around Us, do Institute for the Oceans and Fisheries (Instituto para os Oceanos e a Pesca), da Universidade British Columbia, o apoio público “tem um papel crucial no esgotamento dos recursos pesqueiros, pois permite manter em operação navios que deveriam ser sucateados”. A opinião é compartilhada por muitos especialistas: enquanto a sobrepesca for possibilitada pela ajuda financeira, o objetivo da pesca sustentável continuará fora de alcance. Entre os estoques de peixes comercializados que são monitorados
pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), 90% sofrem sobrepesca, ou até já se esgotaram – ou seja, não têm mais capacidade de se reconstituir. É isso que ocorre com as dez espécies mais consumidas no mundo. A China está longe de ser o único país que oferece subsídios milionários à sua frota pesqueira. Mais de 50% das atividades de pesca do mundo não seriam lucrativas em sua es-
cala atual sem o apoio estatal que recebem.6 Quando se trata de pesca em alto-mar – áreas oceânicas que não estão sob jurisdição de nenhum Estado –, o Japão é o mais pródigo, oferecendo US$ 841 milhões em subsídios, o equivalente a cerca de 20% do total mundial. A Espanha responde por 14% dos subsídios à pesca em alto-mar distribuídos em todo o mundo, seguida pela China (10%), pela Coreia do Sul e pelos Estados Unidos.
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PEIXES SELVAGENS COMO RAÇÃO Além de esvaziarem progressivamente os oceanos de seus peixes, todos esses subsídios fazem que haja simplesmente barcos demais no mar. Daí decorre uma sobrecapacidade de pesca e uma concorrência pouco saudável entre as frotas nacionais, gerando disputas territoriais. Isso exacerba a pesca ilegal, pois os capitães procuram desesperadamente novas áreas de pesca menos frequentadas. Peter Thomson, enviado especial para os oceanos do secretário-geral das Nações Unidas, usa uma comparação perturbadora para descrever a situação: “É um pouco como pagar ladrões para roubarem a casa do seu vizinho”. Segundo um índice criado em 2019 pela Poseidon Aquatic Resource Management Ltd – uma empresa de consultoria britânica especializada em pesca e aquicultura –, a China tem as piores pontuações do mundo em pesca ilegal, não declarada e não regulamentada. Mas o país começa a dar alguns passos tímidos na direção certa, embora ambientalistas e especialistas continuem céticos. Nos últimos anos, diante da pressão dos defensores dos oceanos e de governos estrangeiros, a China decidiu controlar mais de perto sua frota. Em 2016, foi promulgado um plano quinquenal para limitar a 3 mil o número de navios de pesca de grande escala em alto-mar até 2021. No en-
tanto, na ausência de dados governamentais confiáveis sobre o número de barcos em atividade, é difícil avaliar o cumprimento desse objetivo. Em junho de 2020, as autoridades chinesas anunciaram ter proibido a seus navios a captura de lulas em certas águas territoriais da América do Sul entre julho e novembro, com o objetivo de permitir a recuperação das populações. Foi a primeira vez que a China cancelou uma temporada de pesca por iniciativa própria. “Acho que o governo chinês realmente pretende reduzir sua frota pesqueira de pesca de grande escala em alto-mar”, afirma Pauly. “Quanto a saber se ele tem o poder de fazer cumprir suas decisões, é outra história. Duvido que a China tenha mais autoridade sobre seus navios em alto-mar do que os países ocidentais têm sobre os seus.” Outro campo de ação: os peixes de viveiro. Com uma classe média em rápida expansão, a demanda chinesa por frutos do mar está explodindo. Para reduzir a dependência em relação à captura de peixes selvagens, entre 2015 e 2019 a China concedeu mais de US$ 250 milhões em subsídios ao setor de aquicultura. Mas a medida coloca um problema: para engordar seus estoques, a maioria das fazendas utiliza farinha de peixe, uma mistura rica em proteínas feita essencialmente à base de peixes selvagens capturados em águas estrangeiras ou internacionais. E eles a consomem em enormes quantidades: antes de chegar ao consumidor, um atum de viveiro pode ter comido mais de quinze vezes seu peso em farinha de peixe. As associações de proteção dos oceanos já soaram o alarme. O grande consumo de farinha de peixe acelera o esgotamento dos recursos pesqueiros e só pode aprofundar o problema da pesca ile-
gal e desestabilizar as cadeias alimentares marinhas, privando as populações dos países pobres de uma fonte de proteína indispensável para sua subsistência. “Capturar todos esses peixes selvagens para atender à crescente demanda por peixes de viveiro é um absurdo”, argumenta o ex-professor Enric Sala, que se tornou explorador da National Geographic Society. “Essas capturas poderiam ser utilizadas para alimentar diretamente as populações, com um impacto muito menos devastador para a fauna submarina.” O destino do krill, o alimento básico das baleias, também preocupa os ambientalistas. Em 2015, as autoridades chinesas anunciaram a intenção de aumentar sua captura de krill no Oceano Glacial Antártico de 32 mil toneladas para 2 milhões de toneladas, para garantir seu abastecimento de farinha e óleo de peixe. Mas assumiram o compromisso de não tocar nas áreas “ambientalmente sensíveis”.
“MILÍCIAS CIVIS” A superpopulação naval não apenas degrada o ambiente por meio da sobrepesca e do esgotamento dos estoques, mas também é acompanhada por uma intensificação das rivalidades em torno dos locais de pesca, levando a tensões diplomáticas e até a confrontos violentos. Em 2016, a guarda costeira sul-coreana abriu fogo contra dois barcos chineses que ameaçavam atingir seus navios de patrulha no Mar Amarelo – a mesma região onde, um mês antes, um barco a motor sul-coreano havia afundado por causa de um ataque semelhante. Nesse ano, a Argentina também afundou um navio chinês acusado de pescar ilegalmente em suas águas territoriais. Outros países, como a Indonésia, a África do Sul e as Filipinas,
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Em termos de número de navios ativos, porém, a China está muito à frente de todos os outros países. Em 2014, ela poderia orgulhar-se de ter feito mais de 35% das capturas mundiais declaradas em alto-mar. A título de comparação, Taiwan, com 593 navios, representou cerca de 12% dessas capturas, e o Japão, com 478 navios, menos de 5%.
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passaram por confrontos semelhantes, geralmente com barcos de pesca de lula – espécie que representa mais da metade das capturas da frota chinesa em alto-mar. Entre os inúmeros navios chineses que singram os oceanos, há alguns que não estão ali apenas para pescar, como explica Poling. Alguns formam “milícias civis” enviadas pelo governo às zonas de conflito marítimo para fins de vigilância, ou ainda, ocasionalmente, para intimidar e destruir barcos pesqueiros ou policiais estrangeiros. A China dispõe para isso de um programa específico de incentivos financeiros destinados a encorajar os pescadores a navegar no Mar da China Meridional a fim de fortalecer suas posições lá. Além dos benefícios de que gozam seus colegas de pesca offshore, eles recebem fundos suplementares para compensar o fato de que a área é relativamente pouco lucrativa. Assim, há uma milícia de mais de duzentos barcos estacionada ao redor das Ilhas Spratly, região rica em peixes e, potencialmente, em petróleo e gás natural, disputada por quatro países: China, Filipinas, Vietnã e Taiwan. Segundo imagens de satélite, a frota chinesa passa ali a maior parte do tempo ancorada, em formação cerrada. “Se não fossem pagos para isso, os pequenos pescadores [chineses] nunca pensariam em ir para lá”, afirma Poling. De todo modo, sua presença acelerou o declínio das populações de peixes em torno do arquipélago e causou muitas brigas com navios estrangeiros, dando à China um ótimo pretexto para militarizar a área. *Ian Urbina, jornalista, dirige a plataforma The Outlaw Ocean Project, que investiga questões ambientais e direitos humanos no mar. Autor de La Jungle des océans: crimes impunis, esclavage, ultraviolence, pêche illégale [A selva dos oceanos: crimes sem punição, escravidão, ultraviolência, pesca ilegal], Payot, Paris, 2019. 1 S ão barcos que pescam com rede de cerco, que se arrasta sobre os fundos arenosos. 2 “Some 340 Chinese vessels fishing off Galapagos Islands protected waters” [Cerca de 340 embarcações chinesas pescam nas águas protegidas das Ilhas Galápagos], MercoPress, 10 ago. 2020. 3 “Strings attached: Exploring the onshore networks behind illegal, unreported and unregulated fishing” [No rastro do mar: explorando as redes onshore por trás da pesca ilegal, não declarada e não regulamentada], C4ADS, Washington, DC, 2019. 4 “The deadly secret of China’s invisible armada” [O segredo mortal da armada invisível da China], NBC News, 22 jul. 2020. 5 Embarcações de pesca em alto-mar, que atuam para além das 200 milhas náuticas que delimitam as zonas econômicas exclusivas. 6 Enric Sala et al., “The economics of fishing the high seas” [Economia da pesca em alto-mar], Science Advances, v.4, n.6, Washington, DC, jun. 2018.
