Le Monde Diplomatique Brasil #161 (Dezembro 2020)

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ANO 14 / Nº 161

ELEIÇÕES NOS EUA

A AMARGA VITÓRIA DEMOCRATA POR SERGE HALIMI E OUTROS

R$ 18,00

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UM CONTINENTE NEGLIGENCIADO

EMERGENTE INDÚSTRIA FARMACÊUTICA AFRICANA POR SEVERINE CHARON E LAURENCE SOUSTRAS

LE MONDE

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ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADES

A INDESTRONÁVEL MONARQUIA BRITÂNICA POR LUCIE ELVEN

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diplomatique

BRASIL

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PROJETOS DE CIDADE EM DISPUTA


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EDITORIAL

A implosão do sistema político POR SILVIO CACCIA BAVA

lítico de dominação das maiorias. E o Chile caminha para isso, com a aprovação de um processo constituinte independente do Congresso que tem hoje. É importante acompanhar o que acontece na Bolívia, processo muito pouco conhecido no Brasil, na verdade censurado por nossa grande imprensa. Desde 2005, o partido Movimiento Al Socialismo (MAS) governa a Bolívia com amplo respaldo popular. Fundado em 1997, ele chegou ao poder em 2005, elegendo Evo Morales com 54% dos votos. Em 2009, reelegeu Evo com 64% dos votos. Em 2014, com 61% dos votos. Em 2019, Evo ganhou novamente as eleições, mas viu contestada sua legitimidade e sofreu um golpe de Estado, sendo afastado do poder, que foi assumido pela oposição, liderada pelas oligarquias locais e apoiada internacionalmente por vários Estados e mesmo pela OEA. Mais um golpe na América Latina tentando destruir governos populares e democráticos. Com seus erros e acertos, o MAS trouxe uma efetiva melhora nas condições de vida das maiorias e abriu espaço para a elaboração de uma nova Constituição pluricultural e plurinacional, reconhecendo e valorizando as formas de organização dos pueblos originários, e criando um novo modelo de democracia, que combina a representação com a democracia participativa. O golpe foi sentido pela maioria da população, que amadureceu formas de resistência e, pela via da pressão, exigiu a realização de eleições. A pressão foi contínua e, depois de dois adiamentos, finalmente a eleição foi marcada para 18 de outubro. O cenário era ou de eleições democráticas, ou de convulsão social. Em 28 de julho, a Central Obrera Boliviana, a Federação dos Mineiros e as organizações de camponeses decretaram uma greve geral com prazo indefinido e decidiram também pelo bloqueio das estradas. Mais de duzentos bloqueios se realizaram. A exigência era de eleições limpas e democráticas. Com 55,2% dos votos, o candidato do MAS, Luis Arce, se elegeu. Seu oponente teve 28,9% dos votos. A vitória

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voz corrente que o desencanto e a frustração marcam o momento histórico que vivemos. O sistema político do país é mal avaliado pelos brasileiros e brasileiras, mas essas posturas podem estar mudando se olharmos para os resultados das eleições municipais deste ano. Os últimos dados das pesquisas do Latinobarómetro, de 2018, dizem que o apoio à democracia por parte dos brasileiros e brasileiras é de 34%. Os indiferentes somam 41%. E os que preferem o autoritarismo são 15%. Caem os que apoiam a democracia, sobe o número dos indiferentes. Os que preferem o autoritarismo permanecem estáveis. A aprovação do governo em 2018 é de 6%. A do Congresso Nacional é de 12%. A aprovação dos partidos políticos é de 6%.1 Bolsonaro é expressão deste momento. De que vale votar se o controle da política permanece com os poderosos? Depois das eleições de 2018, aprofundou-se a espoliação das maiorias e, com isso, a descrença na política e no sistema político. A Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político2 – uma coalizão de movimentos sociais e ONGs que há anos se engaja na luta pela reforma de nosso sistema político – abandonou a ideia de uma reforma, não acredita mais nessa possibilidade, e passou a defender a implosão do atual sistema político, de fora para dentro. O que quer dizer isso? Trata-se de um embate contra uma política gerada e gerida pelas elites, que sustenta e se apoia num sistema político burocrático, sem nenhuma participação popular e que aprofunda as desigualdades implementando políticas públicas de exclusão social, espoliação das maiorias e concentração das riquezas produzidas nas mãos de muito poucos. Não há reforma possível quando Executivo, Legislativo e Judiciário se alinham com esses objetivos, mesmo contrariando nossa Constituição. Acontece que o desencanto não é pela política ou pela democracia. É por essa política e por essa democracia. O próprio desencanto é fruto de uma política cujo resultado esperado é a desmobilização da cidadania. O povo da Bolívia acaba de promover a implosão de seu sistema po-

© Claudius

do MAS em 2020 não pode ser vista apenas como uma vitória eleitoral; é uma vitória política e social que vai além desse partido. Ela expressa uma nova vontade política, que se opõe ao modelo neoliberal. É uma vitória de classe, de gênero, de geração, de território, de cultura, como afirmam analistas do processo eleitoral3. Na Câmara dos Deputados, o MAS conta com 75 de 130 deputados; 87 são mulheres. A maioria dos deputados eleitos são jovens de 22 a 27 anos – uma verdadeira renovação da classe política. No Senado, elegeu 21 dos 36 senadores. Dos eleitos, 55,5% são mulheres. Trata-se de uma verdadeira implosão do sistema político até então existente. E o caminho apontado pelos analistas é a passagem da democracia representativa para a democracia participativa, na perspectiva de construir a democracia comunitária. No Brasil, a implosão do sistema político, que necessariamente ocorre de fora para dentro, ainda não aconteceu. Mas sinais de que as coisas vão mudando e podem mudar mais estão nos resultados dessa última eleição. Coletivos e representantes das lutas antirracistas, feministas, contra a homofobia, pelo direito à moradia, pelo direito à cidade passaram a estar mais

presentes nos legislativos municipais. Serão muitas Marielles convocando a cidadania a defender seus direitos e não se subjugar a instituições que até hoje ignoram suas demandas. Outro indicativo dessas mudanças é que nessas eleições a luta contra o racismo conquistou um espaço mais expressivo nas instituições políticas. Considerando todas as capitais, 48% das vereadoras eleitas são negras e 44% dos vereadores eleitos são negros. Mais de quinhentos quilombolas se candidataram e levaram para o espaço público sua agenda, a defesa de seus direitos. Um se elegeu prefeito de Cavalcante, em Goiás; outro, vice-prefeito; e 54 se elegeram vereadores em várias cidades do país. Os povos indígenas também elegeram representantes. Por exemplo, os Kaingang elegeram onze vereadores nos estados do Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina. Em Mato Grosso do Sul, os Terena e Guarani elegeram dez vereadores. Ainda não é a implosão de nosso sistema político, mas novas vozes trazem uma nova agenda a ele.  1   C orporación Latinobarómetro, Informe 2018. 2   https://reformapolitica.org.br. 3   Ver debate promovido por Brasil de Fato, no dia 11 de novembro de 2020, na TV 247. Disponível em: https://youtu.be/Wd89rxwDDoA.


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ELEIÇÕES NOS ESTADOS UNIDOS

A amarga vitória democrata As primeiras escolhas de Joe Biden para postos-chave de sua administração (Relações Exteriores, Finanças, Meio Ambiente) ameaçam decepcionar quem espera mudanças profundas na Casa Branca. Entretanto, mesmo uma política pouco ambiciosa enfrentará muita resistência de um Partido Republicano que não sofreu a derrota que se esperava POR SERGE HALIMI*

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© Gayatri Malhotra/Unsplash

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maioria dos ativistas democratas ficou muito decepcionada em 3 de novembro, noite em que seu candidato venceu a eleição presidencial norte-americana. Para eles, quase nada saiu como planejado. É certo que Donald Trump perdeu, mas por pouco, já que algumas dezenas de milhares de votos adicionais em um punhado de estados (Geórgia, Wisconsin, Arizona, Pensilvânia) teriam bastado para que o atual ocupante da Casa Branca permanecesse lá por mais quatro anos. Esse resultado apertado o encoraja a reclamar de fraude, enquanto seus apoiadores mais exaltados atacam máquinas de votação cujo software, projetado na Venezuela para Hugo Chávez, permitiria distorcer à vontade os resultados. O espetáculo do ex-prefeito de Nova York Rudolph Giuliani, advogado pessoal do presidente dos Estados Unidos, enxugando a testa enquanto essas acusações bizarras eram feitas com seu aval, dá a medida daquilo em que se transformou a política norte-americana. Mais preocupante e mais sério para Joe Biden: 77% dos republicanos consideram que sua eleição não é legítima.1 No dia 20 de janeiro, o presidente eleito precisará enfrentar essa desconfiança quando seu partido não terá maioria no Senado e terá perdido dez cadeiras na Câmara dos Deputados e estagnado nas assembleias dos estados. Isso equivale a dizer que esse mandato democrata não terá nenhuma lua de mel e que começa muito pior que aquele de Barack Obama, iniciado há doze anos, do qual, entretanto, não resta grande coisa, exceto magníficos discursos e Memórias em dois volumes. A eleição de Obama não foi contestada, ele fazia o mundo todo sonhar e tinha ampla maioria em ambas as câmaras. Ele também se mostrava muito mais vigoroso e trinta anos mais jovem que o “Joe Adormecido” hoje. Paradoxalmente, é, portanto, no campo dos perdedores que o futuro

Mulher comemora a vitória de Biden nas eleições, em frente à Casa Branca parece mais promissor. Os adversários de Trump imaginavam que sua eleição há quatro anos era o resultado de um incrível acaso eleitoral, que expressava o último suspiro (ou o último soluço) do homem branco e que sua coalizão, em que se justapunham segmentos em declínio do eleitorado – religioso, rural, idoso –, estava condenada. Por outro lado, o mapa demográfico tornava irresistível uma vingança democrata apoiada por uma maioria “diversificada”,

jovem e multiétnica. Esse futuro não está mais escrito. Reconfortado em suas bases, conquistando suas margens, o republicanismo ao estilo de Trump não está prestes a sair de cena. O presidente que vai deixar o cargo transformou o partido do qual se apossou; ele é doravante o seu, ou de seu clã, ou dos herdeiros que ele terá designado. Para os democratas, a decepção é imensa. Uma forma de prostração e de desmobilização poderia muito

bem se seguir. Com mais de 200 mil mortes por Covid-19, uma economia paralisada, desemprego crescente, uma taxa de popularidade presidencial que, ao contrário de todos os seus antecessores, nunca em quatro anos ultrapassou 50% e uma lista de mentiras e insultos públicos capaz de encher vários grossos volumes, a derrota do presidente que deixa o cargo parecia assegurada. Especialmente porque a todos esses fatores se juntavam a cortina de fogo de quase todos os meios de comunicação, financiamentos eleitorais inferiores ao do concorrente democrata (algo bizarro tendo em vista que o republicano ofereceu generosos presentes fiscais a bilionários), sem mencionar o apoio compacto de quase todas as elites do país – artistas, generais, acadêmicos de esquerda e inclusive o dono da Amazon – a Biden. Em 3 de novembro, os democratas não estavam apenas esperando uma vitória, mas uma punição. Eles achavam que, como em 1980, a derrota do presidente seria homologada antes mesmo que os californianos terminassem de votar e, para que a humilhação da sagrada América progressista fosse realmente purgada, o desastre prometido aos republicanos seria seguido – como ouvimos ser exigido – pelo encarceramento da família Trump, se possível retratada em uniforme laranja. Esse cenário permanecerá imaginário. É até provável que o jogador de golfe de Mar-a-Lago não fique politicamente inativo por muito tempo. Forte por ter obtido 10 milhões de votos a mais que há quatro anos, apesar de todas as afrontas de que foi alvo, incluindo uma tentativa de impeachment, ele sem dúvida conseguirá convencer seus partidários de que foi um presidente corajoso, que cumpriu suas promessas e ampliou a base social de seu partido, mas cujo balanço lisonjeiro foi obscurecido por uma pandemia. O fervor de alguns é fortalecido pela rejeição de outros. A “verdade alternativa” dos republicanos mais exaltados é ainda menos duvidosa quando se pensa que o universo paralelo dos democratas apresenta certas falhas semelhantes. Pois como pode um apoiador de Trump se reconhecer no retrato que a maior parte dos meios de comunicação, além daqueles que ele frequenta, oferece de seu campeão? Muitos dos eleitores de Biden, especialmente os graduados, os urbanos, aqueles que definem o tom, o ritmo e a linha, de fato se convenceram de que o presidente que está saindo é um palhaço, um fascista, “o poodle de Putin”, até mesmo o sucessor de Adolf Hitler. Em 23 de setembro, sem ser contestado pelo fa-


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moso apresentador da MSNBC, o publicitário Donny Deutsch comparou os apoiadores de Trump a multidões fanáticas que compareciam aos comícios nazistas: “Quero dizer aos meus amigos judeus que vão votar em Donald Trump: como se atrevem a fazer isso? Não há nenhuma diferença entre o que ele prega e o que Adolf Hitler pregava”. Dois dias depois, um comentarista do Washington Post estimou que devemos deixar de temer a analogia entre o início da ditadura nazista e as tentações totalitárias do presidente dos Estados Unidos: “América, estamos à beira do nosso incêndio do Reichstag. Podemos evitá-lo. Não deixemos nossa democracia ser incinerada”.2

PARANOIA ALIMENTADA PELA MÍDIA Por fim, na CNN, enquanto a eleição de Biden não tinha sido confirmada, a famosa jornalista Christiane Amanpour, em vez de saborear sua vitória e se permitir uma pequena pausa ativista, aproveitou a data de 12 de novembro para sinalizar que aquela era a semana do aniversário da Noite dos Cristais, durante a qual, em 1938, as vitrines das lojas pertencentes a judeus foram saqueadas e muitos de seus proprietários foram assassinados ou enviados para campos de concentração. O prelúdio, segundo ela, de um assalto contra “a realidade, o conhecimento, a história e a verdade”, o que imediatamente a traz de volta às transgressões do presidente norte-americano. Nos Estados Unidos e na Europa, a imprensa progressista optou por não destacar tais excessos, mas os apoiadores de Trump não vão esquecê-los a cada vez que rirmos de sua paranoia. Eles já notaram que a eleição presidencial havia ocorrido sem que se manifestasse essa vasta conspiração russa da qual foram continuamente informados por quatro anos. A eleição de Obama desencadeara um mecanismo de ódio e falsificação. Apesar de seu centrismo quase conservador, sua austeridade fiscal, sua leniência com os bancos, seus assassinatos por drones, suas expulsões em massa de imigrantes, seus protestos impotentes diante de abusos policiais, os republicanos o acusaram de ser um radical ferrenho, um revolucionário mascarado, um falso norte-americano. Biden pode ficar tão distante da esquerda quanto seu predecessor democrata – “Eu sou o cara que fez campanha contra os socialistas. Eu sou o moderado”, ele defendia em Miami uma semana antes da votação –, mas seu mandato ocorrerá em um clima igualmente agitado, porque, como analisou o jornalista Matt Taibbi, a grande mídia não está mais preocupada em informar,

mas em satisfazer apoiadores endurecidos suficientemente numerosos para fazê-los viver ou morrer.3 Entre aqueles que se informam lendo o New York Times, 91% se declaram democratas e, entre aqueles que preferem a Fox News, 93% se proclamam republicanos.4 O bom business model passa então a empanturrar o animal, isto é, o assinante, com a comida que ele espera, mesmo que seja tendenciosa, ultrajante e falsificada. E os jornalistas, inclusive quando proclamam seu amor pela diversidade, têm o cuidado de caçar hereges. O resultado é convincente: transformado em um anexo ideológico do Partido Democrata e capaz de publicar meia dúzia de editoriais ou comentários que a cada dia reafirmam seu desprezo e seu ódio pelo presidente que deixa o cargo, o New York Times tem 7 milhões de assinantes. De sua parte, a Fox nunca ganhou tanto dinheiro. A existência de dois países que se ignoram ou se enfrentam não é novidade nos Estados Unidos. E, na época da Guerra Civil, a fratura já ignorava as categorias econômicas e sociais. Mais recentemente, em 1969, um conselheiro do presidente Richard Nixon, Kevin Phillips, recomendou ao Partido Republicano, com mapas e gráficos para apoiá-lo, que aproveitasse a “revolta populista das massas norte-americanas que, tendo alcançado a prosperidade das classes médias, se tornaram mais conservadoras. Elas se levantam contra a casta, as políticas e a tributação dos mandarins de esquerda do establishment”.5 A essa análise, que associava a hostilidade aos impostos daqueles cujo pecúlio estava crescendo e sua animosidade contra uma engenharia social cujo erro eles atribuíam a intelectuais progressistas, que desrespeitavam na opinião deles os preceitos religiosos, Phillips acrescentou o toque do ressentimento racial. Em suma, os “pequenos brancos” do sul, tradicionalmente democratas, estavam fartos da emancipação dos negros. E havia nisso, segundo ele, uma alavanca que os republicanos poderiam acionar para conquistar um eleitorado popular. Ele era hostil a priori às políticas econômicas de direita, mas “animosidades étnicas e culturais têm precedência sobre qualquer outra consideração quando se trata de explicar a escolha do partido”. Em larga medida, a estratégia política de Phillips explica as reeleições de Richard Nixon, Ronald Reagan e George W. Bush. Ela também lançou luz sobre a presidência de Trump. No entanto, um discurso que tem por alvo os especialistas, a meritocracia, os migrantes e as minorias se torna eleitoralmente perigoso em um país em que a proporção de estudan-

tes está aumentando e a de brancos diminuindo. Os democratas podiam, portanto, apostar que o tempo estava do seu lado. Somando-se a isso a quase totalidade dos votos negros, uma grande maioria de eleitores hispânicos, uma pequena vantagem entre as mulheres e progressos constantes entre os que têm curso superior, a vitória não poderia escapar deles. A eleição de 2020 teve pelo menos o mérito de questionar esse catecismo de identidade, essa atribuição de toda uma população a quadros demográficos, distintos, étnicos e políticos ao mesmo tempo. Uma comparação dos resultados indica que foi principalmente junto ao eleitorado branco que Biden progrediu em relação à pontuação de Hillary Clinton há quatro anos e que a maior parte dos que acabaram por votar em Trump foi composta de votos adicionados de mulheres e minorias. Em proporção, estamos longe do terremoto de uma eleição para a outra: alguns pontos aqui, alguns pontos ali. Os republicanos sempre triunfam entre os homens brancos, sobretudo quando eles não têm diploma, enquanto os democratas triunfam entre negros e hispânicos.

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A existência de dois países que se ignoram ou se enfrentam não é novidade nos Estados Unidos O VOTO DOS HISPÂNICOS No entanto, a evolução ocorreu onde não era esperada. O fato de Trump ter melhorado sua pontuação com os afro-americanos depois de ter mostrado sua indiferença à brutalidade policial e sua hostilidade ao movimento Black Lives Matter [Vidas Negras Importam] e de ter feito um grande avanço no eleitorado hispânico depois de ter promovido (e em parte construído) um muro na fronteira mexicana e ter tratado migrantes como estupradores e assassinos parece ir além da compreensão. Tanto que alguns republicanos imaginam que seu partido pode se tornar conservador, popular e multiétnico. Por sua vez, os democratas estão preocupados em ver escapar deles uma parte da clientela que consideravam conquistada, para não dizer cativa. É no entorno do Rio Grande, no Texas, que o enigma é parcialmente desvendado.6 Ali, mais de 90% da população é hispânica. Quatro anos atrás, Clinton obteve 65% dos votos no condado de Zapata. Dessa vez, foi Trump quem venceu. Que aconteceu? Os hispânicos, como outros, simplesmente não são movidos apenas pela

consideração de identidade que se atribui a eles. No caso em questão, os do Rio Grande temeram que a hostilidade de Biden à indústria do petróleo lhes negasse acesso a empregos bem remunerados, mas que não exigem diploma universitário. A mudança climática, portanto, pareceu menos temível para eles que a degradação social. Outros moradores da região, que ganham a vida decentemente como policiais ou guardas de fronteira, acreditaram que os democratas parariam de financiar sua profissão. Por fim, o fato de uma pessoa ser hispânica não impede que ela seja hostil ao aborto ou a tumultos urbanos. Em suma, você pode falar espanhol e ser conservador, da mesma forma que pode ser afro-americano e não querer receber mais imigrantes mexicanos, ou vir de um país asiático preocupando-se com os programas que procuram promover o acesso de minorias à universidade. Enquanto os democratas inventam questões progressistas artificiais, os republicanos ganham o mel em divisões bem reais, correndo o risco, tanto uns quanto outros, de não ver o outro lado da realidade: se os jovens hispânicos votam mais nos democratas que seus pais, isso não significa necessariamente que tenham mais consciência que eles de sua “identidade”. Acima de tudo, eles são mais graduados que a geração que os precedeu. Também nesse campo da diversidade, as certezas oscilam. A crise de confiança dos Estados Unidos em seu sistema político poderá talvez ter a vantagem de dissuadi-los de impô-lo à força ao mundo inteiro. Quanto à esquerda norte-americana, que não sai fortalecida dessa eleição – ainda que seu resultado a tranquilize –, só resta alertar o novo presidente contra uma política excessivamente cautelosa, semelhante à dos democratas que permitiram a eleição de Trump.  *Serge Halimi é diretor do Le Monde Diplomatique.

1   P esquisa do Monmouth University Polling Institute, 18 nov. 2020. 2   Dana Milbank, “This is not a drill. The Reichstag is burning” [Isto não é um teste. O Reichstag está pegando fogo], The Washington Post, 25 set. 2020. 3   M att Taibbi, Hate Inc.: Why Today’s Media Make Us Despise One Another [Ódio S.A.: por que a mídia atual nos faz desprezar uns aos outros], OR Books, Nova York, 2019. 4   Estudo do Pew Research Center, out.-nov. 2019. As proporções para a NPR (a televisão pública), a CNN e a MSNBC também são desequilibradas a favor dos democratas; para a ABC, a CBS e a NBC o são menos. 5   Kevin Phillips, The Emerging Republican Majority [A maioria republicana emergente], Arlington House, Nova York, 1969. 6   Elizabeth Findell, “Latinos on border shifted to GOP” [Latinos na fronteira passam para o Partido Republicano], Wall Street Journal, 9.


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PAIXÕES E EMOÇÕES DOMINAM A CENA POLÍTICA NORTE-AMERICANA

O grande desfile de lágrimas Chorar é o suficiente para dizer a verdade? Essa questão poderia explicar por que, em um período em que a mentira domina a vida política e as redes sociais norte-americanas, as lágrimas tenham inundado a cena POR THOMAS FRANK*

te que encerra o mandato. Existe até uma marca de produtos para armas de fogo chamada Liberal Tears, em referência à frase “I lube my rifles with liberal tears” (“Lubrifico meus fuzis com lágrimas liberais”). Como de costume, os democratas responderam a essa onda de sarcasmo teorizando-a e decretando que ela revelava falta de personalidade entre os conservadores. “A expressão ‘Faça-os chorar’ torna-se precisamente um discurso de poder”, ensinava a colunista Monica Hesse no Washington Post de 5 de novembro. “Trata-se de pessoas fortes que humilham aquelas que consideram fracas, porque isso as diverte e porque têm meios para tal.” Eis aí uma curiosa alegação se pensarmos que provém de um jornal de Jeff Bezos, o homem mais rico do mundo, e defende um partido político que, longe de ser “fraco”, passa seu tempo a ofender seus adversários e recolhe somas imensas de dinheiro em campanhas eleitorais – muito mais que os republicanos cruéis.

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UM HOBBY BIPARTIDÁRIO Melhor ainda, dez dias após a publicação dessa coluna, o Washington Post publicou na primeira página

uma charge que retratava Donald Trump como um bebê grande, fazendo birra em relação à sua derrota para Joe Biden. O jornal contradizia sua própria colunista. Desse modo, zombar dos infortúnios do outro lado é um hobby perfeitamente bipartidário. Em 2012, apareceu brevemente na web um site intitulado “Brancos chorando por [Mitt] Romney”: os internautas eram convidados a rir diante de imagens de republicanos abatidos após a derrota de seu candidato para Barack Obama. Na verdade, cada lado gosta de zombar do perdedor e considera as próprias lágrimas nobres e justas, como a manifestação de sentimentos políticos genuínos, uma prova de virtude filosófica. Durante seus comícios, por exemplo, Trump às vezes contava uma história sobre trabalhadores (ora da indústria de mineração, ora da indústria siderúrgica) que teriam derramado lágrimas em sua presença, atestando sua incrível aura de presidente. O enternecimento republicano, porém, não é nada comparado às torrentes de lágrimas de alegria que a imprensa nacional conscienciosamente documentou após a queda de Trump. No New York Times (13 nov.),

© Jan Canty/Unsplah

hegou a hora das lágrimas nos Estados Unidos. Os juízes estão chorando. Os comentaristas de televisão estão chorando. Os partidários do perdedor da eleição presidencial estão chorando. Os partidários do vencedor da eleição presidencial estão chorando. Eles escrevem colunas sobre os orgasmos lacrimais que lhes foram proporcionados por este ou aquele líder. É uma questão de orgulho moral. Ao mesmo tempo, é uma questão de vergonha. Pessoas que choram são fracas, assim pensam os norte-americanos, e essa brava nação de pioneiros e empreendedores recua desgostosa diante de tamanho infantilismo. Os vídeos de democratas derramando lágrimas quentes na noite da eleição de 2016, após a derrota de Hillary Clinton, se multiplicaram no YouTube nos meses seguintes, para prazer dos republicanos, que se deleitavam com a visão desses idealistas bem-educados e graduados brutalmente forçados a engolir suas ambições. As “lágrimas progressistas” logicamente se tornaram um dos grandes memes dos anos Trump. “Fazer os liberais chorar de novo”, podia-se ler em 2020 em muitos banners e cartazes agitados por partidários do presiden-

As lágrimas estão no cerne da política norte-americana e fornecem argumentos poderosos

a estrela de TV Padma Lakshmi disse ter experimentado um misterioso calor interno que havia “explodido na forma de lágrimas incontroláveis” ao saber que Kamala Harris havia sido eleita vice-presidente, antes de contar como tinha “chorado de novo” assistindo a seu (insignificante) discurso de vitória. Ela explica essa profunda emoção pelo fato de Kamala Harris “proporcionar a muitas mulheres negras e mestiças um sentimento de pertencimento”. Para fazer correr lágrimas de virtude, um método muito popular consiste em encenar a inocência da infância diante de um ambiente político pervertido. Nesse joguinho, as palmas vão para o juiz conservador Brett Kavanaugh, cuja nomeação para a Suprema Corte em 2018 foi perturbada por acusações de agressão sexual. Ele respondeu contando, entre outras coisas, como sua filha, “a pequena Liza, do alto de seus 10 anos”, tivera a ideia de orar pela acusadora de seu pai – uma cena que ele obviamente relatou fungando profusamente. E como esquecer o espetáculo do pobre Van Jones, o ex-revolucionário que virou comentarista da CNN, tentando engolir as lágrimas por quase dois minutos, durante uma transmissão ao vivo, após o anúncio da vitória de Biden? Sua emoção era compreensível (“É mais fácil ser pai esta manhã, é mais fácil dizer aos seus filhos que a moralidade é importante”), mas a estranheza da cena se deve à maneira como a câmera permaneceu focada nele enquanto ele falava, oferecendo aos telespectadores um longo e deliberado episódio de desconforto. Nesse tipo de situação, em que o próprio corpo é o penhor da verdade, as lágrimas são associadas à sinceridade. Ninguém ousaria duvidar da autenticidade das emoções de uma pessoa em prantos, sobretudo se um close mostra o rímel escorrendo. Essa também é a razão pela qual, de vez em quando, os norte-americanos precisam ser lembrados de quanto foram enganados por essa ostentação lacrimal. Nas décadas de 1980 e 1990, os televangelistas e suas lamentações teatrais eram a vergonha do país. As lágrimas faziam parte do arsenal de fogos de artifício que eles usavam pa-


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ra nos enganar. Da mesma forma, Bill Clinton, o mais sentimental dos presidentes recentes, parecia capaz de abrir e fechar a torneira à vontade. A tática do choro era apenas uma entre outras ferramentas em sua caixa de truques. Em suma, os líderes políticos de todos os matizes estão soluçando porque isso funciona. As lágrimas levam à adesão. Elas definem uma posição de vítima, injustamente perseguida pelos poderosos. Elas provam a sinceridade, sugerem uma nobreza interior. Hillary Clinton, conhecida por seu temperamento de aço, raramente cede na frente das câmeras de televisão. No entanto, esse foi o caso em 2008, quando uma mulher perguntou a ela, após um longo dia de campanha: “Como você faz? Como faz para se manter tão positiva e tão maravilhosa?”. Seus ex-apoiadores consideram esse um de seus momentos mais bonitos.1 Embora o autoritário Trump dificilmente seja do tipo que chora em público, ele fica de mau humor e reclama profusamente. Ele se apresenta como o “resmungão mais fabuloso” do país: “Eu choramingo e choramingo sem parar até ganhar”, confessou uma vez à CNN (11 ago.

2015). E “ele choraminga e choraminga” também quando perde. Seus lamentos são muitas vezes incompreensíveis, intermináveis e dignos de pena. Até tarde da noite, ele tuíta sobre a implacabilidade da mídia em relação a ele, sobre os bandidos que roubam sua reeleição, sobre sua própria administração, que não reconhece a legitimidade de suas queixas etc. Como um empresário que abriu caminho com a força de muitas queixas, ele encarna perfeitamente o movimento conservador, que encontrou uma maneira de vender a doutrina da sobrevivência do mais apto – transformada em sua marca registrada – ao reclamar contra esses horríveis democratas que tentam estragar o Natal e contra a televisão que zomba dos valores dos humildes e piedosos cidadãos.

UMA CORRIDA DE ACUSAÇÕES MORAIS Assim, as lágrimas estão no cerne da política norte-americana e fornecem os argumentos mais poderosos de nosso vocabulário político. São o suficiente para ganhar a primeira página de um grande jornal. Biden, um grande sentimental, acaba de vencer a eleição presidencial, apoiando-se

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Um trumpismo sem Donald Trump Joe Biden promete promover uma restauração em Washington, no que seria uma espécie de terceiro mandato de Barack Obama. Porém, mesmo esse objetivo pouco ambicioso parece distante. Os apoiadores de Trump contestam apaixonadamente o resultado das eleições e contam com um Partido Republicano cujo poder permanece intacto POR JEROME KARABEL*

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pós vários dias de suspense, Joe Biden finalmente venceu Donald Trump nas eleições presidenciais norte-americanas, mas a vitória tímida não representa o repúdio definitivo que os democratas tinham ardentemente desejado. Na verdade, as eleições se revelaram até desastrosas para eles. Apesar do pé de meia impressionante coletado para financiar sua campanha (US$ 1,5 bilhão em apenas três meses, de ju-

lho a setembro),1 eles não conseguiram reconquistar o Senado, perderam cadeiras na Câmara dos Representantes e não foram capazes de ganhar a maioria das legislaturas estaduais, que detêm um poder considerável no sistema federal norte-americano. A verdade perturbadora é que, sem a pandemia de Covid-19 e a catástrofe econômica que se seguiu – a taxa de desemprego atingiu o pico de

não em propostas ambiciosas, mas na repulsa que lhe inspira um odiado Donald Trump. Enquanto isso, os republicanos não medem esforços, com suas fúteis guerras culturais e seus apelos nostálgicos, para “tornar a América grande novamente”. Nenhum dos dois principais partidos pretende regulamentar Wall Street e o Vale do Silício nem reindustrializar a Pensilvânia e o Michigan. No geral, a retórica política se transformou em uma corrida de acusações morais, em que homens carregando rifles de assalto afirmam ser as vítimas e em que investigadores autoproclamados patrulham a internet em busca de pistas de privilégios e de adjetivos desrespeitosos. Nossa vida política está cada vez mais reduzida à vergonha e às queixas pessoais. Choramos porque somos os mais nobres, choramos porque somos os mais vis, choramos porque somos excluídos, choramos porque somos perseguidos, choramos porque saímos vitoriosos, choramos porque nunca conseguimos obter o que queremos. O poeta polonês Tadeusz Różewicz, que sobreviveu a muitas catástrofes na Europa, um dia qualificou a América de “superpotência soluçante”. Em um poema sardônico que leva

14,7% em abril, nível nunca alcançado desde os anos 1930 –, Trump teria boas condições de ser reeleito. Exposto por quatro anos às inúmeras mentiras do presidente, a suas trapalhadas durante a crise sanitária, a suas múltiplas provocações, o povo respondeu dando-lhe pelo menos 73,7 milhões de votos,2 mais que qualquer candidato republicano na história, e até 10 milhões a mais que sua própria pontuação em 2016. Em fevereiro de 2020, a economia estava indo bem. A taxa de desemprego atingiu seu nível mais baixo (3,5%), a inflação não ultrapassava os 2,3% e, no último trimestre de 2019, o crescimento tinha progredido a um ritmo vigoroso de 2,4%. Esse dinamismo, associado à ausência de guerras de grande envergadura – em um momento em que o isolacionismo domina a opinião pública – e à vantagem que tem todo candidato que está exercendo o cargo, levou muitos cientistas políticos e economistas a prever uma vitória de Trump.3 E, se a deterioração da situação sanitária e econômica finalmente comprometeu suas chances, o cenário político norte-americano ainda assim não está livre do trumpismo. O personagem retém o apoio de dezenas de milhões de partidários fervorosos e devotados, mas também

esse nome, ele descreve a posse do presidente George W. Bush em 2001: um grande momento de exibição sentimental durante o qual os participantes derramaram torrentes de lágrimas, antes de vestirem suas roupas de gala e calçarem suas botas de caubói para participar de um banquete suntuoso. Visto de fora, deve ser estranho observar o país mais rico e mais poderoso do mundo escolher seu rumo baseado numa lenga-lenga e em posturas moralizantes, tudo enterrado sob milhões de litros de lágrimas com alta octanagem. Como deve ser irritante saber que as escolhas dos Estados Unidos terão graves consequências em seu país e em sua vida, mas que suas lágrimas não terão nenhum efeito em nossas majestosas deliberações.  *Thomas Frank é jornalista. Último livro publicado: The People, No: A Brief History of Anti-Populism [O povo, não: uma breve história do antipopulismo], Metropolitan Books, Nova York, 2020.

