Le Monde Diplomatique Brasil #157 (Agosto 2020)

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NYT A SERVIÇO DO LOBBY DA GUERRA

Quem quer prolongar a guerra no Afeganistão? POR SERGE HALIMI*

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s soldados norte-americanos de 18 anos que partem hoje para a guerra no Afeganistão ainda não eram nascidos quando o confronto foi desencadeado. Em 2012, Donald Trump já havia concluído: “Está na hora de deixar o Afeganistão”.1 Não ficou provado que ele atingiu seus objetivos melhor que seu antecessor, Barack Obama. Cada uma das tentativas de desengajar os Estados Unidos militarmente de qualquer país – Síria, Líbia, Coreia, Alemanha – provoca uma batalha em Washington. Logo em seguida, o lobby das guerras se recria: “Os russos estão lá! Os russos estão chegando!”. O orçamento militar dos Estados Unidos (US$ 738 bilhões em 2020) conseguiu representar mais de dez vezes o da Rússia, atiçando os ânimos de Moscou o suficiente para que republicanos e democratas uivassem juntos demonstrando seu pavor. E podem contar com o apoio editorial do New York Times. Em 26 de junho, o jornal nova-iorquino espalhou um vazamento da CIA segundo o qual a Rússia teria pago recompensas a insurgentes afegãos para que matassem soldados norte-americanos.2 Contudo, todos se lembravam de que no mês anterior à Guerra do Iraque o New York Times

já havia desempenhado um papel decisivo na disseminação de mentiras relativas às “armas de destruição em massa” de Saddam Hussein.3 A psicose antirrussa desse grande jornal liberal, aliás, salta aos olhos de quem quer que pesquise os termos “Rússia” ou “Putin” em um site de buscas. O furo afegão – do qual o New York Times parecia já duvidar oito horas após tê-lo publicado... – levanta outras questões. Quem se beneficia dessa “informação” no momento em que a retirada das últimas tropas parecia quase acertada? Os Estados Unidos têm motivos para se indignar de que um de seus adversários declarados ajudou insurgentes afegãos, visto que seu aliado, o Paquistão, faz o mesmo há muito tempo e que eles próprios, entre 1980 e 1988, entregaram aos mujahidin em guerra com Moscou armas sofisticadas, graças às quais estes últimos mataram milhares de soldados soviéticos? Por fim, como explicar que o jornal nova-iorquino, que não deixou de nos oferecer grandes retratos comoventes de três marines supostamente vítimas das “recompensas russas” – um tinha um bigode grande e fazia musculação, outro adoraria rever o filme Guerra nas estrelas, e o último amava suas três filhas –, tenha “se esquecido” de

© Cesar Habert Paciornik

nos informar que outra agência de inteligência norte-americana, a Agência de Segurança Nacional (NSA), não dava nenhum crédito ao furo da CIA?4 Em 1º de julho, uma grande coalizão de parlamentares, democratas e republicanos, no entanto, se valeu das “revelações” do New York Times para tornar mais difícil uma retirada do Afeganistão. Porém, o melhor meio de impedir que soldados estrangeiros continuem morrendo por lá seria que eles saíssem dali.

*Serge Halimi é diretor do Le Monde Diplomatique. 1   T witter, 27 fev. 2012. 2   “ Russia offered afghans bounty to kill U.S. troops, officials say” [Rússia ofereceu recompensas aos afegãos para matar soldados norte-americanos, dizem oficiais], The New York Times, 27 jun. 2020. 3   C f. Fake News, une fausse épidémie? [Fake news, uma falsa epidemia?], Manières de Voir, ago.-set. 2020. 4   NSA differed from CIA on Russia bounty intelligence [NSA diverge da CIA sobre inteligência das recompensas da Rússia], The Wall Street Journal, Nova York, 1o jul. 2020.


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EDITORIAL

POR SILVIO CACCIA BAVA

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a segunda metade dos anos 1990, o Brasil se destacou no cenário internacional ao implementar um dos maiores programas de privatização dos serviços públicos do mundo. O governo de Fernando Henrique Cardoso, com o Programa Nacional de Desestatização, passava para as mãos do setor privado, além de bancos e estatais nas áreas de mineração, siderurgia e petroquímica, a gestão das telecomunicações, da eletricidade, de ferrovias, portos e rodovias, abrindo espaço também para privatizações na área do saneamento básico e da distribuição de gás. Para tornar atrativa para o setor privado a exploração desses serviços públicos, o governo reajustou as tarifas antes das privatizações. As agências reguladoras desses serviços, a partir de então, viram-se controladas por representantes do setor privado.1 Os monopólios e cartéis empresariais passaram a ditar os preços. A pressão empresarial, nacional e internacional, fez o Estado se retirar das atividades econômicas e deixar esse espaço para as empresas privadas. O interesse público foi substituído pelo interesse privado, que transformou bens públicos comuns em mercadorias. E, como o objetivo dessas empresas é a maximização de seus lucros, os preços aumentaram continuamente e os serviços se deterioraram. Afinal, os lucros são distribuídos para os acionistas e não são reinvestidos na melhoria dos serviços. Passados 25 anos, agora na contramão dos neoliberais de todo o mundo, o atual governo brasileiro continua com os mesmos propósitos de destruir o Estado e os mecanismos de regulação pública. Segundo o ministro da Economia, Paulo Guedes, a intenção é privatizar todas as estatais. Acontece que não só as privatizações não trouxeram os benefícios esperados de redução de custos e melhoria da gestão e dos serviços, como também agora as empresas concessionárias estão buscando socorro junto ao Estado, pois seu modelo de negócios está em colapso com a pandemia. O sistema de pagamento por tarifas, pelo usuário, está em xeque. O sistema público de transporte, já fortemente subsidiado pelo Estado, é expressão desse colapso.

Depois de 25 anos de gestão privada da água por um duopólio, por decisão legislativa, em 2010, a Prefeitura de Paris retomou a administração direta da água. As razões para a retomada do serviço público: os preços subiram de forma continuada durante o período e a qualidade do serviço deteriorou-se. A conclusão anunciada pelos legisladores é de que os interesses das empresas privadas são incompatíveis com a prestação de um serviço público. Desde o início do século XXI há um forte movimento de remunicipalização de serviços públicos na Alemanha, na França, na Inglaterra, no Canadá e em municípios dos Estados Unidos. Em 265 municípios, os governos locais remunicipalizaram a gestão da água nos últimos vinte anos, algo que envolve cerca de 100 milhões de pessoas.2 “Eliminando a lógica de maximização do lucro, imperativa no setor privado, a remunicipalização da água leva à melhoria do acesso e da qualidade dos serviços de água, bem como a preços mais baixos, o que pode ser

esses interesses. Elas precisam da voz do usuário, do beneficiário. Impõe-se a democratização da gestão dessas políticas. Com a remunicipalização da gestão da água, Paris criou um conselho com a participação de usuários, trabalhadores em saneamento, cientistas e representantes públicos, uma inovação democratizadora que abre uma nova relação do governo com a cidadania. No Brasil, para nossa desgraça, temos um governo federal que continua a defender, mesmo em plena pandemia, as políticas de austeridade. Na contramão das principais correntes do neoliberalismo, que acabam de reconhecer a importância do Estado e do investimento público para tirar o país do atoleiro, o Ministério da Economia quer continuar as reformas de privação de direitos e privatizações para destruir o Estado, ceder o patrimônio público aos interesses privados e reduzir os custos das empresas com a mão de obra. Interesse público? Zero.  1   A rmando Castelar Pinheiro e Kiichiro Fukasaku, “A privatização no Brasil: o caso dos serviços de utilidade pública”, OCDE/BNDES, 1999. 2   Júlia Dias Carneiro, “Enquanto Rio privatiza, por que Paris, Berlim e outras 265 cidades reestatizam saneamento?”, BBC Brasil, 23 jun. 2017. 3   Sandoval Alves Rocha, “A remunicipalização dos serviços de água e esgoto é uma tendência global”, 7 fev. 2020. Disponível em: https://amazonasatual.com. br/a-remunicipalizacao-dos-servicos-de-agua-e-esgoto-e-uma-tendencia-global/.

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O colapso de um modelo de gestão

observado em casos tão diversos como os de Paris (França), Arenys de Munt (Espanha) e Almaty (Kazakhstan). Em alguns casos os novos operadores públicos também aumentaram dramaticamente o investimento nos sistemas de água, como é o caso de Grenoble (França), Buenos Aires (Argentina) e Arenys de Munt (Espanha)”.3 A revalorização do papel do Estado como provedor de serviços públicos está no centro desse processo de construção de novos bens comuns. Água, moradia, saúde, educação, transporte, segurança alimentar, serviço social são direitos humanos e precisam ser garantidos para todos. Tornam-se, por essa razão, políticas públicas de cobertura universal, isto é, com garantia de acesso para todos. Estamos na fronteira de criação/recuperação de bens comuns. O colapso do modelo baseado na cobrança da tarifa abre espaço para a reestatização desses serviços, para que sejam financiados pelos impostos e se tornem de uso universal e gratuito, ou seja, se tornem bens comuns. É a reforma tributária cobrando mais impostos e evitando a sonegação das empresas e dos mais ricos que garante esse novo modelo. Para que adquiram essa qualidade de bens comuns, as políticas públicas que se orientam para atender a essas demandas não podem ser fruto apenas do saber técnico. Elas precisam da participação dos coletivos que na sociedade civil representam


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CAPA

Bolsonaro, a pandemia e a explosão das demandas sociais O que estava ruim piorou: o encontro de um governo inapto e irresponsável com um vírus altamente contagioso e devastador resultou numa explosão de demandas sociais que não encontram no aparato público estrutura e financiamento adequados para serem atendidas ESCRITO PELA EQUIPE DO INESC*

O © Giorgia Massetani

primeiro ano do governo Bolsonaro foi de múltiplas privações para a sociedade brasileira. As reformas trabalhista e previdenciária e as medidas de austeridade resultaram, entre outras mazelas, na queda do PIB per capita em dólar em 2019 (–3,2%) e na continuidade da trajetória de precarização do trabalho, uma vez que a maior parte

dos trabalhadores e das trabalhadoras se encontrava na informalidade (38 milhões de pessoas), desempregada (12 milhões de pessoas) ou subutilizada (28 milhões de pessoas).1 Mas o que estava ruim piorou: o encontro de um governo inapto e irresponsável com um vírus altamente contagioso e devastador resultou numa explosão de demandas sociais

que não encontram no aparato público estrutura e financiamento adequados para serem atendidas.

O CENÁRIO PRÉ-PANDEMIA Como era de esperar, o aumento da pobreza – e de sua face mais perversa, a fome – apareceu já no primeiro ano do governo Bolsonaro. Dados divulgados pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO)2 revelam que, no período 20142016, a prevalência da insegurança alimentar severa ou grave era de 18,3% da população; nos anos 2018-2019, esse percentual elevou-se para 20,6%, o que representa um contingente de mais de 43 milhões de pessoas que não se alimentam adequadamente. A recessão prolongada foi agravada por políticas governamentais de cortes orçamentários expressivos e medidas que acirraram as já abissais desigualdades. Menciona-se, por exemplo, a Emenda Constitucional n. 95/2016, conhecida como “Teto de Gastos”, que congelou as despesas públicas da União por vinte anos. Outra regra bastante restritiva é a que fixa anualmente limites para o déficit primário da União. Um exemplo da atuação irresponsável do governo Bolsonaro desde antes da pandemia é a diminuição de um dos maiores programas de transferência de renda do mundo. Com efeito, apesar do empobrecimento crescente, em 2019, segundo o IBGE,3 13,5% dos domicílios recebiam dinheiro do Programa Bolsa Família. Essa proporção era de 15,9% em 2012. Outro exemplo significativo foram os ataques às políticas socioambientais, que levaram até mesmo o setor empresarial brasileiro a enviar carta ao vice-presidente da República, atual presidente do Conselho Nacional da Amazônia, pedindo que o governo adotasse ações para superar a crise ambiental.

O SUBFINANCIAMENTO DAS POLÍTICAS UNIVERSAIS DE SAÚDE E EDUCAÇÃO Recente análise realizada pelo Inesc e publicada no relatório “Brasil com Baixa Imunidade – Balanço do Orçamento Geral da União em 2019” revela que grande parte das políticas sociais e ambientais vem sofrendo cortes sistemáticos de recursos desde o início da austeridade, ampliada no último ano. No caso da educação, o estudo mostrou que, em 2019, o que foi efetivamente pago é da ordem de R$ 20 bilhões a menos que em 2014, em termos reais. Isso acontece num país que apresenta indicadores educacionais sofríveis, haja vista os dados da última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad Educação) demonstrando que nada menos que 51% da população acima de 25 anos não completou a educação básica. A área da saúde, por seu turno, vem sendo afetada por crônico subfinanciamento. O orçamento de 2019, de R$ 127,8 bilhões em termos reais, é semelhante ao de 2014, mas com 7 milhões a mais de pessoas para serem atendidas.

O ACIRRAMENTO DO RACISMO E MACHISMO ESTRUTURAIS Os povos indígenas têm sido um dos principais alvos do governo Bolsonaro. Ainda segundo o estudo do Inesc, a Fundação Nacional do Índio (Funai) perdeu 27% dos recursos correntes entre 2012 e 2019. Também a Saúde Indígena sofreu cortes: foram menos 5% no valor autorizado e 16% nos valores pagos entre 2018 e 2019, além da fragilização da participação social. Outra terrível expressão do racismo institucional é o massacre da juventude negra. Os dados mais recentes do Atlas da Violência (Ipea e Fórum Brasileiro de Segurança Pública) evidenciam que, em 2017, 36 mil jovens negros foram assassinados, um recorde nos últimos dez anos. Apesar dessas inaceitáveis desigualdades, em 2019 o governo Bolsonaro praticamente acabou com o Programa de Enfrentamento ao Racismo e Promoção da Igualdade Racial – política que já contou com recursos da ordem de R$ 80 milhões em 2014 e, no ano passado, gastou apenas R$ 15 milhões, cinco vezes menos. Ignorando um aumento de 7,3% no número de casos de feminicídio em comparação com 2018, o governo Bolsonaro não gastou nenhum recurso em 2019 para a construção das Casas da Mulher Brasileira, que atendem mulheres em situação de violência – considerando que havia R$ 20 milhões disponíveis para essa atividade. Crianças e adolescentes também não são poupados da sanha destrui-


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dora do governo Bolsonaro. Como mostrou o estudo do Inesc, em 2019 os gastos do Programa de Promoção, Proteção e Defesa dos Direitos Humanos da Criança e do Adolescente caíram 27% em termos reais em comparação com o ano anterior.

O DESMONTE DA ÁREA AMBIENTAL Na área ambiental, o desmonte da política foi ganhando contornos mais explícitos com o governo Bolsonaro. Foram dezenas de medidas, em sua maioria de cunho infralegal, por meio de portarias, decretos e instruções normativas, as quais resultaram na redução das ações de fiscalização do desmatamento na Amazônia, entre outras. Esse desmonte das estruturas institucionais foi acompanhado de mudanças no quadro de pessoal, com nomeações, em todos os escalões, de militares. A militarização da política ambiental, sobretudo da Amazônia, é um fenômeno que caracteriza o atual governo.

OS IMPACTOS DA PANDEMIA DE COVID-19 E O DESCASO DO GOVERNO BOLSONARO É nesse cenário desolador que a Covid-19 chega ao Brasil. Além das consequências dramáticas da crise sanitária, temos um governo que trata com descaso e despreparo a pandemia e os efeitos da recessão econômica. Ainda que, por um lado, as políticas de manutenção de renda (Auxílio Emergencial) e de emprego (financiamento da folha salarial e Programa de Manutenção de Emprego e Renda) sejam anunciadas como prioritárias, seu baixo nível de gastos após mais de quatro meses de pandemia é assustador. A execução orçamentária da renda básica e o financiamento da folha salarial atingiram somente metade de seu potencial, e o Programa de Manutenção de Emprego e Renda, apenas 30%. Os impactos da crise se fazem sentir no mundo do trabalho. Segundo dados recentes publicados pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese),4 em maio, 18,5 milhões de brasileiros não trabalharam e não procuraram ocupação por causa da pandemia; 19 milhões de pessoas foram afastadas do trabalho e 30 milhões tiveram alguma redução em seus rendimentos. Note-se, contudo, ainda de acordo com o órgão de pesquisa, que o auxílio emergencial tem sido essencial para cobrir boa parte da perda de rendimento dos beneficiários.

O DESMANDO FEDERAL SAÚDE E NA EDUCAÇÃO O quadro na área da saúde é dramático, com quase 90 mil óbitos e 10% da

população com casos confirmados da nova doença. O Brasil se tornou, em meados de junho, o segundo país do mundo com maior número de óbitos por Covid-19, somente atrás dos Estados Unidos. A responsabilidade do governo federal nas mortes decorrentes do novo coronavírus é evidente e pública. O presidente culpabiliza estados e municípios pela crise econômica, desdenha do isolamento social e propagandeia a utilização de medicamentos sem comprovação científica. Esse comportamento se reflete no Ministério da Saúde, que deveria ser o grande coordenador do enfrentamento à pandemia, mas que até hoje não executou nem metade dos recursos que recebeu exclusivamente para isso, da ordem de R$ 39,7 bilhões. Ademais, dois ministros foram demitidos e substituídos por militares sem especialização na área. A situação só não é pior porque o país possui o Sistema Único de Saúde (SUS), gratuito e universal, que, a despeito do descaso do governo federal, conta com a atuação dos estados e municípios. No caso da educação, pode-se dizer que as desigualdades ficaram ainda mais escancaradas. Olhando apenas para a escola pública, há falta de preparo de educadores para lidar com esse momento e de acesso à internet ou a equipamentos adequados para que os educandos acompanhem aulas a distância. Também grave é a situação de mães e pais que precisam trabalhar em meio à pandemia, não tendo condições de acompanhar seus filhos, seja por falta de tempo, seja por falta de escolaridade.

OS PRINCIPAIS ALVOS SÃO NEGROS, QUILOMBOLAS E INDÍGENAS Os efeitos da pandemia contribuem ainda para reforçar desigualdades de raça e de etnia. A população negra é proporcionalmente muito mais afetada que a branca: 55% de pessoas negras que se internaram em hospitais do Brasil com Covid-19 morreram; entre os brancos, esse percentual foi de 38%.5 No tocante à população indígena, mesmo diante da disseminação do novo coronavírus, que já matou mais de quinhentos e infectou outros 16 mil indígenas,6 o governo federal investiu menos recursos em Saúde Indígena no primeiro semestre deste ano do que no mesmo período do ano passado. Além disso, os recursos extraordinários para enfrentamento da Covid-19 alocados na Funai tiveram execução orçamentária de apenas 33%.7 A população quilombola, que não conta nem mesmo com um sistema de saúde que atenda a suas especificidades culturais, ficou desassistida com os cortes na política de

cestas básicas e a dificuldade de acesso ao auxílio emergencial. Não satisfeito, o governo selou as políticas de morte para indígenas, quilombolas e povos e comunidades tradicionais vetando 22 itens do PL n. 1.142, que previa a criação de um plano de enfrentamento da Covid-19 entre esses povos.

Os efeitos da pandemia contribuem ainda para reforçar desigualdades de raça e de etnia O AUMENTO DA VIOLÊNCIA CONTRA MULHERES E CRIANÇAS Em decorrência das medidas de isolamento social e do consequente confinamento das famílias em casa, a violência contra as mulheres se intensificou na pandemia. Dados levantados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública apontam que houve aumento de 22% nos registros de casos de feminicídio no Brasil durante a pandemia.8 Diante desse quadro, a ministra Damares Alves pouco fez. Seu ministério foi agraciado com recursos da ordem de R$ 574 milhões, incluindo as verbas destinadas ao enfrentamento do novo coronavírus, mas executou apenas 11% até agora. Do recurso específico para enfrentamento da violência contra as mulheres – cerca de R$ 25 milhões –, apenas R$ 1,5 milhão foram gastos.9 O confinamento também contribui para aumentar a violência contra crianças, pois as coloca mais tempo na presença do adulto que pode ser seu agressor. Desde 2019 não houve execução orçamentária alguma para as ações de Enfrentamento às Violências contra Crianças e Adolescentes, e, no orçamento atual, essa estratégia nem aparece nas rubricas, como mostramos em estudo recente do Inesc.10

O NECESSÁRIO PAPEL DO ESTADO A contenção da pandemia e o enfrentamento da decorrente crise econômica requerem o fortalecimento do papel do Estado. Requerem ainda uma atuação coordenada dos poderes públicos a ser liderada por um governo federal defensor da agenda de direitos humanos e contando com a participação de sindicatos de trabalhadores e de organizações e movimentos sociais, de modo a levar em conta as vozes e demandas dos mais afetados pela combinação das múltiplas crises. A recessão econômica que se instalou é de proporções dramáticas e demanda respostas ousadas e responsáveis, pois é a vida de milhões de

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pessoas que está em risco. Isso porque a pandemia trouxe novas demandas, que se somam às preexistentes. Assim, faz-se necessário injetar vultosos recursos nas políticas públicas para proteger a saúde, a educação e a renda, mas também para dinamizar a economia e pavimentar o caminho para a retomada do crescimento. Deve-se aproveitar a oportunidade para fortalecer medidas de preservação do meio ambiente e de enfrentamento da crise climática para que a almejada saída da crise seja de fato sustentável. A sustentabilidade, contudo, somente será garantida com políticas de promoção da equidade de raça/etnia e de gênero e com o pleno gozo dos direitos de crianças, adolescentes e jovens. Assim, de imediato, urge estender o estado de calamidade para 2021 e revogar medidas de contenção de despesas como o teto de gastos e a meta para o resultado primário. Sem essas revogações não haverá retomada possível. É indispensável aprovar uma reforma tributária que vá muito além da simplificação de impostos e que consolide um sistema efetivamente progressivo, no qual os mais ricos, que hoje pouco contribuem, possam de fato participar do desenvolvimento do país. Por fim, a defesa de uma governança global democrática e participativa é mais do que nunca necessária, não somente para assegurar o acesso universal a vacinas e remédios contra a Covid-19, mas também para evitar novas pandemias e construir um planeta mais justo e sustentável.  *A equipe do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) é composta por Alessandra Cardoso, Carmela Zigoni, Cleo Manhas, Dyarley Viana, Leila Saraiva, Livi Gerbase, Luiza Pinheiro, Márcia Acioli, Marcus Dantas, Nathalie Beghin, Tatiana Oliveira e Thallita de Oliveira. 1   I BGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua. Divulgação Especial. Medidas de Subutilização da Força de Trabalho no Brasil, 4º trimestre de 2019. 2   FAO, “The state of food security and nutrition in the world 2020. Transforming food systems for affordable health diets” [A situação da segurança alimentar e da nutrição no mundo 2020. Transformando sistemas alimentares para dietas saudáveis acessíveis], Roma, 2020. 3   IBGE, Pnad Contínua 2019. 4   Dieese, Boletim Emprego em Pauta n.15, 20 jul. 2015. 5   Carlos Madeiro, “Covid mata 55% dos negros e 38% dos brancos internados no país”, UOL, 2 jun. 2020. 6   Dados do Comitê Nacional de Vida e Memória Indígena. 7   Dados coletados pelo Inesc em 14 de julho de 2020, no portal Siga Brasil. 8   UOL, “Número de casos de feminicídio no Brasil cresce 22% durante a pandemia”, 1º jun. 2020. 9   Dados atualizados em 21 de julho com base em informações do Siga Brasil, corrigidos pelo IPCA. 10   Inesc, “Brasil com Baixa Imunidade – Balanço do Orçamento Geral da União 2019”.


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VIDAS (DOS OUTROS...) EM JOGO PELA “RETOMADA DA ECONOMIA”

A roleta-russa da abertura das escolas A escola pública atende os segmentos populares, os filhos dos trabalhadores que, com a flexibilização da quarentena, precisam voltar ao trabalho. A “normalidade” econômica não pode ser produzida sem os trabalhadores e sem a escola que recebe seus filhos. Por isso, a abertura não está separada da flexibilização da quarentena. Ela é um de seus principais sustentáculos POR FERNANDO CÁSSIO E ANA PAULA CORTI*

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ove estados anunciaram em julho o retorno das atividades presenciais nas escolas para agosto e setembro: Acre, Distrito Federal, Maranhão, Paraná, Piauí, Rio Grande do Norte, Rondônia, Santa Catarina, São Paulo e Tocantins – governados por partidos tão diferentes quanto MDB, PCdoB, PSD, PT, PSL, PSDB e PHS. Em cada um deles há um cenário diverso de evolução e controle da pandemia de Covid-19. A densidade do diálogo dos governos com a sociedade civil e sobretudo com as organizações que representam os profissionais da educação é igualmente díspar nesses estados. São diversos os argumentos utilizados para defender a abertura das escolas e o retorno às atividades presenciais depois de meses de isolamento. Nas redes de ensino, muitos ainda apostam na possibilidade de “salvar” o ano letivo de 2020, o que permitiria economizar os esforços orçamentários e burocráticos primordiais a um processo seguro de retomada e reposição das atividades letivas. Também é sabida a pressão das escolas privadas – cujo funcionamento é regulamentado pelas secretarias estaduais de educação – pelo retorno. Muitas partem da premissa de que suas melhores condições estruturais lhes permitirão conter a escalada de contágios a partir da abertura. O Sindicato dos Estabelecimentos de Ensino do Rio de Janeiro (SinepeRio), em vídeo promocional (ht t ps ://bit.ly/v ideo-Si nepeR io), afirmou que é hora de abrir as escolas privadas. A mensagem da entidade é tocante: “Vimos que a ciência é a vacina. Estudos só confundiram. Trancar todos em casa não é ciência. Confinar é desconhecer, é ignorar, é subtrair vida, é fragilizar, debilitar, mexer com o emocional. As crianças precisam voltar a se relacionar, brincar, refazer laços, amizades, rever seus amigos. Hora de reflorir. Recriar no novo tempo. O sol precisa voltar a brilhar”.

Para cada cidade do país – para cada bairro, em muitos casos – há uma estatística de infecções e de mortes por Covid-19 que se relaciona a dinâmicas territoriais e a condições muito específicas. O Brasil tem cerca de 48 milhões de estudantes na educação básica, 75% deles em escolas públicas, a maioria das quais em condições muito diferentes das que financiam o SinepeRio e patrocinam seu marketing agressivo disfarçado de mensagem de esperança. Se a manutenção do fechamento das escolas equivale a “subtrair a vida”, o que dizer de uma abertura que arrisca vidas em sentido literal? Ainda que a maior parte das propostas de abertura seja escalonada, em esquemas de rodízio, o resultado líquido da operação é o mesmo: abrir escolas implica mobilizar um quarto da população brasileira a sair de casa todos os dias, a utilizar o transporte público, aumentar seu tempo na rua, no comércio, em filas nos portões das escolas. Além disso, escolas são locais inerentemente adensados, porquanto espaços de contato e de produção de sociabilidades. Algumas poucas escolas privadas de elite nas grandes cidades vêm contratando empresas ou hospitais privados de renome para o desenvolvimento de protocolos que garantam a segurança epidemiológica de seus estudantes e profissionais, mas isso está longe de ser a realidade da maioria das escolas privadas e, sobretudo, das escolas municipais e estaduais. Apesar de as entidades patronais assegurarem que o sol já pode brilhar nas escolas particulares, a dúvida permanece. Um levantamento recente1 mostra que 40% dos estudantes matriculados em estabelecimentos privados não retornarão à escola em 2020 por decisão das famílias. Levando água para o moinho da abertura das escolas, o Conselho Nacional de Educação (CNE) aprovou em 7 de julho o Parecer CNE/CP n. 11/2020, com orientações educacio-

nais para a realização de aulas e atividades pedagógicas presenciais e não presenciais no contexto da pandemia. Embora o parecer não deixe de sublinhar que a retomada das atividades presenciais depende da garantia de “condições de saúde e de segurança aos estudantes e profissionais da educação”, o argumento principal das orientações fundamenta-se em uma série de estudos – incluindo um da consultoria McKinsey – sobre o impacto do fechamento das escolas em aprendizagens medidas por testes de proficiência. O CNE também apresenta algumas pesquisas sobre o alcance limitado das atividades remotas oferecidas, que prejudicaram milhões de estudantes da escola pública. Como temos formulado, ao selecionar somente as frações da população escolar com condições de acessar as atividades, um grande número de políticas educacionais emergenciais implantadas durante a pandemia produziram uma maciça discriminação educacional nas redes públicas de ensino.2 A argumentação do CNE, centrada na noção mal definida de “direitos de aprendizagem”, que deveriam ser garantidos a todo custo – remota ou presencialmente –, também induz o movimento de abertura das escolas. Como a exclusão causada pela oferta remota é um fato dado, a única forma de reverter esse quadro seria planejar uma abertura segura e escalonada das escolas com vistas a recuperar o tempo perdido e a “aprendizagem”, isto é, os resultados nas avaliações em larga escala. Tal raciocínio economicista chega ao paroxismo no recente estudo do Insper, que concluiu que a interrupção das aulas durante a pandemia poderia reduzir o PIB do país em até 23%, em razão da perda de renda sofrida pelos jovens por conta do déficit de aprendizagem.3 A pressão “econômica” pela abertura das escolas, apesar disso tudo, não é prerrogativa de empresários

que simplificam a complexidade dos processos educativos para chantagear governos de forma direta ou em coligação com o CNE. Se os estudantes das escolas privadas, ainda que estas lhes queiram garantir o brilho do sol, podem permanecer em casa neste ano de 2020, o mesmo não é necessariamente verdade para os estudantes das escolas públicas – especialmente os mais jovens, matriculados nas creches e pré-escolas. Para as famílias da escola pública, a necessidade de trabalhar convive com o medo de uma abertura mal planejada e com a insegurança sobre a falta de capacidade do Estado de proteger a saúde de crianças, adolescentes e profissionais da educação.

DECISÕES UNILATERAIS Em São Paulo, o eventual retorno às aulas presenciais em setembro movimentará 1 milhão de professores e outros profissionais da educação e mais 13,3 milhões de estudantes em todas as etapas escolares e redes públicas e privadas (cerca de 30% da população do estado). Os protocolos de segurança divulgados pelo governo paulista para a reabertura das escolas trazem um conjunto de diretrizes classificadas como “obrigatórias” ou “recomendáveis”.4 A insuficiência dessas diretrizes reflete a própria insuficiência de recursos financeiros para a implementação de protocolos mais robustos para a proteção das comunidades escolares, o que gera apreensão de estudantes, famílias e profissionais da educação. O governo Doria não indicou que providências concretas serão tomadas pela Seduc-SP para viabilizar o cumprimento das diretrizes. De toda forma, só uma pequena parte delas é de fato “obrigatória”: incentivar a lavagem de mãos ou higienização com álcool em gel após tossir ou espirrar, por exemplo, é medida apenas “recomendável”. A abstração das condições materiais das escolas, que marca as políti-


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cas educacionais paulistas focalizadas no avaliacionismo, na ideologia da aprendizagem5 e na responsabilização das escolas por resultados, chegou a um ponto de saturação na pandemia: se a precariedade das unidades escolares e a insuficiência de recursos financeiros continuarem sendo abstraídas, a abertura das escolas colocará em risco a vida de milhões de pessoas. Chama atenção a rapidez e a “facilidade” com que a Seduc-SP toma decisões a respeito da vida de milhares de escolas e de milhões de estudantes e profissionais da educação. A situação contrasta com a de universidades como USP, Unicamp, Unesp, UFABC, Unifesp, UFSCar e com o Instituto Federal de São Paulo, que também suspenderam suas aulas presenciais em março e decidiram pela continuidade de suas atividades de ensino de forma remota. Nenhuma delas, por outro lado, tomou a decisão de abrir as portas no segundo semestre de 2020. Tamanha disparidade entre os cenários de “retomada” nas universidades e nas escolas públicas de educação básica dentro de um mesmo estado revela que essas instituições não apenas possuem funções sociais diferentes – o que é esperado –, mas que estão separadas por um fosso profundo em termos de status social e autonomia decisória. A escola pública atende os segmentos populares, os filhos dos trabalhadores que, com a flexibilização da quarentena, precisam voltar ao trabalho presencial. A “normalidade” econômica não pode ser produzida sem os trabalhadores e sem a escola pública que recebe seus filhos. Por isso, a abertura das escolas não está separada da flexibilização da quarentena. Ela é um de seus principais sustentáculos. E, diferentemente do que ocorre nas instituições de ensino superior, ela está sendo decidida não no nível do território e das comunidades escolares, mas no dos gabinetes.

