.
2
Le Monde Diplomatique Brasil JANEIRO 2021
“A AMÉRICA ESTÁ DE VOLTA, PRONTA PARA GOVERNAR O MUNDO”
Quem será o próximo inimigo? POR SERGE HALIMI*
dos os caminhos levam a Putin”. Os republicanos, num “olho por olho” que evoca as briguinhas do jardim de infância, respondem com o slogan “Pequim Biden”, porque o segundo filho do novo presidente, Hunter Biden, fez negócios na China, e a globalização, atribuída aos democratas, fez os negócios da China. CQD. Assim, em 10 de dezembro, o secretário de Estado, Mike Pompeo, trabalhou para aumentar o fosso entre os dois países. Invocando, sem rir, sua preocupação com o respeito à privacidade, aquele que também foi diretor da CIA alertou o mundo: “[O presidente chinês] Xi Jinping está de olho em cada um de nós”. Em seguida, ele atacou os 400 mil estudantes chineses enviados aos Estados Unidos a cada ano, dos quais uma parte viria roubar segredos industriais e científicos; as próprias universidades norte-americanas, “muitas devem ter sido compradas por Pequim”; finalmente, citou os produtos da empresa Huawei, com os quais todo usuário se colocaria “nas mãos do aparato de segurança chinês”.2 Esse é o refrão que os republicanos vão opor a Biden. Ele fará ecoar os quatro anos de paranoia antirrussa alimentada pelos democratas contra Trump. Mar da China, Taiwan, destino dos uigures, Hong Kong: tudo será pretexto para testar a determinação antichinesa da nova administração. Rasmussen foi claro em pelo menos um ponto: “Uma fila de aliados
© Cesar Habert Paciornik
.
O
cartão de Anders Fogh Rasmussen não esperou pela véspera do Ano-Novo. O ex-secretário-geral da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) resumiu assim a missão que esta deverá cumprir, segundo ele, assim que Donald Trump tiver deixado a Casa Branca: “Em 2021, os Estados Unidos e seus aliados terão uma oportunidade que se apresenta apenas uma vez a cada geração: reverter o recuo global das democracias em face de autocracias como a Rússia e a China. Mas para isso será necessário que as principais democracias se unam”.1 O que muitas delas fizeram – uma geração atrás, precisamente – invadindo o Afeganistão, depois o Iraque. Portanto, é hora, aparentemente, de enfrentar adversários mais poderosos... Mas por qual começar? Já que Washington pretende garantir a liderança da cruzada democrática – “A América está de volta, pronta para governar o mundo”, proclamou Joe Biden em 24 de novembro de 2020 –, os países-satélite deveriam entender que os norte-americanos não têm mais um acordo quanto à identidade de seu principal adversário. As razões têm pouco a ver com a geopolítica mundial e tudo a ver com suas divisões internas. Para os democratas, o inimigo é principalmente russo, já que, durante quatro anos, os líderes desse partido têm repetido, tal como Nancy Pelosi, presidente da Câmara dos Deputados, que “com Trump to-
preocupados espera o presidente eleito, Joe Biden, do lado de fora da porta”. Mas, em aliança com uma potência mentalmente abalada, eles não encontrarão sua tranquilidade tão cedo. *Serge Halimi é diretor do Le Monde Diplomatique.
1 A nders Fogh Rasmussen, “A new way to lead the free world” [Uma nova maneira de liderar o mundo livre], The Wall Street Journal, Nova York, 16 dez. 2020. 2 Michael R. Pompeo, “The Chinese Communist Party on the American campus” [O Partido Comunista Chinês no campus americano], discurso no Instituto de Tecnologia da Geórgia, Atlanta, 9 dez. 2020. Disponível em: www.state.gov.
JANEIRO 2021
Le Monde Diplomatique Brasil
3
EDITORIAL
Lições aprendidas sobre a democracia brasileira POR SILVIO CACCIA BAVA
orçamento da nação”, declaram. E intensificam-se os ataques às representações populares. Os sindicatos perdem seu financiamento. O PT torna-se alvo de uma campanha sistemática de destruição de sua imagem. As manifestações de rua são duramente reprimidas. A polícia militar implanta o regime de terror. A democracia se fragiliza. As elites presentes no Judiciário perseguem as representações populares. As maiorias no Congresso obedecem às elites financeira, do agronegócio e industrial. Não há mais o pequeno espaço para a negociação dos interesses populares. O teto dos gastos sociais impõe o arrocho e a espoliação. Esse novo cenário requer um governo autoritário. Michel Temer e Jair Bolsonaro vão cumprir esse papel. A manipulação da opinião pública por meio das redes sociais gera o ódio e a perseguição como programa de governo. A necropolítica substitui o
.
I
nternacionalmente, a democracia moderna expressa a proposta de um pacto social entre as classes. Por meio da Constituição e das leis, ela estabelece as regras de negociação dos interesses diversos, por vezes contraditórios, presentes na sociedade. Os espaços de negociação são o Congresso, as Assembleias Legislativas, as Câmaras Municipais. As decisões se tomam por maioria, e as eleições – no Brasil, de quatro em quatro anos, tanto no Executivo como no Legislativo – garantem a possibilidade de alternância no poder. Criada pela burguesia, a democracia moderna foi feita sob medida para atender a seus interesses. De início, os que tinham direito a votar eram apenas os mais privilegiados, mas as mudanças na sociedade e as pressões vindas de baixo foram ampliando esse direito para as mulheres, para os analfabetos, para os mais jovens, a ponto de hoje o voto ser direito universal. O controle da política, porém, não escapava da burguesia. Com o poder do dinheiro e o comando dos meios de comunicação, ela garantia a maioria nas casas legislativas e elegia prefeitos, governadores e o presidente da república. Ainda hoje é assim, mas a sociedade de massas foi mudando esse cenário. Em muitos países da América Latina, no século XXI foram eleitos governos populares e os legislativos passaram a ter uma presença expressiva de representantes populares. No Brasil, esse processo começou em 1985, nas eleições municipais; em 1998, conquistou governos estaduais; em 2002, a Presidência da República, mantida por quatro eleições seguidas. O pacto social que garantia os privilégios das elites e a apropriação, por parte destas, da imensa maioria das riquezas produzidas por nossa sociedade, com o reconhecimento de alguns direitos para as maiorias, como a criação do SUS, passa a incomodar. Com a desarticulação do mundo do trabalho, as mudanças desmontam também a capacidade de pressão dos trabalhadores. Essa combinação é nefasta para a democracia das elites. E vem o golpe de 2016. “Negociar para quê, se não temos ameaças dos setores populares?”, dizem a Fiesp, a CNI, a Febraban. “As necessidades sociais não cabem no
© Claudius
pacto social. A extrema direita cresce e mostra sua cara. As milícias tomam conta do aparelho do Estado. A destruição da cultura, da educação, da ciência, do meio ambiente, das políticas sociais, da democracia é feita de maneira sistemática e cotidiana. Os executores são os capangas, mas os mandantes são as elites. Associado a uma pauta de valores conservadores e fundamentalistas e à intolerância com a diversidade, o programa é a destruição do Estado, abrindo espaço para a sanha das empresas privadas, para os grandes grupos econômicos e financeiros. Os recursos públicos servem para alavancar os negócios desses grupos, não se destinam a atender às necessidades sociais ou a criar bens públicos. E assim chegamos ao fim de uma etapa da história. Ao fim de uma proposta de convivência negociada em nossa sociedade. Ao fim da democracia tal qual ela foi construída por nos-
sas elites e ampliada pelas lutas dos trabalhadores. Não dá para querer reconstruir o que foi demolido. É um momento crítico, marcado por recessão, desemprego, fome e pandemia. O que vem pela frente nos enche de angústia e desalento. Mas pode ser diferente. Olhando à nossa volta, vemos o Chile, que passou por situações até piores que a brasileira, lutou agora, nas ruas, durante mais de um ano, com as maiores mobilizações populares de sua história, e conquistou o direito de criar uma nova democracia, de novo tipo, popular, participativa, com sua Constituinte independente e soberana. A Bolívia também supera o abraço da morte de suas elites. A força das mobilizações populares garante novas eleições e retoma o governo do Estado para abrir um novo desenho de democracia, passando de uma democracia participativa para uma democracia comunitária, como eles propõem. Em vários outros países da América Latina, como no Peru, as mobilizações populares ocupam o espaço da política, tomam as ruas, apresentam suas demandas. Os negros, os povos indígenas, os movimentos feministas, os sem-terra já nos ensinam os caminhos. Afinal, “é nóis por nóis”, como diz Emicida.
4
Le Monde Diplomatique Brasil JANEIRO 2021
CAPA
A pandemia e o agronegócio no Brasil A entropia interna ao sistema agropecuário global deve ser entendida como uma ameaça existencial para toda a humanidade. O admirável mundo novo das pandemias rebaixou os limites para a existência humana: agora estamos presos debaixo do teto de zinco das granjas de abate de animais em massa, cada uma delas uma fábrica em potencial da próxima bomba microbiológica POR ALLAN RODRIGO DE CAMPOS SILVA*
.
© Alan Santos/PR
ADMIRÁVEL MUNDO NOVO DA PECUÁRIA INDUSTRIAL
Jair Bolsonaro é homenageado em Sinop (MT) em ato do agronegócio
A
estratégia diversionista praticada pelo governo Bolsonaro de tola não tem nada. Suas peças se orientam por táticas de contrainteligência. A confusão dirige e antecipa a imagem do inimigo da vez, enquanto qualquer responsabilidade é dirimida em um malabarismo macabro, nascido do obscurantismo e do desejo de morte. Foi assim nos episódios do derramamento de petróleo no litoral brasileiro e nas queimadas da Amazônia, no já distante ano de 2019. Diante da pandemia de Covid-19 no Brasil, esse governo não agiu diferente: comandou um esforço coordenado para blindar o agronegócio diante de sua responsabilidade na emergência e no contágio por doenças infecciosas emergentes. O Ministério da Saúde chegou a desviar parte de sua verba para peças publicitárias para o agronegócio, num ato de derradeira capitulação. Em 2020, a saúde não foi pop.
A FUMAÇA DA PANDEMIA Ao longo do ano, a pandemia se alastrou pelo território brasileiro como uma linha de pólvora estendida no chão. Fez seu curso através das grandes cidades, depois encontrou seu caminho de interiorização no país nas instalações do próprio agronegócio.
Em junho, no Rio Grande do Sul, 25% dos infectados trabalhavam em frigoríficos de aves de porcos. Logo a doença também alcançou os territórios indígenas. As primeiras contaminações entre guaranis de Mato Grosso do Sul aconteceram nos frigoríficos da JBS. O ambiente de ventilação controlada, o trabalho ombro a ombro e a negligência das empresas diante de funcionários com sintomas da Covid-19 fez dos frigoríficos focos para o superespalhamento da doença. Logo a pandemia aterrissou também nas pistas de pouso do garimpo ilegal invasor das terras Yanomami e Ye’kwana. De acordo com um estudo conduzido pela Rede Pró-Yanomami e Ye’kwana, em novembro de 2020, um em cada três desses indígenas já havia sido exposto ao novo coronavírus. Mas da floresta também se erguem vozes que guardam uma longa memória sobre as doenças trazidas pela colonização. O xamã Davi Kopenawa nos lembra que entre os Yanomami sempre se falou da xawara, a fumaça que emana do metal arrancado pelo homem branco das entranhas da terra. A xawara, a fumaça da epidemia, é uma fecunda alegoria da produção de doenças pela modernização capitalista e a destruição da natureza.
O papel da pecuária industrial na produção de doenças infecciosas não compõe exatamente uma novidade para os pesquisadores especializados. No entanto, desde a epidemia de gripe aviária que matou cem pessoas na China em apenas uma semana, diversas pesquisas apontam a causa da emergência de novas doenças infecciosas na microbiologia viral bastante particular da pecuária industrial globalizada. O modelo de criação animal intensiva remonta aos Estados Unidos dos anos 1940 e surgiu sob os auspícios das sociedades de eugenia humana que popularizaram a noção de melhoramento genético como forma de incremento da dominação humana sobre a natureza. No entanto, ainda que compartilhe esse assoalho comum com a eugenia humana, o melhoramento genético de plantas e animais decantou na ideologia da modernização capitalista como se se tratasse de uma conquista civilizatória biossegura que nos afastaria da insegurança alimentar crônica. Um olhar mais atento às dinâmicas epidemiológicas do setor pode revelar o contrário. De acordo com o biólogo evolucionista Rob Wallace (Pandemia e agronegócio: doenças infecciosas, capitalismo e ciência, Editora Elefante e Igrá Kniga, 2020), as instalações de criação e engorda da pecuária industrial ofereceriam condições ideais para patógenos – vírus e bactérias – testarem caminhos evolutivos que permitiriam o aumento de sua virulência e patogenicidade. Até a chamada revolução agropecuária do século XX, a criação humana de animais para consumo sempre esteve ligada à reprodução dos animais in loco. Essa prática milenar está na base de uma pecuária que amplifica a diversidade genética e imunológica dos bandos de aves, porcos, cordeiros, caprinos e bovinos em todo o planeta. A
consolidação dos complexos agroindustriais trouxe à baila a prática execrável do monocultivo genético, uma bomba-relógio microbiológica em crescente tensão. O enfileiramento de milhares de animais geneticamente similares nos galpões do agronegócio também funciona como uma plataforma de testes para o transbordamento de doenças zoonóticas para as populações humanas. A qualquer momento uma cepa recém-emergente de um coronavírus ou influenza pode assumir um rearranjo genético capaz de infectar humanos – geralmente um trabalhador do agronegócio –, e pronto: está aberta a longa rampa de mais uma epidemia mortal. O paradigma da biossegurança oferece níveis adicionais de pressão para a evolução viral no interior da pecuária industrial. Animais reproduzidos in loco e criados ao ar livre recebem uma espécie de vacina natural, por conviverem com cepas de baixa patogenicidade prevalentes nos animais selvagens. A diversidade genética e imunológica do bando atua como uma barreira epidemiológica para o surgimento de um surto. Já na pecuária industrial, a vacina pode amplificar o problema: o pesquisador Kenneth Shortridge identificou uma linhagem do vírus da influenza altamente patogênica que evoluiu ao longo de anos debaixo das coberturas vacinais oferecidas pelo governo em um frigorífico de Hong Kong. O vírus Sars-CoV-2, que causa a doença Covid-19, ainda não teve sua origem completamente desvelada pelos pesquisadores. No entanto, fortalecem-se as evidências de que se trataria de um vírus zoonótico que percorreu uma série de transbordamentos entre espécies de animais até encontrar seu caminho de infecção em humanos. Ao menos um hospedeiro intermediário, o pangolim, tem presença nessa cadeia de contágios subsequentes por causa da indústria de carnes exóticas em franco processo de modernização na China. De acordo com Rob Wallace, estaríamos já diante de uma enxurrada de novos coronavírus. Em apenas dezessete anos já passamos por três fenômenos de transbordamento de coronavírus que causam doenças em humanos: Sars-1, Mers e Sars-2. Em outubro de 2020, uma pesquisa despertou a atenção de epidemiologistas ao constatar que outro coronavírus, o Sads-CoV, se revelou capaz de infectar células humanas. O Sads-CoV é conhecido por provocar uma síndrome digestiva grave em porcos de criação nos Estados Unidos. As mensagens de alerta não param de chegar: 17 milhões de visons foram sacrificados para interromper um surto na Di-
JANEIRO 2021
ECOLOGIAS PROTOPANDÊMICAS A cadeia de contágio de todas as doenças infecciosas emergentes começa com a destruição da natureza. Um caso exemplar para a nova geo-
grafia global das doenças emergentes está no Delta do Rio das Pérolas, na baía onde estão Hong Kong, Macau e as províncias de Guangzhou e Shenzhen, moradia de 22 milhões de pessoas. Com a abertura da Zonas Econômicas Especiais ao capital internacional nos anos 1980, a ecologia do delta foi radicalmente transformada: terraplanagem, drenagem de áreas úmidas, urbanização extensiva, industrialização e consolidação de complexos agroindustriais. Em todo o planeta, as áreas úmidas como pântanos, turfas e charcos atuam como zonas de pousio e invernada para bandos de aves migratórias que são reservatórios para diversas cepas de vírus da influenza. Contudo, diante de sua alta variabilidade genética, nesses bandos de aves selvagens prevalecem vírus de baixa patogenicidade, já que os de alta patogenicidade em geral infectam alguns indivíduos sem conseguir estabelecer uma cadeia de contágio. À medida que a produção agropecuária avança sobre as áreas úmidas, drenadas para a formação de campos de cultivo, esses bandos de aves perdem suas áreas de pousio e passam a forragear em meio aos restos das produções de grãos das fazendas. Essa pressão aumenta a interface entre
.
namarca. Caso as fazendas de visons houvessem produzido um novo rearranjo genético do vírus Sars-Cov-2, o esforço global de produção de vacinas poderia ter sido seriamente comprometido. Uma futura pandemia que fosse capaz, logo de saída, de infectar humanos e animais de criação seria exponencialmente mais difícil de controlar. O Global Virome Project estima que existam mais de 1 milhão de vírus desconhecidos circulando em animais selvagens, dos quais metade tem potencial para causar zoonoses. A entropia interna ao sistema agropecuário global deve ser entendida como uma ameaça existencial para toda a humanidade. Se nos anos da Guerra Fria a humanidade viveu debaixo do teto de aço da ameaça nuclear, o admirável mundo novo das pandemias rebaixou os limites para a existência humana: agora estamos presos debaixo do teto de zinco das granjas de abate de animais em massa, cada uma delas uma fábrica em potencial da próxima bomba microbiológica.
aves migratórias selvagens e aves de criação. Quando os vírus das aves selvagens infectam, por exemplo, um celeiro de frangos de corte, encontram uma via livre para testar caminhos de evolução para sua patogenicidade e virulência, sem, contudo, contar com os mecanismos de interrupção de doenças com que as florestas e os bandos de animais selvagens possuem em razão de sua biodiversidade. A modernização agropecuária da China, que encarna esse roteiro, eclodiu na epidemia de gripe aviária de 2003. O Pantanal brasileiro, uma das maiores planícies alagáveis do planeta, área de pousio para mais de seiscentas espécies de aves, encaixa-se de maneira perfeita e terrível nesse mesmo arranjo ecológico-econômico. No Pantanal, a criação de aves, a pecuária bovina e a produção intensiva de soja, milho e cana-de-açúcar avançam pari passu com a drenagem das áreas úmidas. A região pan-amazônica é o outro bioma sob profunda ameaça sanitária, já que se trata, com toda a probabilidade, do maior repositório de coronavírus do planeta. A ecologia da Amazônia, profundamente complexa, contém cascatas de controle epidemiológico que os cientistas com muito esforço começaram a desvendar. Vale lem-
Le Monde Diplomatique Brasil
5
brar que a destruição das florestas tropicais africanas e a pressão do agronegócio do óleo de palma produziram a maior epidemia de ebola da história, que levou 11 mil pessoas à morte entre 2013 e 2015. Definitivamente, as mensagens de alerta não param de chegar. Aos poucos a comunidade científica e a sociedade civil tomam conhecimento da poluição epidemiológica inerente ao sistema industrial de criação de animais e à produção de alimentos do agronegócio capitalista. Um mundo onde a criação de animais não esteja sujeita aos ditames autodestrutivos tanto para a biodiversidade como para a própria humanidade pode ser um ponto de partida para o enfrentamento mais amplo do sistema capitalista como um todo. Todavia, o imperativo por transformação já não é mais uma admoestação proselitista, mas uma terrível atualização dos limites para a existência humana sobre o planeta. Falta muito pouco para o “tarde demais”. *Allan Rodrigo de Campos Silva é geógrafo e doutor em Geografia Humana pela USP. Traduziu o livro Pandemia e agronegócio, de Rob Wallace (Elefante e Igrá Kniga, 2020) e é membro do Fórum Popular da Natureza.
Covid-19 na trilha do trabalho precário e vulnerável: os frigoríficos Em lugares onde o setor de frigoríficos possui importância econômica, os casos da doença assumiram papel significativo. O setor se tornou centro de propagação da Covid-19, seja para os municípios-sede dos abatedouros, seja para os circunvizinhos, já que boa parte dos trabalhadores das fábricas se desloca diariamente para o trabalho POR FERNANDO MENDONÇA HECK E LINDBERG NASCIMENTO JÚNIOR*
C
omumente se apregoa o caráter democrático da contaminação causada pelo coronavírus (Sars-CoV-2) causador da Covid-19, que supostamente não diferenciaria gênero, etnia e conta bancária, atingindo toda a população. Afirmamos, em contraposição, que a preservação da saúde em meio à pandemia é uma questão que reforça desigualdades estruturais.1 Levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de junho de 2020, indicou que, entre as pessoas que disseram ter algum sintoma de síndrome respiratória, 68,3% eram pretos ou pardos, contra apenas 30,3% de brancos. Na
comparação entre mulheres e homens, para elas os dados indicaram 57,8%, ante 42,2% no que se referia à apresentação dos sintomas.2 Esses números sugerem questões de extrema importância para a análise da pandemia: desmentem a “democracia” da contaminação pelo vírus e apontam para a necessidade de abordar a determinação social do processo saúde-doença. No Brasil, o vírus chegou por via aérea, ou seja, por meio da parcela da população com condições financeiras de viajar de avião, mas vitimou Rosana Aparecida Urbano, a trabalhadora doméstica da casa, primeira morte no estado do Rio de Janeiro.3
Nas periferias, as precárias condições de moradia, o desemprego, a falta de saneamento, a baixa presença e a difícil situação dos equipamentos de saúde expõem esses territórios a índices de contágio muito maiores do que nas áreas nobres das cidades.4 São as trabalhadoras e trabalhadores que não possuem o direito ao trabalho remoto nem ao isolamento – portanto, obrigados pelas condições de sobrevivência a ir para a rua, a usar transportes coletivos lotados e a trabalhar nos serviços essenciais5 – os mais atingidos pela pandemia. Esse contexto reforça a atualidade do argumento dos estudos da medicina
social latino-americana de que, numa mesma sociedade, as classes que a compõem mostrarão condições de saúde-doença distintas.6 É por essas lentes que observamos com atenção o avanço da pandemia nos frigoríficos, setor que sempre teve como características as condições de trabalho degradantes, com inúmeros casos de acidentes e doenças do trabalho,7 como as lesões por esforços repetitivos (LER/Dort) e agravos à saúde mental, empregos com baixa remuneração (no Brasil, 86% dos trabalhadores ganham no máximo três salários mínimos) 8 e intensa rotatividade da mão de obra. Tais caracterís-
Le Monde Diplomatique Brasil JANEIRO 2021
ticas fazem que, todos os dias, muitos trabalhadores deixem as linhas de abate e processamento de carnes,9 levando as empresas a buscar constantemente homens e mulheres dispostos a suportar tais condições de trabalho para fechar seu quadro de funcionários. É assim que se funda a constante migração pendular para o trabalho de municípios circunvizinhos aos frigoríficos e a busca até mesmo por imigrantes de outros países, no geral em situação vulnerável e sem muitas alternativas. Estes, além de viverem as degradantes condições de trabalho, se estrangeiros, usualmente moram aglomerados em alojamentos precários, isto é, em condições socioeconômicas que favorecem sua exposição ao contágio por Covid-19. Essa situação resulta em números como os divulgados pelo Ministério Público do Trabalho de Santa Catarina10 sobre o percentual de exames positivos para a Covid-19 em um frigorífico fiscalizado: 53,3% entre trabalhadores de Bangladesh, 42,79% entre os haitianos, 39,58% entre os senegaleses e 30,91% entre os venezuelanos. A prevalência de testagem com resultado positivo para os trabalhadores brasileiros foi de 20,26%. Além disso, o fato de as atividades de frigoríficos serem consideradas essenciais não só impediu o isolamento social de milhares de trabalhadoras e trabalhadores, mas também teve papel relevante na propagação da doença em sua fase de interiorização. Apesar de as empresas do setor afirmarem seus compromissos com os protocolos sanitários e as orientações das autoridades de saúde, a realidade concreta mostrou que, para além da aglomeração de trabalhadores nas linhas de produção, refeitórios e outros locais das fábricas, temos outros fatores, como o próprio ambiente refrigerado e com baixa taxa de renovação do ar, situação que fez os casos de Covid-19 em frigoríficos se tornarem expressivos em vários municípios brasileiros. Um estudo verificou o surto de contaminação num frigorífico da Alemanha, chegando a registrar 1.029 casos entre seus 6.500 empregados,11 e identificou que as condições do ambiente de trabalho favoreceram a transmissão viral de um único caso para mais de 60% dos colegas de trabalho a uma distância de até 8 metros. Isso se deu pelos fatores supracitados, e os resultados da pesquisa indicam que, em ambientes como o dos frigoríficos, a distância física de 2 metros não é suficiente para evitar a transmissão, sendo necessárias medidas adicionais, como melhor ventilação e fluxo de ar, instalação de dispositivos de filtragem e uso de máscaras faciais de alta qualidade pa-
FRIGORÍFICOS E COVID-19: REGIÃO SUL (JUNHO DE 2020)
Frigoríficos e Covid-19 Fluxo estimado casa-frigorífico (IBGE, RAIS, e Novo CAGED) Estimativa de trabalhadores do setor em junho/2020 (RAIS e Novo CAGED) Casos de Covid-19 até junho/2020 (MS) Casos de Covid-19 em frigoríficos até junho/2020 (MPT) Município com frigoríficos ou com estimativa de trabalhadores residentes em junho/2020 (IBGE, RAIS e Novo CAGED)
5000
ra minimizar os riscos de infecção.12 É dentro desse contexto que podemos citar alguns eventos ocorridos no Brasil, como o crescimento de três casos de Covid-19 para 193, em apenas 22 dias, num frigorífico do município de Cianorte (PR).13 Ou ainda em Itapiranga (SC), onde a taxa de incidência de Covid-19 chegou a ser três vezes maior no frigorífico do que no próprio município,14 caso que se repetiu em outras localidades do Brasil, por motivos específicos explicados adiante. Isso resulta em ocorrências como a de Ipumirim (SC), pequeno município de Santa Catarina no qual um frigorífico chegou a representar 2% do total de infectados de todo o estado.15 Nesse sentido, temos defendido que, no processo de interiorização do coronavírus pelo Brasil, em lugares onde o setor de frigorífico possui importância econômica, os casos da doença assumiram papel significativo.16 O setor se tornou centro de propagação da Covid-19, seja para os municípios-sede dos abatedouros, seja para os circunvizinhos, já que boa parte dos trabalhadores das fábricas se desloca diariamente para o trabalho (ver mapa). É por isso que em muitos municípios o número de casos de Covid-19 nos frigoríficos apresentou índices maiores do que os registrados pelo Ministério da Saúde para toda a localidade. Assim, a situação da Covid-19 em frigoríficos deve nos encaminhar para uma reflexão sobre os limites e vulnerabilidades do sistema alimentar do agronegócio. É a oportunidade de analisar seriamente como a sociedade capitalista produz, processa e distribui seus alimentos, e como existe determinação social entre as classes sociais que serão mais ou menos afetadas em tempos de pandemia. O caso dos frigoríficos torna claro que são os trabalhadores, sobretudo os mais vulneráveis, e não os grandes cargos
.
6
10000
17254
de gestão, CEOs ou acionistas, os mais expostos ao contágio. Isso quer dizer que a pandemia explicita as desigualdades de condições de saúde-doença entre classes sociais e demonstra que a Covid-19 segue a trilha do trabalho precário e vulnerável. De imediato, é necessário agir e cobrar a identificação de sintomáticos, a aplicação de testes seguros com isolamento de casos positivos e todos os seus contactantes, além de outras medidas previstas pelas autoridades sanitárias, preservando a saúde do trabalhador. Reconhecer o nexo causal17 entre a Covid-19 e o trabalho em frigoríficos, como tem feito o Ministério Público do Trabalho, profissionais de saúde, sindicalistas e pesquisadores compromissados com a preservação dos direitos humanos, é outra ação fundamental. Também é preciso cobrar uma política federal de prevenção e vacinação, afastando o negacionismo e embasando-se em evidências científicas. Para 2021, preocupa a discussão sobre a revisão da Normativa Regulamentadora 36 (NR dos frigoríficos), pois há interesses patronais em enxugá-la de maneira profunda, de modo que perca sua característica fundamental: estabelecer parâmetros mínimos de proteção à saúde e à vida das trabalhadoras e trabalhadores do setor. A defesa da NR-36 se coloca como elemento fundamental para a defesa da saúde do trabalhador. Além disso, torna-se essencial pensar em alternativas históricas sustentáveis, de longo prazo, por meio de um modo de organizar o trabalho que ganhe sentido verdadeiramente humano, subordinado às reais necessidades da sociedade, do coletivo, pois os limites explicitados pela pandemia e o sistema alimentar voltado exclusivamente ao capital estão significando agravos, acidentes e contaminação para a classe trabalhadora.
*Fernando Mendonça Heck é professor de Geografia do Instituto Federal de São Paulo, Campus Avançado Tupã (SP), pesquisador do Centro de Estudos de Geografia do Trabalho (Rede CEGeT de Pesquisadores) e coordenador do Centro de Estudos sobre Técnica, Trabalho e Natureza (Cettran/IFSP); Lindberg Nascimento Júnior é professor do Departamento de Geociências da Universidade Federal de Santa Catarina e pesquisador do Grupo de Estudos em Desastres Naturais (GEDN). 1 V er mais em: Ronan da Silva Parreira Gaia, “Subcidadania, raça e isolamento social nas periferias brasileiras: reflexões em tempos de Covid-19”, Revista THEMA , Pelotas, v.18, ed. especial, p.92-110, 23 jun. 2020. 2 “Mulheres e negros são mais afetados pela Covid-19 no Brasil”, Terra, 24 jul. 2020. 3 M aria Luisa de Melo, “Primeira vítima do RJ era doméstica e pegou coronavírus da patroa no Leblon”, UOL, 19 mar. 2020. 4 Ver o boletim “O corona em São Paulo/SP: percepções e impactos da pandemia na Zona Leste da cidade”, de Altair Aparecido de Oliveira Filho e João Pedro de Almeida Santos. 5 Francisco M. Morais Soares, Kirley K. Batista Mesquita, Camilo H. Freitas Andrade, Dayllana Lima Feitosa, Tatyane Oliveira Rebouças, Giselle Freitas Marques e Ana Carolina de Melo Teixeira, “Fatores associados à vulnerabilidade da não adesão do distanciamento social de trabalhadores na Covid-19”, Revista Enfermagem Atual in Derme, Rio de Janeiro, v.93, Edição Especial, p.1-10, 2020. 6 Ana Cristina Laurell, “La salud-enfermedad como proceso social” [A saúde-doença como processo social], Revista Latinoamericana de Salud, v.2, p.7-25, 1982. 7 M arcos Hermanson Pomar, “Cidades pequenas com grandes frigoríficos registram 70% mais acidentes de trabalho”, O Joio e o Trigo, 6 out. 2020. 8 Dados da Relação Anual de Informações Sociais (Rais) para as variáveis da Classificação Nacional de Atividades Econômicas (Cnae): 1) Abate de suínos aves e outros pequenos animais; 2) Fabricação de produtos de carne; 3) Abate de reses exceto suínos. 9 Ver dois artigos sobre o assunto: Antonio de Pádua Bosi, “A recusa do trabalho em frigoríficos no oeste paranaense (1990-2010): a cultura da classe”, Diálogos, Maringá, v.17, n.1, p.309-335, 2013; Rinaldo José Varussa, “Industrialização, trabalhadores e Justiça do Trabalho no oeste do Paraná (década de 1990): algumas considerações”, Tempo da Ciência , Toledo, v.13, n.25, p.145-156, 2006. 10 Ângela Bastos, “Coronavírus em frigoríficos: SC tem 3,1 mil trabalhadores do setor infectados e 2,4 mil casos suspeitos”, Diário Catarinense, 16 jul. 2020. 11 “Coronavirus: German slaughterhouse outbreak crosses 1,000” [Coronavírus: surto em matadouro alemão atinge 1.000], Deutsche Welle, 20 jun. 2020. 12 Thomas Guenther et al., “Investigation of a superspreading event preceding the largest meat processing plant-related SARS-Coronavirus 2 outbreak in Germany” [Investigação de um evento de superespalhamento que antecedeu o maior surto de Sars-Coronavírus 2 relacionado a fábricas de processamento de carne na Alemanha], 23 jul. 2020. 13 Ação Civil Pública Cível 000059712.2020.5.09.0092. 14 Ação Civil Pública Cível 000074576.2020.5.12.0015. 15 Termo de Interdição n.4.042.744-7. 16 Fernando Mendonça Heck et al., “Os territórios da degradação do trabalho na região Sul e o arranjo organizado a partir da Covid-19: a centralidade dos frigoríficos na difusão espacial da doença”, Metodologias e Aprendizado, v.3, p.54-68, 2020. 17 Sobre o assunto, ver a decisão judicial da Vara do Trabalho de Frederico Westphalen (RS). Justiça do Trabalho – TRT da 4ª Região, “Juiz do Trabalho condena frigorífico a indenizar trabalhadora que contraiu Covid-19”, 13 out. 2020.