1   C f. Michael Kruse, “The woman who made Hillary cry” [A mulher que fez Hillary chorar], Politico, 20 abr. 2015. Disponível em: www.politico.com.

de muitas organizações conservadoras, como o Club for Growth (Clube para o Crescimento, hostil à tributação e à redistribuição) e o Family Research Council (Conselho de Pesquisa da Família, um grupo de cristãos evangélicos que se opõe ao aborto, ao divórcio, aos direitos dos homossexuais...), e de vários meios de comunicação, como Fox News ou Breitbart News. Além disso, os ingredientes que tornaram Trump bem-sucedido em 2016 ainda estão lá: hostilidade aos imigrantes, em um país que está passando por sua transformação demográfica mais profunda em um século, animosidade racial, condescendência da elite educada em relação às classes populares e o sentimento hoje difundido de que a globalização tem servido aos interesses das multinacionais e das classes altas em detrimento da maioria. O trumpismo é parte de uma revolta “populista” global contra as elites políticas, econômicas e culturais, sobretudo entre aqueles cuja vida foi virada de cabeça para baixo pela globalização e pela desindustrialização. Como observa John Judis, o “populismo de direita” tende a prosperar quando os partidos majoritários ignoram ou minimizam os problemas reais.4 Os democratas, portanto, carregam uma responsabilidade esma-


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Homem usando máscara de Donald Trump em frente à Casa Branca Não nos enganemos: o Partido Republicano se tornou um partido de extrema direita, em muitos aspectos tão virulento quanto os partidos autocráticos que atualmente governam a Hungria ou a Turquia. Tendo os adversários sido colocados de escanteio – o senador do Arizona Jeff Flake (2013-2019), o representante da Carolina do Sul Mark Sanford (2013-2019)... –, ele está agora nas mãos dos trumpistas e provavelmente ficará assim em um futuro próximo. O perigo colocado pelo “populismo de direita” é ainda maior nos Estados Unidos que em muitos países europeus, onde o sistema de representação proporcional muitas vezes relega – embora haja exceções – os partidos de extrema direita às margens do jogo político, como na Holanda (onde o Partido para a Liberdade obteve apenas 13% dos votos nas eleições parlamentares de 2017) e na Espanha (onde o Vox atingiu o pico de 15% nas eleições gerais de 2019). Os partidários do presidente norte-americano controlam um dos dois principais partidos e, por sua vez, o sistema uninominal majoritário continua sendo um obstáculo formidável ao surgimento de outras legendas. O sistema está, portanto, instalado para o surgimento de um demagogo ainda mais perigoso que Trump. Imagine o carisma de um Ronald Reagan aliado à inteligência e à disciplina de um Barack Obama... Biden chega ao poder em um país polarizado, onde a Covid-19 exacerbou as disparidades sociais. De acordo com o Ministério do Trabalho, os Estados Unidos atravessam atualmente a crise econômica mais desigual de sua história, com o desenvolvimento do home office claramente favorecendo os mais qualificados. No auge da crise, a taxa de destruição de empregos de baixa remuneração era oito vezes maior que a de empregos

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gadora pelo nascimento do trumpismo e por sua consolidação. O apoio de Bill Clinton ao Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta), que entrou em vigor em 1º de janeiro de 1994, e a pressão exercida pelo ex-presidente para facilitar a adesão da China à Organização Mundial do Comércio (OMC) representaram um duro golpe no mercado de trabalho local. Segundo uma estimativa do Instituto de Política Econômica, a entrada de Pequim na OMC teria custado à indústria manufatureira dos Estados Unidos 2,4 milhões de empregos.5 Barack Obama pouco fez para mostrar que o Partido Democrata estava preocupado com o destino das classes populares: ele indicou como secretário do Tesouro alguém próximo a Wall Street (Timothy Geithner), não quis processar os banqueiros responsáveis pela crise de 2008 e não soube como proteger os milhões de norte-americanos que perderam suas casas e aposentadorias. Quatro anos atrás, os democratas pagaram um preço alto por seu frenesi de livre-comércio. De acordo com um estudo de David Autor,6 economista do Massachusetts Institute of Technology (MIT), as perdas de empregos ligadas ao desenvolvimento do comércio chinês podem ter fornecido a Trump os poucos pontos que garantiram seu sucesso nos estados industriais do Michigan, Wisconsin e Pensilvânia, decisivos em sua vitória em 2016. Historicamente visto como o “partido dos trabalhadores”, o Partido Democrata há muito experimenta uma erosão do apoio das classes populares, sobretudo entre aqueles que se declaram “brancos”. Essa tendência foi confirmada em 2020. De acordo com as primeiras pesquisas de boca de urna,7 Trump teria obtido os votos de 64% dos eleitores brancos não graduados (contra 34% de Biden). Ele também seria considerado muito popular entre os cristãos evangélicos (81% dos votos) e os habitantes de áreas rurais (65%). As circunscrições mais pobres do país, onde os conservadores começaram a criar raízes em 2000, são agora as mais propensas a votar no Partido Republicano, enquanto 44 das 50 circunscrições mais ricas – e todas as dez mais ricas – se mostram agora mais favoráveis aos democratas. Essa inversão da relação entre classe social e preferências políticas oferece um terreno fértil para um ressurgimento do trumpismo sem Trump. Na ausência de uma mudança radical de curso dos democratas, os mais pobres poderiam continuar a se voltar para os republicanos, que têm uma lista de bodes expiatórios para explicar seus problemas: imigrantes, negros, estrangeiros, as “elites”...

bem pagos. Empregados e autônomos com diploma universitário tinham proporcionalmente quatro vezes mais chances de exercer sua atividade em casa que os trabalhadores sem diploma de ensino superior.8 Enquanto isso, os mais ricos encheram seus bolsos ainda mais. Entre 18 de março, data de início dos confinamentos, e 20 de outubro, a fortuna dos 643 bilionários do país aumentou em US$ 931 bilhões, quase um terço da riqueza total deles. Biden tem uma dívida especial com os ultrarricos que, com doações de US$ 100 mil ou mais, levantaram US$ 200 milhões para sua campanha em seis meses. Os principais centros de poder financeiro dos Estados Unidos – Wall Street, Vale do Silício, Hollywood, fundos de investimento – reconhecem nele um presidente que não corre o risco de ameaçar seus interesses. Com um Senado que provavelmente permanecerá presidido pelo implacável senador do Kentucky Mitch McConnell, Biden encontrará grandes dificuldades para concretizar qualquer medida de seu programa. Empurrado pela direita no Senado, ele também estará sob pressão da ala esquerda de seu partido, com Bernie Sanders e Elizabeth Warren na liderança. Tal situação traria problemas até mesmo para os líderes mais determinados. Imaginem então para “Joe adormecido”...9 Sem falar que o novo presidente também terá de se distinguir das políticas de Obama, às quais lealmente serviu como vice-presidente e que levaram ao surgimento de Trump e de seu movimento. Para isso, precisaria abandonar o centrismo cauteloso que marcou toda a sua carreira, operando, como seu partido, uma virada radical. Que forma essa virada poderia assumir? Uma estratégia popular consistiria em defender um imposto so-

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bre os lucros excessivos, visando sobretudo àqueles que enriqueceram durante a pandemia – na linha do sistema tributário introduzido logo após a Segunda Guerra Mundial. O pacote de estímulo que o governo Biden certamente tentará aprovar poderia ser direcionado não às grandes corporações (como a de Obama em 2009), mas àqueles mais diretamente afetados pela crise: os trabalhadores de baixa renda, desempregados e donos de pequenos negócios. Biden também poderia oferecer um dispositivo verdadeiramente protetor para os milhões de inquilinos e pequenos proprietários ameaçados de despejo em plena pandemia. Obviamente, um Senado com maioria republicana não aprovará tais medidas. Mas, ao defendê-las com tenacidade, os democratas expressariam alto e bom som seu compromisso renovado com as classes populares, no espírito do New Deal de Franklin Delano Roosevelt. Isso permitiria que eles se colocassem, durante as eleições de meio de mandato de 2022, como alternativa diante da inação dos republicanos. Essa seria a melhor forma de evitar o retorno de um novo tipo de trumpismo, ainda mais tóxico que o original.  *Jerome Karabel  é professor de Sociologia da Universidade da Califórnia em Berkeley. 1   R ebecca R. Ruiz e Rachel Shorey, “Democrats see a cash surge, with a $1.5 billion ActBlue haul” [Os democratas veem um aumento de caixa, com um aporte de 1,5 bilhão de dólares da ActBlue], The New York Times, 16 out. 2020. 2   Cifra de 20 de novembro de 2020. 3   C f., por exemplo, Jeff Cox, “Trump is on his way to an easy win in 2020, according to Moody’s accurate election model” [Trump está a caminho de uma vitória fácil em 2020, de acordo com o modelo eleitoral preciso da Moody], CNBC, 15 out. 2019. 4   John B. Judis, The Populist Explosion: How the Great Recession Transformed American and European Politics [A explosão populista: como a grande recessão transformou as políticas norte-americana e europeia], Columbia Global Reports, Nova York, 2016. 5   Robert E. Scott, “US-China trade deficits cost millions of jobs, with losses in every state and in all but one congressional district” [Os déficits comerciais EUA-China custam milhões de empregos, com perdas em todos os estados e em todos os distritos eleitorais, com exceção de um], Economic Policy Institute, Washington, DC, 18 dez. 2014. 6   David Autor et al., “Importing political polarization? The electoral consequences of rising trade exposure” [Importando polarização política? As consequências eleitorais da crescente exposição do comércio], American Economic Review, v.110, n.10, Nashville, out. 2020. 7   “ National exit polls: How different groups voted” [Pesquisas de boca de urna nacionais: como os diferentes grupos votaram], The New York Times, nov. 2020. Disponível em: www. nytimes.com. 8   Heather Long et al., “The covid-19 recession is the most unequal in modern US History” [A recessão provocada pela Covid-19 é a mais desigual da história moderna dos Estados Unidos], The Washington Post, 30 set. 2020. 9   “Joe adormecido”, um dos apelidos que Trump deu a seu oponente democrata.


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PENSAR A CIDADE QUE QUEREMOS É PENSAR A SOCIEDADE QUE QUEREMOS

Periferias de São Paulo: conjuntura e pós-pandemia O Brasil entrará em 2021 com aproximadamente 180 mil mortes ocasionadas pela Covid-19, a maioria nas periferias. Até novembro de 2020, entre 15 mil e 20 mil pessoas haviam morrido por causa da doença nas periferias paulistanas. Há um evidente entrelaçamento entre cidade, sociedade e pandemia. Pensar a cidade que queremos levando em conta o caos em que estamos é o desafio imediato que se coloca para os setores progressistas da sociedade e para moradoras e moradores das periferias POR TIARAJU PABLO D’ANDREA*

vida, vide o número de abstenções, brancos e nulos nas últimas eleições. Antes da chegada do coronavírus, uma crise social já se apresentava. Esta foi resultado de uma série de decisões políticas, tais como o desmonte do SUS; o desmonte da assistência social; a instituição da PEC 95, que limita os gastos em saúde e educação; a dispensa de 11 mil médicos cubanos, entre outras. Todas essas medidas agravaram a situação dos 14 milhões de pessoas que vivem na extrema pobreza. Por fim, uma crise sanitária já estava em curso, expressa nos mais de 30 milhões de pessoas que sobrevivem sem água encanada e nos milhões que vivem em favelas; nas deficiências alimentares e de saúde da população.

© Allan Cunha

Para compreender a aterradora quantidade de vítimas do novo coronavírus é necessário dar um passo atrás no tempo. No momento imediatamente anterior à chegada do vírus ao Brasil, pelo menos quatro crises estavam postas: econômica, política, social e sanitária. Essas crises foram desencadeadas por uma série de decisões políticas e tiveram por desdobramento a explosão do número de mortes. Sobre a crise econômica, cabe ressaltar que já há alguns anos se verifica no país um processo de desindustrialização e desmonte da sociedade salarial. O número de trabalhadores informais e de desempregados sobe a cada ano e os salários caem paulati-

namente. Entrelaçadas com esses processos estão as reformas trabalhista e da Previdência, aprovadas em um contexto pré-pandemia. Essas reformas fragilizaram ainda mais os direitos sociais, incidindo diretamente na capacidade da população de se proteger durante a pandemia. A crise política se verifica desde o começo da Operação Lava Jato, passando pelo golpe contra Dilma Rousseff e chegando aos dias atuais. A escalada autoritária capitaneada pelo atual presidente ataca de maneira aberta o mínimo de democracia e institucionalidade construído por gerações de lutadoras e lutadores. Dentro dos paradoxos da democracia burguesa brasileira, está o fato de a população já não acreditar na possibilidade de as eleições mudarem sua

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AS CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO DE UMA TRAGÉDIA1

A letalidade da Covid-19 foi um dos pontos de encontro das decisões conjunturais tomadas pelos governos recentes com os problemas históricos e estruturais de nossa sociedade. Nesse âmbito, cabe destacar que a dimensão da tragédia expressa também as dificuldades organizativas da classe trabalhadora atualmente, ainda na ressaca de diversas derrotas. Se estivesse mais bem organizada, teria maior capacidade de pressão sobre os governos. Se analisada a dimensão territorial do espraiamento do coronavírus na cidade de São Paulo, conclui-se facilmente que foi nas periferias onde ocorreu o maior número de mortes. Se havia ainda algum véu que dificultava a compreensão das desigualdades sociais no urbano, a pandemia serviu quase como um artifício metodológico para o entendimento do funcionamento das estruturas.

MAS, ENTÃO, O QUE É PERIFERIA?

Periferias foram as áreas das cidades que mais sofreram com a Covid-19. Comunidade Souza Ramos, São Paulo

Afinal, quando falamos de periferia, do que estamos falando? 2 Na proposição aqui defendida, periferia é um vasto território composto pelos distritos localizados mais próximos dos limites do município de São Paulo, a norte, a sul, a leste e a oeste. Esse vasto território possui aproximadamente 6,5 milhões de habitantes, com uma forte presença negra e nordestina, mas também composta por brancos pobres, indígenas e imigrantes. A diversidade de heranças culturais é uma de suas marcas distintivas. No entanto, no âmbito econômico, para além de alguma diversidade de renda, a imensa maioria da população moradora das periferias vende sua força de trabalho, sendo o local de moradia da classe trabalhadora brasileira. Estamos falando de garis, pedreiros, porteiros, babás, empregadas domésticas, funcionários públicos, estagiários, vendedores de lojas, profissionais do telemarketing, motoristas de aplicativos, entrega-


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AS PERIFERIAS DE SÃO PAULO ENQUANTO EXPRESSÃO DIALÉTICA DO CAOS E DA POTÊNCIA Entre diversidades e semelhanças, o partilhar do território pode ser o ponto de unidade de uma população de determinada quebrada. Quebradas unidas, respeitando suas particularidades e enfatizando suas dores e delícias em comum, podem se transformar em uma força capaz de incidir no atual cenário político brasileiro. No entanto, como pensar essa organização a partir do território? Em princípio, um bom exercício de imaginação nos conduziria a pensar para além de algumas dicotomias, ou possibilitar sínteses entre elas. A primeira dicotomia é aquela que opõe a tradição leninista e sua ênfase na tomada do poder do Estado e a tradição autonomista, baseada fundamentalmente na auto-organização no território. Estantes de bibliografias se debruçaram sobre esses dilemas e não temos aqui condições de reproduzi-los no todo. Há alguns anos, esse debate voltou a ganhar centralidade nos movimentos sociais por meio da antinomia projeto popular × poder popular. Em pesquisa recente realizada pelo Centro de Estudos Periféricos3 e pela Fundação Rosa Luxemburgo, as propostas elencadas buscaram dar conta das possibilidades existentes nos dois polos aparentemente opostos: uma sociedade civil forte e organizada não requer necessariamente um Estado fraco, e vice-versa. O que se pretende é um Estado que funcione com base nos anseios da população, e não que a oprima. O discurso do Estado mínimo já tem

seus defensores nas fileiras liberais e, em um país como o Brasil, onde a maior parte da população vive na pobreza, ainda não é possível prescindir desse agente. Um dos paradoxos desse dilema, que nos ajuda a imaginar o futuro, ocorreu no combate à pandemia: trata-se da formação de muitas redes de solidariedade nas periferias e favelas. Essas redes foram protagonizadas por times de futebol de várzea, grupos de samba, movimento hip-hop, igrejas católicas, igrejas evangélicas, centros de umbanda, centros espíritas, torcidas organizadas, associações de moradores, estudantes, escolas, creches, movimentos de moradia, movimentos de saúde, movimento sem-terra, coletivos culturais, comerciantes e mais um sem-fim de organizações. Por meio delas foi possível distribuir máscaras, insumos, cestas básicas e informações. Se não fossem essas redes, o impacto da Covid-19 teria sido muito maior. No entanto, não se pode prescindir da luta por um posto de saúde que tenha médicos e remédios, de um hospital que atenda rápido e de uma escola educadora e criativa. Nessa relação dialética, as redes de solidariedade como representantes da população organizada não têm condições nem recursos para substituir o Estado. Contudo, como já apontado, o Estado deve servir aos anseios e às necessidades da população. Nesse âmbito, cabe destacar que a lógica operada pelos gestores do município de São Paulo nos últimos anos tem sido a da dilapidação do patrimônio público e a de um acentuado processo de privatização.4 Esse processo desmontou os sistemas de saúde e assistência social no município, potencializando os danos causados pela pandemia. Nesse âmbito, uma das pautas é a necessária reversão das políticas neoliberais. Outro tema que historicamente define as desigualdades territoriais é o relacionado à segregação socioespacial. A distância obriga milhões de moradores das periferias a deslocamentos diários em transportes públicos precários. Essa diáspora cotidiana humilha e incide diretamente nos anos de vida da população. Não foi por acaso que um dos principais vetores de disseminação do vírus foi o transporte público. As duas principais formas de reversão dessa questão seriam altos investimentos em corredores de ônibus e linhas de metrô, aumentando quantitativa e qualitativamente as opções de deslocamento, e a criação de múltiplas centralidades com postos de trabalho nas periferias, evitando os deslocamentos para o centro expandido ou para o quadrante sudoeste.

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dores, motoboys, operários, pequenos comerciantes, ambulantes, feirantes e ainda um sem-fim de ocupações precarizadas. Há também uma grande parcela desempregada ou aposentada. Historicamente, periferias e favelas são os territórios onde se apresentam de maneira mais violenta as distintas opressões que embasam a estrutura social brasileira: patriarcal, na qual as mulheres pobres e negras são os maiores alvos; escravocrata, expressa no racismo estrutural e nas relações de trabalho e acumulação que fundamentam o alto grau de exploração do capitalismo brasileiro; e latifundiária, uma vez que periferia também se circunscreve no debate de propriedade ou não da terra. Como já exposto, a esses elementos estruturais agregam-se alguns elementos conjunturais: a pandemia, o desmonte da sociedade salarial e a destruição das políticas públicas. Agindo a partir das periferias, como seria possível reverter esse cenário?

Outra questão premente na vida de moradoras e moradores das periferias é a ausência de árvores, parques e áreas verdes, fato que incide diretamente na qualidade de vida. Dada a necessidade de moradias e equipamentos públicos, os espaços periféricos foram sendo disputados e ocupados palmo a palmo. A praça e a área verde foram deixadas para segundo plano. O bem viver passa pela possibilidade de ter um parque equipado perto de casa para levar as crianças para correr e onde jovens e idosos possam se socializar.

Quebradas unidas podem se transformar em uma força capaz de incidir no atual cenário político brasileiro Fazem-se necessárias também políticas públicas de emprego e renda. O desemprego e os baixos salários, somados à crise econômica profunda que se acelerou no contexto pandêmico, devem ser combatidos com intervenção estatal. Nesse caso, a mão invisível do mercado só prejudica quem já tem menos possibilidades. Não se pode esquecer que a fome voltou e que o custo dos alimentos tem subido de maneira absurda. Outro debate urgente a ser avançado no município se refere ao racismo estrutural. Há uma evidente homologia entre raça, classe e território no urbano. Quanto mais distante se localiza o distrito em relação ao quadrante sudoeste, mais aumentam os índices de pobreza e a presença da população negra. Por mais que algumas dinâmicas se produzam e se reproduzam por meio de estruturas históricas e econômicas profundas, o município pode, por meio de políticas públicas, contribuir para a construção de uma cidade antirracista. Uma das primeiras medidas seria o fortalecimento e a consolidação da Secretaria da Igualdade Racial na Prefeitura de São Paulo, sucateada nas últimas gestões municipais. Outra ação fundamental é a garantia da presença de negras e negros em cargos públicos. Uma educação antirracista nas escolas também é uma pauta fundamental, ensinando história africana e cultura afro-brasileira, promovendo os direitos humanos e a diversidade. Cabe lembrar ainda que os aparatos repressores do Estado seguem operando sob a lógica da intervenção e da ocupação das periferias. No quadrante sudoeste, a lógica é a da guarda do patrimônio e das pessoas. A população moradora das periferias,

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fundamentalmente a população negra, está submetida a diversos genocídios: o genocídio da bala, o genocídio da fome e o genocídio da Covid-19. Não por acaso, uma série de candidaturas coletivas negras e de periferias disputou cargos à vereança nas últimas eleições. Se a presença no Estado não resolverá tudo, abandonar essa arena de disputa é conceder mais um espaço para os setores reacionários da sociedade.

UMA NOVA CIDADE, UMA NOVA SOCIEDADE A sociedade que queremos só existirá por meio de mudanças estruturais. Nela não existirá capitalismo, patriarcado, racismo, e cada ser humano poderá desenvolver livremente suas potencialidades. A organização da população nos territórios faz parte desse processo de mudanças. Candidaturas coletivas e redes de solidariedade são algumas das experiências políticas que ora ocorrem nas periferias paulistanas e vislumbram futuros. Ambas têm em seu cerne o fortalecimento dos laços de solidariedade e de afeto e as relações de vizinhança. Essas sujeitas e sujeitos periféricos nos apresentam pistas de caminhos a serem trilhados: comunas, quilombos, quebradas, noção do público, produção do comum em comum. Pensar a cidade que queremos é pensar a sociedade que queremos. Mais do que pensar, temos de nos dar o direito de imaginar e de sonhar o mundo que gostaríamos de habitar. No entanto, para a realização de nossos sonhos, serão necessárias muitas lutas e mobilizações.  *Tiaraju Pablo D’Andrea  é músico, morador da Zona Leste de São Paulo, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e coordenador do Centro de Estudos Periféricos (CEP). 1   P ara uma análise mais aprofundada das periferias no contexto da pandemia, sugiro a leitura do livro 40 ideias de periferia , disponível em: www.dandaraeditora.com.br. 2   Para uma melhor compreensão da proposta de definição territorial de periferia defendida e utilizada neste texto, sugere-se a leitura deste artigo de Tiaraju D’Andrea: “Contribuições para a definição dos conceitos periferia e sujeitas e sujeitos periféricos”, Revista Novos Estudos Cebrap, ed.116, v.39, jan.-abr. 2020. 3   A pesquisa “Agenda Propositiva das Periferias” foi composta por uma equipe de 31 pessoas, entre pesquisadores, professores e estudantes, todes moradores das periferias. Para a pesquisa foram entrevistados ao redor de trezentos moradores das periferias, resultando em uma agenda com mais de cinquenta propostas para dez eixos temáticos distintos. Os resultados parciais da pesquisa estão no site do Le Monde Diplomatique Brasil :diplomatique.org.br/agenda-propositiva-das-periferias/. 4   Sobre a política de privatizações operada por João Doria e Bruno Covas à frente da prefeitura, ver o artigo de Patrícia Laczynski e Gustavo Prieto, “São Paulo à venda: ultraneoliberalismo urbano, privatização e acumulação de capital (2017-2020)”, GEOUSP Espaço e Tempo (Online), v.24, n.2, p.243-261, 2020.


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GOVERNOS LOCAIS NÃO ESTÃO PREPARADOS

Emergência climática e o futuro das cidades Tempestades, ciclones e outros eventos meteorológicos extremos têm causado enormes prejuízos às vidas e à economia urbana. São muitas as consequências, e não se pode mais dizer, como anos atrás, que as mudanças climáticas são uma ameaça silenciosa. São, ao contrário, uma ruidosa realidade do tempo presente POR HENRIQUE BOTELHO FROTA*

tuições locais, das empresas e dos grupos da sociedade civil. Já não se pode dizer que a ideia é nova. São no mínimo trinta anos desde que começou a ser veiculada. Chegou a ser anunciada como a grande máxima das questões socioambientais para o século XXI por vários especialistas. Entretanto, sua realização prática e aplicação no âmbito das políticas públicas está bem distante do ideal. Quando se fala em mudanças climáticas, um fenômeno multifacetado de proporções mundiais e consequências tão profundas, ainda prepondera uma visão de que cabe aos Estados nacionais e aos organismos multilaterais a responsabilidade pela mitigação de impactos e pelas ações de redução da emissão de gases de efeito estufa. O debate não raramente é internacionalizado e travado em arenas nas quais os governos dos países são os protagonistas, com pouca ou nenhuma voz para governos locais ou sociedade civil. É bem verdade que muitas das iniciativas necessárias para enfrentar a crise socioambiental e climática dependem de medidas macroeconômicas, de regulação de setores produti-

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ensar globalmente e agir localmente.” Essa frase, que circula livremente entre grupos de acadêmicos, ativistas, servidores públicos e também entre a iniciativa privada, tem influenciado diferentes áreas há anos, de teorias sociológicas a agências de publicidade e propaganda. Seu berço vem dos movimentos socioambientais e da sociologia da globalização. A ideia por trás dela é de que as escalas global e local não se excluem mutuamente, estando, pelo contrário, imbricadas. O local é um aspecto do global, com ele interagindo de forma dinâmica. A Agenda 21, conhecido documento entre os resultantes da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento – RIO 92, é um dos corolários desse pensamento. Mais do que uma tentativa de integrar diferentes temas, a Agenda 21 representou um chamado público para a ação coordenada entre as distintas escalas geográficas e organizacionais. Reconhece que a mudança necessária não pode simplesmente depender das políticas dos Estados nacionais, mas da articulação destas com iniciativas dos poderes subnacionais, das insti-

vos, de políticas de proteção ambiental de grande escala, de mudanças nos marcos regulatórios na legislação nacional, entre outras medidas que são de competência dos poderes nacionais. No entanto, é uma ilusão pensar que a resposta virá unicamente desse lugar, ou que virá de um só lugar. Uma crise de tão grandes proporções exige uma metamorfose na geopolítica global para reconhecer que existem outros atores que necessitam de espaço na mesa. A resposta estará no esforço articulado de todos os setores da sociedade e dos poderes públicos. As cidades e os grupos organizados da sociedade civil não podem mais ficar nos espaços marginais de decisão, bradando para serem escutados. Até mesmo porque são eles que, em seus territórios, encontram-se face a face com as consequências da crise, tendo de lidar com eventos climáticos extremos cada vez mais frequentes. Há tempos que as mudanças do clima não são mais assunto do futuro. Elas estão presentes e intensificam-se, com consequências diretas nas cidades. Estudos científicos referendados pelo Painel Intergovernamental so-

bre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês) indicam que as atividades humanas já causaram um aumento médio da temperatura global de cerca de 1 °C, comparando-se com os níveis pré-industriais.1 Os impactos são perceptíveis, com a alteração de ecossistemas oceânicos e terrestres, maior frequência de eventos climáticos e meteorológicos extremos e elevação do nível do mar. O quadro atual, que tende a se agravar, é de que a humanidade conviverá com uma estranha combinação de estiagens e chuvas intensas, motivada por regimes hídricos irregulares. Fenômenos como El Niño e La Niña serão ainda mais frequentes. Processos de desertificação afetarão mais regiões e abalarão a produção de alimentos. A elevação do nível do mar levará a migrações forçadas e ao aparecimento de refugiados do clima. Tudo isso e mais um pouco acarretando consequências concretas nos territórios, causando danos às pessoas e mais acentuadamente aos segmentos vulneráveis de nossa população. E, se ultrapassamos a marca de mais da metade da população mundial vivendo em cidades – mais de 85% no caso brasileiro –, é aí que muitos dos efeitos das mudanças do clima serão sentidos e precisam ser encarados de forma responsável. As cidades têm enfrentado maiores problemas de abastecimento hídrico gerados pela redução dos níveis dos reservatórios e sofrem com ainda mais inundações e alagamentos decorrentes de chuvas intensas combinadas com altos níveis de impermeabilização do solo urbano. A qualidade do ar também vem sendo afetada, causando aumento de doenças respiratórias na população. Cidades litorâneas já sofrem com a elevação dos níveis do mar e a erosão costeira, sendo relativamente alta a probabilidade de perderem parte de seus territórios com o avanço das águas. Tempesta-


© Gilberto Olimpio/Unsplash

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Criança de bicicleta aproveita a avenida Paulista aberta para pessoas e fechada para carros aos domingos neira no enfrentamento das mudanças do clima. No entanto, o modelo de urbanização tem caminhado no sentido contrário, com crescimento horizontal do tecido urbano sem infraestrutura adequada e avançando sobre territórios que deveriam ser conservados. Sobretudo, trata-se de uma lógica desigual, excludente e injusta, que não possibilita alternativas adequadas a grande parte da população. Outro componente que deve necessariamente ser considerado pelos governos locais é a efetivação da função socioambiental da terra, da propriedade e da cidade, elemento essencial para garantir uma distribuição mais equitativa dos benefícios de qualquer sistema econômico, assim como uma abordagem mais equilibrada e sustentável do desenvolvimento. Envolve também garantir segurança de posse, direito ao território e à moradia adequada, serviços básicos e infraestrutura em todos os tipos de assentamentos, tanto formais quanto informais. Isso não significa convalidar situações de vulnerabilidade socioambiental de assentamentos precários, e sim dar-lhes tratamento justo e condizente com os parâmetros de direitos humanos em processos de regularização urbanística e fundiária, com melhorias da qualidade ambiental. A restauração ambiental em benefício da sociedade em geral, priorizando aqueles com maior necessidade, é uma obrigação dos governos locais e uma oportunidade para as comunidades criarem alternativas de trabalho sustentáveis e zelarem pelo meio ambiente em que vivem. Uma abordagem participativa sob a liderança das comunidades também deve ser adotada para abordar perdas e danos, evitar despejos forçados e realojar, como último recurso,

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des, ciclones e outros eventos meteorológicos extremos também têm causado enormes prejuízos às vidas e à economia urbana. São muitas as consequências, e não se pode mais dizer, como anos atrás, que as mudanças climáticas são uma ameaça silenciosa. São, ao contrário, uma ruidosa realidade do tempo presente. No entanto, apesar dos evidentes impactos, os governos locais estão atrasados em assumir sua responsabilidade para a mitigação e a adaptação. No Brasil, na esteira do Plano Nacional de Adaptação à Mudança do Clima, instituído pela Portaria n. 150, de 10 de maio de 2016, caberia aos municípios elaborar e colocar em prática planos locais de adaptação. Se as políticas do governo federal nessa área sofreram fortes retrocessos nos anos recentes, em muitos municípios elas nem sequer existem. Igualmente, salvo raras exceções, os governos locais não estão suficientemente preparados para responder a eventos danosos. O ordenamento territorial tem sido mais fator de exclusão e injustiças socioambientais do que de prevenção de desastres. O futuro das cidades diante da emergência climática requer a efetivação de uma agenda imediata de mitigação e adaptação que se sustente em soluções baseadas na natureza. De acordo com a Plataforma de Políticas de Soluções Baseadas na Natureza, da Universidade de Oxford, elas podem ser entendidas como “ações que envolvem trabalhar e melhorar os hábitats naturais para o bem da sociedade, por exemplo, por meio de restauração, manejo e proteção”.2 Significa dizer que a natureza é parte importante da solução, o que soa óbvio, embora não seja uma prática nas políticas públicas. Preservar ou restaurar ecossistemas auxilia sobrema-

as comunidades afetadas pelas consequências das mudanças climáticas, como secas, inundações, deslizamentos de terra e aumento do nível do mar, seguindo os padrões de direitos humanos de moradia, serviços básicos, direitos dos trabalhadores, e assim por diante. Paralelamente, as cidades devem reconhecer que a crise do clima deriva de um modelo de produção e consumo que acirra as desigualdades sociais e espaciais. É preciso romper com esse ciclo e evitar que as respostas públicas excluam ainda mais a população de baixa renda, criminalizando-a ou promovendo uma gentrificação por motivação ambiental nos territórios. As chamadas “políticas verdes” não podem ser um produto de luxo destinado apenas às camadas mais abastadas dos centros urbanos. Jardins verticais em fachadas de prédios, comumente vistos em áreas valorizadas, contribuem muito menos para a captura de carbono do que a ampliação de áreas verdes nas periferias ou do que processos de urbanização e melhorias do ambiente em assentamentos populares, essas, sim, medidas relevantes de enfrentamento à crise. Por seu turno, os mecanismos de exclusão não operam apenas com base em capacidades econômicas. Marcadores de gênero, raça, etnia e origem, entre outros, fazem parte da equação que impõe a parte da população impactos desproporcionais da crise climática. As políticas locais não podem se olvidar de uma perspectiva que trate todas essas questões estruturais de forma interseccional. É fundamental a participação dos habitantes em todos os processos de planejamento, inclusive os de mitigação dos efeitos das mudanças climá-

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ticas. Essa participação deve dar atenção especial às propostas que partem das necessidades das mulheres, indígenas, pessoas negras, migrantes, pessoas com deficiência, crianças, jovens e pobres. A construção de sociedades resilientes ao clima começa com a compreensão dos desafios enfrentados pelas comunidades vulneráveis. Por outro lado, mais do que lidar com os efeitos em seus territórios, as cidades precisam reconhecer sua responsabilidade como causadoras da crise. De acordo com especialistas do World Resources Institute (WRI), elas consomem 65% da energia produzida globalmente e com tendências de aumento, sendo responsáveis por 70% das emissões de gases de efeito estufa na atmosfera relacionados à energia. As cidades também geram resíduos em excesso e, no caso brasileiro, os destinam de forma inadequada. A insuficiência ou total ausência de uma política de separação de recicláveis e orgânicos e a consequente destinação incorreta fazem que um volume gigantesco de resíduos seja levado a aterros, onde sua decomposição produzirá mais gases de efeito estufa. Outro fator relevante que contribui para o agravamento das mudanças do clima é o modelo de transporte baseado preponderantemente em combustíveis fósseis e no automóvel individual. Parte significativa da poluição gerada nas cidades advém do sistema de mobilidade, ainda pouco afeito a tecnologias de carbono zero, ao transporte coletivo e à mobilidade ativa. É preciso admitir que as cidades são culpadas tanto quanto vítimas e, nesse sentido, investir fortemente em mudanças de paradigmas com relação a energias limpas, economias de zero carbono e investimentos verdes, mas sem perder de vista que essas transformações não podem se descolar de uma perspectiva de justiça e equidade social, racial e de gênero, comprometida com a democracia e o direito à cidade de todas as pessoas. O futuro das cidades diante da emergência climática precisa ser um futuro de direitos, de equidade e cidadania inclusiva e de gestão coletiva dos bens comuns.  *Henrique Botelho Frota  é assessor da Plataforma Global pelo Direito à Cidade e coordenador executivo do Instituto Pólis, organização integrante do Observatório do Clima. 1   No Relatório Especial Global Warming of 1.5°C (2018), o IPCC reconhece o aumento de temperatura global em 1 °C e estabelece cenários de impactos para um aumento de 1,5 °C e para um aumento de 2 °C. 2   Nature-Based Solutions Policy Platform [Plataforma política de soluções baseadas na natureza], University of Oxford. Disponível em: https://www.nbspolicyplatform.org.