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A CAPITAL RUSSA QUER RENOVAR SUA IMAGEM
Moscou sonha se tornar uma “cidade global” Há dez anos a capital russa preocupa-se com sua comunicação. Adepta do marketing urbano moderno, a cidade pretende, como outras metrópoles mundiais, seduzir investidores e diretores de multinacionais. Mas essa política não dissimula a intervenção do Kremlin, a serviço da intensificação das desigualdades territoriais POR VLADIMIR PAWLOTSKY*
filiais de empresas transnacionais, e desenvolvendo atividades culturais e turísticas.
CRIAR UMA NARRATIVA METROPOLITANA Para isso, uma série de condições precisam ser cumpridas. Além do respeito à propriedade privada, uma situação tributária favorável, uma burocracia leve e um endereço de prestígio, as empresas transnacionais buscam um ambiente urbano atraente e uma infraestrutura coletiva de qualidade para oferecer a seus executivos. Estes compõem a famosa “classe criativa” que impulsiona a nova economia, junto com cientistas, engenheiros, artistas, profissionais da mídia, da educação, da saúde e da justiça. O pai desse conceito, Richard Florida,1 está em Moscou. Em 2019, ele foi o convidado de honra do Moscow Urban Forum (MUF, Fórum Urbano de Moscou). Esse grande encontro devotado às questões urbanas reúne todo ano milhares de espectadores e centenas de agentes – tomadores de decisão públicos, economistas, urbanistas –, vindos de mais de cinquenta países. Desde 2017, ele é realizado no Parque Zariadie. Coorganizadora do evento, a empresa Mosinjproekt, “braço da construção” do município, que é seu proprietário integral, conta desde 2018 (em troca da quantia mensal de 10 mil euros)2 com os serviços de um representante comercial muito bem selecionado: Maurice Leroy, que ocupa o cargo de diretor-geral adjunto. Ex-deputado de Loir-et-Cher e ministro das Cidades do terceiro governo de François Fillon (2010-2012), então responsável pela pasta da Grande Paris, ele comanda os grandes projetos internacionais da empresa pública moscovita. Leroy supervisionou a assinatura de um programa de cooperação entre Sobyanin e o presidente da Metrópole da Grande Paris, Patrick Ollier, em 4 de julho de 2019. O acordo permitiu o posicionamento de grandes empresas
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o pé do Kremlin, turistas – russos e estrangeiros – armados com seus paus de selfie acotovelam-se na passarela do novo Parque Zariadie, sobre o Rio Moscou. Em uma síntese das paisagens russas, o parque integra estepe, tundra, floresta e pântanos. Ele oferece ainda uma caverna de gelo, um museu arqueológico, restaurantes de alta gastronomia, um complexo multimídia para filmes e exposições, uma sala de concertos com 1.600 lugares e um anfiteatro ao ar livre com a mesma capacidade, que já recebeu, desde sua inauguração, em 9 de setembro de 2017, os eventos internacionais de maior prestígio da capital. Orgulho dos vereadores, em 2018 o Parque Zariadie entrou no ranking da revista Time de lugares mais bonitos do mundo para visitar. Primeiro grande parque de Moscou criado nos últimos cinquenta anos, o Zariadie integra os esforços, iniciados há dez anos pelo prefeito de Moscou, Sergei Sobyanin, para embelezar e valorizar a capital aos olhos do mundo. Quando assumiu a administração da capital, em 2010, o ex-servidor federal e apoiador de longa data do presidente Vladimir Putin queria renovar a imagem de Moscou e colocar a cidade na concorrência global entre as grandes metrópoles. Em outras palavras, competir com Nova York, Londres, Tóquio e Paris, fazendo de Moscou uma “cidade global”, segundo o conceito popularizado pela socióloga e economista norte-americana Saskia Sassen – presente, aliás, no júri do concurso que escolheu o projeto do parque. Em uma economia dependente do – altamente volátil – preço dos hidrocarbonetos, Moscou trabalha para se tornar um polo global de estabilidade financeira e inovação. A Rússia, e sobretudo sua plataforma privilegiada de fixação de investimentos estrangeiros, a metrópole moscovita, busca captar fluxos econômicos e financeiros internacionais recebendo sedes e
francesas, incluindo a Electricité de France (EDF) e a Suez. O MUF é uma oportunidade única para o governo municipal promover os resultados de sua política urbana diante de líderes e investidores internacionais. Moscou ostenta agora, em locais selecionados no centro da cidade, slogans em letras de 1 metro de altura, além de logotipos coloridos e floridos. Há wi-fi na cidade toda e a carta gráfica da prefeitura está sendo desenvolvida em colaboração com a população por meio de aplicativos disponíveis em smartphones. No metrô, telas exibem o canal municipal Moskva 24, que, entre uma imagem e outra de torcedores brasileiros mostrando sua habilidade com a bola na Praça Vermelha durante a Copa do Mundo de 2018, exibe o prefeito inaugurando obras de todos os tipos – parques, estações de metrô, estradas, hospitais –, e até mesmo bairros inteiros na periferia. Porque não basta construir: é necessário divulgar as obras e criar uma narrativa metropolitana – a de uma cidade em movimento, conectada aos grandes fluxos globais. Com a ajuda da comunicação, Sobyanin pretende virar a página da era Yuri Lujkov, prefeito da capital entre 1992 e 2010, cujo legado sofre severas críticas. Seu mandato ficou marcado na memória pela explosão demográfica da cidade. De fato, em meados da década de 1990, a obtenção de alvarás para a construção civil não dava nenhum trabalho aos promotores imobiliários. De 8.280 habitantes por quilômetro quadrado em 1989, a densidade demográfica de Moscou passou para 10.681 em 2010, um nível próximo ao das grandes cidades asiáticas. Atravessada pelo barulho das britadeiras, a capital russa carrega uma má fama forjada na primeira metade da década de 1990, quando o índice de homicídios quadruplicou. Além disso, mesmo depois de cessados os tiroteios entre grupos criminosos no meio da rua, a cidade vivia afogada em casos de corrupção.