JANEIRO 2021
Le Monde Diplomatique Brasil
7
A INSEGURANÇA ALIMENTAR COMO PRETEXTO PARA ESTABELECER UM MODO DE PRODUÇÃO
Geopolítica da fome Não surpreende que a falsa promessa de acabar com a fome por meio do aumento da produtividade agropecuária nunca tenha se cumprido. Verdade seja dita, desde a consolidação do setor agroindustrial, a fome continuou crescendo. Dados da FAO revelam que, antes da pandemia, uma em cada quatro pessoas no mundo passava fome: quase 2 bilhões de pessoas POR JOSÉ RAIMUNDO SOUSA RIBEIRO JUNIOR*
sociais capitalistas (em especial a propriedade privada da terra) e que naquele momento serviu de justificativa para impor uma Revolução Verde aos países periféricos. A universalização do modelo agroindustrial ocorreu em meio a isso e contribuiu decisivamente para a constituição de um novo padrão de dominação, que assumiu uma forma mais complexa após os processos de independência das antigas colônias europeias.2 Motivados pelos ganhos econômicos que a incorporação do alardeado pacote tecnológico poderia proporcionar, os grandes proprietários de terra (elite latifundiária) também se interessavam pela proteção política e, por vezes, militar que os Estados Unidos ofereciam a seus aliados em um contexto internacional marcado pela perspectiva de reformas sociais ou revoluções de caráter socialista.3 É nesse contexto que se consolida em escala global um setor agroindustrial caracterizado pela intensificação das trocas entre os produtores agropecuários (em especial o latifúndio monocultor, mas também os pequenos e médios produtores) e as indústrias (sobretudo grandes empresas transnacionais) que lhes fornecem bens e serviços e processam, transformam e distribuem a produção agropecuária. Gradativamente esse setor também foi atravessado pela financeirização, que penetrou tanto a atividade produtiva como a comercialização dos alimentos (commodities). Apesar de se apresentar como inovador e promotor da segurança alimentar, esse setor reforçou o papel historicamente atribuído aos territórios periféricos na divisão internacional do trabalho, fixando-os prioritariamente como exportadores de alimentos e matérias-primas com baixo valor agregado. Nesses territórios, ele reproduz de maneira ampliada a concentração de terras e de capital, por meio da contínua expropriação de camponeses e de povos e comunidades tradicionais, além da intensa exploração da força de trabalho em toda sua cadeia produtiva, reforçando uma estrutura econômica extrema-
.
N
o início do século XX, as duas grandes guerras explicitaram a importância estratégica dos alimentos para os Estados nacionais. Como em outros conflitos armados, a pilhagem de alimentos dos países ocupados foi acompanhada de estratégias como bloqueios navais e cercos militares para debilitar a disponibilidade de alimentos dos inimigos. Não se tratava apenas de prejudicar os suprimentos alimentares das forças militares, mas de utilizar os alimentos como armas de guerra também contra os civis, provocando o caos em território inimigo. Por essa razão, somente na Segunda Guerra Mundial pelo menos 20 milhões de pessoas morreram de fome e doenças associadas à má nutrição, cifra similar aos 19,5 milhões de militares mortos.1 É nesse contexto que emerge a noção de segurança alimentar. Proveniente da terminologia militar, ela constituiu parte importante das estratégias de defesa dos Estados direta ou indiretamente envolvidos nesses conflitos. Porém, terminada a Segunda Guerra, essa noção passou a servir a novos propósitos. Em um período de intensa disputa por áreas de influência política, econômica e militar entre os blocos capitalista e socialista, os Estados Unidos souberam explorar o papel estratégico dos alimentos em sua busca pela hegemonia global. Com o apoio de organizações internacionais como a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) e o Banco Mundial, criadas no pós-guerra, construiu-se a compreensão de que a persistência da fome na periferia do capitalismo era resultado da baixa produtividade de seus setores agropecuários, incapazes de fornecer alimentos em quantidade suficiente para uma população crescente. Ocultando que a fome era um dos produtos de séculos de dominação e colonização, impunham como única alternativa para os países periféricos a adesão a um modelo agroindustrial que prometia acabar com a fome por meio da adoção de um “pacote tecnológico”. Consolidava-se, com isso, uma noção de segurança alimentar que não problematiza as relações econômicas e
mente desigual.4 Chama atenção, nesse sentido, a combinação entre a docilidade com a qual as classes proprietárias aceitam o controle externo de suas economias e a violência que dispensam aos trabalhadores no campo e na cidade. Além disso, os questionáveis ganhos de produtividade obtidos por meio da integração com a agroindústria impõem uma exploração ainda mais intensa dos recursos naturais, com uma lista de consequências ambientais já bem conhecida e documentada: o avanço do desmatamento, a perda da biodiversidade, a erosão e contaminação dos solos, a poluição do ar e das águas, entre outras. Por fim, como Rob Wallace evidencia, a expansão da agroindústria está diretamente relacionada com as infecções pandêmicas, tais como a do novo coronavírus.5
A pandemia pode ser responsável pelo crescimento de 83 milhões a 132 milhões na quantidade de pessoas cronicamente desnutridas no mundo Não surpreende, portanto, que a falsa promessa de acabar com a fome por meio do aumento da produtividade agropecuária nunca tenha se cumprido. Verdade seja dita, desde a consolidação do setor agroindustrial, a fome continuou crescendo. Dados da FAO revelam que, antes da pandemia, uma em cada quatro pessoas no mundo passava fome (quase 2 bilhões de pessoas), a imensa maioria em países periféricos: um quinto da população asiática (996 milhões), um terço da população latino-americana (203 milhões) e pouco mais da metade da população africana (653 milhões).6 Segundo projeções da própria FAO, os efeitos econômicos da pandemia poderão ser responsáveis pelo crescimento de 83 milhões a 132 milhões na quantidade de pessoas cronicamente desnutridas no mundo.
Caso essa projeção se confirme, a pandemia será responsável por mais mortes relacionadas à fome e à má nutrição do que às infecções pelo novo coronavírus. Contudo, se 2020 por muito tempo será lembrado por conta dos efeitos desastrosos da pandemia, ao mesmo tempo foi particularmente positivo para o setor agroindustrial, que entre outros feitos atingiu uma safra mundial recorde de cereais e se beneficiou com a valorização das commodities agrícolas (o índice de preço dos alimentos da FAO atingiu seu ponto mais alto desde 2014).7 Desse modo, a pandemia não fez mais do que aprofundar os danos causados pelo modelo agroindustrial e explicitar como o uso ideológico da noção de segurança alimentar serve apenas para apresentar os interesses particulares dos grandes proprietários de terra e das empresas transnacionais desse setor como se fossem interesses gerais, ocultando os antagonismos e contradições que caracterizam a forma como os alimentos e a fome são produzidos. *José Raimundo Sousa Ribeiro Junior é doutor em Geografia Humana pela USP, professor visitante do Instituto de Saúde e Sociedade da Unifesp e membro do Grupo de Trabalho sobre a Questão Alimentar da Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB-SP). 1 L izzie Collingham, The taste of war: world war II and the battel for food [O sabor da guerra: Segunda Guerra Mundial e a batalha por comida], Nova York, Penguin, 1992. 2 F lorestan Fernandes, Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina , Rio de Janeiro, Zahar, 1975. 3 David Harvey, O novo imperialismo, São Paulo, Loyola, 2012. 4 Ariovaldo Umbelino de Oliveira, A mundialização da agricultura brasileira , São Paulo, Iãnde Editorial, 2016. 5 Rob Wallace, Pandemia e agronegócio: doenças infecciosas, capitalismo e ciência , São Paulo, Elefante e Igrá Kniga, 2020. 6 Com o objetivo de não subdimensionar o fenômeno da fome, tomamos aqui os dados referentes à insegurança alimentar moderada e grave, e não aquele que remete apenas a seu estágio mais grave: a desnutrição crônica. FAO, The State of Food Security and Nutrition in the World – 2019 [Quadro da segurança alimentar e da nutrição no mundo – 2019], Roma, 2020. 7 “World food prices hit 6-year high amid COVID pandemic” [Preços mundiais de alimentos são os maiores em seis anos durante pandemia de Covid], Deutsche Welle, 3 dez. 2020.
8
Le Monde Diplomatique Brasil JANEIRO 2021
A CRIAÇÃO INTENSIVA DE ANIMAIS
"Pan-demônio" e Sars-Cov-2 Há uma inequívoca correspondência na distribuição espacial entre as áreas com grande presença de suinocultura e/ou de frigoríficos e aquelas com alta taxa da população infectada por Covid-19 POR LARISSA BOMBARDI, IMMO FIEBRIG E PABLO LUIZ MAIA NEPOMUCENO*
Em meados deste ano, a governadora do Michigan emitiu uma ordem de segurança exigindo que os frigoríficos adotassem um protocolo de proteção mais rigoroso para a segurança sanitária de seus funcionários (State of Michigan, 2020). Ao emitir o documento, a governadora afirmou que os frigoríficos provaram ser uma porta de entrada para infecções por Covid-19 em outros estados (MSN, 2020). Em recente artigo de discussão, elaboramos a hipótese – ainda não comprovada – de que as infecções por Covid-19 podem ocorrer não apenas por transmissão de pessoa a pessoa, ou por vírus dispersos em partículas de saliva humana e/ou presentes em suas secreções e excrementos, mas também por meio de porcos infectados. Ao final, questionamos: será que os porcos contrairiam Covid-19, carregariam o vírus e, por sua vez, nos infectariam? E, se infectados com o Sars-CoV-2, os seres humanos poderiam transmitir o vírus aos porcos? (Fiebrig; Bombardi; Nepomuceno, 2020). Estudos recentes têm indicado que há a possibilidade de porcos contraírem Covid-19. Eles se apoiam na semelhança imunológica e fisiológica entre porcos e humanos (Sachs, 1994) e entre porcos e primatas em geral (Yu et al., 2015), bem como semelhanças entre as mucinas suínas no intestino e nas doenças das vias aéreas (Rampoldi et al., 2014; Ostedgaard et al., 2017). Em reportagem recente (SCMP, 2020) relatou-se uma experiência conduzida pelo serviço militar dos Estados Unidos que concluiu que é possível a permanência do vírus Sars-CoV-2 em peles de porcos por até quatro dias em temperatura ambiente e, sob refrigeração, por até duas semanas.
.
O
trocadilho entre as palavras “pandemia” e “pandemônio” parece-nos cada vez mais apropriado quanto mais avançamos nos meses e nos deparamos com uma angústia que arrebata a humanidade de uma forma jamais vista. Muitas perguntas nos rodeiam. Entre elas: o que há de específico neste momento da humanidade que poderia estar na raiz da disseminação de um vírus com a “virulência” que tem se dado? Há algo de alvissareiro no pandemônio trazido com a Covid-19? Diante de quais desafios estamos? A vacina resolve um problema efetivamente ou é um paliativo para enfrentarmos este momento? Qual é a chance de novos vírus com esse mesmo potencial surgissem? Que condições permitiram que surgisse? Essas e tantas outras perguntas têm nos rodeado e, no entanto, estamos apenas tateando pistas para construir as hipóteses que respondam a elas. Entre tais pistas, os autores que aqui escrevem passaram a investigar uma possível correspondência espacial entre as áreas com criação intensiva de porcos e aquelas com altas taxas de população infectada por Covid-19. Essa investigação teve início com a divulgação na imprensa, a partir de abril de 2020, de diversos casos de trabalhadores da indústria da carne infectados pelo novo coronavírus. De acordo com as notícias, muitas dessas plantas industriais têm se revelado hotspots de disseminação do vírus. As doenças infecciosas não são novidade entre os animais criados nesse modelo industrial. Rob Wallace relembra que o Sars-Cov-2 “representa apenas uma das novas cepas de patógenos que subitamente surgiram como ameaça aos seres humanos neste século” (Wallace, 2020, p.527). Foquemos nossa atenção nos Estados Unidos, que, no mundo ocidental, são o maior produtor de porcos e, de alguma maneira, protagonizaram esse modelo de produção intensiva de animais.
INDÚSTRIA DA CARNE
1. Como esses animais são alimentados? Essencialmente com ração produzida com grãos como soja e milho. Para cada quilo de carne de porco
produzida, são necessários 3 quilos de cereais; estes são em sua maioria transgênicos, produzidos em grande parte na América Latina. A produção intensiva de grãos no Brasil envolve graves problemas ambientais e sociais: desde o desmatamento da Amazônia (Express Informer, 2020), passando pelo uso intensivo de agrotóxicos, até um impacto na segurança alimentar do país em função da diminuição de áreas voltadas à produção de alimentos. Para efeito de comparação: a área ocupada com o cultivo da soja no Brasil é maior do que todo o território da Alemanha, e a expansão agrícola também se revela como uma das principais causadoras do aumento nas taxas de desmatamento da floresta amazônica. 2. Como esses animais são criados? As condições de criação, em especial no caso de porcos e galinhas, são consideravelmente degradantes e inadequadas: não há espaço para os animais se moverem e eles não têm acesso ao solo, tampouco à luz solar. Como tal, os animais se alimentam, defecam e dormem praticamente no mesmo lugar. Para evitar a propagação de doenças e a exacerbação de seus sintomas, é bastante comum incluir antibióticos e outros fármacos em suas dietas (Fiebrig; Bombardi; Nepomuceno, 2020). 3. Como esses animais são abatidos? O abate desses animais e o trabalho nos matadouros causam alguns tipos de sofrimento tanto nos animais como nos seres humanos. Reclamações quanto às más condições de trabalho nos frigoríficos crescem diariamente e incluem a aglomeração de trabalhadores em seus ambientes de trabalho, condições degradantes de moradia, jornadas extensas e ininterruptas, baixos salários e falta de pagamento de horas extras. Além disso, boa parte dos trabalhadores é migrante. Essa condição degradante de trabalho, aliada com a condição precária de criação desses animais, está, provavelmente, na raiz da disseminação da infecção nessas regiões.
Em artigo anterior já discorremos sobre a hipótese de que tais animais – os porcos – também possam ser vetores dessa infecção. Os porcos têm diversas similaridades com os seres humanos, que vão desde o sistema gastrointestinal até membranas respiratórias, passando por similaridades genéticas (Rampoldi et al., 2014; Ostedgaard et al., 2017; Sachs, 1994; Yu et al., 2015). A condição de imunodepressão em que esses animais vivem os torna ótimos receptáculos para o desenvolvimento de infecções (febre suína, africana etc.) e para que possam ser um “local” ideal para a adaptação e a mutação virais.
CORRESPONDÊNCIA ESPACIAL NOS ESTADOS UNIDOS Os mapas que apresentamos à direita mostram – inequivocamente – uma correspondência na distribuição espacial entre as áreas com grande presença de suinocultura e/ou de frigoríficos e aquelas com alta taxa da população infectada por Covid-19 nos Estados Unidos. Nota-se, no Mapa 1, que a maior densidade de porcos nos Estados Unidos tem um núcleo bastante claro na região Meio-Oeste, abrangendo Minnesota, Iowa (que é o centro dessa região produtora de porcos), Nebraska, Illinois, Missouri, Indiana e Ohio. Há também uma importante concentração da suinocultura na Pensilvânia e na Carolina do Norte. No Mapa 2, utilizamos o mapa anterior como base e sobrepusemos a taxa da população infectada por Covid-19, por condado, até 26 de junho de 2020. Nota-se que os estados localizados nas porções leste e sudeste dos Estados Unidos são os que mais se destacam em relação às altas taxas de população infectada, o que, de certa forma, é esperado, em função da alta densidade demográfica nessas áreas (Mapa 3), uma vez que a infecção se propaga por meio do contato interpessoal. Pela comparação dos mapas 2 e 3 pode-se notar também que a maioria das áreas com altas taxas de população infectada por Covid-19 corresponde àquelas com alta densidade demográfica e/ou contíguas a elas, sobretudo nas porções nordeste e sudeste do país. Curiosamente, no entanto, há outro hotspot de altas taxas de população infectada por Covid-19, que corresponde exatamente às áreas com criação intensiva de porcos. Observa-se que os estados da região Meio-Oeste e, dentro destes, as áreas com intensa produção de suínos são os mesmos em que existem altas taxas de casos confirmados de Covid-19. É importante notar também que as áreas com maior densidade demo-
JANEIRO 2021
DEGRADAÇÃO AMBIENTAL E HUMANA Nota-se na porção leste desse mapa um hotspot importante na Carolina do Norte. Há uma peça jurídica nesse estado, de 2020, envolvendo uma contenda entre vizinhos em torno de uma propriedade com criação intensiva de porcos. As informações contidas nessa peça (disponível em: https://bit.ly/3nIg9cV) são de fato impressionantes e trazem à luz algo que devemos – para além de estar cientes – repensar. Ela envolve o direito dos vizinhos – que vivem nas proximidades da área com criação intensiva de porcos – de usufruir de maneira saudável sua própria propriedade. E por que não o fariam? Simplesmente porque o grau de degradação na criação dos porcos é tão elevado que afeta não apenas e diretamente os próprios animais, mas também todo o entorno. Segundo relatado nessa peça, os porcos são criados em um tal grau de confinamento que, conforme os animais vão crescendo e literalmente grudando uns nos outros, suas fezes, que deveriam escoar por entre frestas no assoalho para serem posteriormente descartadas, em parte escorrem e em parte não têm espaço para escorrer. O que ocorre é que os porcos têm a pele coberta por fezes. As que escorrem, por sua vez, são posteriormente pulverizadas para “fertilizar” as plantações. As doenças, que são decorrentes dessa condição de poluição do ar, afetam severamente a população: cerca de 50% dos trabalhadores tiveram um ou mais dos seguintes problemas de saúde: bronquite, síndrome da poeira tóxica, doença hiper-reativa das vias aéreas, irritação crônica das membranas e mucosas, asma ocupacional e intoxicação por sulfeto de hidrogênio. Esse relato nos parece suficiente para questionar esse modelo de ali-
mentação humana que nos é imposto, quando o alimento (seja vegetal ou animal) é coisificado, ou seja, é transformado em uma mercadoria destituída de sentido. A transformação dos animais em “massa de proteína animal” tem se mostrado deletéria não apenas para os animais, mas também para os seres humanos e o meio ambiente. Não é de estranhar, portanto, que novas cepas tenham surgido na velocidade com que o fizeram neste século, como bem mostra Rob Wallace (2020). A precariedade prevalece em todo esse processo: na produção dos grãos que alimentam esses animais (transgênicos e com alta carga de agrotóxicos), passando pelo processo de criação industrializada e, finalmente, muitas vezes, pela degradação do trabalho humano. Não há dúvida de que a pandemia de Covid-19 está inscrita nesse ciclo. Devemos, portanto, nos perguntar neste momento: o que o pandemônio trazido pela pandemia traz como desafio para a humanidade? Que aspecto social subjaz à pandemia? O que podemos transformar para não termos de lidar com o mesmo desafio nos próximos anos?
MAPA 1 EUA - SUINOCULTURA DENSIDADE DE PORCOS POR CONDADO
*Larissa Bombardi é professora do Departamento de Geografia da USP (larissab@usp.br); Immo Fiebrig é professor associado honorário da Escola de Biociências da Universidade de Nottingham, Sutton Bonington Campus (immo.fiebrig @ nottingham.ac.uk); Pablo Luiz Maia Nepomuceno é do Departamento de Geografia da USP (pablo.nepomuceno@usp.br).
Legendas:
<1 1-5 6 - 20 21 - 100 101 - 750
MAPA 2 EUA - COVID-19 E SUINOCULTURA TAXA DE COVID-19 E DENSIDADE DE PORCOS POR CONDADO Quantidade média de porcos para cada 100 acres rurais do Condado <1 1-5 6 - 20
21 - 100 101 - 750
Taxa de contágio de Covid-19 por 100 mil habitantes do Condado, até 25/06/2020 (Casos/100.00 hab.) 6 - 200 201 - 500 501 - 2.000 2.001 - 5.000 5.001 - 15.366
MAPA 3 EUA - DEMOGRAFIA DENSIDADE DEMOGRÁFICA Densidade demográfica por Condado (habitantes/Km2) < 25 25 - 100 101 - 500 501 - 2.000 > 2.000
Referências bibliográficas • E XPRESS INFORMER. Brazil’s beef and soy exports to the EU linked to illegal deforestation, study finds. 2020. • F IEBRIG, I.; BOMBARDI, L. M.; NEPOMUCENO, P. L. M. Hypothesising on the emergence of SARS-CoV-2 through bats: Its relation to intensive pig-factory farming and the agro-industrial complex. ResearchGate, Discussion Paper, p.18, 2020. • M SN. Whitmer signs order outlining safety guidelines for meat processing plants. 2020. • NEGRÃO, S. L. Uma análise do ciclo de produção agroindustrial de suínos e aves, à luz da ética global. Tese – UFSC, Florianópolis, 2008. • OSTEDGAARD, L. S. et al. Gel-forming mucins form distinct morphologic structures in airways. Proceedings of the National Academy of Sciences, 2017. • R AMPOLDI, A. et al. Inheritance of porcine receptors for enterotoxigenic Escherichia coli with fimbriae F4ad and their relation to other F4 receptors. Animal, v.8, n.6, p.859-866, 2014. • SACHS, D. H. The pig as a potential xenograft donor. Veterinary Immunology and Immunopathology, v.43, n.1-3, p.185-191, 1994. • SCMP. Coronavirus can live for four days on animal skin: US military study. 6 jul. 2020. • STATE OF MICHIGAN. Safeguards to protect Michigan’s workers from Covid-19. Executive order n.2020-145 Rescission of Executive Order 2020-114, 2020. • WALLACE, R. Pandemia e agronegócio. Elefante, São Paulo, 2020. • YU, H. et al. Genome-wide characterization of PRE-1 reveals a hidden evolutionary relationship between suidae and primates. 2015.
9
Quantidade média de porcos para cada 100 acres rurais do Condado
.
gráfica não correspondem àquelas de maior densidade de porcos. Nesse sentido, vale ressaltar que, na região Meio-Oeste, onde se concentra a produção intensiva de suínos, a densidade populacional é relativamente baixa. Ainda assim, há uma alta taxa de população infectada por Covid-19, conforme mostrado no Mapa 2. Desse modo, para verificarmos a real correspondência espacial entre esses elementos, selecionamos os condados com mais de 500 casos de pessoas infectadas por Covid-19 por 100 mil habitantes e aqueles em que há mais de 10 porcos por 100 acres agricultáveis de cada condado. O resultado dessa sobreposição está representado no Mapa 4, em que se verifica uma significativa correspondência espacial.
Le Monde Diplomatique Brasil
MAPA 4 EUA - COVID-19 E SUINOCULTURA MAIORES TAXAS DE COVID-19 E MAIS ALTAS TAXAS DENSIDADES DE SUÍNOS Condados com mais de 500 casos de Covid-19 para cada 100 mil habitantes e mais de 10 porcos por 100 acres
10
Le Monde Diplomatique Brasil JANEIRO 2021
VENENO REMÉDIO
A produção social de doenças e de crises As respostas para os problemas reiterados no campo têm sido dobrar a aposta na produtividade, que vai levando ao extremo a noção de monocultura, a qual parece querer se produzir por si mesma, sem diversidade ambiental e sem gente POR CÁSSIO ARRUDA BOECHAT*
dos me contaram, não se tratava de acabar com as formigas ou com as ervas daninhas, mas de controlá-las. Independentemente de quanto veneno é posto, elas voltam todo ano. Ingênua pergunta: “Mas e o veneno, para onde vai?”. Silêncio... A solução ali dada, desse modo, não parece ser suficiente ou definitiva para acabar com “nossos” problemas, cujas raízes estão muito além das saúvas e podem estar também nas formas de enfrentarmos as doenças e as crises. A memória e os estudos nos permitem voltar no tempo para comparar aquela cena da profilaxia recente de formigas e mato com algumas outras profilaxias, inclusive de trabalhadores, de um passado não muito distante, e avaliar a produção social de doenças e de crises no agronegócio.
.
A
té aqui, o agronegócio não parou durante a pandemia de coronavírus e se vangloria de ser responsável por ter evitado uma crise econômica que chegou a ser anunciada como a pior da história, com prognósticos que apontavam para uma queda superior a 8% do PIB no Brasil. Com isso, reforça-se a ideologia vitoriosa do assim chamado “agro”, que se coloca como a cura para os males nacionais. É bom lembrar, porém, do phármakon, de onde provém a palavra “farmácia”, que pode curar ou intoxicar, sendo ao mesmo tempo remédio e veneno. Ou seja, procuramos uma reflexão de até que ponto a suposta solução é parte da causa dos problemas. Visitando recentemente o interior paulista, em meio a uma seca terrível, observei alguns poucos trabalhadores aplicando defensivos num canavial recém-cortado por monstruosas máquinas em terras arrendadas por uma grande usina francesa. O cenário era inóspito, desabitado e soando a desértico. Queimadas despontavam no horizonte. Os homens, irreconhecíveis, caminhavam mascarados sob o sol ardente. Alguns com tubos de PVC na mão jogavam alguma coisa aqui e ali pelo interior dos tubos até o chão; outros, com um recipiente atado às costas, aplicavam um líquido periodicamente. Faziam a chamada “catação”: matavam mato e formigas, respectivamente, aplicando produtos químicos na entrada dos formigueiros e nas touceiras de capim-colonião (que tem o hilário nome científico Panicum maximum). “Inimigos” persistentes da produtividade da lavoura. A cena poderia representar a solução para a angústia antediluviana do lavrador, expressa pelo viajante Auguste de Saint-Hilaire (1779-1853), que teria afirmado – antes, claro, de ser lembrado por Macunaíma – que “ou o Brasil acaba com a saúva, ou a saúva acaba com o Brasil”. A bem da verdade, como os próprios mascara-
* Próximo de onde se encontra aquele canavial, vi quando criança, assombrado, uma cena semelhante àquela da chegada dos federais norte-americanos (seriam da Nasa?) para cercar a casa suburbana dos meninos que acolheram o E.T. no filme de Spielberg. Completamente cobertos, técnicos da Fundação de Defesa da Citricultura (Fundecitrus) vinham isolar um pomar e erradicar laranjeiras num enorme raio para evitar a propagação do cancro cítrico, causado pela bactéria Xanthomonas citri. Naquela época, o noroeste de São Paulo tinha mais laranjais do que canaviais. A paisagem era dominada por laranjeiras enfileiradas até onde a vista alcançava. Uma medida tão dura como aquela da erradicação chamava atenção para a ocorrência de epidemias que afetavam a “população” de árvores. Depois de arrancadas as laranjeiras infectadas e suas vizinhas, a pilha de troncos ainda carregados de laranjas era incinerada em altas fogueiras. A área isolada ficava em quarentena, e os técnicos vestidos de branco da cabeça aos pés rodavam todas as proprie-
dades produtoras em busca de novos casos. Ao menor indício de cancro, estava dada a sentença. Esse controle epidemiológico era mais aceito nos anos 1980 do que nos dias atuais, em que medidas de quarentena são questionadas, talvez porque ainda estivesse fresca na memória de muitos citricultores a lembrança da praga da tristeza, que dizimou rapidamente os pomares paulistas nos anos 1940. Essa epidemia só chegou a ser “superada” graças aos estudos de pesquisadores que descobriram que o enxerto das laranjeiras em raízes de limão-cravo as tornava resistentes ao vírus CTV (Citrus tristeza virus). Graças à “vacina” pelas práticas de enxertia, descoberta pela pesquisa pública, os negócios puderam ser retomados e a citricultura foi restabelecida em “moldes industriais”. Não parece ter sido cogitado efetivamente que as causas da rápida proliferação e da alta letalidade da tristeza talvez estivessem na forma como a monocultura e a busca pela produtividade agrícola haviam aglomerado espécimes de umas poucas variedades de cítrus em vastos pomares quase contínuos. Até aproximadamente os anos 1930, a produção de cítrus era completamente descentralizada e se dava em pequenos pomares dispersos. O sistema de cultivo havia mudado radicalmente desde então, incorporando uma busca constante pelo aumento da produtividade dos pomares, e com ele vieram as primeiras epidemias fitossanitárias. Como de praxe em nossa sociedade, a busca pela solução de um problema é procurada num produto mágico e raramente é apontada uma crítica à maneira como as mercadorias são produzidas. Reitera-se, na cabeça de médicos, agrônomos e de quem quer que seja, o fetichismo da forma social, pautada por relações entre pessoas sempre mediadas por coisas. Assim, uma enxurrada de novas pestes se acumularia posteriormente nos pomares, que, desde os anos
1960, já eram regularmente “tratados” com pesticidas químicos, apontados corriqueiramente como os “remédios” do cotidiano da agricultura. Desse modo, a citricultura moderna paulista convive com epidemias devastadoras desde sua instalação. As “vacinas” científicas solucionam temporariamente o problema, que retorna rápida e periodicamente, na forma de crises sanitárias agravadas, com variedades resistentes de ácaros, insetos (moscas e cigarrinhas sugadoras), vírus (CVC) e bactérias (como a causadora do greening), desafiando as soluções de agrônomos e vendedores de agrotóxicos, ao mesmo tempo que justificam a própria existência desses profissionais especializados. No entanto, a gestão disso implica custos crescentes que nem sempre podem ser externalizados da contabilidade das firmas, como o são no caso da pesquisa pública. A crise da citricultura tem outra dimensão quando observamos a eliminação recente de mais de 20 mil citricultores (dados da Associtrus), em geral pequenos sitiantes que trabalhavam com suas famílias, excluídos do setor nos últimos vinte anos por não darem conta dos custos crescentes de manutenção dos pomares diante dos preços decadentes da laranja paga pelas indústrias de suco, altamente concentradas nas mãos de dois grupos econômicos. A eliminação acelerada dos citricultores mais vulneráveis também teve uma conotação higienista, na alegação de que eram aqueles agricultores familiares que cuidavam menos de seus pomares e, assim, aceleravam a proliferação das pragas. Ao lado da imputação de falta de controle sanitário, a citricultura tentava lidar com a superprodução não exatamente de pragas, mas também de laranjas e do próprio suco de laranja. A disputa com outras mercadorias industrializadas (refrescos, refrigerantes etc.) e a crescente produtividade dos pomares adensados anunciavam certa saturação do mercado. Desse modo, foram os pequenos e médios agricultores os escolhidos para ser tratados como sendo a própria “praga” e efetivamente “erradicados”, com contratos que pagavam menos que os custos de produção mais básicos e com a imputação de novos custos, como os da colheita, antes a cargo das indústrias. Contraditoriamente, eram eles os que entregavam laranjas a preços mais baixos às agroindústrias e ao mercado em geral, porque se valiam do trabalho familiar e não precisavam remunerar alguns “fatores de produção”. Com sua erradicação, as pragas em si não foram eliminadas – é, inclusive, questionável que a situação esteja mais
JANEIRO 2021
*
Embora fossem tratados como “os de fora”, estigmatizados como “nortistas arruaceiros” nas cidades interioranas, engoliam o orgulho ferido e a fuligem da cana queimada e, com facões afiados, batiam anualmente recordes de produtividade. Assim como a formiga e o mato, retornavam todo ano, mas não representavam apenas custos. Também produziam a maior parte da “riqueza” do setor. Em 2008, eram quase 300 mil; hoje, menos de 30 mil. A rápida mecanização do corte, com a introdução de gigantescas colhedoras, erradicou seus empregos. No campo desabitado, a cana é agora cortada por uns poucos operadores de máquinas, que se revezam dia e noite. De 2002 a 2010/2011, os preços internacionais das commodities atingiram altas históricas, num afluxo de escala inédita de capital fictício para a produção de mercadorias agrícolas e minerais no mundo todo e no Brasil. Essa abundância monetária percolou o solo da sociedade brasileira. No campo paulista, as usinas de cana se esbaldaram em novos projetos, novas aquisições, ampliando os canaviais para os pastos e para o Cerrado de estados vizinhos. Renovaram e aumentaram as dívidas, abriram capital em Bolsa e emitiram papéis para financiar a euforia, que tinha lastro frágil na promessa de que o etanol viria logo a substituir o petróleo e nos livrar de seus males.