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CONFINAMENTO ESVAZIA AS METRÓPOLES DE SEUS ATRATIVOS

A vingança do campo Uma casa com jardim, protegida do estresse das grandes cidades... A ideia seduziu muitos habitantes urbanos castigados pela crise sanitária. Entretanto, a qual “vingança do campo” assistimos atualmente? POR BENOÎT BRÉVILLE*

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© Angelo Brathot/CC

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mpossível não percebê-los no metrô parisiense. “Alès, a capital onde não falta ar”, “Sologne, ar”, “Seine-et-Marne, a verdadeira grande aposta”...: desde maio, esses anúncios estão expostos nos corredores e nas plataformas para incentivar os usuários a mudar de vida, com particular insistência na linha 1, aquela que leva ao bairro empresarial de La Défense. Não faz mais de um ano, Paris enfrentava Londres, Nova York ou Cingapura na competição global para atrair sedes de empresas, grandes eventos e trabalhadores de colarinho branco com alto nível de escolaridade. Agora, as pequenas cidades roubam seus executivos seniores nos subterrâneos do metrô. A Covid-19 passou por ali. Os confinamentos e as “medidas de contenção” reduziram a nada tudo o que fazia a atração das metrópoles: restaurantes, cafés, concertos, museus, pequenos comércios, grandes festivais, a intensidade das relações sociais, a possibilidade de viajar facilmente saltando de um aeroporto para uma estação... Em vez disso, desde a pandemia, a vida tem se reduzido ali cada vez mais ao eterno casa-trabalho-casa, e ninguém sabe realmente quando isso vai acabar. Por isso, algumas pessoas se perguntam: por que se amontoar em apartamentos apertados e caros quando os prazeres da vida urbana são proibidos? Elas não se sentiriam melhor em uma pequena cidade, ou no campo, confortavelmente instaladas em uma grande habitação com jardim? O home office parece abrir essa possibilidade a muitos assalariados ou terceirizados qualificados, enquanto o comércio on-line, que coloca todos os produtos à mão, permite que as pessoas vivam como um citadino, mas próximas da natureza. Muitos franceses tentaram isso durante o confinamento da primavera. Assim que a medida foi anunciada, em Paris, Lyon ou Lille, as estradas e estações foram tomadas por moradores que desejavam retornar à sua segunda residência ou à casa de sua família. Nada menos que 451 mil parisienses teriam deixado a capital em março-abril, ou seja, um quarto da população da cidade e quatro vezes mais que no ano anterior.1 O mes-

Margens de lagoa em Sologne, região centro-norte da França, a 310km de Paris mo fenômeno afetou a maioria das metrópoles mundiais. Em Nova York, alguns bairros ricos de Manhattan perderam mais de 40% de sua população.2 Em Londres, o Financial Times evocou uma “cidade deserta”, onde todo dia parecia domingo: “Os banqueiros desapareceram”, observou o diário da cidade, “e novas tribos, usando outros uniformes, apareceram: operários da construção com suas calças pretas reforçadas nos joelhos e suas botas empoeiradas; guardas de segurança com coletes fluorescentes andando em frente a saguões de entrada desertos; jovens vestidos de lycra correndo ou pedalando em ruas desertas”.3 “Fuja cedo, para longe, e demore para voltar.” No século V antes da nossa era, Hipócrates já professava esse remédio contra as epidemias e, em consequência, aqueles que podiam poucas vezes se faziam de rogados. Quando Avignon foi atingida pe-

la peste negra (1347-1348), a corte pontifícia fez as malas para fugir da doença. O mesmo foi feito em Paris no século XIX para escapar da cólera. Mas, com o coronavírus, os citadinos que pegaram a chave do campo não queriam apenas se colocar ao abrigo: também buscavam uma situação mais agradável para viver o confinamento.

“REFÚGIO DE PAZ SITUADO NA FLORESTA” A mídia ficou cheia desses felizes exilados, que exibiam um gosto reencontrado pela calma, pelo ar puro, pela natureza, pelos cafés da manhã em família e para os quais o período tinha um sabor de férias. Não precisou muito para que ela acabasse por falar de uma “vingança do campo”, senão das “cidades médias” e da “França periférica”, após anos de dominação esmagadora das metrópoles. Na France Culture, em 1º de abril,

Brice Couturier profetizou “uma espécie de êxodo rural às avessas”, que “vai contribuir para o reequilíbrio geográfico de nossas regiões, que hoje sofrem com a desertificação do campo”. O Le Figaro (10 abr.) garantiu que “o desejo provinciano, muito presente entre os habitantes das cidades, será reforçado e favorecerá o home office”. Já o economista Olivier Babeau previu uma “ruptura dos principais equilíbrios do mercado imobiliário”, em benefício das áreas rurais, que vão tirar proveito de suas “muitas vantagens exclusivas: o preço, o ar, a tranquilidade e sobretudo o espaço, que se tornou tão precioso”.4 Desde o fim do confinamento, são incontáveis as reportagens sobre Alice e Ferdinand, ambos atores, que trocaram seu apartamento em Paris por uma casa na Normandia (France 3, 9 nov.); Céline, especialista em “animação de inteligência coletiva”, que também deixou a capital e agora


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ça periférica”, mas a um certo campo próspero e atraente: o das segundas residências e das férias, no sul e no oeste do país, ou na órbita das grandes cidades. Na verdade, todas as áreas rurais, todas as pequenas cidades não precisavam se vingar das metrópoles. Algumas já iam muito bem antes do coronavírus, com uma demografia dinâmica e um mercado imobiliário florescente: Perche, Bretanha, Dordonha, Landes, Vaucluse, Vexin, Gâtinais... Frequentemente apresentada como homogênea, a “França periférica” é atravessada por grandes fraturas que um êxodo de moradores de cidades qualificados apenas acentuaria.

Todos precisam conciliar seus anseios com o mercado de trabalho, a disponibilidade de serviços, a proximidade com a família e amigos Além disso, a chegada de moradores ricos da cidade ao campo nem sempre é uma bênção. Claro, isso significa mais habitantes e, portanto, mais clientes para comércios e artesãos, mais impostos locais, potenciais criações de empregos... Mas ainda é necessário que os recém-chegados consumam nas lojas da região (e não on-line), que trabalhem ali (e não para uma empresa sediada em Paris), enfim, que se misturem com o tecido local e desistam de importar seus hábitos urbanos para o campo, de conceber o rural como uma extensão, uma decoração de seu modo de vida citadino. No entanto, como a geógrafa Greta Tommasi mostrou por meio do caso da Dordonha, nem sempre é esse o caso: 6 antigos e novos habitantes muitas vezes têm dificuldade de se misturar, não frequentam os mesmos lugares, não têm os mesmos círculos de sociabilidade. A chegada de uma população abastada também gera um fenômeno de “gentrificação rural”, que indexa os preços dos imóveis com base nos salários das grandes cidades, impedindo que alguns autóctones, em particular jovens, consigam moradia. O êxodo tão anunciado não está escrito, no entanto. É certo que os preços dos imóveis parisienses pararam de subir desde março – depois de terem se multiplicado por quatro em 25 anos7 –, enquanto disparam na região periférica da capital conhecida como grande coroa, onde as menores casas de condomínio de subúrbio são vendidas em poucos dias. Em sites de classificados, as pesqui-

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trabalha de seu “refúgio de paz situado na floresta” em Sologne ou em um espaço de coworking em Vierzon, economizando dessa forma tempo para “praticar a cerâmica e a fotografia” (Le Monde, 24 jul.); Claire, professora de ioga, que encontrou a felicidade em sua segunda casa em Charente durante o confinamento e não quer mais ir embora (Marie Claire, 11 nov.); Charles e Magali, que não suportaram o retorno à cidade e se estabeleceram definitivamente no Loiret (Le Figaro Magazine, 23 out.). E também há aqueles que, como Yann, optam pela “corresidencialidade” – uma casa em Nièvre, para a natureza, e um espaço em Paris, para os filhos estudantes e reuniões profissionais (Le Parisien, 23 out.). A imprensa norte-americana e a britânica produzem exatamente os mesmos artigos, exceto por seus protagonistas, chamados Kathlyn e Andrew, e que, em vez disso, planejam migrar para o Vale do Hudson ou Kent. Em poucos meses, as representações da geografia social francesa foram invertidas. Quando, antes da pandemia, os jornalistas se interessavam pelo destino do “interior” ou do “campo”, era geralmente enfocando os aspectos mais miseráveis da sociedade, para evocar os “coletes amarelos”, o voto no partido Reagrupamento Nacional (Rassemblement Nacional, ex-Frente Nacional), a escassez de empregos, o fechamento de pequenos comércios, o desaparecimento das estações, o preço do combustível, a monotonia das áreas residenciais, a ausência de serviços públicos, a escassez de transportes coletivos... Esses problemas desapareceram da mídia: tudo que sai das grandes cidades agora parece se resumir a uma bucólica casa com jardim. Por outro lado, as metrópoles, que há um ano eram só criatividade, inovação e inteligência, aparecem essencialmente como algo pouco atraente. Essa reversão atesta uma incapacidade de ver o país de outra forma que não pelo prisma das classes dominantes. Se Charles e Magali ficaram felizes, o confinamento não foi um prazer para todos nas pequenas cidades e no campo. Muitos residentes continuaram a ter de ir até o trabalho; os agricultores ficaram sem braços para colher seus produtos; os idosos ficaram ainda mais isolados; numerosas pequenas lojas já frágeis receberam o golpe de misericórdia, para não mencionar a dificuldade de hospitais mal equipados (ao contrário dos de Paris)...5 Em tais circunstâncias, possuir um jardim oferece pouco consolo. Além disso, os citadinos no exílio não se juntam ao “campo” ou à “Fran-

sas por residências próximas às grandes cidades nunca foram tão numerosas. E são unânimes: os moradores das metrópoles sonham com jardins e pequenas cidades. Mas, quando se trata de moradia, geralmente há um longo caminho a percorrer. Todos precisam conciliar seus anseios com o mercado de trabalho, a disponibilidade de serviços, a proximidade com a família e os amigos, a reputação das escolas, os preços dos imóveis etc. Portanto, os desejos nem sempre se realizam. Aliás, os moradores das cidades não esperaram o coronavírus para sonhar com o verde. Já em 1945, a primeira vez em que o Instituto Nacional de Estudos Demográficos (Ined) perguntou à população sobre seus desejos em matéria de moradia, 56% dos parisienses (e 72% dos franceses) responderam que gostariam de viver em uma casa com jardim. “A maioria dos franceses gostaria de ter um terreno, cultivar seu jardim e ver sua casa despontar em meio a canteiros de flores e leguminosas, longe da cidade, e só deles”, constataram os autores do estudo. Desde então, toda pesquisa veio confirmar isso: a pequena propriedade individual representa um ideal para sete a oito franceses em cada dez. Ao contrário das autoridades públicas norte-americanas, que encorajaram o desenvolvimento de extensos conjuntos nos subúrbios, os tomadores de decisão franceses por muito tempo resistiram a essa tentação. No final da Segunda Guerra Mundial, não obstante as conclusões do Ined, eles privilegiaram a habitação coletiva e os grandes conjuntos habitacionais. “Devemos construir com rapidez e muito para recompor o país e absorver o crescimento populacional”; 8 o desejo de se destacar do regime de Vichy, fervoroso defensor da ideologia de pavilhões, estava vivo e todos se lembravam do fiasco dos “conjuntos habitacionais defeituosos” do período entreguerras, aqueles casebres erguidos por incorporadoras corruptas no meio dos campos e da lama e sem manutenção. Para centenas de milhares de “mal alojados”, o sonho de uma pequena propriedade se transformara em um pesadelo e foi preciso quase vinte anos para reparar os danos. Portanto, as autoridades há muito tempo enfatizam a habitação coletiva. Elas só reabriram as comportas do desenvolvimento de casas nos subúrbios a partir da década de 1970, causando um desgaste progressivo no espaço rural. Durante cinco décadas, os estudantes franceses aprendem que o equivalente a um departamento é concretado a cada sete a dez anos. Por vinte anos, no entanto, os

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governos têm definido a luta contra a expansão urbana como um objetivo prioritário – na Lei de Solidariedade e Renovação Urbana (SRU), de dezembro de 2000, na lei sobre o compromisso nacional com o meio ambiente, conhecida como Grenelle 2, de julho de 2010, naquela que se refere ao acesso à habitação e a um urbanismo renovado (Alur), de março de 2014... A necessidade de “adensar” a área periurbana, e em particular os subúrbios das grandes cidades, está no cardápio de qualquer simpósio de planejamento urbano que se preze. Portanto, é surpreendente ouvir o atual ministro da Habitação, Julien Denormandie, alegrar-se com o desejo de um êxodo dos moradores das cidades. “O período que acabamos de viver nos faz questionar o ordenamento do território, e o que constatamos é um apetite muito forte por territórios que, em termos imobiliários, não seriam tão atraentes sem a crise”, declarou em 14 de maio.9 “O home office tem muito a ver com isso. Hoje percebemos que novos modelos sociais são possíveis.” O “modelo social”, que veria os trabalhadores de colarinho branco deixando as metrópoles em grande escala para trabalhar em suas casas em Perche ou Vexin, produziria, no entanto, uma expansão urbana considerável, que, ainda por cima, teria como resultado uma maior dependência de carros e gigantes da internet, do Zoom à Amazon. Seria mesmo um “retorno à natureza”?  *Benoît Bréville  é jornalista do Le Monde Diplomatique. 1   “ População presente no território antes e depois do início do confinamento: resultados consolidados”, Instituto Nacional de Estatística e Estudos Econômicos (Insee), 18 maio 2020. Disponível em: www.insee.fr. 2   Kevin Quealy, “The richest neighborhoods emptied out most as coronavirus hit New York City” [Bairros ricos foram esvaziados enquanto coronavírus atingia Nova York], The New York Times, 15 maio 2020. 3   Ben Hall e Daniel Thomas, “Everyday is like Sunday in a desert City of London” [Todo dia é como domingo na deserta Londres], Financial Times, Londres, 27 mar. 2020. 4   Olivier Babeau, “Le coronavirus prépare-t-il la revanche des campagnes?” [O coronavírus prepara a vingança do campo?], FigaroVox, 24 mar. 2020. Disponível em: www.lefigaro.fr. 5   C f. Salomé Berlioux, Nos campagnes suspendues. La France périphérique face à la crise [Nosso campo suspenso. A França periférica diante da crise], Éditions de l’Observatoire, Paris, 2020. 6   Greta Tommasi, “La gentrification rurale, un regard critique sur les évolutions des campagnes françaises” [A gentrificação rural, um olhar crítico sobre os desenvolvimentos do campo francês], GéoConfluences, 27 abr. 2018. Disponível em: http://geoconfluences. ens-lyon.fr. 7   De 2.500 euros a 10.500 euros por metro quadrado entre 1995 e 2020. 8   A população francesa cresceu duas vezes mais rápido entre 1946 e 1961 do que entre 1870 e 1946. 9   “Julien Denormandie: ‘Eu quero revitalizar as cidades médias!”, “L’Immo en clair”, SeLoger – Radio Immo – Le Parisien, 14 maio 2020.


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TODAS IGUAIS, MAS UMAS MAIS IGUAIS QUE AS OUTRAS

As redes “feministas” das maiores empresas cotadas na Bolsa de Paris Tão discreta quanto eficaz, a atuação de redes patronais permitiu a adoção em 2011 de uma lei que impõe a quase paridade entre os gêneros nos conselhos de administração das grandes corporações francesas. No entanto, a influência das mulheres de negócios sobre o governo afasta as associações feministas, enquanto seu ativismo permite a multinacionais pouco preocupadas com os direitos trabalhistas dourar sua imagem POR MAÏLYS KHIDER E TIMOTHÉE DE RAUGLAUDRE*

va com apenas cerca de uma centena dessas redes que defendem o acesso das mulheres aos cargos mais elevados,2 ao passo que hoje há mais de quinhentas delas no país, de acordo com o Cercle InterElles.3 Esse clube, fundado em 2001 por executivas das companhias France Telecom, IBM France, Schlumberger e GE Healthcare, “possibilitou um intercâmbio de boas práticas: ele oferece um espaço de compartilhamento para que as mulheres possam acessar posições de liderança, ao mesmo tempo que dão visibilidade às multinacionais”, explica Pochic.

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o dia 2 de dezembro de 2016, no Centro Internacional de Deauville, Emmanuel Macron apresentava em inglês seu programa para a igualdade entre mulheres e homens. “Permitir que as mulheres tenham acesso à liderança nos negócios ou na política é absolutamente essencial.” Na plateia, uma maioria composta por mulheres de negócios e da vida política. Em onze anos de existência, era a primeira vez que o Women’s Forum for the Economy and Society (WF, Fórum de Mulheres para a Economia e a Sociedade) tinha como convidado um candidato à presidência da França. Menos de três semanas depois, duas de suas dirigentes assinaram o manifesto “Elles Marchent” [Mulheres em marcha], apoiando a candidatura do ex-ministro da Economia. Apelidado pela imprensa de “Davos das Mulheres”, o WF conquistou influência considerável desde sua primeira edição, em 2005. Todo ano, o evento reúne uma miríade de organizações e redes dedicadas à questão do acesso das mulheres a cargos de liderança na economia, seja no âmbito empresarial ou no poder público. Esse “feminismo de mercado”, para usar a expressão da socióloga Sophie Pochic,1 apareceu na França no início dos anos 2000. Surgido do outro lado do Atlântico na década de 1980, ele foi importado para o país europeu pelas filiais francesas de multinacionais norte-americanas. “Nos Estados Unidos, essa aliança é natural”, explica Françoise Picq, historiadora, socióloga do feminismo e ex-militante do Movimento de Libertação das Mulheres (MLF). “O sistema é capitalista, busca-se dinheiro onde há. As ações são realizadas por meio de arrecadação de fundos ou por grandes fundações.” Em 2007, a França conta-

MONITORING, NETWORKING E MENTORING O primeiro feito desse discreto lobby foi a aprovação, em 2011, da Lei Copé-Zimmermann. A nova legislação francesa obriga as empresas privadas e públicas que tenham mais de quinhentos funcionários permanentes e um volume de negócios de pelo menos 50 milhões de euros a ter, entre seus altos executivos, um mínimo de 40% de homens (em conselhos majoritariamente femininos) ou de mulheres (em conselhos majoritariamente masculinos). Essa obrigação não abrange comitês executivos e de diretoria: essas instâncias, que são as que detêm o real poder de decisão, contavam em 2019 com apenas 17,9% de mulheres.4 Aliás, a Engie é atualmente a única empresa do CAC 40, o índice que reúne as quarenta maiores empresas cotadas na Bolsa de Paris, chefiada por uma mulher: Catherine MacGregor, que assumirá suas funções no início de 2021, sucedendo a Isabelle Kocher. Mas a França continua sendo um dos poucos territórios – junto com a Noruega desde 2003, a Itália desde 2011 e a Califórnia desde 2018 – a adotar cotas

desse tipo. Assim, o país apresenta a maior taxa de feminização nos conselhos de administração das grandes empresas, que passou de 8,5% em 2007 para 43,6% em 2019.5 O feminismo conduzido pelas elites não é novo: das sufragistas, que em 1903 já lutavam pelo direito ao voto feminino, à ex-ministra Simone Veil, passando pela jornalista e escritora Hubertine Auclert, ele fez parte de avanços importantes em termos de igualdade. “Na história do feminismo, sempre houve mulheres de classe alta”, observa Françoise Picq. Desde sempre, correntes diversas se opuseram, e até se enfrentaram. “Já no século XIX, mulheres foram criticadas por serem burguesas interessadas em usufruir dos privilégios de sua classe. Algumas desejavam ser independentes do movimento social. Não queriam se aliar às franjas feministas dos sindicatos, que defendiam uma aliança com o socialismo. Mas, nessa época, tratava-se de intelectuais, mulheres à margem, que escreviam ou se posicionavam contra a escravidão.” Para evitar qualquer confusão com organizações feministas ou sindicais “radicais”, Aude de Thuin define o WF, da qual é fundadora, como um “empreendimento econômico, assim como Davos” (ler boxe). Se em seus primórdios o encontro anual recorreu ao patrocínio de multinacionais (Engie, McKinsey, Sodexo e Renault, cujo ex-presidente Carlos Ghosn foi um dos primeiros apoiadores do fórum), em 2019 a empresa organizadora do WF, a Wefcos, registrou um volume de negócios de 6,6 milhões de euros. Cabe lembrar que o preço do ingresso é particularmente elevado: 3 mil a 4 mil euros por dois ou três dias de conferências, multiplicados por mil a 2 mil participantes.

Esse modelo econômico inspirou outras organizações, que tecem a teia de um feminismo empresarial cada vez mais estruturado. A Journée de la Femme Digitale (JFD, Jornada Feminina Digital), que participa regularmente das conferências organizadas pelo WF, promove start-ups digitais. São “novas heroínas”, nas palavras de sua cofundadora Delphine Remy-Boutang, que conta com o apoio financeiro de várias empresas do CAC 40, como a Total, a Orange e a L’Oréal, além de empresas norte-americanas, como a Google e a Microsoft. “Não somos uma associação, mas um negócio lucrativo”, preocupa-se também ela em esclarecer. Na defesa do acesso das mulheres a cargos de liderança, o argumento central é o de que a igualdade garantiria às empresas benefícios econômicos, contribuindo de forma mais geral para o crescimento. Segundo Boris Janicek, ex-executivo da L’Oréal e copresidente do Club XXIe Siècle, que promove a diversidade no mundo corporativo, esta tem um “valor econômico real”. Ele elogia, por exemplo, a decisão do banco Goldman Sachs de, a partir de julho de 2020, não acompanhar mais na Bolsa empresas que não tenham em seu conselho de administração pelo menos uma mulher e/ou uma pessoa “da diversidade”. “Não se trata de altruísmo ou de responsabilidade social corporativa”, garante. “A questão das mulheres está intimamente ligada à questão dos valores produtivos. Em empresas cujas dirigentes são mulheres ou pessoas de origens diversas, houve uma valorização de 44% em quatro anos, contra 13% nas demais.” Grandes empresas de consultorias, como a EY e a McKinsey, abraçam essa tese, defendendo a ideia de que “a igualdade seria boa para o mercado e que o mercado seria bom para a igualdade”, explica Sophie Pochic. A McKinsey tenta demonstrar isso anualmente, com seu estudo “Women Matter” [As mulheres importam], publicado em parceria com o WF. São recomendados métodos padronizados em escala global, tanto em instâncias privadas como públicas: monitoring (acompanhamento de indicadores quantificados), networking (constituição de redes de mulheres em posições executivas), mentoring (acompanhamento individual) etc. “Essa retórica promove medidas individualizadas e seletivas para uma minoria de funcionárias ou de empresárias ‘com potencial’, ‘de talento’ ou ‘de excelência’, que são tratadas separadamente da massa de trabalhadoras comuns”, relata Sophie Pochic. Com a Lei Copé-Zimmermann, a atenção dada pelo poder público aos círculos de mulheres líderes só au-


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AFINIDADES ELETIVAS COM O “MACRONISMO” Essas afinidades eletivas entre as redes do patronato feminino e o “macronismo” ajudaram a marginalizar os sindicatos de trabalhadores na questão da igualdade profissional. Em 2018, o governo solicitou a expertise de Sylvie Leyre, então diretora de Recursos Humanos da Schneider Electric. A ministra do Trabalho, Muriel Pénicaud, pediu que ela definisse as modalidades de um software de avaliação das desigualdades salariais. Seu relatório deu origem ao Índice de Igualdade Profissional, que foi integrado à Lei da Liberdade de Escolha do seu Futuro Profissional, de 2018. Para Sophie Pochic, a eficá-

cia dessa ferramenta, apresentada pelo governo como “decisiva”, deve ser relativizada: “O índice mostra o número de mulheres entre os dez maiores salários corporativos, a obtenção ou não de aumento salarial após o retorno da licença-maternidade, a disparidade de remuneração em grupos profissionais equivalentes etc. Na verdade, é uma síntese de indicadores legais que já existiam”. Além disso, sindicatos e pesquisadores criticaram o método de cálculo das disparidades de remuneração. É o caso da Confederação Geral do Trabalho (CGT), que em março de 2019 destacou, em um comunicado à imprensa: “Alguns dos fatores estruturais das disparidades de remuneração não se enquadram no escopo do índice: as disparidades de tempo de trabalho, as disparidades cumulativas de carreira e a desvalorização de empregos predominantemente femininos foram, no geral, eliminados”.

Em 2018, 78% dos empregados de meio período eram mulheres, e quase uma em cada três mulheres tinha um emprego de meio período

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mentou. Mas essas redes triunfaram realmente sob a presidência de Macron. Vários membros de seu governo foram convidados para o WF, como a ex-ministra do Trabalho Muriel Pénicaud e a atual ministra delegada da Indústria, Agnès Pannier-Runacher, além da cofundadora do partido Em Marcha!, Astrid Panosyan. Em outubro de 2019, Marlène Schiappa e Cédric O., então secretários de Estado, respectivamente para a Igualdade entre Mulheres e Homens e para Assuntos Digitais, confiaram uma missão à diretora-geral do WF, Chiara Corazza. O relatório apresentado por ela em fevereiro de 2020, intitulado “Les femmes au cœur de l’économie: la France pionnière du leadership au féminin dans un monde en pleine transformation” [As mulheres no centro da economia: França, pioneira da liderança feminina em um mundo em transformação], baseia-se largamente no trabalho dos membros do comitê estratégico do WF: o círculo “Mulheres e clima” é dirigido pelo BNP Paribas; “Mulheres e acesso à saúde”, pela Axa; “Mulheres e inteligência artificial”, pela Microsoft. “É uma questão de justiça e equidade, mas também de desempenho econômico: se mulheres e homens forem representados de maneira igual, 240 milhões de empregos [no mundo] podem ser criados até 2025, e US$ 28 trilhões adicionados ao PIB”, afirma o documento, que deveria subsidiar um projeto de lei sobre emancipação econômica das mulheres, que está em suspenso. A maioria das 27 medidas defendidas diz respeito ao acesso à tecnologia e à ciência, ao estabelecimento de cotas, ao acesso a patrocínios ou à criação de bolsas de excelência. Há apenas duas menções à igualdade salarial e um ponto recomendando a prorrogação da licença-paternidade, medida colocada em prática nesse meio-tempo, pois a licença deve dobrar – de 14 para 28 dias – a partir de 1º de julho de 2021.

A equipe do governo Macron cercou-se da expertise de líderes empresariais e de altos executivos do setor privado para redigir suas leis, ignorando associações feministas tradicionais. “Não tivemos nenhum contato com Marlène Schiappa por um ano e meio”, lembra Caroline De Haas, fundadora do coletivo #NousToutes [#TodasNós]. “Isso só mudou depois da nossa marcha [contra a violência sexual e de gênero, em novembro de 2019 (N.T.)], que reuniu 30 mil pessoas”. Marilyn Baldeck, delegada geral da Association Européenne contre les Violences Faites aux Femmes au Travail (AVFT, Associação Europeia contra a Violência contra as Mulheres no Trabalho), lamenta o desaparecimento dos “canais de comunicação com o poder público desde 2017”. Marlène Schiappa assume essa ruptura com “associações satélites do Partido Socialista”, em suas palavras, esclarecendo que os subsídios da AVFT foram mantidos: “É uma associação politizada, engajada com partidos de esquerda. Eu não dou a caneta de meus projetos de lei a pessoas que são opositoras do governo”, irrita-se quando questionada a respeito. Marilyn Baldeck defende-se, divertida: “Ao contrário do que pensa a ministra, a AVFT e eu nunca fomos próximas do Partido Socialista ou de qualquer outro partido”.

Para se fazerem conhecer, as redes de mulheres líderes contam com poderosos contatos na mídia, que compartilham de sua sensibilidade política. Em troca, as grandes empresas que as apoiam, parceiras e às vezes anunciantes desses meios de comunicação, compram uma vitrine feminista. Assim, o “Davos das Mulheres” utilizou as redes de mídia da comunicadora Anne Méaux (ler boxe) e as da agência Publicis.6 Todo ano, ele conta com uma elogiosa cobertura de veículos como Le Figaro, Elle, Challenges, Les Échos e La Tribune, que são seus parceiros. Essa proximidade pode dar origem a uma censura mais ou menos sutil. Um jornalista que trabalhou em um desses veículos conta sobre uma conversa telefônica entre um freelancer e um editor da redação: “Publicar um perfil de Anne Méaux seria arriscado”, dizia este. “Ela é muito poderosa. Conhece todos os nossos anunciantes. Eu seria despedido se a criticasse.”

VITRINE PARA AS GRANDES EMPRESAS Nessa mesma redação, uma jovem jornalista escreveu um artigo sobre a política social da L’Oréal, após uma funcionária fazer uma queixa por discriminação em razão de sua gravidez. Representantes da marca, segunda maior anunciante do veículo, imediatamente se reuniram com as mais elevadas instâncias da redação para modificar o artigo, que já estava on-line, além de publicar seu direito de resposta. Depois, a mídia só voltou a falar da empresa de forma elogiosa. O grupo de cosméticos, financiador do WF, preocupa-se com sua imagem feminista. Ele é parceiro do Conselho Consultivo para a Igualdade entre Mulheres e Homens, instituído em 2019 pelo G7 (então presidido pela França) com o apoio de Marlène Schiappa. Essa conivência também é ilustrada por um apelo da direção da empresa ferroviária francesa SNCF aos jornalistas da redação na primavera de 2019. Em pleno movimento social contra a reforma que deveria abrir o transporte de passageiros à concorrência, ela solicitou um artigo exaltando sua política de igualdade entre mulheres e homens. Em contrapartida, passagens grátis para os jornalistas. Para essa mídia, a promoção de lideranças femininas tornou-se um tema recorrente, bem como uma fonte de receitas. Há quatro anos, o prêmio Business with Attitude [Negócios com Atitude], organizado pela revista Madame Figaro, premia empresárias líderes de start-ups. Cerca de cem inscrições são examinadas pela redação e por um júri, em grande parte formado por executivos de grandes empresas – este ano: La Poste, Accor,

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Oddo BHF Banque Privée, Engie, Google e EY, sem falar do banco público Bpifrance, representado por Patrice Bégay. Em troca de seu financiamento ou envolvimento, essas empresas conseguem que falem bem delas, o que pode ser útil para desviar a atenção de assuntos incômodos. Em 2019, em pleno caso Carlos Ghosn,7 um representante da Renault usou um café da manhã da premiação para declarar o apoio inabalável da montadora e de seu presidente à causa das mulheres. Por sua vez, a revista Elle lançou o fórum Elle Active, que trata do lugar da mulher no mundo do trabalho. Durante a edição de 2019, convidados como a presidente do Banco Central Europeu, Christine Lagarde, e Jacques de Peretti, CEO da Axa France, puderam apresentar ao público sua visão do feminismo, ao lado de redes como Force Femmes, Laboratoire de l’Égalité, Financi’Elles e InterElles. Perto dali, um estande da L’Oréal Paris maquiava as participantes para destacar a importância da aparência nas seleções de emprego. Presente como observadora na edição 2019, Sophie Pochic destaca que “esse tipo de evento, graças ao patrocínio da marca, permite que um jornal em dificuldades continue existindo. Esse aspecto financeiro às vezes é mais importante do que o conteúdo das discussões. Como o evento é gratuito, ele ajuda a popularizar a causa dos empresários”.

As preferências ideológicas dessas mulheres as levam a apoiar reformas que prejudicam a grande maioria de suas semelhantes FUNCIONÁRIOS CASTIGADOS Se a feminização das esferas de poder vai muito bem, na base da pirâmide as coisas são diferentes: em 2018, 78% dos empregados de meio período eram mulheres, e quase uma em cada três mulheres tinha um emprego de meio período.8 Esse tipo de contrato predomina em profissões altamente feminizadas do setor de serviços (limpeza, restaurantes, varejo, saúde etc.). Como corrigir essa política de igualdade profissional com dois pesos e duas medidas? Delphine Remy-Boutang considera o empreendedorismo uma forma de sair da precariedade: “Muitas mulheres ocupam funções que vão desaparecer: operadoras de caixa, por exemplo. Elas precisam de ajuda para fazer sua transformação digital”.


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Essa também é a abordagem da Force Femmes. A associação, criada em 2005 em torno das mesmas figuras que o WF, hoje é presidida por Anne Méaux e por Véronique Morali. Com o apoio financeiro de grandes empresas, os voluntários da associação ajudam mulheres desempregadas de 45 anos ou mais a encontrar um emprego ou a abrir sua própria empresa. “As burguesas muitas vezes se valeram de sua posição dominante para ajudar outras mulheres”, analisa Françoise Picq. “Entre a filantropia e certo tipo de ativismo feminista, a linha geralmente é tênue.” De maneira mais direta, Marion Rabier, professora de Ciência Política da Universidade de Mulhouse, afirma: “Eu não acredito que a feminização das esferas dominantes seja mecanicamente uma alavanca para a igualdade profissional”. Para ilustrar esse ponto, ela conta sobre uma frequentadora do WF, que conheceu no decorrer de seu trabalho, a qual se queixava de suas duas secretárias, então em licença-maternidade, confidenciando-lhe a intenção de futuramente contratar funcionárias mais velhas... As preferências ideológicas dessas mulheres as levam a apoiar reformas que prejudicam a grande maioria de suas semelhantes. Em setembro de 2017, antes da assinatura dos decretos de reforma da legislação trabalhista, elogiados por Laurence Parisot, ex-presidente do Movimento das Empresas de França (Medef), cerca de sessenta personalidades e organizações feministas alertaram contra medidas que iriam “aumentar as desigualdades profissionais”.9 Elas ficaram particularmente preocupadas com o desaparecimento dos comitês de higiene, segurança e condições de trabalho (CHSCT), que se fundiram com outros dois órgãos nos novos comitês sociais e econômicos (CSE). “Quando começamos a ver agitações relativas à violência contra a mulher no trabalho, abolimos o CHSCT”, comenta Marilyn Baldeck. Há anos, proliferam greves de camareiras terceirizadas de hotéis. No verão de 2019, quando se iniciou uma mobilização no hotel Ibis Batignolles, em Paris, Marlène Schiappa anunciou que examinaria a situação. Sébastien Bazin, presidente do grupo Accor, do qual o hotel faz parte, fora um dos ilustres convidados do WF de 2015. Em setembro de 2019, Marlène Schiappa esteve no piquete do Ibis Batignolles. “Ela deixou claro que não poderia interferir nas decisões econômicas da empresa, portanto na terceirização”, conta uma sindicalista que estava ao lado das camareiras.10 A ex-secretária de Estado afirma ter apoiado o “princípio” do projeto de lei do deputado François Ruffin (França

Insubmissa) voltado a “regulamentar a terceirização” no setor da limpeza, que depois foi retirado. Na verdade, se o deputado de esquerda acabou decidindo por retirar o texto no final de maio de 2020, foi porque o considerou “esvaziado de seu conteúdo” pela maioria parlamentar.

DA HEWLETT-PACKARD AO MINISTÉRIO Em julho de 2020, Marlène Schiappa cedeu seu lugar a Élisabeth Moreno, ministra delegada da Igualdade entre Mulheres e Homens. A ex-presidente da Lenovo França, então Hewlett-Packard África, é uma “amiga do Women’s Forum”, segundo Chiara Corazza: “Vou tentar ajudá-la o máximo que puder”. Ela também foi membro do Club XXIe Siècle, participou da JFD e da Women in Africa, plataforma fundada em 2015 por Aude de Thuin. “Tenho muita esperança em Élisabeth Moreno, que conheço bem”, confessa a criadora do “Davos das Mulheres”. Pouco depois de assumir seu cargo, Élisabeth Moreno almoçou com as associações feministas que sua antecessora havia deixado um tanto abandonadas. Não é certo, porém, que uma nova página esteja sendo escrita. Durante o encontro, enquanto uma militante da Federação Nacional de Mulheres Solidárias explicava que sua associação havia coordenado uma rede de apoio e alojamento para vítimas de violência, além de gerir uma linha telefônica de emergência, a ministra respondeu com muita naturalidade: “Sim, é isso mesmo, estamos falando de experiência do cliente”.