CADÊ A COMUNIDADE ESCOLAR QUE ESTAVA AQUI? A comunidade escolar é o espaço em que o processo educacional ganha concretude, em que se dá o encontro entre profissionais da educação, estudantes e suas famílias: a socialização, o crescimento, o conflito, a timidez, a discriminação, o conhecimento, a descoberta, a rejeição do corpo, a paixão, a frustração, as amizades, a rejeição, a matemática, a cidadania, o sonho, os projetos. Enfim, a produção da escola. A suspensão das atividades presenciais acarretou prejuízos para crianças, adolescentes e profissionais da educação precisamente porque impediu toda essa convivência vital, educativa, deixando as pessoas mais

© Tânia Rêgo/Agência Brasil

Abrir escolas implica mobilizar 1/4 da população a sair de casa todos os dias isoladas e sozinhas. Foi uma perda, sem dúvida, mas foi a escolha mais acertada em defesa da vida. Os modelos educacionais neotecnicistas dos gestores e especialistas do setor empresarial que defendem a abertura das escolas – e tão bem ilustrados no Parecer n. 11/2020 do CNE – estão de costas para as comunidades escolares e os complexos processos de produção da escola. Talvez por isso mesmo as expressões “comunidade” ou “comunidade escolar” apareçam no documento do CNE apenas como objetos da ação das autoridades educacionais, e não como agentes decisórios dos sistemas de ensino. Isso fica bem claro em uma das recomendações do CNE: “Comunicação: o planejamento da reabertura deve ser acompanhado por intensa comunicação com as famílias, os alunos, os professores e profissionais de educação, explicando com clareza os critérios adotados no retorno gradual das escolas e os cuidados com as questões de segurança sanitária” (p. 11-12). Quando as escolas são tratadas como meras linhas de transmissão e obediência a normas e ordens exógenas aos seus propósitos,6 interdita-se a dimensão humana e criativa da educação. É por isso que as políticas educacionais centralizadas fragilizam as comunidades escolares. Os dois instrumentos mais importantes para a construção da identidade dessas comunidades – o Projeto Político-Pedagógico e os Conselhos de Escola – perdem a razão de ser quando seu “devir” é definido do lado de fora, pela administração central. Escolas com identidade própria, com autonomia e com professores e estudantes questionadores e propositivos são, pela

mesma razão, um entrave à gestão centralizada e tecnocrática. É preciso reconhecer, além disso, que mesmo uma comunidade escolar atuante, estudiosa e produtora de seu próprio cotidiano não consegue fazer muita coisa sem recursos humanos, sem condições institucionais e sem um financiamento educacional adequado. Mas, como nem a escola pública nem as comunidades escolares são entidades monolíticas, também há aquelas que estão mobilizadas em defesa da vida. Um manifesto produzido por escolas do extremo leste da cidade de São Paulo (regiões de Guaianases, Cidade Tiradentes e Lajeado), por exemplo, expressa o desejo de voltar, mas também a apreensão com a falta de capacidade do estado de garantir a proteção da vida em um eventual retorno: “Queremos, sim, voltar às escolas, pois há um entendimento geral de que as aulas remotas, mesmo com o grande esforço dos educadores, não atingem a maioria de nossos alunos. Porém, não podemos arriscar nossas vidas, de nossos estudantes e de seus familiares, na medida em que a comunidade médica, os cientistas e a OMS afirmam que a escola [...] poderá se transformar em grande propagadora do vírus”.7 Desde março, quando começamos a produzir textos e notas públicas sobre a indução de desigualdades educacionais durante a pandemia, temos salientado que todas as soluções precisam ser pensadas no nível do território, por meio da articulação dos atores locais.8 Não há protocolo ou diretriz “geral” que seja capaz de atender às especificidades de cada escola. São as comunidades escolares que devem adaptar os protocolos às

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suas necessidades. Se as famílias com filhos nas escolas privadas podem tomar a decisão individual de não mandá-los para a escola, o mesmo nem sempre ocorre com as famílias da escola pública. Para estas, é fundamental poder contar com uma rede de proteção comunitária no nível do bairro e da escola. Nos territórios periféricos, são as redes de solidariedade que vêm garantindo a sobrevivência de muita gente. Não são a “perda” de aprendizagens ou o mau desempenho no Pisa 9 que motivam estudantes e professores a querer voltar para a escola, e sim uma enorme saudade desse espaço produtor de vida, de conhecimento e de laços sociais. Mas tudo isso parece ter limite. Ao contrário dos mantenedores das escolas privadas e dos reformadores empresariais da educação, que veem a suspensão das aulas apenas como um dano econômico ao país, uma massa de brasileiros simplesmente se recusa a enxergar o “brilho do sol” da abertura das escolas, sabendo que sua própria vida é objeto de aposta em um jogo de roleta-russa.  *Fernando Cássio  é doutor em Ciências, professor da Universidade Federal do ABC (UFABC) e organizador de Educação contra a barbárie: por escolas democráticas e pela liberdade de ensinar (Boitempo); Ana Paula Corti é socióloga, doutora em Educação e professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP). Os autores fazem parte da Rede Escola Pública e Universidade (Repu). 1   E lida Oliveira, “Mais de 70% dos pais se recusariam a enviar filhos para escola ainda em julho e 40% só acreditam no retorno em 2021, aponta levantamento”, G1, 16 jul. 2020. 2   Ver a Nota Técnica Recomendações para a disponibilização e a coleta de dados sobre as ações das redes de ensino relacionadas às atividades educacionais durante a pandemia da Covid-19, produzida em maio de 2020 por Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Cedeca-Ceará, DiEPEE-UFABC e Rede Escola Pública e Universidade. 3   Isabela Palhares, “Interrupção das aulas na pandemia pode reduzir PIB brasileiro em até 23%”, Folha de S.Paulo, 13 jun. 2020. 4   Esses protocolos podem ser encontrados em: www.educacao.sp.gov.br/coronavirus. 5   Fernando Cássio e Silvio Carneiro, “É hora de falar da educação como bem público”, Le Monde Diplomatique Brasil, 20 maio 2020. 6   Ana Paula Corti e Fernando Cássio, “Por que obedecemos?”, Le Monde Diplomatique Brasil, 30 set. 2019. 7   “ Publicação na íntegra do Manifesto pelo direito à vida e à educação pública, assinado por diversas unidades escolares de SP”, Esquerda Diário, 15 jul. 2020. 8   Ver as notas públicas conjuntas produzidas desde março de 2020 pela Rede Escola Pública e Universidade (Repu) e pelo Grupo Escola Pública e Democrática (Gepud): www. repu.com.br/mocoes-manifestos-e-notas-publicas. Ver também o Guia Covid-19 vol. 8: reabertura das escolas, produzido pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação, disponível em: https://campanha.org.br/acervo/ guia-8-covid-19-reabertura-das-escolas. 9   Programme for International Student Assessment (Programa Internacional de Avaliação de Estudantes).


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SAÚDE

Como controlar a pandemia no Brasil As principais autoridades políticas e sanitárias, às quais caberia a obrigação de formular políticas de controle, carrear recursos, viabilizar meios, gerenciar processos e coordenar ações, incorreram em sérios equívocos e omissões, numa sucessão de erros que resulta em sofrimentos, sequelas e mortes totalmente desnecessárias POR NAOMAR DE ALMEIDA FILHO, GULNAR AZEVEDO E CLAUDIA TRAVASSOS*

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ntramos no temido mês de agosto com mais de 2 milhões de casos e perto de 100 mil mortos confirmados por Covid-19 em todas as regiões do Brasil. Em função da grande diversidade geográfica, social e cultural do país, o panorama da pandemia mostra-se bastante complexo. Aqui, ela tornou-se um sistema de epidemias, afetando distintos segmentos da sociedade e setores do imenso território nacional. Os primeiros casos confirmados eram pessoas de alta renda, recém-chegadas de viagens ao exterior; rapidamente, porém, a doença atingiu as periferias das grandes cidades e o interior do país, com maior letalidade na população pobre e negra, entre desempregados, afetando tragicamente povos indígenas, quilombolas e populações ribeirinhas. Recentemente, em algumas capitais, a pandemia tende a se estabilizar em altos patamares de incidência e mortalidade, mas essas taxas crescem em cidades de menor porte em todo o país. No momento, ocupamos o segundo lugar do mundo em número de casos e de mortes; com 3% da população mundial, temos 14% dos óbitos por Covid-19. A ausência de uma política nacional para enfrentamento da terrível crise sanitária agrava esse cenário desolador. As principais autoridades políticas e sanitárias, às quais caberia a obrigação de formular políticas de controle, carrear recursos, viabilizar meios, gerenciar processos e coordenar ações, incorreram em sérios equívocos e omissões, numa sucessão de erros que resulta em sofrimentos, sequelas e mortes totalmente desnecessárias. O pior é que, por ignorância, negacionismo e crueldade, lideranças políticas vêm deliberadamente promovendo boicotes e obstáculos às medidas de combate à pandemia. É responsabilidade intransferível da Presidência da República coordenar ações e políticas emergenciais para controlar crises humanitárias nacionais e reduzir seus impactos evitáveis. Diante da pandemia de Covid-19, caberia ao governo federal apresentar à sociedade um plano de

© Giorgia Massetani

ação nacional, composto por medidas factíveis e embasadas em conhecimento científico, articulado e coordenado pelas autoridades sanitárias, em todos os níveis e setores, com a participação ativa das instâncias de controle social do SUS. No auge da pandemia, torna-se imperativo e urgente organizar conhecimentos, recursos, competências e energias num conjunto amplo de estratégias, orientações, normas, procedimentos, programas e políticas, articulado de modo eficiente e coordenado centralmente, contando com a gestão integrada em todas as esferas de governo e com a participa-

ção da sociedade organizada. Mas infelizmente nada disso foi feito até o momento. O resultado dessa irresponsabilidade trágica é o fato de o Brasil entrar no quinto mês da pandemia sem nenhum plano oficial de enfrentamento em escala nacional.

PLANO DE ENFRENTAMENTO DA COVID-19 Preocupados com essa lamentável e grave omissão, entidades e movimentos sociais que atuam na área da saúde e participam da Frente pela Vida (https://frentepelav ida.org.br) apresentaram recentemente à sociedade um Plano Nacional de Enfrenta-

mento da Covid-19. Para a elaboração desse plano, mais de cinquenta pesquisadores de treze entidades científicas e 21 grupos de trabalho do campo da saúde coletiva conduziram uma detalhada e sistemática análise das interfaces relevantes da pandemia e elaboraram setenta recomendações estratégicas e técnicas, dirigidas às autoridades políticas e sanitárias, aos gestores do SUS e à sociedade em geral. De imediato, o Conselho Nacional de Saúde acolheu a proposta e muito contribuiu para sua versão final, que foi apresentada às comissões do Congresso Nacional, ao Ministério da Saúde e a outras instâncias do SUS. O que se segue é um extrato desse esforço coletivo, na expectativa de ampliar sua difusão e acolhimento entre os setores interessados da sociedade. Em todo o mundo, diante do quadro de recessão causado pela pandemia, medidas proativas de promoção e geração de emprego e de proteção social aos trabalhadores têm sido colocadas em prática, como embrião de uma renda universal básica. A pandemia atingiu o Brasil num momento de reformas antipopulares, centradas na austeridade fiscal e na redução do papel do Estado na economia. Aqui, o suposto conflito entre economia e combate à Covid-19 tem sido o argumento com o qual setores políticos insistem numa agenda neoliberal socialmente perversa. Como resultado, programas de proteção social aprovados pelo Congresso Nacional, incluindo o auxílio emergencial para pessoas e famílias necessitadas, encontram dificuldades de viabilização pelos setores econômicos do governo federal e se mostram insuficientes para sustentar as medidas de controle da pandemia. As políticas de austeridade fiscal que agora fragilizam a estrutura de proteção social também desfinanciaram o SUS. Essa situação foi recentemente agravada pela inoperância do Ministério da Saúde no repasse de recursos destinados ao enfrentamento da pandemia. Ampliação de recursos financeiros é fundamental para ajus-


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tar a capacidade de resposta do sistema público de saúde à pandemia. Nesse sentido, é imprescindível que o piso orçamentário emergencial aprovado para o SUS seja incorporado ao orçamento de 2021. Apesar de subfinanciado e ameaçado pela agenda neoliberal, o SUS tem, sem dúvida, produzido respostas efetivas no combate à Covid-19. Em todos os níveis de atenção, gestores e profissionais de saúde vêm lutando arduamente para garantir acesso e qualidade dos cuidados de saúde. Não obstante, até agora, a maior parte das ações de combate à pandemia tem se concentrado nos níveis secundário e terciário de atenção à saúde do SUS. A atenção primária à saúde, que corresponde à porta de entrada no sistema, é fundamental para o controle da pandemia. Experiências bem-sucedidas em alguns municípios brasileiros confirmam a importância desse nível de atenção para maior cobertura e cuidado efetivo dos pacientes com Covid-19. Essas boas práticas precisam ser ampliadas para toda a rede do SUS, em todo o território nacional, com urgência! Mesmo nos níveis secundário e terciário de atenção, há muito o que implantar, ajustar e melhorar na rede assistencial do SUS. Problemas de continuidade e integração do cuidado, com pacientes deixando de receber o atendimento indicado no momento oportuno, ocasionam aumento evitável no número de pacientes graves. Muitos casos acabam evoluindo para óbito por falta de atendimento hospitalar de qualidade. O acesso regulado à atenção especializada precisa ser colocado em prática imediatamente, em todo o país, garantindo transporte adequado, oportuno e seguro aos usuários que dele necessitem. O manejo clínico de pacientes deve seguir protocolos elaborados por especialistas, adaptados às condições locais e integrados às redes de atenção à saúde. Tanto para a Covid-19 como para outros problemas de saúde, serviços de apoio diagnóstico e terapêutico precisam ser expandidos e agilizados. Em todo o país, leitos de retaguarda devem ser reservados para casos confirmados de Covid-19 que apresentem comorbidades, mesmo que não sejam graves. Isso inclui pessoas que residem sozinhas ou que vivem em contextos nos quais isolamento e distanciamento físico são impossíveis. Toda a capacidade hospitalar instalada (englobando serviços públicos e privados) deve obedecer a uma fila única para cuidados intensivos de casos graves. Além disso, o planejamento e a organização de cuidados hospitalares e domiciliares de reabilitação, que podem ser de longa

duração, já deveriam estar em curso. Cabe às autoridades sanitárias garantir o acesso a medicamentos e promover seu uso racional. Diante da profusão de promessas de tratamentos milagrosos, prescrevem-se medicamentos sem eficácia comprovada, enquanto faltam anti-inflamatórios, sedativos e antibióticos necessários para atendimento a pacientes graves de Covid-19. Não obstante as demandas e urgências da pandemia, gestores do SUS devem evitar, por meio de estoques estratégicos, que medicamentos essenciais faltem a pacientes com outras enfermidades, o que tem ocorrido em vários pontos da rede assistencial. Além disso, as autoridades sanitárias são responsáveis por garantir a observância de protocolos de segurança, com a provisão de equipamentos de proteção individual para trabalhadores e trabalhadoras de saúde e outros setores que atuam na linha de frente na rede de serviços de saúde. Infelizmente, nesse aspecto, o Brasil atingiu mais um vergonhoso recorde mundial, com altíssimo percentual de óbitos entre profissionais de saúde, especialmente os da área de enfermagem. No plano técnico, apesar de a efetividade na assistência médica ser fundamental para reduzir sofrimentos e salvar vidas, todas essas ações assistenciais são insuficientes para o controle da pandemia. No estágio em que se encontra a pandemia no país, medidas firmes e mais efetivas, nas esferas econômica, política e sanitária, já deveriam ter sido tomadas. Ações comunitárias de enfrentamento à pandemia precisam ser fomentadas, em paralelo a iniciativas de prevenção e promoção da saúde, especialmente entre as populações mais vulnerabilizadas. Como efetivamente ainda não o foram, além de necessárias, são agora urgentes para controlar a pandemia e seus impactos negativos. Na ausência de vacinas e tratamentos específicos para a Covid-19, cabe o recurso a estratégias não farmacológicas, como quarentenas e medidas de distanciamento físico, na amplitude necessária para cada cenário epidemiológico e contexto de cada região, estado, município ou localidade. Enquanto persistir a transmissão com característica epidêmica, autoridades sanitárias devem manter as diretrizes de distanciamento físico, uso de máscaras, disponibilidade de álcool em gel em locais públicos e transportes coletivos, proibição de aglomerações de qualquer natureza não relacionadas à manutenção de atividades essenciais e restrição de viagens domésticas e internacionais.

No caso brasileiro, a gestão dessas medidas tem-se dado por iniciativa de governadores e prefeitos, em muitos casos como reação a pressões econômicas locais, das quais se tornaram reféns. A flexibilização das medidas de quarentena, distanciamento físico e restrição de mobilidade deverá ser cogitada apenas onde e quando a situação epidemiológica permitir, com pré-requisitos precisamente definidos, conforme indicadores estabelecidos pela OMS e referendados por outras organizações internacionais de saúde. Nesse sentido, para a tomada de decisões corretas e prudentes, as autoridades devem instalar comitês consultivos com representação das comunidades científicas, profissionais e da sociedade civil. Além disso, tal flexibilização deve ser autorizada somente se for viabilizada uma efetiva capacidade de vigilância epidemiológica.

Com ação política, planejamento, organização e participação, é possível e viável superar a pandemia no Brasil A vigilância epidemiológica é uma das estratégias mais efetivas para controlar epidemias virais como a da Covid-19. Isso implica procedimentos de busca ativa de casos, com equipes capacitadas para testagem, por biologia molecular, de todos os casos suspeitos, visando identificar infectantes e bloquear cadeias de transmissão, até o limite da rastreabilidade, incluindo monitoramento dos que tiverem indicação de isolamento. Tais procedimentos devem ser conduzidos na atenção primária em saúde por equipes treinadas, conectadas e coordenadas pelos gestores do SUS, nos planos municipais, estatuais e federal. Casos leves ou assintomáticos devem ser identificados, orientados e rigorosamente monitorados, a fim de verificar o cumprimento estrito das instruções de isolamento, em instalações protegidas ou unidades de quarentena. Em alguns casos, deve-se viabilizar auxílio financeiro para isolamento individual em regime domiciliar. Ferramentas tecnológicas (como aplicativos de celulares) poderão ser utilizadas para localização, monitoramento e controle dos casos durante o período infeccioso, respeitando sigilo e confidencialidade.

UM SISTEMA ARTICULADO E INTEGRADO Um plano estratégico para controle da pandemia não significa uma mera

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lista de ações a serem realizadas nas diferentes esferas de governo ou nos distintos níveis de operação do SUS, de modo isolado ou cumulativo. Trata-se, na verdade, de um sistema articulado e integrado de estratégias, táticas e ações, destinadas a viabilizar métodos de controle dos processos epidêmicos, cuja funcionalidade e efetividade dependem de planejamento eficaz, gestão competente e coordenação fina e sensível. A condição de viabilidade (ou sucesso) de sua aplicação, num contexto de grande complexidade, reside justamente na capacidade de mobilização da população, incluindo usuários, profissionais e gestores num regime de coesão firme e solidária. Do ponto de vista científico, sabemos tudo o que se precisa para controlar a pandemia de Covid-19. Não podemos desperdiçar mais tempo do que já se perdeu, porque a demora em dar respostas implica perda irreparável de vidas. Se as autoridades continuarem negando a seriedade da crise atual, tomando decisões sem fundamento técnico, o terrível preço da pandemia recairá sobre a maioria da população brasileira, principalmente os estratos sociais mais vulneráveis. Uma pandemia como esta aumenta a vulnerabilidade social, aprofunda desigualdades econômicas, gera iniquidades em saúde e violações de direitos humanos, o que atinge diretamente grupos populacionais oprimidos e discriminados e afeta o conjunto da sociedade. Reafirmamos que, com ação política, planejamento, organização e participação, é possível e viável superar a pandemia no Brasil. Como primeiro passo, o governo federal precisa cumprir sua função primordial de condutor das políticas de controle da Covid-19 e redução de danos. Os outros poderes da República e todas as esferas de governo precisam atuar de modo coordenado e efetivo, cumprindo suas responsabilidades. A sociedade brasileira deve se mobilizar politicamente para enfrentar as crises da pandemia. Trata-se de uma luta política urgente e necessária pela democracia, com base nos princípios de justiça social, equidade e transparência, mediante cooperação e entendimento entre os setores progressistas.

*Naomar de Almeida Filho é professor visitante (IEA-USP), professor de Epidemiologia (ISC-UFBA) e vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco); Gulnar Azevedo é professora (Uerj) e presidente da Abrasco; Claudia Travassos é pesquisadora da Fiocruz e membro da diretoria do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes).


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UMA COMUNIDADE DE CIENTISTAS À QUAL AS START-UPS DE HOJE NÃO CONSEGUEM SE IGUALAR

As cidades secretas da pesquisa nuclear soviética Da bomba H à conquista espacial, a maioria dos grandes programas tecnológicos soviéticos surgiu entre os muros de cidades secretas. Cientistas, engenheiros e operários viviam isolados, em um universo relativamente preservado. Mas, desde o fim da URSS, essas cidades sofrem para encontrar um novo fôlego. É o caso de Sarov, um centro de pesquisa nuclear POR CHRISTOPHE TRONTIN*

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odo ano, faça chuva ou faça sol, 50 mil peregrinos vêm a Diveievo meditar sobre os passos de São Serafim (1754-1833). No meio do bosque, a rocha sobre a qual o asceta russo passou dias em oração; um pouco mais adiante, a fonte gelada onde se pode encher cantis e garrafas, e o lago adjacente onde os mais fervorosos se banham; por fim, a praça da catedral, diante da qual todos fazem o sinal da cruz. No entanto, Sarov e seu Mosteiro da Assunção, historicamente ligados ao santo e situados a 12 quilômetros de distância, estão interditados. A cidade, até recentemente conhecida pelo código Arzamas-16, está fechada ao público. Diveievo é uma cidade cercada por arame farpado e guardada por patrulhas militares. Ela foi apagada dos mapas do país durante o período soviético, e seus habitantes, escolhidos a dedo, sigilosamente incumbidos de “forjar o escudo atômico do país” após a Segunda Guerra Mundial. Hoje o sigilo não existe mais, e a cidade retomou seu nome original, mas o acesso a ela continua sendo estritamente regulamentado. Apenas seus habitantes, cerca de 100 mil, e visitantes previamente autorizados podem passar pelo posto de controle na entrada da cidade. Antes de cuidar de seus afazeres, os habitantes precisam passar seu crachá especial pelo leitor, digitar um código de seis dígitos e se submeter a uma verificação de identidade. Os visitantes admitidos precisam deixar nos armários do posto celulares, câmeras e outros dispositivos de comunicação; em seguida, são escoltados até o chefe de protocolo da empresa anfitriã, que se responsabiliza por seus deslocamentos até que eles saiam da cidade, pelo mesmo posto de controle, onde seus bens lhes são devolvidos. Curiosamente, a Igreja Ortodoxa aceita de bom grado essas restrições de acesso ao local de peregrinação. Em 2007, durante a celebração do sexagésimo aniversário da criação da

12ª direção do Ministério da Defesa Soviético, encarregada da energia nuclear militar, na Igreja de Cristo Salvador, em Moscou, o presidente Vladimir Putin falou da reconciliação ocorrida, em 1990, entre engenheiros militares e autoridades espirituais. Os cientistas nucleares de Sarov devolveram à Igreja os edifícios preservados do mosteiro e, em troca, o patriarca fez de Serafim seu santo padroeiro! A história de Sarov, no entanto, começa sob os auspícios de um regime que valorizava mais o conhecimento científico do que os mistérios da criação. Na Conferência de Yalta, em fevereiro de 1945, Stalin confessou ao primeiro-ministro britânico, Winston Churchill, e ao presidente dos Estados Unidos, Franklin Roosevelt, seu medo de que os governos de seus respectivos países acabassem causando conflitos com a União Soviética. Ele não imaginava que seus temores se confirmariam tão cedo: mal conquistaram Berlim e os Aliados já discutiam a oportunidade de aproveitar sua superioridade estratégica para acabar com a União Soviética, consideravelmente enfraquecida pela guerra. Em 16 de julho, a ameaça ficou mais clara: o Projeto Manhattan teve sucesso e a primeira

explosão nuclear da história sacudiu o deserto do Novo México. Em agosto, veio a aniquilação de Hiroshima e Nagasaki, que varreu qualquer possível dúvida a respeito da determinação dos Estados Unidos em utilizar esse novo tipo de arma. O governo soviético encarou o evento como um aviso direto: em um momento no qual o país estava enfraquecido pelo sacrifício de quase 26 milhões de soviéticos e pela destruição de sua indústria, a ameaça representada pelos aliados de ontem não lhes parecia menos importante do que aquela representada, quatro anos antes, pelos nazistas. Assim, o Conselho de Ministros, reunido em 20 de agosto de 1945, tomou duas resoluções históricas: investir em pesquisa para restabelecer a paridade estratégica com o Ocidente e fazê-lo sob o máximo sigilo, para o inimigo não tentar acabar logo com isso. No final de 1945 teve início a busca pelo lugar ideal onde centralizar essas pesquisas ultrassecretas. Após uma pesquisa bastante longa, o grupo de trabalho encarregado de executar o projeto, sob a liderança de Lavrenti Beria, decidiu-se pela vila de Sarov, localizada 350 quilômetros a leste de Moscou. Sarov, assim como outras aldeias e vilas – cerca de 9.500 © Yves Alarie/Unsplash

Com a lei do confinamento, Sarov tornara-se outra vez fechada ao resto do mundo

habitantes na época –, foi retirada da administração territorial da Mordóvia e apagada de todos os mapas e documentos oficiais. Então teve início a triagem dos habitantes da vila. Aqueles que trabalhavam na fábrica nº 550, especializada na produção de obuses, ficaram lá, e os demais foram realocados pelas autoridades fora da zona proibida. Com o afluxo de trabalhadores e especialistas, a vila evoluiu para uma pequena cidade: começaram a ser construídos imóveis residenciais, depois foi surgindo a necessidade de um hospital, de um estádio, de um centro cultural, uma biblioteca, um teatro, um parque. A construção avançava de maneira aleatória, a toque de caixa, sem plano ou projeto. Para ganhar tempo, parte dos laboratórios foi instalada nos prédios do mosteiro. Entre os trabalhadores empregados no local, havia representantes do “contingente especial” (como eram denominados os presos nos documentos oficiais). Antes de qualquer recrutamento, os órgãos de segurança verificavam os antecedentes do candidato “até a terceira geração”, fosse ele um engenheiro do gabinete de projeto, o KB11, ou um operário designado para uma das diversas instalações especializadas. Os funcionários do complexo só podiam sair com permissão do serviço de segurança. As saídas por motivos pessoais eram liberadas a conta-gotas. Férias fora da área eram proibidas, o que era remediado com uma compensação salarial. Grande privilégio na época, as lojas de Sarov eram bem mais abastecidas do que as do resto do país. A cidade recebeu o codinome Arzamas-16. A partir daí, chamá-la pelo nome tradicional passou a ser considerado divulgação de informações secretas. A correspondência privada era feita por meio de uma caixa postal especial chamada “Moscou Center-300”. Além disso, os nomes das ruas da cidade eram os mesmos de ruas de Moscou, para que os funcionários da KB-11 eventualmente em trânsito pudessem passar por controles de identidade sem que o agente policial desconfiasse de seu verdadeiro local de residência. Essa necessidade de sigilo e confinamento teve efeitos psicológicos muito diferentes sobre as pessoas: o físico Andrei Sakharov, em suas memórias,1 fala de uma “privação de liberdade que pesava sobre ele”. Mas há quem, ao contrário, elogie a flexibilidade dos funcionários encarregados da segurança em casos-limite...2 A lei do confinamento era dura e, para esses engenheiros, Sarov tornara-se novamente um mosteiro fechado ao resto do mundo. “A fé verdadeira


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não pode permanecer ociosa”, teria declarado Serafim; “aquele que realmente crê tem sempre algo a fazer.” Essa máxima servia como uma luva para os cientistas de Sarov, que passavam suas raras horas de lazer conversando sobre massa crítica e concentrador de nêutrons.

SUMIDADES DA PESQUISA DE BASE Em 12 de março de 1947, para dar um impulso adicional às equipes de pesquisadores que, exaustos, matavam-se de trabalhar, o presidente dos Estados Unidos, Harry Truman, definiu sua famosa doutrina, inaugurando a Guerra Fria. Em Washington, seu Estado-Maior preparava o Plano Dropshot, formalizado no início de 1950, que planejava um ataque-surpresa, “com o lançamento de duzentas a trezentas bombas atômicas nos principais centros industriais, militares e científicos da União Soviética”. O resultado do trabalho coordenado dos cientistas mais eminentes do país, engenheiros e construtores, bem como dos serviços de inteligência e dos “espiões atômicos” foi a criação, em apenas quatro anos, da primeira bomba atômica soviética, cujo codinome era RDS 1. Algumas décadas depois, um dos líderes do programa, Yuli Khariton, escreveu sobre o período: “Estou perplexo e respeitosamente me curvo diante daquilo que nosso povo foi capaz de alcançar entre 1946 e 1949. [...] [Esse] período foi de tal intensidade, de tal heroísmo, de tal criatividade e abnegação que é impossível descrever. Quatro anos após o fim de uma luta mortal contra o fascismo, meu país conseguiu pôr fim ao monopólio dos Estados Unidos sobre a bomba atômica”.3 Dando prosseguimento à façanha, em mais quatro anos as equipes de Sarov foram além dos Estados Unidos, desenvolvendo a primeira bomba H. Isso, cabe enfatizar, enquanto o país, devastado e exaurido pela guerra, realizava paralelamente sua reconstrução, ao passo que os Estados Unidos, ao contrário, haviam enriquecido, dispondo de meios financeiros colossais e de um aparato militar-industrial inigualável. Em 1950, a economia norte-americana representava 27% do PIB mundial, contra 9,6% da União Soviética. Esse modelo de cidade fechada construída em torno de uma “empresa-cidade” (gradoobrazuyushchee predpriyatie) se repetiu em inúmeros elos da indústria nuclear soviética. Enquanto Sarov era o centro do projeto atômico, onde se acotovelavam as sumidades da pesquisa de base, dezenas de outros locais análogos deram sua contribuição para o esforço nacional. Assim, já em 1945, diversas pequenas cidades dos Urais e da

Sibéria foram escolhidas para fornecer matéria-prima para os experimentos. Em 1946, um protótipo de reator projetado pelo instituto técnico-científico de Mayak produzia plutônio de qualidade militar na cidade fechada de Ozersk, perto de Chelyabinsk (codinome Chelyabinsk-65). E, em 1949, outra cidade fechada, chamada Tomsk-7, lançou-se à produção, também no mais alto sigilo, de urânio 235. Aqui, a pesquisa foi menos vanguardista e mais orientada à resolução de tarefas práticas ditadas por Arzamas-16 (Sarov). Prisioneiros políticos ou comuns do gulag foram mobilizados para os trabalhos mais perigosos, como a extração de minério de urânio e o manuseio de material físsil, seguindo o princípio cinicamente expresso por Stalin: “Até os inimigos do povo têm um papel a desempenhar na construção do socialismo”. Em 1945, relata o historiador Yuri Fyodorov, treze campos de trabalho administrados pelo NKVD (Ministério do Interior) com 103 mil prisioneiros foram colocados à disposição do projeto atômico. Depois, uniram-se a eles outros 190 mil prisioneiros designados à extração de diversos minérios.4 Quantos conseguiram um dia voltar para casa? Com a pesquisa teórica em bom andamento e o fornecimento de matérias-primas garantido, era preciso providenciar uma área de testes em uma zona desértica, com condições geológicas adequadas. A estepe cazaque, perto da cidade de Semipalatinsk, foi escolhida. Novamente, instalações colossais: em torno de todo o epicentro planejado, prédios, bunkers e estações de metrô foram escalonados para a avaliação do poder destrutivo do dispositivo. Os trabalhadores da área, além de biólogos, físicos e outros especialistas mobilizados para estudar os efeitos destrutivos da onda de choque e da radiação, foram instalados a 100 quilômetros do ponto de teste, dando origem a mais uma cidade sujeita ao mesmo regime de sigilo absoluto: Moscou-400.

SALVAR A PÁTRIA Não é necessário ter autorização para visitar essa vila, cuja população mal passa de mil pessoas. Chamada de Kurchatov, em homenagem ao diretor científico do programa nuclear soviético, o local perdeu o brilho de outrora, mas ele ainda existe aqui e ali, nas ruas feitas de lajes de concreto bordejadas por árvores, nos edifícios obsoletos de estilo stalinista e nos poucos hotéis de estilo antigo. A cidade ainda abriga o Instituto de Física Nuclear, que faz testes e modelagem, em cooperação com uma equipe de cientistas japoneses, relacionados a situa-

ções de crise, em um reator de pesquisa localizado no antigo polígono de testes. Outro sobrevivente da era soviética, o Instituto de Segurança Radiológica ainda está fechado ao público, mas é possível visitar o pequeno Museu do Polígono, onde mapas do Estado-Maior e fotos em preto e branco ajudam a contar a epopeia da bomba soviética. Aparelhos de medição sísmica, contadores Geiger, câmeras da época e até o posto de comando de onde partiria a ordem de fogo – tudo está lá, alinhado, empoeirado, solene. Desgastado. No andar de cima, o guia convida a meditar no “escritório de Kurchatov”, ou pelo menos aquele onde o diretor trabalhou durante suas breves estadias no local, por ocasião dos testes. Uma incubadora chamada Parque Tecnológico Nuclear tenta ressuscitar a vocação científica da cidade... A rede de cidades fechadas do projeto atômico constituía uma vasta comunidade de cientistas, pesquisadores e engenheiros, inteiramente voltada a um único objetivo: salvar a pátria dos novos perigos que a ameaçavam. “Por mais paradoxal que possa parecer, essa cidade fechada às outras ligava-se por milhares de filamentos a centenas de organizações e empresas dentro da superpotência, muito mais fortemente do que muitos dos gigantes da indústria nacional localizados em grandes cidades”, escreve o historiador Vladimir Matyushkin, em sua história de Sarov. “E, sem dúvida, entre seus habitantes havia quem sentisse muito mais fortemente do que seus concidadãos soviéticos o pulso do resto do mundo, do planeta. Seu lugar na história, sua conexão com os eventos do mundo, cada habitante da cidade sentiu, talvez de maneira inconsciente, e se orgulhou disso.”5 No entanto, essa época heroica não podia durar para sempre, e a mobilização total das forças acabou levando ao esgotamento do sistema. De veterano imperturbável a secretário-geral mimado, a direção soviética acabou dobrando-se a um rígido conformismo, enquanto o aparato industrial ficou estagnado e se deteriorou. Cansada de ser constantemente empurrada à exploração por seus dirigentes, a população começou a recuar diante do obstáculo. Até que foi ela quem se recusou a apoiar por mais tempo um regime incapaz de lhe fornecer, em vez do ideal fantasma da igualdade e da fraternidade, os bens de consumo com os quais sonhava e dos quais fora incessantemente privada em nome de emergências e crises. O povo afundava na desilusão e até no alcoolismo. Gorbachev, que diagnosticou corretamente o problema, não foi capaz de contê-lo.