© Thomas Bauer
A utilização de tratores, arados, adubos e pesticidas químicos, expressão da indústria nacional que se desdobrava sobre o campo, altamente fomentada pelo crédito rural subsidiado pelo Estado, foi uma grande novidade dos anos 1960/1970. São Paulo assumiu aí a dianteira na ado-
ção da chamada Revolução Verde. Embora ainda não se autoproclamasse assim, era o surgimento do “agro” com as feições que hoje são positivadas em propagandas televisivas. O trabalhador de turma, assalariado precariamente e tornado boia-fria irreconhecível perante os próprios patrões, também foi novidade na época. O adoecimento do boia-fria se dava corriqueiramente na forma de lesões pelo trabalho repetitivo, embora também fossem (e ainda sejam) comuns as intoxicações por agrotóxicos. Porém, o não pertencimento à comunidade local, a pressão por trazer dinheiro de volta à família e cidade de origem e o ritmo ditado pelas máquinas agrícolas ou pelas esteiras das agroindústrias também compunham um contexto de gradativa internalização da necessidade de trabalhar no limite, muitas vezes até a morte. Um triste exemplo: entre 2004 e 2007, mais de vinte cortadores de cana morreram por exaustão em serviço! Afinal, o que as máquinas e outros “avanços científicos” representam para o trabalho na agricultura e, assim, para a reprodução do próprio agronegócio? Em que situação as pessoas são elas mesmas tratadas como ervas daninhas e o que isso ocasiona? Até menos de dez anos atrás, cortadores manuais eram recrutados aos montes em cidades do norte de Minas e do Nordeste para passar a maior parte do ano em São Paulo.
.
controlada –, mas uma importante fonte de acumulação das próprias indústrias deixou de existir. O exemplo mostra como os preconceitos e as soluções fetichistas dos gestores do agronegócio reproduzem às suas costas as doenças e também as crises. Como consequência, tornaram-se frequentes novas fogueiras de laranjeiras, empilhadas nos pomares por todo o noroeste paulista. Dessa vez, a “epidemia” não era de cancro, como em minha lembrança de infância, mas de laranjas e citricultores mesmo. A própria fruta, que supostamente traz saúde a quem a consome, se tornara uma praga para quem a produzia. A erradicação partia agora não mais da Fundecitrus, e sim dos próprios produtores, cansados dos prejuízos – quantos não terão adoecido com a situação? –, e o arrendamento das terras às usinas de cana surgia como “remédio” para uma sobrevida das famílias, ao longo dos anos 2000. O carvão de laranjeira ainda é vendido em supermercados para fazer churrasco.
De 2002 a 2010/2011, os preços internacionais das commodities atingiram altas históricas
Le Monde Diplomatique Brasil
11
De modo contraditório, porém, a energia supostamente “limpa” se valia de produzir sistematicamente queimadas, para abrir caminho para o corte da cana, feito pelos migrantes. Como equacionar essa prática com o discurso ambiental? “Proíbam-se as queimadas...” Entretanto, como cortar cana crua sem cortar todo o cortador nas finas folhas afiadas da cana? Para acabar com as queimadas e “limpar” o agrocombustível seria necessário transformar o processo de trabalho. Porém, com isso, impunha-se “varrer” os próprios cortadores do interior paulista e substituí-los por colhedoras mecânicas, desde que as máquinas se tornassem acessíveis para serem compradas. Assim, a mecanização se apresentava como a “vacina” para o problema. No entanto, ela exigia investimentos e adaptação, que o boom das commodities tornava possíveis. Usinas avalizaram empréstimos bancários de seus fornecedores e se valeram de linhas especiais de financiamento estatal, como do BNDES e do Moderfrota, para comprar colhedoras. Desse modo, a “cura” para o adoecimento dos trabalhadores rurais e para a poluição das queimadas nos canaviais chegou com a aquisição de maquinário pesado para a mecanização do corte. Os trabalhadores haviam se tornado a “praga” a ser erradicada, em prol de uma produtividade bancada pelo capital financeiro. Sendo eles, todavia, a verdadeira fonte de valor adicional que pode ampliar o capital, como poderá o próprio capitalismo curar a “praga” da falta de lucratividade que ele mesmo assim cria? As respostas para os problemas reiterados no campo têm sido, assim, dobrar a aposta na produtividade, que vai levando ao extremo a noção de monocultura, a qual parece querer se produzir por si mesma, sem diversidade ambiental e sem gente. A crítica a essa forma de pensar, produzir e consumir reclama as derradeiras questões: de onde pode vir a acumulação do agronegócio se não pela exploração do trabalho? Qual mágica se espera? Será que o recurso à dívida pública e ao capital financeiro pode sempre e sistematicamente substituir a extração da mais-valia? Que custos sociais e ambientais estamos assumindo para reiterar essa ficção? Até quando? *Cássio Arruda Boechat é professor de Geografia Econômica e Rural da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e pesquisador do Grupo de Estudos sobre Mudança Social, Agronegócio e Políticas Públicas (Gemap) da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (Ufrrj) e do Laboratório de Geografia Urbana (Labur) da USP.
12
Le Monde Diplomatique Brasil JANEIRO 2021
PRETEXTO PARA INDUSTRIALIZAR AINDA MAIS A PECUÁRIA
O mito da biossegurança Com certos vírus ultrapassando a barreira entre espécies, como parar as cada vez mais preocupantes epidemias na pecuária? A resposta sanitária internacional parece ser dobrar a aposta no modelo industrial. As medidas preconizadas ameaçam a saúde e os ecossistemas, enquanto condenam a agricultura familiar POR LUCILE LECLAIR*
nização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO). Ela nos apresenta a classificação das fazendas segundo sua suposta resistência ao risco infeccioso. “O setor 1 é uma criação densa e fechada, com uma produção intensiva e integrada à indústria. O setor 2, uma grande criação intensiva e fechada, mas não integrada à indústria. O setor 3 é uma fazenda intensiva média não integrada à indústria, e o setor 4, uma criação extensiva onde os animais, menos numerosos, vivem no exterior com, quase sempre, uma mistura de espécies.” Esses quatro setores correspondem a níveis decrescentes de biossegurança, do mais elevado ao mais fraco.
.
P
rimeiro eles pararam de comer, em seguida tiveram uma forte febre. Criador de Jiangxi, no sudeste da China, Chen Yun possuía 10 mil porcos. Em uma semana, todos morreram da peste suína africana.1 Entre 2018 e 2019, o vírus acometeu todas as províncias do país, levando à eliminação da metade do gado porcino nacional. Originário da África, onde teria sido descoberto há mais de cem anos, o vírus dessa peste continua inofensivo para o ser humano, mas pode causar até 100% de mortalidade nos porcos. A partir da China, o vírus se propagou pelo Sudeste Asiático. Já causando estragos na Europa central, foi detectado na Bélgica em 2018. A França e seus vizinhos temem desde então sua chegada. Para erradicar a epidemia, que avança, o Estado chinês apoia a construção de fazendas de no mínimo quinhentos porcos, seguindo os preceitos da “biossegurança”. “As fazendas familiares serão levadas ao desaparecimento, em benefício das criações industriais”, explica Jian Huang, especialista do Instituto Nacional do Porco, da França. 2 A China aplica assim a resposta sanitária preconizada pelas instâncias internacionais em matéria de epizootias (epidemias que atingem animais), confirma Wantanee Kalpravidh, responsável pela saúde animal na Orga-
“AUMENTAR A PRODUTIVIDADE” Segundo essa doutrina, a propagação de um vírus fica limitada quando os animais são criados em estabelecimentos fechados ou atrás de barreiras que impeçam qualquer contato com animais selvagens, suscetíveis de transmitir micróbios patogênicos. Devem ser nutridos com alimentos comprados no comércio e de qualidades sanitárias garantidas, em vez de produtos da fazenda. A biossegurança condiciona não apenas os gestos do criador em matéria de higiene (lavagem das mãos, troca de roupa na entrada de cada instalação, desinfecção
dos veículos), mas também – o que levanta questões – as orientações técnicas e econômicas de sua exploração. Essa abordagem, que leva a normalizar e compartimentar a produção, cria o impasse quanto ao risco causado pela escala industrial e pela concentração de animais em locais exíguos. As criações em massa são então apresentadas como uma solução para o problema que contribuíram para criar, pois, se a destruição da natureza e dos habitats selvagens – quase sempre para fins industriais – levou à transmissão de novos vírus,3 a aceleração das epizootias deve muito também à industrialização da pecuária, como sublinham diversos estudos.4 Na Tailândia, por exemplo, dados reunidos em 2004 indicam que “as probabilidades de epidemias de H5N1 e das infecções eram significativamente mais elevadas nas explorações avícolas comerciais de grande escala do que nos galinheiros”.5 Nas instalações industriais, a fraca diversidade genética e as recorrências maciças a tratamentos profiláticos provocam um enfraquecimento imunológico, ao passo que a concentração geográfica de criações, a densidade de animais e a multiplicação dos transportes favorecem a difusão de agentes patogênicos. Esse episódio da peste suína não é inédito. Ao longo dos trinta últimos
anos, as criações de porcos passaram por diversas crises: diarreia epidêmica suína, síndrome disgenésica (malformação de órgãos) e respiratória do porco, gripe H1N1. As criações de vacas experimentaram um ressurgimento da tuberculose bovina; as criações de aves, novos surtos de gripe H5N1 altamente virulentos; as de carneiros, um ressurgimento da febre aftosa etc. Segundo a Organização Mundial da Saúde Animal (criada em 1924 sob o nome de Gabinete Internacional das Epizootias, do qual conserva o acrônimo, OIE), o número de epidemias que atingem as criações quase triplicou ao longo dos últimos quinze anos. Isso não constitui um perigo apenas para a vida dos animais, mas também para a humanidade, pois algumas dessas doenças podem ser transmitidas ao homem – em especial a gripe H5N1, ainda que os casos tenham sido mais raros do que se temia. “‘Quantos quilos de frango será que posso produzir? Quantos ovos?’ Os criadores devem se fazer essas perguntas”, prossegue Kalpravidh. “Devem aumentar a produção e a produtividade para obter mais benefícios, o que gera uma receita suplementar que lhes permite investir na biossegurança.” Para designar essa posição tomada em favor do desenvolvimento intensivo da pecuária em escala mundial, teríamos podido utilizar o termo “industrialização”. Ao oferecer-lhe certa respeitabilidade, o termo “biossegurança” se torna a referência indiscutível de um modelo econômico e social imposto. Seu enfoque universal se dirige a todas as criações do planeta. “Com a gripe aviária de 2015-2016, as medidas de biossegurança se tornaram obrigatórias para os detentores de aves”, recorda um boletim da Academia Veterinária Francesa, fazendo referência à portaria publicada pelo Ministério da Agricultura em 8
© Fred Lehmann/Pixabay
JANEIRO 2021
As fazendas familiares estão sendo levadas ao desaparecimento, em benefício das criações industriais suas despesas em 400 mil euros, “sem contar o tempo de trabalho e de manutenção”. Eles não ganharam tanto em trinta anos de carreira. “Após pagar nossos custos, nos sobra 500 euros por mês para viver em duas pessoas.” Eles criam seus porcos em Brie (departamento de Ariège), em 90 hectares. “Com rochas em algumas partes e desníveis de 100 metros em 300 metros de comprimento, instalar uma cerca requer proeza.” Eles continuam a trabalhar em suas terras secas, mas, aos 60 anos, creem ser os últimos a criar porcos aqui. Não contratam estagiário para não criar falsas promessas em um jovem “de um projeto de instalação impossível”. Enquanto as criações ao ar livre se veem enfraquecidas pela biossegurança, as indústrias de carne preservam sua economia, pois, durante as crises sanitárias, algumas criações escapam das restrições de deslocamento. Apenas as fazendas do setor 1 que se conformam às medidas de controle e de segurança podem obter o precioso passe livre por meio dos “compartimentos”, ou seja, populações animais distintas autorizadas à venda. Adotada por unanimidade em 2004 pelos 182 Estados-membros da OIE, a “compartimentação” foi em seguida integrada ao texto de lei de diversos países – Chile, Estados Unidos, Reino Unido, China, Austrália... – e, na França, por uma portaria ministerial de 16 de fevereiro de 2016, que favorece a grande indústria. É o caso da France Poultry, por exemplo. Antes conhecida como Doux, essa empresa da Bretanha obteve o status de compartimento em 2017. Ela abate hoje 340 mil aves por dia e enche a cada semana de 70 a 80 contêineres no porto de Brest, sendo 93% de sua produção exportada. Esse modelo de indústria agroexportadora conta com instalações de criação
.
de fevereiro de 2016.6 Os autores anunciaram em seguida: “No futuro, todas as cadeias alimentares, sejam elas extensivas ou intensivas, deverão integrar medidas de biossegurança”. Eles reconhecem que a integração dessas medidas às transumâncias [migrações de pasto] “fica, porém, a ser construída”. Os criadores de animais em circuito curto ou ao ar livre encontram dificuldades para sobreviver. Ainda que menos expostos às contaminações, em razão da densidade mais baixa dos rebanhos e de ocorrerem menos interações com o exterior, são submetidos às mesmas normas. No ramo dos porcos, por exemplo, a regulamentação impõe desde 2020 uma cerca de 1,30 metro de altura ao redor das pastagens, bem como a desinsetização e a desratização do local de material por uma empresa externa a cada dois meses. Criadora em Haute-Garonne (França), Anne-Marie Leborgne fez o cálculo: “Para rentabilizar o investimento para a introdução das normas de biossegurança, preciso aumentar meus preços”. Na França, apenas um porco a cada vinte é criado ao ar livre. Essa agricultora de 39 anos vendia localmente 2 mil quilos de porco orgânico por ano. Para ter um rendimento satisfatório, trabalha meio período como professora na escola de seu vilarejo, Montbrun-Bocage, ao sul de Toulouse. Dois meses após a formação em biossegurança na Câmara de Agricultura, decidiu parar a criação. “Não me vejo vendendo uma costela de porco a 18 euros o quilo.” Para sustentar os trabalhos de biossegurança, o conselho regional e a União Europeia oferecem uma subvenção que representa 30% do custo do material. Mas esta parece insuficiente a Benoît e Isabelle Dubois, dois criadores montanheses que estimam
de 35 mil pintinhos, cada um dispondo de 480 centímetros quadrados – ou seja, uma superfície inferior à de uma folha A4... Esses estabelecimentos pertencem aos criadores sob contrato com a France Poultry; comprometem-se a trabalhar exclusivamente para a empresa, segundo um manual de especificações muito estrito de biossegurança que faz delas “bolhas sanitárias”, segundo o dirigente da empresa, François Le Fort. Um estudo publicado em 20187 mostrou, no entanto, que os contatos frequentes entre as granjas de um mesmo compartimento implicam diversas possibilidades de transmissão do vírus em caso de epidemia de gripe aviária. Além disso, embora a compartimentação possibilite evitar as contaminações pela fauna selvagem, estas podem ocorrer por outros vetores de troca com o exterior: pessoal, água, ar, comida. Ainda que todos esses fluxos sejam enquadrados por normas estritas, a prática cotidiana revela falhas. Desse modo, estudando oito fazendas que aplicam um protocolo de biossegurança, que havia selecionado com as associações de avicultores de Quebec, Manon Racicot, pesquisadora do Departamento de Epidemiologia da Universidade de Montreal, listou não menos que 44 erros frequentes.8 A densidade dos animais, a quantidade das entradas e saídas desses sistemas, a dependência de múltiplos atores da cadeia de produção e uma má compreensão dos princípios sanitários pelos empregados invalidam as pretensões da biossegurança. A “bolha sanitária” continua sendo um mito. Ao não imporem nenhum limite à indústria, a biossegurança e seus grupos livres da lei ordinária ameaçam o equilíbrio sanitário dos animais e dos homens. Representam também uma deriva democrática, o
Le Monde Diplomatique Brasil
13
“caso a caso” substituindo o interesse geral. No processo de reconhecimento de um compartimento para a exportação, ocorrem duas etapas que transformam a administração em servidora dos industriais: uma granja deve primeiro ser aprovada pelas autoridades veterinárias de seu próprio país; em seguida, cada país importador assina um acordo bilateral. Durante essa segunda etapa, o Estado exportador negocia com o país importador a fim de fazê-lo aceitar as candidaturas. A diplomacia carrega assim a bandeira de uma companhia privada. O Estado não apoia mais sua população agrícola, um ramo de alimentos ou uma particularidade regional: torna-se embaixador de uma marca e de seus produtos. Quando a França advoga pelas atividades da France Poultry, ela defende o interesse público ou interesses privados? Nem a OIE nem o Ministério da Agricultura quiseram responder a essa pergunta. *Lucile Leclair é jornalista. Autora de Pandémies, une production industrielle (Pandemias, uma produção industrial), Seuil, Paris, 2020. 1 H uifeng He, “China’s ‘heartbroken’ pig farmers torn apart by pork price spike and African swine fever” [Os criadores de porco de “coração partido” da China, quebrados pelo aumento do preço da carne suína e pela febre suína africana], South China Morning Post, Hong Kong, 12 set. 2019. 2 “ Des experts dressent un sombre tableau de l’élevage porcin chinois” [Especialistas criam um quadro sombrio da criação de porco chinesa], AFP, 11 set. 2019. 3 Ler Sonia Shah, “Contre les pandémies, l’écologie” [Contra as pandemias, a ecologia], Le Monde Diplomatique, mar. 2020. 4 Jessica H. Leibler, Marco Carone e Ellen K. Silbergeld, “Contribution of company affiliation and social contacs to risk estimates of between-farm transmission of avian influenza” [Contribuição da afiliação de empresas e contatos sociais para estimativa de riscos da transmissão da gripe aviária entre fazendas], PLOS One, 25 mar. 2010. Disponível em: https://journals.plos.org. 5 J ay P. Graham et al., “The animal-human interface and infectious disease in industrial food animal production: Rethinking biosecurity and biocontainment” [A interface animal-humano e as doenças infecciosas na produção da indústria de alimentos de origem animal: repensando biossegurança e bioconcentração], Public Health Reports, v.123, n.2 (suplemento), maio-jun. 2008. 6 Didier Guériaux, Alexandre Fediaevsky e Bruno Ferreira, “La biosécurité: investissement d’avenir pour les élevages français” [A biossegurança: investimento do futuro para as criações francesas], Bulletin de l’Académie vétérinaire française, n.2, Paris, 2017. 7 T. J. Hagenaars et al., “Risk of poultry compartments for transmission of highly pathogenic avian influenza” [Risco dos compartimentos de aves para a transmissão de gripe aviária altamente patogênica], PLOS One, 28 nov. 2018. O modelo de simulação do estudo foi elaborado para uma região densamente populosa de criações, como a Bretanha. 8 Manon Racicot et al., “Description of 44 biosecurity errors while entering and exiting poultry barns based on video surveillance in Quebec, Canada” [Descrição de 44 erros ao entrar e sair de celeiros aviários com base em vigilância por vídeos em Quebec, Canadá], Preventive Veterinary Medicine, v.100, n.3-4, jul. 2011.
14
Le Monde Diplomatique Brasil JANEIRO 2021
UM SISTEMA QUE DEIXA UMA GRANDE MARGEM DE MANOBRA PARA OS GOVERNOS LOCAIS
Os estados desunidos da América Devemos considerar essas instâncias de poder, no âmbito dos estados, como expressão da democracia? Em vista da repetida incapacidade de Washington aprovar um orçamento, seria tentador responder que sim. Mas, em compensação, a margem de manobra deixada para os cinquenta membros da Federação contribui para silenciar vozes dissidentes e enfraquecer a representação democrática POR RICHARD KEISER*
gabinete do governador, a Câmara dos Deputados e o Senado locais estão em geral do mesmo lado – um trio conhecido pelo nome de trifecta. Atualmente existem 38 com essas características: 23 representam os republicanos e quinze, os democratas. Os outros doze correm o risco, como é o caso do poder federal, de chegar a uma paralisia política. Esse cenário revela um contraste impressionante com o do século passado. Em 1992, apenas dezenove membros da Federação se achavam em situação de trifecta. Nos outros 31, o governador tinha de enfrentar pelo menos uma casa legislativa controlada pelo campo oposto. Depois, a polarização se acentuou de maneira considerável: tanto os democratas quanto os republicanos se consolidaram onde eles já dominavam, favorecendo a paralisia na esfera federal. Diante da impossibilidade de sancionar leis em Washington, os partidos e os que os apoiam mobilizam seu dinheiro e suas ideias no âmbito local. De acordo com a déci-
.
A
Se por um lado, em novembro de 2020, boa parte do mundo tinha os olhos voltados para a disputa à presidência entre Joe Biden e Donald Trump, por outro os norte-americanos sabiam que as diversas eleições (Congresso, Condados, referendos etc.) que se desenrolavam no mesmo momento em cada um dos cinquenta estados da Federação também tinham uma importância política muito grande. Quando as instituições nacionais estão divididas – ou seja, quando a Câmara dos Deputados, o Senado e a presidência não são controlados pelo mesmo partido –, como acontece há muitos anos, a máquina legislativa federal é bloqueada: é difícil, se não impossível, aprovar leis sobre assuntos que dividem democratas e republicanos. Os estados acabam, então, preenchendo o vazio deixado por Washington – pelo menos sobre as questões que não dizem respeito à defesa ou à política externa. Nos estados mais avançados em matéria de inovações legislativas, o
ma emenda à Constituição, todos os poderes que não são especificamente atribuídos à esfera federal pertencem aos estados. Teoricamente, estes últimos não podem tomar medidas que transgridam a legislação nacional, então os textos que eles aprovam correm o risco de ser invalidados. Na prática, porém, eles desfrutam de uma grande margem de interpretação, sobretudo sobre questões que o Congresso e a Casa Branca deixam imprecisas. Assim, muitos legislaram sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo, seja para autorizá-lo ou para proibi-lo. Entre 2009 e 2015, cerca de quinze deles (Iowa, Vermont, Maryland, New Jersey, entre outros) optaram por legalizá-lo, antes de a Suprema Corte decidir fazer o mesmo para todo o país (por ocasião do julgamento do caso Obergefell vs. Hodges, pronunciado em 26 junho de 2015). Faz uns cinquenta anos que o poder federal não consegue também legislar sobre o uso da Cannabis. Ele não se opôs às questões que emergi-
ram desde a lei de 1970 (Controlled Substance Act), como a Cannabis medicinal que a Califórnia, logo acompanhada por outros (Oregon, Alasca, Nevada, Flórida...), decidiu autorizar em 1996 (proposition 215) – uma disposição atualmente em vigor em 36 dos cinquenta estados norte-americanos. Desde 2012, outros quinze autorizaram também o uso recreativo dessa substância, que, no entanto, continua tecnicamente ilegal, em razão do bloqueio de Washington.1 Outro dossiê: o aborto. Após a legalização pela Suprema Corte, em 1973 (por ocasião do julgamento Roe vs. Wade), o debate se deslocou para assuntos análogos e não resolvidos na esfera federal, como a utilização de fundos públicos. Uma dezena de governos republicanos (Louisiana, Utah, Arkansas...) proíbem atualmente o financiamento público do Planning Familial, o primeiro prestador de serviços de saúde reprodutiva – contracepção, interrupção voluntária da gravidez e prevenção da
JANEIRO 2021
te etc. Mas, se o governo de um estado não estiver de acordo com uma lei aprovada por uma cidade, ele pode sancionar outra que a anule: chamamos isso de “preempção”.
Tanto os democratas quanto os republicanos se consolidaram onde eles já dominavam, favorecendo a paralisia na esfera federal Temos hoje centenas de exemplos de leis municipais revogadas por assembleias legislativas republicanas. Em contrapartida, são bem mais raras as cidades conservadoras censuradas porque resolveram impedir a entrada de imigrantes irregulares, interditar a permanência de antigos delinquentes sexuais e proibir na esfera local o uso medicinal da maconha. Em 2017, o Arkansas “preemptou” uma medida, aprovada em Fayetteville, que impedia a discriminação de pessoas lésbicas, gays, bissexuais, trans e queer (LGBTQ). No que se refere a essa questão, a Carolina do Norte e o Texas anularam leis sancionadas em Charlotte e Houston, que impunham às empresas criar toaletes não discriminatórios para as pessoas transgêneras.4 O Texas também mirou os dispositivos de auxílio aos estrangeiros irregulares estabelecidos pelas prefeituras de Austin, Dallas, San Antonio e Houston, exigindo inclusive das polícias municipais que elas ajudem as alfândegas e a polícia de imigração a aplicar as disposições federais.5 A exemplo da Geórgia em 2010 ou da Flórida em 2019, nove estados decidiram proibir o status de “cidade santuário” adotado por algumas
.
infertilidade – para as pessoas que não têm seguro social.2 Ao contrário, sete estados solidamente democratas autorizam o financiamento dos abortos pelo Medicaid (programa de auxílio federal aos mais pobres), uma medida para a qual nove outros estados tiveram de tomar a decisão nos tribunais. 3 Por outro lado, enquanto Washington arrasta os pés quando se trata da luta contra a mudança climática, catorze assembleias legislativas estaduais têm leis para limitar as emissões de gases de efeito estufa, ultrapassando os objetivos fixados pelo governo federal. E quando as tentativas republicanas de enfraquecer os sindicatos foram regularmente freadas pelos democratas em Washington, seis membros da Federação aprovaram, desde o ano 2000, textos que fornecem às empresas ferramentas eficazes para impedir as tentativas de organização dos trabalhadores. Devemos considerar essas instâncias de poder, no âmbito dos estados, como expressão da democracia? Em vista da repetida incapacidade de Washington aprovar um orçamento, seria tentador responder que sim. Mas, em compensação, a margem de manobra deixada para os cinquenta membros da Federação contribui para silenciar vozes dissidentes e enfraquecer a representação democrática. Na realidade, as instituições nas mãos dos republicanos ignoram em grande medida os habitantes das grandes cidades. Estes, menos religiosos, mais diplomados e mais favoráveis à diversidade do que seus homólogos nas zonas rurais (qualquer que seja o partido que estiver no poder em seu estado), depositam então suas esperanças nos conselhos municipais, habilitados para tratar de assuntos como o salário mínimo, a defesa dos imigrantes, a luta contra o racismo, a proteção do meio ambien-
municipalidades para proteger os imigrantes clandestinos contra prisões e expulsões. Oito membros da Federação, sete deles controlados pelos republicanos, anularam também medidas que visam limitar o uso de sacos plásticos. Desde 2016, o Alabama proíbe as cidades de fixar em seu território um salário mínimo que ultrapasse o montante em vigor fixado pelas autoridades de Montgomery, sua capital (ou seja, US$ 7,25 por hora) – uma resposta ao conselho municipal de Birmingham, que tinha decidido elevá-lo para US$ 10,10. O Alabama encontra-se, assim, entre os 24 estados (dos quais 22 são governados por republicanos) que proíbem qualquer aumento do salário mínimo local.6 Essas preempções podem também atingir as tentativas de legalizar o porte de armas, aumentar os impostos, regulamentar as plataformas digitais Uber e Airbnb, obrigar os empregadores a conceder licença por motivo de doença e licenças-maternidade e paternidade, ou ainda de regular a banda larga e a televisão a cabo.7 Mais recentemente, alguns estados reduziram a nada medidas tomadas para lutar contra o coronavírus Sars-CoV-2, principalmente o fechamento do comércio não essencial, como salões de manicure e lojas que vendem armas, e de lugares como campos de golfe e praias.8 Os lobbies patronais mostram-se muito ativos na esfera dos estados. É o caso, particularmente, do American Legislative Exchange Council (Alec). Essa organização sem fins lucrativos agrupa políticos conservadores e representantes do setor privado que redigem diretamente projetos de lei e os propõem aos governos locais. O grande aumento das preempções, particularmente nos estados republicanos com grandes cidades, reduziu o mito norte-americano da autonomia local, um valor profunda-
Le Monde Diplomatique Brasil
15
mente enraizado na história e no imaginário nacionais. Desde então, esses grandes centros urbanos que querem guardar uma margem de autonomia não têm outra coisa a fazer exceto esperar que o governo federal intervenha para protegê-los. *Richard Keiser é professor de Estudos Norte-Americanos e de Ciência Política no Carleton College (Northfield, Minnesota, Estados Unidos). 1 “ Marijuana legalization and regulation” [Legalização e regulação da maconha], The Drug Policy Alliance. Disponível em: Drugpolicy.org. 2 L eah Jessen, “A 10th State defunded planned parenthood. Why there’s so much momentum now” [Um décimo estado tirou o apoio financeiro do planejamento familiar. Por que tantos fazem isso atualmente], The Daily Signal, 23 fev. 2016. Disponível em: www.dailysignal.com. 3 “ Medicaid funding of abortion” [Financiamento do aborto pelo Medicaid], Guttmacher Institute, jan. 2020. Disponível em: www.guttmacher.org. 4 Ben Kesslen, “Gay-friendly towns in red states draw LGBTQ tourists : ‘We’re here to be normal for a weekend’” [Cidades gay-friendly em estados republicanos atraem turistas LGBTQ: “Passamos o fim de semana aqui por ser normal”], NBC News, 26 abr. 2019. Disponível em: nbcnews.com; Manny Fernandez e Dave Montgomery, “Texas moves to limit transgender bathroom access” [Texas passa a limitar acesso a banheiro por transgêneros], The New York Times, 5 jan. 2017. 5 M aggie Astor, “Texas’ ban on ‘sanctuary cities’ can begin, appeals court rules” [Proibição pelo Texas de “cidades santuários” pode começar, julga Tribunal de Apelação], The New York Times, 13 mar. 2018. 6 K im Chandler, “Appeal filed in lawsuit over Alabama minimum wage law” [Apelo registrado na disputa sobre a lei do salário mínimo do Alabama], The Montgomery Advertiser, 3 mar. 2017. 7 Henry Grabar, “The shackling of the American city” [A restrição da liberdade da cidade americana], Slate, 9 set. 2016. Disponível em: www.slate.com; Nicole DuPuis et al., “City rights in an era of preemption : a state-by-state analysis” [Direitos da cidade em uma era de preempção: uma análise de estado por estado], National League of Cities, 2018. Disponível em: www.nlc.org. 8 Alan Greenblatt, “Will state preemption leave cities more vulnerable?” [A preempção dos estados vai tornar as cidades mais vulneráveis?], Governing, 3 abr. 2020. Disponível em: www.governing.com.