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*Maïlys Khider e Timothée de Rauglaudre são jornalistas. Rauglaudre é também autor de Premières de corvée [De baixo para cima], LGM Éditions, Paris, 2019. 1   S ophie Pochic, “Féminisme de marché et égalité élitiste?” [Feminismo de mercado e igualdade elitista?]. In: Margaret Maruani (ed.), Je travaille, donc je suis. Perspectives féministes [Trabalho, logo existo. Perspectivas feministas], La Découverte, Paris, 2018. 2   Emmanuelle Gagliardi e Wally Montay, Guide des clubs et réseaux au féminin [Guia de clubes e redes sobre questão feminina], Le Cherche Midi, Paris, 2007. 3   Valérie Lion, “Entreprises: relever le pari des réseaux féminins” [Mundo corporativo: reforçar a aposta das redes femininas], L’Express, Paris, 18 jan. 2019. 4   L aurence Boisseau, “La France championne du monde de la féminisation des conseils d’administration” [França, campeã mundial na feminização dos conselhos de administração], Les Échos, Paris, 7 mar. 2019. 5   Ibidem. 6   M arion Rabier, “Entrepreneuses de cause: contribution à une sociologie des engagements des dirigeants économiques en France” [Empreendedores de causa: contribuição para uma sociologia dos compromissos dos líderes econômicos na França], tese defendida na École des Hautes Études en Sciences Sociales (Ehess), Paris, 2013. 7   O ex-presidente da aliança Renault-Nissan é suspeito de vários desvios financeiros. 8   “Quelles sont les conditions d’emploi des sala-

PROGRESSISTAS, MAS COM MODERAÇÃO...

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fundadora do Women’s Forum for the Economy and Society (WF, Fórum de Mulheres para a Economia e a Sociedade), Aude de Thuin, fez da promoção de mulheres líderes corporativas sua causa pessoal e de sua vida um exemplo de sucesso. Em um livro publicado em 2012, Femmes, si vous osiez [Mulheres, se vocês ousassem] (Robert Laffont), a mulher de negócios conta ter sido uma criança “com uma natureza extravagante”. Verdadeira “moleca”, ela teria desesperado sua mãe, que gostaria de vê-la no funcionalismo. Mas o empreendedorismo era “realmente a história de [sua] vida!”, escreve a mulher que procurou a psicanálise para curar as feridas causadas pela falta de amor da mãe. Essa prática a fez concluir que “a autoconfiança é crucial para vencer na vida”. No início dos anos 2000, Aude de Thuin ganhou destaque pela criação de revistas e feiras dedicadas à jardinagem e ao lazer criativo. Sua feira Création et Savoir-Faire [Criação e Know-How], realizada na Porte de Versailles, em Paris, tinha uma “creche para homens, com um bar muito chique, serviço de engraxamento de sapatos, alfaiate e televisão exibindo jogos de futebol e rúgbi”. Na época, apesar de suas conquistas – e de sua disposição para pagar um ingresso caro –, a empresária teve seu acesso ao Fórum Econômico Mundial de Davos negado, segundo ela por ser mulher e dirigente de uma pequena ou média empresa (PME): “Na época, Davos recebia apenas 4% de mulheres”, conta. “Eu achava isso totalmente injusto.” Em 2003, o ex-diretor-geral do fórum, Claude Smadja, ajudou-a a criar um novo fórum econômico mundial, dedicado às “mulheres influentes”. A primeira edição foi realizada em 2005. Encontrando “palestrantes” de todo o mundo em suas frequentes viagens para Washington (sobretudo para assistir às conferências da fundação de Hillary Clinton), ela cercou-se de mulheres de alto escalão: no primeiro conselho do WF estavam mulheres como Anne Lauvergeon, presidente do conselho executivo da Areva, Véronique Morali, então diretora da Fimalac, a holding do bilionário Marc Ladreit de Lacharrière, ou ainda Laurence Parisot, ex-presidente do Instituto Francês de Opinião Pública (Ifop) e do Movimento das Empresas da França (Medef), o principal sindicato patronal francês. “O fato de eu ser uma feminista pragmática foi muito útil para o Women’s Forum, que, por isso, nunca foi acusado de ser vingativo ou radical”, congratula-se em seu livro. Não se trata de aderir a uma visão igualitarista das relações entre os sexos: “A complementaridade entre homens e mulheres [continua] essencial tanto na política como no mundo econômico”. Preocupada em não fazer “sexismo às avessas”, Aude reitera que, durante sua presidência, o fórum tinha 20% de oradores homens. Assim, como as mulheres “não estão disputando nem competindo”, ela quer acreditar que elas são “um grande fator de mudança para construir um mundo mais moral, mais respeitoso em relação ao outro”. Embora a maioria das líderes do WF tenda para o campo liberal (como Mercedes Erra, presidente da agência de publicidade BETC, que apoiou Emmanuel Macron em 2017 e se descreve como “social-liberal”), algumas são próximas da direita conservadora. Em 2014, Aude passou seu lugar a Clara Gaymard, ex-presidente da General Electric France, que teve um papel fundamental na operação de compra da Alstom pela empresa norte-americana. Exibindo publicamente suas convicções religiosas, ela participou da criação, em 1996, da Fundação Jérôme-Lejeune, que leva o nome de seu pai, professor de medicina e ativista católico contra a interrupção voluntária da gravidez. Uma das pioneiras do WF, Anne Méaux, atuou na extrema direita em sua juventude, especialmente no Grupo de Defesa Sindical (GUD). Na época, ela conviveu com Alain Madelin e Gérard Longuet, anticomunistas virulentos que alguns anos depois se tornaram próximos do presidente Valéry Giscard d’Estaing. Léa Salamé entrevistou a comunicadora para seu livro Femmes puissantes [Mulheres poderosas], que se originou de uma série de entrevistas com personalidades femininas, as “entrevistas mais inspiradoras” que a radialista já realizou. Escolhida por sua “força interior” e sua “influência na sociedade”, Anne Méaux passa rápido por seu passado neofascista – modestamente descrito como uma luta contra as “violações das liberdades e do totalitarismo”.1 Reivindicando-se atualmente de “direita liberal”, em 2017, por meio de sua empresa de comunicação Image 7, ela foi assessora de François Fillon, então candidato à presidência. Desde a saída de Clara Gaymard, em 2017, o WF está sem presidente. É sua diretora, Chiara Corazza, quem segura as rédeas. Ela foi recrutada por Clara, que cruzou com ela no setor de investimentos internacionais e na prestigiada escola privada Stanislas, em Paris, onde seus filhos foram educados juntos. Desde sua chegada, o WF conta com um comitê estratégico que reúne sete grandes grupos empresariais, entre eles Axa, Bayer, Microsoft e BNP Paribas, que mobilizam sua expertise para contribuir nas reflexões. Chiara também considera que homens e mulheres são “complementares” (Les Échos, 21 out. 2019). “Eu só quero que as mulheres tenham as mesmas oportunidades na construção do futuro.” (M.K . e T.R.) 1   L éa Salamé, Femmes puissantes [Mulheres poderosas], Les Arènes – France Inter, Paris, 2020. riés à temps partiel?” [Quais as condições de emprego dos trabalhadores de tempo parcial?], Dares Analyzes, n.025, Paris, ago. 2020. 9   “ Loi travail: les droits des femmes passent (aussi) à la trappe” [Legislação trabalhista: os direitos das mulheres (também) desaparece-

ram], Les Invités de Mediapart, 6 set. 2017. Disponível em: https://blogs.mediapart.fr. 10   Timothée de Rauglaudre, “Journées infernales d’une femme de chambre” [As jornadas infernais de uma camareira], Alternatives Économiques, n.396, Paris, 27 nov. 2019.


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PARA ACABAR COM A ESCASSEZ E COM AS FALSIFICAÇÕES

A emergência de uma indústria farmacêutica africana A África do Sul, ao lado da Índia, pediu à Organização Mundial do Comércio (OMC) que suspendesse a propriedade intelectual de vacinas e medicamentos durante a pandemia. Trata-se de garantir à população o acesso a tratamentos mais baratos. Apesar do surgimento de uma indústria local, a África continua dependente de grupos farmacêuticos estrangeiros POR SEVERINE CHARON E LAURENCE SOUSTRAS*

tudo na África ocidental. A automedicação, na ausência de profissionais que façam a prescrição, estimula o tráfico. Analgésicos, antimaláricos, antibióticos, antifúngicos... Todas as categorias de moléculas fazem parte desse cenário.4 No outono de 2019, as autoridades de Uganda apreenderam caixas com o carimbo “Doações do governo de Uganda, não destinadas à venda” cheias de produtos que foram adquiridos pelo centro de compras do país a preços de atacado e depois desviados e revendidos a um preço mais alto por comerciantes privados. Também foram encontrados medicamentos falsificados, em geral importados da Ásia. Os contrabandistas conseguem facilmente transportar substâncias ilegais através de países enfraquecidos pela guerra, como Nigéria e Camarões, assolados pelo Boko Haram. Diante do risco à saúde e das queixas dos profissionais do setor, os presidentes do Togo, do Congo-Brazzaville, de Uganda, do Níger, do Senegal, de Gana e da Gâmbia decidiram, em janeiro de 2020, em Lomé, coordenar a luta contra o tráfico farmacêutico. Mas o tratado assinado será convertido em ações? As companhias farmacêuticas, por sua vez, mobilizam-se para detectar fraudes e oferecer formação aos agentes públicos. Em 2008, por exemplo, a francesa Sanofi inaugurou, em Tours, na França, o Laboratório Central de Análise de Falsificações, que estuda casos de defeitos vindos do mundo inteiro. A Pfizer, cujo Viagra é muito falsificado, ensina às autoridades alfandegárias técnicas para detectar produtos falsos, mesmo quando dissimulados em remessas legais. “Temos uma espécie de compêndio de boas práticas que permite detectar as falsificações por meio de inspeção visual – da embala-

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tenção para a cloroquina falsificada! Produtos semelhantes ao Nivaquine, como o Nirupquin e o Samquine, estão circulando em vários países da África ocidental em diferentes embalagens, avisou a Organização Mundial da Saúde (OMS) no dia 9 de abril de 2020.1 Com a pandemia de Covid-19 e a divulgação de vídeos do virologista francês Didier Raoult, explodiu o tráfico de antimaláricos à base de cloroquina – alegadamente eficaz no combate ao vírus, embora até o momento nenhum estudo científico tenha demonstrado tal eficácia. A apreensão de várias caixas no final da primavera sugere, sem certeza, que há comprimidos vindos da Ásia e de laboratórios clandestinos locais.2 Nenhum desses medicamentos tem autorização de comercialização. Para a OMS, o assunto é ainda mais preocupante quando se sabe que mais de 100 mil crianças africanas morrem todo ano pelo consumo de substâncias adulteradas. Em um continente com 30 milhões de quilômetros quadrados (três vezes o tamanho da Europa), as dificuldades para chegar aos pontos de venda dificultam o acesso aos medicamentos, promovendo a escassez. Cápsulas, comprimidos e xaropes podem percorrer milhares de quilômetros, por portos e aeroportos, até chegar aos pacientes. Além disso, em 2014 havia na África apenas 0,9 farmacêutico, técnico farmacêutico ou equivalentes para cada 10 mil habitantes, contra uma média mundial de 4,3, e apenas 2,6 médicos para cada 10 mil habitantes, contra 14,1 em escala global. É o continente com menores índices do planeta. 3 Nesse contexto, explodiu o número de farmácias não autorizadas que oferecem todo tipo de produto em qualquer caixinha, sobre-

gem ou do consumível – no meio de cargas legais”, explica Joseph Kpoumie, alto funcionário da alfândega camaronesa.

UM QUARTO DOS DOENTES DO PLANETA No entanto, ocorre que “a maior parte dos medicamentos que circula no mercado paralelo é de produtos verdadeiros”, explica a antropóloga Carine Baxerres, ligada ao Instituto de Pesquisa para o Desenvolvimento (IRD) da França e à Universidade de Paris Descartes, e principal pesquisadora do projeto sobre telemedicina Globalmed. O grupo UPSA, cujo famoso Efferalgan pode ser encontrado em todas as prateleiras dos comerciantes ilícitos, confirma, nas palavras de seu presidente, François Duplaix: “A maioria são medicamentos verdadeiros desviados do circuito oficial de distribuição local. Nunca recebemos notícias de produtos falsificados relacionados ao Efferalgan”. Mas o fenômeno das substâncias falsificadas com dosagens incorretas existe, afetando outros produtos. Em Camarões, por exemplo, ele foi identificado em relação ao tramadol, um analgésico de classe 2 que alimenta uma crise de dependência de opioides na África central. A pandemia de Covid-19 agravou os desvios e colocou em evidência a subprodução local de medicamentos. “As restrições temporárias às exportações indianas de hidroxicloroquina5 e a crescente demanda por cloroquina no mundo lançaram luz sobre a dependência dos países da África ocidental em relação a atores externos, estimulando a produção regional desse medicamento”, explica o pesquisador Antonin Tisseron.6 A África abriga 25% de todos os doentes do mundo, considerando-se

o conjunto das doenças.7 Para suprir suas imensas necessidades, o continente importa, sobretudo da Ásia, entre 70% e 90% de seus medicamentos, aos quais muitos países dedicam até 80% de seus gastos com saúde. Apenas a África do Sul e o Marrocos dispõem de uma indústria farmacêutica que cobre de 70% a 80% da demanda local.8 O desafio sanitário é também um desafio comercial, uma vez que o aumento das doenças não transmissíveis – câncer, diabetes, doenças cardiovasculares – aguça o apetite das multinacionais.9 O continente ainda representa apenas 3% de um mercado mundial que deve movimentar US$ 1,4 trilhão em 2021.10 Apenas 375 produtores, a maioria deles sediada no Magreb e no Egito, dividem o mercado continental.11 Ao sul do Saara, há sobretudo fabricantes de medicamentos genéricos sob licenças estrangeiras, ou empresas que realizam pequenas operações, como o acondicionamento de produtos importados que são reembalados para o mercado local. As empresas asiáticas dividem a maior fatia desse mercado, com “toda uma série de medicamentos genéricos, indianos, chineses ou paquistaneses, desconhecidos fora da África”, destaca, em Abidjan, Jean-Marc Bouchez, presidente da Associação da Indústria Farmacêutica da África Subsaariana de Língua Francesa (Lipa). Ele acrescenta que, ali, os padrões internacionais definidos pela OMS nem sempre são respeitados, falando em “práticas mais que duvidosas, favorecidas por regulamentações pouco rigorosas”.12 Os países de colonização francesa e inglesa apresentam situações diferentes. Para os primeiros, a brutal desvalorização do franco CFA (–50%), em 12 de janeiro de 1994, atingiu em cheio um setor que importava 90% de seus tratamentos de países com moedas fortes – e milhões de africanos sem seguro-saúde. “Os atacadistas pararam de abastecer as farmácias enquanto aguardavam que o governo autorizasse a mudança de preço”, lembra Prosper Hiag, presidente da Ordem dos Farmacêuticos de Camarões. “Após três semanas de negociações, acabaram conseguindo um aumento de 64% no preço de venda. Foi um drama. Você chegava à farmácia e descobria que o remédio que na véspera custava 100 francos estava sendo vendido a quase 200. Foi então que se começou a buscar soluções mais baratas, principalmente os genéricos.” Na África ocidental, esses medicamentos eram então trazidos da Europa, especialmente de Bruxelas. “Mas a Bélgica já estava mandando fabricá-los na Índia. Aos poucos, os fabricantes indianos começaram a se


interessar pelos países africanos de língua francesa, respondendo aos editais”, conta Prosper. Os países de colonização inglesa parecem em melhor situação: Nigéria, Quênia e África do Sul contam com dezenas de unidades de produção que atendem ao mercado local e, às vezes, exportam para outros países do continente. A África oriental e a África meridional podem até ser consideradas pioneiras na produção em larga escala. Nas décadas de 1930 e 1940, o Reino Unido, então potência colonial, instalou nesses países, assim como no Zimbábue, as bases de retaguarda de seus produtores farmacêuticos. Muito mais tarde, nos anos 19902000, a pandemia de aids foi um incentivo para o desenvolvimento da indústria local. A África do Sul decidiu então permitir importações paralelas de medicamentos oriundos de países que os vendiam a um preço mais barato, bem como difundir os tratamentos genéricos. Na época, a norte-americana Bristol-Myers Squibb, a britânica GlaxoSmithKline e a alemã Boehringer Ingelheim detinham as licenças dos antirretrovirais. Com o apoio de cerca de trinta das maiores companhias farmacêuticas do mundo, elas tentaram processar o governo sul-africano por violar as regras de propriedade intelectual perante o órgão de regulação de disputas da Organização Mundial do Comércio (OMC). A pressão exercida pelas associações de pacientes e a decisão da empresa indiana Cipla de comercializar os antirretrovirais a preços baixos, em setembro de 2000, acabaram vencendo a resistência da “Big Pharma”, que abandonou os processos e deixou os genéricos se desenvolverem.13 As regras atuais da OMC liberam os países africanos menos desenvolvidos14 do pagamento de licenças farmacêuticas até 2033, e o Acordo sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (Adpic) concede diversas isenções – as “flexibilidades Adpic” – que beneficiam os demais. Em 2003, a Aspen, fabricante sul-africana de medicamentos genéricos fundada em 1850, obteve o direito de produzir versões genéricas de antirretrovirais. “O custo dessas terapias não passa de mais de US$ 100 ao ano”, explica Neil Bradford, diretor da Cipla Quality Chemical Industries em Kampala (Uganda). “E isso constitui uma mudança enorme se comparado com a época em que cada paciente tinha de pagar US$ 16 mil para se tratar.” Foi o próprio governo de Kampala que propôs à indiana Cipla instalar uma fábrica em Uganda para produzir antirretrovirais diretamente, associando-se à em-

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Venda de drogas falsas e ilegais nas ruas de Abidjã, a maior cidade da Costa do Marfim presa local Quality Chemicals Limited. A empresa fornece tratamento a 700 mil pessoas soropositivas, do 1,2 milhão que vivem no país. O setor farmacêutico africano desenvolve-se sobretudo por meio de parcerias com empresas indianas: Sun Pharma-Ranbaxy na Nigéria, Cadila na Etiópia, Cipla em Uganda. Impulsionada pelo dinamismo do sul, o oeste do continente acompanha o movimento. Assim, a Strides Pharma Science Limited, que começou como uma exportadora de genéricos produzidos em sua fábrica de Bangalore, criou, por meio de parceria com empresários locais, unidades de distribuição e embalagem em Botswana e na Namíbia, antes de vender suas ações a outra empresa indiana, a Africure, em 2017. No ano seguinte, a Africure abriu sua primeira fábrica africana de produção de genéricos em Camarões, e depois outra na Costa do Marfim. Ela planeja instalar-se em Burkina Faso, na Etiópia e no Zimbábue. Poucas são as indústrias puramente locais. A Pharmivoire Nouvelle, um exemplo delas na Costa do Mar-

fim, era o único produtor de soluções injetáveis da África ocidental de língua francesa quando um incêndio interrompeu sua expansão, em 2018. Em 2003, a farmacêutica Gisèle Etamé fundou, em Camarões, o laboratório Genemark, que produz medicamentos genéricos, xaropes e comprimidos. Esses novos produtores parecem estar mais bem equipados, certificados pela OMS ou em via de ser; eles têm um papel cada vez mais importante no surgimento de mercados regionais. As companhias do setor dependem de fornecedores indianos para obter os princípios ativos, ou da China para a química fina. Os custos de abastecimento tornam os produtos pouco competitivos em relação às importações extracontinentais de medicamentos acabados.15 Além disso, os novos genéricos não seriam lucrativos sem as grandes encomendas feitas por meio de editais pelas grandes organizações humanitárias de saúde surgidas na década de 2000: a Aliança Global para Vacinas e Imunização (Gavi), criada pela Fundação Bill e Melinda Gates como parceria público-privada, ou o Fundo Global de

Combate à Aids, Tuberculose e Malária, criado pelo ex-secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU) Kofi Annan, cujo orçamento chegou a US$ 2 bilhões em 2019. Essas organizações obviamente exigem respeito às normas da OMS, mas, em razão dos custos, apenas algumas unidades de fabricação subsaarianas conseguem a certificação. “Tanto a fábrica quanto os produtos precisam ser certificados pela OMS”, destaca Neil Bradford. “Muitos produtores na África, porém, fabricam apenas um ou dois produtos: é pouco para fazer os investimentos necessários.” As multinacionais que detêm os direitos dos medicamentos originais não genéricos (medicamentos de referência) buscam agora coexistir com os fabricantes de genéricos que atuam no continente. “Elas perceberam que é inútil lutar para fazer valer suas patentes em países onde, de qualquer forma, os lucros são baixos: a África representa uma porcentagem muito pequena do mercado total”, explica Denis Broun, assessor do presidente da Cipla. “Além disso, elas são obrigadas a praticar preços bai-


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RESISTÊNCIA DOS PRODUTOS ESTRANGEIROS As multinacionais, porém, não abandonam o mercado. Elas tentam ganhar no volume de vendas de produtos que só elas são capazes de fabricar em quantidade suficiente: é o caso da suíça Novartis, por meio da subsidiária Sandoz, ou da norte-americana Pfizer, em processo de fusão com a compatriota Mylan, ou ainda da francesa Servier, com a subsidiária Biogaran, na África ocidental. A gigante chinesa Fosun Pharma, por sua vez, aguarda a certificação da OMS para sua futura unidade de genéricos de US$ 75 milhões na Costa do Marfim. As patentes de tratamentos para doenças não infecciosas continuam nas mãos das multinacionais, que as cedem a conta-gotas para os genéricos. Com especialistas e amplos recursos, elas monitoram a evolução das leis de propriedade intelectual. O objetivo seria retardar o surgimento de uma verdadeira indústria farmacêutica local, contornando, com cláusulas restritivas, o sistema de licenças voluntárias que autorizam a produção de genéricos de medicamentos patenteados. Foi nesse espírito que, em 2014-2015, a gigante norte-americana Gilead licenciou onze genéricos indianos para distribuir seu tratamento para hepatite C em uma centena de países. Os governos da África do Sul e da Nigéria são os únicos a oferecer aos fabricantes locais um regime fiscal vantajoso. No Quênia, associações de pacientes pedem tais incentivos, bem como a tributação de medicamentos importados. Hoje, o país produz apenas 28% de seu consumo. “Tenho a sensação de que, entre a falta de transparência dos países africanos e a influência dos produtores estrangeiros que não querem perder mercado, os ventos não são favoráveis ao desenvolvimento de uma indústria nacional”, observa em Nairóbi Allan Maleche, da associação queniana Kelin, que defende os direitos de pacientes com aids e tuberculose. Com um mercado farmacêutico em plena expansão, a África produz tratamentos acessíveis para algumas doenças infecciosas, como a aids.16 Agora, precisa garantir a fabricação de quantidades suficientes

e enfrentar o desafio das patologias não infecciosas. As empresas estrangeiras não pretendem deixar de lado esse mercado em rápido crescimento. Em Kampala, a indiana Cipla se prepara para construir uma fábrica dedicada exclusivamente ao tratamento do câncer.  *Séverine Charon e Laurence Soustras são jornalistas.

1   “ Alerte produit médical n.4/2020” [Alerta de produto médico n. 4/2020], OMS, Genebra, 9 abr. 2020. 2   Idem. 3   “Statistiques sanitaires mondiales” [Estatísticas mundiais de saúde], OMS, 2014. 4   Ler o suplemento “La santé pour tous, un défi planétaire” [Saúde para todos, um desafio planetário], Le Monde Diplomatique, jul. 2019. 5   “Amendment in export policy of hydroxychloroquine” [Emenda na política de exportação de hidroxicloroquina], Governo da Índia, Nova Délhi, 18 jun. 2020. 6   Antonin Tisseron, “Circulation et commercialisation de chloroquine en Afrique de l’Ouest: une géopolitique du médicament à la lumière du Covid-19” [Circulação e comercialização de cloroquina na África ocidental: uma geopolítica do medicamento à luz da Covid-19], Instituto Francês de Relações Internacionais, Paris, 3 jul. 2020. 7   “ Le médicament en Afrique: répondre aux enjeux d’accessibilité et de qualité” [Remédios na África: enfrentando os desafios da acessibilidade e da qualidade], Société de Promotion et de Participation pour la Coopération Économique (Proparco), dez. 2017. Disponível em: www.proparco.fr. 8   “Global Monitoring Report on Financial Protection in Health 2019” [Relatório de monitoramento global da proteção financeira da saúde 2019], OMS – Banco Mundial, Genebra – Washington, DC, 2019. 9   Ler Frédéric Le Marcis, “Les maladies du Nord migrent en Afrique” [Doenças do Norte migram para a África], Le Monde Diplomatique, mar. 2017. 10   “ Le médicament en Afrique”, op. cit. 11   Michael Conway, Tania Holt, Adam Sabow e Irene Yuan Sun, “Should Sub-sahara Africa make its own drugs?” [A África subsaariana deveria produzir seus próprios remédios?], McKinsey and Company, 10 jan. 2019. Disponível em: www.mckinsey.com. 12   “ Bonnes pratiques de fabrication des produits pharmaceutiques: grands principes” [Boas práticas de fabricação de produtos farmacêuticos: grandes princípios], OMS, 2014. Disponível em: www.who.int. 13   Ler Philippe Rivière, “Après Pretoria, quelle politique contre le sida?” [Depois de Pretória, qual política contra a aids?], La Valise Diplomatique, 20 abr. 2001. Disponível em: www. monde-diplomatique.fr. 14   Angola, Benin, Burkina Faso, Burundi, Chade, Djibouti, Eritreia, Etiópia, Gâmbia, Guiné, Guiné-Bissau, Lesoto, Libéria, Madagascar, Malawi, Mali, Mauritânia, Moçambique, Níger, República Centro-Africana, República Democrática do Congo, Ruanda, Senegal, Serra Leoa, Somália, Sudão, Sudão do Sul, Tanzânia, Togo, Uganda e Zâmbia (Fonte: Conferência das Nações Unidas sobre o Comércio e o Desenvolvimento). 15   “Why Kenyan manufacturers are walking a tightrope” [Por que os fabricantes quenianos estão na corda bamba], Business Daily, Nairóbi, 28 out. 2018. 16   Assefa Yibeltal, Peter S. Hill e Owain D. Williams, “Access to hepatite C virus treatment: lessons from implementation of strategies of increasing access to antiretroviral treatment” [Acesso ao tratamento do vírus da hepatite C: lições da implementação de estratégias para aumentar o acesso ao tratamento antirretroviral], International Journal of Infectious Diseases, v.70, Aarhus (Dinamarca), maio 2018.

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xos lá. Vale mais a pena buscar uma coexistência pacífica com os fabricantes de genéricos, especialmente nesses mercados em que as inovações são raras, ao contrário dos países ocidentais, onde há maiores margens de lucros.” Por meio de suas fundações corporativas, essas companhias cooperam com associações locais para melhorar o acesso da população à saúde.

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A BATALHA DO PREÇO

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m muitos países de renda baixa ou média, especialmente os africanos, os medicamentos custam de vinte a trinta vezes o preço internacional de referência para genéricos. É o caso de produtos básicos como o paracetamol.1 Isso se deve à falta de coerência e de eficácia dos sistemas de saúde, mas também a uma demanda desorganizada, a dificuldades logísticas e a uma cadeia de abastecimento concentrada que negligencia as zonas rurais. Associações como Médicos Sem Fronteiras (MSF) também questionam a política de preços praticada pelas companhias farmacêuticas. A associação pede, por exemplo, o fornecimento de bedaquilina, medicamento fabricado pela multinacional Johnson & Johnson, ao preço de US$ 1 por dia (US$ 180 por seis meses). Em países de renda baixa e média, esse medicamento contra tuberculose, vendido a US$ 400 por seis meses, está de fato “fora do alcance de 80% das pessoas que precisam dele para sobreviver”. 2 Em julho, a Johnson & Johnson chegou à metade do caminho, aceitando comercializá-lo por US$ 1,50 ao dia. Segundo a MSF, o preço deve refletir a parcela dos subsídios concedidos à pesquisa e ao desenvolvimento, bem como o papel da comunidade científica e de organizações ligadas ao combate à tuberculose resistente. A distribuição de medicamentos no setor privado (80% do abastecimento em países de renda média) é feita de forma diferente nos países de colonização francesa e naqueles de colonização inglesa. No primeiro caso, o preço de venda é administrado. Como na França, a circulação dos produtos é garantida por distribuidores atacadistas, que se abastecem junto aos fabricantes e devem oferecer às farmácias, com muita regularidade, toda a farmacopeia autorizada. Já nos países de colonização inglesa, os laboratórios escolhem um agente, o único autorizado a importar os medicamentos, que depois são revendidos a uma infinidade de empresas, que por sua vez os vendem aos varejistas – que não necessariamente precisam ser farmácias. “Na África de língua francesa, como na França, uma caixa de remédios prescritos tem o mesmo preço em todo o território. Na África de língua inglesa, os preços são livres”, explica Jean-Marc Leccia, presidente da Eurapharma, distribuidora francesa – tornada subsidiária da japonesa Toyota – que controla 40% da rede de distribuição da África ocidental. A liberalização de preços tem menos impacto onde as doações respondem por metade de todos os gastos do setor público com saúde. Esse é o caso dos 24 países de renda baixa da África subsaariana. O Fundo Global de Combate à Aids, Tuberculose e Malária (que gasta pelo menos US$ 1 bilhão por ano na compra de produtos de saúde) atua como um poderoso centro de compras, capaz de negociar simultaneamente com os oito fornecedores que dividem o mercado. Mas, mesmo entre industriais e grandes organizações humanitárias, as negociações são difíceis: os laboratórios limitam-se a suas margens, portanto a seus volumes. Para eles, os tratamentos menos utilizados – como o HIV pediátrico (em razão do declínio da doença entre as mães, portanto também entre as crianças) ou a combinação do antimalárico artesunato com a mefloquina (necessária apenas no Vale do Mekong) – só têm interesse se os preços forem elevados. Mesmo quando há demanda, ela não determina necessariamente os preços praticados. “A lógica de definição de preço por parte do fabricante não tem nada a ver com o número de pessoas que precisam do produto”, lamenta Gaëlle Krikorian, encarregada do programa de acesso a medicamentos da MSF. “Ela remete a uma espécie de perequação entre a população que tem renda suficiente na população total e o tipo de preço que é possível estabelecer.” Dessa forma, por meio de um hábil jogo de licenças, a gigante farmacêutica Gilead optou por comercializar seu tratamento contra a hepatite C por milhares de euros em países de renda média como o Marrocos, onde ele só é acessível para uma fração das centenas de milhares de pessoas doentes. Os tratamentos antigos, fáceis de produzir e menos lucrativos, são evitados pelos laboratórios, inclusive os genéricos: é o caso da penicilina e dos analgésicos, totalmente negligenciados em grande parte dos países africanos mais pobres. A morfina, que sofre controle internacional mas é de produção muito barata em sua forma oral, é quase impossível de encontrar em grande parte do continente, ao contrário da forma injetável importada, que é mais cara e está disponível no mercado privado. Em maio de 2019, a Assembleia Mundial da Saúde aprovou uma resolução pedindo transparência nos preços pagos por governos e compradores de produtos de saúde, bem como nos ensaios clínicos.3 “Uma coalizão muito interessante de países do Norte e do Sul, juntos, para dizer: ‘Precisamos de transparência; queremos saber quanto pagamos, quem paga o quê e quanto cada coisa custa’”, comenta Gaëlle Krikorian. Com o apoio de associações, África do Sul e Uganda fizeram campanha em favor da resolução, enquanto Alemanha (que propôs 25 emendas) e Reino Unido se opuseram a ela. (S.C. e L.S.) 1   R achel Silverman, Janeen Madan Keller, Amanda Glassman e Kalipso Chalkidou, “Tackling the triple transition in global health procurement” [Enfrentando a tripla transição no abastecimento global de saúde], Center for Global Development, Washington, DC/Londres, 17 jun. 2019. Disponível em: www.cgdev.org. 2   “ J&J doit rendre les médicaments antituberculeux disponibles pour tous à 1 dollar par jour” [J&J deve disponibilizar medicamentos contra tuberculose para todos por 1 dólar ao dia], Médicos Sem Fronteiras, Paris, 26 abr. 2019. 3   “ Assemblée mondiale de la santé – Actualités du 28 mai 2019 – Journée de clôture” [Assembleia Mundial da Saúde – Atualização em 28 de maio de 2019 – Dia de encerramento], Organização Mundial da Saúde, Genebra, 28 maio 2018.


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ÁRABES DIVIDIDOS SOBRE A QUESTÃO PALESTINA

A lua de mel entre os países do Golfo e Israel Rompendo com a política de isolamento e boicote a Israel que prevalecia na região havia mais de cinquenta anos, os Emirados Árabes e o Bahrein assinaram um acordo de reconhecimento mútuo com Tel Aviv no dia 15 de setembro. Enquanto a Arábia Saudita reluta em dar esse passo, outros países árabes estão sendo encorajados pelos Estados Unidos a também se envolver na normalização POR AKRAM BELKAÏD*

© Juliana Russo

da uma “frente de recusa” de nove países2 pedindo a continuação da luta contra Israel para recuperar os territórios perdidos durante a Guerra dos Seis Dias (5 a 10 de junho de 1967). Os três “nãos” que moldaram as relações árabe-israelenses até o fim da década de 1970 foram então proclamados ali: “não” à paz com Israel, “não” ao seu reconhecimento e “não” às negociações. A tripla normalização dessas últimas semanas soou a sentença de morte para a iniciativa de paz árabe adotada na cúpula da Liga Árabe em Beirute em março de 2002. Esta previa o estabelecimento de “relações normais” com Israel em troca de uma retirada total dos territórios ocupados desde 1967 e de uma solução equitativa para o problema dos

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m 23 de outubro, após vários meses de discussões e de mediação norte-americana, Israel e Sudão concordaram em estabelecer relações diplomáticas.1 Esse entendimento sucedeu àqueles alcançados entre Tel Aviv e duas monarquias do Golfo, os Emirados Árabes Unidos (EAU) e o Bahrein, com a assinatura dos Acordos de Abraham em 15 de setembro. Em poucas semanas, três membros da Liga dos Estados Árabes, juntando-se ao Egito (1978) e à Jordânia (1994), quebraram o tabu do tatbi’, quer dizer, a normalização com Israel, e abandonaram a mouqata’a, ou seja, seu boicote. A aproximação entre Tel Aviv e Cartum é um símbolo ainda mais forte porque foi na capital sudanesa que, em 1º de setembro de 1967, foi constituí-

refugiados palestinos. Oficialmente, a posição da Liga permanece definida pelo “plano Abdallah”, nome do falecido monarca saudita que esteve na origem da proposta. Mas o equilíbrio de poder nessa instância agora favorece os defensores da normalização, incluindo os Emirados Árabes Unidos, o Bahrein, o Egito e, acima de tudo, mesmo que ainda não a reconheça oficialmente, a Arábia Saudita. Para Riad, como para Abu Dhabi e Manama, Tel Aviv é um aliado lógico e seguro na guerra fria que os opõe a Teerã. Essas monarquias acreditam que Washington não é mais o protetor confiável de outrora, aquele que, por exemplo, organizou a resposta depois que o Exército iraquiano invadiu o Kuwait em junho de 1990.