O prefeito era a própria encarnação do conceito de conflito de interesses. Sua esposa, Elena Baturina, com quem se casara às vésperas de sua nomeação à prefeitura, em 1991, tornou-se dirigente da gigante da construção Inteko. Ela fez fortuna durante o mandato do marido, a ponto de ganhar o título de primeira bilionária do país. Juntos, eles criaram, em um estilo que combina pastiche e modernismo, grandes projetos ligados ao patrimônio histórico, buscando suavizar as marcas do sovietismo por meio de um retorno às origens pré-revolucionárias. A reconstrução, entre 1995 e 2000, da Catedral de Cristo Salvador, dinamitada em 1931 pelo poder comunista, bem como a inauguração, em 1997, de uma estátua do imperador Pedro, o Grande, de pé sobre um monumental barco a vela de bronze, são exemplos do gosto duvidoso da época. No entanto, um dos aspectos mais estruturantes da política de Lujkov foi a entrada da capital na economia de mercado. Sob seu mandato, os edifícios de lojas e escritórios, praticamente inexistentes na União Soviética, explodiram. Sua principal conquista: a construção, em 1998, do centro de negócios Moskva City, que hoje abriga sete dos dez arranha-céus mais altos da Europa. Erguido às margens do Rio Moscou, em frente aos edifícios stalinistas da Avenida Kutuzov, onde se instalavam os dignitários do partido, ele simboliza a entrada da capital russa no grupo das metrópoles mundiais. No entanto, em 2006, com 5,5 milhões de metros quadrados de escritórios – o equivalente a 0,56 por habitante –, Moscou continuava muito aquém das médias internacionais. Na mesma época, Paris tinha 4,5 metros quadrados de escritórios por habitante. A demanda moscovita era tal que o aluguel do metro quadrado corporativo disparou: chegou a 900 euros em 2008, à frente de Paris (840), Cingapura (826) e Dubai (780), mas atrás de Tóquio
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(1.400) e Londres (1.017), segundo um relatório da consultoria imobiliária britânica Knight Frank.3
RETORNO À ESFERA DE INFLUÊNCIA FEDERAL Além da relativa escassez de imóveis corporativos, que enfraquecia a atratividade internacional da metrópole, sua distribuição era um problema. Um terço dos empregos situava-se no distrito central da capital, que representava menos de um décimo de sua área.4 Aos fluxos diários de milhões de trabalhadores moscovitas, somavam-se 1,4 milhão de trabalhadores oriundos do entorno de Moscou, o equivalente a 30% de sua população ativa. Eles vinham das cidades-dormitório densamente povoadas fronteiriças à capital, ou das pequenas cidades localizadas a até cem quilômetros do anel viário (MKAD), e gastavam entre 40 e 240 minutos em seus trajetos diários de ida e volta.5 Áreas comerciais, grandes consumidoras de terrenos, surgiram nos arredores das cidades-dormitório. Em Khimki, por exemplo, um subúrbio a noroeste da capital, em 2000 foi inaugurada a primeira loja Ikea; em 2002 apareceu a Auchan. Centenas de redes varejistas russas e estrangeiras logo acompanharam o anel viário, no entroncamento com as rodovias federais, para maximizar suas áreas de captação. O desenvolvimento do acesso ao automóvel individual, com a queda da União Soviética, implicou importantes reconfigurações do tecido urbano. Coisa rara em uma grande cidade europeia do final do século XX, a taxa de motorização disparou: entre 1993 e 2016, ela passou de 113 para 308 carros para cada mil habitantes, e isso em uma cidade cujo plano geral, em 2000, não previa mais do que 8,5 milhões de habitantes até 2025 – e hoje tem 13 milhões. Consequência lógica: o transporte em Moscou está entre os mais saturados do mundo.6
A nomeação de Sobyanin, ex-chefe da administração presidencial (2005-2008) que se tornou vice-primeiro-ministro da Rússia (20082010), em 2010, significou uma ruptura. Com a designação de altos funcionários federais para a liderança dos principais departamentos da administração municipal, Moscou, após dezoito anos de relativa autonomia política, voltou à esfera de influência federal. O movimento foi acompanhado, alguns meses depois, pelo anúncio de uma nova política urbana voluntarista. Em 17 de junho de 2011, durante o Fórum Econômico Internacional de São Petersburgo, o presidente Dmitry Medvedev anunciou que queria ampliar os limites do município de Moscou e transferir as principais instituições federais – especialmente o Parlamento e o Ministério Público – para os territórios anexados, dentro de um vasto distrito administrativo, a fim de libertar o centro da cidade de suas atividades burocráticas. “Os negócios sempre querem estar perto do governo, dos ministérios e dos órgãos governamentais”, afirmou Sobyanin. Ele estava convencido de que o novo território funcionaria como um ímã de investimentos e seria o principal instrumento de sua política de reorientação dos fluxos de transporte.7 Instados pelo presidente a estabelecer o território sobre o qual se projetaria a capital, Sobyanin e Boris Gromov, então governador da região de Moscou, identificaram uma área de quase 1.480 quilômetros quadrados no eixo sudoeste, que multiplicaria o tamanho total da cidade por 2,4. O território, apelidado de “Nova Moscou”, era então povoado por apenas 232 mil habitantes, prometendo à capital perspectivas de desenvolvimento consideráveis. Após a anexação, efetivada em 1º de junho de 2012, Moscou, com seus 2.561 quilômetros quadrados (25 ve-
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zes a Paris intramuros), tornou-se a sexta maior cidade do mundo em área, com uma densidade média de 4.919 habitantes por quilômetro quadrado, isto é, duas vezes menos do que antes da anexação, por uma manobra puramente estatística.
De 8.280 habitantes por quilômetro quadrado em 1989, a densidade demográfica de Moscou passou para 10.681 em 2010 As autoridades russas compararam alegremente a Nova Moscou à Grande Londres (1999) ou à Metrópole da Grande Paris (2016). No caso britânico, há um escalão administrativo extra que controla a capital e a Grande Londres. O prefeito de Londres, Sadiq Khan, detém a maior parte do poder sobre essa estrutura. Já a Metrópole da Grande Paris é, ao contrário, um mecanismo de coordenação de 131 municípios. Ambas as configurações diferem amplamente do caso de Moscou, uma vez que a capital russa absorveu, antecipadamente, territórios ainda pouco urbanizados. A comparação com Hanói, outra cidade pós-comunista que, em 2008, triplicou sua área por meio da anexação da província vizinha de Hà Tây, seria com certeza mais pertinente, porém menos prestigiada... Para planejar a organização desse novo território, a prefeitura de Moscou lançou, em janeiro de 2012, uma grande consulta internacional, com dez equipes candidatas. A empresa norte-americana Urban Design Associates venceu o concurso. Ela propôs articular doze “clusters funcionais” (industrial, administrativo, comercial, hospitalar, educacional, científico, turístico, logístico etc.) em torno do novo centro administrativo
federal. Concebido para 1,7 milhão de pessoas e destinado a criar 800 mil empregos, o projeto previa conectar a Nova Moscou à “cidade velha” por meio de um sistema de transporte rápido e eficiente. A maior parte do projeto, porém, não passou de prospectos brilhantes. Sem ter sido oficialmente cancelada, a mudança das instalações das instituições políticas despareceu da pauta. Diante da imprensa, os funcionários diziam que Putin (reeleito em 2012) queria priorizar o financiamento da cúpula da Cooperação Econômica Ásia-Pacífico (Apec) em Vladivostok, em 2012, e os Jogos Olímpicos de Sochi, em 2014. Sem as instituições federais, a Nova Moscou se tornou um paraíso para os construtores, assim como sua colega francesa após o projeto Grand Paris Express.8 Prova disso é o balé ininterrupto das máquinas. As oito estações de metrô construídas para ligar a nova cidade à rede existente são formidáveis geradoras de mais-valia fundiária. E mais dezessete estações devem ser inauguradas até 2035. De acordo com a prefeitura, mais de 14 milhões de metros quadrados de moradias e mais de 4,3 milhões de metros quadrados de espaços comerciais já foram construídos. A população da Nova Moscou passou de 232 mil pessoas em 2012 para 404 mil em 2020, um aumento de 74%. No mesmo período, dados oficiais anunciam a abertura de 170 mil postos de trabalho. Mas já se observam os primeiros casos de congestionamento das redes. A imprensa local noticia pontualmente engarrafamentos ou saturação dos metrôs nessas áreas, já que seus habitantes vão ao trabalho no centro graças às novas estações, às quais costumam chegar de micro-ônibus. Diante da paralisação do plano de mudança das instalações das instituições, o prefeito de Moscou mudou
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Assim, seguiu-se a densificação urbana iniciada sob o mandato de Lujkov, dessa vez contando com novas tecnologias, que permitiram neutralizar possíveis conflitos sociais e coletar dados pessoais (ler “Miragens da democracia eletrônica”). No final dos anos 2000, o município não tinha grandes preocupações com a “democracia participativa”. Por exemplo, as autoridades falsificaram em massa as assinaturas dos proprietários de unidades imobiliárias para confiar a síndicos amigos a gestão dos edifícios de moradia da capital... Os novos métodos, inspirados no marketing urbano, também consistem em uma ruptura. Todos esses projetos mudam a vida dos habitantes de Moscou. Muitos especialistas temem que a anexação de territórios e a “renovação” da cidade velha, longe de reequilibrar a ossatura da capital, causem novos problemas. De 1989 até os dias atuais, Moscou captou 45% dos novos 8 milhões de moradores das quinze cidades com mais de 1 milhão de habitantes da Rússia, e a tendência não parece perto de se reverter. “A vida dinâmica e ativa da Rússia, em seu enorme território, não pode se concentrar em algumas megalópoles”, disse Putin em 2018, no discurso presidencial ao Parlamento por ocasião de sua posse. Autocrítica? Na verdade, não. “As grandes cidades devem difundir sua energia, servir de apoio a um desenvolvimento espacial harmonioso e equilibrado de toda a Rússia”, acrescentou.13 “Difundir sua energia”, portanto. Em um contexto de hipercentralização política e orçamentária (ler “Todos os caminhos levam a Moscou”), o mito da difusão parece ter um grande futuro pela frente.