16
Le Monde Diplomatique Brasil JANEIRO 2021
A ESTRATÉGIA DE KEIR STARMER, O NOVO LÍDER DO PARTIDO TRABALHISTA
Expurgo no Reino Unido O ex-líder do Partido Trabalhista britânico, Jeremy Corbyn, acaba de anunciar o lançamento do Projeto pela Paz e a Justiça, maneira de seguir sua luta contra as desigualdades e o imperialismo. A iniciativa vai se beneficiar do desvio direitista do seu sucessor no Labour, Keir Starmer, eleito para reconciliar um partido dividido, mas que se empenha em calar a ala esquerda POR OWEN HATHERLEY*
vais, uma das quais, Rebecca Long-Bailey, representava a ala mais à esquerda do partido, e a outra, Lisa Nandy, sua ala (cada vez mais) à direita. Nas eleições internas de abril de 2020, ele conquistou cerca de metade dos votos obtidos por seu antecessor nas votações de 2015 e 2016. Pesos-pesados do corbynismo haviam se mobilizado para sua candidatura, como Laura Parker, fundadora da Momentum, a corrente pró-Corbyn do Partido Trabalhista. Nove meses depois, porém, essa síntese promissora já está em ruínas. A crise ressurgiu, mais aguda do que nunca. Levando em consideração as acusações de antissemitismo contra seu predecessor, Starmer chegou a ponto de proibir Corbyn de exercer seu mandato de deputado no Parlamento; o secretário-geral do partido, David Evans, impede qualquer discussão sobre essa evicção nas células locais; e o programa que levou a liderança atual ao poder foi esmagado. As “dez promessas” que anunciavam um novo amanhecer para o Partido Trabalhista foram apagadas de seu site.
.
“V
ocê deve achar que sou muito ingênuo”, canta Edwyn Collins na abertura do álbum favorito do líder trabalhista britânico Keir Starmer, You Can’t Hide Your Love Forever [Você não pode esconder seu amor para sempre]. “A verdade é que só vejo o que quero ver.” O ano de 2020, em que Starmer teve sucesso não apenas em assumir a chefia do Partido Trabalhista, mas também em realizar um expurgo interno que não poupou seus próprios apoiadores, foi um caso clássico de obtenção de benefícios por meio de uma postura de ingenuidade falsa. As propostas de Starmer durante sua campanha de candidatura à direção do partido pareciam quase boas demais para serem verdade: elas atendiam a todas as demandas da base após sair de um traumatismo coletivo. A maioria dos membros tinha apoiado Jeremy Corbyn e sofrido as múltiplas reviravoltas que pontuaram seu mandato, desde sua rápida derrota apertada na eleição geral de junho de 2017 até o desastre humilhante de dezembro de 2019, quando ele foi alvo de uma campanha conservadora repercutida na imprensa por desertores do Partido Trabalhista. Para membros e ativistas testados por essa experiência, Starmer trouxe uma plataforma de “dez promessas” que retomavam os fundamentos do socialismo à la Corbyn: renacionalização do transporte ferroviário e dos serviços outrora públicos, um “New Green Deal”, abolição das matrículas nas universidades, controle dos aluguéis e um ambicioso programa de moradia social... Tudo carregado por uma personalidade mais suave: não mais um anti-imperialista convicto, mas uma figura eminente da boa sociedade, o fundador de um escritório de advocacia especializado na defesa dos direitos humanos, ex-procurador-geral com título conferido pela rainha. Essa síntese providencial parecia em condições de reunificar o partido e engatar a máquina para vencer nas eleições seguintes. Starmer não teve dificuldade alguma para ultrapassar suas duas ri-
UMA FIRMEZA DE CONVENIÊNCIA Desde o início não havia nenhuma dúvida de que a estratégia de Starmer incluía elementos de oportunismo e manipulação. Em um comício em Liverpool, cidade mais à esquerda do país, ele proclamou, por exemplo, que durante a campanha não falaria mais ao Sun, o tabloide reacionário do magnata Rupert Murdoch – uma resolução muito aplaudida pela base, que boicotava o jornal desde sua cobertura tendenciosa do drama de Hillsborough, em 1989.1 Assim que foi eleito, ele se apressou em conceder-lhe uma entrevista. Em seu primeiro vídeo de campanha, lançado logo após a terrível derrota eleitoral de dezembro de 2019, Starmer foi retratado como um arauto das lutas das décadas de 1980 e 1990 – período em que a maior parte da esquerda envelhecida do partido começou sua jornada política. As mobilizações de que participou, co-
mo a greve anti-Murdoch dos impressores de Wapping (1986) ou o processo movido pelo McDonald’s contra dois ativistas da causa animal (nos anos 1990), foram documentadas por imagens granuladas de arquivo. Mas, a partir de 2003, mais nada. Nem uma única imagem, em particular, para o período pós-2008, quando Starmer tirou sua túnica de advogado engajado na defesa de causas nobres para vestir a toga de prestígio do diretor do Ministério Público da Inglaterra e do País de Gales (director of Public Prosecutions). Nesse posto, o filho da classe trabalhadora – seu pai era maquinista; sua mãe, enfermeira – alinhou-se à ordem dominante, com posições muitas vezes duras e raramente progressistas. De certa maneira, os poucos meses que ele acaba de passar à frente do Partido Trabalhista reproduzem, de forma acelerada, o processo de mutação ou adaptação realizado após sua nomeação como procurador, sob a autoridade do primeiro-ministro trabalhista Gordon Brown. Ele foi eleito deputado pela primeira vez em 2015, em um distrito eleitoral de Londres tradicionalmente trabalhista, antes de se tornar um ano depois ministro do Brexit no gabinete paralelo do Partido Trabalhista – um partido cujos membros queriam que o Reino Unido permanecesse na União Europeia, mas do qual muitos eleitores estavam inclinados pela saída, como as eleições de 2019 demonstraram.2 Em parte por causa de sua própria posição sobre o assunto, o Partido Trabalhista engajou-se nessa eleição exigindo um segundo referendo, reivindicação morna e desconjuntada que não despertou o entusiasmo dos eleitores e que Starmer se apressou em enterrar assim que chegou à chefia do partido. Ele sabia quão caro o rótulo de “pró-europeu” poderia custar politicamente e se livrou dele com a mesma determinação que em 2008 convenceu a opinião pública de que não seria um “promotor humanista” – acusação infame em um país cujos tabloides consideram o próprio conceito de direitos humanos um absurdo.
O escândalo do antissemitismo que – segundo a imprensa hostil a ele – teria favorecido Corbyn quando ele liderava o partido3 desempenhou apenas um papel menor na campanha interna de Starmer. Diante de perguntas e acusações, especialmente do Jewish Labour Movement (Movimento Trabalhista Judaico), suas concorrentes, Long-Bailey e Nandy, tomaram, para surpresa de todos, a iniciativa de se declararem sionistas, o que Starmer se recusou a fazer. No entanto, uma vez eleito, ele dedicou sua primeira declaração pública – uma mensagem de vídeo bizarramente gravada na frente de um guarda-roupa e mostrando-o com feições vermelhas e em pânico – a apenas dois tópicos: a Covid-19 e a “mácula do antissemitismo”, temas que definem a essência de seu mandato até hoje. Do lado da Covid, ele manteve a política inicial que consiste em não criticar o governo por sua gestão desastrosa da pandemia. De vez em quando, ele se permite uma declaração em tom sentencioso e gerencial para “alertar” as autoridades. Em um contexto em que a oposição à política de Boris Johnson é colocada fora de ação, os ataques contra a esquerda ganham ainda mais relevo. Long-Bailey foi o primeiro alvo. Em junho de 2020, ela renunciou ao cargo de ministra da Educação no gabinete paralelo do Partido Trabalhista após ter compartilhado no Twitter uma entrevista com a atriz Maxine Peake que associava a técnica policial norte-americana do “joelho no pescoço” a uma especialidade do Exército israelense – uma acusação plausível, mas não comprovada, que ocupou meia linha em uma entrevista dedicada em grande parte ao seu apoio ao Partido Trabalhista. Denunciando uma “teoria da conspiração antissemita”, Starmer decidiu de imediato punir sua ex-rival, que, no entanto, dispunha-se a se retratar publicamente. Toda a esquerda trabalhista de repente se viu alvo de suspeitas. O chefe do Partido Trabalhista também prometeu destituir do cargo qualquer pessoa acusada de antissemitismo, independentemente do fundamento da incriminação. Essa regra, no entanto, não se aplicava a outros aliados dele, como Rachel Reeves, que professou sua admiração pela ex-parlamentar pró-nazista Nancy Astor, ou Steve Reed, que, em julho de 2020, no Twitter, chamou um empresário judeu de “marionetista” que manipulava o governo conservador. Após a renúncia de Long-Bailey, comunicações internas revelaram que o conflito dela com Starmer era motivado em grande parte pela sustentação que recebia, já que se considerava que ela era excessivamente
JANEIRO 2021
(NEC), representativo de todas as tendências do partido, decidiu por unanimidade devolver a Corbyn sua ficha de membro, mas Starmer ainda se recusa a deixá-lo assumir assento como deputado trabalhista. Dezenas de grupos filiados ao Partido Trabalhista – incluindo sindicatos e movimentos de juventude – mostraram seu apoio ao ex-líder do partido; Evans, por sua vez, anunciou sua intenção de suspendê-los, antes de indicar que a questão não estava aberta para debate, levando uma parte dos membros do NEC a entrar em greve. A espiral é infernal. Demorou apenas alguns meses para que vários sindicatos cogitassem se desfiliar do Partido Trabalhista, ao passo que tinham levado anos para chegar a esse extremo sob o mandato de Tony Blair. Dada a aprovação geral recebida pelo relatório da EHRC, a questão não é saber se há um problema de antissemitismo dentro do Partido Trabalhista, e sim se a abordagem que consiste em rotular como antissemita qualquer crítica ao expurgo em curso facilita ou complica a adoção das recomendações desse relatório. Quais seriam as condições hoje para reunificar o partido? Um relatório interno sobre o desastre eleitoral de 2019, o “Labour Together [Partido Trabalhista Unido], sugere várias pistas. Embora concordem que a confusa demanda por um segundo referendo do Brexit constitui, de longe, a principal causa da derrota, seus autores defendem que a crise seja re-
.
apoiada pelos sindicatos de professores, então em total oposição a um plano de reabertura das escolas. Em outubro, deu-se então a escalada dos acontecimentos, com a suspensão de Corbyn, pronunciada após a apresentação de um relatório da Comissão para a Igualdade e os Direitos Humanos (EHRC) sobre o antissemitismo dentro do partido, que se seguiu a outro relatório interno, divulgado para a imprensa, que a liderança corbynista havia pedido para submeter à apreciação da EHRC. O último documento continha trechos de e-mails e trocas de mensagens por WhatsApp indicando que vários líderes trabalhistas conhecidos por serem intransigentes com o antissemitismo na verdade não tinham respondido a diversas reclamações sobre o tema. O relatório da EHRC corroborou esses elementos e questionou a direção em três pontos: sua passividade em face das propostas consideradas antissemitas do ex-prefeito de Londres Ken Livingstone e de um obscuro vereador de Lancashire; suas intervenções para bloquear procedimentos internos (uma relacionada a comentários deixados na página de Corbyn no Facebook sobre caricaturas antissemitas, a outra destinada a acelerar a exclusão de Livingstone); e sua incapacidade de formar adequadamente os quadros do partido para lidar com casos de antissemitismo. Essas queixas suscitaram poucas objeções no partido, inclusive em sua ala esquerda. Apesar de sua dureza para com a gestão, a EHRC se absteve de retransmitir as acusações ultrajantes propagadas pela imprensa, muito feliz em explorar essa crise para decidir o destino para Corbyn, equiparando-o a uma “ameaça existencial” para os judeus – o editorialista conservador Simon Heffer chegou a acusá-lo de querer “reabrir Auschwitz” (LBC, jul. 2019). Corbyn acolheu o relatório da EHRC, observando, sem surpresa, mas de uma forma que não deixou de ser inábil, que o problema tinha sido “consideravelmente exagerado” pela mídia, bem como por seus “opositores dentro e fora do partido” – uma declaração que Starmer dificilmente poderia contestar, a menos que concluísse que havia servido em um gabinete paralelo dirigido por um antissemita; mesmo assim, ele a usou como pretexto para suspender o antecessor de sua qualidade de membro do Partido Trabalhista. As razões para essa suspensão ainda permanecem obscuras. Corbyn foi punido por minimizar fatos de antissemitismo ou por ter “desacreditado o partido”, de acordo com a fórmula deliberadamente vaga utilizada por Evans? Um painel de membros do Comitê Executivo Nacional
mediada por meio de mais “profissionalismo” e “patriotismo”, para apaziguar a direita, mas também por meio de mais apoio às lutas sociais e mais audácia programática, para não condenar ao ostracismo os jovens socialistas do Momentum. A liderança do partido, no entanto, parece ter interpretado mal essas propostas aparentemente equilibradas: para todas as questões relativas à ordem e à segurança, ela continua a submeter-se ao Partido Conservador, enquanto, no plano social e econômico, persiste em se prender a posições centristas, personificadas pela inexpressiva Anneliese Dodds, chanceler do Tesouro (ministra das Finanças) no gabinete paralelo. Dada a política orçamentária do governo Johnson, marcada pelo aumento dos gastos públicos e do salário mínimo, as nuances entre trabalhistas e conservadores estão se tornando cada vez mais difíceis de discernir. Foi essa recusa em adotar uma linha um pouco progressista que causou grandes agitações após a chegada de Starmer. O novo chefe do Partido Trabalhista ficou de início marcado por seus comentários desdenhosos sobre o movimento Black Lives Matter [Vidas Negras Importam], reduzindo-o a uma “peripécia”, antes de se opor às denúncias de violência policial nos Estados Unidos: “Como diretor do Ministério Público, trabalhei por cinco anos com forças policiais na Inglaterra e no País de Gales, contribuindo para levar milhares de pes© Wikimedia
Le Monde Diplomatique Brasil
17
soas à justiça. Todos, portanto, podem ver que meu apoio às forças policiais é muito, muito forte, como evidenciado pelas ações que tive a oportunidade de realizar com elas”.4 As tensões aumentaram quando um grupo de socialistas integrado ao gabinete paralelo de Starmer foi forçado a renunciar por votar contra dois projetos de lei do governo Johnson que buscavam garantir a impunidade para militares e oficiais de inteligência caso cometessem atos criminosos no decurso de suas operações. A linha oficial do Partido Trabalhista era de se abster, não de votar contra – uma posição surpreendente para um partido liderado por um antigo grande advogado dos direitos humanos. No plano econômico, os trabalhistas podem argumentar que as tímidas medidas sociais consentidas pelo chanceler do Tesouro, Rishi Sunak, são o produto das amáveis pressões exercidas por Dodds. Mas se é isso o melhor que o partido tem a oferecer aos apoiadores de Corbyn em troca de uma ração adicional de humilhação pública, pode não ser suficiente. Até agora, Starmer se limitou a desempenhar o papel de um auxiliar muito moderadamente crítico do governo. No plano interno, sua ação resulta em dificultar a atuação de ativistas de porta em porta, desencorajando os militantes mais devotados, e a afastar-se dos sindicatos. Mas o propósito dessas negações permanece misterioso, sobretudo vindo de um líder tão indefinível politicamente. O defensor dos direitos humanos que se recusa a votar contra a absolvição dada aos crimes de guerra, o pró-europeu que se tornou um forte apoiador do Brexit, o candidato sindical que organiza expurgos em seu partido: ainda que essas metamorfoses pareçam produzir poucos resultados nas pesquisas, elas foram aplaudidas com fervor pela imprensa. A verdadeira ingenuidade de Starmer não seria a de acreditar que essa bênção será suficiente para içá-lo ao poder? *Owen Hatherley é autor de Red Metropolis: Socialism and the Government of London [Metrópole vermelha: socialismo e o governo de Londres], Repeater Books, 2020.
Keir Starmer, atual líder do Partido Trabalhista, foi eleito para reconciliar o partido
1 L er Quentin Guillon, “À Liverpool, le football comme creuset de l’identité” [Em Liverpool, o futebol como cadinho de identidade], Le Monde Diplomatique, nov. 2020. 2 Ler Chris Bickerton, “Pourquoi le Labour a perdu” [Por que o Partido Trabalhista perdeu], Le Monde Diplomatique, fev. 2020. 3 Ler Daniel Finn, “Anti-semitism, the Lethal Weapon” [Antissemitismo, a arma mortal], Le Monde Diplomatique, jun. 2019. 4 Citado por Elliot Chappell, “Starmer says he regrets calling Black Lives Matter movement a ‘moment’” [Starmer diz que lamenta ter chamado o movimento Black Lives Matter de um “momento”], LabourList, 2 jul. 2020. Disponível em: https://labourlist.org.
18
Le Monde Diplomatique Brasil JANEIRO 2021
A CAMPANHA DA CITY DE LONDRES PELO BREXIT
A era das finanças autoritárias “Loucura”, “erro”, “blefe”... Desde o referendo de 2016, o Brexit é apresentado como fruto de uma infeliz combinação de acasos. Contudo, ele atende perfeitamente aos anseios da fração emergente das finanças, para quem a regulamentação europeia – tão preocupada em não desagradar os poderosos – ainda atrapalha demais POR MARLÈNE BENQUET E THÉO BOURGERON*
.
© Rodrigo Visca
N
a manhã de 24 de junho de 2016, o mundo tomou conhecimento de que, à pergunta “O Reino Unido deve permanecer membro da União Europeia ou sair dela?”, 51,9% dos eleitores responderam “leave” (sair). Para muitos, esse resultado foi uma surpresa: a poderosa City, a Bolsa de Valores mimada por todos os poderes em Londres, parecia unânime em relação ao “remain” (permanecer). O que aconteceu? O patronato financeiro mais poderoso da Europa não teve meios suficientes para se fazer ouvir sobre uma questão que comprometia seu futuro? Ostensiva e ruidosa, a campanha conduzida pela City a favor do “remain” todavia mascarou outra mais discreta, embora maciça. Encontramos a pista disso nos dados que se tornaram públicos pela comissão eleitoral britânica e que levam a três observações. Em primeiro lugar, o setor financeiro consagrou quase dois terços de seu investimento no referendo para apoiar o “leave”, enquanto os setores industriais investiram bem menos da metade de seus capitais. Em seguida, 57% das receitas da campanha a favor do “leave” vieram do setor financeiro, em comparação com apenas 36% para a que se fazia a favor do “remain” – o que sugere que a mais “financeira” das duas campanhas não foi a que se pensava. Por fim, dois grupos financeiros adotaram diferentes atitudes. De um lado, os representantes da “primeira financeirização” – bancos, seguradoras, empresas de administração, de comunicação e de informação financeiras, de corretagem, de câmbio, de investimento institucional (inclusive fundos de pensão) –, entre os quais o modo de acumulação se caracteriza por um apelo público à poupança, investida a curto prazo em ações adquiridas na Bolsa. Esse modo de acumulação não implica um controle das empresas pelos financistas proprietários de títulos; estes têm um modo de gestão fundamentalmente passivo e delegam aos gestores o controle das empresas. Do outro, os membros da “segunda financeirização” – setores da gestão alternativa de ativos, do capital-inves-
timento e dos hedge funds. Estes fazem apelo a capitais privados que eles investem a médio prazo em ativos fora dos mercados e dos quais eles têm controle. Seu modo de gestão é alternativo na medida em que, de certo modo, não está correlacionado com mercados financeiros, seja porque seus investimentos não se encontram cotados, seja porque eles só correspondem a setores muito arriscados dos mercados. Os dados de financiamento das duas campanhas mostram uma situação límpida: a campanha a favor do “remain” foi em grande parte financiada pelos atores da primeira financeirização, e a favorável ao “leave”, pelos da segunda (exatamente 94% do total).
CINGAPURA NO TÂMISA Embora a regulamentação europeia tenha sido muitas vezes descrita por pesquisadores críticos como uma forma de constitucionalização do neoliberalismo, como uma ação de confisco da soberania dos povos em
benefício dos interesses do setor financeiro, ou seja, uma operação institucional muito boa para os setores financeiros europeus, ela não é muito satisfatória, pelo menos aos olhos dos atores da segunda financeirização. Ao deixarem a União Europeia, eles esperam reencontrar a liberdade de agir para investir como melhor lhes parece, livres da vigilância de Bruxelas, julgada demasiadamente constrangedora. O economista Savvas Savouri, do fundo Toscafund Asset Management, afirmou no Le Monde do dia 14 de maio de 2016 estar “cansado da retórica anti-Brexit” dominante na campanha para o referendo. “Em meus ouvidos, todas as ameaças soam em vão”, disse ele, e prosseguiu: “Temos meio bilhão de libras investido no setor imobiliário e em empresas britânicas. Se estivéssemos inquietos com as consequências econômicas de uma saída da Grã-Bretanha, nós o diríamos. Ao contrário, isso representaria uma excelente oportunidade
para o crescimento do país”. De seu ponto de vista, o principal risco financeiro a longo prazo não seria tanto abandonar a União Europeia, e sim continuar imobilizado dentro dela. Roger Bootle, fundador da Capital Economics, uma empresa de consultoria macroeconômica independente, e cronista do jornal semanal Daily Telegraph, compartilha dessa análise: “Sair da UE significará se abrir para o mundo. Vejam os resultados econômicos catastróficos da Europa durante as duas últimas décadas em relação a nós, aos Estados Unidos e ao resto do mundo”. Bootle faz parte de um grupo de economistas independentes, o Economists for Free Trade (anteriormente denominado Economists for Brexit), que critica os custos e as obrigações impostos por Bruxelas e vê o Brexit como condição de uma busca da desregulamentação financeira no Reino Unido. O projeto dos financistas pró-Brexit desenha-se assim: transformar a City em uma espécie de plata-
JANEIRO 2021
mentado, como um sistema social fundamentado no reconhecimento e na proteção dos direitos do indivíduo e, portanto, como uma opção política que rejeita qualquer coerção nas relações sociais. Ele almeja basear a sociabilidade apenas na soberania moral, política e econômica dos indivíduos. Assim, Chris Hattingh, analista da Free Market Foundation, um think tank libertarianista fundado em 1975, escreveu em dezembro de 2019: “Dar às pessoas a liberdade de comercializar é fundamental. Permitir a criação de novas empresas, isentas de qualquer regulação, é fundamental. Reconhecer as pessoas como indivíduos diferentes, capazes de buscar sua própria felicidade tal como eles a definem, é fundamental”.1 Como escreve Gilles Dostaler, os libertarianistas vão mais longe que os neoliberais no que diz respeito à redução do papel do Estado, “uma vez que dele devem ser retiradas não só a educação e a produção de certas infraestruturas, como o sistema de transportes, mas também as funções que são da alçada da autoridade soberana. David Friedman, filho de Milton, propõe privatizar a polícia, a justiça e a defesa. O movimento anarcocapitalista visa à eliminação total do Estado, com a privatização de todas as suas funções, inclusive as que lhe foram reservadas por Adam Smith: o exército, a polícia e a justiça”.2
.
forma offshore. O banqueiro de investimentos e ex-operador de mercados financeiros Marc Fiorentino explica: “Financistas sonham que Londres se torne uma Cingapura em escala mundial, uma zona totalmente livre de qualquer obrigação regulamentar europeia, onde todas as forças econômicas e financeiras emergentes possam fazer livremente seus negócios, limpos ou nem tanto, ou seja, uma vasta terra de refúgio fiscal [também conhecida como paraíso fiscal]”. Um projeto batizado pela imprensa britânica de “Cingapura no Tâmisa”. Sinal dos tempos, os patronos da segunda financeirização começaram a ocupar seus lugares em Westminster com a chegada, em 2019, de Boris Johnson à Downing Street, 10. Os representantes dos setores financeiros tradicionais conservam as adesões que obtiveram há trinta anos, tais como a de Andrea Leadsom, banqueira de investimentos no Barclays e secretária do Estado para Negócios, Energia e Estratégia Industrial; ou Sajid Javid, banqueiro de investimentos no Deutsche Bank e chanceler do Exchequer (ministro das Finanças) até fevereiro de 2020. Mas são agora ameaçados pelos porta-vozes das novas finanças. Richard Tice, gerente de um fundo imobiliário, foi eleito deputado europeu em 2019. Dirigente histórico do grupo Leave Means Leave, no mesmo ano ele foi nomeado presidente do Partido Brexit por Nigel Farage, ex-líder do Partido de Independência do Reino Unido (Ukip). Cofundador do hedge fund Somerset Capital Management, Jacob Rees-Mogg chega à posição de ministro encarregado das relações com o Parlamento. Finalmente, Rishi Sunak, ex-gerente do hedge fund The Children’s Investment Fund Management, foi nomeado chanceler do Exchequer, substituindo Javid em fevereiro de 2020. O Projeto do Brexit, de Tice e Farage, se inspirou menos em ideias neoliberais na base da construção europeia do que na ideologia libertarianista. O libertarianismo pode ser definido como uma doutrina econômica que visa limitar qualquer forma de intervenção estatal, exceto a garantia da propriedade privada contra o coletivismo e o estatismo. Essa ideologia diz respeito também às relações entre países. Ela exige que seus promotores adotem posições isolacionistas, mas não protecionistas. A recusa à regulação estatal corresponde à oposição a qualquer institucionalização das relações interestatais, da qual a forma é deixada para a apreciação das únicas partes que contraem acordos comerciais correspondentes a seus interesses econômicos. O libertarianismo preconiza um capitalismo inteiramente desregula-
“Financistas sonham que Londres se torne uma Cingapura em escala mundial, uma zona totalmente livre de qualquer obrigação regulamentar europeia” O libertarianismo não propõe uma articulação sistemática entre as ações individuais e uma forma de bem comum. O liberalismo de Smith considerava o interesse geral como resultado da agregação dos interesses individuais enquadrados por leis votadas democraticamente por indivíduos soberanos. O neoliberalismo de Friedman, Friedrich Hayek ou Ludwig von Mises recolocou o bem comum no campo econômico, mas continuou a tê-lo como horizonte da doutrina econômica. A defesa radical da propriedade privada e da liberdade de enriquecer era vista como capaz de levar ao crescimento geral das riquezas e, consequentemente, do progresso social. O libertarianismo defende, ao contrário, uma abordagem ética da liberdade, sem considerar seus efeitos sobre o bem comum: seria justo e desejável promover a li-
berdade antes de mais nada, quaisquer que sejam as consequências. Sua justificativa para o capitalismo sem intervenção (laissez-faire) se baseia na ideia de que se trata do único sistema econômico compatível com a ética libertária, e não na convicção da superioridade do capitalismo, capaz de produzir mais riquezas do que qualquer outro modo de produção. Diferentemente dos liberais e neoliberais, que adotam uma abordagem consequencialista da liberdade, os libertarianistas têm sobre ela uma visão deontológica: a liberdade de acumular torna-se em si mesma sua própria justificativa.
“O movimento anarcocapitalista visa à eliminação total do Estado, com a privatização de todas as suas funções” Libertário no plano econômico, o regime político da acumulação promovido pela segunda financeirização é muito autoritário no plano político. Hostil a qualquer mecanismo redistributivo que garanta condições elementares de existência para a população (saúde, educação, proteção), ele faz da repressão aos movimentos sociais e da redução das liberdades públicas, principalmente por meio do aumento do controle dos deslocamentos e da liberdade de expressão, a modalidade privilegiada de criação de uma ordem social. Esta está apenas aparentemente em contradição com a ideologia libertarianista. Se ela não faz parte da base de seus princípios, é sua consequência prática. Na falta de um regime de justificativa sistemática e de dispositivos materiais de compensação das desigualdades e do empobrecimento de uma parte da população, resta apenas o uso da força como modo de regulação da vida social. As liberdades são sacrificadas em benefício da preservação da principal delas: ter propriedade e acumular. Ao longo da década de 2010, essas ideias se difundiram principalmente por intermédio de um conjunto de think tanks geralmente designado com o nome de “Tufton Street”, em referência à rua de Westminster, em Londres, em que a maior parte deles tem sua sede. Assim, entre os números 55 e 57 da rua, encontram-se o Adam Smith Institute, a TaxPayers’ Alliance, o Leave Means Leave, a Global Warming Policy Foundation, o Centre for Policy Studies e o Institute for Economic Affairs. Esses think tanks são em grande parte financiados pelos setores da segunda financeirização, assim como por outros se-
Le Monde Diplomatique Brasil
19
tores econômicos aliados (como os de engenharia encarregados de obras públicas e privadas, as indústrias da energia fóssil e do tabaco). Essa rede não é somente britânica: o Tufton Street se insere no entrelaçamento transatlântico da Atlas Network (Rede Atlas). Essas quatrocentas organizações formam uma galáxia politicamente coerente, definida por seu libertarianismo e por suas conexões com a direita alternativa (alt-right) norte-americana, assim como com os conservadores pró-Brexit do Reino Unido. Elas aglomeram um conjunto de ideias que constituem o projeto político da segunda financeirização: libertarianismo acompanhado da obra thatcheriana, do euroceticismo, do atlantismo, do autoritarismo e do ceticismo climático.