UM ESCUDO CONTRA O IRÃ Em sua época, Barack Obama causou consternação, para não dizer pânico, no Golfo ao trabalhar pela assinatura, em 14 de julho de 2015, de um acordo sobre a energia nuclear do Irã que suspendia as sanções impostas a Teerã. É verdade que seu sucessor, Donald Trump, as restabeleceu após ordenar a retirada norte-americana do Acordo de Viena, em 8 de maio de 2018. Mas sua propensão a exigir que as monarquias paguem “em dinheiro” por sua proteção e a reiterar que os Estados Unidos não deveriam mais se envolver em “guerras sem fim” convenceu os líderes do Golfo de que sua região não era mais tão estratégica para os Estados Unidos. Desde então, a normalização com Israel é vista como uma questão de sobrevivência diante da ameaça do Irã, ou mesmo daquela de um Iraque que está se rearmando. E o resto do mundo árabe é instado a seguir essa mudança de curso. Em 9 de setembro, sob pressão da Arábia Saudita, dos Emirados Árabes e do Egito, uma moção de resolução da Liga Árabe condenando a normalização com Israel foi enterrada em uma reunião regular dos ministros de Relações Exteriores, para grande desgosto dos palestinos – autores da proposta –, que em consequência decidiram renunciar à presidência do conselho da Liga (ler boxe). “Os países do Golfo fazem a lei dentro da Liga Árabe. Eles têm dinheiro, enquanto, em outros lugares, existe crise econômica ou guerra civil. Para agradar à Arábia Saudita e aos Emirados e obter ajuda financeira, basta parar de falar dos palestinos”, confidencia um diplomata magrebino habituado às cúpulas dessa entidade, nas quais, já há vinte anos, a linha de conduta em relação à Palestina era ditada pelos “falcões” (Argélia, Iraque, Sudão, Síria e Iêmen). Sinal dos tempos, ninguém mais ouve falar do gabinete de boicote a Israel. Mas é verdade que sua sede fica em Damasco... Rápido para reclamar os louros da evolução em curso, Trump tuitou em 24 de outubro que “cinco outros países [árabes] pretendem seguir o exemplo” de Abu Dhabi, Cartum e Manama. Além do Sultanato de Omã, da Mauritânia, do Catar e do Marrocos (os dois últimos já mantendo relações informais com Tel Aviv), o inquilino da Casa Branca esperava convencer a Arábia Saudita a oficialmente dar esse passo, mas a prudência do rei Salman bin al-Saud prevaleceu. Em 2018, este último já convocava o príncipe herdeiro, Mohammed bin Salman (“MBS”), após ele ter multiplicado as declarações favoráveis a Israel e ao “direito dos israelenses de ter sua própria terra”.3 Em janeiro, quando o Ministério


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uma conferência sobre o progresso da “paz abraâmica” no Golfo e no Oriente Médio. Lá, uma agência de comunicação promoveu em menos de dois anos um encontro entre mulheres líderes dos dois países – incluindo uma representante de alta patente do Exército israelense. Em Dubai, grandes hotéis aguardam ansiosamente o desembarque de legiões de turistas israelenses, que em breve deverão se beneficiar da isenção de visto. Nessa cidade mercantil, uma delegação de empresários liderada por Erel Margalit, um grande nome do capital de risco israelense, foi recebida com todas as honras. “É como se apaixonar”, chegou a declarar Youssef Abdulbari, astro apresentador da Dubai TV, após receber Margalit e ficar em êxtase com o aumento do intercâmbio com os israelenses.7 O idílio é ainda mais envolvente quando se pensa que a juventude dourada dos Emirados é fascinada por Tel Aviv, cujas noites festivas tendem a substituir as de Beirute ou do Cairo. E os palestinos em tudo isso? Aqueles que vivem nos Emirados Árabes Unidos, às vezes desde os anos 1950, são forçados a se manter discretos. Um deles nos disse, sob condição de anonimato, que pensa em ir morar no Kuwait, “monarquia que, ao contrário das vizinhas, recusa qualquer relacionamento com Tel Aviv enquanto as terras palestinas não forem devolvidas”.8 Se as autoridades dos Emirados insistem na ajuda financeira e humanitária que continuam a conceder aos palestinos, em particular para lutar contra a Covid-19, o discurso é menos prolixo na questão política.

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das Relações Exteriores da Arábia Saudita elogiou o “plano do século” elaborado pelo governo de Trump para a solução da questão palestino-israelense,4 o soberano se apressou em tranquilizar os palestinos evocando... a iniciativa do rei Abdallah. Para o velho monarca, trata-se antes de tudo de manter as aparências e garantir que essa questão não agrave uma situação interna já tensa pelas incertezas sobre sua sucessão e pelo desejo do príncipe herdeiro de abalar a ordem estabelecida.5 No Twitter, rede social que oferece um paliativo à ausência de liberdade de expressão, os sauditas estão divididos. Se alguns se mostram claramente a favor de uma reaproximação com Israel, julgando severamente os líderes palestinos, outros, ao contrário, a recusam de forma veemente e exigem a restituição de Jerusalém Oriental aos palestinos. De acordo com o bilionário israelo-americano Haim Saban, o próprio “MBS” estaria ciente dos perigos de uma normalização que poderia “fazer que ele fosse morto pelo Irã, pelo Catar ou por [seu] próprio povo”.6 Isso sem esquecer que outros membros da família real poderiam usar esse pretexto para impedi-lo de assumir o trono. Hostil ao Irã, mas também à confraria da Irmandade Muçulmana, Mohammed bin Zayed al-Nahyan (“MBZ”) é a outra locomotiva de normalização com Israel. Mas o príncipe herdeiro e governante de fato dos Emirados Árabes é menos limitado que seu homólogo saudita por considerações domésticas. Pouco numerosos, fundidos em uma população estrangeira que representa 90% dos 6 milhões de habitantes da federação, seus súditos se acostumaram ao longo das últimas duas décadas a uma normalização em pequenos passos. Nos palácios de Abu Dhabi e Dubai, joalheiros israelenses mantinham discretamente suas lojas. Nas principais conferências organizadas nas duas cidades, não era incomum encontrar acadêmicos israelenses que haviam vindo como “observadores convidados”. Em abril de 2011, após meses de intenso lobby, Abu Dhabi acolheu a sede da nova Agência Internacional de Energias Renováveis (Irena), após se comprometer a autorizar a abertura de uma representação oficial israelense junto a essa instituição. Contudo, desde agosto reina o descontrole. Não passa uma semana sem que a imprensa anuncie uma reunião ministerial bilateral ou um evento que envolva os Emirados e Israel. Aqui, o Emirates Center for Strategic Studies and Research (Centro Emirates para Estudos Estratégicos e Pesquisa – ECSSR) está organizando

MANTER AS APARÊNCIAS Para “MBZ”, uma das contrapartidas da normalização é o abandono por Tel Aviv do projeto de anexação da Cisjordânia, a que o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu responde que está simplesmente “adiado”. Dessa forma, esse falso diálogo de surdos, destinado a salvar as aparências, deve durar enquanto a Autoridade Palestina, atualmente liderada por Mahmoud Abbas, se opuser a uma “paz” pouco constrangedora para Israel. Se um líder mais complacente lhe suceder e concordar em fazer novas concessões, é certo que nenhuma licitação pró-palestina virá dos Emirados. Para Abu Dhabi, Mohammed Dahlan, ex-líder do Fatah e ex-chefe da segurança preventiva em Gaza, é o candidato ideal. Morando em Dubai, em boas relações com Abbas, ele não criticou o acordo entre Emirados Árabes Unidos e Israel. Ele até teria sido um dos arquitetos dele. No Bahrein, a normalização apresenta uma cara que evoca tanto o ca-

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AMARGURA PALESTINA POR OLIVIER PIRONET*

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a Palestina, a reaproximação oficial entre os Emirados Árabes Unidos (EAU), o Bahrein, Sudão e Israel gerou uma enxurrada de duras críticas. Elas são proporcionais ao sentimento de “abandono” experimentado por vários anos. O presidente da Autoridade Palestina (AP) da Cisjordânia, Mahmoud Abbas, denuncia a “traição” das duas monarquias do Golfo, às quais ele refuta o direito de “falar em nome do povo palestino” ao decidir seu destino contra sua vontade. Por sua vez, Jibril Rajoub, secretário-geral do comitê central da Fatah, o partido de Abbas que forma a espinha dorsal da AP, lamenta um ato “desonroso e vergonhoso”. Nabil Chaath, líder importante da Organização para a Libertação da Palestina (OLP), conselheiro especial de Abbas e ex-ministro das Relações Exteriores, chama os acordos de normalização de “facada pelas costas” e acena com a ameaça de uma “Terceira Intifada”. Já o Hamas, movimento islâmico no poder na Faixa de Gaza, acusa Abu Dhabi e Manama de “oferecer um cheque em branco” a Israel para a continuação da ocupação. Em entrevista que não passou despercebida, o embaixador da Palestina na França, Salman el-Herfi deixa transparecer toda a sua amargura: acredita que os Emirados finalmente “mostraram sua verdadeira face” e chegaram mesmo a “se tornar mais israelenses que os israelenses”.1 Finalmente, os palestinos “condenam” em uníssono o “pecado político” do Sudão, que por muito tempo defendeu ardorosamente sua causa. No terreno, o Exército israelense está criando asas. Segundo um relatório da OLP, entre 15 de setembro (dia da assinatura dos Acordos de Abraham entre Emirados, Bahrein e Israel) e 15 de outubro, ele abriu fogo 240 vezes sobre os territórios ocupados. Matou dois palestinos e feriu uma centena, prendeu quase quinhentas pessoas, incluindo crianças, demoliu dezenas de casas e realizou 370 incursões.2

*Olivier Pironet  é jornalista do Le Monde Diplomatique. 1   C f. Armin Arefi, “L’ambassadeur de Palestine tire à boulets rouges sur les Émirats” [O embaixador palestino atira bolas vermelhas nos Emirados], Le Point, Paris, 12 out. 2020. 2   “ PLO: Israel attacks escalate after normalisation with Arab states” [OLP: os ataques de Israel aumentam após a normalização com os Estados árabes], Middle East Monitor, 24 out 2020. Disponível em: www.middleeastmonitor.com.

so dos Emirados quanto o da Arábia Saudita. Como os primeiros, a pequena ilha do Golfo, governada por uma monarquia sunita, há muito realizou uma normalização de fato, tendo até acolhido uma missão israelense não oficial em 2009.9 Mas a população, na maioria xiita, é muito menos condescendente que a dos Emirados Árabes Unidos. Embora a repressão feroz ao movimento de protesto popular de 2011 tenha enfraquecido a oposição, esta não desapareceu e, como parte da opinião pública saudita, foi rápida em condenar a reaproximação com Israel. Os dados são totalmente diferentes para o Sudão. Em um contexto de transição democrática incerta,10 os generais no poder têm três prioridades: que seu país seja retirado da lista de apoiadores do terrorismo, que deixe de sofrer sanções internacionais ligadas em particular aos massacres que ocorreram em Darfur e que tenha acesso a financiamentos internacionais. A normalização com Israel garante a Cartum o apoio de Washington para alcançar esses objetivos, mas provoca tensões entre os militares e a coalizão de partidos e de organizações que liderou o protesto contra o regime de Omar al-Bashir em 2019. Essa coalizão acredita que não cabe a um governo de transição to-

mar tal decisão. Resta saber até onde irá a contestação.  *Akram Belkaïd  é jornalista do Le Monde Diplomatique. 1   Ler “Rapprochement calculé avec Israël” [Aproximação calculada com Israel], Le Monde Diplomatique, maio 2020. 2   Argélia, Egito, Iraque, Jordânia, Kuwait, Líbano, Marrocos, Síria e Sudão. 3   Jeffrey Goldberg, “Saudi Crown Prince: Iran’s supreme leader ‘makes Hitler look good’” [Príncipe herdeiro saudita: líder supremo do Irã “faz Hitler parecer bom”], The Atlantic, Washington, DC, 2 abr. 2018. 4   Ler Alain Gresh, “Israël-Palestine, un plan de guerre” [Israel-Palestina, um plano de guerra], Le Monde Diplomatique, mar. 2020. 5   Ler Florence Beaugé, “Une libération très calculée pour les Saoudiennes” [Uma liberação bem calculada para os sauditas], Le Monde Diplomatique, jun. 2018. 6   Conferência on-line “Israel’s security and prosperity in a Biden White House” [Segurança e prosperidade de Israel em uma Casa Branca de Biden], Florida Jewish Vote Team, 21 out. 2020. 7   Isabel Kershner, “‘It’s like falling in love’: Israeli entrepreneurs welcomed in Dubai” [“É como se apaixonar”: empreendedores israelenses bem-vindos em Dubai], The New York Times, 7 nov. 2020. 8   C f. Mona Farrah, “Les irréductibles Koweïtiens rejettent la normalisation avec Israël” [Os irredutíveis kuwaitianos rejeitam a normalização com Israel], Orient XXI, 13 out. 2020. Disponível em: https://orientxxi.info. 9   Barak Ravid, “Israel’s secret embassy in Bahrain” [Missão secreta de Israel no Bahrein], Axios, 21 out. 2020. Disponível em: www. axios.com. 10   Ler Gilbert Achcar, “Où va la ‘révolution de décembre’ au Soudan” [Para onde está indo a “revolução de dezembro” no Sudão?], Le Monde Diplomatique, maio 2020.


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MÁXIMA INFLUÊNCIA COM O MÍNIMO ESFORÇO

Fantasmas em torno de uma “ofensiva chinesa” nas Nações Unidas Na esteira de Donald Trump, diversos comentaristas estimam que a China está no rumo de fagocitar a ONU. Se é difícil medir uma influência difusa, os dados objetivos mostram que a realidade está longe de corresponder à fantasia. Por ora, com objetivos comerciais ou para legitimar suas ações, Pequim visa apenas comandar algumas agências POR JEANNE HUGHES*

SUB-REPRESENTAÇÃO NAS ENGRENAGENS No entanto, conseguir declarações sobre as consequências dessa transformação é difícil: vinculados por contrato a um dever de discrição, cuja transgressão pode lhes custar o em-

prego, os funcionários da ONU são desconfiados; o mesmo ocorre com os diplomatas, embora estes nada tenham a temer, exceto a ira chinesa. Quase todos pedem anonimato. “A China age ao longo do tempo, de forma muito organizada e sistêmica”, comenta P.F., diplomata francês em Nova York. “O modo de funcionamento da sociedade chinesa é o planejamento, e isso fica evidente em sua abordagem das questões internacionais.” Integrada à ONU em 1971, substituindo Taiwan, a República Popular da China foi por muito tempo deixada de lado, apesar de seu estatuto de membro permanente do Conselho de Segurança. Apenas em 2003 o país obteve, com Shi Jiuyong, a presidência da CIJ. A partir daí, seguiu embalada. Em 2007, Margaret Chan, de Hong Kong, assumiu a direção da primeira agência especializada da ONU, a Organização Mundial da Saúde (OMS) – uma posição de influência, que permitiu elevar a medicina tradicional chinesa ao nível de norma internacional em 2018, um ano após o fim de seu mandato. Durante esse período, Taiwan foi integrado como observador às assembleias gerais da OMS, antes de ser excluído, sob pressão chinesa, após a eleição para a presidência da ilha, em 2016, de Tsai Ing-wen, a presidenta do Partido Democrático Progressista, independentista. O ano de 2007 também foi o da chegada de Sha Zukang à frente do importante Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais (Desa), onde foram elaborados os dezessete Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, oficialmente adotados pela Assembleia Geral em 2015. Nesse ano, sem chamar muita atenção, a China já controlava quatro agências especializadas. Essa situação ainda perdura, mas os olhares mudaram, e crescem as preocupações.

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“É

possível contar nos dedos de uma mão os altos funcionários chineses nas Nações Unidas. E não é por falta de cargos de responsabilidade.” O ano é 2005. Wang Jingzhang, diplomata chinês aposentado que por muito tempo foi secretário do Comitê de Sanções para o Iraque, da ONU, queixa-se na imprensa de seu país.1 A pequena corte de funcionários enviada pela China a Nova York é composta, em sua maioria, por tradutores e redatores. Os não linguistas “trabalham dispersos em diversos serviços técnicos ou gerais”. Segundo ele, das oito direções do Secretariado das Nações Unidas, apenas o Departamento para Assembleia Geral e Gestão de Conferências, responsável pela gestão das abarrotadas reuniões, é às vezes deixado para um funcionário chinês, que pode chegar ao posto de secretário-geral adjunto. Na ONU, os chineses sentem-se como se fossem a quinta roda da carroça. Quinze anos depois, o cenário é muito diferente: vários chineses ocupam cargos de direção, por exemplo, na Corte Internacional de Justiça (CIJ) e na União Internacional de Telecomunicações (UIT) (ver boxe). Alguns analistas preocupados avaliam que é raro um país conseguir tanta influência em tão pouco tempo. É como se, após uma longa bebedeira em comemoração ao “fim da história”, o Ocidente acordasse de ressaca em 2020 e percebesse que, na mesa da ONU, quem serve o café da manhã é a China.

Porém, por mais estranho que possa parecer, os números mostram que a China é bastante sub-representada nas engrenagens da organização:2 em 2018, entre as 37.505 pessoas empregadas apenas pelo Secretariado Geral (excluídas as Forças de Manutenção da Paz), havia apenas 546 funcionários chineses, entre os quais muitos tradutores (132), sendo o mandarim uma das seis línguas oficiais da ONU. A China fica atrás da Índia (571), do Iraque (558) e do Reino Unido (839), e muito longe da França (1.476) e dos Estados Unidos (2.531). Embora, considerados todos os setores e departamentos da ONU (excluídas as Forças de Paz), o número de chineses tenha dado um salto entre 2009 e 2019, enquanto o de norte-americanos caiu, as hierarquias permanecem. A China responde por 1,2% dos efetivos totais (contra apenas 1% dez anos antes), e os Estados Unidos, por 5% (contra 5,8%).3 É difícil afirmar que há uma invasão chinesa na ONU. “Ao contrário de alguns países, que têm uma presença simultaneamente muito ampla e muito diluída, os chineses concentram-se em algumas direções”, explica P.F., “em posições de destaque, nem sempre de nível muito elevado, mas que têm uma dimensão prescritiva ou são decisivas para o funcionamento da administração. E eles sabem muito bem identificá-las.” Um exemplo emblemático: o Desa. Ligado ao Secretariado, ele constitui um feudo chinês há catorze anos, com três dirigentes sucessivos. Embora pouco conhecido, esse departamento é o principal autor de toda a literatura da ONU: seus relatórios e recomendações servem de base para as negociações e os trabalhos das comissões da Assembleia Geral e do Conselho Econômico e Social (Ecosoc), órgão consultivo da ONU. Suas publicações anuais sobre

os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e suas Perspectivas da Economia Mundial são amplamente usadas em todo o mundo, muito além dos corredores da ONU. “A maior parte das decisões e das iniciativas dessas entidades [do Desa] vai no sentido de interesses diretos da China, ou pelo menos não se opõe a eles”, continua o diplomata. “É uma estratégia de posicionamento que se concentra também nos textos. Uma resolução sobre um assunto específico que emprega os elementos de linguagem de um texto terá influência jurídica sobre a forma como os Estados serão vinculados e sobre a constituição de normas futuras.” Entre os textos produzidos por esse departamento, é possível conhecer “O modelo chinês de sucesso econômico”4 – elogiado, é claro –, ou ser apresentado às Novas Rotas da Seda (BRI), o grande projeto do Estado chinês, como um meio de “cooperação para o desenvolvimento sustentável”.5 Sub-repticiamente, a China tenta gerir sua imagem por meio do domínio, ou pelo menos de um controle, do discurso. Assim, sua “capacidade de fazer parte de objetivos gerais, como os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, nunca é realmente contestada”, enfatiza nosso diplomata, “embora não seja possível dizer que a indústria chinesa é a menos poluente nem que os compromissos assumidos por Xi Jinping com o meio ambiente impressionam. No entanto, a China é mencionada em toda parte como uma grande defensora do meio ambiente, da biodiversidade etc. Em termos de discurso e de imagem, o efeito é convincente”. Estratégico, o Desa é também, em suas próprias palavras, “um dos pontos de entrada para ONGs que buscam um estatuto consultivo junto ao Ecosoc. Ao apoiar o Comitê das ONGs, ele [as] orienta sobre a melhor forma de contribuir com o trabalho do Conselho”.6 E como as questões ligadas aos “povos autóctones” também são de responsabilidade do Desa, a direção chinesa está no lugar mais privilegiado quando um indesejável ativismo tibetano ou uigur se manifesta... Em 2017, Wu Hongbo, então secretário-geral adjunto, destacou-se ao jogar a carta da suspeita de terrorismo para expulsar, por meio das forças de segurança, o ativista uigur Dolkun Isa, que se dirigia à sessão anual do Fórum Permanente para Questões Indígenas da ONU – um gesto reivindicado na televisão estatal chinesa pelo próprio Wu Hongbo. No ano seguinte, seu sucessor, Liu Zhenmin, tentou repetir a manobra, porém sem sucesso, graças à intervenção das missões diplomáticas da Alemanha e dos Estados Unidos.


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O último relatório da Organização das Nações e Povos Não Representados (Unpo),7 uma ONG heteróclita que reúne tanto o Governo Provisório do Estado de Saboia como o Congresso Mundial dos Uigures, descreve em detalhes todas as técnicas de bloqueio burocrático desenvolvidas contra ativistas por diplomatas e funcionários do Desa, do Ecosoc e até do Conselho de Direitos Humanos da ONU: credenciamentos que se arrastam, intimidação, monopolização do tempo de fala... Mais do que qualquer outro país, a China está sempre ali, ao lado da Rússia e do Irã. Em março de 2018, foi rejeitada uma resolução de procedimento (que requer nove votos sem veto) permitindo que o Alto Comissário para os Direitos Humanos informasse o Conselho de Segurança sobre as violações dos direitos humanos na Síria, por causa do voto contrário da Costa do Marfim. Muitos viram nisso o resultado de uma pressão chinesa nos bastidores. Em outubro, a China conseguiu que fosse rejeitada uma resolução da Assembleia Geral contra a repressão e a violação dos direitos dos uigures por 57 votos (entre eles os da Arábia Saudita e dos Emirados Árabes Unidos), embora tenha perdido um pouco de terreno: 39 votaram a favor, ao passo que um ano antes eles eram 23. A eleição em 2019 – no primeiro turno – de Qu Dongyu para a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) foi vista como mais um símbolo dessa influência. Segundo alguns analistas, a China teria se beneficiado da retirada do candidato camaronês em troca do perdão de uma dívida de US$ 70 milhões.8 Jean-Jacques Gabas, pesquisador e especialista em políticas agrícolas chinesas na África, vê nisso um voto de sanção contra o Ocidente por parte dos países africanos, mais do que o sinal de uma real atração pela China. A aposta, para esses países, seria fortalecer seu poder de negociação no cenário internacional e aumentar a ajuda, o investimento direto chinês e o comércio. “Até a epidemia, o que emergia dos discursos de Qu Dongyu era uma forte ênfase nas novas tecnologias, no 5G e no desejo de vender um modelo de intensificação do tipo ‘revolução verde’, como a conhecemos na década de 1960, com sementes melhoradas, pesticidas etc. Havia pouco espaço para a agroecologia, a biodiversidade. O novo diretor-geral colocava a China em um papel de liderança”, explica Gabas. Uma política mais comercial do que justa, voltada a escoar insumos agrícolas – a China é o maior produtor mundial de fosfatos. Desde a crise, Gabas nota que surgi-

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© Amanda Daphne

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UMA POLÍTICA MERCANTIL

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ram questões relacionadas ao bem-estar social e à produção local. “Há uma nova dinâmica. Qu Dongyu segue a tendência, que se volta para um questionamento de práticas anteriores, e ecoa o discurso de muitos Estados africanos diante dos efeitos negativos da Covid-19.” O modelo de desenvolvimento agrícola preconizado pela China está de fato longe de ser atraente para as populações africanas em pleno crescimento demográfico e que devem continuar majoritariamente rurais até 2050. Então, essa mudança de discurso é um desejo de ouvir esses países ou um golpe de comunicação? Desde a pandemia, a China não está muito bem na imprensa: os depoimentos dos africanos de Cantão jogados nas ruas pela polícia em abril semearam a ira no continente, rendendo ao embaixador chinês uma convocação das autoridades nigerianas.9 Outra instância de interesse da ONU: a UIT, reino de Houlin Zhao desde 2015. Ela se ocupa da gestão do espectro das frequências em escala global, da atribuição de órbitas de satélites (qualquer pessoa que deseje enviar um satélite ao espaço deve pedir a ela), bem como da internet, que entrou em seu campo de atuação nos anos 2000 – uma ampliação de seu campo de competência que gerou polêmica.10 A China é suspeita de querer definir as normas segundo sua conve-

niência. O 5G é há muito tempo alvo de uma disputa para saber quais frequências lhe atribuir no espectro, sobretudo entre os Estados Unidos (que queriam as frequências mais altas, em torno de 28 GHz) e a China (abaixo 6 GHz). “As redes de telecomunicações e de informática requerem normas internacionais para que os equipamentos possam se comunicar”, explica Marceau Coupechoux, professor da Télécom Paris e da École Polytechnique. “Quanto mais uma norma (ou um padrão) é compartilhada por um grande número de equipamentos, mais a rede tem interesse para seus usuários. Desse modo, a batalha entre países e entre empresas é travada em grande parte nos organismos de padronização. Não admira que as grandes potências, entre elas a China, tentem exercer sua influência sobre esses órgãos.” Entretanto, também aqui parece complicado medir a extensão dessa influência. Gilles Brégant, diretor da Agência Nacional de Frequências (ANFR) da França, que representa o país na UIT-R, órgão responsável por forjar as normas internacionais de radiocomunicações, tem uma abordagem moderada: “Os fabricantes têm interesse em obter faixas mundiais. O trabalho de harmonização da UIT consiste em encontrar pontos comuns que permitam, por exemplo, que seu telefone francês funcione nos

Estados Unidos, e vice-versa. Não há disputa pelo objetivo comum a ser alcançado nem tentativas de impor as faixas defendidas pelos norte-americanos ou pelos chineses para fazer faixas comuns”. Também não haveria mais problemas estratégicos em particular para os satélites: “Muitos países os têm, e é um sistema bastante ‘continental’: as frequências acima da Europa devem ser as mesmas que na Turquia, mas é menos grave se elas forem diferentes acima de Sichuan [na China]... A situação é mais complexa para as constelações de satélites, mas, hoje, não existem megaconstelações chinesas no mesmo nível de desenvolvimento que as norte-americanas OneWeb ou SpaceX”. Para Brégant, apenas a direção encarregada dos programas para os países em desenvolvimento, a UIT-D, poderia estar em posição de promover as tecnologias chinesas. Mas no momento ela tem uma diretora norte-americana... Em compensação, o Departamento de Operações de Manutenção da Paz (Domp), vinculado ao Secretariado da ONU, parece negligenciado pela China. É verdade que o país contribui ali com mais tropas do que os outros quatro membros permanentes do Conselho de Segurança.11 Não há dúvida de que essa presença maciça lhe permite acompanhar seus investimentos, sobretudo na África, on-


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de se desenvolveram seis das treze operações de paz realizadas em 2020. Sua influência dentro do próprio organismo, porém, não parece ser das maiores. “Essa é uma das grandes perguntas que todos se fazem aqui”, confessa B.S., um funcionário africano do Domp. “Mas a China não tenta assumir um papel de potência.” Esse departamento, de longe o mais pesado em termos de despesas, continua sendo reserva privada da França, que o lidera desde 1997. “Corriam rumores, com a chegada de António Guterres [o atual secretário-geral da ONU, eleito em 2016], de que um chinês havia sido sondado para sua direção, mas os ocidentais ficaram em alerta e se uniram contra a China.” Finalmente, e sem surpresa, o francês Jean-Pierre Lacroix foi nomeado. Quanto aos instrumentos orçamentários, a China ainda não tomou conta deles. É verdade que há quinze anos suas contribuições (obrigatórias) para o orçamento da ONU não passavam de 2% do total, e hoje ela é o único país além dos Estados Unidos a exibir uma cota de dois dígitos: 12% – contra 22% dos norte-americanos.12 A China é a principal contribuinte da Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento Industrial (Onudi), fornecendo 19,8% de seus recursos,13 e da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), em cujo orçamento tem uma participação de 15,49%14 – duas agências que os Estados Unidos abandonaram, respectivamente, em 1996 e em 2018. Além disso, ela paga bem e no prazo: na primavera, o país já havia quitado toda a sua cota do orçamento de 2020.

CONTRIBUIÇÕES VOLUNTÁRIAS LIMITADAS Ocorre que o nível dessas cotas não fornece nenhuma informação sobre a estratégia do país. Na verdade, elas são em grande parte determinadas por regras obrigatórias consagradas na Carta das Nações Unidas, às quais todos os Estados-membros aderem, e estão diretamente ligadas ao PIB de cada nação. Elas são pagas em bloco e não são atribuídas a despesas específicas. Apenas as contribuições voluntárias, destinadas a despesas específicas, podem dar uma indicação das preferências chinesas. Após Donald Trump, muitos acusaram a China de manter a OMS à sua mercê financeira. Porém, embora sua contribuição obrigatória à entidade – proporcional ao PIB e à população – seja alta (22% do total), a voluntária é baixa (1,4%). Os maiores contribuintes são os Estados Unidos, a Fundação Bill e Melinda Gates, o Reino Unido, a Alemanha e o Japão.15

Pesquisador do Instituto de Estudos Internacionais de Xangai, Mao Ruipeng analisou as contribuições pagas ao Sistema de Desenvolvimento das Nações Unidas (UNDS), responsável em especial pela aplicação dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável.16 Segundo o pesquisador, esses fundos teriam permitido à China solicitar mais envolvimento no projeto Novas Rotas da Seda. De fato, o UNDS foi a primeira instância dentro da ONU a assinar um memorando de entendimento sobre o projeto, em 2016, concedendo-lhe a legitimidade desejada pela China. Como esse departamento tem a particularidade de ter suas entradas em quase todos os órgãos da ONU, Mao Ruipeng dá a entender que a China teria aproveitado a oportunidade para obter, em troca de gentilezas, a adesão de treze agências e programas à iniciativa Novas Rotas da Seda, entre elas a FAO, o Desa, a OMS, o Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/aids (Unaids) e o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur). Mas o pesquisador reconhece os limites de seu estudo: “O financiamento do UNDS pela China é relativamente baixo se comparado aos doadores tradicionais” – isto é, a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), que reúne os países capitalistas desenvolvidos. Em suma, as contribuições voluntárias chinesas são tão baixas que é difícil generalizar e concluir que o país esteja comprando as instituições. “A Alemanha dá muito dinheiro voluntariamente e gasta infinitamente mais do que a China”, explica um alto funcionário que trabalha na Quinta Comissão da Assembleia Geral, encarregada das questões orçamentárias. “Nesse estágio, o orçamento é, para esta última, um instrumento de presença, de legitimidade, mas não de influência, o que não significa que isso não possa mudar dentro de alguns anos.” Diplomata chinês e ex-funcionário da Unesco, Xu Bo até acredita que “o aumento das contribuições obrigatórias chinesas foi mais aceito do que desejado. No DNA chinês, não gostamos muito de dar dinheiro: preferimos mantê-lo conosco a fim de ajudar a acabar com a pobreza na própria China”. Sub-representação do número de funcionários, influência limitada nos círculos em que seus interesses comerciais estão em jogo, fraco uso de instrumentos orçamentários... “Pode-se ter a impressão de que a presença chinesa na ONU é relativa, desproporcional à sua economia ou população”, observa P.F. “Porém, não se deve esquecer que a China muitas vezes fala como membro do G77, grupo de países em desenvolvimento no

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qual ela lidera um pacote de 150 votos. Muitas vezes, ela não aparece na origem de uma decisão, mas é o motor de tais decisões quando esses Estados votam em assuntos que não lhes dizem respeito diretamente.” A missão diplomática chinesa permanente na sede, em Nova York, não respondeu a nossas solicitações. Mas Xu Bo rejeita essas ideias de voto por procuração e de desejo de dominação: “Sempre que há um confronto, fala-se em ofensiva chinesa para mudar a ordem mundial. Isso não é verdade. Enquanto os norte-americanos assumem o papel de policiais do mundo, a China paga seus tributos e se beneficia da existência de uma instituição como a ONU”. Essa posição lembra a do presidente Xi Jinping, que em 22 de setembro mais uma vez defendeu o “multilateralismo” na Assembleia Geral da ONU. Esse multilateralismo em versão chinesa que lhe cai tão bem...  *Jeanne Hughes  é jornalista. 1   W an Jingzhang, “La vie secrète des employés chinois de l’ONU” [A vida secreta dos funcionários chineses da ONU], Radio China International, 20 dez. 2005. Disponível em: http:// news.cri.cn. 2   “Composition du Secrétariat: données démographiques relatives au personnel: rapport du secrétaire général, A/74/82” [Composição do Secretariado: dados demográficos relativos ao pessoal: relatório do secretário-geral, A/74/82], Assembleia Geral das Nações Unidas, Nova York, 22 abr. 2019. Disponível em: https://undocs.org. 3   “Chief Executives Board for Coordination” [Conselho Diretor Executivo], ONU, 31 dez. 2009 e 2019. Disponível em: www.unsystem.org. 4   “ Le modèle chinois de réussite économique” [O modelo chinês de sucesso econômico], Desa, ONU, 23 fev. 2012.

5   “ Jointly building the ‘Belt and Road’ towards sustainable developments goals” [Construindo juntos as Novas Rotas da Seda rumo aos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável], ONU, 16 ago. 2016. 6   C f. “Bureau de l’appui aux mécanismes intergouvernementaux et de la coordination” [Escritório de Apoio aos Mecanismos Intergovernamentais e da Coordenação], Desa. Disponível em: www.un.org. 7   “Compromised space: Bullying and blocking at the UN Human Rights Mechanisms” [Espaço comprometido: perseguição e bloqueio nos Mecanismos de Direitos Humanos da ONU], Unrepresented Diplomats Project, Bruxelas, 15 jul. 2019. Disponível em: https://unpo.org. 8   Valérie Segond, “Les étranges pratiques de la Chine pour conquérir la FAO” [As estranhas práticas da China para conquistar a FAO], Le Figaro, Paris, 21 jun. 2019. 9   M artine Bulard, “À Canton, les Africains confinés à la matraque” [Em Cantão, africanos são isolados na base do cassetete], Planète Asie, 14 abr. 2020. Disponível em: https://blog. mondediplo.net. 10   “ European Parliament warns against UN Internet control” [Parlamento Europeu adverte contra o controle da internet pela ONU], BBC News, 22 nov. 2012. 11   “Pays contributeurs en soldats et policiers” [Países que contribuem com soldados e policiais], Domp, 31 ago. 2020. Disponível em: https://peacekeeping.un.org. 12   Resolução adotada pela Assembleia Geral da ONU em 22 de dezembro de 2018. 13   “Scale of assessments for the fiscal period 2020-2021” [Escala de pagamentos para o período fiscal de 2020-2021], Onudi, Viena, 1º-3 jul. 2019. Disponível em: www.unido.org. 14   “Contribution to Unesco’s regular budget” [Contribuição para o orçamento regular da Unesco], Unesco, Paris, 1º jan. 2020. Disponível em: https://teamsnet.unesco.org. 15   “Contributors – Financial Flow” [Contribuintes – Fluxo financeiro], OMS, Genebra, 2019. Disponível em: http://open.who.int. 16   M ao Ruipeng, “China’s growing engagement with the UNDS as an emerging nation: Changing rationales, funding preferences and future trends” [O crescente envolvimento da China com o Sistema de Desenvolvimento das Nações Unidas como uma nação emergente: mudando fundamentos, preferências de financiamento e tendências futuras], Deutsches Institut für Entwicklungspolitik, Bonn, 2020.