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A década de 1990 foi perdida tentando-se criar uma economia de mercado sobre os escombros dos planos quinquenais, ao mesmo tempo que se desenrolava uma arriscada tentativa democrática. Economistas russos e estrangeiros avaliavam os méritos desse ou daquele tipo de transição, enquanto os oligarcas, mais prosaicos, compravam a preço de banana empresas e complexos de petróleo, siderurgias, fundições de alumínio, minas, usinas químicas. As falências se multiplicaram, o desemprego explodiu e as empresas que resistiam à tormenta pagavam salários em rublos fortemente desvalorizados. O salve-se quem puder estendeu-se a todos os setores da sociedade, que, um após o outro, pararam de ser financiados, da saúde à educação, passando pela polícia e pela justiça. O ódio crescia, o separatismo vicejava. A Guerra da Chechênia despertou, na população chocada e humilhada, não entusiasmo, mas uma sede doentia de vingança. Quando todos esperavam uma rápida chamada ao dever da república indócil – “Tarefa de duas horas para uma divisão paraquedista”, prometeu Pavel Grachev, ministro da Defesa –, o Exército se viu preso em um atoleiro de sangue. Questionados sobre o assustador balanço demográfico dos expurgos, repressões e outros campos de internação do período soviético, os comunistas russos, transformados em uma opção eleitoral entre outras, destacaram as cicatrizes, tão absurdas a seus olhos, que o liberalismo de choque deixou na pirâmide etária ao longo dos quinze anos após a queda do regime soviético: entre 1992 e 2008, as mortes superaram os nascimentos em 11 milhões.6 Estava em questão a degradação do serviço de saúde, a explosão da criminalidade, o aumento de suicídios, acidentes e catástrofes de todos os tipos, além da Guerra da Chechênia. De 1990 a 1994, a expectativa de vida dos russos caiu drasticamente, passando de 65 para 58 anos, no caso dos homens, e de 74 para 71 anos, no caso das mulheres, voltando em seguida a aumentar vagarosamente. Nesse contexto, as cidades fechadas pareceram as últimas joias do império. Espaços relativamente intocados, onde estamos na companhia de gente de bem, a salvo, se não da corrupção, pelo menos de suas formas mais perversas, da máfia, do crime. Acima de tudo, o aparato científico soviético, em toda parte vendido e dilapidado, aqui permanece protegido da ganância dos novos convertidos ao liberalismo. As pessoas continuam a se ocupar de tarefas essenciais, como a produção de ma-


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terial físsil (para uso militar e civil), o reprocessamento de combustíveis, o desarmamento e o desenvolvimento de novas armas. Essas cidades, originalmente projetadas como simples dormitórios destinados aos funcionários da “empresa-cidade”, que representava quase todo o emprego local, se diversificaram. Surgiram lojas, restaurantes, cinemas, shopping centers e até agências imobiliárias e de viagens. Como as atividades de pesquisa perderam sua intensidade com a catástrofe econômica pós-soviética, a força de trabalho migrou para empregos civis mais lucrativos. Os serviços públicos (fornecimento de energia, gestão da água, transporte público), assim como as instalações de férias, culturais e esportivas, agora são de responsabilidade do município ou foram transferidos para o setor privado. Até as cidades científicas, que mantiveram o status de cidades fechadas, se normalizaram, mantendo, porém, seu particularismo cultural. Proponha a abertura da cidade a um morador de Sarov e ele logo responderá: “Jamais!”. Embora hoje as vantagens dos tempos soviéticos sejam coisa do passado, mesmo que o sigilo não exista mais e todos possam se comunicar com o resto do mundo, os habitantes das cidades fechadas gostam de se manter entre os seus. “Os veteranos da fase heroica partiram para um mundo melhor, mas a maioria de seus filhos e netos ficou por aqui. Metade deles trabalha em empresas-cidades, onde ‘dinastias” de pesquisadores e engenheiros atuam em benefício do progresso técnico em vários setores, civis e militares. Modernizados, os institutos de pesquisa atômica e as plantas de condicionamento e reprocessamento de combustível físsil continuam sua busca pela “energia atômica civil limpa”. Mesmo que esse ideal não seja alcançado, pelo menos eles agora ope-

ram sob o controle da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) e de acordo com padrões muito diferentes daqueles adotados nos primórdios, quando o rio era considerado a melhor forma de se livrar de materiais perigosos.

MULTIPLICAÇÃO DOS TECNOPARQUES A outra metade encontrou trabalho nas várias start-ups e empresas subcontratadas pela companhia principal. Em Sarov, por exemplo, a incubadora Binar hospeda há quinze anos os mais diversos projetos de alta tecnologia: lentes intraoculares, instrumentos de medição sem contato de nivelamento de chapas na saída do laminador, sensores de segurança para centrais nucleares. O nível de estudos significativamente mais elevado do que a média nacional, combinado a uma atmosfera serena e estudiosa da cidade confinada, bem como a proximidade de empresas ultraespecializadas, tudo isso favorece a proliferação de projetos de alta tecnologia. Isso significa ainda uma taxa de desemprego menor que a de outras cidades de porte semelhante (4%, contra 6% em escala nacional).7 Essa subcultura “confinada” também é mantida pelo Clube das Cidades Fechadas, que organiza intercâmbios, estágios e acampamentos de verão para seus habitantes. Parte dessas antigas cidades secretas, porém, mudou para o direito comum, como Obninsk, onde foi desenvolvida a primeira usina nuclear civil, e Dubna, que abriga um acelerador de partículas e um centro de pesquisa de base, ou ainda Zagorsk-7, cujo centro de pesquisa sobre armas bacteriológicas foi desmontado; ou então as cidades que cercam as instalações de pesquisa espacial, retornadas em 1986 à “vida civil”. Só continuam fechadas as cidades ligadas ao Ministério da Defesa ou à Rosatom,

empresa estatal que reúne o conjunto das atividades civis atômicas – cerca de quarenta. Pouco a pouco, o arquipélago da ciência se dissolve. A Rosatom supervisiona uma dúzia de cidades fechadas e seus institutos de pesquisa, centros de enriquecimento e reprocessamento de combustíveis. No Irã, na Índia, na China e em Bangladesh, sua carteira de pedidos excede os US$ 100 bilhões, e ela tem trinta projetos de usinas em construção. No setor espacial, as tecnologias russas, rústicas porém robustas, provaram seu valor e representam um elo fundamental da cooperação internacional concentrada na Estação Espacial Internacional. Muitos sistemas, de módulos de segurança a motores, são utilizados há tempos em foguetes europeus e norte-americanos. O balanço de outras tentativas de avanço tecnológico mais recentes é menos brilhante, como na área de inteligência artificial, supercomputadores, nanotecnologia e pesquisa médica. Criado em 2011 com fundos públicos por Anatoly Chubais (um dos ideólogos da “terapia de choque” ao estilo russo), a fim de incentivar o desenvolvimento de tecnologias baseadas em nanopartículas, a empresa estatal Rosnano, por exemplo, não produziu a revolução tecnológica anunciada por seus promotores, mas foi apontada pelo Tribunal de Contas por obter uma isenção fiscal injustificada. A Rússia não seria mais capaz de realizar as façanhas do programa científico soviético do pós-guerra, uma época muito mais difícil e dolorosa que a atual? Teria a transição para o capitalismo cortado a tal ponto suas asas? Tentativas não faltam. Desde o início do século, cada cidade, cada região, cada grande empresa pública que se preze orgulha-se de ter sua incubadora, seu tecnopolo, seu centro de pesquisa, sua incuba-

dora de start-ups. Às vezes apoiados por institutos de pesquisa, às vezes baseados em financiamento público-privado, de meados da década de 1990 para cá esses “tecnoparques” brotaram como cogumelos depois da chuva. No final de 2019, eles eram 169, oferecendo a empreendedores criativos um ambiente considerado favorável ao desenvolvimento de seu projeto. Porém, como observa ano após ano a associação Technoparks, a taxa de sucesso das start-ups permanece bastante baixa (27% das empresas sobrevivem ao fim de seu período de incubação, contra 87% nos Estados Unidos e 88% na Europa). Talvez seja um efeito da lenda, às vezes idealizada na Rússia, da start-up iniciada em uma garagem por pequenos gênios desconhecidos prestes a revolucionar o mundo. É claro que Bill Gates, Steve Jobs e outros Mark Zuckerbergs não desenvolveram as tecnologias cuja promoção asseguraram de maneira brilhante. Porque o ingrediente chave do sucesso – é o que nos lembra a história das cidades fechadas, assim como a do Vale do Silício ou do MIT – não é a garagem, mas uma pesquisa básica de longo prazo financiada com fundos públicos, o exato oposto desse enxame de tentativas desordenadas.  *Christophe Trontin  é jornalista. 1   A ndrey Sakharov, Souvenirs [Memórias], Alfa-Kniga, Moscou, 2019 (edição original: 1978). 2   V. I. Juchkine e A. N. Tkatchenko, citados por Vladimir Matyushkin, A vida cotidiana em Arzamas-16 (em russo), edições Molodaya Gvardia, Moscou, 2008. 3   Yuri Khariton e Yuri Smirnov, Mythes et réalités du projet atomique soviétique, Arzamas-16 [Mitos e realidades do projeto atômico soviético, Arzamas-16], VNIIEF (Instituto Pan-Russo de Pesquisa Científica em Física Experimental), 1994. 4   Yuri Fyodorov, “Le Goulag atomique” [O gulag atômico], Tradition Russe (jornal on-line), Praga, 30 set. 2015. 5   Vladimir Matyushkin, op. cit. 6   Fonte: Goskomstat. 7   Fonte: Rosstat, Faikov.

C OLEÇÃ O

CLÁSSICOS DA LITERATURA UNESP Esta coleção constitui uma porta de entrada para o cânon da literatura universal e marca a estreia da Editora Unesp nesta área. Não se pretende disponibilizar edições críticas, mas simplesmente volumes que permitam a leitura prazerosa de clássicos. A seleção de títulos é conscientemente multifacetada e não sistemática, permitindo, afinal, o livre passeio do leitor.

A relíquia

Contos

Histórias extraordinárias

Quincas Borba

Triste fim de Policarpo Quaresma

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NOS ESTADOS UNIDOS, O GRANDE PAVOR DEMOCRÁTICO

Os populistas norte-americanos contra o lobby dos médicos A negligência de Donald Trump e Jair Bolsonaro diante da crise sanitária reforçou a ideia de que os “populistas” seriam hostis à ciência, particularmente a médica. A história dos Estados Unidos e a do Canadá lembram o contrário: os populistas lutaram para democratizar o saber e a saúde, enquanto as corporações de médicos trabalham para reservá-los aos ricos POR THOMAS FRANK*

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este ano de pandemia, a crise política que lhe serve de fundo teria relação, segundo dizem, com a obstinação do povo norte-americano em rejeitar a autoridade do discurso científico. Veja aquele pessoal brincando na piscina do restaurante, perto do Lago de Ozarks (Missouri), enquanto uma epidemia terrível varre o país... E toda aquela gente que espalha as mais absurdas teorias da conspiração, compartilha recomendações sanitárias fantasiosas nas redes sociais, faz compras sem máscara, lança fogos de artifício no meio da rua... E o que dizer do presidente imbecil, que ignora as recomendações de seus próprios especialistas, passa o tempo apontando os responsáveis sem nunca se incluir entre eles e chegou a aconselhar as pessoas a tomar desinfetante, já que funciona tão bem na limpeza da cozinha e do vaso sanitário? Essa batalha implacável entre “ignorantes” e “iluminados” está há anos no centro da vida política dos Estados Unidos.1 Para muita gente, os democratas, os “progressistas”, são de longe os mais alinhados com a realidade objetiva: eles ouvem religiosamente as opiniões dos ganhadores do Prêmio Nobel e outros laureados por prêmios científicos de excelência. Já os republicanos viveriam em outro mundo – um mundo de fábulas e lendas, onde a verdade não tem valor. Em tempos normais, nosso clube de comentaristas, autoproclamados formadores de opinião, aproveita-se da disputa para classificar cada lado. Nós somos os espertos! Eles são os estúpidos! Mas, com a pandemia, o confronto de repente ganhou outra nitidez. Os norte-americanos respeitáveis proclamam com voz trêmula sua eterna e inabalável confiança na ciência, e as autoridades democratas exortam uma nação de joelhos a seguir os conselhos dos especialistas como se fossem a palavra divina.

Nossos formadores de opinião também têm uma teoria para explicar os comportamentos irresponsáveis observados entre alguns grupos, que favorecem a propagação do vírus. Esses desgarrados não são apenas idiotas, garantem eles: agem sob a influência de uma verdadeira doutrina anticiência – o “populismo”. Os partidários dessa fé – os “populistas”, portanto – são asnos incultos ressentidos contra aqueles que são mais instruídos, devotando-lhes o mais profundo desprezo.2 Eles preferem confiar em palpites a acreditar no saber livresco, desdenham das recomendações dos profissionais de saúde, exaltam a sabedoria das multidões – e, é claro, são racistas. O populismo é o inimigo da ciência: está em guerra contra o pensamento racional. Ele é cúmplice na propagação do mal, se não for o próprio mal.

PRIVILÉGIOS DO SABER Eis um pequeno silogismo que a classe intelectual norte-americana não se cansa de nos apresentar – e como poderia ser diferente, se ele é tão sedutor e acaricia as vaidades? A ciência médica é a verdade, o populismo está errado: essa evidência é tão flagrante que glorificar a primeira e condenar a segunda se tornou um tema banal, alimentando artigos e editoriais até a exaustão. Acontece que tudo isso é um enorme equívoco. Se os Estados Unidos se mostram tragicamente incapazes de lidar com a ameaça do novo coronavírus, isso não é decorrência fundamentalmente da extraordinária estupidez de Donald Trump – embora ela tenha seu papel. Isso se dá em razão de um sistema: o sistema de saúde dos Estados Unidos. É ele que pisoteia a própria ideia de saúde pública e transforma o acesso à saúde em um luxo reservado a poucos. É ele que joga as pessoas na miséria por causa de uma simples perna quebrada, que recusa atendimento a quem não tem seguro, que retira o seguro de quem es-

tá desempregado – e a pandemia está tirando o emprego de milhões de pessoas. Por fim, é ele que, no dia em que a cura para a Covid-19 estiver disponível, a venderá a preço de ouro. E esse sistema é o que é porque a “medicina organizada”, apoiada no prestígio de que goza a especialização profissional, luta há quase um século para garantir que ele não mude. Ao contrário, durante todo esse período, foi das fileiras populistas que saíram os impulsos de reforma que tentaram – sem sucesso – transformá-lo, a fim de que ele esteja a serviço da maioria. Em outras palavras, nossos especialistas, acadêmicos e pensadores muito sérios e supremamente inteligentes erraram em tudo. É precisamente porque nos prostramos demais aos pés das recomendações científicas que a saúde pública se tornou um sonho inatingível. E a cura para o mal que nos atinge não está em outra parte senão nesse populismo tão odiado e temido pelos especialistas. Para entender o que está em jogo, precisamos começar definindo o termo. O vocábulo “populista” foi adotado em 1891 nos Estados Unidos, no Kansas, por membros de um jovem partido agrário. Com reivindicações que iam do abandono do padrão ouro à luta contra os monopólios, passando pela nacionalização das ferrovias, o movimento logo ganhou amplitude, a ponto de seu sucesso, por um tempo, parecer garantido. Mas isso não se confirmou: em menos de dez anos, o Partido Populista foi dizimado. Sua influência, porém, atravessou gerações, já que algumas de suas ideias podem ser encontradas no Partido Socialista Americano, no New Deal das décadas de 1930 e 1940 e nas campanhas presidenciais de 2016 e 2020 de Bernie Sanders. A ascensão e queda dos populistas norte-americanos – e aqui falo daqueles que cunharam o termo – têm sido um assunto muito apreciado pelos historiadores com uma veia ro-

manesca, e inúmeras obras foram dedicadas a ele. Todos esses trabalhos destacam um fato curioso: os representantes dessa corrente nada tinham contra a ciência ou contra a educação. Pelo contrário, seus discursos em defesa da tecnologia, do conhecimento e da educação eram tão sinceros e floreados que ficamos quase constrangidos em lê-los hoje. Por que esses panegíricos? Porque os populistas se consideravam perfeitamente alinhados ao progresso científico do fim de século, defendendo princípios como o Estado de bem-estar e a intervenção do poder público. Paralelamente, estavam em constante luta contra as elites econômicas e intelectuais de seu tempo, com tantos especialistas declarando ver a mão de Deus na ordem estabelecida. Para os populistas, todas as formas de privilégio eram suspeitas, incluindo o prestígio no qual as profissões superiores baseavam sua autoridade. Um exemplo vívido dessa ideia está no célebre Jardim do Éden, localizado na cidade de Lucas, no Kansas: um parque de esculturas, construído na década de 1910, que é uma das primeiras tentativas de popularizar teorias populistas e socialistas. Entre suas principais atrações, há uma cena chamada “A força de trabalho crucificada”, na qual um trabalhador é torturado até a morte pelos mais eminentes membros da comunidade: um banqueiro, um advogado, um médico e um padre. Em suma, a visão de mundo dos primeiros populistas era radicalmente democrática: o povo tinha o primado de tudo, e o justo papel dos especialistas em uma democracia deveria limitar-se a servir e informar os cidadãos. Os populistas do final do século XIX eram pouco loquazes a respeito da política de saúde. É preciso dizer que a medicina norte-americana ainda não era o labirinto burocrático terrivelmente caro que conhecemos hoje. No entanto, assim que os preços


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dos medicamentos passaram a subir, nas décadas seguintes, começaram a florescer diversos sistemas alternativos mais democráticos, imaginados em conjunto por agricultores, organizações sindicais e instituições de caridade, com um único objetivo: tornar a assistência médica acessível às classes trabalhadoras. Entre as realizações cujo crédito deve ser dado aos “neopopulistas”, há uma pela qual tenho um fraco. Ela nasceu em 1929, em Elk City, Oklahoma, estado onde as teses populistas tiveram forte ressonância no final do século anterior. Trata-se do estabelecimento de um sistema cooperativo de saúde no qual camponeses e suas famílias, em troca de uma pequena taxa anual, tinham garantia de acesso a médicos, dentistas e um hospital local com equipamentos modernos. Os membros da cooperativa – ou seja, todo mundo, mas sobretudo os trabalhadores da terra – eram responsáveis por eleger seu comitê de gestão e gerenciar o aspecto econômico. Esse sistema foi inventado por um certo Dr. Michael Shadid, que decidiu montá-lo com a ajuda da seção local da Farmers Union, uma organização sindical camponesa. A presença dessa entidade confirma a dimensão populista do projeto, pois ela era uma descendente mais ou menos direta do partido criado na década de 1890. Mas a história pessoal do Dr. Shadid é ainda mais instrutiva. Nascido no Líbano, Michael Shadid emigrou para os Estados Unidos em 1898. Desde o início de sua carreira, ele exerceu a medicina junto a agricultores que não tinham um tostão. Ele também teve uma breve adesão ao Partido Socialista. Apesar de suas convicções políticas incomuns, ele não era nada charlatão – pelo contrário, suas exigências em matéria de qualidade do atendimento eram particularmente altas. Shadid destacava-se de seus pares pela denúncia de uma prática da medicina que considerava predatória, especialmente nas pequenas cidades de Oklahoma. Buscando se distanciar desse modelo, ele se dizia um “médico do povo”3 capaz de resolver o eterno quebra-cabeça dos Estados Unidos, que até hoje continua sem solução: cuidados médicos caros e saúde ruim para a população. “Em tempos de guerra e de paz, de crise e de abundância, de tempestade e de calmaria, há fatos que não mudam: os pobres adoecem mais cedo, ficam mais tempo doentes e são os que menos recebem cuidados médicos, embora sejam os que mais precisam. Alguns são pobres porque estão doentes. Outros estão doentes porque são pobres”, escreveu.4

AMEAÇAS DE REPRESÁLIA Em outra obra, Shadid afirma agir em nome do “povo dos Estados Unidos”, lutando “para escapar à dominação dos privilégios, que está levando o país para o caminho da ditadura e do caos”. Citando essas palavras em um livro publicado em 1939, o jornalista James Rorty comentou: “São propostas simples, mais populistas do que socialistas, que atingiram em cheio os agricultores de Oklahoma, porque falavam exatamente daquilo que eles viviam”.5 É bastante claro que, quando falava em “privilégios”, Shadid estava pensando na American Medical Association (AMA, Associação Médica Americana), a organização profissional dos médicos. Seus membros simplesmente declararam guerra a ele por ter ousado abrir um hospital cooperativo, lançando contra ele os estratagemas mais diabólicos. Para eles, o plano do reformador neopopulista era “imoral”, pois planejava confiar decisões econômicas a não iniciados. Após tentar cassar sua licença, a AMA expulsou Shadid de sua seção local, fazendo-o perder assim seu seguro de responsabilidade civil. Ela também conseguiu dissuadir a maioria dos profissionais que ele tentou contratar de se juntar a ele. Os comentaristas de hoje certamente descreveriam esse episódio, com ar de alta gravidade e caretas de desaprovação, como uma guerra do populista Shadid contra a ciência. Mas seria muito mais preciso falar em uma “guerra da ciência contra o populismo”. Essa guerra durou muitos anos, e a AMA conseguiu combater e enterrar, uma após a outra, todas as propostas para democratizar o acesso aos cuidados de saúde. Seus membros organizaram, por exemplo, um boicote a uma fazenda de gado leiteiro a fim de induzir uma fundação de caridade vagamente ligada a ela a encerrar suas pesquisas no campo da “economia da medicina”, como se chamava então. O historiador Paul Starr também conta que, em Washington, onde uma cooperativa de saúde semelhante à de Elk City acabara de surgir, a AMA “ameaçava todos os médicos envolvidos na iniciativa com represálias, agia para impedir que conseguissem consultas ou que pacientes lhes fossem encaminhados pelos colegas e conseguiu convencer todos os hospitais do Distrito de Columbia a lhes negar a prerrogativa de admissão [isto é, o direito concedido a um médico, em virtude de sua condição de membro pertencente a um estabelecimento de saúde, de admitir um paciente em um hospital ou centro médico para fornecer-lhe diagnóstico ou tratamento]”.6

Esse ataque rendeu à AMA um processo baseado na legislação antitruste, mas não bastou para fazê-la parar. Afinal, ela não reunia os melhores especialistas de seu tempo, que estavam apenas exigindo ser tratados com o respeito que lhes era devido? Seu presidente chegou a ponto de protestar, em 1938, contra a abertura de uma investigação federal sobre a reforma do sistema de saúde. Ele afirmava que toda a hierarquia social fica pervertida quando se aceita que beócios peçam alto e bom som remédios de curandeiros, exigindo que profissionais os prescrevam. “É uma prática da medicina que não é científica nem economicamente racional”, afirmava com desprezo. É realmente impressionante o que a ética profissional é capaz de impedir quando os profissionais sentem que seu status social está ameaçado. Reeleito presidente em 1948, após uma campanha muito mais populista do que a de Donald Trump em 2016, Harry Truman decidiu concentrar seu segundo mandato na cobertura universal de saúde. Poucos meses depois de assumir o cargo, ele apresentou um programa para isso, louvando as façanhas da medicina moderna, ao mesmo tempo que destacava que ela havia provocado a disparada dos preços dos medicamentos. “Dessa forma, os cuidados médicos estão inacessíveis não mais apenas aos pobres, mas a todos os grupos de renda, com exceção das mais elevadas”,7 declarou em 1949 em discurso ao Congresso. O contra-ataque da AMA foi imediato. Criticando o “sistema nocivo, típico das nações decadentes”, ela argumentou que o plano de Truman colocaria os médicos, representantes superiormente qualificados de uma profissão altamente respeitada, sob a batuta de “uma enorme burocracia de administradores públicos, funcionários, contadores e comissões leigas”. Determinada a impedir esse presidente ignaro, a AMA convocou seus membros (bastante abastados, em sua maioria) a contribuir, cobrando uma cotização excepcional e, assim, reunindo um fabuloso tesouro de guerra. Esses fundos lhe permitiram contratar os serviços de uma agência californiana chamada Campaigns Inc., pioneira em comunicação política, a quem confiou a missão de liderar suas forças em campo. Logo o país se viu afogado em uma avalanche de panfletos, correspondências e cartuns abjetos, os quais sugeriam que o advento de uma “medicina socializada” significaria o irremediável fim da liberdade individual. Por causa desses métodos, que infelizmente se tornaram clássicos, o projeto de Truman fracassou, assim

como todas as tentativas ulteriores de estabelecer um sistema de saúde realmente universal nos Estados Unidos. Mas foi no Canadá que a guerra da ciência contra o populismo teve seus eventos mais explosivos, como nos recorda o historiador Robert McMath.8 Em várias províncias das pradarias canadenses, os ecos da revolta populista norte-americana da década de 1890 permaneceram por décadas. Durante a Grande Depressão, a personificação política por excelência dessa tradição foi um partido agrário radical chamado Co-operative Commonwealth Federation (CCF, Federação Cooperativa da Commonwealth). Em 1944, ele conseguiu uma vitória esmagadora nas eleições provinciais de Saskatchewan, formando então o que a história chamou de “o primeiro governo socialista da América do Norte”. Reeleita várias vezes ao longo dos anos, a CCF fez campanha em 1960 em torno de um projeto de cobertura universal de saúde para toda a província, saindo mais uma vez vitoriosa de uma eleição amplamente dominada por esse tema. Dois anos depois, em julho de 1962, o governo local estava pronto para lançar o Medicare, seu sistema de saúde de pagador único, ou seja, cujos custos são cobertos por um único sistema público – o primeiro da nação canadense. Foi então que a “ciência organizada” lançou sua arma de destruição em massa. No mesmo dia em que o novo sistema entrou em vigor, todos os médicos de Saskatchewan entraram em greve. Seus efetivos não passavam de mil pessoas, ainda assim esse foi, em todo seu esplendor, um “momento Ayn Rand”, para retomar o nome da filósofa e romancista do século XX, apóstola do individualismo, muito popular nos Estados Unidos.9 Com essa ação, o 1% dos instruídos e abastados intimaram o povinho a ficar em seu lugar e demonstrar respeito. Essa versão canadense do confronto entre ciência e populismo – entre um grupo profissional pequeno, porém prestigiado, e os trabalhadores de Saskatchewan – também recorreu a manobras que só a AMA conhecia. Assim como ela, a associação de médicos da província canadense acumulou um enorme montante por meio da cotização de seus membros, utilizando-o para financiar seus esforços de propaganda. Não apenas o movimento recebeu apoio da Câmara de Comércio de Saskatchewan e outras associações comerciais, como também a imprensa local seguiu seus passos em uníssono, bradando contra a difusão do comunismo e das doenças. Ativistas de extrema direita também fizeram a festa, por meio de um coletivo vindo


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do nada, o Keep Our Doctors (KOD, Manter nossos médicos), que pretendia combater o sistema de pagador único por meio das reuniões públicas, da caça às bruxas e de insinuações racistas – pois o governo neopopulista anunciara sua intenção de trazer médicos do exterior para substituir os grevistas. A questão central, evidentemente, era a do lugar que os especialistas deveriam ocupar em uma democracia. Os médicos viviam então uma situação de monopólio: somente eles decidiam sobre a escolha dos tratamentos e seu preço, e só prestavam contas a seus pares. O projeto da CCF – assim como o do Dr. Shadid e o do presidente Truman – vinha enfraquecer sua autoridade, confiando parte dela aos cidadãos comuns. Na época, um repórter do Washington Post observou: “Os médicos são os ‘sumos sacerdotes’ de nosso tempo e, como tal, não têm o hábito de receber ordens do governo”. Convocado a mediar a controvérsia, o barão Taylor, médico e político britânico, resumiu os fatos em termos quase clínicos. A AMA, escreveu ele em 1974, estava “em uma oposição histérica a qualquer forma de seguro-saúde público, empenhando-se, não sem sucesso, para transmitir essa histeria aos médicos e à opinião pública de Saskatchewan”.10 O diagnóstico foi preciso, para dizer o mínimo: uma associação profissional havia deliberadamente espalhado histeria pelas pradarias canadenses. O resultado foi um ataque de “pavor democrático”, como costumo chamar aquilo que se produz quando os estratos superiores de uma sociedade se convencem de que o povo enfurecido coloca em risco seus privilégios. Essas crises periódicas de histeria têm várias constantes: a democracia é descrita como uma tirania, as camadas inferiores são criticadas por ousarem se meter em assuntos que não compreendem (seja economia, política externa ou, no caso em questão, medicina) e, claro, a mídia atua em bloco. Todos esses ingredientes estavam presentes no grande pavor democrático de 1896. Naquele ano, a classe dominante norte-americana, apoiada por quase todos os órgãos da imprensa, acreditava-se ameaçada por um proletariado sanguinário que marchava sob a bandeira de William Jennings Bryan, o candidato presidencial democrata, um homem considerado radical e ao qual os populistas se uniram. Do alto de suas torres de marfim, os homens bem educados da virada do século se espalharam pelos jornais da Costa Leste para bradar que o movimento populista não passava de uma revolta de dementes e imbecis.

Às vezes, o pavor democrático atinge seu objetivo. Não foi o caso da grande greve do 1% que incendiou Saskatchewan em 1962 – seu fracasso foi, inclusive, retumbante. Se em um primeiro momento o medo teve seu efeito, logo a simpatia pela causa dos médicos arrefeceu, auxiliada pelos discursos exagerados do campo dos especialistas – um pastor evangélico que espalhava a opressão pelas ondas do rádio chegou a pedir que corresse sangue.11 A greve terminou em um mês. Cinco anos depois, todas as províncias do país tinham um sistema de saúde inspirado no modelo de Saskatchewan, e o Medicare é até hoje uma das realizações sociais das quais o Canadá mais se orgulha. Nenhum dos movimentos de reforma que acabei de descrever contestou a importância da pesquisa científica ou de qualquer uma de suas conclusões. Todos esses pensadores neopopulistas admiravam a medicina moderna – eles simplesmente queriam torná-la acessível aos mais modestos. Em outras palavras, foram duas visões da sociedade que entraram em conflito: privilégio versus igualdade. “A questão fundamental do conflito entre o governo e os médicos de Saskatchewan não é o seguro-saúde público, mas a democracia”, escreveu o jornal canadense The Globe and Mail algumas semanas após o início da greve. “Cedo ou tarde, não importa qual seja sua especialidade, o profissional precisa se submeter ao leigo, caso contrário a democracia não pode funcionar.” Exatamente! – exclamaram alguns –, esse é o grande problema da democracia: ela dá a esses leigos ignorantes poder sobre aqueles que lhes são superiores. George Sokolsky, um editorialista norte-americano de audiência nacional, defendeu ruidosamente os grevistas de Saskatchewan, alegando que eles encarnavam “a luta dos especialistas em uma época na qual prevalece o governo da multidão”. Anticomunista até a medula, ele pintou um quadro em que médicos lutavam para manter a cabeça fora da água enquanto o planeta inteiro se afogava na onda do igualitarismo. “Houve um tempo em que as pessoas se respeitavam mutuamente pelo que valiam”, escreveu. “Agora, o lema parece ter se tornado: ‘Eu valho tanto quanto você’.” Essa filosofia, que ele considerava tão falsa quanto perniciosa, o enfurecia. Embora em um país como os Estados Unidos todos fossem livres para expressar suas opiniões, parecia-lhe natural que, à medida que o mundo se tornasse mais complexo, “apenas especialistas pudessem opinar sobre uma gama cada vez mais ampla de assuntos”.

Sokolsky era um macarthista fervoroso que avançava para a direita da direita. A CCF de Saskatchewan era um partido agrário e operário à esquerda. Hoje, o jogo virou, tudo se inverteu. O Partido Democrata que elegeu Harry Truman agora atende aos interesses de executivos ricos e graduados. Ele resgata diligentemente os pequenos gênios de Wall Street. Obedece escrupulosamente às injunções de economistas que glorificam o livre-comércio. E, quando seus representantes propõem a reforma da saúde, não o fazem consultando a base, mas reunindo especialistas de todos os setores envolvidos e pedindo que reorganizem o sistema entre si. Depois disso, ficam espantados quando a opinião pública expressa sua ira.