UMA CLASSE NÃO AMEAÇADA Para governar, os promotores da segunda financeirização parecem não ter mais necessidade da democracia. Assim, eles contradizem a ideia marxista de acordo com a qual a república democrática seria a forma de governo mais adaptada à dominação burguesa. Isso resulta principalmente do fato de esses novos dominantes não serem ameaçados por outra elite concorrente ao exercício do poder. Na virada do século XIX, era vital para a burguesia ascendente dotar-se de uma legitimidade diferente daquela ligada ao sangue, diante dos interesses dos grupos de senhores feudais e de aristocratas, ainda muito populares. A burguesia tinha de lutar contra a possibilidade de reformulação da coalizão de interesses entre a aristocracia fundiária e as classes camponesas dominadas durante quase mil anos. Nesse contexto, a reinvenção democrática baseada na ideia de um povo soberano sustentou a revolução burguesa. Atualmente, porém, a burguesia não está ameaçada por outra classe candidata ao poder. E, na falta de uma ameaça monárquica ou socialista, ela ainda tem interesse na democracia? *Marlène Benquet e Théo Bourgeron são sociólogos e autores de La Finance autoritaire. Vers la fin du néolibéralisme [As finanças autoritárias. Rumo ao fim do neoliberalismo], do qual este texto foi extraído. Livro lançado em janeiro de 2021 pela editora Raisons d’Agir, Paris. 1 C hris Hatting, “Le capitalisme, seule solution pour sortir de la pauvreté et être libre” [O capitalismo, única solução para sair da pobreza e ser livre], Contrepoints, 30 dez. 2019. Disponível em: www.contrepoints.org. 2 Gilles Dostaler, “Capitalisme et libéralisme économique” [Capitalismo e liberalismo econômico]. In : Renaud Chartoire (org.), Dix questions sur le capitalisme aujourd’hui [Dez questões sobre o capitalismo hoje], Éditions Sciences Humaines, Auxerre, 2014.
20
Le Monde Diplomatique Brasil JANEIRO 2021
O ACORDO COMERCIAL MAIS IMPORTANTE DO MUNDO
Bomba de livre-cambista na Ásia Nada de trégua no confronto China-Estados Unidos. Pequim marcou mais um ponto ao firmar com outros catorze países asiáticos a Parceria Econômica Regional Global, o maior acordo de livre-comércio já assinado. Além das consequências econômicas, o tratado consolida a imagem de uma Ásia dinâmica, que se entende apesar das divergências políticas e estratégicas POR MARTINE BULARD*
REUNIÃO HETEROGÊNEA Na verdade, a Asean foi fundada em 1967, em plena Guerra Fria, com o objetivo declarado de conter o comunismo. Um núcleo de “países seguros”, tendo frequentemente caçado “vermelhos” (ou supostamente ver-
melhos) em seu próprio território2 e aliados indefectíveis dos Estados Unidos, incluindo Indonésia, Malásia, Filipinas, Cingapura e Tailândia, então se uniram para bloquear o “mal”. Mas, com o tempo e o colapso da União Soviética, as disputas ideológicas desapareceram. A crise asiática de 1997-1998, que assolou a região enquanto a economia chinesa decolava, fez o resto: os inimigos de outrora negociaram, a Asean se consolidou. Depois, ela se estendeu, criando o que se chamou de Asean+3, com os três gigantes asiáticos (China, Coreia do Sul e Japão), além de uma série de organizações de geometria variável, como o Fórum Regional da Asean, que tem 27 membros (incluindo os da Asean+3, os Estados Unidos, a Coreia do Norte, a Rússia, a Índia e a União Europeia), ou ainda o Encontro de Ministros da Defesa Plus (Asean Defense Ministers Meeting Plus), que reúne dezoito países (os da Asean+3, a Austrália, os Estados Unidos, a Índia, a Nova Zelândia e a Rússia). Silenciosamente, a Asean teceu assim uma ampla rede diplomática que, sem dúvida, evitou que os conflitos territoriais no Mar da China se degenerassem, sem, no entanto, conseguir resolvê-los. Em 2018, ela esboçou com Pequim um código de boa conduta (COC) que deveria servir de base para as negociações entre todos aqueles que reivindicam soberania sobre as ilhas Paracels e Spratleys: a China, que não dá tréguas, reclama todas para si; o Vietnã, as Filipinas, a Malásia, o Brunei e a Indonésia são menos gananciosos, mas as reivindicações nacionais estão confusas.3 Dois anos depois, o COC está parado, os incidentes proliferam e os ressentimentos se acumulam. No entanto, as tensões não impediram a assinatura do Perg, que reúne em torno de um mesmo texto a segunda e a terceira potência econômica mundial – China e Japão. Esse contrato de 521 páginas (em inglês), vinte capítulos, 17 anexos e um calendário de acesso aos mercados nacionais visa “eliminar direitos aduaneiros e cotas sobre mercadorias”, indica o site da Asean. Ele abrange também al-
.
D
iz-se que ela é fraca, dividida, ineficaz ou mesmo inexistente. A Associação das Nações do Sudeste Asiático (Asean, na sigla em inglês) faz parte de uma daquelas organizações regionais que parecem fora dos radares diplomáticos, mesmo que reúna dez países (Myanmar, Brunei, Camboja, Indonésia, Laos, Malásia, Filipinas, Cingapura, Tailândia e Vietnã) e 652 milhões de pessoas. Além disso, sua 37ª reunião de cúpula foi aberta em Hanói em 12 de novembro com indiferença. Mas terminou, três dias depois, com um estrondo: a assinatura de um acordo de livre-comércio, a Parceria Econômica Regional Global (Perg), com Austrália, China, Coreia do Sul, Japão e Nova Zelândia. Num momento em que a deslocalização da produção, o “consumir localmente” e a proteção dos mercados deveriam servir de base para um novo modo de desenvolvimento, os principais países asiáticos (excluindo a Índia, que se retirou das negociações por medo da competição de seus vizinhos) apostam na extensão do campo da globalização. “Uma vitória do multilateralismo e do livre-comércio”, felicitou-se o primeiro-ministro chinês, o comunista Li Keqiang, enquanto seu equivalente japonês, o liberal Suga Yoshihide, fazendo eco, saudava esse “dia histórico, após oito anos de negociações”, e pedia a efetivação do acordo “o mais rápido possível”.1 Praticantes do livre-comércio de todos os países, uni-vos! Trinta por cento da riqueza produzida no mundo, 28% do comércio mundial e 2,2 bilhões de pessoas: o Perg é o mais importante acordo do gênero já assinado. E sem Washington! Foi uma reversão singular da história ver a China reinando suprema nesse Sudeste Asiático outrora tão hostil.
guns obstáculos não tarifários (relacionados a padrões), parte do comércio de serviços, comércio eletrônico e questões de propriedade intelectual, mas deixa de fora o essencial dos produtos agrícolas. Na verdade, as regras parecem não ser muito restritivas: mercadorias feitas com materiais originários de um dos quinze países signatários serão automaticamente admitidas nos demais. O que, aliás, terá consequências para a União Europeia, que assinou acordos de livre-comércio com vários países membros do Perg (Vietnã, Coreia do Sul, Japão). Será mais difícil, se não impossível, rastrear a origem dos produtos, que poderão então se beneficiar de um tratamento preferencial europeu. O Perg não tem critério ambiental, de saúde ou social. É certo que os acordos sob a égide norte-americana ou europeia, apesar de suas lindas fórmulas, não são muito melhores – a não ser pelas cláusulas sociais como o salário mínimo ou o direito de greve introduzidas em 2018 na revisão do Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta).4 Por outro lado, o Perg não contém nenhuma cláusula que dê poder às multinacionais para atacar os Estados quando as medidas lhes desagradam. Nenhuma função é atribuída ao Centro Internacional para a Solução de Disputas Relativas aos Investimentos (Cirdi), um tribunal de exceção acima das leis nacionais.5 Em geral, a assinatura de um tratado de livre-troca gera uma orgia de promessas (nunca cumpridas) sobre crescimento, empregos e comércio. Dessa vez, mesmo os especialistas econômicos mais liberais permanecem cautelosos e calculam, na melhor das hipóteses, uma retomada do crescimento de 0,2% a 0,4% em média. Na verdade, a maioria dos países envolvidos já tem acordos bilaterais de livre-comércio, sobretudo com os três grandes, enquanto as zonas econômicas especiais (sem tributação) são muitas na área: contam-se setecentas delas no Sudeste Asiático e mais de 2.500 na China.6 Limitadas, as mudanças esperadas não serão nem idênticas nem be-
néficas para todos, mesmo que o Perg seja oficialmente destinado a promover a “integração econômica asiática”. A Asean continua sendo uma reunião fora dos padrões de países com níveis de riqueza muito diferentes. No topo da tabela, Cingapura, com uma renda per capita de US$ 64.567, tem pouco a ver com Myanmar, com seus US$ 1.440.7 No Brunei, 78% da população vive em cidades, mas no Camboja esse número é de apenas 23%. Suas necessidades e capacidades de resistência não são da mesma ordem. Em busca de novos países de baixos salários, as multinacionais da região e do resto do mundo vão se voltar para a região com todo interesse. O Vietnã já está se beneficiando do deslocamento de fábricas anteriormente estabelecidas na vizinha China. Tóquio adotou um plano para se desligar da China, ajudando grupos japoneses a se mudarem para a ilha ou a investir no Vietnã, em Myanmar ou na Tailândia.8 O Japão, cuja economia é uma das mais expansivas, é o principal provedor de fundos na Ásia: representa 13,7% do investimento estrangeiro direto (IED) que entra na Asean, contra... 7% para a China. O Perg deve levar a uma redistribuição das cartas na região, mas certamente não a uma reviravolta. O interesse fundamental desse acordo reside em suas dimensões estratégicas, visto que consagra a centralidade geopolítica da China. Lançado originalmente por Pequim, em resposta à Parceria Transpacífica (TPP, em inglês) imaginada por Barack Obama quando era presidente dos Estados Unidos para conter a ascensão do poderio chinês (e abandonado por Donald Trump), o Perg patinou por oito anos. A “diplomacia de cooperação” da Asean, como diz a expressão consagrada, e a vontade chinesa de ter sucesso finalmente levaram à sua assinatura. Certamente, é um “acordo comercial de baixo nível”, como reconhece o ex-diplomata de Cingapura e professor de políticas públicas Kishore Mahbubani.9 No entanto, marca, segundo ele, uma “grande virada na história do mundo, que seria errado subestimar”.
JANEIRO 2021
Le Monde Diplomatique Brasil
21
© Flávia Pereira
E sobretudo, ela acrescenta, esse acordo lembra que “nossos parceiros comerciais asiáticos conquistaram a confiança mútua necessária para trabalharem juntos, sem precisar dos Estados Unidos”.14 Isso terá consequências geopolíticas duradouras? Ainda é muito cedo para responder. Esperando, com base em seu sucesso, Xi Jinping se deu ao luxo de anunciar que a China estava pronta para se juntar ao TPP-11, a nova versão da Parceria Transpacífica adotada pelo Japão após a retirada de Trump – mais um golpe político que um compromisso econômico. O presidente chinês quer se converter em campeão do livre-comércio, com a condição, porém, de que o Estado continue no controle. Não há certeza se todos entendem dessa forma.
.
*Martine Bulard é jornalista do Le Monde Diplomatique.
Até agora, ele nos diz, “havia pelo menos três visões potenciais de cooperação na Ásia: Ásia-Pacífico, Indo-Pacífico e Leste Asiático. O Perg mostra que a visão dominante será a do Leste Asiático. A Ásia-Pacífico, promovida pelos Estados Unidos primeiro no âmbito do Fórum de Cooperação Econômica Ásia-Pacífico [Apec], em seguida como parte do TPP, teve sua morte decretada por Trump. Quanto ao Indo-Pacífico, está em suspense, tendo a Índia se retirado”. Essas saídas da Índia e dos Estados Unidos são apenas temporárias, e a China não ficará sozinha por muito tempo. Mas não ficará isolada – o que ela temia no mais alto grau. “O Perg [lhe] garante a extensão de seu poder econômico”, explica o economista e cientista político norte-americano David P. Goldman, que destaca sua habilidade de “atrair os países do Sul com seu modelo econômico, por meio de tecnologia e organização comercial. Isso não tem nada a ver com exportar seu modelo político. Ao contrário, a força da abordagem chinesa do mundo reside no fato de que ela busca transformar a economia pela capilaridade, de baixo para cima, e não de cima para baixo.”10
Os países ocidentais preferem usar o mapa político e militar. A América de Trump reviveu o Quadrilateral Security Dialogue (QSD, também chamado de Quad), que reúne Tóquio, Nova Déli, Camberra e Washington, com o objetivo claramente expresso de formar uma coalizão antichinesa; ela estreitou laços militares com as Filipinas e a Indonésia, cujo ministro da Defesa recebeu com grande pompa seu homólogo norte-americano;11 e ficou mais perto do Vietnã, de Taiwan... Tudo isso acompanhado de vendas de armas em um ritmo sustentado e de uma “abundância de demonstrações de força norte-americanas e chinesas no Mar da China”12 – com todos os riscos que isso acarreta de falsas manobras e de mal-entendidos que podem levar ao pior.
CRÍTICAS DE PEQUIM A CAMBERRA Assim, o confronto assume a aparência de dupla chantagem: nenhuma proteção de segurança sem lealdade a Washington, diz um; nenhuma troca econômica (ou melhor, menos trocas econômicas) sem aceitação das regras chinesas, adverte o outro. Cada parceiro é chamado a escolher seu lado... ou, em último caso, a não esco-
lher o lado adversário. Para a Austrália, que se alinhou abertamente com os Estados Unidos ao pedir uma comissão de inquérito sobre a origem da Covid-19 e rejeitar acordos com a Huawei sobre o 5G, Pequim enviou uma lista de “catorze reprovações”, com este aviso: “Se fizerem da China um inimigo, a China será seu inimigo”.13 Em nome disso, os vinhos foram maciçamente tributados, depois o carvão, a carne, a cevada... As disputas serão resolvidas perante a Organização Mundial do Comércio (OMC). Quanto aos produtores australianos, eles já estão sendo prejudicados. No entanto, a maioria dos governos asiáticos rejeita esse discurso das grandes potências. Mahbubani adverte contra uma má interpretação: “A preocupação levantada entre seus vizinhos pelo aumento do poder da China não significa que eles se oponham a esse aumento”. Alguns, como Cingapura e Coreia do Sul, veem certo equilíbrio nisso; todos buscam ser respeitados pelos dois gigantes. Como resume Wendy Cutler, vice-presidente do Asia Society Policy Institute de Nova York, “quinze países decidiram se unir, independentemente de suas diferenças e disputas”.
1 R espectivamente China Daily, Pequim, 16 nov. 2020, e site do Ministério das Relações Exteriores, Tóquio, 15 nov. 2020. 2 Ler Jean Guilvout, “Indonésie: comment le régime militaire règne par la terreur” [Indonésia: como o regime militar reina por meio do terror], e Patrice De Beer, “‘Démocratie d’exception’ à Singapour” [“Democracia de exceção” em Cingapura], Le Monde Diplomatique, fev. 1977 e out. 1971, respectivamente. 3 Ler Didier Cormorand, “Et pour quelques rochers de plus...” [E por alguns rochedos a mais...], Le Monde Diplomatique, jun. 2016. 4 Ler Lori M. Wallach, “Premières brèches dans la forteresse du libre-échange” [Primeiras brechas na fortaleza do livre-comércio], Le Monde Diplomatique, nov. 2018. 5 Ler Benoît Bréville e Martine Bulard, “Des tribunaux pour détrousser les États” [Tribunais para dilapidar os Estados], Le Monde Diplomatique, jun. 2014. 6 Relatório 2019 sobre Investimento Mundial – Zonas Econômicas Especiais, Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad), Genebra, jun. 2019. Disponível em: www.unctad.org. 7 Todas as estatísticas da Asean foram retiradas do Asean Statistical Yearbook 2019, Jacarta. 8 “Japan starts paying firms to cut reliance on Chinese factories” [Japão começa a pagar às empresas para reduzir a dependência das fábricas chinesas], Bloomberg News, 18 jul. 2020. 9 C f. Kishore Mahbubani, Has China Won? [A China venceu?], PublicAffairs, Nova York, 2020. 10 David P. Goldman, “The State Department’s wrong telegram” [O telegrama errado do Departamento de Estado], Asia Times, Hong Kong, 18 nov. 2020. 11 Aristyo Rizka Darmawan, “Prabowo redeemed in Washington’s eye amid China-US rivalry” [Prabowo resgatado aos olhos de Washington em meio à rivalidade China-EUA], The Interpreter, 20 out. 2020. Disponível em: www. lowyinstitute.org. 12 Daniel Schaeffer, “Chine – États-Unis – Mer de Chine du Sud et riverains: En attendant Biden” [China – Estados Unidos – Mar da China Meridional e ribeirinhos: esperando por Biden], Asia21, set. 2020. Disponível em: www. asie21.com. 13 Jonathan Kearsley, Eryk Bagshaw e Anthony Galloway, “‘If you make China the enemy, China will be the enemy’: Beijing’s fresh threat to Australia” [“Se você fizer da China o inimigo, a China será o inimigo”: a nova ameaça de Pequim à Austrália], The Sidney Morning Herald, 18 nov. 2020. 14 Wendy Cutler, “PERG Agreement: Another wake-up call for the United States on trade” [Acordo Perg: outro alerta para os Estados Unidos sobre o comércio], Asia Society Policy Institute, Nova York, 15 nov. 2020.
22
Le Monde Diplomatique Brasil JANEIRO 2021
MUDANÇAS NA ECONOMIA PRECIPITADAS PELA COVID-19
Outro mundo impossível é possível Como será o pós-pandemia? As políticas para enfrentar a crise sanitária aceleraram tendências de fundos que atravessam as sociedades e preocupam as populações: incerteza, precariedade, automação voraz, eliminação das relações humanas. No essencial, essa transição para o capitalismo digital será pilotada pelo Estado POR LAURENT CORDONNIER*
.
© Mike Erskine/Unsplash
A
primeira onda do vírus e a colocação numa redoma de metade da humanidade entre janeiro e junho de 2020 fizeram um eco incomum às aspirações latentes – na maior parte do tempo dispersas, raramente decisivas, frequentemente derrotadas – de uma parte da população que tem por objetivo construir um “mundo de depois” que não carregaria todos os pontos negativos do antigo e teria até algumas virtudes. Um mundo no qual haveria músicos nas janelas, menos aviões no céu, patos pegando tranquilamente o anel viário, circuitos curtos recosturando a fenda entre a cidade e o campo. Um mundo em que as profissões fragmentadas pela divisão capitalista do trabalho se cumprimentariam, empoleiradas em suas varandas todas as noites, pelo trabalho social realizado durante o dia – e à noite também – por todos aqueles cujos salários teriam sido ajustados ao padrão. Um mundo onde o ar fosse mais limpo, o ter não substituiria o ser e o sorriso da moça do caixa não seria mais forçado. O período de desconfinamento e depois a segunda onda do vírus já provaram que era pedir muito. A esperança de um retorno a uma vida “normal” rapidamente suplantou as outras e, para as populações que pagarão por muito tempo o mais pesado tributo pelo colapso econômico, esse “retorno ao normal” já seria o bastante. Isso significa que não sobrou nada, chegado o inverno, daquelas belas aspirações – às vezes transformadas em ações – que pelo menos permitiram, de um jeito ou de outro, amenizar as dores do primeiro confinamento? No futuro, como arrisca o Observatório da Sociedade e do Consumo, não poderemos contar com o fato de que uma crise sempre envolve um “poderoso efeito de aceleração das tendências que observamos antes de sua erupção”? “Em suma, essa epidemia parece ‘precipitar’, no sentido temporal, mas também químico, essa tensão bem conhecida que [Antonio] Gramsci descreveu entre um velho mundo que se recusa a morrer e um novo que luta para nascer”, analisa o observatório. Um interregno de todos os perigos que pode gerar “os
O novo mundo que tem dificuldades para nascer ainda não passou pela cabeça, e nada garante que seja novo mais variados fenômenos mórbidos”, alertava Gramsci.1 Infelizmente, o novo mundo que tem dificuldades para nascer ainda não passou pela cabeça, e nada garante que seja novo, ou mesmo desejável. Outro mundo impossível ainda é possível. Não é certo que tenhamos tirado lições desse interregno forçado. Esse vírus, ao qual levamos a promessa de uma humanidade comunitária, realmente aproximou as pessoas de todo o mundo, em favor de nossa comunhão nesse sofrimento planetário? Todos esses homens e mulheres padecendo ao mesmo tempo da mesma doença, da Índia a Guadalupe, de Tourcoing à Cidade do Cabo, de Vesoul a Los Angeles, permitiram que milhares de leitos de hospital e de médicos fossem redistribuídos por milagre de norte a sul e de leste a oeste? Ao contrário, o movimento continua seguindo a direção oposta. Reino Unido, Alemanha, França, Bélgica e Itália estão desviando médicos formados nos antigos países do bloco oriental e no sul do Mediterrâneo. Assim, “a Romênia perdeu mais de 50% de seus médicos entre 2009 e 2015, e o êxodo continua, com
10% de seus médicos deixando o país anualmente. A Eslováquia, por sua vez, já teria perdido mais de 25% de seu pessoal médico desde 2004. [...] Esse triste recorde de maior exportador de médicos torna a Romênia incapaz de lidar com a crescente demanda por cuidados de uma população em envelhecimento, e a crise epidêmica de Covid-19 deixa a situação particularmente alarmante”.2 A mesma coisa na Tunísia, onde os médicos só sonham em ir embora. Eles seriam quase oitocentos a dar esse passo a cada ano, de acordo com o Sindicato Geral dos Médicos Tunisiano.3 A pandemia não nos aproximou. Mesmo quando os aviões estavam voando, alguma vez nos aproximamos? Depois que estes foram pregados no chão, chegamos à conclusão de que eles permitiam sobretudo a alguns “se evadir”. Em uma escala menor, essa crise visivelmente ainda não aproximou o “mundo da cultura” e o “mundo universitário” – esses outros artistas do espetáculo vivo, confinados tanto quanto os primeiros, pelo menos tão secamente, quanto seus alunos, obrigados a distribuir
remotamente sua produção, em frente a estantes mortuárias expostas em suas sessões de Zoom, essas estelas dispostas em filas e colunas, caracteres brancos sobre um fundo preto, trazendo uma inscrição, quase in memoriam, de nomes improváveis. Além do mais, quem teria tido a ideia de fazer tal reaproximação entre todas essas salas vazias? O vírus também deveria nos ajudar a redescobrir as virtudes da organização, conforme o presidente Emmanuel Macron nos convidou em sua “mensagem aos franceses”, em 13 de abril de 2020: “Vamos tirar disso todas as consequências, no devido tempo, quando se tratar de nos reorganizar”. Com efeito, seria um momento bem escolhido para sair do fetichismo tecnológico e comercial em que se encontram mergulhadas nossas sociedades, que faz que a cada dificuldade encontrada a solução procurada venha a ser comercial ou técnica. Até agora, temos conseguido combater o vírus e, sem dúvida, evitar centenas de milhares de mortes, tendo como único recurso uma resposta organizada. As palavras, na-
JANEIRO 2021
berg A-68A barrando o Estreito de Gibraltar, sem dúvida há algumas voltas de hélice. Desde o crack de março de 2020, eles tiveram tempo para ajustar seu binóculo e tornar a distância focal mais seletiva. Nesse cassino que, apesar do confinamento, permanece aberto dia e noite, os valores tecnológicos estão segurando a corda. O índice Nasdaq avançou 43% nos últimos doze meses. Vale a pena estreitar ainda mais a distância focal dessa bola de cristal para ver o “mundo de depois” que ela nos promete. Ao longo de 2020, as ações do Google subiram 32%; do Facebook, 36%; da Amazon, 79%; da Apple, 82%; da Zoom, 515% (apesar de uma queda de 30% após os anúncios de testes bem-sucedidos nos projetos de vacina). Em 10 de novembro de 2020, a ação da AirBnb, que havia pouco tinha sido inscrita na Bolsa ao preço de US$ 68, saltou para US$ 144 (alta de 113%), sem dúvida a prova de que nossa necessidade de “nos aproximarmos”, viajando num Boeing, em city-trips na casa de um morador do lugar (tendo ele mesmo partido para ir cuidar de seus próprios negócios), não sucumbirá ao vírus. No dia anterior, a introdução em Bolsa da ação DoorDash, empresa especializada na entrega de refeições e mantimentos em domicílio, pegava o mesmo elevador: valorização de 86%. A Deliveroo – que podemos facilmente imaginar compartilhando seu desempenho no mercado de ações com seus entregadores, convidados a entregar na entrada de condomínios de subúrbio peitos de pato recém-cozidos (vivam os circuitos curtos!) na saída do anel viário, antes de ir pedir sua própria comida no Restos du Cœur [restaurante popular da França] – cresceu 76% desde meados de janeiro de 2020. Seria quase possível compadecer-se dos acionistas da Pfizer, que se beneficiaram de forma medíocre do anúncio dos índices de eficácia de sua vacina contra o vírus: a ação subiu apenas 10% desde 25 de novembro. A Pfizer, uma empresa industrial nascida no século XIX, lastreada por suas fábricas e suas infraestruturas de outra época (49 locais de produção no mundo), seus trabalhadores, seus pesquisadores, seus refrigeradores caindo a –70 °C..., forçada a negociar seus preços com os poderes públicos. Uma empresa do mundo de antes, cujo sucesso só terá servido para iluminar o campo de jogo do mundo de depois, como o faz para nós a agência Business Insider France. Na sequência dos anúncios da Pfizer, “os preços das ações norte-americanas subiram. As indústrias mais afetadas pelo vírus, sobretudo as companhias aéreas, hoteleiras e de cruzeiros, viram suas ações disparar nas negociações
.
quela noite de 13 de abril, eram algo como: “teremos de construir uma estratégia em que encontraremos o tempo longo, a possibilidade de planejar, a sobriedade em termos de carbono, a prevenção e a resiliência que podem permitir enfrentar as crises que estão por vir”. Palavras que já nos tinham feito vibrar em 12 de março: “O que essa pandemia revela é que existem bens e serviços que devem ser colocados fora das leis do mercado. No fundo, delegar nossa alimentação, nossa proteção, nossa capacidade de curar, nosso ambiente de vida a outras pessoas é loucura. Devemos recuperar o controle disso...”. “Loucura”, realmente? Ficou resolvido que era necessário fazer a lista dos cinquenta produtos industriais que é inconcebível não produzir em nosso território (além de máscaras e paracetamol), tanto por questões de emprego, de controle estratégico de nosso abastecimento e de escrúpulo ambiental? Uma lista dos cinquenta produtos que não poderiam ser colocados à venda sem que 50% de seu valor agregado fosse produzido localmente, como a promessa vanguardista de uma nova ordem do comércio internacional, um comércio baseado na reciprocidade entre as nações. Nada disso aconteceu, é claro. Até agora, nenhuma força autorredentora veio impulsionar o novo mundo rumo a uma direção melhor que a daquele mundo de antes. Os “fenômenos mórbidos” do momento não deixam entrever o desabrochar de um campo de papoulas no solo da crise. Para o big business, copiosamente amparado por subsídios públicos e pela redução de seus custos de mão de obra – mão de obra essa que se tornou desempregada, como nos Estados Unidos, ou foi socorrida por medidas de desemprego parcial assumidas pela coletividade, como na França –, a última hora aparentemente ainda não soou. O índice Dow Jones, que resume o valor em Bolsa das trinta maiores empresas norte-americanas, havia caído 40% em março de 2020 (uma atmosfera de fim de mundo); desde então, recuperou-se consideravelmente, chegando a bater recordes históricos em dezembro, consolidando um aumento de 70% em cinco anos. Obviamente, os agentes financeiros nem sempre formulam uma previsão racional dos lucros que as empresas das quais eles vão comprar as ações terão nos próximos dez anos – três dias antes de o banco de investimento Lehman Brothers pedir concordata em 15 de setembro de 2008, sua ação ainda valia US$ 3,65! Mas daí a concluir que os pilotos do Titanic das finanças não perceberiam a menos de uma milha náutica o ice-
de Wall Street. Por outro lado, as empresas que prosperaram graças aos confinamentos e às atividades prolongadas em domicílio sofreram um golpe. A DocuSign, a Peloton e a Wayfair juntaram-se à Zoom e a outras empresas na derrocada, com investidores apostando em um retorno ao mundo de antes. [...] Essa queda nas ações stay-at-home [fique em casa] reproduz um padrão já observado após a publicação de outras informações positivas sobre as vacinas”.4 Vamos nos certificar de que isso é apenas uma corrente de ar descendente que faz o avião perder altitude. Durante a crise da saúde, a sociedade do “totalmente digital” se beneficiou em termos globais de um tremendo impulso acelerador, cujo efeito gatilho se transformaria em um novo trampolim. Para essas grandes empresas que – muito antes do home office – já afastaram nossas vidas, que tomam nosso tempo, nossos dados pessoais, nosso dinheiro, nossa esfera doméstica, nossa autonomia, nossos trabalhadores nos guichês, nossas consultas médicas, nosso ensino, nossos restaurantes etc., o controle total sobre nossas “vidas sem contato” já foi conquistado. Não se trata mais de escolher.5 Nesse mundo de depois que já está aqui, as ações stay-at-home – um termo muito prático enquanto se espera pelo desenvolvimento de um índice de mercado de valores canibais e predatórios – são apenas um segmento desses “valores” que organizam nossas vidas separadas, cujas molas são nosso isolamento, já adquirido graças à sociedade de consumo (a qual estabeleceu nosso face a face solitário com a mercadoria), a fagocitagem das atividades econômicas do velho mundo e o deslocamento das portas de entrada de nossas casas, lojas, escolas, consultórios médicos, administrações, bibliotecas, jornais, salas de concerto etc., para os novos “portais” distribuídos ao longo das malhas cada vez mais estreitas da rede de suas plataformas de internet. No campo de jogo nivelado da competição global “livre e não distorcida”, nem todos estarão alojados no mesmo barco. Apesar dos esforços dos governos mais ricos para limitar sua amplitude, a catástrofe que se anuncia para pequenas lojas, restaurantes, salas de espetáculos, pequenos negócios de apoio a atividades turísticas e culturais, do setor de eventos e da comunicação etc. não será adiada indefinidamente. Para os 3.500 black cabs [táxis pretos] de Londres que deixaram a cidade para ir integrar desde junho os “cemitérios de táxis” nos subúrbios, onde se amontoam no meio de arbustos e do lixo, e para seus motoristas, que já
Le Monde Diplomatique Brasil
23
não têm o suficiente para pagar seus compromissos com empresas privadas que lhes cobram mais de 300 euros por semana, a viagem de ida será sem dúvida sem volta. O coronavírus terá acelerado sua falência, já bem encaminhada pela uberização.6 O Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e a Save the Children calcularam que, durante 2020, o número de crianças vivendo no mundo em famílias pobres (de acordo com o limite definido por cada país) aumentou em 142 milhões, chegando a 715 milhões (ou seja, 38,4% das crianças do planeta).7 Nos países ricos, o aumento da pobreza é igualmente ameaçador, sobretudo em relação àqueles que já estavam entre os mais precários. Na França, Louis Cantuel, chefe de relações internacionais dos Restos du Cœur, acredita que o recurso à ajuda alimentar aumentou “mais de 30% nas grandes metrópoles no período de confinamento. [...] Estamos numa situação que vai perdurar, para além da crise sanitária”, a qual poderia anunciar um “desequilíbrio duradouro na pobreza”.8 O velho mundo definitivamente não quer morrer e, mais do que nunca, expõe suas cicatrizes aos olhos do novo, que não o é tanto assim. A crise sanitária oferece-lhes um espelho de aumento. Em face desses perigos, que em sua maioria ainda estão diante de nós, o “custe o que custar” de Macron já parece estar se apagando diante dos cânones da ortodoxia orçamentária: em 17 de novembro de 2020, a Assembleia Nacional votou uma lei orçamentária para 2021 que prevê um retorno do limite de 3% de déficit público a partir de 2025. Com a promessa de não aumentar impostos. Um “retorno ao normal”, em última instância. *Laurent Cordonnier é economista e professor da Universidade de Lille (França). 1 A ntonio Gramsci, Cahiers de prison [Cadernos do cárcere], Gallimard, Paris, 1983 (1. ed. 1948). 2 Clotilde Armand, “Le passage à l’Ouest de médecins est-européens” [A passagem para o Ocidente dos médicos do Leste Europeu], Libération, Paris, 14 set. 2020. 3 M aryline Dumas, “En Tunisie, le ras-le-bol des blouses blanches” [Na Tunísia, a insatisfação dos jalecos brancos], Le Figaro, Paris, 9 dez. 2020. 4 “ Les actions Zoom et Netflix s’effondrent à la Bourse après la bonne nouvelle autour du vaccin Pfizer” [As ações da Zoom e da Netflix entram em colapso no mercado de ações após as boas notícias em torno da vacina da Pfizer], Business Insider France, 9 nov. 2020. 5 Ler Julien Brygo, “Travail, famille, Wi-Fi” [Trabalho, família, Wi-Fi], Le Monde Diplomatique, jun. 2020. 6 M ark Landler, “‘Field of broken dreams’: London’s growing taxi graveyards” [Campo de sonhos desfeitos: os crescentes cemitérios de táxis de Londres], The New York Times, 3 dez. 2020. 7 “Children in monetary poor households and Covid-19” [Crianças em lares pobres e Covid-19], Unicef, Nova York, 11 dez. 2020. 8 France Info, 6 nov. 2020.