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suas armas. Com as receitas fiscais da cidade subindo (11,3% entre 2015 e 2016) e o ministro federal das Finanças planejando retirar mais recursos do orçamento de Moscou para beneficiar outras regiões,9 a capital precisava de um projeto substituto. Um ambicioso programa de renovação urbana, no valor de 100 bilhões de rublos (R$ 7,4 bilhões), foi colocado em prática em 2017. Seu objetivo: demolir 5 mil edifícios antigos. A área – composta principalmente de khrushchevki, imóveis pré-fabricados construídos em massa entre 1957 e 1968, quando Nikita Kruchev governava a União Soviética – compreende 350 mil apartamentos, onde vivem mais de 1 milhão de pessoas, ou seja, quase um em cada dez habitantes de Moscou. Segundo o decreto municipal de 1º de agosto de 2017, sua destruição permitirá “dar uma imagem moderna à capital da Rússia”, acompanhando “a formação de uma estrutura policêntrica”. Em entrevista ao site de notícias econômicas RBK, o ministro federal da Construção, Mikhail Men, anunciou a realocação dos moradores: “No mesmo bairro ou nas proximidades, mas eu prometo a vocês: não na Nova Moscou!”10 – uma forma de confessar, em meias palavras, o fracasso do projeto. Além disso, as unidades teriam a mesma área das antigas, porém em edifícios muito mais altos (até 72 andares!)11 e mistos, ou seja, mesclando moradia, escritórios e redes varejistas. A ideia era introduzir novos usos em bairros até então essencialmente residenciais, a fim de “reduzir [a necessidade de mobilidade da população e] a carga sobre a infraestrutura de transporte”.12 Cada bairro deveria tornar-se uma ilha de vida relativamente independente – um polo –, onde se pode morar, trabalhar e mandar os filhos à escola. Anunciado um ano antes das eleições municipais e presidenciais de 2018, esse programa, elaborado em uma perspectiva eleitoreira, despertou uma breve oposição. Com uma reação rápida, o município lançou uma grande consulta popular, de 15 de maio a 15 de junho de 2017, no aplicativo municipal para celular “Cidadão Ativo”. Com apenas um toque em seus smartphones, os moradores – muitos dos quais haviam recebido gratuitamente, desde 1992, títulos de propriedade dos imóveis que ocupavam durante o período soviético – podiam dar sua opinião sobre o destino dos edifícios. Se mais de um terço deles fosse contrário à demolição, ela seria cancelada. O resultado da votação foi um sucesso para o município: apenas 11% dos edifícios cadastrados foram retirados da lista de demolição.
*Vladimir Pawlotsky é doutorando em Geografia no Institut Français de Géopolitique [Instituto Francês de Geopolítica], da Universidade Paris 8. 1 R ichard Florida, The Rise of the Creative Class: And How It’s Transforming Work, Leisure, Community And Everyday Life [A ascensão da classe criativa: e como isso está transformando o trabalho, o lazer, a comunidade e a vida cotidiana], Basic Books, Nova York, 2002. 2 David Bensoussan, “Quand les Russes recrutent d’anciens députés français” [Quando os russos recrutam ex-parlamentares franceses], Challenges, Paris, 5 jan. 2019. 3 “Global Real Estate Markets – Annual Review and Outlook” [Mercado imobiliário global – revisão anual e perspectivas], Knight Frank, Londres, 2009. 4 Pascal Marchand, Moscou, Autrement, Paris, 2010. 5 Alla Makhrova e Roman Babkine, “Metodologia para delimitação da aglomeração moscovita com base em dados das operadoras de telefonia” (em russo), Études régionales (Moscou), n.2, 2019. Disponível em: www.smolgu.ru. 6 Ler Hélène Richard, “À Moscou, rêves de liberté et grand embouteillage” [Em Moscou, sonhos de liberdade e enormes engarrafamentos], Le Monde Diplomatique, ago. 2015.
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lém de organizar grandes concursos internacionais de arquitetura, a capital russa embarcou nas últimas inovações da “democracia eletrônica local”. O objetivo: usar as mais recentes tendências do marketing urbano para mudar a imagem da cidade soviética monumental, rígida e autoritária, integrando-a ao clube das “cidades globais”. Lançada em 2015, a plataforma virtual “Cidadão Ativo” conta com 3 milhões de usuários, já coletou 140 milhões de opiniões e colocou em votação 4.500 pontos. Esses pontos se relacionam a 24 grandes temas, como transporte (“Moscou precisa de uma nova linha de metrô?”), meio ambiente (“Com que tipo de arbusto devem ser feitas as sebes em tal bairro?”), construção (“Devemos priorizar estacionamentos, parques infantis ou áreas para cães?”), educação (“Que temas devem ser abordados durante as visitas guiadas escolares?”) e até esporte (“Em que estádio de Moscou você quer assistir à Copa do Mundo de Futebol de Areia?”). Não se trata de submeter ao voto dos cidadãos as questões importantes – longe disso –, mas de fazer perguntas cujas respostas possam convergir com os objetivos das autoridades, ajudando a legitimar a ação municipal. Para garantir uma utilização sustentada da plataforma, apesar dos assuntos banais que ela põe em discussão, o município oferece diversos brindes aos mais assíduos: lembranças, roupas, entradas para espetáculos, tíquetes de estacionamento, passes de transporte, códigos promocionais etc. Essa estratégia clientelista permite coletar uma variedade de dados pessoais. Os questionários não são anônimos, e para participar devem ser fornecidas informações: local de residência e de trabalho, e-mail, número de filhos, profissão, sensibilidade estética e política etc. – dados que podem ser muito úteis para a segmentação eleitoral... (V.P.)