“Os médicos são os ‘sumos sacerdotes’ de nosso tempo e, como tal, não têm o hábito de receber ordens do governo” “NÓS, O POVO” As forças presentes na cadeia de atendimento de saúde também mudaram. A AMA não é mais o forte baluarte dos profissionais de saúde que era antes. Na luta para impedir o advento da cobertura universal, novos atores – grupos hospitalares, empresas farmacêuticas e companhias de seguros – conseguiram superá-la em termos de poder e influência, porém com uma motivação inalterada: honrar o que agora é chamado de “inovação” e os profissionais que estão por trás dela. A transformação mais profunda, porém, diz respeito ao pensamento de esquerda. A maneira como os autoproclamados progressistas usam e abusam da palavra “populismo” mostra que eles se voltaram resolutamente contra sua herança democrática. Agora os ouvimos nos lembrar das virtudes da censura12 e evocamos com nostalgia os felizes dias em que os patrões escolhiam nossos líderes para nós. A democracia coloca um problema, explicam eles, pois permite que o povo ignore a autoridade dos especialistas. É a essa democracia indócil que devemos a eleição de Trump e nosso desamparo diante do aquecimento global ou da pandemia de Covid-19. Tudo isso é culpa nossa: o culpado somos “nós, o povo” (palavras que abrem o preâmbulo da Constituição dos Estados Unidos). O cenário político está, portanto, de ponta-cabeça, mas a luta continua a mesma. Agora mais ligados à pureza moral gelada da esquerda do que ao anticomunismo dos caipiras da

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direita, os especialistas continuam fulminando os insolentes que ousam desafiar seu poder. O verdadeiro tópico do debate são seus privilégios, e todos somos incentivados a nos prostrar a seus pés e à marcha cerrada em defesa de sua causa. No entanto, deixando de lado as fantasias egoístas desse politburo moderno, a velha equação política ainda se distingue por trás do véu da suficiência de esquerda. Hoje, o senador abertamente populista Bernie Sanders é o mais ardente defensor de um sistema de saúde universal, enquanto os soldados da “ciência organizada” e do poder privado se empenham sistematicamente em atacar essa ideia. O populismo não é a última descoberta preciosa do mal que nos afeta; ele é o remédio que pode nos livrar desse mal.  *Thomas Frank,  jornalista e historiador, é autor de The People, No: A Brief History of Anti-Populism [O povo, não: uma breve história do antipopulismo], Metropolitan Books, Nova York, 2020. 1   V er Chris Mooney, The Republican War on Science [A guerra republicana contra a ciência], Nova York, Basic Books, 2005. 2   C f. Scott Lehigh, “Time to end populism’s war on expertise” [É hora de acabar com a guerra do populismo contra os especialistas], The Boston Globe, 7 abr. 2020. 3   C f. Michael A. Shadid, A Doctor for the People: The Autobiography of the Founder of America’s First Co-operative Hospital [Um médico para o povo: a autobiografia do fundador do primeiro hospital cooperativo da América], Elk City, Oklahoma, Vanguard Press, 1939. 4   Michael A. Shadid, Doctors of Today and Tomorrow [Médicos de hoje e de amanhã], The Cooperative League of the USA, Nova York, 1947. 5   James Rorty, American Medicine Mobilizes [Quando a medicina norte-americana reúne suas tropas], W.W. Norton, Nova York, 1939. 6   Paul Starr, The Social Transformation of American Medicine. The Rise of a Sovereign Profession and the Making of a Vast Industry [A transformação social da medicina dos Estados Unidos. A ascensão de uma profissão suprema e a criação de uma vasta indústria], Basic Books, 2017 (reedição). 7   Harry Truman, “Special message to the Congress on the nation’s health needs” [Mensagem especial ao Congresso sobre as necessidades de saúde da nação], 22 abr. 1949. 8   Robert C. McMath Jr., “Populism in two countries: Agrarian protest in the Great Plains and Prairie provinces” [Populismo em dois países: protesto agrário nas províncias das Grandes Planícies e das Pradarias], Agricultural History, v.69, n. 4, outono 1995. 9   Ler François Flahault, “Ni dieu, ni maître, ni impôt” [Nem deus, nem patrão, nem imposto], Le Monde Diplomatique, ago. 2008. 10   Citado em Malcolm G. Taylor e Allan Maslove, Health Insurance and Canadian Public Policy: The Seven Decisions That Created the Health Insurance System and Their Outcomes [Seguro-saúde e política pública canadense: as sete decisões que criaram o sistema de seguro-saúde e seus resultados], McGill-Queens University Press, Montreal, 2009. 11  Gregory P. Marchildon (org.), Making Medicare: New Perspectives on the History of Medicare in Canada [Criando o Medicare: novas perspectivas sobre a história do seguro-saúde no Canadá], University of Toronto Press, 2012. 12  Jack Goldsmith e Andrew Keane Woods, “Internet speech will never go back to normal” [O discurso na internet nunca voltará ao normal], The Atlantic, Boston, 25 abr. 202


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CAMPANHA KANAMARI DO VALE DO JAVARI, AMAZÔNIA

Defesa dos indígenas contra a Covid-19 O presidente Jair Bolsonaro demonstra não apenas resistência em adotar medidas de enfrentamento à pandemia, como também ineficiência e irresponsabilidade. Em uma cumplicidade perversa, o coronavírus se apresenta como um aliado poderoso para livrar seu governo da presença de povos indígenas, que, em sua desrazão, representam um obstáculo ao seu projeto POR BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS E LINO JOÃO DE OLIVEIRA NEVES*

A

pandemia de Covid-19 que assola a humanidade atinge gravemente o Brasil, que ocupa a posição de segundo país em casos e mortes, números esses que aumentam a cada dia. Essa situação já grave por si mesma fica ainda mais trágica com a demora e ineficácia das medidas tomadas pelos órgãos públicos de saúde para o enfrentamento do coronavírus. O Brasil, que chegou a ter um sistema de saúde pública forte e estruturado, foi nos últimos governos submetido à aliança entre a irresponsabilidade social e os interesses privados para os quais a saúde é apenas mais uma área de investimento altamente lucrativa. Como consequência, o Sistema Único de Saúde, tomado como referência por vários países, está hoje completamente desestruturado, não atendendo às necessidades médico-sanitárias nem sequer em tempos de normalidade, quanto mais em momentos de crise. Na questão dos indígenas, além da sabida morosidade da burocracia estatal, o Brasil vive sob a égide de uma política que tem por objetivo eliminar os direitos inscritos na Constituição de 1988 e em acordos internacionais dos quais é signatário. O presidente Jair Bolsonaro demonstra não apenas resistência em adotar medidas de enfrentamento à pandemia, como também ineficiência e irresponsabilidade. Em uma cumplicidade perversa, o coronavírus se apresenta como um aliado poderoso para livrar seu governo da presença de povos indígenas, que, em sua desrazão, representam um obstáculo ao seu projeto de desenvolvimento de “terra arrasada”. Como aliado poderoso, e oportuno, o coronavírus, em sua fúria destrutiva de gentes e culturas, pode promover a “limpeza das terras indígenas”, permitindo que elas sejam finalmente entregues à exploração extrativista dos recursos naturais e à expansão do agronegócio.

A Covid-19 está disseminada por todos os estados brasileiros. Depois de tomar as capitais e os centros urbanos mais populosos, o coronavírus avança rápido para o interior. Não por acaso, as vozes mais responsáveis alertam para o risco iminente de genocídio no Brasil. O genocídio é uma realidade cada vez mais próxima na medida em que a Covid-19 se esparrama pela Amazônia, região onde está a maioria dos povos indígenas. Um dos locais mais afetados é a tríplice fronteira Brasil-Peru-Colômbia, com grande concentração de populações indígenas de diversas etnias. É nessa região que se registra o maior número de contaminados e o maior número de óbitos indígenas no Brasil. É uma área crítica, pois faz limite com o Departamento Amazonas, na Colômbia, e o Departamento de Loreto, no Peru, locais onde a incidência de Covid-19 está generalizada, e a propagação, fora de controle. No lado brasileiro é particularmente preocupante a situação no Vale do Javari. A Terra Indígena Vale do Javari é a área indígena com o maior número dos chamados “povos isolados”, indígenas em isolamento voluntário de todo o mundo. Sete etnias distintas compartilham o território do Vale do Javari: cinco povos (Kanamari, Kulina, da família linguística Pano, Marubo, Matsés (Mayoruna), Matís), que há cerca de cinquenta anos mantêm relações regulares, porém distanciadas, com segmentos da população regional; e dois povos de recente contato (Korubo e Tsomhwâk Djapa), que mantêm relações esporádicas, principalmente com povos que lhes são aparentados culturalmente. Além desses, pelo menos dezoito grupos vivem em áreas de difícil acesso no interior da floresta. Existem apenas evidências de sua presença, mas praticamente nenhuma informação específica, a ser a de que em período histórico anterior foram vítimas de violências e, por isso,

buscam o isolamento como forma de sobrevivência. Reconhecida pelo Estado brasileiro como território de usufruto exclusivo dos povos indígenas – contatados e não – que nela habitam, a Terra Indígena Vale do Javari é formalmente uma área protegida. Contudo, assim como acontece com todas as terras indígenas do Brasil, ameaçadas pela política anti-indígena do governo Bolsonaro, o Vale do Javari está fragilizado tanto nas medidas de proteção territorial que deveriam resguardar sua integridade territorial contra as investidas de invasores quanto de iniciativa de proteção sanitária para conter o avanço do coronavírus. Os Kanamari foram os primeiros indígenas do Vale do Javari a serem infectados pela Covid-19. Essa contaminação se deu por meio de servidores do Distrito Sanitário Especial Indígena – órgão do Ministério da Saúde responsável pelo atendimento aos indígenas –, que não observaram as exigências do protocolo de atendimento à saúde e entraram na aldeia Kanamari sem cumprir o período de quarentena. Os primeiros casos foram registrados no dia 6 de junho, e desde então o contágio só vem aumentando. Assim como muitos povos em outras partes do país, cansados de esperar medidas efetivas tomadas pelos poderes públicos para enfrentar a situação de contágio e barrar seu avanço, os Kanamari tomaram a iniciativa de buscar apoios para o tratamento médico daqueles já contaminados e para garantir a sobrevivência de suas populações no período de isolamento social, além de criarem barreiras sanitárias para impedir que a doença chegue às suas aldeias. Confira a seguir mensagem do povo Kanamari.

CAMPANHA KANAMARI “Os Kanamari (autodenominados Tüküna), da Terra Indígena Vale do Javari, lançaram uma campanha de

arrecadação de recursos para que possam continuar nas aldeias durante a pandemia da Covid-19. Até o momento, o governo brasileiro e a Fundação Nacional do Índio (Funai) não apresentaram ações emergenciais e específicas para proteger os habitantes do Vale do Javari. Então, os próprios povos originários iniciaram ações para se protegerem da pandemia. A principal preocupação é com a disseminação da doença nas aldeias. As consequências da crise da Covid-19 se manifestam de diferentes maneiras nos contextos locais, e as demandas também são, em muitos casos, diferentes daquelas dos outros indígenas. A Terra Indígena Vale do Javari é constantemente invadida por caçadores e pescadores ilegais, o que potencializa a transmissão do contágio da Covid-19. A preocupação também é com o suprimento de alimentos. Com a pandemia, muitas famílias para estavam na cidade retornaram para suas aldeias. Com isso, a demanda por alimento aumentou. Para os que estão nas aldeias, a urgência é de recurso financeiro para comprar material para caça e pesca e combustível para as embarcações utilizadas em casos de deslocamentos de urgência. Para os que continuam na cidade, a necessidade mais urgente são cestas básicas de alimentos, máscaras de proteção e produtos de limpeza e higiene. O Vale do Javari é uma área de difícil acesso e a cada momento a Covid-19 se alastra mais, podendo ocorrer um genocídio, principalmente dos povos isolados que vivem no território. Nós, Kanamari, precisamos de apoio urgente, tanto para ajudar as pessoas de nosso povo que estão infectadas como para proteger os povos isolados. Fazemos um apelo aos amigos que desejam colaborar com os povos indígenas a incluir em suas listas o Povo Kanamari do Vale do Javari.”

COMO AJUDAR Contatos: +55 97 99166-7595 • WhatsApp: +55 97 98416-7375 • PayPal: kanamari_ ufsc@outlook.com • Banco Bradesco • Agência: 0736-6 •Conta-corrente: 0700672-1 • Higson Dias Castelo Branco (Presidente da Associação dos Kanamari do Vale do Javari – AKAVAJA, Amazônia/Brasil) • CPF: 950.139.382-87 • E-mail: akavaja.kanamary@hotmail.com

*Boaventura de Sousa Santos  é diretor emérito do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra; Lino João de Oliveira Neves é professor do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Amazonas (Ufam).


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AQUECIMENTO GLOBAL AMEAÇA O ABASTECIMENTO DE ÁGUA

A Bolívia enfrenta a agonia de suas geleiras Testemunha por excelência da evolução do clima da Terra, a maioria das geleiras está passando por uma fase de retrocesso. Nos Andes tropicais, esse derretimento se acelera há trinta anos e coloca em risco a irrigação, a produção de eletricidade e o fornecimento de água. Grandes metrópoles como La Paz, na Bolívia, veem uma parte significativa de seus recursos ameaçada POR CÉDRIC GOUVERNEUR*, ENVIADO ESPECIAL

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ezenas de milhares de pequenos pontos vermelhos cintilam no horizonte: são os tijolos de La Paz e de sua vizinha popular, El Alto. O Monte Chacaltaya (5.395 metros) está localizado na Cordilheira Real, cerca de 30 quilômetros ao norte da capital administrativa da Bolívia. Cem metros abaixo do cume, a estrada sinuosa termina com uma pequena área de estacionamento com vista para o Altiplano, o planalto andino. O vento bate em persianas de edifícios abandonados cujos telhados evocam chalés alpinos. A incongruência dessa arquitetura no coração dos Andes lembra ao visitante que, há apenas uma década, Chacaltaya abrigava a estação de esqui mais alta do mundo. Enfrentando as curvas fechadas e o soroche (mal das montanhas), um público abastado aproveitava para relaxar na estação durante o verão: na Bolívia, o inverno corresponde à estação seca; é, portanto, no verão, durante a estação das chuvas, que a neve cai. Ou caía... “Ali havia uma geleira de 15 metros de espessura na década de 1990”, conta desolado Edson Ramírez, apontando para a encosta rochosa onde algumas hastes de metal – resquícios de um elevador de esqui – enferrujam. Engenheiro especialista em hidrologia e glaciologia do Instituto de Hidrologia e Hidráulica da Universidade Maior de San Andrés (IHH-UMSA), em La Paz, o professor Ramírez monitora as geleiras andinas tropicais há quase trinta anos. “Em 2003, preveni que esse monumento natural de 18 mil anos poderia desaparecer em 2015. E fui otimista demais: os últimos pedaços derreteram entre 2009 e 2011. É extremamente preocupante”, suspira o cientista. De seu passado, Chacaltaya conserva apenas o nome, que significa “ponte de gelo”, na língua aimará.

CORDILHEIRA PERDEU 37% DE SUA SUPERFÍCIE GLACIAL Em poucas horas de carro pela Cordilheira Real, chegamos ao sopé da encosta oeste de Huayna Potosí. Segundo os cálculos dos cientistas, esse gigante majestoso também está condenado. As rochas negras que a cercam, aquecidas pelo sol, aceleram seu derretimento: “A cada ano, essa geleira diminui 2 metros de espessura e recua cerca de 20 metros. Nossos cálculos mostram que, desde 1980, a Cordilheira perdeu 37% de sua superfície glacial. No entanto, milhões de bolivianos dependem da sua água”, explica Ramírez. Na sequência, os engenheiros Edson Ramírez e Francisco Rojas seguem para os arredores de uma fazenda modesta em frente à geleira, onde instalaram uma estação hidrometeorológica que monitora a pluviometria, as temperaturas, a direção e a velocidade do vento. O próprio Rojas fabricou a instalação para economizar dinheiro: “Com uma impressora 3D, funis e tubos de plástico, construí 25 dispositivos por um total de US$ 25 mil. Ou seja, pelo preço de apenas um, se comprado comercialmente”, conta o engenheiro, sorrindo. Aos 73 anos, Don Guillermo Aruquipa cria lhamas, ovelhas e vacas. Ele testemunhou as mudanças: “Quando me mudei para cá com minha família, em 1974, a geleira chegava até o canal que você vê ali. O gelo estava azul! Nada é o mesmo”, lembra ele, apontando para uma linha que divide o horizonte muito mais abaixo que o limite atual que vemos. O aumento da temperatura está mudando o ecossistema e tem consequências: “Agora existem muitas lagartas de uma espécie que nunca vimos antes. Minhas lhamas adoecem quando comem esses bichos”, completa. O fazendeiro recebe os visitantes e oferece um queijo: “Somos bem recebidos. Você só precisa explicar o que faz e por que faz”, diz Ramírez. No passado, os povos das montanhas

desconfiavam da presença de moradores da cidade e, sem muita informação sobre suas intenções, vandalizavam instalações científicas. Em 2014, hidrólogos dos quatro países da Comunidade Andina (Bolívia, Peru, Equador e Colômbia) realizaram, com o apoio do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), um almanaque educativo para explicar seu trabalho e suas abordagens. Hoje, “os camponeses não vandalizam mais nossos equipamentos. Pelo contrário, alguns até nos pedem para instalar sensores: eles querem informações porque estão preocupados”, ressalta Ramírez. A maioria das geleiras do planeta está se retraindo desde o fim da Pequena Era Glacial, em meados do século XIX. A perda de massa se acelerou desde o fim dos anos 1970 e, nas últimas décadas, a evolução desse processo nos Andes é considerada sem precedentes desde o início do século XVIII.1 O derretimento nessa região é um dos mais rápidos observados no mundo e faz uma das contribuições mais importantes para a elevação do nível do mar, afirma uma equipe de glaciologistas franceses.2 “A perda drástica de geleiras nos últimos anos coincide com condições extremamente secas desde 2010 e, em parte, ajudou a mitigar os impactos hidrológicos negativos dessa seca severa e prolongada”, precisam. “Na Bolívia, algumas geleiras perderam dois terços de sua massa, ou até mais desde os anos 1980”, ressalta a Organização das Nações Unidas para a Ciência, a Educação e a Cultura (Unesco), em um atlas dedicado à questão publicado em dezembro de 2018 por ocasião da conferência sobre aquecimento global (COP24) organizada em Katowice (Polônia).3

“NINGUÉM ESCUTAVA OS CAMPONESES” Esse documento constata que, durante o século XX, o limite chuva/ne-

ve (altitude em que a neve se transforma em chuva) subiu “em média 45 metros” nos Andes tropicais. No fim do século XXI, a temperatura pode subir “de 2 a 5 graus”. Espera-se que o último glacial da Venezuela desapareça “já em 2021”, e é provável que em 2050 permaneçam na região apenas as geleiras “mais importantes nos picos mais altos”. Segundo projeções, “mesmo as menos alarmistas”, as últimas testemunhas da revolução do clima nos Andes tropicais perderiam “entre 78% e 97%” de sua massa antes do fim do século, enquanto representam 61% da oferta de água de La Paz em tempos normais e 85% em anos de estresse hídrico. O “pico hídrico”, ou seja, o momento em que o volume de água resultante do derretimento flui a jusante, já começou sua inexorável diminuição na maioria dos casos, alguns inclusive desde a década de 1980. A situação só deve piorar. “Essa região montanhosa está passando por um período de mudanças sem precedentes”, sublinha a Unesco, desenhando um paralelo com o “colapso da civilização Tiwanaku” (no século XI, na atual Bolívia), que “coincidiu com mudanças climáticas significativas e rápidas”. Desde os anos 1990 “alertamos as autoridades, mas na época não havia senso de urgência”, lembra Edson Ramírez. Especialmente porque, para as populações que vivem a jusante, a aceleração do derretimento foi traduzida a curto prazo como um período de água abundante. Mesmo no início deste século “ainda era muito difícil convencer sobre a realidade do aquecimento global”, suspira Magali García. Engenheira agrônoma e chefe do laboratório do Instituto de Pesquisa e Desenvolvimento sobre Processos Químicos (Ideproq), da UMSA, ela estuda as consequências do aquecimento global nas práticas agrícolas: “Os camponeses andinos veem as geleiras recuando e observam também que a cobertura de nuvens está reduzida. Como resultado, o sol é mais forte, as chuvas são mais concentradas, a evaporação é mais rápida, mesmo quando a quantidade de precipitação permanece a mesma. Os camponeses perceberam o que estava acontecendo um quarto de século atrás, porque são confrontados com o clima todos os dias. Mas ninguém os ouviu, em particular as elites urbanas”. O desaparecimento de Chacaltaya contribuiu para a conscientização. Diante do óbvio, os quatro países da Comunidade Andina criaram em 2012 o Projeto de Adaptação ao Impacto da Retração Acelerada de Geleiras Tropicais Andinas (PRAA), cuja missão consiste em “fortalecer a rede de vigilância” e “gerar informação útil para a tomada de decisões”.4 As


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geleiras agora são monitoradas por câmeras, sondas, drones, até com apoio do satélite boliviano de comunicações Tupac Katari, em homenagem a um insurgente aimará do século XVIII. Ao mesmo tempo, autoridades e ONGs sensibilizam a população sobre as consequências do aquecimento global para os recursos hídricos. Apesar disso, as ações vêm com atraso. Entre novembro de 2016 e março de 2017, a Bolívia sofreu a pior seca em um quarto de século: o fenômeno, conhecido como El Niño (o aquecimento de águas superficiais perto da costa do Pacífico da América do Sul), provocou uma queda de 40% na precipitação e um aumento médio na temperatura de 2 a 3 graus. De fato, as secas são recorrentes na Bolívia, após ciclos hidrológicos de seis anos. Porém, em 2016, pela primeira vez, a escassez de água afetou não apenas Cochabamba, Oruro, Potosí e Sucre, mas também a conurbação La Paz-El Alto, cuja população, difícil de registrar pelo censo, é estimada em mais de 2 milhões de habitantes. A estação seca, que geralmente ocorre de abril a setembro, estendeu-se naquele ano. A partir de outubro, os cortes de água foram aumentando: “Ficamos à seca por dias. Não podíamos tomar banho nem cozinhar”, lembra, furioso, um lojista no centro da cidade. “Em Cochabamba, as pessoas estão mais acostumadas às secas, estão mais preparadas e possuem cisternas. Os camponeses também enfrentaram secas severas em 1983, 1987 e 2006. Mas os paceños [os habitantes de La Paz] ficaram desamparados”, conta a engenheira agrícola Magali García. A água é racionada em 94 bairros, ou um terço da metrópole, em particular nos distritos do sul, que são mais ricos. Os cortes foram, portanto, um verdadeiro choque para as classes média e alta, para as quais era natural obter água ao abrir a torneira. Moradores percorriam as ruas com recipientes vazios. Os mais abastados compravam água engarrafada. No campo, manadas de lhamas morriam de sede, arruinando os camponeses. As férias escolares tiveram de ser antecipadas por vários dias, pois a água foi cortada nas escolas. Houve manifestações de solidariedade entre os moradores, mas também brigas. Em 21 de novembro de 2016, o presidente Evo Morales, comparando o desastre com um terremoto, decretou estado de emergência e mobilizou o Exército, enquanto exortava seus concidadãos a resolver seus problemas pacientemente: “As soluções estruturais para a crise exigirão tempo”. A água foi requisitada pelas comunidades rurais: considerando es-

se recurso como deles, eles exigiram como contrapartida a construção de infraestruturas. Sujos pelo transporte de combustíveis, muitos caminhões-pipa não eram adequados: não existiam veículos apropriados em todo o país, e a Bolívia aceitou ajuda da vizinha Argentina. Quando os caminhões finalmente chegaram, brigas começaram entre os moradores da cidade, que já estavam com os nervos à flor da pele.

Em 2018 e 2019, chuvas torrenciais atingiram a região, causando inundações e deslizamentos de terra A crise se trasladou para a arena política: já em 2000, a privatização do abastecimento de água havia causado a duplicação de tarifas em Cochabamba, levando a um conflito social que foi violentamente reprimido, razão pela qual o presidente Gonzalo Sánchez de Lozada fugiu para os Estados Unidos e um de seus ministros foi condenado em 2018 por um tribunal da Flórida.5 Após sua eleição em 2006, Morales (Movimento pelo Socialismo, MAS) reverteu as privatizações e criou o Ministério de Meio Ambiente e Água. A nova Constituição do Estado Plurinacional da Bolívia, aprovada por referendo em 2009, vê o acesso à água como um direito fundamental e até como “um marcador da soberania do povo” (artigo 16, parágrafo 373). E foi por iniciativa da Bolívia que a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou uma resolução em 28 de julho de 2010 reconhecendo como “fundamental” o “direito à água potável, limpa e segura”.

ESFORÇO PARA SALVAR AS ZONAS ÚMIDAS Durante a seca de 2016, entre 3 mil e 5 mil manifestantes de bairros abastados do sul da metrópole marcharam contra o governo. A crise acentuou o divórcio entre o presidente e a classe média de La Paz, que então o acusava – críticas recorrentes nas conversas – “de se preocupar apenas com os pobres e os indígenas”.6 Chefes caem: em novembro de 2016, a ministra do Meio Ambiente e Água, Alexandra Moreira, e outras três altas autoridades não foram apenas demitidas, mas também processadas por “descumprimento de seu dever” e até “atentado contra a segurança pública” (os processos foram suspensos em maio de 2019, pois o Ministério Público foi incapaz de provar que havia sido cometido crime).7 Em fevereiro de 2017, as autoridades mobilizaram US$ 200 milhões pa-

ra combater a seca e o aquecimento global. Com a saída do presidente Morales do poder em novembro de 2019,8 o futuro da política de água é tão sombrio quanto o do país: as eleições gerais, programadas para maio de 2020, foram reagendadas para setembro. Diretor-geral da Autoridade de Água Potável e Saneamento entre novembro de 2016 e novembro de 2019, Victor Hugo Rico Arancibia nos garantiu, enquanto ainda estava no cargo, que as autoridades haviam “aprendido lições” com a crise, criando mecanismos para antecipar riscos e, se necessário, “mobilizando a defesa civil em cada nível” (municipal, departamental e estadual). Os planos de gerenciamento de secas permitiriam “identificar a infraestrutura a ser melhorada ou construída para atender à crescente demanda”. Desde a crise, entre 2016 e 2019, três novos reservatórios foram construídos em torno de La Paz. Novos poços foram cavados em El Alto. Os oleodutos foram reformados e os canais impermeabilizados para reduzir vazamentos. No distrito 4 de El Alto, as perdas por infiltração foram reduzidas de 39,6% para 26,5% do volume transportado. “Precisamos estudar mais os mecanismos de adaptação às mudanças climáticas e estabelecer estratégias de reabilitação diante da degradação ambiental”, reconhece Rico Arancibia. Por exemplo, o desmatamento das últimas décadas no departamento de La Paz levou à redução dos córregos que alimentam os lençóis freáticos. As secas futuras poderão ser ainda mais drásticas se o país não puder mais contar com o derretimento do gelo, alerta Ramírez, mostrando o entorno do reservatório de Tuni. Construído em 1975 a jusante da geleira Huayna Potosí, esse reservatório de 26 milhões de metros cúbicos abastece La Paz e El Alto. “Em 2016, a água resultante do degelo manteve um nível correto no reservatório: imagino o desastre em caso de desaparecimento da geleira”, cuja expectativa de vida ele estima em “cerca de sessenta anos”. Os outros reservatórios de La Paz e El Alto “não dependem de geleiras, apenas das chuvas geradas pelas correntes de ar úmidas das planícies subtropicais vizinhas”, acrescenta Rico Arancibia, que está se preparando “para o comportamento climático cada vez mais errático e influenciado pelo aumento global das temperaturas”. Em 2018 e 2019, chuvas torrenciais atingiram a região, causando inundações e deslizamentos de terra. Atualmente, os cientistas andinos estão trabalhando para salvar os bofedales: zonas úmidas das montanhas (pântanos) alimentadas pelo derreti-

mento de neve e gelo, escoamento das chuvas e afloramento de águas subterrâneas. Essas turfeiras são esponjas naturais reais, geralmente com cerca de 10 metros de profundidade, que armazenam água enquanto filtram sedimentos. Ecossistemas frágeis, elas correm o risco de encolher a longo prazo por causa da redução da contribuição da água de derretimento de gelo, resultando na dessecação do solo e em sua degradação, impactando negativamente a biodiversidade e, mais preocupante, a capacidade desse ecossistema de aprisionar o dióxido de carbono: 9 a liberação desse CO2 pioraria ainda mais o aquecimento. “Os bofedales vão desempenhar o papel de geleiras durante a estação seca”, alerta Ramírez. Para preservá-los, a UMSA estuda os canais pré-colombianos que em alguns casos ainda existem nos bofedales: “Esses canais de desvio permitem modificar a direção da água, garantir a circulação interna do bofedal e fortalecer a autoalimentação. Estamos estudando essas práticas para replicá-las em larga escala dentro de dois ou três anos”, explica Ramírez.

O paradoxo é que, a curto prazo, o aumento das temperaturas se traduz em uma melhoria na vida cotidiana desses agricultores andinos Os engenheiros agrícolas Miguel Ángel López e Mauricio Cussi realizam um estudo sobre as consequências do aquecimento global nas práticas agrícolas para a UMSA. Eles nos levam à comunidade de Chojñapata, não muito longe da cidade de Achacachi. Aqui, a uma altitude de mais de 4 mil metros, algumas dezenas de famílias aimará cultivam as encostas acima dos bofedales. O Lago Titicaca brilha no horizonte. “Os terraços que podem ser vistos nas encostas têm mais de mil anos. Eles protegem o solo da erosão”, explica López. As parcelas são usadas em sistema de rotação para limitar o esgotamento do solo. Os agrônomos nos apresentam Don Juan Mamani. Mamani, 70 anos, criador de lhamas, nasceu aqui, onde mora com a esposa. Seus dez filhos partiram “para viver a vida em La Paz, Chile e Argentina”. Em outubro, para que as chuvas abundem, “prestamos homenagem a Pachamama [deusa inca que encarna a Mãe Terra]. Contornamos o cume três vezes. De joelhos!”, diz o camponês, apontando para a montanha vizinha com o queixo. Don Mamani está experimentando o aquecimento diaria-


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PARA ALÉM DO MEDO DE VER OS MUSEUS FRANCESES VAZIOS

mente e não necessariamente se queixa: “Foi muito mais frio na minha juventude. As geadas matavam as batatas. Nos últimos vinte anos, os tempos mudaram. Não está nevando como antes. E realizamos muito mais colheitas!”, diz. O paradoxo é que, a curto prazo, o aumento das temperaturas se traduz em uma melhoria na vida cotidiana desses agricultores andinos, que agora cultivam diversas variedades de tubérculos (batata e outros), mas também feijão, ervilha, cevada e aveia. “Vendemos nossas produções na cidade”, diz Don Mamani. Essa comunidade possui recursos para alugar um trator de tempos em tempos: “Agora usamos apenas o huizo [pá tradicional] para cantos inacessíveis ao trator”. A melhoria é muito bem-vinda para esses agricultores, mas a criação de lhamas se torna difícil com a invasão de lagartas. Os dois engenheiros agrícolas visitam um terreno recentemente arado, colhem amostras e testam seu teor de carbono. “O trator ara o solo mais fundo que o huizo: isso esgota mais solo e libera mais CO2”, suspiram. O benefício é imediato, mas piora a situação a médio e longo prazo: “É difícil explicar tudo isso aos camponeses pobres que estão apenas começando a sentir a vida um pouco mais fácil, ganhar mais. Não dá para pedir que eles trabalhem menos”, admitem os cientistas.  *Cédric Gouverneur  é jornalista. 1   A ntoine Rabatel (org.), “Current state of glaciers in the tropical Andes: a multi-century perspective on glacier evolution and climate change” [Estado atual das geleiras nos Andes tropicais: uma perspectiva de vários séculos sobre a evolução das geleiras e as mudanças climáticas], The Cryosphere, Goöttingen, n.7, 22 jan. 2013. 2   Étienne Berthier (org.), “Two decades of glacier mass loss along the Andes” [Duas décadas de perda de massa glacial nos Andes], Nature Geoscience, Londres, n.12, 16 set. 2019. 3   Koen Verbist e Tina Schoolmeester, Atlas de glaciares y aguas andinos: el impacto del retroceso de los glaciares sobre los recursos hídricos [Atlas de geleiras e águas andinos: o impacto do recuo das geleiras nos recursos hídricos], Unesco, Grid-Arendal, Paris, dez. 2018. Também disponível em inglês. 4   “ Monitoreo de glaciares tropicales andinos en un contexto de cambio climático” [Monitoramento de geleiras tropicais andinas em um contexto de mudanças climáticas], relatório do IHH-UMSA, maio 2019. 5   C f. También la Lluvia [Também a chuva], filme de Iciar Bollain (França, Espanha e México, 2010). 6   Ler Maëlle Mariette, “En Bolivie, sur la route avec l’élite de Santa Cruz” [Na estrada da Bolívia com a elite de Santa Cruz], Le Monde Diplomatique, jul. 2020. 7   L os Tiempos, Cochabamba, 2 jun. 2019. 8   Ler Renaud Lambert, “Un coup d’État trop facile” [Um golpe fácil demais], Le Monde Diplomatique, dez. 2019. 9   M athias Vuille (dir.) “Rapid decline of snow and ice in the tropical Andes: impacts, uncertainties and challenges ahead” [Rápido declínio da neve e do gelo nos Andes tropicais: impactos, incertezas e desafios à frente], Universidade de Nova York em Albany, Earth-Science Reviews, n.76, 2018.

Polêmicas sobre a restituição das obras de arte africanas Já se passaram três anos desde que o presidente Emmanuel Macron se comprometeu a restituir os bens culturais africanos pilhados durante a colonização. Desde então, a promessa percorre uma corrida de obstáculos. Enquanto colecionadores e museus europeus se opõem como podem, os países espoliados sofrem para reunir as condições necessárias para receber e conservar as obras POR PHILIPPE BAQUÉ*

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aquele 23 de março de 2019, trezentas armas e obras rituais do continente africano eram leiloadas em uma sala em Nantes. “Vocês receberão um recibo pela compra, mas os fabricantes desses itens receberam apenas a morte”, lançou Thomas Bouli, porta-voz da associação Afrique-Loire, interrompendo a reunião. “A França acaba de emitir o princípio da restituição de bens culturais africanos saqueados e mal adquiridos. E os objetos aqui apresentados fazem parte desses bens”, completou. O leiloeiro anunciou, então, que, a pedido do Ministério da Cultura, as cerca de trinta peças originárias do Benin seriam retiradas do catálogo. O governo de Porto Novo, capital do Benim, foi o único a pedir tal “restituição” depois de ter sido alertado pelos ativistas de Nantes. “Essas pessoas são a vergonha da causa que defendem, se é que há uma causa a defender”, defende-se Yves-Bernard Debie, advogado do Coletivo de Antiquários de Saint-Germain-des-Prés. Além do aborrecimento de ter perdido uma compra, o negociante de arte se opõe vigorosamente à própria noção de “restituição”, porque isso equivale, segundo ele, à realização de “uma clivagem: de um lado, proprietários ilegítimos; do outro, populações espoliadas” – dicotomia fortemente contestada pelo negociante de arte. Um ano e meio antes, em 28 de novembro de 2017, durante um discurso na Universidade de Ouagadougou (Burkina Faso), Emmanuel Macron havia abordado, para surpresa de todos, esse assunto polêmico. “Não posso aceitar que grande parte do patrimônio cultural de vários países africanos esteja na França”, disse o presidente francês. “Há explicações históricas para isso, mas não há justificativa válida, duradoura e incondi-

cional; a herança africana não pode estar apenas em coleções particulares e museus europeus. [...] Quero que sejam cumpridas as condições para a restituição temporária ou definitiva da herança africana dentro de cinco anos”, completou. E assim Macron levantava um tabu. Em julho de 2016, Jean-Marc Ayrault, então primeiro-ministro, opôs-se de forma contundente, em nome da inalienabilidade do patrimônio, ao presidente do Benin, Patrice Talon, que pedia a repatriação da coleção de objetos de arte reais “coletados” durante a expedição militar do general Alfred Amédée Dodds ao Daomé entre 1892 e 1894, e mantidos em Paris no Museu do Quai Branly-Jacques Chirac.