24
Le Monde Diplomatique Brasil JANEIRO 2021
A REVOLUÇÃO FEZ 10 ANOS
Na Tunísia, o espírito da revolta persiste O jogo político competitivo consagrado pela nova Constituição, adotada em 2014, foi pervertido pelas intrigas dos partidos majoritários e pela onipresença do dinheiro privado – por vezes oculto, ou de origem estrangeira – no financiamento das organizações políticas e nas campanhas eleitorais POR OLFA LAMLOUM*
O jogo político competitivo consagrado pela nova Constituição, adotada em 2014, foi pervertido pelas intrigas dos partidos majoritários e pela onipresença do dinheiro privado – por vezes oculto, ou de origem estrangeira – no financiamento das organizações políticas e nas campanhas eleitorais.2 A atual efervescência de protestos só deixa evidente a natureza estrutural – ou de “hegemonia”, para retomar a expressão de Antonio Gramsci3 – da crise que o país atravessa. Como no governo de Ben Ali, o novo poder, atrelado à aliança entre islamistas e antigo regime, se revela incapaz de reduzir as desigualdades regionais.4 Desde 2011, a aplicação de políticas de austeridade (congelamento das contratações nas funções públicas, diminuição das subvenções...) e o engajamento, mesmo que pequeno, nas “grandes reformas econômicas” (privatizações, independência do Banco Central, abertura do mercado...) só conseguiram tirar ainda mais do Estado seu poder de regulação social. Acrescenta-se a isso a manutenção de um regime fiscal muito desigual, que taxa principalmente as baixas rendas, em um país onde os 10% mais ricos detêm 40% da renda nacional e a evasão fiscal é muito importante.5 O reverso dessa política foi o superendividamento e o reforço da dependência das instituições financeiras internacionais. A dívida externa atingiu 75% do PIB e pode chegar a 90% em 2021, já que Túnis deve aumentar seus pedidos de crédito para pagar a dívida que vence. Durante o primeiro mandato parlamentar (novembro de 2014 – agosto de 2019), 43% das leis adotadas pelos deputados diziam respeito aos acordos de empréstimos externos destinados em parte a reembolsar a dívida contraída pelo regime de Ben Ali. Assim, segundo a Instância de Justiça Transicional Verdade e Dignidade (IVD), entre 2011 e 2016 mais de 80% desses empréstimos serviram para refinanciar a dívida.6
.
N
ovembro de 2020. A um mês do décimo aniversário do início da revolução tunisiana, que provocou a queda do regime de Zine al-Abidine ben Ali, em 14 de janeiro de 2011, a cólera popular que se exprimia já há diversos meses se amplificou. Em Kasserine, Gafsa, Sidi Bouzid, Jendouba, Gabes e em outros lugares dessas regiões esquecidas pelo poder e duramente atingidas pela recessão econômica inédita provocada pela pandemia de Covid-19, as mobilizações se estendem. Pessoas vivendo em condições precárias e deixadas ao léu se manifestam, bloqueiam estradas, se articulam. Em todos os lugares, reclamam por emprego e desenvolvimento e exigem a abertura de negociações com representantes do governo central para apresentar seus problemas e propostas. Ao final de uma década, a constatação não deixa dúvidas: aqueles que substituíram o ditador caído traíram a promessa de dignidade que a revolução levantou. Esta última foi inclusive rebatizada pelas autoridades de “transição democrática”, uma maneira sutil de negar qualquer legitimidade política àqueles que conduziram a contestação. Essa “transição” está em crise. Suas conquistas, principalmente em matéria de liberdades individuais e de direito à expressão, estão cada vez mais ameaçadas. Desde 2018, cerca de quarenta blogueiros e utilizadores da rede Facebook foram perseguidos pela justiça.1 Alvo de críticas recorrentes, o ministro do Interior advertiu em outubro de 2019 que entraria com uma ação na justiça “contra todas as pessoas que intencionalmente ofendessem, duvidassem ou acusassem falsamente seus serviços”. Ao mesmo tempo, enquanto se pensava que a revolução renovaria as elites no poder, assistimos a um retorno das figuras do antigo regime, seguras de sua impunidade.
Durante dez anos, enquanto os onze governos que se sucederam reivindicaram ritualmente o “desenvolvimento regional” como prioridade nacional, as disparidades entre as cidades do litoral e as do interior em termos de acesso aos recursos e aos serviços públicos se agravaram. O centro-oeste, que reúne os departamentos de Sidi Bouzid, Kasserine (os dois berços da revolução) e Kairouan, continua enfrentando as maiores taxas de pobreza do país (em média 29,3%, contra 6,1% em Túnis).7 Kasserine, que detém o trágico recorde de maior número de “mártires” da revolução, abriga ainda as três delegações (circunscrições administrativas) mais desfavorecidas, com uma taxa de pobreza de 50%. Entre 2016 e 2020, apenas metade dos raros projetos concedidos às regiões do interior para diminuir seu atraso de desenvolvimento se concretizou. Pior ainda, dez anos depois da revolução dita “da juventude”, o desemprego dos jovens continua estrutural e maciço. Na cidade de Kasserine, ele atinge mais de 43% das pessoas entre 18 e 34 anos.8 Agravado pela pandemia de Covid-19, ele atinge agora 35,7% dos jovens entre 15 e 24 anos.9 A taxa de inatividade dos diplomados na universidade, por sua vez, continua ultrapassando os 30%, confirmando dramaticamente a “pane” da instrução como meio de ascensão social. Em um país que por muito tempo se vangloriou da democratização de seu sistema de educação, o setor informal emprega agora 53% da população ativa. É importante constatar que, desde 2011, a política social dos governos sucessivos não se diferenciou da de Ben Ali. Empregada de maneira opaca, em uma lógica preventiva de manutenção da ordem nas margens urbanas e rurais, ela se limitou a dispositivos de assistência e de empregos precários. Sua consequência política tangível foi reativar as ligações de dependência clientelista com as “populações vul-
neráveis” em proveito do partido islamista Ennahda e das antigas redes do Ajuntamento Constitucional Democrático (RCD), o partido de Ben Ali, dissolvido em 2011. Sem surpresa, o impasse sobre a questão social favoreceu a retomada da gestão securitária das classes populares, em particular da juventude: em 2019, em Kasserine, Tataouine e Douar Hicher – três cidades geograficamente afastadas sem nada em comum –, nada menos que um a cada cinco jovens declarava ter sido levado para a delegacia ou preso.10 A partir de 2013, a “restauração da ordem” e o reforço de segurança aumentaram diante de duas formas de radicalização juvenil que se manifestaram nos bairros populares e nas regiões do interior: a contestação social e o salafismo, encarnado principalmente pelo partido Ansar al-Charia, classificado em agosto do mesmo ano como uma organização terrorista. Poderosos sindicatos de polícia, legalizados sob o governo provisório de Beji Caid Essebsi (fev.-dez. 2011), exigem então uma lei – elaborada em 2015 – sancionando os ataques às forças da ordem. Seu campo de ação deve ser suficientemente amplo para permitir que se persigam organizações da sociedade civil que critiquem as violências e arbitrariedades policiais. Em outubro de 2020, depois de uma grande mobilização popular, o Parlamento adiou mais uma vez o exame do texto. A questão central é claramente política: trata-se de tirar a legitimidade da exigência de reforma dos serviços de segurança, e mais amplamente do Ministério do Interior, peça-chefe do regime autoritário de Ben Ali. A estabilidade do país e a segurança de suas fronteiras se tornaram as palavras-chave. O orçamento do Ministério do Interior aumentou (7,4% em 2019; 4,8% em 2020), enquanto o setor da defesa recebe um volume crescente de assistência militar estrangeira em matéria de contraterrorismo e contrainsurreição.11 Criada por uma lei em dezembro de 2013, a IVD só foi instaurada em junho de 2014. Ela viu sua missão ser entravada pelos ataques recorrentes das redes do antigo regime, depois pela adoção, em 2017, de uma lei de anistia financeira em proveito dos funcionários corruptos da era Ben Ali, antes de ser abandonada pela direção do Ennahda. Em outubro de 2020, Rached Ghannouchi, presidente da Assembleia dos Representantes do Povo e homem forte do partido islamista, chegou a ter como conselheiro encarregado da justiça transicional e da reconciliação nacional Mohamed Ghariani, o último secretário-geral do RCD antes de sua dissolução e um cacique cuja responsa-
JANEIRO 2021
© Edson Ikê
antigo sistema e de absolver os representantes mais comprometidos. O segundo fato importante tem a ver com os limites das mobilizações sociais. Mesmo se elas se impuseram, desde a queda de Ben Ali, como a forma central da participação política das classes populares e da juventude marginalizada, estas permanecem espalhadas, pouco organizadas, sem um horizonte comum e, principalmente, sem tradução política capaz de agir sobre as relações de força instituídas. Claro, a repressão da qual são objeto desde 2011 e o fraco apoio que receberam da direção da central sindical, a União Geral Tunisiana do Trabalho (UGTT), explicam em parte esses limites. Mas, além disso, é preciso ressaltar as múltiplas dificuldades inerentes à mobilização popular em um contexto de precariedade e desemprego em massa. O desmoronamento da relação salarial e da afiliação sindical nas margens relegadas tornou o enraizamento local predominante na afirmação da identidade social das mobilizações. Dessa forma, e ao contrário da dinâmica que existia no início da revolução, os movimentos sociais reduziram sua visibilidade nacional e sua aptidão para tecer amplas alianças. Então o que resta da revolução hoje? Com certeza um impulso de resis-
.
bilidade penal na sangrenta repressão da insurreição de janeiro de 2011 foi, no entanto, estabelecida pela IVD. Para dizer a verdade, desde 2013 todas essas evoluções parecem cada vez mais inevitáveis, na medida em que novas relações de força política permitiram uma transição compactuada, selada pela reconciliação entre Ennahda e Nidaa Tounès, um partido criado em 2012 por Essebsi, ex-ministro do Interior de Habib Bourguiba, para federar antigos do RCD e figuras do movimento democrático opostos aos islamistas. Essa reviravolta, consagrada pelos resultados das eleições legislativas e presidencial de 2014, resultou da concordância de dois fatos de pesadas consequências. Em primeiro, a derrota, a partir de 2013, dos levantes no Egito, no Iêmen, na Síria e no Bahrein, que isolou a revolução tunisiana e exacerbou as estratégias da tensão empregadas sob aparência de contenção do perigo islamista. Assustado pela expulsão sangrenta da Irmandade Muçulmana do Egito ao final do golpe de Estado do general Abdel Fattah al-Sisi em 2013 e temendo ser questionado pelos assassinatos de dois dirigentes de esquerda, o Ennahda decidiu negociar sua participação no poder em troca do abandono de qualquer veleidade de ruptura com o
tência, que a intensificação dos protestos em novembro de 2020 veio reavivar, assim como a luta vitoriosa de Al-Kamour, pequeno povoado próximo a uma zona desértica sob controle militar que abriga as maiores reservas de petróleo do país.12 Esse longo e pacífico sit-in que, a partir de 2017, mobilizou milhares de jovens exigindo empregos e desenvolvimento se tornou emblemático por diversas razões. Primeiro ele questionou de maneira legítima e frontal a questão da repartição das riquezas. Depois, seu sólido enraizamento nas solidariedades locais permitiu que o povoado resistisse à repressão e frustrasse as tentativas do poder de apresentá-lo como criminoso. Por fim, conseguiu desenvolver formas de auto-organização democráticas e autônomas que o protegeram das repercussões partidárias. Depois de 117 dias de interrupção da produção petroleira, o governo assinou um acordo respondendo favoravelmente à maior parte das reinvindicações. Isso significa que a exigência de dignidade e de justiça manteve todo o seu potencial mobilizador, o que torna incerto o fim da crise estrutural na qual o país vive. O Ennahda, que se mostrou perfeitamente solúvel no neoliberalismo, perdeu uma parte de sua base social sem conseguir con-
Le Monde Diplomatique Brasil
25
vencer as camadas dominantes da burguesia. Kais Saied, o presidente da República, que gostaria de aparecer como o “benfeitor patriarcal” dos pobres sem ter projeto organizacional ou político, não tem outra escolha a não ser se apoiar na burocracia ou no Exército. A UGTT, contrapeso relativo às políticas neoliberais, está enfraquecida pelas manobras de sua direção burocrática, determinada a prolongar seu mandato. A esquerda, por sua vez, se enfraqueceu nos conflitos entre seus dirigentes depois de ter dado seu apoio a Essebsi contra o “islamismo obscurantista”. *Olfa Lamloum é diretora do escritório da ONG International Alert, em Túnis, e codiretora, com Michel Tabet, do documentário Voix de Kasserine [Vozes de Kasserine], 2017.
1 C f. principalmente “Tunisie. La liberté d’expression menacée par la multiplication des poursuites pénales” [Tunísia. A liberdade de expressão ameaçada pela multiplicação dos processos penais], Anistia Internacional, 9 nov. 2020. 2 C f. o último relatório do Tribunal de Contas sob o controle do financiamento dos partidos políticos e das eleições presidencial antecipada e legislativas de 2019, que revelou o tamanho do fenômeno. 3 Nos Cadernos do cárcere, Antonio Gramsci define uma “crise da hegemonia” ou uma “crise do Estado em seu conjunto” como a extensão de uma tensão inicial de todas as esferas sociais: a política, a cultura, a moral e até mesmo a esfera íntima. 4 Ler Thierry Brésillon, “Une Tunisie contre l’autre” [Uma Tunísia contra a outra], Le Monde Diplomatique, nov. 2018. 5 C f. “La justice fiscale en Tunisie: un vaccin contre l’austérité” [A justiça fiscal na Tunísia: uma vacina contra a austeridade], Oxfam, 17 jun. 2020. 6 C f. “Mémorandum relatif à la réparation due aux victimes tunisiennes des violations massives de droits de l’Homme et des droits économiques et sociaux dont l’État français porte une part de responsabilité” [Memorando relativo à reparação devida às vítimas tunisianas das violações maciças dos direitos humanos e dos direitos econômicos e sociais dos quais o Estado francês tem uma parte de responsabilidade], Instância Verdade e Dignidade, Túnis, 16 jul. 2019. 7 Cf. “Carte de la pauvreté en Tunisie” [Mapa da pobreza na Tunísia], Instituto Nacional de Estatística, set. 2020. Disponível em: www.ins.tn. 8 C f. “Des jeunes dans les marges. Perceptions des risques, du politique et de la religion à Tataouine Nord, Kasserine Nord et Douar Hicher” [Jovens nas margens. Percepções dos riscos, da política e da religião em Tatouine Norte, Kasserine Norte e Douar Hicher], International Alert, nov. 2020. 9 C f. “Indicateurs de l’emploi et du chômage, troisième trimestre 2020” [Indicadores do emprego e do desemprego, terceiro trimestre de 2020], Instituto Nacional de Estatística. Disponível em: www.ins.tn. 10 “ Des jeunes dans les marges”, op. cit. 11 C f. Hijab Shah e Melissa Dalton, “The evolution of Tunisia’s military and the role of foreign security sector assistance” [A evolução dos militares tunisianos e o papel da assistência ao setor segurança externa], Carnegie Middle East Center, 29 abr. 2020. Disponível em: https://carnegie-mec.org. 12 C f. Sabrine Hamouda, “Tunisie: Sur les pas d’Al-Kamour, des protestataires stoppent la production au groupe chimique de Gabes” [Tunísia: nos passos de Al-Kamour, manifestantes param a produção do grupo químico de Gabes], Tunisie Numérique, 13 nov. 2020. Disponível em: www.tunisienumerique.com.
26
Le Monde Diplomatique Brasil JANEIRO 2021
DISPUTAS QUE DIVIDEM AS CLASSES POPULARES
O impasse das políticas identitárias Com raízes históricas longínquas, a linguagem identitária explodiu com as redes sociais e os canais de notícias 24 horas. Anteriormente reservada à direita, ela impregna cada vez mais os discursos de militantes e dirigentes políticos de todos os campos, a ponto de transformar a “raça” em uma variável gigantesca, que esmaga todas as outras POR STÉPHANE BEAUD E GÉRARD NOIRIEL*
A
O assassinato desse afro-americano por um policial branco em Minneapolis gerou uma grande onda de emoção e de protestos em todo o mundo. Uma multidão de atores – ativistas antirracistas, jornalistas, políticos, intelectuais, especialistas, artistas, escritores etc. – interveio nos Estados
Unidos e em outros lugares para dar sua opinião sobre esse crime e seu significado político. Na França, nos últimos quinze anos, a denúncia pública de crimes racistas ou de fatos que nutrem suspeitas de discriminação racial tem regularmente assumido na mídia a forma
.
© Thomas de Luze/Unsplash
questão racial ressurgiu brutalmente no centro das notícias, em 25 de maio de 2020, quando as imagens do assassinato de George Floyd, filmadas por um transeunte com um smartphone, foram veiculadas em loop continuamente nas redes sociais e canais de notícias.
de “questões raciais” que se autoalimentam quase infinitamente. Após a petição intitulada “Manifesto por uma República francesa antirracista e descolonializada”, assinada por 57 intelectuais e divulgada pelo site Mediapart em 3 de julho de 2020, o semanário Marianne respondeu em 26 de julho de 2020 publicando um “Apelo contra a racialização da questão social”, assinado por mais de oitenta personalidades e vinte organizações. A comparação das duas petições mostra como funciona o que Pierre Bourdieu chamou de jogo das “cegueiras cruzadas”. As justificadas críticas à violência racista de certos policiais e ao “racismo de Estado” nas colônias francesas até o fim da Guerra da Argélia levaram os peticionários do Mediapart a defender um projeto político centrado nas questões raciais e decoloniais que obscureciam fatores sociais. Por outro lado, os autores do apelo publicado na Marianne relembram o papel central desempenhado pela classe social nas desigualdades que afetam a França hoje, mas sua própria luta pela identidade, resumida no slogan “Nossa República laica e social, uma chance para todos!”, os leva a afirmar que “nosso país nunca conheceu segregação”, afirmação que nenhum historiador nem sociólogo sério pode apoiar. Esses embates de identidade, em que cada campo mobiliza sua pequena tropa de intelectuais, colocam os pesquisadores que defendem a autonomia de seu trabalho em uma posição impossível.
AMERICANIZAÇÃO DA VIDA PÚBLICA
O discurso de identidade ajuda a acentuar as divisões nas classes populares, objetivo dos conservadores desde 1980
A racialização do discurso público foi amplamente alimentada pela revolução digital que eclodiu nos anos 2000. O extraordinário desenvolvimento da indústria midiática completou o que Jürgen Habermas chamou de “a colonização do mundo vivido”.1 Essas enormes máquinas produtoras de informação são alimentadas 24 horas por dia por um combustível que explora os depósitos emocionais enterrados em cada um de nós e que nos fazem reagir instantânea e instintivamente diante das injustiças, humilhações e ataques. O “desvio” do noti-
JANEIRO 2021
que eles podem representar para si mesmos o mundo social de forma binária e etnizada: o “nós” (da cidade, dos jovens negros ou árabes, dos excluídos, mas também cada vez mais, ao que parece, o “nós muçulmanos”) versus o “eles” (burgueses, “franceses”, “gauleses”, brancos ou ateus etc.). Se queremos levar a luta contra o racismo até o fim, devemos também combater esse confinamento de identidade, porque ele impede que esses jovens rebeldes percebam que sua existência social é profundamente determinada pelo pertencimento às classes populares. A linguagem racializante que apresenta a cor da pele como a variável determinante do conjunto das práticas econômicas, sociais e culturais de nossos concidadãos esmaga a complexidade e a sutileza dos relacionamentos sociais e das relações de poder. Todos os levantamentos sociológicos, estatísticos ou etnográficos mostram, no entanto, que as variáveis sociais e étnicas sempre atuam em conjunto e com intensidades diferentes. Se toda a arte das ciências sociais consiste em desembaraçar finamente, de acordo com os contextos (geográfico, histórico, interacional), o jogo das diferentes variáveis de atuação, permanece o fato de que nada poderemos compreender no mundo em que vivemos se esquecermos que a classe social de pertencimento (medida pelo volume do capital econômico e do capital cultural) continua sendo, não importa o que se diga, o fator determinante em torno do qual se apoiam as outras dimensões da identidade das pessoas. A melhor prova é dada por aqueles que se beneficiaram da mobilidade social que lhes permitiu chegar às classes médias (professores, educadores, assistentes sociais, trabalhadores do entretenimento etc.) ou mesmo às classes altas (jornalistas de televisão ou de rádio, escritores, estrelas da música ou do cinema etc.). Quase todos esses “desertores de classe”, como se costuma dizer, aproveitam os recursos que sua ascensão social lhes oferece para diversificar seus laços afetivos, profissionais ou culturais, pois sabem muito bem que é um caminho para mais liberdade. Por que deveriam os descendentes de imigrações pós-coloniais, que ainda fazem parte das classes trabalhadoras, serem constantemente reduzidos à sua condição de vítimas e privados dos meios que lhes permitem ter também acesso a essa emancipação? Ao obscurecerem as relações de poder que estruturam nossas sociedades, esses discursos de identidade ajudam a acentuar as divisões dentro das classes populares, o que tem sido o objetivo das forças conservadoras
.
ciário político, nascido com a grande imprensa no final do século XIX, já atingiu seu paroxismo, substituindo cada vez mais a análise fundamentada dos problemas sociais pela denúncia dos culpados e pela reabilitação das vítimas. As empresas norte-americanas globalizadas que possuem redes sociais têm acelerado brutalmente esse processo, pois os bilhões de indivíduos atingidos por essas redes não são mais apenas receptores passivos dos discursos fabricados pela mídia, mas atores que participam de sua divulgação e até mesmo de sua elaboração. As redes sociais, assim, deram origem a um espaço público intermediário que vai além do quadro dos Estados nacionais, contribuindo fortemente para a americanização das polêmicas públicas, conforme ilustrado pela rapidez com que são importadas expressões como color-blind (cego para a cor), black lives matter (vidas negras importam), cancel culture (cultura do cancelamento) etc. Por ser o racismo hoje um dos temas políticos mais capazes de mobilizar as emoções dos cidadãos, é compreensível que sua denúncia ocupe um lugar cada vez mais central nos meios de comunicação. Constatar esse fato não é – devemos lembrá-lo? – negar ou minimizar a realidade do problema, e isso de forma alguma impede que se constate, ao mesmo tempo, que expressões de formas descomplexadas de racismo também estão se multiplicando na mídia.2 Pessoas oriundas da imigração pós-colonial (região do Magreb e da África subsaariana) – a maioria das quais pertencente às classes trabalhadoras3 – foram as primeiras vítimas dos efeitos da crise econômica a partir dos anos 1980. Elas têm sofrido múltiplas formas de segregação, seja no acesso à habitação, ao emprego ou em suas relações com os agentes do Estado (controles de identidade feitos pela polícia com base na aparência). Além disso, essas gerações sociais tiveram de enfrentar politicamente o colapso das esperanças coletivas defendidas no século XX pelo movimento operário e comunista. Dada a importância assumida pelas polêmicas identitárias no debate público, não é de surpreender que alguns desses jovens possam expressar sua rejeição a uma sociedade que não lhes abre espaço privilegiando os elementos de sua identidade pessoal, que são a religião, a origem ou a raça (definida pela cor da pele). Infelizmente, os mais pobres entre eles são privados, por razões socioeconômicas, dos recursos que lhes permitiriam diversificar seus pertencimentos e afiliações. Isso explica por
desde os anos 1980 para quebrar a hegemonia da esquerda. Colocar a luta política no plano racial, apresentando todos os “brancos” como privilegiados, é incitar estes últimos a se defenderem com o mesmo tipo de argumento. Dado que na França os “brancos” são maioria, os “não brancos” estão condenados a permanecer em minoria para sempre. Acreditar que atos de contrição à la Jeff Bezos 4 poderiam levar indivíduos definidos como “brancos” a renunciar a seus “privilégios” é reduzir a política a lições de moral – o que é comum nos Estados Unidos e tende a se tornar assim na França.
Se queremos levar a luta contra o racismo até o fim, devemos também combater esse confinamento de identidade Como a experiência norte-americana hoje é constantemente mobilizada quando se trata de evocar a questão racial, é útil relembrar a análise recentemente apresentada pelo filósofo Michael Walzer para explicar o fracasso relativo do movimento antirracista negro norte-americano, um fracasso que por sua vez explica por que o racismo continua a ser um problema central nos Estados Unidos. Ele que foi, no início dos anos 1960, um estudante totalmente comprometido com a luta pelos direitos civis liderada pelos negros norte-americanos, retornou, cinquenta anos depois, a esse momento fundador de seu engajamento político. Ele lembra a força dos laços forjados no sul entre estudantes das grandes universidades do nordeste (Harvard, Brandeis), em particular estudantes judeus como ele, e pastores e ativistas negros. Na avaliação que faz retrospectivamente, ele levanta a questão essencial das alianças políticas a serem forjadas no campo das forças progressistas: “Pensávamos que o nacionalismo negro, ainda que compreensível, era um erro político: para serem ouvidas, as minorias devem se engajar em políticas de coalizão; os judeus aprenderam isso há muito tempo. Você não pode ficar isolado quando representa 10% ou 20% da população. Você precisa de aliados e deve desenvolver políticas que promovam alianças. Foi isso que o nacionalismo negro recusou e foi isso que o levou, creio eu, a um impasse. [...] As ‘políticas de identidade’ assumiram o controle na vida política norte-americana e levaram a movimentos separados: negros, hispânicos, mulheres, gays. Não houve soli-
Le Monde Diplomatique Brasil
27
dariedade entre essas diferentes formas de luta por reconhecimento. ‘Black lives matter’, por exemplo, é uma expressão fundamental da raiva legítima dos negros, ligada sobretudo ao comportamento da polícia. Mas os latinos não são mais bem tratados; não há, que eu saiba, um ‘Hispanic lives matter’ e nenhum esforço coordenado para a criação de uma coalizão de grupos étnicos para uma reforma da polícia”.5 Dada a americanização de nossa vida pública, infelizmente podemos temer que a constatação de Walzer esteja se verificando também na França. É claro que muitas vozes se fazem ouvir regularmente, pleiteando a “convergência de lutas”. Porém, aquelas e aqueles que fazem campanha nessa direção devem agora atuar dentro do novo sistema de comunicação que se impôs com a revolução digital dos anos 2000. Antes, para promover uma causa no espaço público, esta precisava ser definida e defendida coletivamente por organizações que reunissem um grande número de ativistas. Hoje, basta que alguns ativistas – que se colocam como porta-vozes de determinada demanda, sem terem recebido um mandato para isso – atraiam a atenção da mídia. Daí a proliferação de ações espetaculares, como as de ativistas que proíbem peças de teatro em nome da luta antirracista. A complacência dos jornalistas com esse tipo de ação alimenta polêmicas que dividem constantemente as forças progressistas. Embora a liberdade de expressão e o antirracismo sempre tenham sido associados até agora à esquerda, esses golpes ultraminoritários acabam colocando-os um contra o outro, o que abre uma verdadeira avenida para os conservadores. *Stéphane Beaud e Gérard Noiriel são, respectivamente, sociólogo e historiador. Autores de Race et sciences sociales. Essai sur les usages publics d’une catégorie [Raça e ciências sociais. Ensaio sobre os usos públicos de uma categoria], Agone, a ser lançado em 21 de janeiro de 2021. O presente texto foi extraído desse livro. 1 J ürgen Habermas, Théorie de l’agir communicationnel [Teoria do agir comunicativo], Fayard, Paris, 1987 (1. ed. 1981). 2 G érard Noiriel, Le Venin dans la plume. Édouard Drumont, Éric Zemmour et la part sombre de la République [O veneno na caneta. Édouard Drumont, Éric Zemmour e o lado sombrio da República], La Découverte, Paris, 2019. 3 Isso também explica, de forma direta, sua representação exagerada nos diversos fatos relatados pela imprensa local, os atos de delinquência e a população carcerária. 4 Referência ao tuíte da Amazon em reação ao assassinato de George Floyd: “O tratamento injusto e brutal dispensado aos negros em nosso país deve acabar” (31 maio 2020). 5 Michael Walzer e Astrid von Busekist, Penser la justice [Pensar a justiça], Albin Michel, Paris, 2020.