EM MENOS DE UMA DÉCADA... 2012 Margaret Chan, de Hong Kong, é reeleita diretora-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), cargo que ocupava desde 2007. Em 2017, é substituída pelo etíope Tedros Adhanom Ghebreyesus. 2013 Li Yong é nomeado diretor-geral da Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento Industrial (Onudi), da qual Austrália, Canadá, Estados Unidos, França, Nova Zelândia, Portugal e Reino Unido já não fazem parte. 2014 Zhao Houlin é eleito secretário-geral da União Internacional de Telecomunicações (UIT). Em 2018, é reeleito para seu segundo e último mandato. Ele ocupava o cargo de vice-secretário adjunto desde 2007. 2015 Fang Liu é eleita secretária-geral da Organização da Aviação Civil Internacional (Icao). Em 2018, é reeleita para a função até 2021. Yang Dazhu é nomeado diretor-geral adjunto da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), junto com cinco outros diretores (de nacionalidades norte-americana, marroquina, italiana, russa e espanhola). 2017 Liu Zhenmin assume o Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais (Desa) como secretário-geral adjunto nomeado pelo secretário-geral da ONU. Ele substitui Wu Hongbo (2012-2017), que fora o sucessor de Sha Zukang (2007-2012). 2018 Xue Hanqin é eleita vice-presidente da Corte Internacional de Justiça (CIJ), presidida por Abdulqawi Yusuf (Somália). Xing Qu é nomeado diretor-geral adjunto da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), dirigida pela francesa Audrey Azoulay. 2019 Qu Dongyu é eleito diretor-geral da Organização para a Alimentação e a Agricultura (FAO). Hua Jingdong é nomeado vice-presidente do Banco Mundial, cujo presidente é o norte-americano David Malpass. 2020 Wang Binying, diretora-geral adjunta da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (Ompi) por doze anos, concorre ao cargo de diretora-geral, mas é derrotada por Tang Daren, de Cingapura.


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Ensino híbrido: a nova fronteira do ensino formal

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Conselho Nacional de Educação (CNE) aprovou em 6 de outubro uma resolução que permite o ensino remoto nas escolas públicas e particulares até 31 de dezembro de 2021. A decisão possibilita que as redes estaduais e municipais reorganizem seus calendários 2020/2021 tanto para manter as aulas exclusivamente on-line, se a pandemia exigir, como para iniciar uma retomada das atividades presenciais de forma gradual e rodiziada. É nessa segunda frente que se insere um dos principais desafios da educação na atualidade: a estruturação, para o ensino formal, do ensino híbrido ou combinado. O parecer do CNE vem ao encontro da flexibilidade que as redes necessitam1 para adequar a oferta da educação pública neste contexto de pandemia e de retomada das aulas presenciais. A retomada combina número reduzido de alunos, rodízio de turmas e manutenção das atividades remotas, e as redes são uníssonas ao afirmar que a continuidade e ampliação da reabertura dependem das condições sanitárias. Assim, enquanto a vacina contra a Covid-19 não estiver aprovada e amplamente disponível, o modo de operação das escolas precisará continuar se adequando – e mesclando atividades presenciais e remotas conforme o que os especialistas e pesquisadores denominam de ensino híbrido.

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ABECEDÁRIO DO ENSINO HÍBRIDO Michael Horn e Heather Staker, no artigo “Blended Beyond Borders: A scan of blended learning obstacles and opportunities in Brazil, Malaysia, & South Africa” (2015), conceituam o ensino híbrido como um programa de educação formal, no qual o aluno aprende em parte por meio on-line – com algum controle do aluno sobre o tempo, lugar, percurso e/ ou ritmo da aprendizagem – e em parte em um espaço físico longe de casa. As modalidades de aprendizagem presencial e a distância adotadas na trajetória do aluno são conectadas para fornecer uma experiência de aprendizagem integrada, o que pode incluir o uso de dados da aprendizagem on-line para informar e orientar a aprendizagem off-line. Além disso, o ensino híbrido pode ser estruturado via atividades síncronas, nas quais o professor e os estudantes trabalham juntos em um horário predefinido de maneira on-line ou presencial, ou assíncronas, quando o aluno pode estudar em seu próprio tempo e velocidade, sem necessidade de estar com a turma ou o educador. O ensino híbrido busca unir os aspectos positivos das duas metodologias, a fim de oferecer melhores condições de aprendizagem para os alunos. César Nunes, gerente de desenvolvimento de soluções do Instituto Unibanco, situa que o ensino híbrido pode ser entendido como uma alavanca para que os alunos se vejam como permanentes aprendizes. “A gente pensa que aprender pode ser prazeroso e que isso pode acontecer a qualquer momento e em qualquer lugar”, disse ele, durante o webinário Desafios do Ensino Híbrido, realizado recentemente pelo Instituto Unibanco. “Na sociedade do conhecimento, todos nós deveríamos ser aprendizes a vida inteira e carregar este gosto por aprender o tempo todo”, acrescentou.

•  35% dos alunos estudavam em escolas com uma plataforma de suporte de aprendizagem on-line eficaz. •  42,3% dos alunos tinham professores com recursos profissionais eficazes para aprender a usar dispositivos digitais. •  50,6% dos alunos tinham professores com as habilidades técnicas e pedagógicas necessárias para integrar dispositivos digitais à instrução dos alunos. •  52,2% dos alunos tinham professores com tempo suficiente para preparar aulas integrando dispositivos digitais a elas. Como indicam as estatísticas, as disparidades em termos de infraestrutura tecnológica das escolas e qualificação dos professores, que se somam às desigualdades do aluno brasileiro no acesso à internet, impõem enormes obstáculos à plena implementação do ensino híbrido. Tais dificuldades foram esmiuçadas no webinário do Instituto Unibanco por Nunes e por representantes das secretarias de Educação dos estados do Espírito Santo, Minas Gerais e Rio Grande do Norte. INTERAÇÃO VIA TECNOLOGIA TEM VANTAGENS E PONTOS A AVANÇAR Para Carmem Prata, assessora de tecnologia educacional da Secretaria Estadual de Educação do Espírito Santo, o período de ensino remoto proporcionou aumento da interação entre professores e alunos, dinâmica que deve continuar com a adoção do modelo híbrido. “O ensino híbrido expande muito o tempo de estudo e comunicação entre a turma e os professores. O que antes eram 50 minutos de aula, agora são 24 horas de comunicação aberta, 24 horas de conteúdos disponíveis, seja via WhatsApp, outra rede social ou uma plataforma mais robusta”, explicou. Além de permitir mais tempo de interação professor-aluno, a tecnologia age como apoio ao professor no processo de aferir se o aluno está aprendendo e desenvolvendo suas habilidades. “Ela possibilita tornar o aprendizado do aluno visível”, reforçou Nunes, destacando a contribuição da tecnologia para dar transparência às produções dos estudantes e abrir espaço, a partir daí, para uma intervenção mais individualizada do professor. O próximo passo no terreno do ensino híbrido, adicionou, seria adaptar a abordagem metodológica, tornando-a mais significativa para os alunos. Todavia, para ser aproveitado em potência máxima, o ensino híbrido precisa de capacidades, habilidades e engajamento – tanto de professores quanto de alunos –, ao lado de amplo acesso à internet. “Não basta a secretaria definir metodologia e dispor de plataforma. É preciso que os professores dominem as ferramentas que têm disponíveis, para que consigam enxergar seu potencial e perceber se elas são realmente eficientes para aquilo que estão planejando”, disse Carmem. Não é o fato de ter uma ferramenta ou portal de conteúdos que vai fazer com que os alunos estudem e colaborem, complementou. “Esse engajamento deve ser construído diariamente por meio de metodologias”, afirmou a assessora.

OS PROFESSORES E SUAS REDES OBSTÁCULOS MÚLTIPLOS E CAMINHO A PERCORRER Para que os professores consigam realizar seu trabalho da melhor forCom dados coletados em 2018, o recém-lançado relatório “Políticas ma possível nesses tempos de pandemia, as redes de ensino estão se moeficazes, escolas de sucesso”, elaborado pela Organização para a Coopebilizando para oferecer formação específica, além de articular dinâmicas ração e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), traçou uma espécie de de troca entre os educadores. linha de base pré-pandemia sobre a capacidade das escolas de promover Seja com ações com maior centralidade, como ocorre em Minas Geo ensino e a aprendizagem usando dispositivos digitais. O documento rais, ou com maior autonomia para as escolas, como no caso do Rio foi divulgado com a finalidade Grande do Norte e do Espírito de orientar os gestores públiSanto, no que tange à estrutucos em suas decisões de invesração de conteúdos e da carga SAIBA MAIS SOBRE ENSINO HÍBRIDO timento mediante as mudanhorária de ensino, é esperado ças trazidas pela Covid-19. que as secretarias de Educação mpulsionado por epidemias anteriores à •  “Cinco lições para a educação escolar no O estudo se baseou em relacompareçam com orientações Covid-19 na região da Ásia-Pacífico, o enpós-Covid-19” (2020), por Bento Duarte tos de diretores de escolas de e o apoio necessário – às escosino híbrido já vinha ganhando força no da Silva. países-membros e países parlas, aos professores e aos alumundo, o que se acentuou com a pandemia •  “Empoderando professores para prover ceiros da OCDE. Em 2018, os nos – para o avanço do ensino do novo coronavírus. Vários conhecimenensino híbrido naw reabertura das escoentrevistados no Brasil expusehíbrido. tos têm sido sistematizados a respeito: las na Malásia” (2020), registro de práram o seguinte cenário: •  “Aprendizagem combinada para ensino ticas preparado pelo Unicef (em •  26% dos alunos estudavam superior de qualidade: estudos de caso inglês). em escolas com velocidade selecionados sobre a implementação da •  “Tecnologias e ferramentas para o ensiou banda de internet Ásia-Pacífico” (2017), relatório assinado no híbrido” (2020), artigo de Alekya suficiente.

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pela Unesco (em inglês).

Chalumuri (em inglês).

1 Ver Observatório de Educação, Planejamento de Rede: pandemia exige flexibilidade, 28 set. 2020.


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UMA MASCOTE ETERNAMENTE ISENTA DE RESPONSABILIDADES

A indestronável monarquia britânica Depois da Escócia, Irlanda do Norte e País de Gales, o norte da Inglaterra experimenta um movimento político em favor da independência. Tensões nacionalistas, caos parlamentar por ocasião do Brexit, fiasco na luta contra a Covid-19: a tempestade parece estar varrendo tudo no Reino Unido. Tudo exceto a Coroa, que continua a proporcionar um senso de coesão à maioria dos britânicos POR LUCIE ELVEN*

O CULTO DA TRADIÇÃO Elizabeth II viaja pelo país usando as cores damasco, púrpura ou chartreuse para ter maior visibilidade; 30% da população afirma já tê-la visto ou en-

contrado. Ela vê a tarefa de revigorar o povo, ainda que de forma breve e limitada, como parte de suas obrigações. “É muito bom se sentir como uma espécie de esponja”, ela confidenciou em 1992, em um documentário da BBC, evocando sua relação com os súditos. A “esponja” era uma metáfora para o serviço que ela sentia que deveria prestar a eles, associado a uma imagem de uma soberana comum e próxima das pessoas.2 A escritora Zadie Smith, em um artigo para a Vogue, observa que “a senhora Windsor é amplamente apreciada por sua ostentação modelada com base em gostos emprestados da pequena classe média: cães Corgi, corridas de cavalos e a novela de TV EastEnders”.3 A rainha distribui as honras; é um dos poucos poderes que lhe restam. “As pessoas precisam ser encorajadas”, observava já em 1992. “O mundo seria muito sombrio sem isso.” Os tapinhas nas costas vêm com o apoio real às obras de caridade, que sinaliza uma preferência pela filantropia em detrimento do serviço público. Desde a Revolução Gloriosa de 16881689, espera-se que a monarquia se mantenha afastada da política; seus direitos, para retomar a fórmula de Bagehot, são limitados a “ser consultada, encorajar e alertar”. Como resultado, os assuntos nos quais a família real se envolve, por mais políticos que sejam, são facilmente percebidos como apolíticos. Quando o príncipe William defende reivindicações caras aos millennials (pessoas nascidas entre meados dos anos 1980 e os anos 1990) – sobre saúde mental ou sobre mudanças climáticas, por exemplo –, elas imedia-

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endo percorrido as ruas de Londres em júbilo no dia da coroação da rainha em 1953, os sociólogos Michael Young e Edward Shils qualificaram o evento de “grande ato de comunhão nacional”. Fazia todo o sentido, escreveram eles, como “experiência não individual, mas coletiva”, que unia milhares de famílias em um fervor popular que lembrava a celebração da vitória sobre a Alemanha nazista. O ar vibrava com o calor humano; até mesmo os batedores de carteira tinham parado de trabalhar, e reinava um espírito de comunhão que teria horrorizado “aqueles que têm o viés racionalista das pessoas educadas de nosso tempo, especialmente aqueles de disposição política radical ou liberal”.1 Hoje, enquanto as desigualdades não param de se aprofundar no Reino Unido, a monarquia parece ter conservado sua popularidade. Quase dois em cada três britânicos aprovam sua existência. São apenas 22% a desejar seu desaparecimento, sendo os mais hostis os escoceses. Paradoxo surpreendente: quando os tempos são difíceis, a família real parece servir de diversão ou consolo. Nas núpcias reais dos últimos dez anos, sempre houve um tolo para afirmar que o moral da nação precisava de um impulso. Como Walter Bagehot escreveu em 1867 em A Constituição inglesa, as pessoas se curvam ao “espetáculo teatral da sociedade”, do qual a rainha é o “ponto culminante”.

tamente se tornam consensuais e entram na categoria das grandes causas, como a pesquisa sobre o câncer ou o apoio à Cruz Vermelha. Em outubro de 2020, contra o pano de fundo de debates acalorados sobre os legados da escravidão e do Império, o príncipe Harry, que este ano se distanciou da família real, falou de seu “despertar” de consciência sobre a questão do racismo estrutural. A maneira mais militante e emocional pela qual sua mãe, Diana Spencer, a famosa Lady Di, via seu envolvimento humanitário – por exemplo, indo a um hospital para apertar a mão de um paciente de aids sob os flashes de fotógrafos – repugnava os membros mais velhos da casa de Windsor. Frequentemente, a instituição da família real é usada com fins políticos na linha de frente das guerras culturais. O atual primeiro-ministro, Boris Johnson, foi acusado por seus oponentes de ter “mentido para a rainha” quando a convidou para pronunciar a dissolução do Parlamento a fim de ter rédea solta nas querelas do Brexit, em agosto de 2019.4 Durante seu mandato à frente do Partido Trabalhista, entre 2015 e 2020, Jeremy Corbyn foi continuamente criticado por sua falta de deferência para com a rainha, sua recusa em abaixar a cabeça, cantar o hino nacional ou assistir ao discurso real na televisão no Natal – uma falta

intolerável de patriotismo. A curiosa imunidade que protege a família de Elizabeth de qualquer tentativa de lhe exigir uma responsabilidade também se encaixa no reino político: Johnson zombou da ideia de prestar assistência às autoridades judiciais americanas em sua investigação sobre o príncipe Andrew (suspeito de cumplicidade nas agressões sexuais cometidas pelo falecido empresário Jeffrey Epstein), algo que ele tem o cuidado de não fazer quando se trata de Julian Assange. Voluntariamente centrado na pequena ilha heroica que resistiu aos alemães e os derrotou na Segunda Guerra Mundial, o romance patriótico britânico torna-se complicado à luz dos muitos laços da família real com os nazistas, que parecem ir além da crença compartilhada nas hierarquias dinásticas. As duas irmãs do marido da rainha, o príncipe Philip, radicadas na Alemanha, eram ligadas ao Partido Nazista, a ponto de uma delas ter colocado no filho o nome de Adolf. Depois de ter abdicado para se casar com uma norte-americana divorciada, Eduardo VIII, tio de Elizabeth, foi para a Alemanha em 1937, a convite e às custas do Reich; lá ele conheceu o Führer pessoalmente em frente a uma fábrica de munições. As imagens o mostram no Castelo de Balmoral, na Escócia, uma residência


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radas de seus colegas e compatriotas. “Tais cabalas não existem na Inglaterra”, onde a Constituição emana da “simplicidade de nosso caráter nacional”, disse ele, passando um pouco por alto sobre a turbulência que seu país conhecera um século antes, em particular com a execução de Carlos I. “Estamos decididos a manter uma Igreja estabelecida, uma monarquia estabelecida, uma aristocracia estabelecida, assim como uma democracia estabelecida, cada uma segundo o grau que lhe é próprio. [...] É a desgraça (e não, como pensam esses senhores, a glória) daquela época submeter tudo à discussão, como se a Constituição de nosso país fosse motivo de altercações, e não de celebrações.” O culto da tradição é ilustrado, por exemplo, pela permanência dessa estranha noção jurídica que é a “prerrogativa real”, em virtude da qual o governo pode arrogar-se os poderes outrora atribuídos à Coroa, que lhe permitem agir fora da lei. Nesse contexto, como apontou o teórico político Harold J. Laski, “a Coroa é um hieróglifo nobre”5 que permite que muitos funcionários se esquivem de suas responsabilidades, escondidos atrás de um véu de mistério. As tentativas de reformar esses privilégios falharam, em nome desse princípio relembrado em 2009 pelo governo neotrabalhista de Gordon Brown: “Nossa Constituição se desenvolveu organicamente ao longo dos séculos, de modo que não há necessidade de mudá-la por um simples desejo de mudança”.6 Segundo o historiador David Cannadine, a continuidade entre os rituais de hoje e os do passado distante seria, no entanto, “bastante ilusória”.7 Seria apenas um resíduo das tradições extravagantes desenvolvidas no século XIX para compensar o enfraquecimento dos poderes da família real e o esboroamento de seu império. Nessa hipótese, tradições ainda mais rocambolescas terão de ser postas em prática ao longo dos próximos anos se a monarquia quiser superar os desafios que a aguardam. O príncipe Charles, herdeiro do trono, certa vez inundou o governo com cartas sobre arquitetura, mudança climática e miséria social, mas o senso de tato político de sua mãe cruelmente lhe faz falta. Com uma taxa de popularidade de 47%, ele vem apenas em sexto lugar entre as figuras reais mais populares. Alguns temem que, com a morte de Elizabeth, toda a monarquia vacile. Outros estão espalhando teorias malucas nas redes sociais de que ela já estaria morta, atualizando a obsessão mórbida dos britânicos com o corpo de seu monarca como personificação do Estado, quer se presuma que tenha tido sífilis (Henrique VIII), seja virgem

real valorizada por sua família, ensinando a saudação hitlerista às sobrinhas. Mais tarde, estabelecido nas Bahamas, ele tentou convencer os Estados Unidos a permanecer neutros na guerra contra a Alemanha. Outro admirador de Adolf Hitler, o duque de Saxe-Coburgo, primo do pai de Elizabeth, compareceu ao funeral do rei vestido como general da Sturmabteilung (Seção de Assalto, SA). A monarca que reinou por mais tempo na história da Inglaterra e da Europa incorpora uma certa forma de atemporalidade. Do desmantelamento do Império ao referendo sobre o Brexit (2016), passando pelo movimento punk, apenas sua idade mudou. Hoje ela usa peles sintéticas, preferidas às verdadeiras, mas, no fundo, a rainha é história conservada no gelo. Ela aparece de vez em quando, quando ocorrem catástrofes, para tranquilizar seu povo. Em um discurso no início do primeiro confinamento por conta da pandemia de Covid-19, em março, ela evocou, com traços congelados, a canção de guerra de Vera Lynn “We’ll meet again” [“Nós nos encontraremos novamente”]. A continuidade é um valor caro aos monarquistas. Em suas Reflexões sobre a Revolução Francesa, de 1790, o filósofo Edmund Burke comparou a febre revolucionária do campo do Iluminismo às disposições mais mode-

(Elisabete I) ou tenha sido acometido de gota (a rainha Ana). “Hoje não decapitamos mais as damas reais, mas ainda as sacrificamos”, constata a romancista Hilary Mantel sobre a fixação da mídia pelo físico de Kate Middleton, esposa do príncipe William.8

UMA DAS MARCAS DE MAIOR SUCESSO NO MUNDO Também no cenário internacional, a monarquia britânica está perdendo seu brilho. Há alguns anos, vozes se levantaram para exigir que, após o final do reinado de Elizabeth II, a liderança da Commonwealth9 seja exercida de forma alternada por cada um de seus membros, ou por uma figura política reconhecida, antes que a rainha consiga impor a sucessão do príncipe Charles em seu posto. Apenas cerca de vinte países10 deverão um dia substituir seu retrato nas notas: mais da metade dos estados da Commonwealth – 31 de 54 – agora são repúblicas. Em setembro, a ilha de Barbados decidiu retirar da rainha sua posição de chefe de Estado. A Austrália realizou um referendo sobre essa questão em 1999, que foi perdido por pouco pelos partidários do regime republicano. Uma votação semelhante poderia se seguir na Nova Zelândia, de acordo com sua primeira-ministra, Jacinda Ardern, enquanto 44% dos canadenses afirmam ser a favor do divórcio com a Coroa britânica (contra 29% que desejam o contrário). No entanto, dessa máquina legal e financeira que é a casa de Windsor – batizada de “a firma” (“The Firm”) pelo príncipe Philip – não se pode dizer de forma alguma que não esteja adaptada aos tempos modernos. Ela continua sendo uma das marcas de maior sucesso do mundo. Depois de sua fuga para Los Angeles, Harry e sua esposa, Meghan Markle, transformaram literalmente seu status principesco em uma marca registrada, a Sussex Royal, que usam tanto para adornar anoraks como para liberar patrocínios. Maravilhada com esse conto de fadas, a bíblia dos meios de negócios, The Economist, retoma a máxima de Karl Marx segundo a qual o capitalismo destruirá os vestígios do feudalismo para se alegrar pelo fato de a monarquia britânica ter “fortalecido o capitalismo em vez de miná-lo”.11 A rainha gosta de se exibir como apolítica, trabalhadora e dedicada, virtudes que um chefe de start-up não rejeitaria: “A maioria das pessoas tem um emprego e depois vai para casa, enquanto em minha existência trabalho e vida são uma coisa só”, disse na BBC em 1992. “Às vezes, gostaria de ter mais tempo para mim.” Adicione-se a isso que, no século XX, graças à televisão e aos paparazzi, membros da família real se tornaram

celebridades globais; no século XXI, o clã se divide entre os que se entregam à divulgação banal de si mesmos nas redes sociais e os que persistem em manter o mistério que garante seu poder. Embora a rainha nunca tenha dado uma entrevista à imprensa e a monarquia continue sendo o único órgão do Estado imune à liberdade de informação, a Coroa foi forçada a transgredir um pouco seu voto de discrição com a morte da princesa Diana em Paris, em 31 de agosto de 1997. Como assinala o ex-diretor do Le Monde Diplomatique Ignacio Ramonet, o acidente do túnel da Ponte de l’Alma foi um momento crucial na história da imprensa, um “psicodrama planetário” testemunhando uma “globalização emocional”. O fluxo contínuo possibilitado pela internet, a atenção maníaca aos detalhes observada pelos tabloides e a cobertura maciça da grande mídia combinaram-se para desencadear uma crise sem precedentes: “Diana deixava o perímetro limitado e folclórico da seção de celebridades para entrar direto nas principais e nobres seções dos jornais diários da imprensa política”. Sua morte foi o “primeiro episódio dessa nova era da informação global”.12 “A casa de Windsor tem um coração?”, “Mostrem-nos que podemos contar com vocês”, “Onde está a rainha?”, “Onde está a bandeira?”: as “primeiras páginas” da imprensa13 farfalhavam de indignação quando o Palácio de Buckingham ostensivamente deixou de içar a Union Jack até a metade do mastro, como dizem ser tradição no caso da morte de uma figura real. Em setembro de 1997, a rainha cedeu à pressão popular e concordou em demonstrar emoção. A explosão de tristeza planetária provocada pela morte de Lady Diana – multidões em lágrimas, funeral visto por metade da população mundial, a Ponte de l’Alma e a rua do Palácio de Kensington cobertas de montanhas de flores – exigiu um eco da rainha. Em seu discurso ao vivo na televisão, o primeiro que ela dava em 38 anos, Elizabeth adotou um tom pessoal, até íntimo, que não era habitual dela: “O que estou dizendo agora, como rainha e como avó, vem do coração”, ela disse, balançando levemente e recitando as palavras escritas para ela pelo spin doctor (assessor de comunicação) do primeiro-ministro Tony Blair, Alastair Campbell. O reality show real cujos tabloides engordam – a nora bulímica, o filho adúltero, o filho ilegítimo indisciplinado – humaniza as pessoas dessa organização secreta na mente do público. Como Bagehot ainda observa, “uma família no trono é uma ideia interessante. [...] Uma família real ameniza a vida política pela in-


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corporação sazonal de belos acontecimentos”. Na verdade, os tormentos da vida familiar fornecem uma distração bem-vinda ao poder aparentemente imutável exercido por um clã cujo status eminentemente especial garante imunidade a qualquer forma de democracia.

CAMPEÃ DA EVASÃO FISCAL

lhões) de perdas de receita registradas na gestão de seu parque imobiliário por causa da pandemia. E, no entanto, em meio aos confrontos que abalaram o país nos últimos anos, por causa do Brexit e da independência da Escócia, tão intimamente ligados à questão de sua soberania, a monarquia escapa aos olhares.  *Lucie Elven  é jornalista. 1   E dward Shils e Michael Young, “The meaning of the coronation” [O significado da coroação], The Sociological Review, v.1, n.2, Londres, 1 dez. 1953. 2   “ Elizabeth R: A Year in the Life of the Queen” [Elizabeth R: Um ano na vida da rainha], BBC, 1992. 3   Z adie Smith, “Mrs. Windsor. The reassuring domesticity of our head of state” [Sra. Windsor. O tranquilizador caráter doméstico de nossa chefe de Estado], Vogue, Londres, dez. 2017. 4   S everin Carrell e Owen Bowcott, “Did Johnson lie to the Queen?” [Johnson mentiu para a rainha?], The Guardian, Londres, 24 set. 2019. 5   Harold J. Laski, “The responsibility of the State in England” [A responsabilidade do Estado na Inglaterra], Harvard Law Review, v.32, n.5, Cambridge (Massachusetts), mar. 1919. 6   “ Revisão dos poderes de prerrogativa real executiva: relatório final”, Ministério da Justiça Britânico, Londres, out. 2009. 7   David Cannadine, “The context, performance

and meaning of ritual: the British monarchy and the ‘invention of tradition’” [O contexto, desempenho e significado do ritual: a monarquia britânica e a “invenção da tradição”], c. 1820-1977. In: Eric Hobsbawm e Terence Ranger (org.), The Invention of Tradition [A invenção da tradição], Cambridge University Press, 1983. 8   H ilary Mantel, “Royal bodies” [Corpos reais], London Review of Books , v.35, n.4, 21 fev. 2013. 9   Federação de 54 estados, antigos territórios britânicos, formalmente unidos em 1949 como uma união de países “livres e iguais”. A rainha é reconhecida como chefe da Commonwealth. 10   Anguilla, Antígua e Barbuda, Austrália, Bahamas, Belize, Bermudas, Canadá, Chipre, Dominica, Gibraltar, Granada, Guernsey, Ilhas Cayman, Ilha de Man, Jersey, Malvinas, Montserrat, Nova Zelândia, Santa Helena, Santa Lúcia, São Cristóvão e Neves, São Vicente e Granadinas, Tuvalu. 11   “Harry, Meghan and Marx” [Harry, Meghan e Marx], The Economist, Londres, 16 jan. 2020. 12   Ignacio Ramonet, “Contre le mimétisme” [Contra o mimetismo], Le Monde Diplomatique, out. 1998. 13   The Daily Mail, The Express e The Sun, respectivamente. 14   Sam Wetherell e Laura Gutiérrez, “It just won’t die” [Ela simplesmente não vai morrer], Jacobin, Nova York, 19 maio 2018. 15   John Harris, “‘Essentially, the monarchy is corrupt’ – will republicanism survive Harry and Meghan?” [“Essencialmente, a monarquia é corrupta” – o republicanismo sobreviverá a Harry e Meghan?], The Guardian, 8 maio 2018. 16   Hilary Osborne, “Revealed: Queen’s private estate invested millions of pounds offshore” [Revelado: fundo da rainha investiu milhões de libras em paraísos fiscais], The Guardian, 5 nov. 2017.

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A casa de Windsor domina uma cultura em que os códigos de classe mais refinados, do mordomo à etiqueta dos discursos, se tornaram uma especialidade nacional. A indústria da herança real, monetizando o passado e inventando tradições, emprega mais trabalhadores que as indústrias da pesca e da mineração combinadas.14 Ela é fonte de produtos culturais variados e rentáveis, como filmes A rainha (2006) e O discurso do rei (2010), ou a série The Crown (lançada em 2016), da Netflix. O ator ou a atriz que interpretam o monarca sempre recebem uma chuva de prêmios de prestígio, como se interpretar um rei ou rainha representasse uma conquista mais notável que interpretar qualquer outro ser humano e como se isso desse um senti-

do extra a uma instituição que, de maneira mais ou menos ambígua, já o tem em quantidade. A cada ano, a família real custa ao país 67 milhões de libras (R$ 500 milhões). Ela pratica a evasão fiscal por meio de isenções15 e drenagens para locais offshore.16 O vínculo firmado com um clã aristocrático que controla todos os circuitos das finanças tornou a City de Londres ainda mais atrativa para os sonegadores de todo o mundo, contribuindo para a alta vertiginosa dos preços e aluguéis na capital. Em princípio, a rainha possui um sexto de todas as terras do planeta. Em um recente debate parlamentar sobre a indústria eólica no mar, Boris Johnson chamou o portfólio de imóveis da monarquia, o Crown Estate, de um “mestre do fundo do mar” (14 out. 2020). A moratória sobre despejos de aluguel decretada pelo governo para lidar com a crise da Covid-19, ameaçando jogar 55 mil famílias nas ruas, foi suspensa em setembro. Na mesma semana, soube-se que o contribuinte pagaria ao Crown Estate um aumento generoso para compensar parcialmente os 500 milhões de libras esterlinas (R$ 3,5 bi-

A capa de toureiro da liberdade universitária Se a liberdade de ensino e de pesquisa não é submetida a nenhuma forma de censura, ela necessita também que o conjunto da comunidade universitária possa trabalhar com serenidade. A batalha da liberdade universitária é tanto uma questão de interesse financeiro como de grandes princípios POR DOMINIQUE PINSOLLE*

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s elucubrações do ministro francês da Educação Nacional, Jean-Michel Blanquer, a propósito do “islamoesquerdismo” na universidade tiveram um efeito que, provavelmente, não desagrada nem ao seu autor nem à sua colega, a ministra do Ensino Superior, da Pesquisa e da Inovação, Frédérique Vidal. Enquanto o criticado projeto de lei de programação da pesquisa (LPR – Loi de programmation de la recherche) estava em análise parlamentar, a concentração nos debates sobre a liberdade universitária impediu a visualização das reivindicações feitas já durante um ano por um grande movimento de contesta-

ção no âmbito das universidades e dos órgãos de pesquisa. As hostilidades foram declaradas em 31 de outubro, quando o Le Monde publicou um artigo assinado por uma centena de universitários apoiando Blanquer e fustigando a suposta “negação” de uma parte de seus colegas concernente às “derivas islamistas” que afetaram sua própria instituição.1 As reticências para “designar o islamismo como responsável pela morte de Samuel Paty” [morto em atentado praticado em outubro em Conflans-Sainte-Honorine] revelaram, segundo eles, a gravidade da situação. O comunicado intersindical de 21 de outubro – coassinado princi-

palmente pela União Nacional dos Estudantes da França (Unef), atacada no texto – almejava, no entanto, explicitamente “o islamismo fundamentalista” e concluía que “é exatamente essa ideologia e aquelas e aqueles que a seguem que devem ser combatidos sem interrupção”.2 Pouco importa. Os signatários conseguiram uma dupla proeza: alinhar-se por trás de um ministro em nome de sua independência e intimar Vidal, em nome da liberdade de expressão, a estabelecer “medidas de detecção” e uma “instância encarregada de recuperar diretamente os casos de ataque aos princípios republicanos e à liberdade acadêmica”. A

tentativa de reproduzir os argumentos da Lei Gayssot reprimindo as propostas negacionistas parece dificilmente resistível. A ofensiva conseguiu provocar uma indignação coletiva, ainda mais porque a defesa da liberdade de ensino, de pesquisa e de expressão é um dos raros assuntos que mobilizam imediatamente uma corporação em geral pouco combativa. O caso Vincent Geisser, em 2009, dá uma ilustração disso. O sociólogo do mundo árabe e muçulmano entrou, na época, em conflito com o funcionário de segurança e defesa (FSD) do Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS), oficialmente encarregado, entre outras coisas, de “garantir” atividades de pesquisa consideradas “sensíveis”. Convocado diante da comissão de disciplina do CNRS por faltar a seu dever de reserva, o pesquisador recebeu o apoio de uma petição com assinaturas prestigiosas. O caso foi encerrado com uma simples advertência. Isso relembrou que, na França, a “independência” e a livre expressão” dos professores e pesquisadores são garantias no âmbito constitucional desde 1984 e, ao mesmo tempo, são limitadas na lei apenas pelos “princípios de tolerância e objetividade”. A indignação suscitada no mundo universitário pela tribuna do dia 31 de outubro não contrariou as expectativas nem do conteúdo nem da for-


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História Natural Resultado de uma das mais importantes empreitadas cien�ficas do Século das Luzes, esta edição traz uma seleção de capítulos mais representa�vos da obra magna do conde de Buffon, que busca reunir todo o conhecimento das "ciências naturais" disponível em seu tempo.