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oscou não é a Rússia.” Sobre qual capital já não ouvimos esse tipo de afirmação? Ela reflete, porém, antes de mais nada, uma realidade estatística. Em 2018, com seus 12,6 milhões de habitantes, Moscou, a maior cidade do país, à frente de São Petersburgo (5,3 milhões de habitantes), representava 8% da população russa. Seu orçamento é quase quatro vezes o da antiga capital imperial. A preponderância da capital também se manifesta na produção da riqueza: ela é responsável por 21% do PIB. Na maioria das regiões russas, a infraestrutura de transportes está em condições críticas, a produção é orientada sobretudo para os mercados locais e o turismo é praticamente inexistente. Não é de espantar que em 2013 Moscou concentrasse quase 60% das sedes de filiais de empresas estrangeiras, um fenômeno menos intenso do que o que se observa em Paris (73%), Tóquio (70%) e Londres (69%), porém muito mais do que ocorre em cidades de Estados federais, como Frankfurt (18%) e Nova York (16%).1 (V.P.)
1 Olivier Di Lello e Céline Rozenblat, “Les réseaux de firmes multinationales dans les villes d’Europe centre-orientale” [As redes de empresas multinacionais nas cidades da Europa centro-oriental], Cybergeo, n.678, 20 jun. 2014. Disponível em: https://journals.openedition.org.
7 E ntrevista à rádio Ekho Moskvy, 17 jun. 2011. 8 Ler Hacène Belmessous, “Le Grand Paris ou le pactole pour les bétonneurs” [Le Grand Paris, ou a mina de ouro das betoneiras], Le Monde Diplomatique, out. 2018. 9 F orbes, edição russa, Moscou, 27 abr. 2019. 10 RBK, 27 fev. 2017. Disponível em: www. rbc.ru. 11 Kommersant, Moscou, 29 dez. 2019. 12 Decreto N-497, 2017. Lei da Prefeitura de
Moscou N-497-PP, de 1º de agosto de 2017, sobre o programa de renovação do parque habitacional de Moscou. 13 C itado em Jean Radvanyi, “La nouvelle ‘Stratégie de développement territorial’ russe. Entre volontarisme et utopie?” [A nova “Estratégia de Desenvolvimento Territorial” russa. Entre o voluntarismo e a utopia?], Regards de l’Observatoire Franco-Russe, Paris, 2020.
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“O ÊXITO DO CLUBE SE BASEIA NO SOCIALISMO”
Liverpool: futebol e identidade Para seus torcedores, o Liverpool Football Club é o emblema de uma cidade orgulhosa de sua singularidade, ao mesmo tempo popular, aberta para o mundo e desafiadora em relação ao resto do país. No controle do clube há dez anos, os proprietários norte-americanos cultivam cuidadosamente essa imagem, que seduz para além das fronteiras da cidade POR QUENTIN GUILLON*, ENVIADO ESPECIAL
do treinador, Jürgen Klopp, cujo salário anual chega a 11,3 milhões de euros e que declara sua adesão aos valores “de esquerda”, jurando que não votará “jamais na direita”. Para compreender a particularidade do Liverpool, é preciso auscultar “o coração scouse que bate durante os jogos da Liga dos Campeões”, como nos explica Joe Blott, que dirige o Spirit of Shankly, o mais importante grupo de torcedores. Liverpool tem uma história tumultuada. A cidade se enriqueceu durante dois séculos graças à escravidão (“É triste, mas reconhecemos isso”, diz Blott); a soberania de seu porto propiciou sua prosperidade. O scouse, um prato energético (batatas, carne bovina e cenouras cozidas) derivado do lapskaus norueguês, foi introduzido pelos marinheiros escandinavos no final do século XVIII. Mais tarde, seus homólogos na região passam a se chamar scousers, usando a base da identidade local. Para Peter Millward, sociólogo que vive na cidade onde nasceram os Beatles, “Liverpool se situa no meio do caminho entre a cultura insular britânica e as múltiplas influências de seus movimentos populacionais. A cidade tornou-se cosmopolita”. Ele se refere à imigração irlandesa – que faz da cidade um bastião católico em um país consideravelmente protestante –, mas também galês, escandinavo etc. A pronúncia scouse, que vibra nos ouvidos do neófito, surgiu dessas múltiplas influências. Liverpool foi violentamente atingida pela crise econômica dos anos 1970 e 1980. “Um relatório de 1981, publicado 28 anos depois, garante que o objetivo do governo de [primeira-ministra] Margaret Thatcher era deixar a cidade morrer”, lembra o sociólogo.3 A desindustrialização maciça provocou um enorme crescimento do desemprego e da pobreza. Mas os “Reds” (o Liverpool), um dos dois clubes da cidade, e os “Blues”, do Everton Football Club (EFC), permaneceram. “Éramos os melhores da Europa. O
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um momento de comunhão famoso em todo o mundo. Antes de cada partida do Liverpool Football Club (Liverpool) em casa, os torcedores, entre eles os da kop, parte da arquibancada onde se reúnem os mais fervorosos, entoam o hino “You’ll Never Walk Alone” [Vocês nunca caminharão sozinhos], símbolo de uma devoção total a um time que figura entre os gigantes do Reino Unido e da Europa. Numa época do dinheiro todo-poderoso e da globalização do futebol, o Liverpool, comprado pelo conglomerado norte-americano Fenway Sports Group (FSG), tem a firme intenção de encarnar a singularidade de uma cidade em relação ao resto da Inglaterra. Ele reivindica também uma combinação entre os objetivos financeiros e a paixão dos fãs, graças à adesão a princípios “socialistas”. Campeão da Europa em 2019 e, pela primeira vez nos últimos trinta anos, vencedor em junho de 2020 do Campeonato Inglês, o clube não para de se reportar a Bill Shankly, seu ilustre ex-treinador (entre 1959 e 1974), homenageado com uma estátua na entrada do estádio Anfield, o antro do Liverpool.1 Conhecido por sua famosa declaração – “O futebol não é uma questão de vida ou de morte. É muito mais importante que isso”–, Shankly tinha exposto sua visão para os jogadores: “Que cada um trabalhe para alcançar o mesmo objetivo e que cada um compartilhe o sucesso se alcançá-lo: este é o socialismo em que acredito. Assim vejo o futebol e a vida”. Quase cinquenta anos depois, o CEO do clube, Peter Moore, declarou, nas páginas do diário espanhol El País, a mesma mensagem: “O êxito do Liverpool se baseia no socialismo”.s Realidade ou oportunismo por parte do representante do FSG, terceira empresa de esportes do mundo segundo a Forbes, conglomerado que fatura por ano US$ 6,6 bilhões (dos quais US$ 2,2 bilhões relativos ao Liverpool)? A mesma pergunta é feita quando se trata
futebol era a única área em que o governo Thatcher não podia nos causar sofrimento”, lembra o icônico zagueiro Jamie Carragher. O clube viveu, então, o período mais glorioso de sua história, ganhando onze títulos de campeão inglês e quatro Copas dos Campeões, sob o rigor de John Smith, seu presidente de 1973 a 1990. “O Liverpool nos salvou da depressão”, afirma o historiador Frank Carlyle em uma obra do pesquisador e especialista em futebol Daniel Fieldsend, consagrada ao clube e à cidade.4 O livro cita também o produtor e escritor Dave Kirby, que declarou em 1977: “O clube representa quem somos, nossas esperanças, nossos sonhos. Ele permite que a maioria de nós tenha um bom fim de semana, esquecendo o desemprego, a fábrica, a merda cotidiana. Existimos para ele e ele existe para nós”. Vinte anos depois, a grande proeza de um jogador também permanece em suas memórias. Em 1997, quando os portuários entraram em greve e lutavam pela sobrevivência, Robbie Fowler comemorou seu 113º gol, com apenas 21 anos, mostrando sob sua camisa uma camiseta com esta inscrição: “Apoio aos quinhentos portuários de Liverpool demitidos em setembro de 1995”. Sua atitude possibilitou a divulgação do conflito pela mídia; Fowler continua admirado por esse gesto.