UM MOMENTO DE EXTREMA DESINIBIÇÃO Após seu discurso, Macron encomendou um relatório a Bénédicte Savoy, professor de História da Arte da Universidade Técnica de Berlim, e Felwine Sarr, professor de Economia da Universidade Gaston-Berger, no Senegal. Em novembro de 2018, o resultado do trabalho foi publicado sob o título “Restituir o patrimônio africano”.1 Os dois pesquisadores fazem uma comparação entre as centenas de milhares de objetos mantidos no Ocidente – incluindo 88 mil em coleções públicas francesas – com os poucos milhares listados em museus no continente negro. Para Savoy e Sarr, o período colonial correspondia, na França, “a um momento de extrema desinibição em questões de ‘suprimento’ de patrimônio em suas próprias colônias, uma bulimia de objetos”. As relações de dominação da época convidam, segundo eles, a postular “a falta de consentimento das populações locais durante a extração dos objetos” e a considerar que as aquisições foram obtidas “por vio-

lência, astúcia ou condições de não equidade”. Consequentemente, os autores defendem a devolução de peças apreendidas durante conquistas militares, mas também daquelas coletadas em missões científicas ou por agentes da administração colonial. Eles também pedem a devolução de bens adquiridos ilegalmente após 1960 por meio do tráfico ilícito de obras de arte. Para remover o obstáculo legal, os dois pesquisadores propõem uma emenda ao Código do Patrimônio francês, que estabelece os princípios da inalienabilidade e imprescritibilidade dos bens culturais pertencentes a coleções públicas. Desde a apresentação do relatório, Macron comprometeu-se a devolver 26 peças ao Benin, correspondendo em parte aos objetos reivindicados em 2016 por esse país: tronos, estátuas, portas esculpidas, relicários e regalia (atributos de simbólicos monárquicos) que pertenciam aos reis do Daomé. Essa orientação despertou a hostilidade de grande parte dos conservadores. “Os museus não devem ser reféns da dolorosa história do colonialismo”, denuncia Stéphane Martin, ex-presidente do Museu do Quai Branly, enquanto seu colega Julien Volper, curador do Museu Real da África Central, em Tervuren, Bélgica, onde está uma das mais importantes coleções europeias de arte africana, alarma-se com o prejuízo que isso significaria para as coleções nacionais.2 Embora o relatório Savoy/Sarr aborde apenas estabelecimentos públicos, comerciantes de arte e colecionadores particulares também estão sendo cobrados. “Como a França perdeu toda sua influência na África, o presidente ofereceu restituições aos líderes africanos para manter os mercados contra a China”, irrita-se Bernard Dulon, presidente do Coletivo


de Antiquários de Saint-Germain-des-Prés, que reúne a maioria dos especialistas nesse mercado. “Essas obras de arte, que pertencem à herança da humanidade, serão devolvidas a quem? Os governos africanos têm a mesma noção de conservação do patrimônio que nós? Eles terão o direito de revendê-las imediatamente?”, indagou. O anúncio das restituições teve pouco efeito no volume de vendas, mas Réginald Groux já está preocupado com as consequências mais ou menos a longo prazo desse movimento. “Sem colecionadores, 99% dos objetos na Europa teriam quase desaparecido, vítimas de ignorância, dos cupins e dos autos de fé de pessoas religiosas”,3 argumenta o negociante de arte. Os amadores certamente salvaram objetos, mas alguns também se aproveitaram de crises, guerras ou fomes para se apropriar, por meio de intermediários, de objetos sagrados ou bens arqueológicos. Longe dessas controvérsias, Bénédicte Savoy lamenta que seu relatório tenha sido mais bem recebido na Alemanha do que na França e que a maioria dos conservadores franceses não entenda o que está em jogo. “Todos os interlocutores que encontramos na África nos disseram que não se tratava de tirar tudo dos museus franceses, porque certas peças são excelentes embaixadoras da cultura de seus países. Mas eles pedem que uma parte significativa dessa herança seja acessível às jovens gerações africanas, que não podem vir à Europa, para que possam recarregar suas baterias, se inspirar e ter como referência a criatividade das gerações anteriores”, explica. A historiadora da arte Marie-Cécile Zinsou – filha de Lionel Zinsou, banqueiro de investimentos e ex-primeiro-ministro do Benin, próximo a Macron – criou um museu de arte contemporânea em Ouidah, uma cidade costeira no sul do país, importante centro de comércio de escravos durante o período do comércio triangular. A decoração limpa do estabelecimento, uma vila colonial de estilo afro-brasileiro, hospeda regularmente as obras de artistas africanos contemporâneos, das quais muitas fazem parte de suas coleções familiares. “O retorno dessas obras marca a retomada da dignidade e do orgulho”, alegra-se a jovem. Em 2006, a Fundação Zinsou, que ela preside, organizou em Cotonou uma exposição dedicada ao rei Béhanzin em colaboração com o Museu do Quai Branly. A mostra atraiu 275 mil pessoas em três meses. “Um verdadeiro sucesso, mas muitos beninenses não entenderam por que os objetos de sua herança tiveram de retornar à França no final da exposição”, observa Zinsou.

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A orientação de Macron para devolver as obras de arte aos países africanos despertou a hostilidade dos conservadores “Transferência ou empréstimo, a médio ou longo prazo, só podemos esperar passivamente a decisão da França”, lamenta, em Cotonou, Alain Godonou, vice-presidente do comitê encarregado da cooperação museológica e patrimonial entre França e Benin. “Para nós, o que permanece fundamental é que o Benin um dia recupere o direito à propriedade desses objetos. Quando oficialmente retornarem ao patrimônio nacional, estejam eles em Paris, Abomei ou Dacar, continuarão a viajar e serão apresentados em exposições. Mas somos nós que decidiremos o destino deles”, acrescenta. Enquanto se aguarda a devolução dos objetos, é preciso resolver a questão dos locais destinados a recebê-los. Em muitos países africanos, os museus herdados da colonização, especialmente os criados pelo Instituto Francês da África Negra (Ifan), não foram mantidos ou, em vários casos, foram saqueados. Em 2016, o artista beninense Romuald Hazoumé elaborou uma avaliação condenatória do estado dos estabelecimentos em seu país e denunciou os muitos roubos que sofreram. “Nossa cultura foi abandonada por cinquenta anos”, dizia ofendi-

do.4 Para ele, o retorno dos 26 objetos reais ao Benin é “uma falsa boa ideia”: “Não quero perder essas peças pela segunda vez”. O destino ideal para eles deveria ter sido o Museu Histórico de Abomei, que ocupa os únicos dois edifícios abertos ao público no vasto local dos palácios reais de Abomei, construídos entre os séculos XVII e XIX por doze reis sucessivos. No início de 2020, após uma rápida restauração do local, alguns dos objetos reais foram novamente exibidos lá, mas uma grande vitrine permanece desesperadamente vazia: a que abrigava a grande espada sagrada, símbolo do poder mágico dos reis durante as guerras, roubada em 2001 e nunca encontrada. Tendo sofrido numerosos roubos e vários incêndios, sem pessoal qualificado, essa instituição oferece poucas garantias. É outro estabelecimento, que deveria ter sido erguido no mesmo local, que herdará os 26 objetos: o Museu da Epopeia das Amazonas e dos Reis do Daomé, financiado em parte por um empréstimo de 12 milhões de euros da Agência Francesa de Desenvolvimento, mas cujo trabalho ainda não foi iniciado. “Ficamos surpresos com a decisão de Emmanuel Macron, que propôs

devolvê-los imediatamente”, admite José Pliya, diretor de programa da Agência Nacional para a Promoção do Patrimônio e Desenvolvimento do Turismo (ANPT). “O presidente Talon é extremamente claro: além do símbolo de reparo e memória recuperada, é a dimensão econômica desses objetos que importa para nós. Eles devem contribuir para a economia de nosso país por meio do desenvolvimento de um turismo ambicioso”, afirma. Para incentivar esse setor ainda marginal, o chefe de Estado o integrou a um vasto plano de investimentos intitulado “O Benim Revelado”, que inclui, entre outras coisas, o aprimoramento do patrimônio natural, o desenvolvimento de locais à beira-mar, como clubes mediterrâneos, safáris em parques de animais5 e a criação de ao menos quatro museus. Mas os recursos financeiros limitados do Estado e o declínio no número de turistas após o sequestro de dois franceses levaram o governo a rever suas ambições e a abandonar dois projetos de coleções públicas. Essa mistura de gêneros surpreende Didier Houénoudé, diretor do Instituto Nacional de Artes, Arqueologia e Cultura da Universidade de Abomei-


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-Calavi: “As autoridades exigiram o retorno desses objetos para desenvolver o turismo de massa. No entanto, corre-se o risco de serem colocados a serviço de um projeto puramente mercantil”, explica. Professor de Arqueologia e Pré-História, Didier N’Dah descobriu nos palácios reais oficinas muito antigas de cunhagem de cauri (uma espécie de búzio), a moeda da época. Vestígios únicos desse tipo. Ele espera que “a restituição de objetos monárquicos também beneficie a pesquisa e o ensino superior, que podem colocá-los em seu contexto histórico”, e lamenta que os políticos não levem em conta a opinião dos pesquisadores. Em seu escritório apertado e desarrumado na Universidade de Abomei-Calavi, ele fala com paixão sobre as escavações que está realizando no país, apesar da falta de recursos. Como faltava arqueologia preventiva, vários locais foram destruídos durante grandes obras financiadas pelo Banco Mundial; outros estão ameaçados por um projeto de oleoduto realizado pela China, sem que os arqueólogos tenham se envolvido nos estudos preliminares. Suas viagens lhe permitiram perceber a riqueza do patrimônio das populações rurais. Eles preservam objetos religiosos, sagrados ou seculares, às vezes com vários séculos de idade, cuja história os mais velhos ainda conhecem. “Um programa deveria permitir revelar toda a cultura que permanece em torno desses objetos endógenos. Antes de desenvolver o turismo em larga escala, é necessário sensibilizar as populações sobre o valor cultural e patrimonial de seus bens, caso contrário elas os venderão”, avalia Didier N’Dah. Até hoje, muitas peças arqueológicas e religiosas são compradas ou roubadas por intermédio de redes de “agências” a serviço de antiquários locais que as revendem para colecionadores estrangeiros. O patri-

mônio nunca deixa de sair do país, vítima de tráfico ilícito.6 Entre os mais populares estão os objetos de vodu, uma religião animista generalizada no Benin. Para Dominique Zinkpè, uma figura da arte contemporânea do Benin, a responsabilidade dos amadores ocidentais, que permanecem ou vivem no país, é uma questão. “As obras que eles cobiçam não são encontradas nos centros de artesanato, mas nas aldeias, e eles sabem que alguém precisa ser pago para roubá-las. As pessoas estão com fome; alguns estão dispostos a vender peças muito importantes que estão no quintal de seus avós”, explica. “E, se há roubo, é porque há um cliente. Os colecionadores estão procurando apenas objetos sagrados, que faziam parte de cultos. É criminoso da parte deles, porque são parte integrante de nossa religião”, reforça o artista. Os intermediários usam a influência do islã e das igrejas evangélicas para pressionar seus seguidores a se livrarem dos acessórios de vodu considerados demoníacos. “Sabemos aproximadamente quantos de nossos objetos estão em exibição nos museus franceses, mas não sabemos nada de tudo o que saiu e continua a sair com os antiquários e colecionadores particulares. As fronteiras são porosas e o controle é difícil”, lamenta Franck Ogou, diretor da Escola do Patrimônio Africano (EPA) de Porto-Novo. Em princípio, apenas cópias podem deixar o Benin, com um certificado emitido pelos serviços patrimoniais. “Infelizmente, os colecionadores aproveitam esses documentos para substituir cópias pelos originais. Os funcionários aduaneiros devem ser treinados, e um desejo real de combater o tráfico deve ser afirmado”, observa Didier N’Dah. Em 17 de janeiro de 2020, nos subúrbios de Cotonou, capital econômica do Benin, o Petit Musée de la Réca-

de realizou uma cerimônia incomum: o embaixador da França, um representante do ministro da Cultura do Benin, membros da família real de Abomei, o Coletivo de Antiquários de Saint-Germain-des-Prés e uma pequena multidão de artistas e estudantes testemunharam a chegada de cerca de trinta objetos pertencentes aos reis de Abomei, a maioria bastões de comando típicos do antigo Reino do Daomé. O estabelecimento foi criado em 2015 pelo negociante de arte francês Robert Vallois, um grande colecionador de obras contemporâneas do Benin, com o apoio de antiquários de Saint-Germain-des-Prés. O museu já incluía cerca de quarenta peças, mas essa nova leva lhe valeu uma consagração. “Para nós, a restituição de obras é algo concreto! Criei este museu para entregá-lo ao Benim, decorado com objetos do Benin”, exclama Vallois. No entanto, para Debie, “é um museu franco-francês que recebeu uma doação franco-francesa”. Com essa operação altamente midiática,7 os que se opõem à restituição demonstram sua eficiência. Isso também lhes oferece a liberdade de criticar o Ministério da Cultura francês: os trinta objetos recebidos são aqueles cuja venda foi suspensa em março de 2019, em Nantes. Como o Benin finalmente não os comprou, o Coletivo de Antiquários de Saint-Germain-des-Prés os adquiriu, conforme planejado, por 24 mil euros. “O Estado beninense poderia ter adquirido. O que esse valor representa para ele?”, indigna-se Bouli. “Estamos começando a duvidar da vontade dos Estados africanos de salvaguardar sua herança. Existem tantos interesses particulares concorrentes neles que os nacionais vêm por último”, questiona. O ativista lembra que o Senegal, que herdou milhares de objetos da antiga África Ocidental francesa, ainda armazenados nas instalações do Ifan em Dacar, nunca

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demonstrou intenção em devolvê-los aos países de onde eles vêm. Três anos após o discurso de Macron em Ouagadougou, nenhum inventário de propriedades a restituir, nenhuma revisão do Código do Patrimônio, nenhuma restituição efetiva. No dia 17 de novembro de 2019, antes de assinar um importante contrato de venda de armas, o primeiro-ministro Édouard Philippe deu ao presidente senegalês, Macky Sall, o sabre de El Hadj Oumar Tall, um resistente à colonização, na forma de um empréstimo de cinco anos ao Museu das Civilizações Negras de Dacar. Depois de causar muito barulho, o “eu quero” presidencial, além da estratégia de comunicação, permanece um desejo piedoso.  *Philippe Baqué  é autor de Un nouvel or noir, pillage des œuvres d’art en Afrique [Um novo ouro negro, pilhagem de obras de arte na África], reeditado em 2021 pela editora Agone. 1   F elwine Sarr e Bénédicte Savoy, Restituer le patrimoine africain [Restituir o patrimônio africano], Philippe Rey/Seuil, Paris, 2018. 2   Nicolas Truong, “Restitutions d’art africain: Au nom de la repentance coloniale, des musées pourraient se retrouver vidés” [Restituições de arte africanas: em nome do arrependimento colonial, museus poderiam ser esvaziados], Le Monde Diplomatique, 28 nov. 2018. 3   Réginald Groux, “Restitutions: et si on faisait un peu d’histoire” [Restituições: e se fizéssemos um pouco de história], La Tribune de l’art, Paris, 4 dez. 2018. 4   “ Romuald Hazoumé: ‘Cela fait cinquante ans que la culture béninoise est à l’abandon’” [Romuald Hazoumé: “Há cinquenta anos a cultura do Benin está abandonada”], Télérama , Paris, 17 set. 2016. 5   Ler Jean-Christophe Servant, “Protection de la nature, safaris et bonnes affaires” [Proteção da natureza, safáris e bons negócios], Le Monde Diplomatique, fev. 2020. 6   Ler Philippe Baqué, “Enquête sur le pillage des objets d’art” [Pesquisa sobre a pilhagem de objetos de arte], Le Monde Diplomatique, jan. 2005. 7   C f. “Retour au Bénin de vingt-huit objets appartenant aux anciens rois d’Abomey” [Retorno ao Benin de 28 objetos pertencentes aos antigos reis de Abomei], Le Monde, 18 jan. 2020.


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PROPOSTAS DE REMUNERAÇÃO DECENTE AOS TRABALHADORES DA CULTURA

A sede por segurança social no mundo das artes O mundo da arte e da cultura, violentamente afetado pela gestão da crise sanitária, se vê diante dos limites de um modelo em que a remuneração está muito conectada com a dinâmica dos mercados. Romper a condição de intermitência em direção a um salário vitalício permitiria aos trabalhadores das artes libertar suas atividades do capital e dos subsídios estatais POR AURÉLIEN CATIN*

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s trabalhadores do setor das artes e da cultura estão em dificuldades. No mundo do espetáculo, salas de teatro e de cinema fecharam, o que significou uma interrupção brutal no processo de difusão das obras e na entrada de dinheiro. Nas artes visuais, galerias e museus deixaram de receber o público. No setor do livro, as vitrines das livrarias permaneceram apagadas durante semanas. Trabalhadores em situações heterogêneas (artistas/autores, empregados, trabalhadores intermitentes, microempreendedores, trabalhadores temporários etc.) viram-se em uma situação de desemprego parcial, sem demanda de trabalho nem recursos. Dezenas de milhares deles estão atualmente sem renda ou na dependência de dispositivos inapropriados, como o “fundo de solidariedade para as TPE [très petites entreprises – pequenas empresas], autônomos e microempresários”, acessível aos artistas/autores desde abril. Ao mesmo tempo, sua proteção social está comprometida, pois recebem apenas uma fração do que ganhavam em um emprego ou no mercado. Para os mais precários é uma dupla punição. Portanto, a crise sanitária é uma catástrofe, mas também um impulso na tomada de consciência. Artistas, autônomos e assalariados experimentam, de maneira inédita, os limites de um modelo em que a renda está ligada ao posto de trabalho ou ao nível flutuante de um benefício individual. Mais do que nunca, parece arcaico ligar a remuneração das pessoas à dinâmica instantânea dos mercados: essa lógica provoca desvios em nome do emprego ou do volume de negócios e expõe os trabalhadores aos abusos do capitalismo. Graças à ação de coletivos de trabalhadores intermitentes engajados na defesa do seguro-desemprego, substituída por movimentos mais recentes como Art en Grève,1 o caminho “normal” da economia cultural é

agora identificado como fonte de sofrimentos e desigualdades. Desse modo, o episódio do coronavírus só reforça uma constatação: o estatuto dos trabalhadores e de todo o setor – seu financiamento, sua organização, suas estruturas e as representações que estas veiculam – deve ser transformado. Nas artes e na cultura, alguns trabalhadores têm um emprego permanente (assalariados da edição, músicos de orquestra etc.), mas a maioria é formada por artistas/autores, trabalhadores intermitentes (com ou sem seguro-desemprego), microempreendedores, estagiários e estudantes. Muitas vezes, a insuficiência de suas rendas e as carências de sua proteção social os levam a procurar um emprego provisório no setor alimentar, que os expõe ainda mais à precariedade. Reunidos em torno de apelos à mobilização, como o do Art en Grève e do Bas les Masques – Arts et Culture,2 muitos destacam a inépcia de um modelo em que a renda depende do valor de cachês, do número de caracteres ou de um benefício. A convicção de que o salário deveria ser um atributo da pessoa se difunde. Em um contexto profissional em que o trabalho gratuito é habitual, os contratos são curtos, às vezes informais, e as remunerações beiram o insulto, a ideia de uma renda básica pode parecer sedutora. No entanto, é preciso superar a questão da “renda mínima” para assumir o real impacto disso. Mais do que uma remuneração mensal de 500 euros distribuída pelo Estado, anuncia-se a ideia de que um salário vitalício concebido como direito político transformaria os trabalhadores das artes em produtores e permitiria que libertassem suas atividades do capital e dos subsídios estatais.

UM NOVO MODELO DE SEGURO-DESEMPREGO Certamente é fundamental lutar para obter melhores condições de tra-

balho no quadro atual, mas trata-se de considerar, sem demora, desconectar o salário do emprego ou do benefício dos autônomos. Hoje, provavelmente o meio mais seguro para conseguir isso é redescobrir as bases do regime da intermitência, um planejamento do seguro-desemprego que permita aos artistas e técnicos do espetáculo conservar seus salários entre dois compromissos. É todo o poder do “salário continuado” que se expressa por meio dessa ferramenta: fora do emprego, os trabalhadores não são pagos por um empregador, mas por um caixa alimentado por cotizações sociais. Desse modo, coloca-se a questão do desenvolvimento de um regime que, como lembra a Coordenação dos Intermitentes e Precários (CIP), não foi criado em nome da exceção cultural, mas para responder a práticas de emprego descontínuo. Ele não decorre de uma singularidade das profissões do mundo do espetáculo, mas pode ser adaptado a qualquer situação de trabalho em que a descontinuidade dos compromissos seja usual. Consequentemente, uma das prioridades deveria ser obter a extensão horizontal do regime de intermitência pela integração dos artistas/ autores, dos autônomos e dos temporários, como também sua extensão vertical, ou seja, baixar o patamar de entrada para 250 horas trabalhadas (contra as atuais 507), para depois chegar a zero hora. A atribuição do salário socializado – isto é, a parte do salário que não é entregue diretamente ao assalariado, mas obtida sob forma de cotizações sociais e depois distribuída a este ou a outros de diferentes formas – de seguro-desemprego a novas profissões, e mais amplamente a qualquer situação de emprego descontínuo, não ocorrerá sem levantar algumas questões. Por exemplo, na arte contemporânea, em que a noção de qualificação – sobre a qual pode se basear um salário para evitar ser re-

munerado por peça – é inexistente e em que a validação do trabalho artístico é uma prerrogativa de uma esfera institucional composta por escolas de arte, pelo mercado e pelo Estado. Entretanto, há um interesse particular em reivindicar um salário para os artistas/autores. Eles constituem uma categoria exemplar da invisibilidade do trabalho e serviram de ponto de apoio ao desmantelamento de instituições do salário consideradas alienantes e anacrônicas. É, entre outras coisas, com base na figura do artista que se efetuou a desqualificação da crítica social em benefício de uma crítica preocupada com o desenvolvimento dos indivíduos e do sentido de seu trabalho concreto. Questionar o salário partindo de um campo a priori hostil tem um sentido: isso permite voltar para a raiz da crítica social e atualizar as reflexões sobre as bases emancipadoras da “Sécu” [Sécurité Sociale – Seguridade Social]. Resta saber como inserir novos trabalhadores das artes e da cultura no regime de intermitência. Concretamente, isso poderia passar por um “novo modelo” de seguro-desemprego tal como propõe a CIP, que preconiza a criação de um anexo único para todos os setores que praticam o emprego descontínuo, com um patamar de entrada fixado a zero hora trabalhada e uma renda garantida equivalente ao salário mínimo interprofissional de crescimento (Smic, o salário mínimo francês). 3 Se não leva em conta a qualificação, esse modelo tem o mérito de proclamar um direito universal e incondicional ao salário socializado e de exigir a gestão do seguro-desemprego pelos próprios interessados.

DEIXAR DE LADO AS EMPRESAS Uma vez estabelecido esse quadro, dispositivos mais leves poderão ser introduzidos em categorias profissionais para gerar a qualificação dos trabalhadores do setor das artes. De fato, para que o salário continuado não seja apenas uma rede de segurança nem a manifestação de uma “solidariedade interprofissional” entre supostos trabalhadores “realmente” produtivos e os outros, ainda seria preciso que se baseasse em uma qualificação pessoal, suporte de direitos políticos. Nas artes visuais, por exemplo, um júri inspirado pela comissão profissional da Sécurité Sociale dos artistas/autores poderia ser encarregada de refletir sobre a validação do trabalho artístico e sobre a progressão do salário dos artistas em função de critérios não capitalistas (antiguidade no cargo, compromisso na prática, projetos passados etc.). Em todos os casos, a consolidação do regime de intermitência deverá ser


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feita mais em nome dos trabalhadores do que em nome dos artistas. “Artista” é uma atividade, “trabalhador”, uma condição, e é a este título que os trabalhadores das artes podem pretender um salário vitalício desconectado do emprego ou do benefício. E também é pelo fato de serem produtores que podem trabalhar para a livre organização das artes e da cultura. Em matéria de produção, o domínio do investimento é uma alavanca decisiva. No capitalismo, são os acionistas e os financiadores que decidem o teor do trabalho e de sua organização. No setor das artes e da cultura, os financiamentos provêm seja do Estado (encomendas, subvenções, reduções fiscais etc.), seja diretamente de potências capitalistas (bancos, colecionadores, fundações de empresa...). São atribuídos por meio de uma concorrência desenfreada entre os artistas e uma competição não menos feroz entre as estruturas. Não haverá autonomia das práticas artísticas e culturais enquanto permanecerem nessa configuração. Com a luta pelo salário vitalício se

desenha uma mobilização para a autogestão. Matriz do seguro-desemprego, o regime geral da Sécurité Sociale não é apenas uma poupança para o salário dos funcionários de hospitais e aposentados, mas também um caixa de investimento que permitiu desenvolver o hospital público sem recorrer a impostos nem a empréstimos. Baseando-se nessa experiência, será possível substituir os subsídios estatais e o mecenato por investimentos socializados. Sob o modelo do “projeto para uma imprensa livre”,4 o financiamento das artes e da cultura poderia ser assegurado por uma cotização social aplicada à produção global. A título de exemplo, uma taxa de 0,1% sobre o valor agregado da mercadoria (que corresponde ao valor econômico criado pelas empresas todo ano, ou seja, 1,439 trilhão de euros em 2018) permitiria socializar 1,4 bilhão de euros por ano para financiar estruturas de produção e de difusão não comercial ou sem fins lucrativos. Esse valor alimentaria uma rede de caixas geridos por representantes

sindicais dos trabalhadores do setor das artes, artistas, pesquisadores, políticos e cidadãos sorteados, cuja missão seria atribuir financiamentos em escala apropriada: nacional ou departamental para um estabelecimento público, comunal ou de bairro para um organismo municipal ou uma associação local. Duas categorias de estruturas poderiam se beneficiar desses recursos: de uma parte, os organismos públicos ou em missão de serviço público; de outra, as estruturas privadas sem fins lucrativos. Certamente, o contrato entre a Sécurité Sociale e o Estado afastará as empresas culturais capitalistas (galerias comerciais, multinacionais do setor do divertimento, plataformas de comércio on-line, grandes produtoras etc.) e os difusores ligados a grupos industriais e financeiros (fundações de empresas). Ao aumentar a taxa de cotização, seria possível imaginar outros usos desses recursos, como a gratuidade de museus. Evoquemos, para concluir, a proposta do sociólogo Bernard Friot de utilizar uma parte da cotização para aumentar os salários

por meio de um cartão de seguro (carte vitale) “de centenas de euros que só poderão ser gastos junto a profissionais convencionados da alimentação, da moradia, dos transportes locais, da energia e da água, da cultura”.5  *Aurélien Catin,  escritor, é autor de Notre condition. Essai sur le salaire au travail artistique [Nossa condição. Ensaio sobre o salário no trabalho artístico], Riot Éditions, 2020. Este artigo foi redigido com a colaboração da Association d’Éducation Populaire Réseau Salariat, que, neste momento, discute perspectivas evocadas neste artigo.

1   V er https://artengreve.com. 2   Ver www.blm-artsetculture.fr. 3   C f. “Un nouveau modèle d’indemnisation du chômage, Coordination des intermittents et précaires d’Île-de-France” [Um novo modelo de indenização do desemprego, Coordenação dos Intermitentes e Precários da Île-de-France], nov. 2014. Disponível em: www.cip-idf.org. 4   Ler Pierre Rimbert, “Projet pour une presse libre” [Projeto para uma imprensa livre], Le Monde Diplomatique, dez. 2014. 5   Bernard Friot, “Penser un monde nouveau. Une sécurité sociale des productions” [Pensar um mundo novo. Um seguro social das produções], L’Humanité, Paris, 20 maio 2020.


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SER ÚTIL, TRABALHAR PARA O INTERESSE COLETIVO... OU NÃO

Afinal, para que servem os artistas? Desde o século XIX, os artistas interrogam-se se poderão viver de sua prática e (o que está relacionado com essa questão) qual é seu papel na sociedade. Sobre esta última, contudo, todos se questionam. Parasita inspirado? Fornecedor de alimento para a alma? O artista possui uma especificidade que pode torná-lo útil ou utilizável? POR EVELYNE PIEILLER*

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aravilhoso: a arte é hoje muito, muito bem-vista por nossos políticos, parece até uma solução milagrosa para os múltiplos problemas suscitados ou agravados pela “crise” sanitária e social atual. Sem exageros, trata-se quase sempre da-arte-e-da-cultura, seja lá o que se entenda por isso. Mesmo assim, é um momento impactante. Em 2 de maio, responden-

do a uma coluna chamada “A cultura esquecida” (Le Monde, 30 abr.), assinada por diversos artistas famosos, Emmanuel Macron lhes dirigiu um tuíte entusiasmado: “O futuro não pode se inventar sem o poder de imaginação de vocês”. Em 6 de maio, para concluir seu encontro com alguns outros, afirmou vigorosamente que será lançado um programa de patrocínios públicos (voltado aos jovens,

sabe-se lá por quê...) e que “a criação artística é algo essencial que se tornou ainda importante para nossos cidadãos durante este período”. A língua é hesitante, a ideia é poderosa. Além disso, todo o confinamento foi ritmado por elogios comoventes aos poderes da arte, consoladora imprevista dos cidadãos – on-line, é claro, mas estando cada um deles prestes a descobrir que esta “possibilita

ao mesmo tempo mantermos o elo com os outros e nos fortalecer, proteger, enriquecer”, como sintetizou o presidente do Centro Pompidou.1

“O QUE FAZEM NÃO SE CHAMA TRABALHO” A arte está sendo celebrada como necessária. Aliás, foi recrutada para a operação presidencial do “verão de aprendizado e de cultura”, destinado a “recolocar [re-colocar?] as artes e a cultura no cerne da vida dos jovens e de suas famílias, a partir do verão”, como se lê nos sites do Ministério da Cultura e do Ministério da Educação Nacional e da Juventude. Um exemplo, para esclarecer: o Teatro do Odéon-Teatro da Europa, que obedeceu imediatamente, oferecendo intervenções sobre as “mulheres na obra de Molière” ou as Mil e uma noites. Educativo, agente da ligação social e até do cuidado, o artista se vê alçado a uma posição entre os profissionais úteis, senão indispensáveis. Tal questionamento da utilidade social, que talvez receba respostas muito diferentes, ainda não foi feito nem pelos artistas, nem por seus patrocinadores, nem, de forma mais ampla, pelo público. Durante séculos, sua função não foi discutida: recebiam encomendas e subsídios dos poderosos, e contribuíam com suas obras para cantar a glória destes últimos, tornar sensível seu poder de influência, manifestar a grandiosidade de uma comunidade nacional ou religiosa, ou de uma classe em ascensão, inclusive por meio do divertimento. Pintores, dramaturgos, músicos, mal possuíam sentimentos até então, o que não os impedia de ter problemas financeiros e de ego quando os mecenas lhes davam as costas. “Criadores” ou “artistas”, eles encontraram seu lugar na sociedade. Forneciam um trabalho que raramente precisavam justificar ou teorizar, senão perante seus pares, como o fez Pierre Corneille com O Cid, diante dos ataques da Academia Francesa, que achou a peça um pouco controversa por causa da verossimilhança e levemente chocante para a moral. A sociedade não questionava ainda a legitimidade de sua existência. Foi preciso aguardar até o século XIX para que a sociedade e os próprios artistas se perguntassem para quem e para que criam, e por quem e por que podem ser remunerados. Os patrocinadores do Antigo Regime desapareceram, novos circuitos de difusão se instalaram, novos valores também, tanto estéticos como morais. Para a opinião dominante, conforme definição maldosa, mas não muito surpreendente, do Dicionário das ideias feitas de Gustave Flaubert, a arte desde então “leva ao hospital”


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– em outras palavras, à miséria –; quanto aos artistas, “o que fazem não se chama trabalho”. Do lado dos artistas, o mal-estar foi dominante. Cada vez mais numerosos, cada vez mais sujeitos à aprovação do máximo de pessoas caso desejassem “vencer”, indagaram-se: produzir para os “burgueses” que desprezamos? Para o povo que não está interessado? Em um mundo que privilegia o útil e o rentável, para que serve a busca gratuita do ideal do Belo? Desenvolveram-se então as posturas do “artista maldito”, do incompreendido e também daquele que se refugiava em sua “torre de marfim”, reivindicando sua “inutilidade”, entregue à solidão exaltada da arte pela arte, enquanto se abria um fosso entre os inovadores e o público. A exemplo de Honoré Daumier ou Camille Pissarro, que colaboraram com jornais; de Gustavo Courbet, que organizou ele próprio a exposição de suas obras, separadas da seleção oficial que as recusou por ocasião da Exposição Universal de 1885; e de Victor Hugo, que viria a escolher escrever para o povo, todos os artistas do faustoso século XIX não queriam ser inúteis, fora do circuito, membros de uma elite que só se preocupava consigo mesma. Mas tal posição de rompimento com a aristocracia, de rejeição da – e pela – massa, induzida pelo cenário político e social e em seguida teorizada, pelo contrário, como coinventada de forma espelhada pelo público que os abandonou e pelos artistas que este último marginalizou, iria fixar uma representação do artista como parasita mais ou menos inspirado, diferente de outros cidadãos, cuja prática e eventual talento se colocam “à parte”. E uma representação da arte, de preferência uma que não fosse rentável, como “alimento da alma”, o que, para ser graciosamente ambíguo, não quer dizer que estavam menos do lado do supérfluo.