28
Le Monde Diplomatique Brasil JANEIRO 2021
MOSCOU CONSOLIDA PARCERIAS COMERCIAIS E DE SEGURANÇA
O retorno da Rússia à África: uma ilusão de ótica? Após um longo eclipse, a Rússia retoma o passo na África. Apresentado por Paris como uma manobra tortuosa, esse retorno assinala, na verdade, a banalização da potência russa. Moscou que, no passado, apoiou lutas contra o apartheid na África do Sul e pela descolonização, contenta-se atualmente em preencher sua carteira comercial e reforçar parcerias de segurança POR ARNAUD DUBIEN*
CENTENAS DE DIPLOMATAS SOVIÉTICOS Durante muito tempo, a topografia da influência russa na África seguiu os contornos da descolonização e da luta contra o apartheid. Embora o continente estivesse presente nas reflexões de Lenin desde o início da década de 1920, foi apenas três décadas depois, com o colapso do Império Francês e do Império Britânico, que a África se tornou uma questão de política externa para o poder soviético. Após sua estrondosa irrupção na crise de Suez, em outubro de 1956, a União Soviética forneceu um apoio econômico e militar maciço ao Egito do presidente Gamal Abdel Nasser, ao mesmo tempo que se interessava cada vez mais ativamente pelos diversos movimentos de libertação na-
cional. A China maoista, que acusava o irmão mais velho soviético de certa frouxidão revolucionária, empurrou a União Soviética para a esquerda. A partir de 1956, esta estabeleceu importantes vínculos com a Frente de Libertação Nacional (FLN) da Argélia. A base russa em Perevalnoe, na Crimeia, acolheu combatentes antiapartheid do Congresso Nacional Africano (CNA) de Nelson Mandela, da União do Povo Africano do Zimbábue (Zapu) e da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo). Essa ajuda militar foi acompanhada por uma política de influência “suave”. Ilustra essa política a criação da Universidade da Amizade dos Povos Patrice-Lumumba, em Moscou, em 1961, instituição que duas décadas mais tarde receberia 26.500 alunos vindos da Ásia, da América Latina e da África.1 A União Soviética também se distinguiu por enviar grandes contingentes de diplomatas aos países africanos, assim como ao restante do Terceiro Mundo: enquanto os novos Estados independentes enviavam dois ou três diplomatas a Moscou, a União Soviética enviava centenas deles a esses países. Em 1960, no Togo, havia quase um diplomata soviético para cada 18 mil habitantes...2 Nas décadas de 1970 e 1980, o continente africano tornou-se um importante – ainda que periférico – palco do confronto Leste-Oeste. O poder soviético tentou avançar seus peões na Somália, depois na Etiópia, antes de se voltar para o sul da África a fim de colaborar com o desmantelamento do Império Português e com a eclosão da luta contra o apartheid. O envolvimento soviético foi particularmente forte em Angola, para onde mais de 10 mil soldados foram enviados em missão a partir de 1975. Também teve papel decisivo – ao lado das tropas cubanas –, no inverno de 1988, na Batalha de Cuito Cuanavale, que abriu caminho para a independência
.
O
utubro de 2019. Cerca de quarenta chefes de Estado lotam as ruazinhas da antiga Vila Olímpica de Sochi, balneário no Mar Negro que sediou os Jogos de Inverno de 2014. Realizada por iniciativa do presidente Vladimir Putin, a primeira Cúpula Rússia-África foi concluída com a proclamação de objetivos ambiciosos – a Rússia pretende duplicar o comércio com o continente em cinco anos – e com a promessa de um novo encontro, provavelmente em Adis-Abeba (Etiópia), sede da União Africana, em 2022. No Ocidente, o grande evento diplomático foi visto como a consagração do retorno da Rússia ao continente africano, refletindo um novo interesse pela região, sob uma estratégia abrangente. Porém, uma análise mais atenta mostra que esse processo na verdade começou há cerca de quinze anos e, de lá para cá, evoluiu muito, tanto em termos da geografia dos países envolvidos como no que concerne aos vetores de influência utilizados, embora sem que a Rússia tenha constituído uma abordagem coerente em escala continental.
da Namíbia e enfraqueceu irremediavelmente o regime sul-africano. No entanto, a África foi a região do mundo que apresentou a mais rápida e visível retirada estratégica soviética, decidida no final da década de 1980 pelo último secretário-geral do Partido Comunista, Mikhail Gorbachev, em nome da normalização com o Ocidente. E ela continuou após o colapso da União Soviética. Para Boris Yeltsin e os líderes russos da época, a África era de fato sinônimo de atraso econômico e de aventuras geopolíticas tão vãs quanto ruinosas. Assim, em 1992 a Rússia iniciou o anúncio do fechamento de nove embaixadas, quatro consulados e treze de seus vinte centros culturais.3 Com a falta de financiamento e de interesse por parte das novas autoridades, a maioria dos escritórios das agências de notícias ex-soviéticas – frequentemente usadas como fachada para serviços de inteligência estrangeiros durante a Guerra Fria – fechou as portas. Em 1993, as trocas comerciais com a África não passavam de 2% do comércio exterior do país. Em alguns meses, a Rússia praticamente desapareceu da paisagem africana, sacrificando décadas de investimentos econômicos e políticos. Paradoxalmente, esse apagamento ocorreu quando a África “decolava” e muitos atores internacionais começavam a se estabelecer ali. O atraso que a Rússia teria de recuperar na década de 2000 só seria maior. Os primeiros sinais da retomada do interesse pela África remontam a 2001. O ex-ministro das Relações Exteriores (1996-1998) e presidente do Governo (1998-1999) Yevgeny Primakov, nomeado por Putin como chefe da Câmara do Comércio e da Indústria da Rússia, fez então uma viagem incluindo Angola, Namíbia, Tanzânia e África do Sul.4 Mais cinco anos se passaram até que se operasse o primeiro avanço russo deste século no continente. Em março de 2006,
Putin visitou a Argélia, propondo o perdão de sua dívida – US$ 4,7 bilhões –, em troca da assinatura de contratos de armas de cerca de US$ 6 bilhões. Para o governo russo, era uma forma de mobilizar suas redes da época da Guerra Fria e converter velhas afinidades ideológicas em clássicos fluxos de negócios. Essa mesma abordagem foi usada na Líbia, outro ex-cliente da União Soviética. Na primavera de 2008, apenas algumas semanas antes de ceder seu lugar no Kremlin a Dmitri Medvedev, Putin reuniu-se com Muamar Kadafi. A Rússia passou uma borracha sobre os US$ 4,6 bilhões de dívida contraídos pela Líbia na época da União Soviética, e a Líbia comprometeu-se a comprar US$ 3 bilhões em equipamentos militares russos, incluindo aviões de combate, tanques e sistemas antiaéreos. Também foi estabelecido um acordo sobre a participação da companhia ferroviária russa (RJD) na construção de uma linha entre Sirte e Bengasi. Mas a visita de Kadafi a Moscou, em outubro de 2008 – a primeira desde 1985 –, destacou a dificuldade, para a Rússia, de concretizar esses avanços diante do desejo do líder líbio em dar continuidade à negociação. Essa primeira fase do retorno russo à África também foi marcada por grandes investimentos de grupos industriais privados. A Rusal, maior produtor mundial de alumínio, instalou-se na Guiné, outro país que manteve laços estreitos com o “campo socialista”. Na sequência da visita de Putin a Pretória, em setembro de 2006, dois grandes grupos metalúrgicos e de mineração, a Evraz e a Renova – respectivamente controlados pelos oligarcas Roman Abramovich e Viktor Vekselberg –, compraram a Highveld Steel e a Vanadium Ltd, assumindo 49% de participação no capital do United Manganese of Kalahari. O forte componente de mineração dos investimentos russos foi confirmado em 2010, quando a ARMZ, uma filial da Rosatom, a gigante nuclear estatal, adquiriu um grande depósito de urânio na Tanzânia. Já a Alrosa, campeã nacional russa na produção de diamantes, investiu em Angola e, depois, no Zimbábue. Perto do final do mandato de Medvedev (2008-2012), a política africana da Rússia começou a se institucionalizar. Em março de 2011, o presidente nomeou um representante especial para a cooperação com a África. A escolha recaiu sobre Mikhail Marguelov, fluente em árabe e, na época, presidente da Comissão de Assuntos Internacionais do Conselho da Federação, a câmara alta do Parlamento, o qual exerceu tais funções até outubro de 2014. Em dezembro de 2011 ele organizou o primeiro fórum empresa-
JANEIRO 2021
FRACASSO DOS MERCENÁRIOS Os laços comerciais entre os dois países têm crescido muito, com o volume das trocas comerciais bilaterais tendo passado de US$ 2,8 bilhões em 2011 para quase US$ 8 bilhões em 2018. A Rússia aumentou significativamente suas exportações de grãos para o Egito – maior importador mundial –, que na safra 2017/2018 teve 85% de seu trigo fornecido pela Rússia. Além disso, segundo os termos de um acordo assinado em 2015, a Rosatom construirá a primeira usina nuclear do país, em Al-Dabaa, a
oeste de Alexandria. O projeto, estimado em cerca de US$ 25 bilhões, está previsto para ser concluído em 2029. Seu financiamento conta com uma participação de 85% de um empréstimo do Estado russo. As crescentes tensões com o Ocidente após a crise ucraniana, bem como o envolvimento cada vez maior da Rússia no Oriente Médio, após a eclosão da intervenção militar na Síria, também tornaram possível o desenvolvimento de relações – até agora bastante modestas – com o Marrocos. Em março de 2016, catorze anos após uma primeira visita, o rei Mohammed VI, acompanhado por uma dezena de ministros, foi recebido no Kremlin por Putin. O Marrocos é um dos principais beneficiários das contrassanções instauradas pela Rússia em agosto de 2014 contra os produtos agroalimentares europeus. O país também espera atrair turistas russos com a abertura de uma ligação aérea direta – Casablanca era, antes da pandemia de Covid-19, uma das raras cidades africanas conectadas a Moscou. O volume de comércio bilateral entre os países já não é mais desprezível, tendo chegado a US$ 1,47 bilhão em 2018. Recentemente, as relações russo-marroquinas passaram a integrar uma importante dimensão de segurança. Em dezembro de 2016, o secretário do Conselho de Segurança Nacional da Rússia, Nikolai Patrushev, fez uma visita de dois dias ao Marrocos, ecoando aquela feita no mesmo ano por Abdellatif Hammouchi, chefe da Direção-Geral de Segurança Nacional (DGSN) e da Direção-Geral de Vigilância Territorial (DGST), a Moscou. As divergências sobre o Saara Ocidental – discretamente caladas em público – não impedem, portanto, que a Rússia e o reino marroquino desenvolvam relações pragmáticas e ambiciosas em todos os campos, ou quase. De forma mais geral, desde 2014 é preponderante o aspecto securitário da política da Rússia na África. Nos últimos cinco anos, o Estado russo firmou acordos com cerca de vinte países, sendo os mais recentes com o Mali (junho de 2019), com o Congo (maio de 2019) e com Madagascar (outubro de 2018). Esses acordos costumam prever treinamento de oficiais em Moscou, entrega de equipamentos militares novos e/ou a manutenção dos equipamentos já instalados, exercícios conjuntos, combate ao terrorismo e à pirataria marítima – componentes que variam de acordo com a situação do país e suas preocupações. Mas a abertura de bases militares permanentes, muito onerosas e pouco úteis no plano operacional, não está na ordem do dia, apesar das insistentes propostas
.
rial russo-africano e ajudou a estruturar a política russa para o continente. Em 2011 também se deu a única rusga pública observada ao longo dos quatro anos da estranha coabitação entre o presidente russo e seu primeiro-ministro, Putin. Este criticou Medvedev por abster-se de usar seu direito de veto sobre a intervenção militar ocidental contra Kadafi – decisão dele arrancada por seu colega francês Nicolas Sarkozy –, alertando contra uma mudança no regime líbio. Esse episódio – pouco conhecido no Ocidente – marcou uma virada nos jogos de poder em Moscou. Após seu retorno ao Kremlin na primavera de 2012, Putin fez da crítica à ingerência ocidental um elemento central de seu discurso de política externa, o que remetia ao “precedente líbio” e, de maneira mais geral, à Primavera Árabe. Tradicionalmente, a Rússia faz uma distinção entre a porção da África localizada ao sul do Saara e aquela situada ao norte do continente, de cultura árabe, onde é dispensada a maior parte de seus esforços diplomáticos e econômicos. Essa tendência foi reforçada desde o “reencontro” com o Egito em 2013, após o golpe de Estado militar do marechal Abdel Fattah al-Sisi e graças ao reforço das relações com o Marrocos, observado desde 2014. A venda de armas e a cooperação militar foram as primeiras manifestações da reaproximação entre a Rússia e o Egito. Entre 2013 e 2017, os militares egípcios receberam 46 aviões de combate MiG-29M, sistemas antiaéreos Buk-M1-2 e S-300VM, bem como 46 helicópteros de ataque Ka-52. Inicialmente destinados aos porta-helicópteros Mistral que a França iria vender à Rússia, eles acabaram com o Egito em 2015. O processo deveria continuar com a entrega de caças-bombardeiros Su-35, apesar das ameaças de retaliação dos Estados Unidos contra o Egito. As marinhas de guerra russa e egípcia também realizaram exercícios conjuntos no Mar Negro, em outubro de 2020, e suas tropas aerotransportadas se encontram anualmente para a realização de manobras conjuntas.
de alguns dirigentes da região: durante sua visita a Moscou, em novembro de 2017, o presidente sudanês Omar al-Bashir, por exemplo, convidou seus anfitriões a construírem uma base naval no Mar Vermelho. Proposta reiterada em 2018, mas à qual a Rússia não deu continuidade. Além dos representantes do Ministério da Defesa, outro personagem se destaca no campo da cooperação securitária: Patrushev. É por seu intermédio que os serviços de inteligência discutem oficialmente com seus colegas africanos, sobretudo à margem de sua conferência anual sobre questões de segurança, para a qual ele convida representantes de agências de inteligência do mundo inteiro. Na mais recente, realizada em maio de 2019 em Ufa, no oeste da Rússia, houve conversas com o chefe do serviço de inteligência da Namíbia, Philemon Malima, e com representantes das agências de inteligência do Burundi, da Tunísia, de Uganda, do Egito e do Congo.5 A segurança cibernética e a luta contra as “revoluções coloridas” – motivo de preocupação para muitos líderes africanos – são temas recorrentes nessas discussões. A luta contra o terrorismo e a contrainsurgência são aspectos relativamente recentes dessa cooperação de segurança. Eles são colocados em prática em uma estrutura bilateral oficial, mas às vezes também de forma oficiosa, por atores privados cooptados. O principal objetivo da parceria entre a Rússia e a Nigéria é atualmente o combate ao grupo jihadista Boko Haram. Militares nigerianos foram enviados à Rússia para treinamento, e a agência russa responsável pelas exportações de armas entregou à Nigéria, em 2016 e em 2018, uma dúzia de helicópteros de ataque Mi-35M (até o momento não foram, porém, confirmadas as informações que circularam sobre a possível venda de caças-bombardeiros Su-30). Em maio de 2017, o ministro da Defesa russo, Sergei Shoigu, teve longas conversas em Moscou com seu colega nigeriano Mansur Mohammed Dan Ali. Já na Líbia, na República Centro-Africana, em Moçambique e no Sudão, o Estado russo – que não deseja enviar tropas regulares nem forças especiais a esses países – subcontrata a luta contra a insurgência junto a empresas militares privadas. Embora causem grandes preocupações à França, os “conselheiros militares” privados que vieram reforçar as autoridades oficiais de Bangui não estão em combate. No entanto, mercenários russos teriam participado, no final de 2018, ao lado das forças de segurança locais, da repressão ao
Le Monde Diplomatique Brasil
29
levante sudanês que acabaria por derrubar o presidente Al-Bashir.6 Em Moçambique – cujo presidente, Filipe Jacinto Nyusi, visitou a Rússia duas vezes no outono de 2019 –, os subcontratados militares tinham a missão de combater os grupos islamistas na província de Cabo Delgado, região crucial na ambiciosa estratégia de exploração de gás do governo do país.7 Em todos esses cenários, os resultados até o momento são negativos. Os combatentes do grupo Wagner, lutando ao lado do marechal líbio Khalifa Haftar, não conseguiram evitar a derrota deste último na Batalha de Trípoli. Eles sofreram perdas significativas em Moçambique e teriam se retirado das zonas de combate poucas semanas após se instalarem. Seu papel presumido em Cartum quase custou politicamente caro a Moscou, após a mudança de regime em outubro de 2019. Quanto à República Centro-Africana, parece que o poder russo decidiu institucionalizar a cooperação de segurança, abrindo em Bangui um escritório de representação do Ministério da Defesa, o que pode significar, no futuro, um reequilíbrio da presença russa em detrimento das empresas militares privadas. De maneira mais definitiva, a maior conquista da Rússia na África foi melhorar a percepção de seu papel e de sua influência. Os países do continente voltaram a considerá-la um ator de primeiro plano, que pode ao menos lhes oferecer uma cooperação econômica, eventualmente contribuir para sua segurança interna e externa e até representar uma espécie de “terceira via” diplomática entre os ocidentais – em geral percebidos como intrusivos na questão dos direitos humanos – e os chineses – cujo controle muitos na região gostariam de afrouxar. Do ponto de vista da Rússia, a África também constitui um reservatório de votos na Assembleia Geral das Nações Unidas, para sessões em que são discutidos assuntos sensíveis, como o Donbass e a Crimeia. Assim, na votação da resolução de março de 2014 que denunciava a anexação da península pela Rússia, muitos países africanos votaram contra (Sudão, Zimbábue) ou se abstiveram (Argélia, África do Sul, Mali, Ruanda, Senegal etc.). A recepção cautelosa reservada ao texto foi muito além dos doze países que tradicionalmente votam contra as resoluções ocidentais. E o isolamento diplomático da Rússia buscado pelos Estados Unidos e seus aliados europeus revelou-se menos severo do que se esperava. Ao contrário do que muitos pensam, a Rússia não é mais um “anão” econômico na África. Em 2018, suas trocas comerciais com o continente ultrapassaram a marca de US$ 20
Le Monde Diplomatique Brasil JANEIRO 2021
bilhões: uma cifra inferior à da China (US$ 204 bilhões) ou da França (US$ 51,3 bilhões de euros), mas comparável à do Brasil e da Turquia. Ela busca diversificar a estrutura de suas transações, privilegiando os setores de alta tecnologia, posicionando-se no mercado de lançamento de satélites, com Angola, em 2017, e com a Tunísia, em 2020. No campo da energia nuclear civil, a Rosatom multiplicou seus acordos com países que começam a entrar no setor, como o Zâmbia, o Sudão ou Ruanda – nações com os quais os contatos se intensificaram desde a visita do presidente de Ruanda, Paul Kagame, a Moscou, em junho de 2018. A fornecedora de soluções de segurança informacional Kaspersky Lab inaugurou, em maio de 2019, um escritório de representação em Kigali, a partir do qual espera desenvolver sua presença na África Oriental. Embora a Rússia aposte cada vez mais abertamente no hard power, ela continua a introduzir na África instrumentos de influência de longo prazo sobre as sociedades locais. Alguns meios de comunicação estatais (RT, Sputnik), em francês, inglês e português, destacam-se como fontes significativas de audiência em muitos países.8 Sua linha editorial insiste na ausência de um passado colonial russo na região e na contribuição de Moscou para as lutas anti-imperialistas – um discurso que às vezes assume colorações antifrancesas e encontra certo eco no Mali, por exemplo. A Rússia também é muito ativa no campo da cooperação sanitária. A África do Sul encomendou recentemente o Avifavir, um tratamento para Covid-19 oferecido para exportação.9 Já o Egito preferiu a vacina chinesa à Sputnik-V, apesar da insistência das autoridades russas.10 Há alguns anos, o Ministério da Saúde da Rússia e a Rusal organizaram
uma campanha de vacinação contra o vírus ebola na Guiné. Outro pilar do soft power russo: educação e capacitação. Em 2013, o número de estudantes africanos que frequentaram um curso universitário civil foi estimado em cerca de 8 mil.11 O novo diretor da Agência de Cooperação, Evgueni Primakov – neto do ex-chefe de governo –, quer aumentar a cota de vagas gratuitas reservadas para estudantes africanos, que hoje gira em torno de 1.800, e desenvolver um sistema de bolsas de estudo como parte de uma parceria com empresas russas ativas na África.12 A Rússia ainda é um destino de estudos menos visado do que a Europa e os Estados Unidos, tanto por razões climáticas como por causa dos ataques racistas noticiados nos últimos anos. Todavia, o “grande retorno” da Rússia à África não se assemelha a uma marcha triunfal, longe disso. Alguns anúncios não foram adiante: em 2017, a Rostec abandonou a construção de uma refinaria em Uganda, enfraquecendo ainda mais as perspectivas econômicas da Rússia na África oriental. Outros, como os projetos de exploração de gás da Rosneft em Moçambique, demoram a se concretizar. O programa nuclear civil sul-africano, no qual a Rosatom tinha grandes esperanças, foi colocado em espera. A saída forçada do presidente Jacob Zuma – que, como encarregado da inteligência do CNA, teve estreitos contatos com a KGB durante os anos de luta contra o apartheid –, revelou a fragilidade de algumas relações russas no continente. A mesma constatação pode ser feita quando se observa o que se seguiu à queda do presidente sudanês Al-Bashir e à renúncia do chefe de Estado argelino, Abdelaziz Bouteflika, embora elas não tenham, a esta altura, realmente enfraquecido as
.
30
posições da Rússia no Sudão e na Argélia: os russos podem contar com os muitos oficiais do Exército e dos serviços de segurança treinados em academias militares e de inteligência desde os tempos soviéticos. O poder russo frequentemente age ao sabor do momento, e não segundo uma hipotética “grande estratégia” continental. A coordenação entre os diversos atores da política russa não é algo que se dá naturalmente. Shoigu e Patrushev têm um peso político que, em princípio, dispensa-os de entrar em acordo com Mikhail Bogdanov, vice-ministro das Relações Exteriores e o novo “Sr. África” da Rússia. A articulação entre as empresas militares privadas e os serviços de inteligência militar parecem variar de um local para outro: evidente na República Centro-Africana e na Líbia, ela parece mais frouxa no Sudão – isso pode refletir a margem de manobra disponível para aqueles que a cientista política Tatiana Stanovaya chama de “empreendedores geopolíticos”. Trabalhando muitas vezes na esteira de tais empreendedores, os diversos conselheiros russos em imagem e estratégia eleitoral ativos nos últimos anos – por exemplo, em Madagascar – quase não brilharam por seus resultados, principalmente por causa da falta de conhecimento das realidades locais.13 Daqui por diante, a pegada estratégica da Rússia na África não deve aumentar significativamente. O efeito de recuperação após o apagamento da década de 1990 tende a se esgotar. Do ponto de vista de Moscou, o continente africano continua sendo um palco periférico – e aparece por último na ordem das prioridades regionais definidas pelo Conceito de Política Externa aprovado em novembro de 2016. A cúpula de Sochi certamente fez as coisas acontecerem, permi-
tindo mobilizar a máquina do Estado ao mais alto nível. Mas, quando vierem as primeiras dúvidas, e considerando que a crise econômica reduzirá os recursos disponíveis, o desafio dos atores da relação russo-africana será convencer o Kremlin da relevância desse investimento a longo prazo. *Arnaud Dubien é diretor do Observatório Franco-Russo, em Moscou. 1 J oseph L. Nogee e Robert. H. Donaldson, Soviet Foreign Policy Since World War II [A política externa soviética desde a Segunda Guerra Mundial], Pergamon Press, Nova York, 1981. 2 Ibidem. 3 Arnaud Dubien, “La Russie et l’Afrique: mythes et réalités” [Rússia e África: mitos e realidades], Note de l’Observatoire franco-russe, n.19, Moscou, out. 2019. 4 Arnaud Kalika, “Le ‘grand retour’ de la Russie en Afrique?” [O “grande retorno” da Rússia à África?], Russie.Nei.Visions, n.114, Instituto Francês de Relações Internacionais (Ifri), Paris, abr. 2019. 5 K ommersant, Moscou, 20 jun. 2019 (em russo). 6 “Russian military firm working with Sudan security service: sources” [Empresa militar russa trabalha com serviço de segurança do Sudão: fontes”, Sudan Tribune, Paris, 8 jan. 2019. Disponível em: https://sudantribune.com. 7 Tristan Coloma, “La stratégie économico-sécuritaire russe au Mozambique” [A estratégia econômico-securitária russa em Moçambique], Notes de l’IFRI , maio 2020. 8 Kevin Limonier, “Diffusion de l’information russe en Afrique. Essai de cartographie générale” [Difusão da informação russa na África. Ensaio de cartografia geral], Instituto de Pesquisa Estratégica da Escola Militar, Paris, 13 nov. 2018. 9 “Russia’s coronavirus drug to be sold in 23 countries” [Medicamento russo contra o coronavírus à venda para 23 países], The Moscow Times, 24 set. 2020. 10 “ Why Egypt chose Chinese Covid-19 vaccine over Russian one” [Por que o Egito escolheu a vacina chinesa contra a Covid-19 em vez da russa], Al-Monitor, 17 set. 2020. Disponível em: www.al-monitor.com. 11 Alexandra Arkhangelskaya e Vladimir Shubin, “Russia’s Africa Policy” [A política russa na África], Occasional Paper, n.157, Instituto Sul-Africano de Assuntos Internacionais, Johannesburgo, set. 2013. 12 Kommersant, 9 set. 2020 (em russo). 13 Michael Schwirtz e Gaelle Borgia, “How Russia meddles abroad for profit: cash, trolls and a cult leader” [Como a Rússia interfere no exterior em busca de lucro: dinheiro, trolls e culto ao líder], The New York Times, 11 nov. 2019.
JANEIRO 2021 Espaço
Institucional
31
Busca Ativa: intersetorialidade para combater a evasão escolar
A
.
paralisação das atividades presenciais das escolas em razão da pandemia de Covid-19 agravou os riscos de evasão e abandono em todo o país. A despeito dos esforços de gestores e educadores, muitas crianças e adolescentes se desengajaram do espaço escolar,1 seja pela falta de acesso a serviços e equipamentos de telecomunicação adequados para o ensino remoto, seja pelos mais variados impactos da crise econômica e sanitária. Uma das estratégias desenvolvidas desde antes da pandemia é a metodologia da Busca Ativa, que mobiliza gestores municipais e estaduais com o objetivo de monitorar os índices de evasão e promover o fortalecimento de vínculos entre os estudantes e a escola. De acordo com projeção da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) 2019, ao menos 1,5 milhão de crianças e adolescentes estão fora da escola no Brasil. Muitos são os fatores que contribuem para o abandono e a evasão, sempre articulados às desigualdades estruturais de nosso país. Enquanto, por exemplo, apenas 12,5% dos jovens brancos de 15 a 17 anos estão fora da escola, entre os jovens negros esse índice chega a 19%2. Esse problema estrutural motivou o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) a criar a Busca Ativa Escolar,3 em parceria com secretarias municipais tanto de Educação quanto de Saúde e Assistência Social. Como destacado em um dos guias da metodologia da Busca Ativa,4 a complexidade dos fatores que impedem o acesso de crianças e jovens à educação demanda uma resposta integrada dos serviços e agentes públicos. Nesse sentido, a metodologia consiste em formar gestores e educadores enquanto agentes comunitários capazes não apenas de monitorar estudantes em risco e abandono como também de desenvolver estratégias metodológicas coerentes com as realidades locais. Além de ser uma metodologia integrada entre serviços públicos, a Busca Ativa compreende uma plataforma on-line e gratuita que desde 2017 mobiliza setores do poder público e da sociedade para garantir o acesso à educação. Em entrevista ao site do Instituto Unibanco,5 Ítalo Dutra, chefe de Educação do Unicef no Brasil, destacou que enfrentar a evasão demanda uma abordagem multissetorial: “Utilizamos uma metodologia social que não prevê a criação de serviços novos. Em vez disso, aproveitamos serviços que os municípios já têm para ir atrás das crianças. Junto com essa metodologia, criamos ferramentas para auxiliar o manejo das informações. A principal característica da metodologia social é trabalhar com diferentes setores do governo e da sociedade. E lançar um olhar sobre as causas que levaram as crianças a abandonar a escola, para evitar que, depois de rematriculadas, essas crianças novamente parem de estudar. Toda a estratégia tem como base o engajamento voluntário, isto é, a adesão do prefeito. A partir da adesão, que é gratuita, monta-se um time com representantes de diferentes áreas: articulação política, educação, assistência social, saúde, associações de bairro, associações religiosas etc.” A Busca Ativa Escolar não consiste, portanto, em um modelo engessado a ser aplicado de maneira universal. Pelo contrário, as estratégias são desenvolvidas com a articulação da gestão escolar com outros serviços públicos, como a Assistência Social, conselhos tutelares e secretarias de Saúde. BUSCA ATIVA NA PANDEMIA No contexto da pandemia, o Unicef, em parceria com a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), o Colegiado Nacional de Gestores Municipais de Assistência Social (Congemas) e o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), adaptou a metodologia. Nesse sentido, foi lançada a plataforma da Busca Ativa em Crises e Emergências,6 que orienta os gestores e disponibiliza materiais de campanha para o fortalecimento de vínculos. Na estrutura da Busca Ativa, os professores atuam como agentes comunitários e, 1 V er Observatório de Educação, “Covid-19: comunicação é chave para mitigar abandono”, em: <http://bit.ly/3r6Jm3J>. 2 Ver Educação em números em: <http://bit.ly/2WnVxut>. 3 O documento está disponível no Centro de Documentação de Gestão em Educação (Cedoc) do Observatório de Educação, em: <http://bit.ly/2Wi5Bpa>. 4 Unicef, “Cenário da exclusão escolar no Brasil”, 2017. Disponível em: <https://bit.ly/38hl9iz>. 5 Observatório de Educação, “Combate à evasão requer ação multissetorial, afirma chefe de Educação do Unicef no Brasil”, 16 out. 2020. Disponível em: <https://bit.ly/3a7TIdg>. 6 Unicef Brasil, “A Busca Ativa Escolar durante o isolamento social e na volta às aulas presenciais”, YouTube, 17 ago. 2020. Disponível em: <https://bit.ly/3a7TL8W>.
ao identificar as causas da evasão, eles se articulam ao restante da rede de serviços públicos, acionando a resposta mais adequada à situação. Atualmente, a Busca Ativa está presente em dezenove estados. Cada rede de ensino adotou ao longo da pandemia estratégias próprias para alcançar os estudantes, levando em conta as peculiaridades de cada região, seja ela urbana ou rural. Essas estratégias englobam desde a parceria com o Unicef até o uso de algoritmos para a identificação de alunos em situação de risco e a contratação de empresas de transporte para buscar e entregar material didático impresso na casa dos estudantes. Para adequar os protocolos da Busca Ativa ao contexto da pandemia, os professores e gestores da rede estadual de educação do Maranhão passaram a desempenhar um papel ainda mais central tanto no monitoramento dos estudantes quanto no contato com as famílias. Em entrevista ao site do Instituto Unibanco, Fernanda Ferraz, supervisora do Regime de Colaboração da Secretaria de Estado da Educação, disse que como “agora as crianças estão em casa, a estratégia é observar se o aluno acessa o Google Meet, a plataforma Zoom, se está na sala virtual”. Para realizar o monitoramento dos estudantes que não têm acesso à internet, os educadores controlam o engajamento durante a distribuição do material didático. Aqueles que não comparecem para retirar as atividades impressas entram em uma “lista de verificação”. Após a listagem, educadores ou gestores realizam o contato por telefonema ou visita, valendo-se inclusive de bases de dados de outros serviços públicos, como o cadastro do Bolsa Família ou dos Centros de Referência da Assistência Social (CRAS). Já em São Paulo, a estratégia da rede estadual envolveu o desenvolvimento de um algoritmo capaz de identificar os alunos com maior risco de evasão. A partir dos dados de cada estudante, como frequência escolar ou participação em algum programa de assistência social do governo, o algoritmo lista as crianças e adolescentes em risco, e essa listagem é distribuída para as escolas, de modo que a gestão seja capaz de monitorá-los com mais atenção. Henrique Pimentel, subsecretário de Articulação Regional,7 relata como a gestão escolar investiu na metodologia da Busca Ativa durante a pandemia: “A gente viu de tudo: diretor que alugou carro de som para falar sobre as atividades remotas, que foi à casa de pai de aluno para saber o que estava acontecendo [no caso de estudantes que não assistiam às aulas] ou para entregar atividades impressas. O esforço de busca ativa vai ser ainda mais forte no ano que vem, quando teremos os dados concretos da evasão.” Um dos exemplos de como a gestão escolar atuou em São Paulo veio da escola estadual Profª Margarida Paroli Soares,8 de Limeira. A estratégia combina monitoramento virtual com visitas domiciliares. Ao identificar os estudantes que não estão acompanhando as atividades remotas, a equipe escolar realiza um primeiro contato virtual, seguido de uma visita em domicílio caso o aluno não responda. Essa estratégia não apenas permite identificar as dificuldades do estudante como também possibilita a entrega de material didático impresso e a capacitação para acessar o ambiente virtual de aprendizagem. A coordenadora Solange Pires destaca que a ação fortalece não apenas o vínculo do estudante com a escola, mas também o da própria família: “Eles ficam bem surpresos e até se emocionam em ver que a escola tem uma preocupação em saber o que acontece na vida e na casa deles”. As experiências compartilhadas demonstram como uma política de busca ativa eficiente vai até o estudante, identifica as causas da evasão e investe, de forma intersetorial, em soluções, atuando junto a outros serviços públicos para garantir o acesso à educação e possibilitar a democratização do direito à aprendizagem. SAIBA MAIS Observatório de Educação, “Busca ativa: intersetorialidade para combater a evasão escolar”, em <https://bit.ly/buscaativa-iu>. 7 Observatório de Educação, “Como está sendo feita a busca ativa de alunos pelas redes de ensino”, 8 out. 2020. Disponível em: <https://bit.ly/347AFvN>. 8 Secretaria de Educação do Governo do Estado de São Paulo, “Escolas estaduais reforçam busca ativa de alunos durante a pandemia”, 13 out. 2020. Disponível em: <https://bit. ly/3oTMGNF>.