EM 1989, O DRAMA DE HILLSBOROUGH Além da crise econômica, uma tragédia ainda une os habitantes da cidade. No dia 15 de abril de 1989, por ocasião da semifinal da Copa da Inglaterra, o Liverpool enfrentou o Nottingham Forest no estádio de Hillsborough, em Sheffield. Quando a partida já havia começado, milhares de espectadores que chegaram atrasados se amontoaram para entrar no estádio. Noventa e seis deles, inclusive crianças, morreram esmagados nas grades dos portões ou pisotea-
dos. Quatro anos antes, o Liverpool já havia sido questionado pelo comportamento violento de seus torcedores quando houve o tumulto assassino no estádio de Heysel, na Bélgica, em 29 de maio de 1985, na final da Copa dos Campeões, que ele disputou com a Juventus de Turim: 39 mortos e 450 feridos. Também dessa vez ele ficou no banco dos réus. Poucos dias depois, a manchete do diário The Sun foi: “The Truth” [A verdade] e, retomando a versão da polícia, acusou os torcedores como os únicos responsáveis pelo que ocorreu. O jornal sustentou também três acusações que se revelaram mentirosas: “Fãs [do Liverpool] urinaram nos bravos policiais [que tentavam reanimar feridos]”; “Fãs bateram a carteira de vítimas”; “Fãs impediram que as vítimas fossem socorridas pela respiração boca a boca”. Em 2009, durante a homenagem no Anfield aos atingidos pela tragédia de Hillsborough, o deputado Andrew Burnham, ministro da Cultura, das Comunicações e dos Esportes, fez um discurso em nome do governo trabalhista do primeiro-ministro Gordon Brown. Espontaneamente, os cerca de 28 mil espectadores se levantaram e bradaram: “Justice for the ninety-six!” [Justiça para os noventa e seis!]. Em seguida, foi aberto um inquérito independente que, em 2012, eximiu de culpa o Liverpool e comprovou a esmagadora responsabilidade da polícia, culpada fundamentalmente por ter trancado os portões, assim como pelas mentiras transmitidas pelo The Sun, por outras mídias e pelos políticos. A tragédia de Hillsborough contribuiu para reforçar a particularidade de uma cidade que, desde 1972, não é mais governada pelos membros do Partido Conservador. Assim, nos últimos anos, as arquibancadas têm ressoado ruídos de vozes de apoio ao ex-dirigente do Partido Trabalhista Jeremy Corbyn. “Nenhum grupo de torcedores os suscitou. Eles foram espontâneos”, garante Blott. Por sua vez, relembra Ian Byrne: “A injustiça nos transformou. Alguns dos que nasceram em Liverpool querem até que sua cidade seja um enclave independente do Reino Unido. É preciso lembrar que a grande greve dos portuários em 1911 já tinha nos unido”. Byrne é fã inveterado do clube e deputado da circunscrição vizinha West-Derby desde 2019. “Não somos ingleses; somos scousers”, clamam em intervalos regulares faixas e tifos5 nas arquibancadas do estádio. “Liverpool para nós é nossa pequena República”, escreve também Fieldsend. Portanto, o Liverpool é o campeão de um país cujos governantes os torcedores abominam, acusando-os de
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© Vitor Flynn
ta completa no Anfield, refeição em um quiosque do estádio, seção de perguntas e respostas e fotos junto a antigas glórias do clube etc. por 95 libras esterlinas (R$ 700). Outro confronto: em 2019, os proprietários do clube pensaram em comercializar a marca “Liverpool” e se apropriarem dos direitos de algumas canções populares. A Agência da Propriedade Intelectual (IPO), sem dúvida influenciada pela mobilização hostil a essa iniciativa, vetou. Para Blott, o casamento inevitável entre o capitalismo e o “espírito socialista” do clube e de seu público está fadado a durar: “Os proprietários do FSG serão sempre capitalistas que vão obter lucros, e os torcedores sempre vão tentar impedi-los disso, ou se assegurar que eles os obtêm da melhor forma possível. Os torcedores são os guardiões do templo”.
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ter provocado o declínio da cidade. Em agosto de 2019, as arquibancadas dos “Reds” até vaiaram o hino “God Save the Queen”. “Um grande número de fãs queria ver o time nacional perder”, confirma o universitário (e torcedor) Joel Rookwood. Em 2007, dois investidores norte-americanos cheios de dívidas, George Gillett e Tom Hicks, compraram o clube do executivo e filantropo Peter Moore, que o detinha desde 1991. Em reação, torcedores criaram o clube Spirit of Shankly. A mobilização levou à saída dos proprietários duvidosos e à venda do clube ao FSG. Do mesmo modo que outros times, como o adversário de sempre, Manchester United, ou o trio londrino Chelsea, Arsenal e Tottenham, o Liverpool começou a atrair para o estádio mais turistas estrangeiros seduzidos por sua aura. Os preços dos ingressos aumentaram; as arquibancadas do estádio se aburguesaram.6 No dia 6 de fevereiro de 2016, o Liverpool fez dois a zero contra o Sunderland. Aos 77 minutos da partida, cerca de 10 mil fãs saíram juntos do estádio. O motivo? O clube tinha cobrado 77 libras esterlinas7 por ingresso. O aumento foi menos pronunciado do que o de seus adversários, mas os torcedores se revoltaram. Um grande número deles tem contrato de trabalho por tempo parcial ou se encontra em uma situação de precariedade total: um aumento como esse é, para eles, inaceitável. Sob o estímulo do Spirit of Shankly, a mobilização se prolonga e se estende a outros clubes britânicos. Ela consegue que o preço dos ingressos para os jogos em outras cidades seja fixado em 30 libras esterlinas, enquanto em Liverpool centenas de ingressos para os jogos no Anfield são vendidos por 10 libras esterlinas para os fãs da região. No entanto, os torcedores admitem que o dinheiro é indispensável à vitória. “Os fãs querem os melhores jogadores. Infelizmente, a economia do futebol é tal que é preciso pagá-los bem. Em 2010, estávamos perto de ser rebaixados. Após a chegada do FSG, ganhamos tudo”, admite Byrne. Por sua vez, os dirigentes do Liverpool fazem algumas concessões, pois compreenderam o interesse dos jogadores e da torcida em preservar o coração scouse, os torcedores locais que estão na origem do ambiente excepcional das tardes de grandes jogos. É uma excelente publicidade para vender ingressos para os que vêm de fora, mas também para diversos serviços: hospedagem em um grande hotel, visita guiada da cidade etc. Em parceria com o clube, empresas como a Virgin propõem um conjunto de serviços que compreendem uma visi-
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QUANDO SALAH DIMINUIU O RACISMO Apesar de sua singularidade, Liverpool não escapa das tensões que convulsionam o Reino Unido. Em 2016, 58% dos moradores da cidade votaram para mantê-lo na União Europeia, mas 52% dos residentes do bairro onde fica o Anfield, que figura entre os dez mais pobres da Inglaterra, optaram pelo Brexit. Além disso, como no resto do país, os atos de racismo antimuçulmanos estão em alta há alguns anos em Liverpool, onde moram cerca de 25 mil muçulmanos (a cidade tem 500 mil habitantes). No entanto, desde a chegada em 2017 do prolixo jogador egípcio Mohamed Salah, esses delitos diminuíram 18,9% na cidade e na região do Merseyside, como demonstrou um estudo publicado em 2019.8