“À DEMANDA DOS CIDADÃOS” Em momentos particulares da história coletiva, porém, governos, sociedades, pintores e escritores passaram a definir e empregar a utilidade dos artistas, em planos diversos. Desse modo, redescobrimos isso pouco depois do New Deal, na boca de dirigentes e seus intermediários. Apareceu de repente como um modelo para nossos tempos de “crise”. É verdade que esse New Deal lançado pelo presidente Franklin Delano Roosevelt em 1933 e que duraria até a guerra constituiu uma reviravolta. Os artistas foram considerados trabalhadores, dispondo de capacidades particulares, podendo ser remunerados como tais. O New Deal permitiu que fossem recrutados atores (13 mil), es-

critores (7 mil), músicos (2,5 mil)..., todos encarregados de uma missão de interesse geral: criar a educação popular, animar grupos de amadores, oferecer o teatro onde não havia, gravar músicas negras do sul, recolher relatos de descendentes de escravos, embelezar os bairros com murais (2.500), no espírito dos muralistas mexicanos Diego Rivera ou David Siqueiros, escrever a história das cidades, testemunhar com fotografias a Grande Depressão etc. Isso foi impressionante. De Orson Welles ao pintor Jackson Pollock, dos fotógrafos Dorothea Lange e Walker Evans aos escritores Richard Wright, autor de Black Boy, Saul Bellow ou John Steinbeck, uma boa parte desses que ainda nos são necessários trabalhou nessa situação. Sua especificidade esteve a serviço do interesse coletivo. Estiveram longe do alimento da alma e da solidão do excêntrico inadaptado. 2 Essa integração do artista tendo como pano de fundo greves maciças na indústria, marchas da fome, reivindicações trazidas principalmente por um Partido Comunista bem ativo, foi justificada por uma razão econômica – diminuir o número de desempregados – e pela vontade de dar ao país uma grande cultura nacional. Os resultados seriam surpreendentes, fazendo os atores-operários e a comédia musical se reunirem, 3 aumentando a pintura regionalista, multiplicando a confrontação de profissionais e de amadores, florescendo o agitprop e a estética inspirada por Bertolt Brecht... Trabalharam pela nação – alguns entenderam estar trabalhando pelo povo –; sua utilidade foi reconhecida sem contestação (25 milhões de norte-americanos descobriram o teatro), mas o conjunto rapidamente pareceria muito “vermelho” para os membros da Comissão de Atividades Antiamericanas, na era do macarthismo. Na mesma época, precisamente na União Soviética, abriu-se outra via para determinar os deveres que confeririam aos artistas seus direitos: deveriam seguir a doutrina do realismo socialista. Em 1934, no primeiro Congresso de Escritores Soviéticos, os estatutos de sua União cercaram esta estética: “O realismo socialista, na qualidade de método fundamental [...], exige do artista uma representação verídica, historicamente concreta, da realidade em seu desenvolvimento revolucionário. Pelo caráter historicamente concreto e verídico de sua representação da realidade, ele deve contribuir para a transformação ideológica e para a educação dos trabalhadores no espírito do socialismo”. Tratou-se também, aqui, de ser útil, mas pela ade-

quação da forma e do cenário à empreitada revolucionária. Enquanto o New Deal conheceu o esquecimento antes de se tornar hoje um exemplo, tal legitimação do artista pela política, considerada uma sujeição da liberdade do criador a normas e objetivos ideológicos, não foi esquecida, e seu descrédito é até hoje vibrante. Podemos, no entanto, nos interrogar, quaisquer que sejam os méritos excepcionais do New Deal: que lugar existe para a “liberdade do criador” quando, para ser assalariado, deve-se estar a serviço da nação?

Que lugar existe para a “liberdade do criador” quando, para ser assalariado, deve-se estar a serviço da nação? Questão ainda mais na ordem do dia... Como evitar que o artista seja reconhecido como necessário à sociedade sem solicitar, de um ao acaso ou do todo coletivo, que contribua para a grandeza do país, eduque a população, sirva para sua coesão, participe de uma vontade coletiva, o que pode implicar limitar suas aspirações e atentar contra aquilo que há de mais íntimo? O Les Nouveaux Commanditaires [Os Novos Patrocinadores] estima ter a solução. Iniciado em 1991 pelo fotógrafo François Hers, apoiado pela Fondation de France e encorajado pelo sociólogo Bruno Latour, esse movimento quer fazer nascer uma “arte da democracia”, pois, como afirma, em resposta à proposta presidencial dos patrocínios futuros, o historiador da arte Thomas Schlesser, “a finalidade não pode mais somente ser sustentar a oferta criativa dos artistas plásticos, arquitetos, compositores ou escritores; na democracia, a finalidade deve ser a de uma resposta à demanda dos cidadãos”.4 A fim de, por exemplo, “tornar visível um lugar ou uma atividade depreciada, reviver uma memória, materializar um pertencimento identitário, melhorar uma situação de vida”, um protocolo de discussão e negociação está em curso com o artista proposto como um mediador (os artistas plásticos Daniel Buren ou Xavier Veilhan, o arquiteto Patrick Bouchain...), o que “supõe de sua parte uma bela escuta e aceitação de uma horizontalidade verdadeira”. Foi assim que nasceu, da necessidade de nove habitantes do bairro, o coração pulsante no alto de um mastro de 8 metros que avermelha a Porta de Clignancourt, em Paris – uma obra da artista portuguesa Joana Vasconce-

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los. Nessa “arte da democracia”, “não cabe mais ao ministério realizar uma política cultural, cabe a nós – cidadãos e cidadãs, nós, artistas – conduzi-la juntos”, cabe a ela construir um “sistema de delegação às empresas privadas”. É preciso apostar que esse modelo promovido por uma instituição de direito também privado tenha belas perspectivas: convida o artista a casar temas eleitos pela ideologia dominante, santificados pela “cidadania” e horizontalidade, o que autoriza a acabar com o princípio de uma política pública e convida o novo patrocinador a escolher em um catálogo de artistas devidamente validados pelo mercado. Do cliente ao prestador de serviços, o artista é um embelezador que responde a uma demanda local de cuidado. Decididamente... Em 1935, nos tempos do então fascismo, nazismo, início do Grande Expurgo stalinista e da aurora da Frente Popular francesa, acontecia em Paris o Congresso Internacional de Escritores pela Defesa da Cultura.5 Os 230 participantes, entre eles muitos exilados (Bertolt Brecht, Ernst Toller, Heinrich e Klaus Mann etc.), interrogaram-se sobre o sentido de seu trabalho, naquele preciso momento. Para quem, para quê... Experimentar, esclarecer? Escolher o íntimo ou o político? Foi talvez com o filósofo Ernst Bloch que se desenhou uma resposta: “Resta no mundo uma boa parte de sonho que ainda não foi utilizado, de história que não foi elaborada, de natureza que não foi vendida”. Perceber aquilo que nos falta e poder desejá-lo, eis o que é magnificamente útil – a todos.   *Evelyne Pieiller  é jornalista do Le Monde Diplomatique.

1   E ncontro com Serge Lasvignes, L’art est absolument crucial [A arte é absolutamente crucial], RFI, 17 mar. 2020. 2   C f. Francis V. O’Connor, Art for the Millions: Essays from the 1930’s by Artists and Administrators of the WPA Federal Art Project [Arte para os milhões: ensaios dos anos 1930 por artistas e administradores da WPA Federal Art Project], New York Graphic Society, 1975. 3   C f. “Pins and needles”, une comédie musicale syndicale [“Alfinetes e agulhas”, uma comédia musical sindical], 42e Rue, France Musique, 2 nov. 2014. 4   Thomas Schlesser, Si on veut que la commande soit l’avenir de l’art, il faut la rendre vraiment démocratique [Se queremos que o patrocínio seja o futuro da arte, é preciso torná-lo verdadeiramente democrático], Le Monde, 8 jun. 2020. Cf. também Les Nouveaux commanditaires. Faire art comme on fait société [Os Novos Patrocinadores. Fazer arte como fazemos a sociedade], Les Presses du Réel, Dijon, 2013, e o site www.nouveauxcommanditaires.eu. 5   Pour la défense de la culture. Les textes du Congrès international des écrivains. Paris, juin 1935 [Para a defesa da cultura. Os textos do Congresso Internacional de Escritores. Paris, jun. 1935], reunidos e apresentados por Sandra Teroni e Wolfgang Klein, Éditions Universitaires de Dijon, 2005.


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MÚSICA

Os usos de Johann Sebastian Bach De 1750, ano da morte do compositor, multi-instrumentista, professor, cantor e maestro, até os dias de hoje, a herança musical de Johann Sebastian Bach, que instalou as bases da tonalidade, jamais parou de frutificar – uma vitória da “música absoluta”, frequentemente celebrada, interpretada, recuperada... POR AGATHE MÉLINAND*

E

m 31 de julho de 1750 enterraram em Leipzig “um homem de 67 anos, o senhor Johann Sebastian Bach, mestre de capela e diretor de coro da Escola Saint-Thomas, falecido na terça-feira. Quatro filhos menores, carro fúnebre grátis”.1 A família do compositor se mudou. Wilhelm Friedmann, o filho predileto, dirigia a música da cidade de Halle; Carl Philipp Emanuel era o cravista da corte do rei da Prússia, Frederico, o Grande... Os mais velhos dividiram os bens, venderam os cravos, os violinos e as cafeteiras. Anna Magdalena, a madrasta, viveu “o lamentável estado de viúva”2 durante dez anos, em seguida morreu, discretamente, na miséria. Ninguém escreveu uma ode fúnebre. É interessante imaginar o velho Bach esquecido e pensar que sua Paixão segundo São Mateus, dirigida em 1829 pelo jovem Felix Mendelssohn, em Berlim, foi uma ressurreição. Na verdade, o evento foi um clímax. Embora a fama do “cantor de Leipzig” ultrapassasse pouco as fronteiras da Saxônia na época de sua morte, ainda que não fosse popular, ele era conhecido. Seus filhos, alunos, músicos, colecionadores e

mecenas propagaram sua posterioridade até o “novo dia mais radiante”3 de 1829, que fez Berlim entrar na história da música. Deve-se imaginar que, na época da morte de Bach, o reino da Prússia balançava entre o humor galante, o pietismo e o Empfindsamkeit (sentimentalismo). Escala menor e audácia harmônica, dor e paixão! Nas cortes principescas ou salões da burguesia, evocava-se o Iluminismo e os progressos da indústria. O rei tocava flauta e escrevia a Voltaire. Após a morte de Bach, Carl Philipp Emanuel, bem mais famoso que seu pai, deu entrada no registro da primeira edição de A arte da fuga. Foram vendidos trinta exemplares. Embora estivesse ocupado em consolidar o catálogo de suas próprias obras, publicou o Obituário, muito útil para as futuras biografias de seu pai. Mas a herança musical se dispersou. Johann Christian deixou os manuscritos em Berlim quando partiu para Milão. Wilhelm Friedmann, generoso, deprimido, pobre e que não tocava mais nenhuma nota da música de seu pai, doou-os ou vendeu-os – principalmente ao pai de Mendelssohn. Carl Philipp Emanuel publicaria ainda um terço

dos Corais a quatro vozes e em seguida também venderia os manuscritos. Seriam precisos dois séculos para recuperar tudo o que se dispersara. Felizmente, Johann Philipp Kirnberger, seu aluno, lembrou-se do que Bach lhe dizia: “Eu não exijo de você nada além da garantia de que irá transmitir essas poucas coisas a pessoas boas”. Os alunos, estudantes e visitantes iriam compartilhar seus ensinamentos, tocar suas obras e fazer circular os manuscritos. Kirnberger, que se tornou mestre de capela na corte de Frederico, o Grande, ensinaria composição a Ana Amália, irmã do rei. Aluna dos filhos de Bach, ela se apaixonou pelo pai deles, organizou concertos, colecionou os manuscritos e constituiu uma incrível Bachbibliothek, hoje conservada em Berlim. Ana Amália se lembrava sem dúvida da visita do velho Bach a Potsdam em 1747. O rei, que tocava flauta, executou a Oferenda musical que o cantor lhe enviou. Em 1782, Mozart escreveu de Viena, capital repleta de arte: “Eu vou todos os domingos ao meio-dia à casa do barão Van Swieten, onde só tocamos Haendel e Bach”.4 José II, o imperador-músico, reinava. Novas leis e

decretos. Gottfried van Swieten, formidável diplomata melômano, ex-embaixador da Áustria em Bruxelas, Paris, Varsóvia e Berlim, apoiava Haydn, Mozart e Beethoven, que aos 12 anos tocava O cravo bem temperado. Sua Gesellschaft der Associerten, reunião de nobres melômanos, reunia toda a nata musical de Viena. Swieten faria tanto por Bach que Johann Forkel, em 1802, dedicou-lhe Johann Sebastian Bach, sua vida, arte e obra, a primeira biografia do compositor. No subtítulo: “Para os patriotas admiradores da autêntica arte musical”. Enfim, no começo do século XIX, não havia um organista, cantor ou diretor de música que não possuísse pelo menos uma partitura de Johann Sebastian Bach. Voltemos a Berlim, em 11 de março de 1829, para o que a imprensa chamaria de “a grande festa da religião e da arte”. Cem anos após sua criação, se reviveria a Paixão segundo São Mateus. O rei da Prússia e a alta roda de Berlim se sentaram na sala da Singakademie, famosíssima associação coral. Mendelssohn reescreveu e editou a obra. Seu professor já se gabava de ter feito o mesmo em uma carta a Goethe, em 1827: “Foi assim que fiz o arranjo, para meu uso pessoal, de muitas cantatas, e meu coração me disse que lá de cima o velho Bach me aprovava com um movimento de cabeça: ‘Sim, está certo!’”. Talvez. Embora o clima de Beethoven predominasse, com a dramatização dos sons e as viradas cansativas do romantismo, a redescoberta da “música absoluta” encantou: “A maior e mais sagrada obra de arte musical de todos os povos!” e “o próprio símbolo da fé protestante, cuja pátria foi a Prússia”, exclamavam as resenhas. É claro que o terreno havia sido preparado, e não somente pelos projetos de edição ou pela publicidade. Uma nova Europa se construía sobre

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a humilhação de Napoleão. O Congresso de Viena, em 1815, desenhou por cinquenta anos a Confederação Germânica – uma reunião de principados e cidades livres, uma grande parte da Prússia e da Áustria, que se desafiavam. Tanto na arte quanto na política, os conservadores se opuseram aos progressistas do movimento Jovem Alemanha, do qual eram próximos os escritores Georg Büchner e Heinrich Heine. Os conceitos de Pequena Alemanha, ao redor da Prússia e sem a Áustria, e de Grande Alemanha, um Estado-nação ao redor da Áustria, alimentavam as paixões. Exasperação do orgulho luterano diante da Áustria católica, sonho de unidade nacional... O que há de mais alemão que A paixão segundo São Mateus? E mais unificador que Johann Sebastian Bach, dirigido por um gênio bem-educado de 20 anos? Concerto fundador, gesto romântico, patriótico e sagrado... Em 1834, um trovão: a Inglaterra criou a Haendel Society. Quinze anos depois – choque! –, a primeira Bach Society. Alguns alemães, entre eles Robert Schumann, indignaram-se. A resposta seria monumental. Para o centésimo aniversário da morte do compositor, fundaram a Bach-Gesellschaft, cujo objetivo era a edição, completa e crítica, de toda sua obra. Franz Hauser, grande colecionador, colaborou. Bach, que instalou as bases da tonalidade – o “pai da música” –, também iria modificá-la. Abordagem global do assunto, início da musicologia. Editaram 47 volumes em 49 anos, depois a sociedade se desfez. Franz Liszt e Johannes Brahms eram membros muito ativos. Paris, 1835. O húngaro Liszt – ainda ele –, o polonês Frédéric Chopin e o alemão Ferdinand Hiller tocam O concerto para três cravos. Hector Berlioz: “Era desagradável ver três talentos admiráveis reunidos para reproduzir essa confusa e ridícula salmodia”.5 O que fazer? O momento estava para o romantismo e, duas décadas depois, o Segundo Império seria muito pouco luterano, muito pouco “temperado”. Além disso, Bach tinha a reputação de ser impossível de tocar e, sobretudo, adorava-se Beethoven, o indomável, como dizia Goethe. Ou como o entendia Victor Hugo: “O grande inglês é Shakespeare, e o grande alemão é Beethoven”6 – astro incontestável e lucrativo das poderosas sociedades de concertos... A França descobriria de verdade Bach com cinquenta anos de atraso em relação aos anglo-saxões. Em 1885, a Revue des Deux Mondes escreveu: “Johann Sebastian Bach é quase famoso na França desde que Gounod usou para o acompanhamento de uma melodia de sua composição o

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primeiro prelúdio de cravo do velho mestre”. Viva! “Ave Maria!”, Bach não é mais pedante nem chato! Foi graças a Charles Gounod ou à Missa em si menor executada pela Sociedade de Concertos do Conservatório? Foi o desgosto pelo romantismo, o simbolismo ou a obra de órgão integral que Marcel Dupré tocaria em Paris? Descobrimos Bach, o respeitamos e sobretudo o tocamos! Em 1889 o piano moderno acabara de ser inventado e Ferruccio Busoni, um instrumentista de 20 anos, louco por Bach, esteve em Leipzig com Gustav Mahler e Edvard Grieg. É preciso imaginar Leipzig, a famosa sala do Gewandhaus e sua orquestra outrora dirigida por Mendelssohn, recebendo a fina flor da Europa musical. Prelúdios, tocatas... O jovem Busoni recriaria Bach, como Bach havia transcrito Vivaldi. Ele abriu um novo caminho. Desprovido de órgão e coro, era apenas o piano, interiorizado, que desenhava o contraponto. Em seguida, meio século depois, veio Dinu Lipatti, suas interpretações claras do Bach de Busoni, e chegamos muito rápido a Glen Gould, detestando Busoni, embora sua empreitada e aspirações fossem muito próximas às dele. Gould, fechado em seu estúdio, tocando, gemendo. Gould, em seu tempo, fez o mesmo por Bach que Bach fez por Deus, segundo Emil Cioran. Gould e

seu Bach íntimo que lhe pertence, absolutamente. “No fundo, Bach era um arquiteto.” Em Lambaréné, no Gabão, onde se instalou às vésperas da Primeira Guerra Mundial, Albert Schweitzer, cidadão da Alsácia-Lorena anexada, tocava um prelúdio de Bach no piano com pedais. O Prêmio Nobel da Paz, pastor, organista, médico-missionário, pregava com sotaque alsaciano e saiu em turnê tocando Bach para financiar seu hospital. Colonização com fundo de música sacra... Podemos discutir sua ação humanitária ou seus talentos de organista, mas gostamos de O músico poeta, seu estudo publicado em 1905. Schweitzer, o precursor, escreve sobre a força arquitetural e simbólica do “Michelangelo da música”. Bach se reergueria da Segunda Guerra Mundial. Aquela Alemanha que difundia sua música pelos alto-falantes nos campos e obrigava as orquestras de deportados a tocá-la não era a sua. Vladimir Jankélévitch, o filósofo-musicólogo, escreveu: “Eu ousaria dizer que Bach me deixa entediado?”. Não importava. Houve uma explosão de Bach após a Libertação da França, ainda mais quando inventaram o disco de vinil. A continuação da história é mais conhecida: da primeira gravação do Cravo bem temperado em 1930 à explosão barroca nos anos 1950, com

Nikolaus Harnoncourt, seguido de Gustav Leonhardt, preferindo tocar instrumentos antigos, até sua recuperação política quando, sentado em uma banqueta, o violonista Mstislav Rostropovitch tocou a Suite n. 3 durante a queda do Muro de Berlim. Menos conhecido é seu legado, tal como foi colocado em prática por Arnold Schönberg, Alban Berg ou John Cage, por meio da invenção do dodecafonismo, a fuga em doze sons. Mais adiante vieram os minimalistas, Steve Reich, Philip Glass... Johann Sebastian Bach comparava cada parte de uma composição a uma pessoa falando. Neste momento, no espaço interestelar, as sondas Voyager se afastam em direção ao infinito. Elas carregam um disco de ouro contendo a Partita n. 3.  *Agathe Mélinand,  dramaturga e diretora, escreveu e dirigiu Le petit livre d’Anna Magdalena Bach [O pequeno livro de Anna Magdalena Bach], em 2020.

1   A rquivos municipais, Leipzig. Bach tinha na verdade 65 anos. 2   Súplica de Anna Magdalena Bach, arquivos municipais, Leipzig, 1750. 3   Berliner Allgemeine Musikalische Zeitung, mar. 1829. 4   M ozart, Carta a seu pai, arquivos Mozart, Salzburgo. 5   Hector Berlioz, Critique musicale, Buchet-Chastel, Paris, 1996. 6   V ictor Hugo, William Shakespeare, 1864.


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UM ESCRITOR, UM PAÍS

Babel jovem e inocente Autor entre os mais oníricos de seu tempo, Yan Lianke se apossa dos males da sociedade chinesa, correndo o risco de ser censurado em seu próprio país, mas não cede nem um pouco em seu comprometimento, humor e escrita. Aqueles que revelam a verdade – ou simplesmente a realidade – pagam por isso às vezes com a morte, como neste conto especialmente escrito para o Le Monde Diplomatique POR YAN LIANKE*

“O

rapaz ia à cidade. Em direção ao leste, ao nascer do dia seguinte. As férias de verão jorravam como suor. Na véspera, a última aula fora muito simples, tal como um problema de matemática resolvido desde a leitura do enunciado. Fim da aula. As férias começavam. O rapaz se lançou para fora da sala de aula. Na entrada da escola, o mural de avisos estava coberto de pequenos papéis. Em um deles estava escrito: “Querida XXX, eu te amo tanto que a cada noite sou obrigado a me aliviar sozinho”. Em um outro: “Zhang, você ainda não me devolveu os três yuans que te emprestei este semestre!”. Entre todos esses papéis, havia um, vermelho-vivo, no entanto escrito com uma caneta esferográfica de tinta preta e grossa, com uma frase desconhecida, em inglês: “I fuck your mom”. Essa sequência de letras lhe causou o efeito de um voo de gansos selvagens em sua direção. Ele levou os pássaros para casa. Deixou a mochila e se dirigiu ao fundo do vilarejo, à casa do professor, que estava alimentando os porcos. O menino lhe entregou o papel vermelho, o educador leu e ruborizou-se antes de anunciar três observações: – Eu não sei direito o que significa essa frase. Também não vale a pena ir perguntar a outras pessoas; de qualquer modo, no próximo semestre você passará a uma série superior e aprenderá inglês. A terceira observação foi apenas uma recomendação insistente, como relembrou o rapaz enquanto voltava para casa:

– Ei! Sobretudo não pergunte a ninguém, essa frase com certeza não é boa de escutar! O moleque ficou com ainda mais vontade de se informar. Mais vontade ainda de saber o que significava “I fuck your mom”. No dia seguinte, decidiu ir à cidade para questionar o professor de inglês. Levantou-se cedo, tomou o café da manhã que sua mãe havia preparado, colocou no bolso o dinheiro que seu pai lhe dera e, enquanto o sol erguia sua bandeira, deixou a casa. Caminhou alguns lis,1 chegou à rota do cume da montanha para esperar ao pé de uma velha Sophora por um ônibus que atendia à zona rural. Nesse momento, um grupo de joaninhas passou diante dele, tão rápido como um raio; em seguida, algumas borboletas o rodearam. Então pensou consigo que era melhor andar. A pé pode-se ver a paisagem. Foi então assim, tranquilamente, até a entrada da cidade. Enfim, parecia que o ideal o abraçava. Os prédios, as casas novas e o pórtico sobre uma larga avenida. Restaurantes à margem, as bancas e os feirantes espalhados. Era bem ali seu destino. Embora esgotado, a ideia de encontrar logo o professor de inglês fazia que nem sentisse mais o cansaço. Tirou do bolso o papel vermelho, deu uma olhada nele e, verificando que o papel com a frase “I fuck your mom” ainda estava lá, passou pelo pórtico. Uma dezena de metros à frente, avistou uma jovem mulher que vendia saias. Perguntou-lhe se conhecia o endereço do professor de inglês; ela respondeu-lhe que não. No mesmo instante, um jovem homem surgiu de trás dela, com uma sacola de saias no braço, a qual colocou no chão antes de perguntar:

Conto inédito de Yan Lianke exclusivo para o Le Monde Diplomatique – É o senhor Zhao, o professor de inglês do colégio, que você procura? O menino arregalou os olhos. – É meu primo. Acrescentou que era inútil procurá-lo em sua casa, pois, sendo dia de feira, o professor Zhao estaria certamente na loja de eletrodomésticos Mondial, na segunda avenida. Ele ensinou o rapaz a chegar lá. O garoto hesitou e se dirigiu por fim ao endereço indicado. Ao final de uma avenida comprida de dois lis, encontrou a loja. O professor de inglês estava ali de fato. Era o proprietário e, embora seu irmão e sua cunhada ficassem lá habitualmente, o senhor Zhao se instalava atrás do balcão durante as férias escolares. Era um homem de 40 anos, estatura média, vestindo uma camisa branca, cabelos curtos penteados com escova, calçando sapatos de couro sujos e com marcas, um jeans antigo, exatamente como se apresentava no colégio. A loja era constituída de três cômodos, as prateleiras cheias de fornos elétricos, chaleiras elétricas, lâmpadas, tomadas etc. No chão, ao longo das paredes, televisores de todos os tamanhos, produzidos na China ou importados. Um adolescente, um

pouco mais velho que nosso protagonista, ia e vinha diante do balcão, sem ter o que fazer. O professor de inglês conversava com um casal de pessoas de idade diante de um grande aparelho, cujo preço discutiam. O rapaz entrou. Permaneceu timidamente na soleira da porta. Não avançou, aguardando com paciência até que o professor e as pessoas idosas terminassem sua conversa. Por fim, o casal declinou da compra, o professor os acompanhou até a saída, virou-se e, ao garoto que o observava com vergonha, perguntou: – Você quer comprar algo? – Eu sou do colégio do burgo. Estendeu-lhe o papel dobrado em quatro e acrescentou: – Queria lhe perguntar o que significa a frase escrita em inglês nesse papel. O professor pegou o papel, desdobrou-o. Ficou levemente branco, com o rosto contraído. Perguntou ao menino quem havia escrito aquilo. O rapaz respondeu que havia visto o bilhete no dia anterior, antes de sair de férias, no mural de recados na entrada da escola. O professor o olhou bem dentro dos olhos e fez outra pergunta:


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– Você não sabe realmente o que significa esta frase? – Somente no semestre que vem eu vou começar a aprender inglês. O professor lhe entregou o papel. – Bem, você terá sua resposta no semestre que vem. O menino se recusou a pegar o papel de novo, elevou um pouco a voz e insistiu:

– Eu vim especialmente para lhe perguntar isso, andei mais de vinte lis! O professor parecia em dúvida. Seus olhos se voltaram, gelados, para o rosto da criança: – Vinte lis? – Vinte lis. Essa última réplica satisfez o rapaz. Viu na expressão do professor que este estava surpreso e desconcertado, então prosseguiu: – Também vim à cidade com a intenção de comprar alguns livros. Aliviado, o professor lhe acariciou um pouco a cabeça e disse: – Já que você tem de ir à livraria, compre também um dicionário inglês-chinês, lá você encontrará o que significa essa frase. E acrescentou: – Não tenho meu dicionário comigo, não sei muito bem como traduzir essa frase corretamente para você. Ele parecia lamentar e falava com um sorriso confuso e pálido nos lábios. Em seguida, dobrou de novo o papel e deslizou-o na mão do menino. O moleque saiu da loja um pouco perdido e parou, desconcertado, na soleira. Na rua, uma maré humana se dirigia à feira, o calor do mês de junho se espalhava e os vapores de suor fervente preenchiam o mundo. Ele hesitou e lentamente percorreu a avenida em direção à livraria. De repente, alguém surgiu de trás dele e bateu em suas costas. Ele parou. Virou-se. Era o adolescente que havia visto mais cedo na loja. Dez centímetros maior que ele e parecendo dois ou quatro anos mais velho. – Sei o que significa a frase que você mostrou ao professor Zhao – disse ele estendendo a mão para que lhe entregasse o papel vermelho-escuro. O garoto o entregou. O mais velho o desdobrou e em seu rosto se formou um estranho sorriso:

– Eu vou te dizer o que significa esta frase, mas você precisa me pagar uma melancia. O menino o encarou. O rapaz olhou ao redor e fixou o olhar na lateral da avenida. Havia lá uma barraca de melancias. O vendedor estava exatamente descarregando-as para dispô-las no chão. Em uma mesa em frente a seu carro, uma fruta que tinha acabado de ser cortada se avermelhava como um sol se elevando ao topo dos montes. O adolescente escolheu com habilidade uma melancia na bancada, entregou-a ao vendedor para que a pesasse, deixou o menino pagar três yuans e vinte centavos e em seguida puxou-a para perto de si. Mais uma vez olhou para o papel e, com uma voz calma, declarou: – Essa frase quer dizer “Eu como sua mãe”. O menino o examinou com ar de espanto, parecendo não compreendê-lo. O maior repetiu com seriedade: – É verdade! É “Eu como sua mãe”! Achando que o garoto poderia não estar acreditando nele, pela terceira vez releu a frase em inglês e repetiu a tradução “Eu como sua mãe”. O menino continuava simplesmente a encará-lo, com um leve tremor no canto dos lábios, e, quando o maior lhe estendeu o papel, voltou-se para a mesa, pegou a faca de cortar melancia e a enfiou, de uma vez, na barriga do adolescente. Tudo se passou tão rápido que ninguém teve tempo de perceber nada. O maior não sentiu nenhuma dor, demonstrou certa surpresa diante do rumo que as coisas haviam tomado, emitiu um leve “Oh!”, largou a fruta e fraquejou, de joelhos no chão. O solo se avermelhou com uma poça, a respeito da qual não se podia discernir se era de sangue ou de suco de melancia.

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Assim que a lâmina perfurou o mais velho, o garoto se afastou, apressando-se com dificuldade. Saiu da margem da avenida para se misturar na massa humana, rápido como uma gota que, caindo do toldo, tocou o solo. Era o mês de junho, o calor se fazia mais ardente. O mundo transpirava um odor fétido. Na hora do almoço, o menino tomou um ônibus para voltar para casa. Seus pais, que comiam no quintal, perguntaram-lhe por que voltara tão cedo, não havia ido à feira? O menino respondeu que havia muita gente na cidade, que não estava interessante, e entrou rápido na cozinha para beber um copo de água gelada em um só gole. Quando reapareceu no quintal diante de seus pais, um barulho alto e estridente ressoou da entrada do vilarejo: a sirene de policiais de moto. Também se percebia o barulho de passos dos habitantes locais correndo atrás deles. As motos pareciam vir para ali. Seu pai e sua mãe aguçaram os ouvidos, curiosos, mas o rapaz, com uma aparência pálida, sentiu surgir em sua cabeça, como o bote de uma serpente, uma frase em inglês que havia aprendido alguns dias antes. Então, com um sorriso rígido, declarou em inglês: – Dad, mom: I love you! 2 Pequim, 20 de maio de 20203  *Yan Lianke, escritor, é autor, especialmente, de Servir le peuple [A serviço do povo], Un chant céleste [Um canto celeste] e La Mort du soleil [A morte do Sol], todos pela Philippe Picquier, Arles, respectivamente em 2018 (reedição), 2019 e 2020. Este texto foi traduzido do chinês (mandarim) por Brigitte Guilbaud. 1   O li é uma medida de distância chinesa correspondente a 500 metros. (N.T.) 2   “ Papai, mamãe, eu amo vocês!” (N.R.) 3   A pronúncia em chinês dessa data é muito parecida com o som de “Eu te amo”. Com o desenvolvimento da internet, os chineses adquiriram o costume, já há alguns anos, de expressar seu amor ou seu afeto no dia 20 de maio. (N.T.)


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NO JAPÃO, O PESO DA HIERARQUIA

“Língua servil” e sociedade da submissão Em japonês, não é possível dirigir-se em termos idênticos a um superior e a um colega de trabalho, nem mesmo ao seu irmão mais velho e ao mais novo. A língua ajustou-se a uma sociedade vertical em que a submissão foi erigida enquanto virtude POR AKIRA MIZUBAYASHI*

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crise política que o Japão atravessa é a mais grave desde 1947, data de entrada em vigor da atual Constituição. E, neste momento, cabe justamente aos cidadãos aprovar ou não sua revisão segundo o projeto publicado em 2012 pelo Partido Liberal Democrata (PLD), que está no poder. O primeiro-ministro Abe Shinzo, que o dirige, busca sufocar os princípios fundamentais da democracia. A Constituição do Estado Japonês substituiu a do Império do Grande Japão (1889), sob a qual o país acabou se enfiando na loucura mortal de uma guerra de agressão colonial chamada Guerra dos Quinze Anos (19311945). Os japoneses passaram então da era dos “servos” (ou da soberania imperial) à dos “cidadãos” (ou da soberania popular). Tal mudança de regime, radical e profunda, operou-se à custa de uma hecatombe imensurável causada pela expansão colonial do Estado japonês militar-fascista1 e pelos imensuráveis bombardeios de 10 de março de 1945 em Tóquio, além das duas bombas atômicas que aniquilaram em poucos segundos as cidades de Hiroshima e Nagasaki. Apesar da conservação do “tenoísmo” (imperador e instituição imperial como dispositivo central), a atual Constituição é herdeira da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, em sua vontade de “defender os direitos naturais e civis, sagrados e imprescritíveis”. O Japão de hoje, egresso das ruínas e devastações da guerra, foi então edificado sobre a ideia de acabar de uma vez por todas com o sistema de opressão estatal. Contudo, há alguns anos, sobretudo a partir do início do segundo mandato de Abe, em dezembro de 2012, esse Japão “democrático” do pós-guerra entrou em uma fase crítica, sendo objeto de uma política de desmantelamento deliberado.2 A primeira etapa da revisão constitucional reside na remilitarização do país por uma modificação no artigo 9º, que proíbe que o país tenha Forças Armadas, mas sua

intenção profunda vai bem além disso. Trata-se de liquidar os princípios fundamentais do constitucionalismo moderno no que se refere aos sistemas de defesa das liberdades públicas. E aí está o verdadeiro perigo. Diante das forças políticas instaladas, que priorizam a visão tradicionalista do país, centrada na preeminência do imperador, e insistem na urgência de uma revisão constitucional, é justo perguntar-se por que os japoneses chegaram a esse ponto após setenta anos de experiência democrática. Por que continuam a legitimar uma política autoritária e desrespeitosa à vida da maioria esmagadora da população, como mostrou tragicamente o exemplo do desastre de Fukushima e a realidade alarmante do pós-Fukushima? 3 Minha primeira resposta é de ordem político-filosófica. A característica essencial da “política” japonesa – modalidade segundo a qual os japoneses criam e organizam sua existência coletiva, seu modo de estarem juntos – consiste em se entender não como uma “nação cívica”, mas como uma “nação étnica”. Contrariamente à Europa ocidental, que, para o bem ou para o mal, inventou o Estado-Nação com base na filosofia política de Hobbes a Rousseau, articulando-se em torno do conceito fundamental de pacto social, o Japão não chegou a tomar para si essa ideia central de que a vida coletiva é oriunda de uma “associação política” desejada e criada a fim de salvaguardar os direitos naturais e as liberdades fundamentais. Portanto, no imaginário político nipônico, o “ser coletivo” não é aprendido dessa maneira. Confunde-se, pelo contrário, com a natureza e, por meio dessa, existe desde o início dos tempos, independentemente da vontade humana. Creio perceber a origem da apatia política dos japoneses nessa concepção naturalista da sociedade ou, em outras palavras, na recusa a entender a sociedade como uma criação humana, como resulta-

do de uma decisão comum. É por essa razão que ouso afirmar, por mais chocante que possa soar, que não é possível haver no Japão nem “povo”, nem “cidadão”, nem mesmo “sociedade”, no sentido que se atribui a esses termos pela filosofia política dos iluministas franceses e europeus.4

PARTÍCULAS LINGUÍSTICAS DE DEFERÊNCIA Minha segunda resposta é de ordem linguística. O “ser coletivo” próprio no Japão, a maneira como os membros da comunidade coexistem, o que Régis Debray chama de modo bonito de a arte formar um “nós” coletivo com vários “eus”, se caracteriza essencialmente pela verticalidade das relações humanas, designando a cada um determinada posição que só faz sentido em uma estrutura hierárquica. A dominação dos superiores e a submissão dos inferiores, eis o cerne desse modo de organização das existências. Trata-se, portanto, de um sistema de comandos em cadeia, que traduz perfeitamente a expressão jôi-katatsu (de jôi, “vontade dos superiores”, e katatsu, “transmissão de cima para baixo”), inscrita na consciência dos servos japoneses. Segundo historiadores, esse “ser coletivo” coercitivo, feito de dominações e submissões, teria se instalado desde o século VIII no Estado Imperial Antigo, para ser em seguida reforçado pelo Estado do Xogunato Edo (1600-1868). Essa ordem política calcada no princípio binário de dominação/submissão, tal como se constituiu ao longo da história, acabou produzindo uma ordem linguística correspondente. Isso significa que a língua também se estrutura vertical e hierarquicamente, forçando o locutor a escolher palavras exatas e os rodeios apropriados à particularidade de cada situação, em essencial caracterizada pelos traços de seu interlocutor, superior ou inferior. Em outras palavras, a estrutura hierárquica da sociedade está em al-

Não é possível haver no Japão nem “povo”, nem “cidadão” guma medida “incrustada” na língua. Um superior pode se tornar um inferior, e vice-versa, na vasta cadeia de posições sociais rigorosamente graduadas no interior de cada grupo social, seja de uma empresa, um governo, um partido político ou um clube escolar, e até uma família. Imaginemos a situação seguinte. Dois homens que trabalham em uma mesma empresa conversam: o primeiro é um reles empregado (A); o outro é o presidente da empresa (B). Eles evocam juntos seus respectivos pais. Em português, A poderia perguntar a B: “Seu pai nasceu em qual ano? O que ele faz da vida?” etc. E B, após ter respondido a A, poderia


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lhe fazer as mesmas perguntas, exatamente nos mesmos termos. Os dois locutores compartilham o mesmo vocabulário: “seu pai”, “nascer”, “fazer” etc. A língua, conforme observamos, é um bem comum acessível a qualquer locutor de maneira simétrica e equilibrada. Porém, em japonês, as coisas não ocorrem do mesmo modo. A (o sujeito falante inferior) e B (o sujeito falante superior) não têm acesso às mesmas palavras e, caso utilizem os mesmos vocábulos, A deve modificá-los, acrescentando-lhes partículas linguísticas de deferência (para o pai de B) ou de rebaixamento (para seu próprio pai).