(LRU), em 2007, os estabelecimentos padecem de um subfinanciamento crônico, defasado pelo aumento do número de estudantes. Sua “autonomia” se reduz à possibilidade de eles próprios se infligirem, com mais ou menos ardor, uma política de austeridade orçamentária. Se a liberdade de ensino e de pesquisa não é submetida a nenhuma forma de censura, ela necessita também que o conjunto da comunidade universitária possa trabalhar com serenidade. Ora, o imperativo da “excelência” impõe correr atrás de licitações para projetos na esperança de obter fundos dos quais as unidades de pesquisa não dispõem mais. Aliás, esse modo de financiamento demonstrou sua inutilidade no contexto da pandemia de Covid-19: entre 2015 e 2019, o virologista Bruno Canard e sua equipe do CNRS tiveram cinco projetos concernentes ao coronavírus recusados pela Agência Nacional da Pesquisa, que os julgou não prioritários.5 A batalha da liberdade universitária é tanto uma questão de interesse financeiro como de grandes princípios. Essa evidência se encontra no cerne do movimento iniciado no outono de 2019 nas universidades. Tudo começou, como sempre, pelos estudantes. Um deles, Anas K., acabava de tentar se imolar por meio do fogo para denunciar a precariedade de todas aquelas e aqueles que, como ele, são obrigados a trabalhar para continuar seus estudos. A essa causa se juntou a luta contra a reforma da previdência. Uma minoria de professores, pesquisadores e membros do corpo administrativo se juntou às assembleias gerais e aos cortejos. A raiva era ainda maior porque um projeto de “lei de programação plurianual da pesquisa” (LPPR, que se tornou LPR) levava a temer o pior em matéria de financiamentos, de precariedade dos contratos e da concorrência nefasta entre instituições. O presidente diretor-ge-

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ma. Denunciando uma “caça às bruxas”, outro texto logo identificou essas acusações como um “ataque contra o Estado democrático de direito”. 3 A ênfase desse protesto confirma a dificuldade dos intelectuais de se conceberem simplesmente como trabalhadores que lutam contra a degradação de suas condições de trabalho. Já em 2009, a mobilização contra o desmanche do status dos professores pesquisadores foi apresentada como uma questão de civilização”...4 Um grande número de categorias profissionais foi atacado por um governo conservador, com a indiferença da maior parte daquelas e daqueles que professam nos anfiteatros. Mas alguns universitários, convencidos de ocupar um lugar à parte na sociedade, não podem se impedir de recomeçar, toda vez que são empurrados, o eterno combate do Iluminismo contra o obscurantismo, em um mundo onde o papel do perseguido estaria reservado a eles. A propaganda da extrema direita e seus êxitos eleitorais fomentam os mais alarmistas discursos. Assim, o apoio aos pesquisadores franceses que vem do exterior, mais graças às redes de uma profissão fortemente internacionalizada do que à notoriedade de Blanquer na América do Norte, não se preocupou com sutilezas ao postular uma “tendência mundial em que o racismo é protegido como liberdade de expressão, enquanto expressar um ponto de vista antirracista seria uma violação”. As universidades teriam passado para as mãos da Ku Klux Klan sem que ninguém percebesse? Além das batalhas de textos que interessam aos trabalhadores intelectuais, a liberdade universitária supõe que o ofício de professor e de pesquisador possa ser exercido em condições materiais satisfatórias. Desde a lei relativa às liberdades e responsabilidades das universidades

ral do CNRS, Antoine Petit, pedia, além de suas resoluções, uma lei não igualitária: “Sim, não igualitária, uma lei virtuosa e darwiniana”.6 Todas as condições de mobilização contra a precarização das vidas e das condições de trabalho de cada um estavam reunidas. Os olhares já se voltavam para além das universidades, para os “coletes amarelos”, os grevistas da SNCF [Companhia Nacional das Estradas de Ferro] e da RATP [Autoridade Autônoma dos Transportes Parisienses], os hospitais, os professores das escolas, das faculdades e dos liceus... Em seguida, chegou o confinamento. A prisão domiciliar coletiva alguns dias depois acabou com o elã e sujeitou os professores às videoconferências. Todas as palavras de ordem que tinham agitado a instituição durante quatro meses se apagaram subitamente diante das discussões infindáveis com um vocabulário desconhecido antes da primavera: ensino “presencial” ou “a distância”, aulas “sincronizadas” ou “dessincronizadas”, funcionamento de “modo degradado”... A querela do “islamoesquerdismo” acrescentou uma última pá de cal no caixão das reivindicações, que, apesar de tudo, continuam a aflorar on-line. Diante das universidades petrificadas pelo confinamento, a intransigência de Vidal e da maioria parlamentar durante a análise da LPR foi semelhante a uma desprezível demonstração de força de um lutador sem adversário. Alertas e críticas formuladas por um grande leque de instâncias e organizações universitárias junto ao Executivo foram ignoradas como se não fossem importantes. O texto final se mostra até pior do que o que foi contestado no início. A lógica “darwiniana” imposta à pesquisa é acompanhada de um aumento da precarização pela multiplicação de contratos por tempo determinado –

Aspectos do novo radicalismo de direita Adorno analisa o potencial fascista na Alemanha, com o ressurgimento nos anos 1960 de um novo radicalismo de direita, no seio de uma democracia bem-consolidada, em pleno auge do capitalismo.

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entre os “CDI de missão” [contratos por tempo indeterminado enquanto dura o projeto] e as “cadeiras de professor júnior”. O estatuto nacional dos professores pesquisadores foi ainda mais enfraquecido porque o Conselho Nacional das Universidades (CNU), encarregado de gerenciar as carreiras dos professores, vê suas prerrogativas reduzidas em matéria de recrutamentos em benefício dos estabelecimentos. Enfim, uma emenda destinada aos estudantes muito politizados aos olhos da hierarquia pune pesadamente “o fato de penetrar ou se manter nos recintos de um estabelecimento de ensino superior [...] com o objetivo de perturbar a tranquilidade ou a boa ordem do estabelecimento”. A única ilusória proposta de submeter a liberdade universitária ao respeito dos “valores da República”, que gastou tanta tinta, foi abandonada. Como se, dado o primeiro golpe no touro, não houvesse mais necessidade de agitar o pano vermelho.  *Dominique Pinsolle  é historiador e professor da Université Bordeaux-Montaigne, na França. 1   “ Une centaine d’universitaires alertent: ‘Sur les dérives islamistes, ce qui nous menace, c’est la persistance du déni’” [Uma centena de universitários alerta: sobre as derivas islamistas, o que nos ameaça é a persistência da negação], Le Monde, 31 out. 2020. 2   “Face à l’obscurantisme, faisons grandir une société unie et fraternelle” [Diante do obscurantismo, façamos crescer uma sociedade unida e fraternal], comunicado intersindical, 21 out. 2020. 3   “Cette attaque contre la liberté académique est une attaque contre l’État de droit démocratique” [Esse ataque contra a liberdade acadêmica é um ataque contra o Estado democrático de direito], Le Monde, 2 nov. 2020. 4   “ Université, un enjeu de civilisation” [Universidade, uma questão de civilização], L’Humanité, Saint-Denis, 18 fev. 2009. 5   Bruno Canard, “La virologie est un sport de combat” [A virologia é um esporte de combate], Université ouverte, 19 set. 2020. Disponível em: https://universiteouverte.org. 6   Antoine Petit, “La recherche, une arme pour les combats du futur” [A pesquisa, uma arma para os combates do futuro], Les Échos, Paris, 26 nov. 2019.

Etica O ser humano enfrenta diariamente dilemas de natureza é�ca e moral. Simon Blackburn aborda as principais questões que tensionam esse debate, trazendo à reflexão o próprio significado da vida.

Produzir conteúdo Compartilhar conhecimento. Desde 1987. www.editoraunesp.com.br


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MEDIDAS TÃO ANTIDEMOCRÁTICAS QUANTO INEFICAZES

Quem vai parar a máquina repressiva? Apoiado pelos principais sindicatos de policiais, o projeto de lei sobre segurança global foi votado pela Assembleia Nacional francesa em 24 de novembro. Ele estende uma tendência repressiva que, da luta contra o terrorismo ao estado de emergência sanitário, vincula a segurança à restrição de liberdades. E se essa estratégia se mostrasse contraprodutiva? POR VINCENT SIZAIRE*

caracterizado pela arbitrariedade e pelo excesso. A ordem penal republicana foi construída sobre a convicção de que uma lei é “tanto menos eficaz quanto mais desumana”.3

DISPERSÃO DAS FORÇAS POLICIAIS Se queremos acabar com a corrida repressiva desenfreada, talvez seja o momento de considerar que, longe de ser um obstáculo para a efetividade das punições, o respeito ao Estado de direito é uma de suas condições básicas. Quanto mais garantimos – em particular pelo controle de uma autoridade independente – que as medidas privativas ou restritivas da liberdade adotadas pelas autoridades públicas sejam estritamente necessárias e proporcionais ao objetivo que perseguem, mais nos permitimos a possibilidade de realizá-las. Essa hipótese se verifica em primeiro lugar no que diz respeito aos dispositivos de combate aos chamados crimes terroristas. Desde o início da década de 1980 e da abolição do Tribunal de Segurança do Estado, sempre foi por meio de procedimentos legais conduzidos por juízes de instrução independentes que os planos de ataques foram frustrados, perseguindo seus autores sob a alegação de associação terrorista – e prendendo-os – antes que passassem à ação.4 Se essa abordagem está longe de ser isenta de crítica, o enquadramento judicial pressupõe que as forças policiais e os magistrados apoiem o processo desta ou daquela pessoa em elementos precisos, objetiváveis e consistentes. Por outro lado, as medidas administrativas de combate ao terrorismo, que se multiplicaram ao longo da última década, apresentam um balanço pouco lisonjeiro, assim como as buscas ordenadas sob a cobertura do estado de emergência proclamado entre novembro de 2015 e outubro de 2017 e que, com o nome de “visitas”, agora figuram no direito comum.5 Essa repressão extrajudicial é carac-

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O

s assassinatos de Conflans-Sainte-Honorine e de Nice, perpetrados em outubro por jovens fanáticos que afirmam pertencer a um islã fantasioso, deram um novo impulso a todos aqueles que, em nome da “guerra contra o terrorismo”, exigem a suspensão mais ou menos duradoura de nossas liberdades públicas. E, mesmo que algumas vozes tenham se levantado para defender os princípios do Estado de direito,1 nenhuma questionou diretamente a visão segundo a qual, diante do crime terrorista, a expansão infinita do poder repressivo seria um mal necessário. Preocupante do ponto de vista democrático, essa retórica está longe de ser inédita. Ela encontra suas raízes na tradição autoritária que tem trabalhado nosso ordenamento jurídico desde o final do século XVIII.2 Nós a encontramos no cerne do projeto de lei que, sob o pretexto de garantir a “segurança global”, tende a impedir qualquer questionamento das forças policiais pelas violências que cometem. Também está presente nas medidas de exceção colocadas em prática pelo governo francês desde fevereiro para enfrentar a crise da saúde, reforçando a ideia de que a renúncia mais ou menos completa de nossa liberdade de ir e vir seria o preço a pagar para salvar nossa vida e nossa saúde. Baseadas na oposição simplista entre segurança e liberdade, essas representações derivam do mais completo dogmatismo. A exigência constitucional de fiscalização e moderação da ação das autoridades repressivas, que hoje gostaríamos de colocar entre parênteses, estrutura o projeto penal iluminista, consagrado pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de agosto de 1789. Ora, esse projeto foi construído não apenas em oposição ao despotismo do poder monárquico, mas também como reação à ineficácia do sistema repressivo do Antigo Regime,

terizada por um aumento significativo do poder das autoridades. Por um lado, tais buscas são ordenadas apenas pelo Poder Executivo; e, no caso de medidas de estado de emergência, sem nenhum controle judicial prévio, as diligências podem simplesmente ser objeto de controle a posteriori do juiz administrativo – se for o caso de um recurso ser interposto, o que muito raramente acontece. Por outro lado, e sobretudo, elas podem ser realizadas contra qualquer pessoa cujo “comportamento” seja percebido como uma “ameaça”,6 sem que seja necessário caracterizar o cometimento de um ato concreto. Desde o fim do estado de emergência, as autoridades também devem justificar que a pessoa “ou entre em relação de maneira habitual com pessoas ou organizações que incitam, facilitam ou integram atos de terrorismo, ou apoie (ou se filie a) teses que incitem o cometimento de atos terroristas ou façam apologia a tais atos”.7 Mas a natureza extensa do conceito de terrorismo permite um escopo particularmente amplo de aplicação.8 E se a questão também se coloca no que se refere aos procedimentos penais, estes pressupõem, no mínimo, o cometimento de um delito que, se for mais ou menos arbitrariamente qualificado de terrorista, implica a prova de um ato material ilícito, o que de forma alguma é o caso em questões administrativas. Ressurgimento de uma abordagem para contornar as garantias do processo penal que se observa desde o início do século XIX,9 essa resposta administrativa constitui, sem dúvida, o paradigma da repressão desenfreada que os depreciadores do Estado de direito reclamam. No entanto, ela se mostra mais eficaz, ou seja, mais capaz de permitir a elucidação de atos terroristas e, em particular, a identificação de ataques planejados? Sem ofender seus defensores, a constatação do fracasso é mais que gritante. Assim, as buscas ordenadas

durante o estado de emergência terão revelado uma possível associação terrorista de criminosos em menos de 1% dos casos.10 E, em relação àquelas ordenadas desde então, apenas duas pessoas das 165 buscas foram processadas sob esse pretexto.11 Observe-se que, tanto num caso como no outro, esses procedimentos poderiam perfeitamente ter sido iniciados em um quadro judicial, que concede poderes de busca idênticos em matéria de crime terrorista.12 Quanto à afirmação de alguns segundo a qual as “visitas” administrativas teriam permitido afastar a dúvida dos serviços de inteligência em relação a determinados indivíduos,13 ela parece acrobática em um momento em que estes últimos possuem todos os dispositivos possíveis e imagináveis para monitorar as pessoas das quais suspeitam, desde a interceptação de suas conversas telefônicas até a instalação de um sistema de escuta em seu apartamento, passando pela espionagem da menor de suas atividades digitais.14

COERÇÃO DESPROPORCIONAL Na realidade, a prodigiosa ineficácia dessa repressão “livre e sem distorções” é facilmente explicada. Ao alargar de modo desproporcional o escopo dos fatos e gestos passíveis de serem qualificados de “terroristas”, ela leva à dispersão, ao espalhamento e, logo, ao esgotamento das forças repressivas. Pior ainda, corre-se o risco de, em última instância, reduzir a capacidade dos serviços de polícia e dos magistrados de identificar projetos criminosos comprovados, deixando de convidá-los a se concentrar de maneira precisa e rigorosa nos atos que pretendem perseguir. Numa altura em que ninguém pensa em negar a persistência e a gravidade do risco de um atentado, é realmente razoável pedir aos procuradores dedicados ao combate ao terrorismo que se encarreguem do menor procedimento aberto sob a


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© Philippe Wojazer/Reuters

Exército Francês patrulha a região da Torre Eiffel, em Paris um lado, as restrições que podem ser ordenadas pelo primeiro-ministro são definidas de forma exaustiva, por outro apenas a quarentena ou a colocação em isolamento estão sujeitas à revisão judicial sistemática de sua necessidade e proporcionalidade.16 No entanto, tal como deliberou o Conselho Constitucional, esse requisito também se aplica à prisão domiciliar particularmente mais rigorosa que aquela à qual todos nós estamos novamente sujeitos.17 Aqui, de novo, notamos que essa coerção desproporcional provavelmente reduzirá a eficácia bem compreendida da resposta do público. Assim, o excesso pode levar a uma menor adesão às medidas de restrição e, em consequência, a uma me

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*Vincent Sizaire é professor associado da Universidade Paris Nanterre e autor de Être en sûreté. Comprendre ses droits pour être mieux protégé [Estar em segurança. Entender seus direitos para estar mais bem protegido], La Dispute, Paris, 2020.

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acusação de apologia ao terrorismo contra pessoas estúpidas o suficiente para terem mostrado seu apoio a este ou aquele crime? Embora não tenhamos o mesmo nível de distanciamento, a ineficiência tendencial da arbitrariedade dos poderes públicos também é ilustrada na implementação do estado de emergência sanitária instituído pela Lei n. 2020-290, de 23 de março de 2020. Vamos esclarecer desde o início que não era absolutamente necessário instituir um novo regime de exceção para fazer frente à crise sanitária: a “urgência” era muito mais dar às medidas de restrição à liberdade adotadas pelo governo uma base legal mais sólida e protetora que a simples invocação de “circunstâncias excepcionais”. Embora essa lei tenha permitido um melhor enquadramento da intervenção das autoridades, ela está longe de prevenir qualquer risco de arbitrariedade. Esse risco decorre, em primeiro lugar, dos critérios que permitem o desencadeamento de um estado de emergência sanitária, que pode ser decidido para pôr fim a uma “catástrofe sanitária que coloca em perigo, por sua natureza e gravidade, a saúde da população”.15 No entanto, a noção de “catástrofe” é muito vaga e, acima de tudo, muito subjetiva. Da mesma forma, a noção de “perigo” é muito ampla: por hipótese, qualquer doença infecciosa afeta nossa saúde, quando apenas eventos de natureza que ameaçam a vida ou, pelo menos, que afetam irreparavelmente a integridade física de parte significativa da população deveriam ser capazes de justificar a adoção de medidas tão restritivas das liberdades quanto aquelas permitidas pelo estado de emergência sanitária. A imprecisão dos critérios de mudança na exceção é ainda mais problemática quando se pensa que o Parlamento só é convidado a votar sobre a prorrogação do estado de emergência de saúde após um mês e que se, por

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PASSA LÁ NA

nor observação das ações profiláticas pelos cidadãos. Reconhecendo indiretamente esse risco, o governo, desde os primeiros dias do confinamento da primavera, mobilizou mais de 4,3 milhões de controles policiais para garantir seu cumprimento.18 O custo desse dispositivo poderia, sem dúvida, ter sido alocado de forma muito mais útil para a proteção de pessoas particularmente vulneráveis à doença... Garantir que as violações das liberdades sejam estritamente adaptadas e proporcionais não constitui apenas uma necessidade democrática. É também condição sine qua non para a eficácia da luta contra o perigo em nome do qual queremos restringi-las.

1   C f., por exemplo, “Terrorisme, liberté d’expression, laïcité... Au-delà des polémiques et de l’instrumentalisation politicienne, les principes et le droit” [Terrorismo, liberdade de expressão, secularismo... Para além das controvérsias e da instrumentalização política, os princípios e a lei], Sindicato dos Advogados da França, Paris, 30 out. 2020. 2   Ler “Des sans culottes aux ‘gilets jaunes’, histoire d’une surenchère répressive” [Dos sans-culottes aos “coletes amarelos”, a história de uma escalada repressiva], Le Monde Diplomatique, abr. 2019. 3   M ichel Lepeletier de Saint Fargeau, relatório sobre o projeto de Código Penal, Assembleia Constituinte, sessões de 22 e 23 de maio de 1791. 4   Art. L.421-2-1 do Código Penal. 5   Lei de 30 de outubro de 2017, que reforça a segurança interna e a luta contra o terrorismo. 6   Art. 11 da Lei n. 55-385, de 3 de abril de 1955. 7   Art. L. 228-1 do Código de Segurança Interna. 8   Ler “Quand parler de ‘terrorisme’?” [Quando falar sobre “terrorismo”?], Le Monde Diplomatique, ago. 2016. 9   C f. Sortir de l’imposture sécuritaire [Sair da impostura de segurança], La Dispute, Paris, 2016. 10   Trinta procedimentos abertos sob essa acusação para “mais de 4.300” medidas de busca, de acordo com o estudo de impacto do projeto de lei que reforça a segurança interna e o combate ao terrorismo de 22 de junho de 2017. Além disso, nenhuma infração foi constatada em quase 88% dos casos. 11   Relatório de informação n. 348 sobre o controle e fiscalização da Lei n. 2017-1510, de 30 de outubro de 2017, Senado, Paris, 26 fev. 2020. 12   Art. 706-89 e seguintes do Código de Processo Penal. 13   L aurent Borredon, “État d’urgence: ‘Ne cassez pas la porte, sonnez, je vous ouvre’” [Estado de emergência: “Não arrombe a porta, toque a campainha, vou abrir para você”], Le Monde, 14 dez. 2015. 14   Art. L.851-1 e seguintes do Código de Segurança Interna. 15  Art. L.3131-12 do Código de Saúde Pública. 16  Artigos L. 3131-15 e L. 3131-17 do Código de Saúde Pública. 17   D ecisão n. 2020-800 DC, de 11 de maio de 2020, cons. 43, Conselho Constitucional, Paris. 18  Relatório da missão de acompanhamento do projeto de lei de emergência para lidar com a epidemia de Covid-19, Senado, 2 abr. 2020.

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MÚSICA

O desastre. E depois? O Centro Nacional da Música, na França, acaba de ser aberto. Encarregado especialmente de colocar em prática uma política de apoio à criação não diretamente “rentável”, ele terá de enfrentar a devastação promovida pela crise sanitária e, a longo prazo, as pressões dos interesses comerciais POR ÉRIC DELHAYEJ*

abalou o castelo de cartas, ainda mais porque o ecossistema da música (artistas, técnicos, produtores, editores, difusores...) já estava fragilizado pela degringolada da indústria fonográfica dos últimos vinte anos. É preciso acreditar que a amplitude e a profundeza dos desgastes confirmarão a necessidade de coordenar e sustentar um setor que movimentou 9,7 bilhões de euros e representou 256.957 empregos em 2018,1 em alta sob o impulso do streaming até a ruptura de 2020. É preciso acreditar também que os imperativos econômicos não terão o efeito de enterrar a

“missão de apoio à criação e à difusão” evocada pelo CNM. Em tempos normais, cumprir efetivamente essa missão já não seria nada simples. Na verdade, essa cadeia de produção se caracteriza por suas disparidades estéticas, sociológicas e econômicas: entre amadores e profissionais, entre música clássica subvencionada e músicas contemporâneas, entre música gravada e espetáculo ao vivo, entre selos independentes e grandes empresas internacionais, entre pequenas e grandes salas, pequenos e grandes festivais, artistas emergentes e grandes estrelas milionárias...

© Alberto Bigoni/Unsplash

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“E

vitar as falências.” Durante a coletiva de imprensa, em 3 de novembro de 2020, o presidente do Centre National de la Musique (CNM) chegou rapidamente ao que hoje é prioridade. Desejado durante muito tempo e criado juridicamente em janeiro, o estabelecimento público que mal acabou de ser instalado foi obrigado a se ocupar de problemas urgentes, quando, em março, os shows foram proibidos. Sua criação marcava a renovação das políticas públicas voltadas à música após décadas de tergiversações. Porém, a crise sanitária

A crise sanitária abalou o ecossistema da música que já estava fragilizado nos últimos vinte anos

Tantos grupos com interesses às vezes contraditórios. Essa fragmentação, que talvez a pandemia esteja absorvendo pelo vazio, explica o tempo que foi necessário para chegar ao surgimento do CNM: meio século. No entanto, a relação da música com o poder é antiga: Luís XIV criou a Academia Real da Música (ancestral da Ópera Nacional) em 1669, e as encomendas reais aos músicos eram numerosas. Mas não se inventou muita coisa diferente durante muito tempo. Quando o Estado subvenciona companhias de concertos sinfônicos, a partir de 1861, trata-se mais de uma pulverização de créditos mínimos do que de uma ação estruturante. A Caixa Nacional das Letras e o Centro Nacional da Cinematografia (CNC)2 foram fundados em 1946. O país foi dotado de um Ministério dos Assuntos Culturais, confiado por Charles de Gaulle a André Malraux em 1959. Mas foi preciso esperar mais quatro anos para que o ministro admitisse, diante da Assembleia, “uma parte de inação do Estado” no âmbito da música. A década assistiu ao desenvolvimento do vinil, do rock’n’roll e do compositor Pierre Boulez, que queria encarnar “a esperança de uma cultura musical audaciosa, renovada”.3 Previsto para dirigir o primeiro Serviço da Música, integrado ao Ministério da Cultura, Boulez, defensor do serialismo, foi descartado em 1966 em benefício de outro compositor, Marcel Landowski, fiel ao sistema tonal. Landowski declarou, então, sua linha básica: “A partir de agora, em troca de subvenções mais importantes, trata-se de promover e controlar [...] uma política de criação, de grande ação cultural e de qualidade de interpretação que deverá permitir, sob o controle do Estado, um desenvolvimento e uma nova influência da música”.4 Paralelamente à criação, em 1967, da Orquestra de Paris (cofinanciada pelo Estado e pelo município), ele organizou a descentralização, estimulando uma rede de orquestras e óperas regionais e dando apoio ao desenvolvimento de escolas de música e de conservatórios nacionais por região.5 Autor de um “Plano de dez anos”, em 1969, para eliminar o “atraso considerável” que não permitiu a adaptação da música às profundas mudanças sociais e técnicas do mundo moderno”,6 depois, em 1971, primeiro diretor da música, da arte lírica e da dança, desenvolveu um projeto de democratização baseado no ensino e na formação. Mas, dispensado após a eleição de Valéry Giscard d’Estaing, em 1974, não pôde levar a cabo seu projeto do Centro Nacional da Música e da Dança, um “órgão público-privado, com fundos profissionais e gerado pelos


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230 milhões de euros em 2019, enquanto em 2002 correspondiam a 1,432 bilhão de euros. Apesar da popularidade dos shows e dos festivais, essa queda reativou a ideia de um estabelecimento público: o CNM. Sua edificação se chocou com o fracionamento do setor e com tergiversações de sucessivos ministros, até que um novo relatório, em 2017, concluiu que o CNM “poderia participar, em tempos de revolução digital, de um novo projeto para a política musical”.10 Validado em 2019 pelo ministro da Cultura, Franck Riester, o CNM não partiu do nada. Ele se apoiou no Centro Nacional da Canção, da Variedade e do Jazz (CNV), uma associação fundada por produtores de espetáculos em 1986, transformada em seguida em um estabelecimento público de caráter industrial e comercial, sob a tutela do Ministério da Cultura, em 2002. Seu papel: receber uma taxa de 3,5% do valor arrecadado pela bilheteria, em seguida redistribuí-lo de modo a estimular a criatividade e a rentabilidade dos espetáculos musicais, uma expressão que engloba especialmente o “humor” e os espetáculos circenses. O CNM o substituiu, ampliando sua ação para a música “erudita” e para a música gravada. Ele integra, desde 1º de novembro, associações de direito privado, das quais se supõe que os papéis de ajuda e consultoria serão preservados: o Fundo para a Criação Musical (FCM), que dá suporte à criação, difusão e formação; o Clube de Ação de Selos e Vendedores de Discos Independentes Franceses (Calif); o Centro de Informação e de Recursos para as Músicas Atuais (Irma); e o Escritório de Exportação, que trabalha com os selos ou com os produtores de artistas que decidiram vender para o exterior. Entre as taxas, o Estado etc., o CNM foi dotado de 50 milhões de euros, um montante insuficiente (o or-

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profissionais sob a tutela da administração”...,7 previsto pelo CNM. Se Landowski e Malraux preconizavam a democratização cultural, tratava-se sobretudo de tornar acessíveis as obras do repertório erudito (patrimonial ou contemporâneo), na contramão da abundância criativa do jazz, do punk e da música disco, que estavam em plena ebulição. Foi com a chegada de Jack Lang ao ministério, em 1981, que todos os gêneros da época passaram a ser levados em consideração, da canção à música contemporânea, passando pelo rock: “A partir de agora, mais do que propor o acesso a um patrimônio cultural, o Estado pretende apoiar e favorecer o desenvolvimento das práticas de cada um”.8 A ação não cobre mais apenas o ensino, mas também a produção e a difusão: financiamento de locais de reprodução, apoio às federações de práticas de amadores, criação de uma Orquestra Nacional de Jazz, fundação do Estúdio de Variedades, inauguração da primeira casa de espetáculos Zénith em Paris, lançamento da Festa da Música em 1982... Diretor da música e da dança (1981-1986), Maurice Fleuret viu seu orçamento triplicar, o das regiões foi multiplicado por seis, e a música ficou no topo dos setores culturais mais subvencionados. Mas Fleuret salienta que, “para todas essas realizações, as respectivas profissões, que nelas tinham um interesse direto, no entanto, por incrível que pareça, continuaram silenciosas, ausentes, às vezes hostis e, seja como for, sempre divididas”.9 Essas divisões continuaram nos anos 1990: florescente, dinamizado pela explosão das vendas de CD a partir de 1988, o segmento não sentia necessidade de se unir. Mas a fonte se esgotou com a desmaterialização dos apoios na virada do século. Na França, as vendas de suportes físicos (CD e vinil) caíram: elas representavam

çamento do CNC é de aproximadamente 700 milhões de euros) do ponto de vista geral, em relação às ambições declaradas: apoio aos artistas em fase de criação, aos emergentes, às estéticas ditas precárias, às estruturas descentralizadas, à paridade mulheres-homens, às novas tecnologias... Na realidade, a criação desse “operador global” não tem como único objetivo estruturar e unificar o setor. Essa unificação deve permitir uma política cultural de proteção, para citar a declaração de princípio publicada em seu site: “A música em todas as suas estéticas”. Em outras palavras, contrabalançar as lógicas de mercado. Em meados de junho, para 2020, o segmento já avaliava suas perdas em 4,5 bilhões de euros, principalmente em razão do desmoronamento do espetáculo ao vivo (83% das perdas). As ajudas do Estado se multiplicam: no início de novembro, o orçamento do CNM foi acrescido de 137,4 milhões de euros suplementares para os problemas mais urgentes. Não é garantido que, como em outros setores, será suficiente. Mas se, evidentemente, é a questão da sobrevivência que se coloca hoje, para as estruturas e para os artistas, é importante também preparar o futuro. O governo delegou a presidência do CNM a Jean-Philippe Thiellay, tecnocrata, membro fundador da Fundação Terra Nova e que durante muito tempo presidiu diversos gabinetes ministeriais antes de ser nomeado administrador do Centro Cultural Nacional do Havre e diretor-geral adjunto da Ópera de Paris. Um perfil surpreendente, dada a preponderância das músicas contemporâneas. Mas o que mais importa é saber se o CNM, quando os tempos voltarem a ser quase “normais”, dará prioridade aos artistas ou se conformará com as missões descritas no relatório de apresentação do pro-

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jeto de lei para sua criação (abr. 2019): nele, “o acompanhamento da avaliação de risco” econômico é mencionado como “uma das razões de ser da política pública em favor da música”. Críticos que descrevem o CNM como uma entidade submetida à indústria da música, em detrimento do interesse geral, já se fizeram entender.11 Thiellay nos declarou acreditar que essa “crise dramática” pôde “legitimar” o CNM. Não bastará.  *Éric Delhayej  é jornalista.

1   “ L’économie mosaïque. Troisième panorama des industries culturelles et créatives en France” [A economia mosaico. Terceiro panorama das indústrias culturais e criativas na França], France Créative – EY, Paris, nov. 2019. 2   Q ue se tornaram respectivamente o Centro Nacional do Livro (1993) e o Centro Nacional do Cinema e do Desenho Animado (2009). 3   Carta de Pierre Boulez a André Malraux, 20 nov. 1965. In: Christian Merlin, Pierre Boulez, Fayard, Paris, 2019. 4   Discurso, em 14 de março de 1967, diante da Comissão de Concertos. 5   Guy Saez (org.), La Musique au cœur de l’État. Regards sur l’action publique de Marcel Landowski [A música no coração do Estado. Considerações sobre a atuação pública de Marcel Landowski], La Documentation française, Paris, 2016. 6   N otes d’information du ministère de la culture [Notas de informação do Ministério da Cultura], n.7, Paris, 1º trimestre de 1970. 7   M arcel Landowski, Batailles pour la musique [Batalhas em prol da música], Seuil, Paris, 1979. 8   Philippe Teillet, “Une politique culturelle du rock?” [Uma política cultural do rock?]. In: “Rock: de l’histoire au mythe” [Rock: da história ao mito], Vibrations. Musiques, médias, société, Toulouse, 1991. 9   Anne Veitl e Noémi Duchemin, Maurice Fleuret: une politique démocratique de la musique [Maurice Fleuret: uma política democrática da música], Comité d’histoire, La Documentation française, 2000. 10   Roch-Olivier Maistre, “Rassembler la musique. Pour un centre national” [Reunir a música. Por um centro nacional], relatório para o Ministério da Cultura, Paris, out. 2017. 11   C f. Jean-Michel Lucas, “Le rapport sur le Centre national de la musique ne fait que vendre la République au plus offrant” [O relatório sobre o Centro Nacional da Música não faz nada mais que vender a República pela maior oferta], Profession spectacle, 13 mar. 2019. Disponível em: www.profession-spectacle.com.

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COMBATE ÀS MUDANÇAS CLIMÁTICAS

As ilusões do decrescimento Para alguns ecologistas, a crise ambiental atingiu um nível tal que uma única solução se impõe: o decrescimento. Segundo eles, as mudanças climáticas não provêm de um modo de produção guiado pelo mercado e, portanto, irracional: elas decorrem do crescimento, que infla a demanda energética e trava o objetivo de descarbonizar a economia. Como a redução da produção de bens produziria o efeito inverso, seria conveniente cortar a atividade. Uma análise coberta de dificuldades POR LEIGH PHILLIPS*

Todos aqueles que cresceram nos anos 1980 provavelmente se recordam de ter, em algum momento, atormentado sua mãe para que ela parasse de usar laquê nos cabelos. Nem todas cederam a esse apelo. Tampouco os dirigentes políticos. Mais do que contar com iniciativas individuais, e insensível às lamentações dos lobistas comprometidos com os industriais, o Protocolo de Montreal interveio diretamente nos mercados para impor uma regulamentação. Se tivéssemos tentado frear o aumento do número de geladeiras no mundo, por exemplo, ou mesmo reduzido sua quantidade total em escala planetária, em vez de introduzir regras impondo uma mutação tecnológica, teríamos caminhado sem dúvida para o desastre. Proclamar “Existem muitas geladeiras, e nenhuma a mais” teria resolvido o problema do crescimento das emissões, mas não o das próprias emissões, do mesmo modo que não se trata hoje de reduzir os gases de efeito estufa, e sim de eliminá-los.