Os pesquisadores também passaram pelo crivo 15 milhões de tuítes e salientaram que os dos fãs do Liverpool hostis aos muçulmanos tinham diminuído pela metade em comparação com os de outros clubes ingleses. Uma canção da kop é até dedicada ao jogador: “If he scores another few, then I’ll be Muslim too” [Se ele marcar alguns outros gols, então também serei muçulmano]. Em 2015, Byrne já tinha concluído uma parceria entre os Fans Supporting Foodbanks – que organizam amplas coletas de alimentos para os necessitados antes dos jogos – e várias mesquitas da cidade. Em 2018, por ocasião da Copa do Mundo, o jogo entre a Rússia e o Egito de Mohamed Salah foi transmitido na mesquita Abdullah Quilliam. E lembra o político: “Muitos vieram a ela pela primeira vez. A recepção foi muito calorosa. O futebol é, para nós, um meio de integração. Essa foi nossa melhor ação e uma maneira de quebrar as falsas ideias difundidas pelas mídias de extrema direita”. *Quentin Guillon é jornalista. 1 P ara conhecer melhor a história do clube e sua atualidade, cf. o número especial “In red with Liverpool” [De vermelho com o Liverpool], France Football, Boulogne-Billancourt, 5 nov. 2019. 2 Diego Torres, “Peter Moore: ‘El éxito del Liverpool se basa en el socialismo’” [Peter Moore: “O êxito do Liverpool se baseia no socialismo”], El País, Madri, 9 out. 2019. 3 “ Regional Policy. Inner city Policy: creation of urban development corporations to assist in regeneration of Liverpool and London
Docklands” [Política regional. Política municipal: criação de órgãos de desenvolvimento urbano para auxiliar a regeneração de Liverpool e das áreas portuárias de Londres], 30 jul. 1979-7 ago. 1981. Disponível em: https:// discovery.nationalarchives.gov.uk. Cf. também Simon Parker e Rowland Atkinson, “Disorderly cities and the policy-making field: the 1981 English riots and the management of urban decline” [Cidades tumultuadas e o campo da elaboração de políticas: os motins ingleses de 1981 e a gestão da deterioração urbana], British Politics, v.15, n.2, Londres, jun. 2020. 4 Daniel Fieldsend, Local: A Club and Its City: Liverpool’s Social History [Os nativos: um clube e sua cidade: história social de Liverpool], 2019. 5 Grandes imagens visuais controladas pelos torcedores de um time. 6 Ler Olivier Pironet, “Les pauvres chassés des stades” [Os pobres expulsos dos estádios]. In: “Royaume-Uni, de l’Empire au Brexit” [Reino Unido, o império no Brexit], Manière de Voir, n.153, jun.-jul. 2017. 7 Na época, a cotação da libra esterlina no Brasil girava em torno de R$ 5,55. A título de curiosidade, visto que uma comparação com os valores aqui cobrados deve considerar outros fatores, o preço de 77 libras esterlinas por ingresso equivalia a cerca de R$ 427,00. Em 19 de outubro de 2020, sua cotação variou entre R$ 7,25 e R$ 7,34. (N.T.) 8 C f. Ala’ Alrababa’h, William Marble, Salma Mousa e Alexandra Siegel, “Can exposure to celebrities reduce prejudice? The effect of Mohamed Salah on Islamophobic behaviors and attitudes” [A exposição de celebridades pode reduzir o preconceito? O efeito de Mohamed Salah nos comportamentos e atitudes islamofóbicos], Immigration Policy Lab, Stanford-Zurich, jul. 2020.
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MISCELÂNEA
livros
internet
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que fazer quando o exílio de outrem se encontra dentro de você? Daniel apalavrou essa busca nos significados da história da mãe, uma guerrilheira desaparecida na ditadura civil-militar (1964-1985). Mãe e filho não apresentados, ou reconhecíveis, são ligados pelos desaparecimentos de corpos representados. Como narra a autora: “o instante da separação foi seu único encontro”. Os tipos antônimos de esquecimentos nos apresentam o encontro de Daniel com Melina, ambos da geração de filhos da ditadura. Duas pessoas que reencontram suas ausências tanto em suas famílias quanto nas histórias que constroem e fazem um país. Ele na busca do exílio de outro corpo em si, o de sua mãe. Ela com a negativa histórica de sua família, que minimiza os efeitos e a existência da ditadura. O corpo interminável reconstrói a história da busca do desaparecimento, no qual o futuro não se inscreve em respostas nem em horizontes.
OFENSIVAS – A POTÊNCIA DO NÃO RETORNO À NORMALIDADE Paulo Spina, Glac Edições
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a redoma de nossa experiência contemporânea estão calcadas múltiplas brechas para o desvendamento de um futuro possível – que ele seja inventivo e solidário. Paulo Spina trava uma relação coletiva intempestiva com o próprio tempo por meio de proposições por novos modos do fazer político e da criação afetiva que despontem da fragilidade pandêmica, esta que desvela o tecido da vida em sua brutalidade e esclerose. Ofensivas – A potência do não retorno à normalidade é um manifesto passional de muitas vozes. Olhando para o corpo morto do “normal”, propõe-se a infalibilidade da vida e a mobilização dos afetos coletivos de ampliação de suas potências perenes. O esforço coerente por uma solidariedade que teça todos os espaços em horizontalidade transformadora é o fio que narra as ofensivas que insistem em ver uma possibilidade vivível em queda livre.
[Beatriz Brandão] Antropóloga e jornalista, pós-doutoranda em Sociologia pela USP, doutora em Ciências Sociais pela PUC-Rio e mestra em Ciências Sociais pela Uerj. Pesquisa temas transversais ao conflito e à arte na interface com drogas, refúgio e gênero.
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O CORPO INTERMINÁVEL Claudia Lage, Editora Record
Claudia Lage nos divide nas partes entre distâncias, presenças e corpos, em que escutamos vozes que buscam suas próprias narrativas corpóreas. A atuação da militância feminina das guerrilheiras é contada não em seus macroarcos revolucionários, mas por memórias e apagamentos, vertigens fugidias, na tentativa de serem encarnadas. São as histórias de Daniel e Melina que nos revelam os corpos que já nascem extintos, mas que se revelam em presenças. Ao lermos nos perguntamos se são os corpos donos dos tempos. Uma ficção que é escrita sobre um momento pretérito, mas que não imaginava encontrar rastros de realidade ao ser publicado. Que não se imaginava ressoar numa atualidade que tenta pactuar sobre uma desmemória do que foi. Ao desaparecerem com os corpos, tentavam apagar também o tempo vivido e a história escrita. O livro é um ativo de biografias que nos apresenta um memorial cujo corpo que nasce extinto mostra a extinção de um tempo. Ele nos fala de um Brasil contemporâneo em que o desconhecimento histórico não pode suplantar futuros.
A pandemia ocasionada pelo coronavírus orientou os olhares para uma devastação bruta latente, trouxe à luz – mesmo que turva e intoxicada – um colapso inescapável. O efeito incontrolável das implosões organizacionais da sociedade convida à formulação de um bem viver intrincado numa expressão genuína de solidariedade formada pelo atravessamento das dimensões coabitantes da produção de uma vida reinventada. Essa forma de solidariedade demanda a vista lúcida à decrepitude da disputa neoliberal e sua proposta de erupção violenta do sujeito. No cerne das proposições delineadas existe o apelo à condição de criação do hoje, negando a espera melancólica e propondo a superação do reductio ad absurdum da sociedade que se escancara. Entre a metamorfização do comum, as transformações operam em todas as condições de subalternidade – doméstica, comunitária, nacional e transnacional. Os contornos populares de uma organização genuína e solidária dependem da guerra às produções de impotência em que o comum é o real aliado. [Fabiana Gibim] Editora da sobinfluencia. Pesquisa sobre surrealismo e teoria da imagem.