Podemos também usar o exemplo de uma conversa que coloca dois irmãos frente a frente. Como se designam reciprocamente? Em português, dispõem simplesmente do pronome pessoal de tratamento “você” (ou “tu”). A diferença de idade não desempenha nenhum papel para determinar a fala nem de um nem de outro. Em japonês, pelo contrário, ela diferencia de modo singular as palavras empregadas. Em relação ao mais novo, o filho mais velho, que ocupa uma posição superior, pode se valer do emprego da palavra omaé (“você”) ou do nome de seu irmãozinho. Não ocorre o mesmo para este último, que, para se dirigir a seu irmão mais velho, se vê na obrigação de usar a expressão “irmão mais velho”. Nem o nome, nem omaé, nem nenhum dos outros pronomes pessoais de tratamento são possíveis. Aqui também a falta de simetria é notável. Um terceiro e último exemplo serve para elucidar a língua japonesa como instrumento de atualização das relações hierárquicas da sociedade, por meio de sua “disfunção” por causa de uma utilização errônea do pronome pessoal de tratamento da segunda (ou terceira) pessoa anata feita por um jovem de 20 anos portador de uma deficiência mental. Trata-se do personagem Takashi, de meu livro Em águas profundas, que trabalha em uma empresa importante. Levando-se em conta sua condição (sua idade mental é de 10 anos), sua tarefa consiste em carregar todas as correspondências e distribuí-las. Por isso, ele conhece todo mundo, desde o presidente aos simples estagiários. Seu erro de linguagem reside na utilização universal do pronome pessoal anata, ao passo que a língua o obriga a bani-lo perante seres ocupantes de posições superiores. Por um ato de transgressão do qual ele não é consciente e pelo qual ninguém se ofende em razão de seu quadro intelectual, Takashi revela o enraizamento da hierarquia na língua. Sabemos que Roland Barthes qualifica a língua como “fascista”. “O fascismo”, diz ele, “não é impedir de dizer, é obrigar a dizer.”5 Foi preciso, portanto, a despreocupação de um “adulto-criança” para enfrentar o “fascismo” da língua japonesa. Estar diante de um “você”: nisso consiste a experiência de existência fundamental dos locutores japoneses, identificar se o interlocutor é superior ou inferior hierarquicamente falando. Por conseguinte, tudo acontece como se, em qualquer lógica, a sociedade civil, esse espaço homogêneo onde “se associam” os seres falantes (supostamente) livres e iguais, não pudesse existir. Podemos citar sobre esse ponto as “Cinco vias éticas” (Gorin) da moral

confuciana, que marcaram bastante a consciência japonesa: o elo de afeto que une o pai e seus filhos; o sentimento de dever que une os vassalos ao príncipe; os papéis distintos que associam o homem e a mulher no casal; a ordem hierárquica que, na irmandade, submete os irmãos mais novos aos mais velhos; e a relação de confiança que deve reinar entre amigos. As relações mencionadas são todas de natureza vertical – salvo talvez a da amizade, que pressupõe igualdade entre as partes interessadas, mas não é seguro que, na moral confuciana, esta última escape da estrutura hierárquica das relações humanas. De qualquer modo, ela só aparece em quinto e último lugar na lista de relações ideais, moralmente valorizadas. Desse modo, a presença de desconhecidos estaria fora da perspectiva nessa visão restrita e normativa da sociabilidade.

Creio perceber a origem da apatia política dos japoneses nessa concepção naturalista da sociedade Entretanto, não é justamente com os desconhecidos, esses seres similares que se ignoram com reciprocidade, que deveríamos formar um coletivo político que chamamos de sociedade civil? Nessas condições, a combinação binária torna difícil, quase impossível, a experiência da “comunidade”, em que os semelhantes, longe de estarem presos em uma cadeia de dominações e submissões, unem-se de modo transversal, tendo em vista a criação de um espaço de troca igualitária de palavras e pensamentos. Ignoramos o pensamento da praça pública, onde o povo se une e delibera. Em Ensaio sobre a origem das línguas, Jean-Jacques Rousseau afirma que “toda língua por meio da qual não se pode ser entendido pelo povo unido é uma língua servil”. Se esse filósofo, cidadão de Genebra, depois de ressuscitar, viajasse ao País do Sol Nascente, diria certamente que seus habitantes, movendo-se em uma sequência acrobática e ininterrupta de submissões e dominações, não são livres e falam uma “língua servil”, tal qual sua maneira específica de ser coletivo.

UM TRABALHO DE SÍSIFO Por que a democracia, considerada não como forma de governo (ou de exercício do poder), mas sobretudo como forma de sociedade, não pega com facilidade no arquipélago nipônico e, de maneira mais geral, fora do

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ar cultural europeu, ficando, aliás, muito restrita ao local onde nasceu de si própria e de modo espontâneo? A questão da língua desempenha certamente um papel preponderante que ignoramos ou subestimamos há muito tempo. Pois, segundo a lição de Rousseau, a língua se molda em função das necessidades da sociedade. O autor do Ensaio concordaria em declarar também que a língua moldada serve por sua vez para manter ou paralisar a sociedade em uma estrutura que demandou sua formação e que tanto uma como a outra estão em uma relação de determinação ou de dependência recíprocas. Em um país como o Japão, a vontade de transformar a sociedade pode eximir-se de uma reflexão aprofundada sobre a natureza da língua por meio da qual o real se constrói e as trocas se realizam em todos os meios sociais, desde o corredor da escola até o Parlamento, passando pelos escritórios das empresas? É claro que não. Se a “língua servil” mudasse, a sociedade de submissão se abalaria. Mas sacudir a língua como fez Takashi, querer agir sobre seus usos sociais, fazer as práticas linguísticas mudarem é um trabalho de Sísifo, individual e/ou coletivo, cujos efeitos apenas a história pode medir... No contexto da crise sanitária mundial da Covid-19 e da baixa quantidade de casos contabilizados no Japão, pode-se perguntar – além do hábito bem sedimentado do uso de máscara e da liturgia social e cultural específica (sem aperto de mão, nem beijos, nem abraços e distanciamento proxêmico) – se a produção de palavras vivas (portanto, de gotículas), dependendo, entre outros, da cultura do debate, não teria sua importância. Se, por acaso, esse fator inesperado se mostrasse pertinente, seríamos obrigados a constatar, com tristeza, que a “língua servil” é a melhor arma diante da epidemia...  *Akira Mizubayashi,  romancista em francês e em japonês, é autor principalmente de Dans les eaux profondes. Le bain japonais [Em águas profundas. o banho japonês], Arlea, Paris, 2018, e Âmes brisées [Almas partidas], Gallimard, Paris, 2019. 1   C f. Cécile Marin, “Empires en accordéon” [Impérios instáveis], Manière de Voir, n.139, fev.-mar. 2015. 2   C f. Dans les eaux profondes. Le bain japonais [Em águas profundas. O banho japonês], Arlea, Paris, 2018. 3   Ler Philippe Pataud Célérier, À Fukushima, une catastrophe banalisée [Em Fukushima, uma catástrofe banalizada], Le Monde Diplomatique, abr. 2018. 4   Ver a conferência Vivre en exilé linguistique – Aller au-delà des limites de son monde [Viver em exílio linguístico – Ir além dos limites de seu mundo], de 25 de setembro de 2018, no âmbito dos Encontros Internacionais de Genebra, disponíveis para consulta em: www. mizubayashi.net. 5   Roland Barthes, Leçon [Lição], Seuil, Paris, 1978.


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AS INFLUÊNCIAS DE J. R. R. TOLKIEN

O mundo ideal dos hobbits Com 150 milhões de exemplares vendidos, O Senhor dos Anéis é uma obra que, após algumas décadas, em vez de sair de moda, ganha importância. Ela parece ter encontrado, até nutrido, um imaginário coletivo cada vez mais comum. Seu sistema de valores implanta uma moral política repleta de ambiguidades POR EVELYNE PIEILLER*

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rovavelmente ninguém é obrigado a acreditar que John Ronald Reuel Tolkien (1892-1973) seja o autor da “obra mais rica e complexa do século XX”,1 mas a verdade é que a trilogia Senhor dos Anéis vendeu 150 milhões de exemplares, com a ajuda das adaptações de Peter Jackson para o cinema: US$ 3 bilhões pela projeção em salas e 17 Oscars, isso enquanto se espera a série da Amazon, que pagou tranquilamente US$ 250 milhões pelos direitos. Ao que tudo indica, Tolkien é um dos astros de nossa época, e sabemos bem que nada é mais brilhante no imaginário de uma época que o imaginário artístico que ele inaugura. J. R. R. Tolkien parece, no entanto, dependente de um clichê fora de moda. Conheceu as duas guerras mundiais, mas quase toda a sua vida foi dedicada ao estudo e à escrita. Professor em Oxford, especialista em filologia e literatura inglesa arcaica, sabia gótico (língua morta falada outrora pelos godos), nórdico antigo (língua escandinava medieval) e finlandês. Além disso, era um apaixonado pelas epopeias nórdicas, o Edda, o Kalevala... Em suma, um erudito que estreou na literatura infantil com O hobbit (1937) e depois, durante cerca de duas décadas, elaborou sua trilogia (1954-1956). Nada de espantoso, portanto. Afinal, Charles Lutwidge Dodgson, mais conhecido pelo nome de Lewis Carroll, também foi professor em Oxford (de matemática) e se consagrou, da mesma forma, com histórias infantis. Uma curiosidade a propósito de Tolkien: ele era católico, religião minoritária no Reino Unido, e católico fervoroso. A universidade e os fiéis foram duradouramente marcados pelo que se chamou de o “Movimento de Oxford” em torno de John Henry Newman (1801-1890), um eclesiástico anglicano que, de forma retumbante, se converteu ao catolicismo. Suas reflexões sobre a entrega pessoal, o papel da intuição direta na fé etc. alimentaram os questionamentos de muitos cristãos, sobretudo britânicos. Newman foi ordenado cardeal pelo papa Leão XIII, cuja encíclica Rerum

Novarum (1891), retomada por Pio XI (1922-1939), definiu a posição da Igreja Católica em relação ao trabalho: apoio ao sindicalismo, mas oposição ao socialismo, e proposta da célula familiar como modelo de organização da sociedade. Essa concepção engendrou uma teoria econômica, o “distributismo”, favorável à propriedade privada atribuída a grupos em vez de indivíduos e, relativamente à terra e às ferramentas, defensor do retorno às corporações de ofício. Propunha a extinção dos bancos (exceto os mutualistas) e uma sociedade de camponeses e artesãos tendo a família como unidade social básica – sem extremismos políticos. Tolkien teria sido sensível às ideias desse movimento, alimentando a convicção de que o espírito é mais forte que a matéria e cultivando um antiestatismo inabalável. Entretanto, foi igualmente influenciado pelo universo do grandioso William Morris (1834-1896),2 pintor e romancista inspirado por uma Idade Média idealizada, tradutor de sagas islandesas e defensor ativo do retorno a um artesanato que oferecesse beleza a todos. Morris, fundador da Liga Socialista juntamente com Eleanor Marx, precursor da renovação das artes aplicadas, foi também autor de um dos primeiros romances de “fantasia”, A fonte no fim do mundo. Reflexões teológicas e sensibilidade aos mitos, a uma Idade Média lendária, eis o que uniu um grupo de amigos, os Inklings, que de 1930 a 1940 passaram a se encontrar num bar de Oxford para ler seus escritos e discuti-los. Entre eles, J. R. R. Tolkien, Clive Staples Lewis e Charles Williams. Professor em Oxford, C. S. Lewis era anglicano e a parte de sua obra que faz a apologia cristã continua em moda no Reino Unido. Mas ele é famoso principalmente por suas Crônicas de Nárnia (1949-1954), livros infantis que mostram animais, magia etc., em uma grande luta do Bem contra o Mal. Membro por pouco tempo dos rosa-cruzes e também anglicano, Charles Williams fundou uma espécie de seita cristã, Os Companheiros da Coinerência. Escreveu,

sobretudo, um romance fantástico, A guerra do Graal, transbordante de luz, pondo em cena iniciados brancos contra magos negros... Os Inklings eram, assim, um bando de crentes, sábios e apaixonados que se apegavam ao registro do “maravilhoso”, propício a despertar a sensibilidade aos mistérios e à graça – além de transmitir uma mensagem cristã num mundo descristianizado. Esses desafios, essas convicções e esses debates é que animam O Senhor dos Anéis. Não conseguiríamos reduzir a trilogia a uma ilustração qualquer de teses. Mas ela exibe uma estética e um conjunto de valores que oferecem uma visão de mundo política e espiritual. Relembremos por alto a história: o Senhor das Trevas forjou o Anel, instrumento de poder absoluto com o qual reduzirá todos à escravidão, mas não o possui mais. Um hobbit, depositário do Anel, tem por missão destruí-lo, atirando-o no lugar onde foi feito. Acompanhado por vários aliados, a Sociedade do Anel, ele procura alcançar seu objetivo em meio a perigos inumeráveis, o menor dos quais não é a atração do Anel. O objetivo acaba sendo alcançado e, entrementes, um rei sedutor recupera seu trono...

A trilogia exibe uma estética e um conjunto de valores que oferecem uma visão de mundo política e espiritual Guerra contra o espírito do Mal e relato de uma busca espiritual, tormentos da consciência e homenagem à obstinação da força do amor, que pode superar o interesse egoísta dos mortais (revivendo também a Natureza implacável), “O Senhor dos Anéis é, bem entendido, uma obra fundamentalmente religiosa e católica”, como escreveu Tolkien a um amigo jesuíta. “A princípio, de maneira inconsciente; depois de uma revisão, consciente.”

No entanto, com seu poder inventivo, jovial, que permite evitar alegorias diretas, Tolkien revela ao mesmo tempo aquilo que parece seu mundo racionalmente ideal, o do povo que empreende a busca, os hobbits – “homenzinhos” ou semi-homens –, uma variedade humana modesta, alegre, que não tem por assim dizer nenhum governo, respeita espontaneamente as regras antigas, imutáveis, e, exceto nas fronteiras, não precisa das forças da ordem. Personagens que serão mais ou menos copiados depois pela “fantasia”. Esse mundo, acentuadamente medievalizante, aceita a magia, mas ignora a ideia de progresso, tecnologia, senso histórico. Longe das “forjas sombrias” que caracterizam o império do Mal, artesãos e camponeses vivem felizes, amantes da boa mesa e das belas histórias, indiferentes ao que precisa ser “sempre contado, medido”. De resto, o verdadeiro herói do relato é um jardineiro... Esse modelo de sociedade autoprotegida, comedida, enraizada em sua memória e sua pátria, feudal mas sem feudos, zelosa apenas dos pequenos prazeres da vida, atenta a tudo que é verde e dá frutos, foi bem-recebido pelos contestadores dos anos 1960 e, no campo oposto, pelo Movimento Social Italiano (MSI) neofascista, que organizou entre 1977 e 1981 os “acampamentos hobbits”. A trilogia é hoje muito cara a numerosos leitores de sensibilidade ecológica. Essa aspiração a um universo rural retrógrado, autárquico, desconfiado da técnica e da perda de contato com as verdades da natureza provavelmente não vai se extinguir tão cedo, depois da crise sanitária atual. Seria bom lembrar que a Sociedade do Anel, em sua luta contra as potências da morte, restabeleceu um rei.  *Evelyne Pieiller  é jornalista do Le Monde Diplomatique. 1   L loyd Chery, “Ce que les fans du ‘Seigneur des Anneaux’ doivent à Christopher Tolkien” [O que os fãs do Senhor dos Anéis devem a Christopher Tolkien], Le Point, Paris, 17 jan. 2020. Disponível em: www.lepoint.fr. 2   Ver Marion Leclair, “William Morris, esthète révolutionnaire” [William Morris, esteta revolucionário], Le Monde Diplomatique, jan. 2017.


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Institucional

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OBSERVATÓRIO DE EDUCAÇÃO: ENSINO MÉDIO E GESTÃO www.observatoriodeeducacao.institutounibanco.org.br

Enem 2020: Covid-19 evidencia desigualdades e reafirma falta de diálogo do MEC

O

Ministério da Educação (MEC) e o Inep divulgaram as novas datas do Enem 2020: 17 e 24 de janeiro de 2021 (prova impressa) e 31 de janeiro e 7 de fevereiro (digital). Os resultados serão divulgados a partir de 29 de março. Mais importante porta de entrada para as universidades públicas e privadas no Brasil, o exame foi adiado em resposta à pressão de diversos setores da sociedade, entre eles o Congresso, a Defensoria Pública, o Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Educação (Consed), a Associação Brasileira de Avaliação Educacional (Abave) e movimentos da sociedade civil, como o Todos pela Educação e a Campanha Nacional pelo Direito à Educação. O principal argumento era tentar reduzir a desigualdade educacional, exacerbada no contexto de isolamento social. As diferentes realidades socioeconômicas dos candidatos impõem desafios especialmente quanto às possibilidades de acesso à internet e às condições de estudo em casa. Segundo levantamento do jornal Folha de S.Paulo (28 maio 2020), realizado com base no perfil de participantes do Enem 2018, 34% dos estudantes da rede pública que prestaram a prova naquele ano não tinham acesso à internet. Entre os alunos da rede privada, a parcela desprovida desse acesso era de apenas 3,7%. O estudo usou os dados mais recentes disponíveis e constatou, ainda, que a desigualdade aumenta quando se observam recortes de renda e raça. Além do adiamento que contrariou o desejo dos candidatos que participaram de enquete organizada pelo próprio governo federal e em sua maioria pediam que a prova fosse em maio de 2021, o MEC e o Inep não têm fornecido orientações e apoio aos estados sobre como endereçar as necessidades dos alunos que se preparam para o exame. Os estados já colocaram em prática diferentes soluções de ensino remoto,1 mas ainda enfrentam dificuldades, sobretudo para os estudantes do último ano do ensino médio. Do lado do ensino superior, a pasta da Educação tampouco se pronunciou sobre os ajustes necessários nos calendários dos vestibulares e no processo de admissão de alunos para 2021. Em posicionamento de 22 de maio, a organização Todos pela Educação defende a reabertura das inscrições que, por serem feitas on-line, podem ter segregado os estudantes sem acesso à internet. Outro pleito é que a escuta que o governo federal fará para definir a nova data do Enem abranja gestores públicos, especialistas e os estudantes que não puderam se inscrever e desejam fazê-lo, além daqueles já inscritos.

AVALIAÇÃO E DEMOCRATIZAÇÃO Criado em 1998, o Enem nasceu com o objetivo de avaliar estudantes do ensino médio nas escolas públicas e particulares brasileiras. Em 2009, seu resultado começou a valer como critério de ingresso no ensino superior. Articulado desde então com o Sistema de Seleção Unificada (Sisu) e também conjugado à Lei de Cotas em 2012, o exame passou a figurar como um dos principais elementos das políticas de democratização do acesso ao ensino superior gratuito. O Enem é administrado sem custo para os estudantes de baixa renda. Para os pagantes, sua taxa de inscrição é considerada relativamente baixa – R$ 85 para a prova deste ano. Além disso, o exame é aplicado nacionalmente, minimizando o gasto do participante com deslocamento. São variáveis que importam muito em um país como o Brasil, marcado pela desigualdade em várias frentes. O último informativo Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil, do IBGE, evidencia a íntima relação entre pobreza e raça e o direito à educação. Lançado no fim de 2019, com base em dados do ano anterior, o documento apontou uma taxa de con-

clusão do ensino médio para a população branca de 76,8% em 2018, enquanto a da população preta ou parda, embora venha aumentando, foi de 61,8%. Quando a análise enfocou as pessoas de 18 a 24 anos de idade com menos de 11 anos de estudo e que não frequentavam a escola, revelou uma situação emblemática: os jovens pretos ou pardos no quinto da população de menor renda domiciliar per capita encontravam-se na pior condição, com 42,6% fora da escola, ante a 37,4% dos brancos. O MEC ainda não divulgou dados sobre o perfil dos participantes do Enem 2020 em relação à raça. Em 2019, 59,1% dos candidatos se autodeclararam pardos (46,6%) ou pretos (12,7%), seguidos por brancos (36%), amarelos (2,3%) e indígenas (0,6%). Dois por cento não responderam à pergunta. A falta de condições adequadas de estudo2 e as estratégias que os negros e pobres estão adotando para contornar a situação têm sido alvo constante da cobertura da mídia. Em outras pautas, como mostra matéria3 da página especial sobre a Covid-19 no site do Instituto Unibanco, o enfoque recai sobre como as escolas estão apoiando os alunos na preparação para o Enem e dicas de como estudar em tempos de pandemia. Neste contexto, os estudantes continuam mobilizados. Depois de defenderem o adiamento, eles agora pressionam para que as aulas preparatórias para a prova sejam transmitidas por grandes emissoras de televisão. O abaixo-assinado “Queremos aulas para o Enem nas maiores emissoras de TV Aberta do país!” (disponível no site da Change Brasil) já conta com mais de 90 mil assinaturas. Sabrina Gonçalves, estudante que criou a petição, expressa o sentimento de frustração que atinge parte dos estudantes: “Minha maior motivação para criar esse abaixo-assinado é um amigo que não possui acesso à internet. Quantos jovens estão na mesma situação que ele? Isso não é justo! Os alunos da rede privada ou com acesso à tecnologia estarão mais capacitados para essas provas”. Além de lançar incertezas sobre o futuro dos 6,1 milhões de inscritos, as indefinições em torno do Enem 2020 por causa da Covid-19 ofuscam a trajetória incipiente de ampliação do acesso ao ensino superior pela população negra e mais pobre4, que depende intrinsecamente da oferta de ensino público no Brasil. Para o bem de todos os alunos, especialistas têm apontado a necessidade de o MEC coordenar com as instituições públicas e privadas de ensino superior formas de garantir que o adiamento do exame não afete o fluxo de ingresso dos alunos no ensino superior no próximo ano. “Só o MEC pode fazer essa coordenação porque, na distribuição de atribuições da educação, ao Ministério compete coordenar a política de educação nacional, mas, em particular, a educação superior”, alertou João Marcelo Borges, do Todos pela Educação. “Isso é muito importante, senão a gente vai ter alunos que são aprovados no Enem, mas que não conseguem ingressar no ensino superior. Isso, para as redes públicas, é ruim; para os alunos, é ruim; e para as universidades e faculdades particulares também, porque elas perdem alunos, perdem renda.”

1  Observatório de Educação, “O ensino remoto e as lições à vista”. 2  Felipe Betim, “Governo adia Enem após pressão que trouxe à tona o fosso entre ensino público e privado”, El País, 20 maio 2020. 3  Observatório da Educação, “Como escolas estão se preparando para o Enem e se adaptando ao ensino remoto”, 28 maio 2020. 4  Paula Ferreira e Constança Tatsch, “Negros são maioria na universidade pública, mas não nos cursos concorridos”, O Globo, 20 nov. 2019.

Pessoas de 18 e 24 anos de idade com menos de 11 anos de estudo e que não frequentavam a escola, segundo os quintos da população em ordem crescente de rendimento mensal domiciliar per capita

37,4%

42,6%

28,6%

Branca

Preta ou parda

• “Igualdade de oportunidades: analisando o papel das circunstâncias no desempenho do Enem”, artigo de Erik Figueirêdo, professor do Programa de Pós-Graduação em Economia (UFPB) e outros pesquisadores. https://bit.ly/39aYXXj

7,6%

• “Enem: limites e possibilidades do Exame Nacional do Ensino Médio enquanto indicador de qualidade escolar”, tese de doutorado de Rodrigo Travitzki à Faculdade de Educação (USP). https://bit.ly/2WCjxur

32,7% 26,9% 18,2%

17,4%

22,5%

17,8% 11,9% 4,3%

Total

1º quinto

2º quinto

3º quinto

Fonte  IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua 2018

4º quinto

SAIBA MAIS

5º quinto


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MINERAÇÃO ESTRATÉGICA NO CORAÇÃO DO CONFLITO COMERCIAL SINO-AMERICANO

A guerra das terras-raras vai acontecer? Enquanto parecia ter o monopólio das terras-raras, recurso indispensável para a fabricação de produtos de alta tecnologia, a China importou mais do que exportou. Mas será que algo realmente mudou, considerando que seus clientes continuam tão dependentes da produção chinesa quanto antes? Ademais, Pequim segue ameaçando os Estados Unidos com a interrupção das entregas POR CAMILLE BORTOLINI*

A

cena aconteceu em 20 de maio de 2019, em Ganzhou, cidade de uma dezena de milhões de habitantes situada na província de Jiangxi (sudeste da China). Xi Jinping, o presidente chinês, caminha pelos corredores de uma usina de terras-raras. Para essa “visita de inspeção”, amplamente coberta pela imprensa oficial, ele está acompanhado por Liu He, seu principal conselheiro econômico, negociador-chefe com os Estados Unidos e encarregado de desenrolar o conflito comercial entre as duas potências. A data de estadia da dupla não foi fruto do acaso: dez dias antes, a administração do presidente norte-americano, Donald Trump, havia inaugurado uma nova etapa na guerra comercial, aumentando o nível das taxas alfandegárias em US$ 200 bilhões para bens chineses. No embalo, Washington colocou o gigante das telecomunicações Huawei na lista suja, impedindo-o de ser abastecido por componentes norte-americanos, dos quais alguns lhe são indispensáveis (semicondutores, sistema de exploração Android). Dois golpes duros para Pequim, pega de surpresa. Ao colocar em cena alguns dias depois sua visita a uma usina de ter-

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ras-raras, a mensagem de Xi não deixou dúvidas: a China possui um instrumento que pode reverter os golpes norte-americanos. A imprensa e alguns pesquisadores chineses se encarregaram das legendas: a China poderia parar de um dia para o outro de fornecer metais de terras-raras para empresas norte-americanas. Em um comentário em inglês publicado pelo jornal chinês Global Times, o professor Jin Canrong, que ensina Relações Internacionais na Universidade Renmin, de Pequim, julgou que a China “possui três grandes forças para ganhar a guerra comercial contra os Estados Unidos”, entre elas a proibição de exportação de terras-raras.1 Pouco tempo depois, a organização que representa os industriais chineses do setor se declarou oficialmente favorável à instauração de tais medidas de retaliação.2 A ameaça parece ter potencial para preocupar, pois já foi posta em prática no passado: depois da prisão de um barco de pesca chinês pela Marinha japonesa no arquipélago disputado das ilhas Senkaku/Diaoyu, em setembro de 2010, Pequim interrompeu bruscamente – mas sem reconhecer publicamente – suas exportações de terras-raras para o Japão, causando pânico nos mercados mundiais. Mas o que são exatamente as terras-raras? Um misto de dezessete minerais com propriedades químicas próximas – entre eles o cério, o disprósio e o érbio – indispensáveis – mesmo se utilizados em quantidades por vezes ínfimas – para a fabricação das tecnologias de ponta da transição energética (algumas eólicas, veículos a energia nova) e aparelhos eletrônicos. As terras-raras são também utilizadas na indústria de defesa. E, desde

o fim dos anos 1990, a China garante em média 90% da produção mundial.

AUMENTO DOS RAMOS INDUSTRIAIS No entanto, somente um terço das reservas mundiais comprovadas se situa em seu território. O Instituto de Estudos Geológicos dos Estados Unidos (USGS) indica que podemos encontrá-las nos subsolos do Brasil, da Rússia, da Índia, da Austrália, mas também em diversos países do Sudeste Asiático.3 Desde o início dos anos 2010, projetos de exploração foram lançados no Canadá, na África austral, no Cazaquistão e na Groenlândia. Até mesmo a Coreia do Norte reivindica possuir reservas gigantescas. Durante muito tempo, a China ocupou não menos que uma posição quase monopolística. Foi sob Deng Xiaoping, no final dos anos 1980, que o Partido Comunista Chinês (PCC) adotou uma política voluntarista de desenvolvimento das terras-raras. Essa indústria era então dominada pelos Estados Unidos, que controlavam, além da mina de Mountain Pass na Califórnia, a integralidade do ciclo da transformação em torno da empresa Magnequench, filial da General Motors e carro-chefe da de Indiana, cujas atividades eram florescentes.4 No entanto, Deng tinha consciência do interesse geopolítico da exploração das reservas chinesas. Em sua célebre viagem pelo sul da China em 1992 para retomar as reformas, o velho líder revelou sua visão: “O Oriente Médio tem o petróleo, a China tem as terras-raras”. Desde então, todos os meios são válidos para desenvolver essa indústria: as autoridades chinesas outorgam terrenos, fornecem energia a preço baixo, subvencionam a abertu-

ra de novas minas. Elas se preocupam pouco com as condições de trabalho dos mineiros, extremamente precárias, e menos ainda com questões ambientais. Em paralelo, o mercado interno está protegido da concorrência estrangeira, reservando as atividades de extração apenas aos industriais chineses. À medida que os Estados Unidos se afastavam das atividades de mineração – a mina da Mountain Pass foi alvo de escândalos ambientais5 –, a produção oficial chinesa (que não inclui a exploração clandestina, estimada historicamente em um nível entre 20% e 40% da extração total) progredia irremediavelmente: 60 mil toneladas em 1998, 80 mil toneladas em 2002, 100 mil toneladas em 2004, 120 mil toneladas em 2006. A produção norte-americana foi interrompida em 2003, enquanto a dos outros países produtores atinge no máximo mil toneladas por ano. Ao mesmo tempo que garantia seu domínio, a China se empenhava em atrair as empresas estrangeiras que dispunham de um conhecimento tecnológico em matéria de transformação, com o objetivo de aumentar a cadeia de valor. Essa captação se deu de forma direta: em 1995, a empresa chinesa Zhong Ke San Huan comprou a norte-americana Magnequench. Cinco anos depois, a usina de Indiana foi relocada na cidade de Tianjin, a leste de Pequim. O governo chinês também recorreu a técnicas mais indiretas, adotando progressivamente uma série de restrições à exportação (taxas, autorizações, cotas) tanto para responder às necessidades crescentes de seu mercado interno quanto para aumentar o valor do estoque de seus clientes. Em 2010, quando gozava de um quase monopólio em matéria de extração, a China diminuiu drasticamente suas cotas de exportação para 30 mil toneladas anuais. A Organização Mundial do Comércio (OMC) a condenou quatro anos depois,6 mas o mal já tinha sido feito. Para enfrentar o risco de penúria ou para evitar ter de pagar um valor excessivo, empresas norte-americanas e japonesas do setor da transformação instalaram suas atividades na China. Ao longo da cadeia, incluindo atividades de alto valor agregado, como a produção de ímãs, parcerias se fizeram, conduzindo a transferências de tecnologia em proveito das empresas chinesas. Estas últimas se impõem hoje como as campeãs mundiais do setor.