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À

s vezes esquecemos que os seres humanos nem sempre são impotentes perante os desequilíbrios que eles provocam. Nos anos 1980, a ameaça ecológica se encarnava no “buraco da camada de ozônio”, esse gás que nos protege dos raios solares, mas cuja presença se reduzia na atmosfera. Anunciador de cânceres de pele, epidemias de imunodeficiência, degradação das reservas de água, perturbação dos ciclos bioquímicos e baixa da produção agrícola, o fenômeno não ameaçava menos a humanidade do que as mudanças climáticas. Lá também os culpados eram as emissões antropogênicas, principalmente os clorofluorcarbonetos (CFC), logo reduzidos no discurso midiático a seu uso em geladeiras e aerossóis. A partir do Protocolo de Montreal, que foi assinado em 1987 e entrou em vigor em 1º de janeiro de 1989, essas emissões caíram 98%.1 O fenômeno de destruição do ozônio se inverteu nos anos 2000 e espera-se que a camada atmosférica de gás retome seu estado inicial até 2075.2

E de qual legitimidade o Norte poderia se arrogar para explicar aos países do Sul que eles não podiam dispor de meios para conservar seu alimento refrigerado? O discurso progressista não consistia em afirmar, ao contrário, que há falta de refrigeração no mundo? Hoje, felizmente, constatamos um aumento de seu uso sem impacto na camada de ozônio, pois conseguimos tecnologias que não mais destroem esse gás. Essa singular capacidade dos seres humanos de transformar seu modo de vida é determinante e explica por que Thomas Malthus e seus sucessores modernos se enganam. Não somos como bactérias em uma placa de Petri: contrariamente a outras espécies, não consumimos recursos em um nível constante. Graças ao progresso tecnológico e a escolhas políticas, podemos, se desejarmos, evoluir. E, quando nos deparamos com limites naturais, somos capazes de inovar para ultrapassá-los. A história da nossa espécie poderia, aliás, se resumir a essa disposição. As únicas fronteiras intransponíveis àquilo que

podemos realizar são as leis da física e da lógica: é possível imaginar que nos teletransportemos um dia, pois a ideia não viola nenhuma lei física; mas, pelo mesmo motivo, não é concebível que inventemos uma máquina de movimento perpétuo. Compreendemos facilmente que os defensores do decrescimento não apreciem a comparação com Malthus. Mesmo que uma minoria deteste a humanidade, comparando-a a um vírus tóxico para o planeta, a maioria forja suas convicções no fogo dos combates contra as injustiças sociais que decorrem dos desregramentos ambientais. Eles lembram também que, contrariamente ao reverendo britânico, seu movimento não se interessa pela questão da superpopulação: dedica-se a limitar o crescimento econômico, não demográfico. Mas imaginemos que tenhamos identificado um limite superior à quantidade de bens que é possível produzir sem provocar uma catástrofe ecológica. Imaginemos que a partir de agora a economia mundial se contente com esses volumes. Imaginemos enfim que a sociedade opere uma distribuição perfeitamente igualitária dessa produção em escala planetária, mas que não exista nenhum limite ao crescimento da população. O que aconteceria então? Todo ano nascem novas crianças e os bens disponíveis são distribuídos igualitariamente, mas em uma quantidade menor: a produção estagna, não os nascimentos. Depois de um tempo, todo mundo se encontra automaticamente empobrecido... a menos que a sociedade se imponha um teto demográfico. Dizer que há bens demais em circulação ou gente demais no planeta significa a mesma coisa. Alguns defensores do decrescimento, como Troy Vettese, admitem que, a seus olhos, a ameaça do caos ecológico justifica uma dose de “ecoausteridade” para as populações


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© Bernard Hermant/Unsplash

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do Norte: “Encontrar uma solução para a crise ambiental implica que a burguesia mundial, as algumas centenas de milhões de pessoas mais ricas, reduza seu padrão de vida”3. Vettese não determina quem são esses “milhões de pessoas” que constituem a “burguesia mundial”. Mas, visto que a Europa ocidental e os Estados Unidos contam com cerca de 800 milhões de habitantes, seus leitores podem imaginar que ele não está falando unicamente de Bernard Arnault, dono da LVMH Moët Hennessy Louis Vuitton, e da rainha da Inglaterra. Outros, como o antropólogo Jason Hickel, defendem que o decrescimento não é uma política de austeridade, mas de abundância. É possível imaginar uma redução planejada da produção nas nações com renda elevada, de modo a manter os níveis de vida e até melhorá-los, eles explicam. Segundo Hickel, isso implicaria, por exemplo, redistribuir a riqueza existente. Vejamos mais de perto o que ocorreria na ausência do crescimento econômico. Felizmente, o economista Branko Milanovic, um dos especialistas mundiais na questão das desigualdades, nos facilitou esse trabalho: segundo seus cálculos, a renda média anual, em 2018, era de aproximadamente US$ 5.500.4 Portanto, a proposta de Hickel implicaria reunir todas as rendas superiores a essa soma, de maneira a elevar os mais pobres para o mesmo nível. Cinco mil e quinhentos dólares, ou seja, 4.700 euros (R$ 30 mil) por ano? A maioria dos ocidentais ganha mais, às vezes muito mais do que isso. Na França, segundo o Instituto Nacional da Estatística e dos Estudos Econômicos (Insee), o salário médio bruto anual era de 26.634 euros (R$ 170 mil) em 2015 (últimas cifras disponíveis). Certamente, trata-se de estimativas grosseiras, mas passar de 26.634 para 4.700 euros constituiria uma amputação do nível de vida dos trabalhadores franceses. Segundo os cálculos de Milanovic, os 27% da população mundial que embolsam mais da metade da renda veriam seus benefícios serem cortados em mais de dois terços. Os partidários do decrescimento explicam que essa evolução não se basearia em transferências orçamentárias do Norte para o Sul: o grande ajuste resultaria de um mecanismo que autorizaria o Sul a desenvolver sua produção, enquanto o Norte reduziria progressivamente a sua. Em outras palavras, tratar-se-ia de reduzir em cerca de dois terços a produção de riqueza nos países desenvolvidos. “As fábricas, os trens, os aeroportos funcionariam um terço do tempo atual; a eletricidade, o aquecimento e a água quente fica-

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Podemos sugerir que dois terços da atividade produtiva ocidental são supérfluos? Não são riam disponíveis apenas oito horas por dia; os proprietários de carros só teriam direito a utilizá-los um dia a cada três; e trabalharíamos treze horas por semana”, conclui Milanovic. “Ridículo!”, respondem os defensores do decrescimento. A redução da produção ocidental não seria feita de maneira tão transversal. Ao contrário: tudo o que é benéfico para a sociedade continuaria como antes, enquanto o que é inútil desapareceria. E cabe a Hickel listar os setores “destruidores do ponto de vista ecológico e que têm pouco, ou nenhum, interesse para a sociedade”: o marketing, os 4×4, o boi, o plástico descartável e os combustíveis fósseis. Indiscutivelmente produzimos montanhas de objetos e de serviços inúteis, mas podemos realmente sugerir que dois terços da atividade produtiva ocidental são supérfluos, produzindo coisas que não têm o menor interesse? Daí provêm, provavelmente, as outras soluções imaginadas por Hickel: redução da semana de trabalho, expansão do tempo de lazer e ampliação de serviços sociais generosos. Se todo progressista digno desse nome aplaudiria tais perspectivas, nada indica que elas compensariam o corte anunciado no rendimento de cada um nem que permitiriam reduzir a produção econômica.

Em primeiro lugar, nenhuma quantidade de tempo livre compensa os tormentos da pobreza: a possibilidade de se liberar das pressões profissionais, com risco de não comer, já é oferecida a todos, sem suscitar um entusiasmo desmedido. Na sociedade capitalista, a única coisa mais dura que ser explorado é não o ser. Além disso, a ideia de que o lazer e os serviços sociais emitiriam menos gás de efeito estufa repousa na convicção de que eles não exijam a utilização de produtos manufaturados e não requeiram, portanto, energia nem extração de recursos naturais. Ora, os setores do lazer e de serviços, certamente menos “sujos” que a indústria pesada, não deixam de ser menos poluidores: os instrumentos musicais são fabricados com madeira, metal, plástico; os hospitais estão repletos de equipamentos que necessitam de centenas de minerais diferentes, assim como dos derivados de petróleo; o material de escalada, os caiaques, as bicicletas provêm de materiais que extraímos do solo. Se é crucial restaurar e desenvolver os serviços públicos, especialmente para chegar ao fim da crise de moradia de que as sociedades desenvolvidas padecem, o Estado social não é a única fonte de nosso bem-estar: há também o cinema, os jogos, as máqui-

nas de waffle, as televisões. O sonho segundo o qual a ausência de todos esses bens de consumo – um retorno a uma “vida simples” – seria a receita da felicidade seduziu as camadas mais abastadas da burguesia, pois sonhamos melhor com a simplicidade quando todas as nossas necessidades estão satisfeitas. Uma das críticas internas mais persistentes da União Soviética era de que a vida ali era cinza: sentiam falta de roupas coloridas, música e abacaxis. Nós queremos pão, sim; mas queremos rosas também.  *Leigh Phillips  é autor de Austerity Ecology and the Collapse-porn Addicts: A Defence of Growth, Progress, Industry and Stuff [Austeridade ecológica e os viciados em pornografia em colapso: uma defesa do crescimento, do progresso, da indústria e das coisas], Zero Books, 2015. 1   U ma retomada das emissões não declaradas foi registrada a partir do início dos anos 2010 na Ásia oriental, sugerindo que alguém está mentindo na região. Ver https://ozonewatch. gsfc.nasa.gov/meteorology/annual_data.html. 2   “The Antarctic ozone hole will recover” [Furo na camada de ozônio antártica vai se recuperar], Nasa, 4 jun. 2015. Disponível em: https://svs.gsfc.nasa.gov. 3   Troy Vettese, “To freeze the Thames” [Para congelar o Tâmisa], New Left Review, n.111, Londres, maio-jun. 2018. 4   Branko Milanovic, “The illusion of ‘degrowth’ in a poor and unequal world” [A ilusão do “decrescimento” em um mundo pobre e desigual], Global Inequality, 18 nov. 2017. Disponível em: http://glineq.blogspot.com.


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SUCESSO DE UMA NOÇÃO MENOS INOCENTE DO QUE PARECE

A tirania da benevolência A gestão da crise sanitária apoia-se na obrigação de cada um se proteger e proteger os demais, especialmente os “mais vulneráveis”. O governo francês apela ao altruísmo e, em caso de negligência, a punições. Mas esse chamado à responsabilidade revela uma incitação virtuosa ou um empreendimento de redefinição do cidadão? POR EVELYNE PIEILLER*

© Winny Tapajós

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“I

nformação coronavírus: vamos nos proteger uns aos outros.” A frase, que evoca ao mesmo tempo um preceito bíblico e o slogan de uma companhia de seguros, parece revelar uma verdade evidente, essas sentenças cheias de bom senso espontâneo que não podem ser questionadas. Parece de fato difícil responder com um “por quê?” tempestuoso. Quem poderia se opor a essa magnética incitação, sabendo-se que não cumpri-la implica colocar os outros em perigo? Só resta determinar quais regras devemos seguir para nos proteger uns aos outros: ainda que se possa debater sobre este ou aquele dispositivo, a afirmação inicial é evidente. No entanto, como frequentemente é o caso das verdades evidentes, essa ordem não tem nada de natural; ela tem a ver com a construção de um conjunto de valores e com uma concepção do humano. De modo flagrante, o léxico e as práticas do governo na gestão da crise sanitária permitiram a entrada em cena da “filosofia do care”, promovida agora por Martine Aubry, prefeita de Lille.1 Um tanto zombada até pouco tempo atrás, a noção hoje é um furor. Emmanuel Macron batizou de “Care” (Comitê Análise Pesquisa e Especialização, na sigla em francês) a instância encarregada de “guiar a decisão governamental nas áreas médicas e sociais”; o ministro da Saúde, Olivier Véran, o saudou, no Journal du Dimanche (16 maio 2020), como um “conceito muito moderno”. O termo inglês care significa “cuidado” e também “solicitude” (os apreciadores de ficções anglo-saxãs conhecem o incansável “Take care” com o qual os personagens se despedem, com um ar geralmente preocupado). Um pensamento do care foi elaborado primeiro por feministas norte-americanas, a filósofa Carol Gilligan e a cientista política Joan Tronto, que, para além de uma reabilitação das profissões do cuidado e das pessoas que trabalham com isso, tem por objetivo, mais radicalmente, introduzir questões éticas na política. Trata-se de fato de colocar “a vulnerabilidade no coração da moral, em vez de valores como a autonomia, a imparcialidade, a igualdade”.2

Como sublinha de maneira esclarecedora obra recente assinada por uma ex-ministra socialista e uma filósofa que fez parte da equipe da campanha presidencial de Benoît Hamon, essa vontade se apoia na convicção de que “vivemos no mito de nossa autonomia e de nossa independência – valores da sociedade moderna desde o Iluminismo”.3 A afirmação merece que paremos e nos concentremos, sob a cobertura moral, no sentido propriamente político

do care. Parece um belo truque de mágica: confundir “autonomia” simplesmente, noção impressionantemente vaga, e “autonomia da razão”, que, construída ao longo de um grande trabalho de emancipação dos preconceitos, possibilita que se pense livremente, que se funde um julgamento, e por meio disso, permite o estatuto de cidadão. É essa autonomia... da razão, projeto do Iluminismo, mas também de René Descartes, de Baruch Spinoza, de Emmanuel

Kant, que é deslegitimada como “valor central” pela “antropologia da vulnerabilidade”.

UMA “REGRA DE VIDA” PARA MACRON Característica do pensamento do care,4 o termo “vulnerável” se tornou, no contexto da pandemia, obsessivo. Mesmo que seja claro que ele permite evitar a palavra “velhos”, seu uso não testemunha unicamente certa delicadeza. Para o dicionário Larousse, a


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to social. Ela deseja extrair este último de sua igualdade “abstrata”, de seu universalismo “frio”, para orientá-lo para inter-relações fundadas sob a percepção de uma desigualdade de fato. A democracia terá finalmente um “conteúdo sensível”: 8 as vulnerabilidades singulares serão levadas em conta pelas políticas em nome de uma benevolência reparadora; é sobre a base das diferenças que será definida uma nova, autêntica e carnal ação de um processo de compensação, integrando a assimetria essencial entre a constelação dos mais fracos e dos outros. Mas, se é patente que a igualdade de direitos não é suficiente para garantir a igualdade real, de acordo com que normas fundar esses novos direitos diferenciados? Quem será escolhido como objeto político da benevolência? Com base em que vamos determinar quais cidadãos minorados – em todos os sentidos do termo – deverão ter sua minoração reparada? A benevolência generalizada será suficiente para justificar o princípio da diversidade de tratamento? Ainda mais porque, como pressentia Macron quando era candidato à eleição presidencial (“Eu sempre cultivei a benevolência, com a esperança secreta, grudada no corpo, de que ela era contagiosa”, Lille, 14 jan. 2017), essa bela disposição por vezes é um padrão de comportamento. Sem medo de chocar, Frédéric Worms, membro do Comitê Nacional de Ética, nos lembra: “A malevolência é bem mais universal do que a bondade”.9 Para generalizar a benevolência – por vezes volátil – em relação aos vulneráveis, é preciso pôr em jogo outra noção, que não vem da esfera das emoções, mas da consciência: o sentimento de responsabilidade. É a versão cívica da benevolência. Padrinho espiritual do care, o filósofo alemão Hans Jonas, ex-aluno de Martin Heidegger, define o campo em sua obra principal, O princípio responsabilidade (1979), cujo título afirma sua oposição ao Princípio esperança, de Ernst Bloch. Crítico da “utopia marxista”, esse ensaio, animado pela necessidade de lutar contra a capacidade que a humanidade possui de se autodestruir, afirma que “é preciso prestar mais atenção à profecia da infelicidade do que à profecia da felicidade” e que “o medo se torna a primeira obrigação”. Mas é importante que esse medo, indispensável percepção da vulnerabilidade do vivo, se torne uma ferramenta de preservação da vida. Ele deve então ser acompanhado da interiorização, para cada um, de sua “responsabilidade” na manutenção da vida. “Ser responsável significa aceitar ser ‘sequestrado’ pelo que há de mais frágil e de mais ameaçado”, explicita.

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palavra designa “Quem está exposto a receber ferimentos, golpes; quem está exposto aos efeitos de uma doença; que pode servir de alvo fácil aos ataques de um inimigo”. Em outras palavras, é “vulnerável” quem está em posição de fraqueza. Nada implica que ele deve ser protegido pelos fortes. Nada, a não ser nossa aptidão à benevolência, a mesma que levou alguns a... cuidar do outro com solicitude. Todos já perceberam que a benevolência está furiosamente na moda – foi inclusive a palavra do ano em 2018 para o dicionário Le Robert. Ela está em todos os lugares: no gerenciamento – em 2011, 228 empresas francesas, entre elas a France Télécom e o HSBC, assinaram um “chamado à benevolência no trabalho” por iniciativa da revista mensal Psychologies Magazine –, na pedagogia,5 nos tuítes de Edgar Morin, nos festivais de música6 e nos discursos políticos. Macron a reivindica sem hesitar: “Tenho uma regra de vida, tanto para mulheres e homens quanto para as estruturas: a benevolência” (France 2, 10 abr. 2016). Mais amplamente, a noção se irradia nas declarações de todo tipo. Até mesmo o presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, se apropriou dela, em sua mensagem para a Conferência sobre o Estado da União (8 maio 2020), na qual pediu uma “sociedade da dignidade e da benevolência”. Por mais simpática que seja, porém, a noção não é assim tão límpida quanto parece. Segundo o dicionário Larousse, trata-se de uma “disposição de espírito inclinando para a compreensão, a indulgência em relação ao outro”. Isso coloca o benévolo em superioridade em relação ao objeto de sua amável indulgência. A intenção é boa, o que não impede que sua valorização e seu papel levantem algumas questões, pois a benevolência, que forma com o care e a vulnerabilidade uma trilogia conceitual, é uma impressionante ferramenta ideológica. É o que nota com pertinência uma das filósofas dessa trilogia, Fabienne Brugère: “Na França, por exemplo, a ligação social parece fundada em antagonismos. [...] Essa maneira de ver pode se desenvolver na França porque somos um país laico e até amplamente ateu”. Em resumo, “talvez a França tenha dificuldade em pensar a sua relação ao outro”, já que, aqui, “a política só existe por meio do antagonismo”. Isso implica “construir a benevolência não somente na moral, mas também na política”.7 Sim, aí está de fato uma “questão política crucial”, como tinha finamente notado, na entrevista já citada, o ministro da Saúde Véran. A necessidade reivindicada da benevolência é o agente discreto de um desejo de modificar nosso contra-

Para Jonas, “a responsabilidade é a solicitude, reconhecida como um dever, de outro ser que, quando sua vulnerabilidade está ameaçada, se torna um ‘se preocupar com’”. É imperativo que esse dever seja respeitado, o que não é simples, como indicava Worms. E é por isso que “a democracia, como ela funciona atualmente – e orientada como ela é sobre o curto prazo –, não é efetivamente a forma de governo que convém a longo prazo”. Mais vale uma “tirania benevolente”10 para, de maneira responsável, impor a todos que se comportem de maneira responsável, como – exemplo que Jonas adora lembrar – são nossos pais. Macron entendeu direitinho: ele gosta, ao longo de suas decisões, de evocar “nossos filhos”, “nossos concidadãos mais vulneráveis”. Ainda que tenham encontrado diversas preocupações ecológicas (proteger a natureza) que lhes deram um enquadramento teórico, assim como diversas organizações de defesa dos “mais frágeis”, essas considerações político-metafísicas também têm uma forte influência sobre as normas internacionais e os conceitos jurídicos que ditam a necessidade e as regras do “princípio de precaução” – constitucionalizado na França desde 2005. Elas entraram, de maneira contemporânea, em ressonância com as preocupações das instituições internacionais. Desde 1994, o Relatório Mundial sobre o Desenvolvimento Humano, do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, para o qual contribuiu o economista Amartya Sen, recentralizou a questão sobre a segurança da pessoa e assinalou uma temática nova, acordando politicamente a primazia do medo.

NOVA CONCEPÇÃO DE CIDADÃO Em 2001, o relatório da Comissão Internacional sobre Intervenção e Soberania dos Estados, sob a égide das Nações Unidas, se intitulava “A responsabilidade de proteger”, noção que seria endossada em 2005, no Documento Final do Encontro Mundial. Essa elaboração terminou por redefinir o dever de proteção das populações pelos Estados. Foi então reconhecida para a “comunidade internacional” uma competência em caso de “falha manifesta”. É esse conceito que foi invocado, pela primeira vez, em fevereiro de 2011, a fim de autorizar uma intervenção armada na Líbia, destinada a garantir a proteção da população civil contra a vontade do Estado.11 Exigir a tomada de responsabilidade em um dever de proteção dos vulneráveis se revela, assim, uma empreitada que se vincula muito mais radicalmente com o político do que com o realismo prudente ou com a

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simples “humanidade”. É uma concepção nova do cidadão que se instala, e é importante não deixar o sentimentalismo, a culpa ou até mesmo a generosidade do altruísmo mascararem suas questões. A sociedade é considerada um conjunto orgânico que somente a coerção pode dirigir ao Bem; as decisões políticas são justificadas pela antecipação do pior; a emancipação não passa mais pelo desenvolvimento do espírito crítico, mas pelo reconhecimento de uma fragilidade constitutiva e de uma interdependência generalizada, noções que encontramos no centro desses propósitos da colapsologia ou das ideias “comuns”. Macron, em seus votos para 2020, pôde assim sublinhar que a reforma da Previdência repousa “sobre um princípio de responsabilidade”. Por outro lado, não há questão de princípio ou de dever em relação aos operários da fábrica da Bridgestone em Béthune, ameaçados de demissão. O governo denuncia a “brutalidade” do anúncio, mas não impõe a “benevolência”. Da mesma maneira, os 650 mil acidentes de trabalho relatados em 2019 provavelmente não o afligem. O care tem seus limites.  *Evelyne Pieiller  é jornalista do Le Monde Diplomatique. 1   L er “Liberté, égalité... care” [Liberdade, igualdade... care ], Le Monde Diplomatique, set. 2010. 2   Sandra Laugier, artigo “Care”, Encyclopaedia Universalis. 3   Najat Vallaud-Belkacem e Sandra Laugier, La Société des vulnérables. Leçons féministes d’une crise [A sociedade dos vulneráveis. Lições feministas de uma crise], Gallimard, Paris, 2020. 4   J oan Tronto, Un monde vulnérable. Pour une politique du care [Um mundo vulnerável. Por uma política do care ], La Découverte, Paris, 2009. 5   Ler Clothilde Dozier e Samuel Dumoulin, “La ‘bienveillance’, cache-misère de la sélection sociale à l’école” [A “benevolência”, o esconde-miséria da seleção social na escola], Le Monde Diplomatique, set. 2019. 6   Flora Santo, “Paris: Manifesto XXI organise son festival sous le signe de la bienveillance et de l’amour” [Paris: Manifesto XXI organiza seu festival sob o signo da benevolência e do amor], Trax, 2 set. 2020. Disponível em: www. traxmag.com. 7   Philippe Douroux, “Fabienne Brugère: ‘Il faut construire de la bienveillance non seulement dans la morale, mais aussi en politique’” [Fabienne Brugère: “É preciso construir a benevolência não somente na moral, mas também na política”], Libération, Paris, 5 ago. 2016. Cf. também Fabienne Brugère, L’Éthique du care [A ética do care ], Presses Universitaires de France, Paris, 2017. 8   Fabienne Brugère, “Pour une théorie générale du care” [Por uma teoria geral do care ], La Vie des Idées, 8 maio 2009. Disponível em: https://laviedesidees.fr. 9   Frédéric Worms, Sidération et résistance. Face à l’événement (2015-2020) [Sideração e resistência. Diante do acontecimento (20152020)], Desclée de Brouwer, Paris, 2020. 10   Hans Jonas, Le Principe responsabilité [O princípio responsabilidade], Flammarion, Paris, 2013. 11   Ler Anne-Cécile Robert, “Origines et vicissitudes du ‘droit d’ingérence’” [Origens e vicissitudes do “direito de ingerência”], Le Monde Diplomatique, maio 2011.


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MISCELÂNEA

livros

internet

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ruto de um amplo processo colaborativo, o livro é uma ode aos povos do Cerrado, verdadeiros guardiões e multiplicadores das riquezas dessa imensa região. Os povos do Cerrado são diversos. São indígenas de tronco Macro-Jê (como os Xerente, Xakriabá, Apinajé e Xavante), mas também Tupi-Guarani (como os Guarani e Kaiowá) e Arawak (como os Terena). São comunidades quilombolas, como os Kalunga, os jalapoeiros e centenas de outras pelos sertões do Cerrado. São comunidades tradicionais, tão diversas como o próprio Cerrado e que têm sua vida entrelaçada nas árvores e plantas, bichos, chapadas, vales e águas da região, como as quebradeiras de coco-babaçu, raizeiras, geraizeiras, fecho de pasto, apanhadoras de flores sempre-vivas, benzedeiras, retireiras, pescadoras artesanais, vazanteiras e pantaneiras. São, ainda, as

VIDAS NEGRAS IMPORTAM E LIBERTAÇÃO NEGRA Keeanga Yamahtta-Taylor, Editora Elefante

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primeiro passo para enfrentar o racismo estrutural é compreender as narrativas que legitimam a opressão e entender como o modus operandi das instituições resulta em maiores taxas de pobreza e violência contra negros. Considerando isso, é possível partir para a resistência e a luta. É nesse sentido que Keeanga Yamahtta-Taylor analisa o combate à conjuntura político-social norte-americana, em que a igualdade só existe na letra morta da lei. Taylor percorre documentos e bibliografia especializada para desvendar a retórica do daltonismo racial modelada nos anos pós-segregação: doravante o sonho norte-americano estaria disponível a todo e qualquer cidadão que primasse pelo esforço, independentemente de sua cor. Daí para o consentimento tácito da violência policial é um passo. Em contraposição, ela destrincha a pauta do Black Lives Matter sobre a ineficácia da estra-

NOVAS NARRATIVAS DA WEB

[Diana Aguiar e Helena Lopes] Respectivamente, assessora política da Campanha Nacional em Defesa do Cerrado e pesquisadora de pós-doutorado no CPDA/UFRRJ; e especialista em Agroecologia e Justiça Climática da ActionAid e doutoranda em Ciências Sociais no CPDA/UFRRJ.

Toda ação humana tem impactos em outras espécies – não há vida na Terra desconectada de algum ecossistema. O Antropoceno é o período geológico em que as ações humanas causaram impactos irreversíveis ao planeta. A proposta desse site é tentar relacionar esses impactos causados por uma infraestrutura imperial e industrial. Traz inúmeros artigos e conexões interativas para que você siga alguma linha de raciocínio proposta. Foi também publicado como livro pela Stanford University Press. https://feralatlas.supdigital.org

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SABERES DOS POVOS DO CERRADO E BIODIVERSIDADE Vários autores, Campanha Nacional em Defesa do Cerrado

assentadas e assentados de reforma agrária e outras populações de base camponesa. Os artigos que compõem esse livro ecoam a memória ancestral de que as paisagens onde a biodiversidade do Cerrado vibra não são representações de uma natureza intocada, e sim patrimônios históricos e socioculturais, fruto da convivência e cuidado dos povos com o Cerrado. Ao mesmo tempo, os relatos e análises mostram que esses saberes tradicionais vão se transformando, sendo desenvolvidos e continuamente testados, adaptados e reinventados por meio do manejo consciente das paisagens, ao longo de inúmeras gerações, e por isso mesmo são resilientes, diversos e apropriados a cada lugar. Essa conexão entre tradição e inovação – em meio a uma profunda crise ecológica mundial e mesmo após décadas de devastação do Cerrado pelo agronegócio monocultor – está entre os maiores legados dos povos do Cerrado, partilhando horizontes de vida, agora e para o futuro.

tégia de remediação da violência via repressão, denunciando a diminuição constante dos investimentos sociais que poderiam a médio prazo produzir resultados mais efetivos. Em um mundo de oportunidades desiguais, a ascensão de pessoas negras torna-se exceção instrumentalizada para confirmar a regra – de que o baixo acesso aos serviços sociais de qualidade segue promovendo a marginalização de negros pobres. “Sempre houve diferenças de classe entre afro-americanos, mas é a primeira vez que elas se expressam por uma minoria de negros que exerce significativo poder político e autoridade sobre a maioria das vidas negras”, pois isso levanta questões importantes “sobre o papel da elite negra na contínua luta pela libertação e de que lado ela está.” A autora alerta que “Exigir tudo é tão eficaz quanto não exigir nada”, cutucando os que criticam pautas identitárias em nome do materialismo histórico. É fundamental, segundo ela, que os ativistas do Black Lives Matter revejam questões não resolvidas pelo movimento negro histórico, entre elas a cooptação da luta pelo capital e a ausência de solidariedade com outros grupos marginalizados. [Vanessa Machado] Historiadora.

Sites e projetos que merecem seu tempo EDUCAÇÃO SOB VIGILÂNCIA Mais de 65% das instituições públicas de educação no Brasil usam softwares baseados em modelos de negócios que extraem dados pessoais para obter previsões sobre o comportamento dos usuários e, com isso, ofertar produtos e serviços. Educação Vigiada é uma iniciativa de acadêmicos e membros de organizações sociais que apresentam no site uma ampla pesquisa para incentivar um debate na sociedade em relação aos impactos sociais da vigilância. https://educacaovigiada.org.br ATLAS DO ANTROPOCENO

TRABALHO DIGITAL DigiLabour é uma newsletter sobre mundo do trabalho e tecnologia produzida por Rafael Grohmann, professor do mestrado e doutorado em Ciências da Comunicação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Traz entrevistas, traduções de trechos de livros, uma varredura sobre assuntos como comunicação no mundo do trabalho; dataficação; capitalismo e cooperativismo de plataforma; circulação de sentidos; trabalho humano e inteligência artificial; organização coletiva de trabalhadores no mundo conectado. O site tem o arquivo de todas as newsletters distribuídas. https://digilabour.com.br [Andre Deak] Diretor do Liquid Media Lab, professor de Jornalismo e Cinema na ESPM, mestre em Teoria da Comunicação pela ECA-USP e doutorando em Design na FAU-USP.


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CANAL DIRETO

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SUMÁRIO LE MONDE

A revolta das sul-coreanas “As séries sul-coreanas têm retratado essas questões do machismo.” Marlin Baldan, via Instagram Em Liverpool, o futebol como definidor da identidade “Os investidores norte-americanos souberam usar muito bem essa identificação da cidade com o time, mas essa paixão fervorosa sempre existiu.” Cello, via Instagram Moscou sonha em se tornar uma cidade global “Eu discordo do artigo, o Kremlin tem adotado políticas públicas de segregação.” Edu Simões, via Instagram As privatizações disfarçadas na África “Não é privatização disfarçada, é privatização declarada.” Aldenir Dias, via Instagram

diplomatique

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Editorial

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Eleições nos Estados Unidos

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A implosão do sistema político Por Silvio Caccia Bava

A amarga vitória democrata Por Serge Halimi O grande desfile de lágrimas Por Thomas Frank Um trumpismo sem Donald Trump Por Jerome Karabel Capa

Periferias de São Paulo: conjuntura e pós-pandemia Por Tiaraju Pablo D’Andrea Emergência climática e o futuro das cidades Por Henrique Botelho Frota Confinamento esvazia as metrópoles

A vingança do campo Por Benoît Bréville

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Todas iguais, mas umas mais iguais que as outras

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Contra escassez e falsificações

As redes “feministas” das maiores empresas cotadas na Bolsa de Paris Por Maïlys Khider e Timothée De Rauglaudre

A emergência de uma indústria farmacêutica africana Por Severine Charon e Laurence Soustras

DIRETORIA Diretor da edição brasileira e editor-chefe Silvio Caccia Bava Diretores Anna Luiza Salles Souto, Maria Elizabeth Grimberg e Rubens Naves Editor Luís Brasilino Editora-web Bianca Pyl Editor de Arte Cesar Habert Paciornik Estagiária Gabriela Bonin Revisão Lara Milani e Maitê Ribeiro Gestão Administrativa e Financeira Arlete Martins Assinaturas assinaturas@diplomatique.org.br Tradutores desta edição Carolina M. de Paula, Frank de Oliveira, Lívia Chede Almendary, Rita Grillo e Wanda Brant Conselho Editorial Adauto Novaes, Amâncio Friaça, Anna Luiza Salles Souto, Ariovaldo Ramos, Betty Mindlin, Claudius Ceccon, Eduardo Fagnani, Heródoto Barbeiro, Igor Fuser, Ivan Giannini, Jacques Pena, Jorge Eduardo S. Durão, Jorge Romano, José Luis Goldfarb, Ladislau Dowbor, Maria Elizabeth Grimberg, Nabil Bonduki, Raquel Rolnik, Ricardo Musse, Rubens Naves, Sebastião Salgado, Tania Bacelar de Araújo e Vera da Silva Telles. Assessoria Jurídica Rubens Naves, Santos Jr. Advogados Escritório Comercial Brasília Marketing 10:José Hevaldo Rabello Mendes Junior Tel.: 61. 3326-0110 / 3964-2110 jh@marketing10.com.br

Documentário “Negligência de quem?” “Tiram a floresta dos índios e agora até as crianças. Como uma mãe vai confiar que um governo tão preconceituoso e contra todo indígena vai cuidar bem dos seus filhos?” Gabriel Baleeiro, via Facebook

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Máxima influência com o mínimo esforço

Fantasmas em torno de uma “ofensiva chinesa” nas Nações Unidas Por Jeanne Hughes

Rua Araújo, 124 2º andar – Vila Buarque São Paulo/SP – 01220-020 – Brasil Tel.: 55 11 2174-2005 diplomatique@diplomatique.org.br www.diplomatique.org.br

“As ações públicas feitas sob a ótica dos preconceitos e estereótipos étnicos e raciais. Muito triste essa situação toda. Como disse a defensora pública, esses preconceitos enraizados não deixam que essas pessoas possam ver a verdade sobre os povos indígenas e respeitar a cultura deles.” Dri Alves, via Facebook

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Uma mascote eternamente isenta de responsabilidades

Assinaturas: Leila Alves assinaturas@diplomatique.org.br Tel.: 55 11 2174-2015

Árabes divididos sobre a questão palestina

A lua de mel entre os países do Golfo e Israel Por Akram Belkaïd

A indestronável monarquia britânica Por Lucie Elven

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Educação

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Medidas tão antidemocráticas quanto ineficazes

Participe de Le Monde Diplomatique Brasil : envie suas críticas e sugestões para diplomatique@diplomatique.org.br As cartas são publicadas por ordem de recebimento e, se necessário, resumidas para a publicação.

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Os artigos assinados refletem o ponto de vista de seus autores. E não, necessariamente, a opinião da coordenação do periódico.

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Capa: © Lila Cruz

BRASIL

Ano 14 – Número 161 – Dezembro 2020 www.diplomatique.org.br

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Editorial de novembro “O editorial mostra bem o que é esse ódio. Sou neto de italianos, branco, fui casado com uma mulher preta e fomos discriminados até por meus familiares, com os quais cortei relações. A tal ‘miscigenação’ foram centenas de estupros cometidos por senhores brancos e religiosos.” Orlando São Paulo, por e-mail

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A capa de toureiro da liberdade universitária Por Dominique Pinsolle

Quem vai parar a máquina repressiva? Por Vincent Sizaire Música

O desastre. E depois? Por Éric Delhayej Combate às mudanças climáticas

As ilusões do decrescimento Por Leigh Phillips Sucesso de uma noção menos inocente do que parece

A tirania da benevolência Por Evelyne Pieiller

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Miscelânea

Le Monde Diplomatique Brasil é uma publicação da associação Palavra Livre, em parceria com o Instituto Pólis.

Impressão D’ARTHY Editora e Gráfica Ltda. CNPJ: 01.692.620/0001-00, Parque Empresarial Anhanguera - Rod. Anhanguera Km 33 - Rua Osasco, 1086, Cep: 07753-040 - Cajamar - SP

LE MONDE DIPLOMATIQUE (FRANÇA) Fundador Hubert BEUVE-MÉRY Presidente, Diretor da Publicação Serge HALIMI Redator-Chefe Philippe DESCAMPS Diretora de Relações e das Edições Internacionais Anne-Cécile ROBERT Le Monde diplomatique 1 avenue Stephen-Pichon, 75013 Paris, France secretariat@monde-diplomatique.fr www.monde-diplomatique.fr Em julho de 2015, o Le Monde diplomatique contava com 37 edições internacionais em 20 línguas: 32 edições impressas e 5 eletrônicas. ISSN: 1981-7525


ANO 14 / Nº 161

ELEIÇÕES NOS EUA

A AMARGA VITÓRIA DEMOCRATA POR SERGE HALIMI E OUTROS

R$ 18,00

05

UM CONTINENTE NEGLIGENCIADO

A EMERGENTE INDÚSTRIA FARMACÊUTICA AFRICANA POR SEVERINE CHARON E LAURENCE SOUSTRAS

LE MONDE

17

ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADES

A INDESTRONÁVEL MONARQUIA BRITÂNICA POR LUCIE ELVEN

26

diplomatique .

BRASIL

PROJETOS DE CIDADE EM DISPUTA


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