NOVAS NARRATIVAS DA WEB Sites e projetos que merecem seu tempo AMOR E GÊNERO O New York Times fez um belo trabalho interativo em que analisou todos os textos, de todos os seus colunistas, sobre o amor. Dividiram entre escritos por homens ou mulheres e fizeram uma nuvem de palavras – processo em que o texto é colocado num software que mapeia e conta a quantidade de palavras que mais se repetem. Organizaram isso de forma visual e mostraram os resultados. Homens, quando falam de amor, falam de sexo; mulheres, de casamento. Mulheres falam de sentimentos; homens, de ações. Veja a pesquisa completa no link. http://bit.ly/lovenyt EPICENTRO E se todos os mortos por Covid‑19 no Brasil fossem seus vizinhos? Esse especial da revista Piauí on-line, feito pela Agência Lupa com o Google News Initiative, mostra o que aconteceria com sua vizinhança caso o epicentro da epidemia de Covid‑19 no Brasil fosse sua casa. Colocando São Paulo como epicentro e concentrando as mortes ao redor, mostra que alguns bairros inteiros teriam desaparecido, como Perdizes, Pompeia e Pacaembu. Ou, comparativamente, a cidade de Caieiras inteira, considerando as mais de 150 mil mortes até o momento em que este texto é escrito. https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/ epicentro/ O QUE É UM PROPRIETÁRIO ÉTICO? Centenas de instituições sem fins lucrativos operam a ideia da propriedade ética em todo o mundo. São organizações que detêm propriedades e buscam mobilizá-las com regras alternativas às do mercado de compra e venda de imóveis. O projeto “O que é um proprietário ético” mapeia essas propriedades e as publica num site. O mapa mostra que a construção de alternativas ao mercado imobiliário especulativo é um movimento global. É também uma ação política para mostrar lado a lado iniciativas que em geral são vistas como isoladas. E facilita a busca para a pesquisa. http://bit.ly/eticaimobiliaria [Andre Deak] Diretor do Liquid Media Lab, professor de Jornalismo e Cinema na ESPM, mestre em Teoria da Comunicação pela ECA-USP e doutorando em Design na FAU-USP.
NOVEMBRO 2020
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SUMÁRIO LE MONDE
diplomatique
Capa
“Capa linda! Conteúdo forte!!! Parabéns pela qualidade e por me fazer acreditar que ainda há esperança.” U Gomes, via Instagram. “Um trabalho/publicação que vem consolidar a tempo o debate público. Que capa importantíssima!” Marden Fraga, via Instagram
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Máquina de ódio
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Editorial
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“Essa capa incrível! Conteúdo totalmente necessário!” Eri Correia, via Instagram “Quando uma imagem diz tudo!” Stenio Diniz De Lima, via Facebook “Le Monde Diplomatique nunca decepciona na arte das edições.” Jean Oliveira, via Facebook
“As edições do Le Monde Diplomatique Brasil, mais uma vez, surpreendendo! Incrível!” Ícaro Coelho, via Twitter “Simplesmente GENIAL essa capa do @diplobrasil. GENIAL! Parabéns a todos os envolvidos!” Mariana Ferrari, via Twitter
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“Pesado. E necessário!” Glauber Pessine, via Instagram “Artigo impecável!” Valdemir Oliveira, via Facebook
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Capa: © Claudius
Para você que vai votar! Por Silvio Caccia Bava Capa
O poder local tem papel crucial na reconstrução da democracia Por vários autores A direita disputa Fortaleza Por Monalisa Soares Lopes Porto Alegre e suas contradições eleitorais Por Céli Pinto O conservadorismo pernambucano: uma breve história Por Érico Andrade À direita no Rio: armas, privatizações e tribunais Por Guilherme Simões Reis Salvador tem direita para todos os gostos Por Nina Santos e Thiago Ferreira A direita popular em São Paulo Por Lincoln Secco O impacto da pandemia sobre os países pobres
No Terceiro Mundo, o confinamento é devastador Por Gilbert Achcar
DIRETORIA Diretor da edição brasileira e editor-chefe Silvio Caccia Bava Diretores Anna Luiza Salles Souto, Maria Elizabeth Grimberg e Rubens Naves Editor Luís Brasilino Editora-web Bianca Pyl Editor de Arte Cesar Habert Paciornik Estagiária Samantha Prado Revisão Lara Milani e Maitê Ribeiro Gestão Administrativa e Financeira Arlete Martins Assinaturas assinaturas@diplomatique.org.br Tradutores desta edição Carolina M. de Paula, Frank de Oliveira, Lívia Chede Almendary, Rita Grillo e Wanda Brant Conselho Editorial Adauto Novaes, Amâncio Friaça, Anna Luiza Salles Souto, Ariovaldo Ramos, Betty Mindlin, Claudius Ceccon, Eduardo Fagnani, Heródoto Barbeiro, Igor Fuser, Ivan Giannini, Jacques Pena, Jorge Eduardo S. Durão, Jorge Romano, José Luis Goldfarb, Ladislau Dowbor, Maria Elizabeth Grimberg, Nabil Bonduki, Raquel Rolnik, Ricardo Musse, Rubens Naves, Sebastião Salgado, Tania Bacelar de Araújo e Vera da Silva Telles. Assessoria Jurídica Rubens Naves, Santos Jr. Advogados
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O lugar dos Estados Unidos
A nova ordem mundial que se aproxima Por Olivier Zajec
Escritório Comercial Brasília Marketing 10:José Hevaldo Rabello Mendes Junior Tel.: 61. 3326-0110 / 3964-2110 jh@marketing10.com.br
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Como a Covid-19 remodela a economia
Le Monde Diplomatique Brasil é uma publicação da associação Palavra Livre, em parceria com o Instituto Pólis.
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Conflitos de interesse e desconfiança
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Uma transição energética mal conduzida
A desigualdade no Brasil é um projeto “Excelente artigo. Infelizmente não temos governantes dispostos a governar para os mais pobres.” Léia Almeida, via Instagram
“Nada vem sendo feito há trinta anos” Por Serge Halimi
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“Genial essa capa do @diplobrasil. Digna de uma moldura para eternizar o sentimento de desconforto e indignação que vivo a cada dia neste país. Desabafei!” Pe. Wagner Douglas, via Twitter
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Ano 14 – Número 160 – Novembro 2020 www.diplomatique.org.br
“Os detalhes dessa capa estão demais!” Isabelly Andrade, via Instagram “Vocês deveriam vender as capas deste ano emolduradas. Ou sortear. São obras de arte.” Kleber, via Instagram
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Uma pandemia, dois futuros Por Robert Boyer
Uma medicina influenciável Por Philippe Descamps
A Polônia apega-se ao seu carvão Por Agathe Osinski e Matthias Petel
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Mercado de tolos
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Uma nova geração de feministas
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PPPs, as “privatizações disfarçadas” na África Por Jean-Christophe Servant
A revolta das sul-coreanas Por Frédéric Ojardias “Eles não estão brincando...”
Mistérios e o poder da frota pesqueira chinesa Por Ian Urbina, enviado especial A capital russa quer renovar sua imagem
Moscou sonha se tornar uma “cidade global” Por Vladimir Pawlotsky “O êxito do clube se baseia no socialismo”
Em Liverpool, o futebol como definidor da identidade Por Quentin Guillon, enviado especial Miscelânea
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LE MONDE DIPLOMATIQUE (FRANÇA) Fundador Hubert BEUVE-MÉRY Presidente, Diretor da Publicação Serge HALIMI Redator-Chefe Philippe DESCAMPS Diretora de Relações e das Edições Internacionais Anne-Cécile ROBERT Le Monde diplomatique 1 avenue Stephen-Pichon, 75013 Paris, France secretariat@monde-diplomatique.fr www.monde-diplomatique.fr Em julho de 2015, o Le Monde diplomatique contava com 37 edições internacionais em 20 línguas: 32 edições impressas e 5 eletrônicas. ISSN: 1981-7525
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