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Essa política de desenvolvimento constitui uma vitória industrial para a China, que se tornou capaz – em seu próprio solo e com suas próprias empresas, como a Shenghe – de extrair, separar, refinar e transformar as terras-raras. Seu objetivo de fabricar produtos mais valorizados, da mina até a produção de componentes sofisticados, foi mais do que atingido: ela garante hoje 80% da produção mundial de ímãs à base de neodímio, um dos mais utilizados (para telefones celulares, motores elétricos, aparelhos de ressonância magnética, algumas turbinas eólicas etc.). No plano ecológico, o balanço é bem menos positivo... O desenvolvimento de todas essas atividades de extração foi sinônimo de desastre nas províncias em questão: a Mongólia Interior viu os lagos tóxicos se multiplicarem, assim como os casos de envenenamento por ácido sulfúrico e o que chamamos de “vilarejos do câncer”. Parte da população, preocupada com os riscos sanitários e ambientais, se mobiliza localmente, como em Guangxi, para manifestar sua oposição à extração poluente. Em suma, o custo ambiental dessa exploração mineira se tornou cada vez mais difícil de justificar para um regime que conhece o que se espera dele em matéria de luta contra a poluição, erguida sob Xi como “batalha fundamental” do PCC. Além do mais, as reservas chinesas, estimadas em 44 milhões de toneladas, não são ilimitadas. E a demanda mundial deve continuar aumentando. O consumo de certas terras-raras pode ser multiplicado por vinte até 2035. Pequim se encontra, portanto, em uma situação paradoxal, na qual seu controle da cadeia de valor, principalmente do ciclo de transformação, a obriga a considerar limitar suas operações de extração. Assim, as autoridades se esforçam, desde o início dos anos 2010, para manter a produção oficial entre 100 mil e 120 mil toneladas por ano. Elas tentam paralelamente consolidar a indústria, historicamente muito dispersa, em torno de grandes empresas, a fim de reduzir a extração clandestina. Ao longo da década, elas se voltaram sobretudo para novos parceiros, a fim de garantir o fornecimento de minerais: para surpresa geral, a China se tornou, em 2018, importadora de terras-raras brutas. Em 2019 ela importou, segundo a alfândega chinesa, 47 mil toneladas de minerais de terras-raras e 36 mil toneladas de óxi-

dos de terras-raras, dois itens cujas importações agora ultrapassam as exportações. Essas terras-raras brutas ou pouco transformadas provêm da Austrália – via Malásia, onde a empresa australiana Lynas Corporation, por exemplo, instalou uma parte de suas operações de refinamento –, da Birmânia, do Vietnã e da África. O desafio de Pequim, desse modo, é assegurar essas novas importações. Em 2015, a gigante Shenghe fechou um contrato com uma empresa australiana que explora uma mina em Madagascar. No ano seguinte, ela se tornou também a primeira acionista da Greenland Minerals Ltd., companhia de mineração australiana, com a qual fechou um acordo reservando a totalidade da produção de terras-raras pesadas da mina de Kvanefjeld, na Groenlândia, ou seja, 32 mil toneladas anuais desses preciosos minerais garantidas, assim que a produção começar.

REDUZIR A DEPENDÊNCIA O mais espantoso é que uma parte consequente das recentes importações provém... dos Estados Unidos. A Casa Branca, tendo tomado consciência de sua vulnerabilidade diante de seu “competidor estratégico”7 chinês, apoiou a reabertura da mina histórica de Mountain Pass, de novo em funcionamento desde o início de 2018. Mas o local ainda não conta com uma unidade de refino. Então, por enquanto, os Estados Unidos exportam terras-raras brutas para a China. Esta as refina e transforma antes de reexportar o produto acabado (como os ímãs) para o mercado norte-americano, mas também para o europeu, o japonês e o indiano. Nesse contexto, a ameaça de um novo embargo chinês tem credibilidade? A imposição de novas medidas de restrição à exportação poderia, evidentemente, a curto prazo, favorecer as empresas chinesas, fornecendo a elas um acesso privilegiado a produtos acabados para os quais as possibilidades de substituição são difíceis de encontrar em diversos seto-

res. Mas isso incitaria também seus parceiros a diversificar seus circuitos comerciais, o que poderia comprometer a centralidade da China na cadeia de valor. Paradoxalmente, essas restrições à exportação favoreceriam seus concorrentes. Com efeito, elas criariam provavelmente um “choque de oferta” e consequentemente um aumento dos custos mundiais, o que tornaria a exploração de novas minas mais rentável. Com razão, a vontade norte-americana de não depender mais da China está abertamente estampada. Nos Estados Unidos, as operações de transformação dos minerais de terras-raras oriundos de Mountain Pass devem voltar até o final deste ano, e o Pentágono indicou sua intenção de financiar a construção de unidades de refino nacionais. A aproximação da administração Trump com diversos parceiros (Canadá e Austrália em primeiro lugar ) é investigada pelas autoridades chinesas. No verão de 2019, o Global Times conectava a vontade assumida do inquilino da Casa Branca de “comprar” a Groenlândia – prova, segundo ele, da “ansiedade” norte-americana diante da dominação chinesa no setor das terras-raras.8 Um ano depois da visita de Xi à usina de ímãs do Jiangxi, a China ainda não executou sua ameaça de embargo. Na barulhenta disputa que opõe as duas potências, uma evolução escapou à atenção da maioria dos observadores. Em 2020, a China não diminuiu suas cotas de produção de terras-raras, mas as aumentou em 10% – para Pequim, uma maneira talvez de tornar a oferta mais abundante, a fim de baixar os preços mundiais e matar no ninho os novos projetos de mineração nos quais os Estados Unidos estão de olho.

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A epidemia de Covid-19, que colocou as minas chinesas e, mais amplamente, a economia mundial em suspenso, põe em xeque esse cálculo. Mas, no momento em que o mundo inteiro se questiona sobre sua dependência em relação à China, ninguém duvida de que as terras-raras voltarão para o centro do palco.  *Camille Bortolini é analista econômica na Direção-Geral do Tesouro francês, com cargo em Pequim de 2017 a 2019. Os pontos de vista expressos pela autora nesse texto são pessoais. 1   J in Canrong, “China has three trump cards to win trade war with US” [China tem três trunfos para vencer guerra comercial com os EUA], Global Times, Pequim, 15 maio 2019. 2   “China rare earth groups support counter-measures against US ‘bullying’” [Grupos chineses de terras-raras apoiam contramedidas contra o “bullying” norte-americano], Reuters, 7 ago. 2019. 3   “Minerals Commodity Summaries” [Balanço das commodities minerais], US Geological Survey, Reston, jan. 2020. 4   Ler Olivier Zajec, “Comment la Chine a gagné la bataille des métaux stratégiques” [Como a China ganhou a batalha dos metais estratégicos], Le Monde Diplomatique, nov. 2010. 5   C f. Guillaume Pitron, La guerre des métaux rares [A guerra dos metais raros], Les Liens qui Libèrent, Paris, 2018. 6   OMC, “Disputa DS432 China – Medidas relativas à exportação de terras-raras, de tungstênio e de molibdênio”, Genebra, maio 2015. 7   C f. a nova estratégia de segurança nacional norte-americana apresentada por Trump em dezembro de 2017. 8   Wang Jiamei, “Greenland interest exposes US rare earth deficit” [Interesse na Groelândia expõe déficit norte-americano em terras-raras], Global Times, Pequim, 21 ago. 2019.


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A PRISÃO PERPÉTUA DE GEORGES IBRAHIM ABDALLAH PARA AGRADAR AOS ESTADOS UNIDOS

Terrorista um dia, sempre terrorista? A Convenção Europeia dos Direitos Humanos proibiu a manutenção de um condenado na prisão “sem nenhuma esperança de sair”. Essa parece, contudo, ser a sorte do militante comunista libanês Georges Ibrahim Abdallah, preso na França há mais de um terço de século. O prolongamento de sua detenção deve-se muito ao clima criado por atentados que lhe são estranhos POR PIERRE CARLES*

© Robert Pratta/ Reuters

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im de março de 2020. A fim de esvaziar as prisões francesas num momento em que a pandemia do coronavírus ameaça provocar uma catástrofe, a ministra da Justiça, Nicole Belloubet, ordena a liberação de 13,5 mil presos nos dois meses seguintes. Trata-se principalmente de pessoas que já cumpriram a maior parte da pena. No momento em que a ministra toma essa decisão, a prisão de Lannemezan (região Hautes-Pyrénées) abriga Georges Ibrahim Abdallah, um militante comunista libanês que combateu a ocupação de seu país por Israel em 1978. Ele cumpriu sua incompreensível pena em 27 de outubro de 1999. O homem então poderia ter sido libertado desde... o século passado.1 Em 2020, ele começou seu 36º ano de encarceramento. Um “recorde francês” nos últimos cinquenta anos para um militante político. Exceção feita à Itália, um encarceramento tão longo é excepcional nos países da União Europeia. Georges Ibrahim Abdallah foi julgado e condenado por cumplicidade em um homicídio doloso. Aos olhos da Justiça, ele não é um assassino. Durante seu processo, ele negou ter participado das ações pelas quais foi preso e condenado, mas se declarou solidário a certas lutas militantes radicais, expressando seu apoio às Frações Armadas Revolucionárias Libanesas (FARL), um grupo de resistentes comunistas que pegou em armas e assassinou, em 1982, o adido militar da embaixada dos Estados Unidos, Chales Ray, assim como um funcionário israelense membro do Mossad (serviço secreto israelense), Yacov Barsimentov, ambos com cargos em Paris. Naquele ano, Israel atacava o Líbano, com a bênção da administração Reagan, para tentar destruir a Organização para a Libertação da Palestina (OLP) e matar ou capturar Yasser Arafat, o líder da resistência palestina. Aos olhos das FARL, os dois assassina-

George Ibrahim Abdallah escoltado por um guarda francês quando ele chega ao tribunal de Lyon, em 10 de julho de 1986 tos constituíam um ato de resistência armada a uma agressão militar. E durante seu processo, em fevereiro de 1987, Abdallah afirmou: “Mesmo que o povo não tenha me confiado a honra de participar dessas ações anti-imperialistas que vocês me atribuem, pelo menos eu tenho a honra de ser acusado delas por sua corte e defender sua legitimidade diante da ilegitimidade criminosa dos algozes”.

“TODOS OS BARBUDOS SE PARECEM” Que outra razão poderia justificar a não liberação, em 2020, de um cúmplice de homicídio que cumpriu 36

anos de encarceramento? Seu comportamento na detenção inspira o respeito dos guardas, e o diretor da prisão gosta de conversar com ele a respeito da situação no Oriente Médio. Por mais estranho que possa parecer, foram os guardas sindicalizados do centro penitenciário que, não entendendo por que seus camaradas não se mobilizavam para solicitar sua liberação, alertaram os militantes da célula comunista da cidade de Tarbes sobre a presença desse marxista libanês em longa detenção. Sua não liberação, contudo, encontra explicação no discurso profe-

rido pela ministra da Justiça na Assembleia Nacional em 8 de abril, em plena pandemia. Nesse dia, Belloubet precisou que ela excluía das liberações antecipadas “os criminosos, pessoas condenadas por violência doméstica e detentos terroristas”. E, mesmo que o grupo armado ao qual Abdallah deve ter pertencido não tenha cometido ações terroristas no sentido que se entende atualmente (atentados indiscriminados, bombas nas ruas, assassinatos de civis destinados a aterrorizar a população), a justiça francesa o qualifica como “terrorista”. Por quê? Por causa de


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atos de fato criminosos, mas dos quais as FARL não são responsáveis... Alguns meses antes do comparecimento de Abdallah ao tribunal, em Paris, no final de fevereiro de 1987, atentados atingiram a capital (RER, correios, lojas Tati). Resultado: catorze mortos e mais de duzentos feridos. A maioria das grandes mídias (Le Monde, Libération, Le Figaro, RTL, France Inter, Europe 1, as principais redes de televisão) veiculou o pensamento do ministro do Interior, Charles Pasqua, e de seu adjunto, Robert Pandraud.2 Ambos atribuíam às FARL e aos irmãos de Georges Ibrahim Abdallah a responsabilidade dessas ações terroristas. Porém, como Pandraud e Pasqua iriam admitir alguns anos depois, eles caluniaram o nome de Abdallah na imprensa a fim de dissimular o fato de não saberem no momento quem eram os responsáveis pelas bombas: “Lançamos a pista das FARL com base nos primeiros testemunhos, mas sabíamos que, para os franceses, que pensavam ter reconhecido os irmãos Abdallah nos locais, todos os barbudos do Oriente Médio se pareciam”, admitiu Pandraud. “Eu me disse que colocar em destaque a pista Abdallah não faria mal, mesmo se não fizesse bem. Na verdade, não tínhamos nenhuma pista na época.”3 Jornalistas influentes (Edwy Plenel e Georges Marion, na época investigadores no Le Monde, Charles Villeneuve na rede de televisão TF1 etc.) deram crédito à “pista Abdallah”. Eles sugeriam que os irmãos de Abdallah teriam tentado pressionar o governo francês para obter a liberação de seu camarada encarcerado explodindo bombas. Na verdade, porém, os atentados terroristas de 1986 foram cometidos por membros do Hezbollah libanês, instrumentalizados por Teerã. Na época, o Irã recriminava a França por apoiar militarmente o Iraque de Saddam Hussein em sua longa guerra assassina contra a República Islâmica (1980-1988; 1 milhão de mortos). As FARL, por sua vez, não praticavam atos terroristas contra civis, mas assassinatos cujos alvos eram militares. No entanto, influenciada pelas falsas informações veiculadas pela mídia, a justiça francesa não duvidou do caráter “terrorista” dos atos dos quais Abdallah e as FARL eram acusados. Desde então, é impossível retirar esse rótulo. Em 25 de fevereiro de 2020, em Beirute, Bruno Foucher, embaixador da França no Líbano, recebeu uma dezena de jornalistas para almoçar. Entre a sobremesa e o café, ele foi interpelado por um correspondente francês sobre o caso de Georges Ibrahim Abdallah.

O diplomata dificilmente consegue fingir ignorar o caso. Em todos os 14 de Julho, em Beirute, centenas de manifestantes se colocam diante de sua embaixada para reclamar a liberação do compatriota. Desde 2004, data do primeiro pedido de liberdade condicional rejeitado, o militante libanês viu seu pedido de liberação ser rejeitado sete vezes. Como poderíamos esperar, Foucher respondeu que o caso está vinculado à justiça e não à diplomacia ou ao poder político. No entanto, como veremos, sob a presidência de François Hollande, o ministro do Interior, Manuel Valls, interveio diretamente para bloquear a liberação de Abdallah. O secretário nacional do Partido Comunista Francês (PCF), Fabien Roussel, endereçou em 14 de abril de 2020 uma carta à ministra da Justiça. Ele pedia a liberação de Abdallah, estimando que “ninguém pode afirmar hoje que ele representaria um perigo qualquer que fosse para nosso país”. Roussel antecipa assim as asserções do governo norte-americano, para quem “a prisão perpétua é apropriada aos graves crimes perpetrados por Abdallah e é legítimo se preocupar com o perigo que ele representaria para a comunidade internacional se fosse libertado”.4 Deputado no norte, o dirigente do PCF sabe que em certos locais ele é o “Nelson Mandela do Oriente Médio”. As comunas de Grenay e Calonne-Ricouard (Pas-de-Calais) fizeram dele cidadão de honra. Belloubet respondeu a Roussel em 6 de maio: “Não cabe ao Ministério da Justiça dar qualquer tipo de instrução aos procuradores em se tratando de casos individuais, nem de interferir em processos judiciários. [...] A autorização de um ajuste de pena cabe apenas à competência das jurisdições da aplicação de penas que apreciam soberanamente e em toda independência da oportunidade de conceder tal medida”. Mas, seis semanas antes, o governo francês soltava Jalal Rohollahnejad, um engenheiro iraniano preso no aeroporto de Nice sob pedido norte-americano. A justiça tinha dado um parecer favorável à sua extradição para os Estados Unidos; o homem estava quase sendo entregue às autoridades norte-americanas, mas o Irã então propôs à França uma troca, com a liberação do pesquisador francês Roland Marchal. E, em 20 de março de 2020, Rohollahnejad embarcou em um avião para Teerã, enquanto Roland Marchal tomava o caminho contrário. Quando se trata de Abdallah, no entanto, o poder político francês o mantém em detenção para agradar a Washington. A ingerência norte-americana nunca deixou de existir nesse caso. Em 21 de novembro de 2012, enquanto

o Tribunal de Aplicação das Penas (TAP) se pronunciava a favor da liberação de Abdallah, o embaixador dos Estados Unidos na França, Charles Rivkin, deixava público em um comunicado que ele “lamentava a decisão do TAP de conceder a liberdade condicional ao terrorista reconhecido culpado Georges Ibrahim Abdallah”. Ele acrescentava: “Espero que as autoridades francesas apelem contra a decisão tomada hoje e que ela seja anulada”. Apelaram contra a decisão. E, dessa vez, em 10 de janeiro de 2013, a Corte de Apelação confirmou que Abdallah deveria ser libertado. Não tendo nacionalidade francesa nem visto de permanência, só lhe restava deixar o território francês. Seu advogado, Jacques Vergès, já exultava: “Acolho com satisfação essa decisão, pois tinha pedido à justiça francesa que não se comportasse mais como uma prostituta diante de seu cafetão norte-americano”. A liberação de seu cliente só aguardava a assinatura do documento de expulsão – uma formalidade.

Seu comportamento na detenção inspira o respeito dos guardas, e o diretor da prisão gosta de conversar com ele a respeito da situação no Oriente Médio No dia seguinte à decisão da Corte de Apelação, porém, a porta-voz do Departamento de Estado norte-americano, Victoria Nuland, afirmou: “Estamos decepcionados com a decisão da corte francesa [...]. Não pensamos que ele deva ser libertado e continuamos nossas conversas com o governo francês a esse respeito”.5 Então secretária de Estado do presidente Barack Obama, Hillary Clinton contava com o fato de que alguns membros do governo francês, entre os quais o ministro das Relações Exteriores, Laurent Fabius, se mostrariam receptivos aos pedidos da Casa Branca. Depois da decisão da Corte de Apelação, enquanto se preparava para deixar o Departamento de Estado, Hillary transmitiu a seguinte mensagem: “Mesmo que o governo francês não seja legalmente autorizado a anular a decisão da Corte de Apelação de 10 de janeiro, nós esperamos que as autoridades francesas possam encontrar outra base para contestar a legalidade da decisão”.6 Responder positivamente a esse pedido, contudo, impunha a concordância da ministra francesa da Justiça, Christianne Taubira, que tinha, alguns meses antes, emitido uma circular proibindo que ela própria, as-

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sim como qualquer outro membro do Executivo, dirigisse instruções aos magistrados.

MACRON É INTERPELADO EM TÚNIS Com quem os Estados Unidos e Laurent Fabius poderiam contar para derrubar, apesar disso, a liberação de Abdallah? A resposta veio três dias depois. Em 14 de janeiro de 2013, o ministro do Interior, Manuel Valls, se recusou a assinar o termo de expulsão de Abdallah. Surpresa com essa intervenção de um membro do Executivo em um caso do Judiciário – o que contradizia sua circular de setembro de 2012 –, a ministra Christianne Taubira reclamou o arbítrio do presidente da República. Hollande não interveio. Ele deixou seu ministro do Interior agir, na época muito mais popular do que ele. E o militante comunista libanês continuou na prisão. No Líbano, sua família já estava a caminho do aeroporto de Beirute para recebê-lo. Emmanuel Macron foi interpelado sobre o caso Abdallah em sua primeira visita oficial à Tunísia em 1º de fevereiro de 2018. Enquanto passeava pela medina da capital, militantes tunisianos começaram a gritar “Liberte Abdallah!”. Nas imagens dos telefones celulares que imortalizaram a cena, vemos que o presidente da República se volta espantado para seus conselheiros. Ele parece não entender o que está acontecendo, até que um oficial tunisiano acompanhando a delegação explica quem é esse Abdallah. De volta à França, nada acontece. Menos de três meses depois de ter sido interpelado em Túnis, Macron libertou uma prisioneira comum condenada à prisão perpétua por assassinato. A Convenção Europeia dos Direitos Humanos proíbe que se condene um detento “sem nenhuma esperança de saída”. No entanto, isso parece corresponder ao destino do militante comunista libanês Georges Ibrahim Abdallah.  *Pierre Carles é diretor do filme Who wants Georges Ibrahim Abdallah in jail? [Quem quer Georges Ibrahim Abdallah na prisão?], atualmente em realização. 1   L er Alain Gresh e Marina da Silva, “Un prisonnier politique expiatoire” [Um prisioneiro político expiatório], Le Monde Diplomatique, maio 2012. 2   Ler Pierre Carles e Pierre Rimbert, “Des plumes empoisonnées” [Penas envenenadas], Manière de Voir, n.172, “Fake News, une fausse épidémie” [Fake news, uma falsa epidemia], ago.-set. 2020. 3   Citado por Pierre Favier e Michel Martin-Roland, La décennie Mitterrand [A década Mitterrand], Seuil, 1996. 4   Declaração de Charles Rivkin, embaixador dos Estados Unidos na França, 21 nov. 2012. 5   Reuters, 12 jan. 2013. 6   M ensagem de 11 jun. 2013, “Hillary Clinton archive”. Disponível em: https://wikileaks.org.


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MISCELÂNEA

livros

internet

POR UM POPULISMO DE ESQUERDA Chantal Mouffe, Autonomia Literária

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caba de chegar ao Brasil o novo livro de Chantal Mouffe, Por um populismo de esquerda . O título, provocador, é um chamado à ação política e soa especialmente provocativo no atual contexto brasileiro. Já no início a autora apresenta seu diagnóstico central, cujo foco é, vale salientar, a Europa: a crise da formação hegemônica neoliberal produziu o momento populista que marca a atual conjuntura. Ter-se-ia aberto, assim, nesse momento, a possibilidade de construção de uma ordem mais democrática. Não se entende o livro sem esse retorno: o abandono de canais agonísticos capazes de expressar os conflitos e as divergências de visões e interesses – traço inerente ao político – e a adoção de um

VIDA E MORTE DE UMA BALEIA-MINKE NO INTERIOR DO PARÁ E OUTRAS HISTÓRIAS DA AMAZÔNIA Fábio Zuker, Publication Studio São Paulo

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livro reúne uma série de reportagens, feitas entre 2017 e 2019, mas não se resume a isso: apesar de o título ser extenso, há uma aposta qualquer, ainda que mínima, em duplicar e serializar esses textos, colididos e organizados como uma espécie de corpus em deslocamento pela Amazônia de hoje. Como se, mesmo numa nova versão do livro, agora expandida em formato de e-book, essas duplicatas também fossem capazes de, tal como o pensamento Wari’, que projeta corpos em outro mundo, expandir o mundo e imaginar outros sobre este nosso mundo aqui, permanentemente em via de extinção. Fábio Zuker não resolve os impasses de que nos dá notícia, mas os expõe. Também, em nenhum momento ele se propôs à tarefa complicadíssima de salvar o mundo do desastre, e sim de pensar sobre o desastre e suas consequências, porque, para ele, os números por si sós não dão conta de traduzir a experiência cotidiana das pessoas que experienciam a floresta amazônica dos mais diversos pontos de vista.

consenso no centro geraram o que a autora chama de pós-política, condição marcada pela ausência de propostas claramente alternativas/oposicionistas, o que provoca, por sua vez, desinteresse pelo processo democrático e apatia política. Essa apatia, no entanto, teria sido sacudida pela crise de 2008, que trouxe à tona as contradições do modelo neoliberal e deu origem a questionamentos dessa hegemonia por diversos movimentos, à esquerda e à direita, mas com um traço em comum: são antissistema. Assim, a ascensão da direita populista na Europa, nos Estados Unidos e no Brasil parece ser menos um fenômeno político que um fenômeno social. A insatisfação de parte da população com o “sistema” e com o condomínio de poder que cuidava da gestão do capitalismo ajuda a entender a emergência de figuras caricatas que se elegeram prometendo rupturas. De certa forma, a política foi redescoberta pela direita. Como precisamente construir uma alternativa contra-hegemônica, para além do processo eleitoral? A obra de Chantal Mouffe obviamente não oferece tal resposta, mas nos dá pistas e serve de reflexão sobre fracassos acumulados e disputas a enfrentar. [Felipe Calabrez] Prof. de Relações Internacionais.

Atento, então, à pluralidade de pontos de vista que cruzam modos muito heterogêneos de vivenciar e experienciar a floresta, Fábio Zuker movimenta-se por diferentes lugares da região Norte do país, coletando histórias e escrevendo notícias que fazem surgir pequenas clareiras na mata, assim como a história da Baleia-Minke, que abre um pequeno respiro no meio de tantas notícias de desastre, ajudando-nos a ter uma ideia do que, de fato, acontece atualmente por lá. De venezuelanos, indígenas Warao e criollos, acampados no viaduto do terminal rodoviário de Manaus, “personagens de uma história que não gostariam de estar escrevendo”, a habitantes do município de Alenquer, no Pará, que compartilham o uso do Lago Macupixi com a empresa Açaí Amazonas e declaram, irremediavelmente, que “o que eles querem mesmo é matar a gente”, o tom que prevalece no livro, atravessado por uma grande dor, é o de denúncia, como se suas reportagens estivessem nos revelando um processo de destruição contínua, cuja ferramenta seria uma certa violência lenta – termo cunhado por Rob Nixon, professor de Princeton – acometida contra a floresta e suas formas de vida. [Érica Zíngano] Poeta e artista visual.

NOVAS NARRATIVAS DA WEB Sites e projetos que merecem seu tempo POST-NORMAL TIMES Publicado em 2019, o projeto em formato livro e site é o foco das pesquisas do Centro de Políticas Pós-Normais e Estudos do Futuro, um grupo de pesquisa internacional que observa principalmente as sociedades marginalizadas e muçulmanas. A teoria que os autores desenvolvem diz que os tempos atuais vivem sob três regras: complexidade, caos e contradições. Vivemos numa era em que velhas ortodoxias estariam morrendo, novas estariam emergindo e poucas coisas fazem sentido. Como o projeto é anterior ao coronavírus, ganhou uma edição extra, com um blog que traz novos textos, atualizados. <https://postnormaltim.es>

ACERVO VLADIMIR HERZOG Um site com quase 2 mil fotos, correspondências e outros itens recupera a história do jornalista morto no período da ditadura militar no emblemático caso em que os militares tentaram forjar um suicídio e que deu início a diversas manifestações que serviram para aumentar a pressão para o fim do regime. Biografia, linha do tempo e memórias, fruto de dois anos de pesquisas, compõem o acervo, entre outros formatos. Apenas em 2013 a certidão de óbito do jornalista foi retificada, desmantelando finalmente a farsa do suicídio. Lá se pode ler o documento. <www.acervovladimirherzog.org.br>

MUSEU DA ARTE COVID Covid Art Museum é um projeto de publicitários espanhóis, Irene Llorca, José Guerrero e Emma Calvo, que convida artistas do mundo todo a compartilhar obras feitas durante a pandemia. Segundo eles, é o primeiro museu de arte do mundo surgido durante a crise de Covid-19. Uma conta no Instagram publica as contribuições, que podem ser fotografias, ilustrações, vídeos, pinturas, animações e formatos dos mais variados. Mais de quinhentas publicações já foram feitas. < w w w.inst agr a m .c o m / c ovi d a r tmuseum/> [Andre Deak] Diretor do Liquid Media Lab, professor de Jornalismo e Cinema na ESPM, mestre em Teoria da Comunicação pela ECA-USP e doutorando em Design na FAU-USP.


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SUMÁRIO LE MONDE

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“É disso que estamos falando: não basta não ser racista, é preciso ser antirracista!” Raphael Alves, via Instagram

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O lado vergonhoso do “metal azul” “Isso para não falar do lítio e do que fizeram na Bolívia, onde ficam as maiores reservas desse recurso. O próprio Elon Musk, paradigma de empresário moderninho, admitiu o interesse que tem em golpes que roubem a soberania dos países sobre as matérias-primas da indústria ‘do futuro’.” Paulo Mello, via Instagram

Especial Feminismos transnacionais – site do Diplomatique “Ótimo texto sobre a vitalidade e potência dos feminismos negros.” Tatiele Souza, via Facebook “Ótimo texto! As autoras chamam as outras, as companheiras de perto, de longe, deste e de outros tempos, para tecerem um comum nas diferenças. A vitalidade pulsa na comunidade que elas tecem nas linhas desse texto.” Marcia Moraes, via Facebook “Texto importantíssimo, que reflete a potência do feminismo negro como forma de resistência e reflexão fundamentais. Precisa ser lido por todes!” Ana Claudia Monteiro, via Facebook

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Capa: © Giorgia Massetani

Quem quer prolongar a guerra no Afeganistão? Por Serge Halimi Editorial

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Capa

O colapso de um nodelo de gestão Por Silvio Caccia Bava Bolsonaro, a pandemia e a explosão das demandas sociais Equipe do Inesc A roleta russa da abertura das escolas Por Fernando Cássio e Ana Paula Corti Como controlar a pandemia no Brasil Por Naomar de Almeida Filho, Gulnar Azevedo e Claudia Travassos

A desconfiança dos cidadãos em relação à polícia “O problema é que não se vê na experiência de mundo um papel de polícia militarizada como se vê no Brasil: uma polícia destinada a combater o inimigo interno. Isso se afigura numa perspectiva tradicional à diferença entre a tragédia e o épico. Enquanto épico é o combate da fronteira, com o inimigo externo, o outro, a tragédia interna é irmão contra irmão.” Liège Santos, via Instagram

NYT a serviço do lobby da guerra

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Você disse “sistêmico”? “Todas as grandes empresas entraram na modinha de ganhar dinheiro usando pessoas de minorias em suas propagandas. Trend do marketing para 2020.” Fábio Cardoso, via Instagram

BRASIL

Ano 14 – Número 157 – Agosto 2020 www.diplomatique.org.br

“Que vontade de emoldurar essa capa!” Natane Garcia, via Instagram “Edição belíssima. A arte também perfeita. Parabéns”. Jeane Tavares, via Instagram

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Nos EUA, o pavor da democracia

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Campanha Kanamari do Vale do Javari, Amazônia

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Aquecimento global ameaça o abastecimento de água

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Os populistas norte-americanos contra o lobby dos médicos Por Thomas Frank

Defesa dos indígenas contra a Covid-19 Por Boaventura de Sousa Santos e Lino João de Oliveira Neves

DIRETORIA Diretor da edição brasileira e editor-chefe Silvio Caccia Bava Diretores Anna Luiza Salles Souto, Maria Elizabeth Grimberg e Rubens Naves Editor Luís Brasilino Editora-web Bianca Pyl Editor de Arte Cesar Habert Paciornik Estagiária Gabriela Bonin Revisão Lara Milani e Maitê Ribeiro Gestão Administrativa e Financeira Arlete Martins Assinaturas assinaturas@diplomatique.org.br Tradutores desta edição Carolina M. de Paula, Frank de Oliveira, Lívia Chede Almendary, Rita Grillo e Wanda Brant Conselho Editorial Adauto Novaes, Amâncio Friaça, Anna Luiza Salles Souto, Ariovaldo Ramos, Betty Mindlin, Claudius Ceccon, Eduardo Fagnani, Heródoto Barbeiro, Igor Fuser, Ivan Giannini, Jacques Pena, Jorge Eduardo S. Durão, Jorge Romano, José Luis Goldfarb, Ladislau Dowbor, Maria Elizabeth Grimberg, Nabil Bonduki, Raquel Rolnik, Ricardo Musse, Rubens Naves, Sebastião Salgado, Tania Bacelar de Araújo e Vera da Silva Telles.

A Bolívia enfrenta a agonia de suas geleiras Por Cédric Gouverneur, enviado especial

Assessoria Jurídica Rubens Naves, Santos Jr. Advogados

Para além do medo de ver os museus franceses vazios

Escritório Comercial Brasília Marketing 10:José Hevaldo Rabello Mendes Junior Tel.: 61. 3326-0110 / 3964-2110 jh@marketing10.com.br

Polêmicas sobre a restituição das obras de arte africanas Por Philippe Baqué

Le Monde Diplomatique Brasil é uma publicação da associação Palavra Livre, em parceria com o Instituto Pólis.

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Propostas de remuneração decente aos trabalhadores da cultura

A sede por segurança social no mundo das artes Por Aurélien Catin

Rua Araújo, 124 2º andar – Vila Buarque São Paulo/SP – 01220-020 – Brasil Tel.: 55 11 2174-2005 diplomatique@diplomatique.org.br www.diplomatique.org.br

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Ser útil, trabalhar para o interesse coletivo... Ou não

Assinaturas: Leila Alves assinaturas@diplomatique.org.br Tel.: 55 11 2174-2015

Afinal, para que servem os artistas? Por Evelyne Pieiller

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Música

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Um escritor, um país

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No Japão, o peso da hierarquia

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As influências de J. R. R. Tolkien

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Mineração estratégica no coração do conflito comercial sino-americano

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A prisão perpétua de Georges Ibrahim Abdallah

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Os usos de Johann Sebastian Bach Por Agathe Mélinand

Impressão D’ARTHY Editora e Gráfica Ltda. CNPJ: 01.692.620/0001-00, Parque Empresarial Anhanguera - Rod. Anhanguera Km 33 - Rua Osasco, 1086, Cep: 07753-040 - Cajamar - SP

Babel jovem e inocente Por Yan Lianke “Língua servil” e sociedade da submissão Por Akira Mizubayashi O mundo ideal dos hobbits Por Evelyne Pieiller

A guerra das terras-raras vai acontecer? Por Camille Bortolini Terrorista um dia, sempre terrorista? Por Pierre Carles Miscelânea

LE MONDE DIPLOMATIQUE (FRANÇA) Fundador Hubert BEUVE-MÉRY Presidente, Diretor da Publicação Serge HALIMI Redator-Chefe Philippe DESCAMPS Diretora de Relações e das Edições Internacionais Anne-Cécile ROBERT Le Monde diplomatique 1 avenue Stephen-Pichon, 75013 Paris, France secretariat@monde-diplomatique.fr www.monde-diplomatique.fr Em julho de 2015, o Le Monde diplomatique contava com 37 edições internacionais em 20 línguas: 32 edições impressas e 5 eletrônicas. ISSN: 1981-7525


By_Lu*Ch@quE

Já está no ar o Observatório de Educação - Ensino Médio e Gestão

Um centro de referências e análises com mais de 14 mil documentos como teses, artigos e dados estatísticos de diversas fontes, selecionados a partir de uma cuidadosa curadoria:

12.850 textos

899 vídeos

560 gráficos

Tudo organizado em oito seções, como: Centro de Documentação de Gestão em Educação (CEDOC): mais de 10 mil documentos sobre gestão e Ensino Médio produzidos por fontes nacionais e internacionais.

Em debate: coleções e conteúdos multimídia sobre pautas fundamentais para a agenda do Ensino Médio público.

Educação em números: indicadores educacionais, sociais e demográficos apresentados de forma visual e interativa.

Acesse e confira: observatoriodeeducacao. institutounibanco.org.br/

OBSERVATÓRIO DE EDUCAÇÃO ENSINO MÉDIO E GESTÃO


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