32
Le Monde Diplomatique Brasil JANEIRO 2021
UMA TESE POPULAR ENTRE OS INTELECTUAIS OCIDENTAIS
A Alemanha Oriental era antissemita? O esforço de reescrever a história lançado no fim da Guerra Fria continua até hoje. Na Alemanha, uma poderosa corrente intelectual imputa a atual multiplicação de atos antissemitas à existência da Alemanha Oriental, a outra Alemanha, comunista, que desapareceu em 1990 É o cúmulo quando se conhece a longa indulgência do Ocidente com os antigos nazistas
somos tentados a completar”, conclui Brumlik.2 Não poderia haver acusação mais radical. Acadêmico emérito, filho de pais judeus alemães que optaram por retornar à Alemanha Ocidental após a guerra, Brumlik é uma autoridade tanto nos círculos acadêmicos quanto na mídia, que de bom grado ecoam sua voz. Enxergando na RDA a “segunda ditadura antissemita do século XX”, um historiador norte-americano entoou refrão semelhante: a partir de 1967, a RDA teria tentado destruir Israel com a ajuda da extrema esquerda da Alemanha Ocidental.3 Como? Forjando alianças com a Organização para a Libertação da Palestina (OLP) e os países árabes, e vendendo armas para eles. Se a RDA era oficialmente antissionista – embora afirmasse o direito de Israel de existir –, a equivalência entre essa posição política e o antissemitismo não passa de um elemento de propaganda.4
.
N
o debate sobre racismo e xenofobia que agita a Alemanha, o antissemitismo ocupa um lugar especial. Seu eco às vezes ressoa ruidosamente, como em julho passado, durante o julgamento do autor do atentado à sinagoga de Halle, em 9 de outubro de 2019, que deixou dois transeuntes mortos. Halle está localizada no território da antiga República Democrática Alemã (RDA), a Alemanha comunista surgida em 1949 e desaparecida em 1990. Embora o assassino tenha nascido após a queda do Muro, esse fato fortaleceu os defensores de uma tese da moda: se os judeus estão novamente em perigo na República Federal, a culpa é da extinta RDA, como afirma, por exemplo, o professor alemão (ocidental)1 de Ciências da Educação Micha Brumlik. Em um artigo intitulado “Até que ponto a RDA era marrom?” (quer dizer, “nazista”), o acadêmico avança vários elementos de acusação: esse Estado se baseava em “estruturas hierárquicas autoritárias”, o que atestaria uma continuidade com o Terceiro Reich; ele teria se recusado a realizar um “confronto com seu passado”; teria reintegrado ex-nazistas para garantir sua fidelidade, chantageando-os. Finalmente, a RDA, não satisfeita em não indenizar as vítimas do genocídio e o Estado de Israel, teria levado a cabo uma duvidosa política antissionista com o apoio de judeus da Alemanha Oriental. “O antissemitismo é o ‘socialismo dos tolos’”, declarou o líder social-democrata Auguste Bebel. “O antissemitismo é o socialismo de uma ditadura chamada RDA,
© Winny Tapajós
POR SONIA COMBE*
CIFRAS “IMPRESSIONANTES” Com exceção do período 1949-1953, quando a URSS de Josef Stalin mergulhou na paranoia antissemita, encorajando mais de quinhentos judeus a deixar a RDA, a acusação de antissemitismo ainda não havia sido feita de forma tão aberta por conta dos delitos da Alemanha comunista. Do final do século XIX ao final do século XX, os nacionalistas, em vez disso, lutaram contra a esquerda “judaica” e a ameaça “judaico-bolchevique”.5 O ódio ao comunismo era, como o antissemitismo, constitutivo da ideologia nazista, que concebia o marxismo como uma criação judaica a ser eliminada.
A resposta a Brumlik veio de uma ensaísta nascida em Berlim-Pankow – na parte leste, portanto – dez anos antes da queda do Muro: Charlotte Misselwitz.6 Seu texto evoca a pediatra do hospital berlinense Charité, chamada Ingeborg Rapoport, que faleceu em 2017, aos 104 anos. Exilada nos Estados Unidos sob o Terceiro Reich como judia e comunista, ela decidiu voltar para sua casa, na parte oriental, e fez carreira na RDA. Testemunha da multiplicação de atos xenófobos e antissemitas desde a reunificação, Rapoport ofereceu uma explicação oposta à de Jeffrey Herf e Brumlik: a RDA não se reunificara com a República Federal da Alemanha (RFA), país onde ex-nazistas tinham podido seguir carreira em cargos importantes? Segundo ela, os judeus não corriam perigo durante os dias da RDA, mas o experimentavam novamente agora! Para os defensores da RDA antissemita, esse não é o caso. Harry Waibel, um historiador (da parte ocidental) que dedicou sua carreira a pintar de marrom a Alemanha Oriental, diz que retirou de arquivos aos quais foi o primeiro, se não o único, a ter acesso cifras impressionantes: a Stasi (a polícia política da Alemanha Oriental) teria registrado 7 mil crimes racistas e antissemitas, incluindo 145
profanações de cemitérios judeus e duzentos “ataques ao estilo dos pogroms” em todo o território, bem como “dez linchamentos em quatrocentas cidades”. Se o hooliganismo, à margem dos jogos de futebol, e a exibição de sinais nazistas eram conhecidos, a extensão que Waibel lhes atribui surpreendeu os cidadãos da ex-RDA. É claro que as autoridades foram menos zelosas na repressão aos delinquentes neonazistas do que aos adversários do regime, mas os números apresentados pelo historiador permanecem questionáveis. E nenhuma pesquisa semelhante foi realizada na ex-RFA, onde, apesar do “confronto com o passado”, o anticomunismo estatal contou com grande frouxidão tanto em relação a ex-nazistas como a neonazistas. Estudos recentes revelam que os serviços de inteligência da parte ocidental – o Bundesverfassungschutz (VS, segurança interna) e o Bundesnachrichtendienst (BND, segurança externa) – dedicaram a maior parte de sua energia para monitorar a esquerda e caçar membros da Fração do Exército Vermelho,7 a ponto de negligenciar a extrema direita, na qual agora descobrimos antigos núcleos da polícia e do Exército. O último exemplo: o pertencimento do chefe do sindicato da polícia de Ber-
JANEIRO 2021
graças aos Estados Unidos, que atribuíam aos nazistas uma espécie de superpoder contra o comunismo.10 Toda a burocracia de regalias da RFA foi contaminada. Como o Grupo de Pesquisa de História do Ministério do Interior estabeleceu em suas conclusões, “em julho de 1961, a proporção de ex-membros do Partido Nazista entre os executivos seniores chegava a 67%”, contra menos de um décimo na parte leste.11 Sem falar que ex-servidores do Terceiro Reich, como o famoso Hans Globke, o convulsivo anticomunista que esteve na origem das leis antissemitas de Nuremberg, ocupavam altos postos sem se preocupar. Globke era ninguém menos que o chefe de gabinete de Konrad Adenauer, o primeiro chanceler da RFA.
O ódio ao comunismo era, como o antissemitismo, constitutivo da ideologia nazista, que concebia o marxismo como uma criação judaica Por outro lado, seria difícil encontrar ex-nazistas à frente do governo da Alemanha Oriental, liderado até seu desaparecimento por uma vítima do Terceiro Reich, Erich Honecker. Em 1952, enquanto a Alemanha de Adenauer negociava com Tel Aviv suas “reparações” pelo assassinato de 6 milhões de judeus, ou seja, uma ajuda financeira a Israel em troca da compra de produtos alemães, os comunistas Walter Ulbricht (secretário-geral do comitê central do Partido Socialista Unificado da Alemanha) e Wilhelm Pieck (presidente da República) lideravam a RDA. Embora não muito simpáticos, ambos haviam passado a guerra no exílio na URSS; outros, como o ex-social-democrata Otto Grotewohl, primeiro-ministro de 1949 a 1964, estavam saindo das prisões nazistas; Albert Norden, membro influente do politburo do Partido Comunista, era filho de um rabino. Por que eles deveriam se sentir culpados por aquele crime? A URSS já estrangulava a RDA com a exigência de reparações de guerra em termos de equipamentos ferroviários e maquinário, a ponto de levar ao suicídio, em 1957, um responsável pela economia, Gerhart Ziller. Recusando-se a indenizar os judeus fora de suas fronteiras, a RDA concedeu em seu solo às “vítimas do fascismo” (judeus e ciganos), e ainda mais aos resistentes antifascistas, pensões e privilégios significativos. Em muitos aspectos, o culto aos antifascistas, sobre os quais a RDA
.
lim ao movimento neonazista.8 Em 1991, lembra Misselwitz, baseando-se em pesquisas acessíveis – ao contrário dos arquivos “exclusivos” de Waibel –, estimava-se que 16% da população da parte ocidental alimentava preconceitos antissemitas, contra 6% da parte oriental. Em 1994, 40% dos alemães da parte ocidental achavam que se atribuía muita importância ao genocídio dos judeus, em comparação com 22% dos alemães da parte oriental. Isso não impede que, defendida pela maioria dos historiadores, espalhe-se a convicção de que a RDA se esquivou do confronto com o passado nazista. Para Norbert Frei, figura proeminente da disciplina que ensina na Universidade de Jena, a política cultural antifascista da RDA não teria passado de rotina e retórica vazias9 – o que as pesquisas de opinião mencionadas parecem contradizer: ela teria sido, ao final das contas, significativa! Como Brumlik, Frei questiona aquelas famosas “estruturas hierárquicas autoritárias” na origem das tendências pró-fascismo – um antigo tema cuja versão mais cômica foi involuntariamente apresentada por Christian Pfeiffer. Em 1999, esse criminologista alemão da parte oriental descobriu a origem dessas tendências autoritárias na prática das creches da RDA de fazer que todas as crianças se sentassem no penico ao mesmo tempo... Depois dessa experiência traumática..., os cidadãos alemães que vivem na parte leste ainda tiveram a oportunidade de descobrir outras “estruturas hierárquicas autoritárias”: as da iniciativa privada. Como os ossies [habitantes da Alemanha Oriental] rapidamente aprenderam, se na RDA era muito perigoso criticar o chefe de Estado, havia pouco risco de ficar desempregado por ter se oposto ao seu superior no trabalho. Hoje é o contrário. Resta uma questão fundamental: a desnazificação na RDA foi expedita? Mais rápida que no Ocidente, certamente, porque havia muito menos a fazer que na RFA, para onde tinha fugido a maioria dos executivos comprometidos com o Terceiro Reich. A RDA reintegrou ex-nazistas? Sem dúvida, mas em menor número que na RFA. Ela os teria chantageado com seu passado? É possível. A chantagem é um método usado por todos os serviços de inteligência. Mas é verdade que, ao contrário da Stasi, os serviços de inteligência internos e externos da parte ocidental não podiam usá-la contra ex-nazistas, já que eles próprios eram, até a década de 1970, em grande parte compostos por ex-membros do Partido Nacional Socialista. O BND foi criado por um ex-oficial da Wehrmacht, Reinhard Gehlen,
baseava sua legitimidade, lembra a política memorial levada a cabo na mesma época na França, onde os nomes dos combatentes da Resistência também foram atribuídos às ruas. Os discursos oficiais, como os proferidos na RDA, poupavam a sociedade colaboracionista. Os historiadores franceses também contribuíram para o mito de uma França resistente. A cada um, as páginas que lhe faltam. Enquanto a RDA silenciava sobre o Pacto Germano-Soviético e o desaparecimento dos comunistas alemães que se refugiaram em Moscou, executados com uma bala na nuca na prisão de Lubyanka, a maioria dos historiadores da Alemanha Ocidental ainda usava a palavra “invasão” para falar do desembarque de 6 de junho de 1944, eximia a Wehrmacht de qualquer participação na empreitada genocida e fabricava o mito de um corpo diplomático que “não sabia”. Duas fábulas teimosas, que só foram minadas com a exposição itinerante chamada “A guerra de extermínio. Crimes da Wehrmacht, 1941-1944”, entre 1995 e 2004, bem como com as publicações de uma comissão de historiadores independentes com base em arquivos da diplomacia em 2010.12 Em suas Memórias, o historiador Saul Friedländer relata que o diretor do Instituto de História Contemporânea de Munique, Martin Broszat, negava-lhe competência para falar do genocídio porque, como judeu, ele teria sido por demais envolvido. Ele descobriria mais tarde que Broszat havia sido membro do Partido Nazista...
UM TRABALHO DE MEMÓRIA IGNORADO À medida que os estudos históricos revelam os subterrâneos da criação da Alemanha Ocidental, sua relutância em julgar os ex-nazistas (os “camaradas” julgando uns aos outros, já que 90% dos magistrados e advogados tinham servido ao Terceiro Reich),13 a caça aos comunistas no serviço público,14 a composição e a atuação de seu serviço de inteligência, tenta-se aumentar a ficha criminal da RDA. A contribuição desse país desaparecido para a construção de uma avaliação do nazismo por meio de uma importante produção cinematográfica, teatral e literária ou o trabalho de memória realizado por pastores da Igreja Evangélica permanecem desconhecidos na parte ocidental. Auschwitz nunca foi tabu na RDA. A psicanalista Margarete Mitscherlich, autora com o marido, Alexandre Mitscherlich, do livro O luto impossível (1967), vê no romance Trama de infância (1976), da escritora da Alemanha Oriental Christa Wolf, a obra de luto mais magistral na língua alemã. Como na França, a arte precedeu
Le Monde Diplomatique Brasil
33
a historiografia e preencheu as lacunas do discurso oficial. Trinta anos após a implosão do bloco oriental, os vencedores da Guerra Fria se atiram sobre os últimos vestígios da ideologia da Alemanha Oriental: o antifascismo e o internacionalismo. Durante um debate em 2011, o filósofo Jürgen Habermas lembrou que o anticomunismo estatal da RFA se inscrevia na continuidade da ideologia nazista e que, para se libertar dela, passava por posições anticomunistas.15 Ele não foi ouvido. *Sonia Combe é historiadora e autora de La Loyauté à tout prix. Les floués du “socialisme réel” [Fidelidade a todo custo. As fraudes do “socialismo real”], Le Bord de l’Eau, Lormont, 2019. 1 É importante esclarecer quando o autor é da parte ocidental, pois esse ainda é o caso da maioria dos que falam sobre a RDA. 2 Micha Brumlik, “Ostdeutscher Antisemitismus: Wie braun war die DDR?” [Antissemitismo da Alemanha Oriental: quão marrom era a RDA?], Blätter für Deutsche und Internationale Politik , Berlim, jan. 2020; e “In der DDR wurde die NS-Zeit verdrängt” [Na RDA, a era nazista foi deslocada], Die Zeit, Hamburgo, 4 mar. 2020. 3 Jeffrey Herf, Undeclared Wars with Israel: East Germany and the West German Far Left, 1967-1989 [Guerras não declaradas com Israel: Alemanha Oriental e extrema esquerda da Alemanha Ocidental, 1967-1989], Cambridge University Press, 2016. 4 Cf. Dominique Vidal, Antisionisme = antisémitisme? Réponse à Emmanuel Macron [Antissionismo = antissemitismo? Resposta a Emmanuel Macron], Libertalia, Montreuil, 2018. 5 Ler Paul Hanebrink, “Quand la haine du communisme alimentait l’antisémitisme” [Quando o ódio ao comunismo alimentava o antissemitismo], Le Monde Diplomatique, dez. 2019. 6 Charlotte Misselwitz, “Als ob wir nichts zu lernen hätten von den linken Juden der DDR” [Como se não tivéssemos nada a aprender com os judeus de esquerda da RDA], Deutschland Archiv, 30 abr. 2020. Disponível em: www.bpb.de. 7 C f. a coleção “Unabhängige Historikerkommission zur BND-Geschichte” [Comissão de historiadores independentes sobre a história do BND], Links-Verlag, 2016-2018. 8 Gareth Joswig, “Mitgliedsnummer 11” [Número de sócio 11], Die Tageszeitung, 20 jul. 2020. Ler também Massimo Perinelli e Christopher Pollmann, “Le non-procès de la violence néonazie” [O não julgamento da violência neonazista], Le Monde Diplomatique, jul. 2019. 9 Deutschlandfunk, 9 fev. 2020. 10 Cf. a coleção “Unabhängige Historikerkommission zur BND-Geschichte”, op. cit. 11 Frank Bösch e Andreas Wirsching (org.), Hüter des Ordnung. Die Innenministerien em Bonn und Ost-Berlin nach dem Nationalsozialismus [Os ministérios do Interior em Bonn e Berlim Oriental após o nacional-socialismo], Wallstein, Göttingen, 2018. 12 Eckart Conze et al., Das Amt und die Vergangenheit: Deutsche Diplomaten im Dritten Reich und in der Bundesrepublik [O escritório e o passado: diplomatas alemães no Terceiro Reich e na República Federal], Pantheon, Munique, 2012. 13 C f. Klaus Bästlein, Der Fall Globke: Propaganda und Justiz in Ost und West [O caso Globke: propaganda e justiça no leste e no oeste], Metropol, Berlim, 2018. 14 C f. Dominik Rigoll, Staatsschutz em Westdeutschland: Von der Entnazifizierung zur Extremistenabwehr [Segurança do Estado na Alemanha Ocidental: da desnazificação ao combate aos extremistas], Wallstein, 2013. 15 Frankfurter Rundschau, 1º jul. 2011.
34
Le Monde Diplomatique Brasil JANEIRO 2021
UM PAÍS ESPREMIDO PELAS “REFORMAS” DA DÉCADA DE 1990
O torniquete presidencial peruano Desesperançados, os peruanos elegem seu próximo chefe de Estado em abril de 2021. Após uma sequência de renúncias e destituições, quatro presidentes sucederam-se no comando do país desde a última eleição, em 2016. Dos quatro precedentes, eleitos desde 2001, três foram indiciados por corrupção e um preferiu o suicídio. Como explicar tamanha instabilidade? POR ROMAIN MIGUS*
mobilização, dada a fragilidade das instituições, a instabilidade política permanente e a corrupção generalizada? São males cujas raízes remontam a várias décadas. Nos anos 1980, o Peru enfrentou uma série de crises estruturais. O país afundou em um conflito armado que opôs sucessivos governos às guerrilhas do Sendero Luminoso e do Movimento Revolucionário Túpac Amaru. A violência faria 69.280 mortos e desaparecidos 4 e marcaria profundamente a sociedade. Ao mesmo tempo, o modelo econômico iniciado na década de 1960 entrou em crise. A desindustrialização e a hiperinflação desencadeadas a partir de 1988 exacerbaram o descontentamento popular. A classe política estava desacreditada; a população estava se afastando dos dispositivos tradicionais.5 Essa crise de representação se refletiu na vitória dos recém-chegados – como Ricardo Belmont Cassinelli, ex-jornalista e assessor de imprensa, prefeito de Lima entre 1990 e 1995 –, que destronaram os representantes dos partidos tradicionais, sem, no entanto, contar com uma base sólida estruturada. O “desprendimento” que atualmente se expressa nas ruas peruanas nasceu nesse período. Mas ele experimentaria um longo eclipse de cerca de dez anos.
.
“V
oto cerrado.” Passava um pouco da meia-noite de 16 de novembro de 2020 quando a Assembleia Nacional do Peru encerrou a votação dos parlamentares sob uma torrente de aplausos. O deputado Francisco Sagasti – de direita – acabava de ser escolhido por seus pares para assumir a Presidência da República. Ele substituía Manuel Merino – também de direita –, que havia assumido a chefia do Executivo uma semana antes, quando seu antecessor, Martín Vizcarra – igualmente de direita –, fora destituído em uma operação orquestrada por parlamentares tão conservadores quanto ele. Dois anos antes, Vizcarra havia herdado o cargo supremo após o último presidente eleito (em 2016), Pedro Pablo Kuczynski, envolvido em um caso de suborno, ter sido forçado a renunciar. Banqueiro, Kuczynski não era mais de esquerda que seus predecessores, Ollanta Humala (2011-2016), Alan García (2006-2011) ou Alejandro Toledo (2001-2006). Há um ano, Chile, Colômbia e Equador foram varridos por enormes protestos populares que denunciavam as políticas econômicas neoliberais.1 Na época, o Le Monde celebrava a “exceção peruana”: “Enquanto os países da região experimentaram intensas mobilizações nos últimos meses [...], os peruanos parecem mostrar certa contenção diante da decadência de sua classe política”.2 O diário francês, que proclamou a “queda da casa dos Morales” (em referência ao ex-presidente boliviano Evo Morales, afastado do poder por um golpe em 2019)3 duas semanas antes da vitória esmagadora de seu partido na eleição presidencial de outubro de 2020, não mostrou mais sagacidade em relação ao Peru: a população de fato não demonstrou nenhuma “contenção” durante os protestos-monstro que levaram à saída de Merino em 15 de novembro de 2020. Mas o que poderá fazer essa
O GOLPE DE FUJIMORI Em 10 de junho de 1990, um engenheiro de origem japonesa venceu a eleição presidencial contra o escritor conservador Mario Vargas Llosa.6 O novo chefe de Estado, Alberto Fujimori, canalizou a rejeição popular aos líderes tradicionais por meio de um discurso antissistema e conseguiu desenhar a esperança de uma saída da crise econômica. Ele prometeu construir um governo de “pessoas competentes”, independentemente do partido a que pertencessem,7 a fim de resolver o conflito armado, ao mesmo tempo que tranquilizava
os setores dominantes preocupados com o avanço da guerrilha. Nos dias que se seguiram à sua eleição, ele voou para Washington para se encontrar com Michel Camdessus, então presidente do FMI. De volta a Lima, atropelou suas promessas de campanha e administrou uma violenta terapia de choque econômico em um país traumatizado. Apesar de suas tentativas de construir um governo de unidade nacional, Fujimori não tinha maioria no Congresso. Seu movimento, o Cambio 90, contava com apenas 32 deputados (de um total de 180) e catorze senadores (de um total de 62). O Parlamento desacelerou seus planos de “reforma”, enquanto o Senado repentinamente descobriu uma preocupação com as múltiplas violações dos direitos humanos cometidas durante a guerra contra a insurreição. Com a ajuda do Exército, Fujimori orquestrou um golpe. Em 5 de abril de 1992, dissolveu a Assembleia Nacional, suspendeu as garantias constitucionais e convocou uma assembleia constituinte. Esse episódio, conhecido como o “autogolpe estatal”, permitiu ao Chino (apelido do presidente) impor seu roteiro por meio de uma feroz repressão. A nova Carta Suprema, aprovada em 1993, reformulou a estrutura econômica do Peru: os artigos 58 e 59, em particular, limitam o Estado ao papel de promotor do setor privado no âmbito de uma “economia social de mercado”. A fórmula foi desenvolvida pelo economista alemão Alfred Müller-Armack, que especificou em 1948: “Seu caráter social reside no fato de ela estar em condições de propor uma massa diversificada de bens de consumo a preços que o consumidor pode contribuir para determinar pela demanda”.8 Criado em 1994 com o apoio financeiro do Banco Mundial e de grandes grupos nacionais, o Instituto Peruano de Economia garante a osmose entre a alta administração pública e os inte-
resses dos empregadores. Esse think tank liberal tornou-se a antecâmara para a elaboração de leis e reformas. Nos bastidores do poder, o fujimorismo configurou um conglomerado público-privado que institucionalizou a promoção dos interesses da elite econômica. O desaparecimento gradual da fronteira entre a esfera pública e os interesses privados preparou os repetidos escândalos de corrupção que ainda abalam o Peru. A destituição de Fujimori e sua fuga para o Japão em 2000 para escapar da justiça não superaram o sistema que ele estabeleceu. O forte crescimento econômico e o aumento do preço dos recursos naturais durante a primeira década do século XXI amorteceram as tentativas de reformar um sistema no qual as classes dominantes estavam se saindo muito bem e fizeram as pessoas esquecerem, por um tempo, a extensão das desigualdades. A crise de representação iniciada nos anos 1980 favoreceu novamente a eleição dos elétrons livres para a chefia do Executivo. Sem uma base social ou um estabelecimento territorial semelhante ao dos partidos tradicionais, eles chegaram ao poder, sustentados por alianças eleitorais instáveis, que não lhes permitiram garantir maioria parlamentar. Portanto, ficaram dependentes de alianças de ocasião na aplicação de suas políticas. Daí uma instabilidade permanente, agravada pela crise institucional provocada pela revelação de redes de corrupção ligadas ao “modelo Fujimori”. Em 19 de junho de 2015, Marcelo Odebrecht, presidente do complexo industrial brasileiro que leva seu nome, foi preso e acusado de corrupção no Brasil.9 O caso assumiu a amplitude de um escândalo internacional quando a empresa negociou com a justiça dos Estados Unidos para encerrar os processos naquele país. A procuradora-geral adjunta do Departamento de Justiça dos Estados Unidos, Sung-Hee Suh, revelou que, dentro da Odebrecht, “havia um departamento que operava de maneira velada, mas totalmente operacional, um ‘departamento da corrupção’, que pagava sistematicamente centenas de milhões de dólares a funcionários corruptos em todo o mundo”.10 Milhares de documentos foram tornados públicos; eles incriminaram várias figuras políticas latino-americanas por atos de corrupção, propina e lavagem de dinheiro na atribuição de contratos públicos à Odebrecht. O sistema peruano, em que o conluio público-privado favorece as negociatas, não resistiu à onda de choque. Entre 2017 e 2019, todos os presidentes da era pós-Fujimori fo-
JANEIRO 2021
SENSO COMUM NEOLIBERAL
.
O antropólogo Ramon Pajuelo identifica outro fator. “O regime político-militar de Fujimori estabeleceu uma espécie de hegemonia cultural neoliberal”, explica-nos esse pesquisador do Instituto de Estudos Peruanos. “As pessoas deixaram de pensar que a possibilidade de sair disso dependia da organização coletiva e de uma representação política popular. A visão otimista do futuro passava a ser associada ao esforço individual, e o sucesso era visto como resultado do espírito empreendedor pessoal.” A construção desse “senso comum neoliberal” muitas vezes tornou inaudível o discurso da esquerda tradicional. Candidata da Frente Ampla (coligação de esquerda) na eleição presidencial de abril de 2016, Verónika Mendoza surpreendeu ao totalizar 18,74% dos votos, perdendo por pouco a condição de ir para o segundo turno. Ela não diz outra coisa: “A esquerda havia abandonado o combate, tendo se refugiado em ONGs ou na universidade. Abandonou o princípio que, no entanto, constitui sua essência: estar ao lado do povo, nos bairros populares, e acompanhar de forma concreta e cotidiana suas lutas. É com base nesse embate que podemos articular um programa político nacional, não o contrário”.12 Em consonância com o descontentamento geral da população, aquela que representará o Juntos
por el Perú nas eleições presidenciais de abril de 2021 propõe a instalação de uma segunda urna para perguntar aos peruanos se, como seus vizinhos chilenos, desejam mudar a Constituição e reorganizar as cartas do sistema que levou o Peru a uma crise permanente. Essa ideia começa a trilhar seu caminho na sociedade. Ela é levada a sério até no mais alto nível do Estado: o novo presidente Sagasti achou necessário declarar que não se tratava de mudar a Constituição por enquanto.13 Por sua vez, o economista Hernando de Soto, histórico defensor do neoliberalismo peruano, convidou Mendoza para um debate público sobre o tema.14 Se a proposta fosse tão incongruente, certamente não teria despertado tanto clamor por parte dos defensores do sistema. A “exceção peruana” pode não mais sê-la... *Romain Migus, jornalista, é fundador do site de notícias sobre a América Latina Les Deux Rives (les2rives.info). 1 L er Renaud Lambert, “La droite latino-américaine dans l’impasse” [A direita latino-americana no impasse], Le Monde Diplomatique, mar. 2020. 2 Amanda Chaparro, “Amérique latine: l’exception péruvienne” [América Latina: a exceção peruana], Le Monde, 27 dez. 2019. 3 Ler Anne-Dominique Correa, “Bolivie, chronique d’un fiasco médiatique” [Bolívia, crônica de um fiasco na mídia], Le Monde Diplomatique, out. 2020. 4 “ Informe final”, “Anexo 2”, Comissão da Verdade e Reconciliação, Lima, 28 ago. 2003. Disponível em: www.cverdad.org.pe.
Quatro presidentes sucederam-se no comando do Peru desde a última eleição. A próxima será em abril de 2021
35
5 L er Michel Chossudovsky, “Pérou ‘ajusté’, Péruviens écrasés” [Peru “ajustado”, peruanos esmagados], Le Monde Diplomatique, out. 1991. 6 Ler Ignacio Ramonet, “Les deux Mario Vargas Llosa” [Os dois Mario Vargas Llosa], Le Monde Diplomatique, nov. 2010. 7 José Comas, “Alberto Fujimori quiere renegociar con el IMF la deuda externa peruana” [Alberto Fujimori quer renegociar com o FMI a dívida peruana], El País, Madri, 13 jun. 1990. 8 Citado por François Denord, Rachel Knaebel e Pierre Rimbert em “L’ordolibéralisme allemand, cage de fer pour le Vieux Continent” [O ordoliberalismo alemão, uma gaiola de ferro para o Velho Continente], Le Monde Diplomatique, ago. 2015. 9 Anne Vigna, “Au Brésil, les ramifications du scandale Odebrecht” [No Brasil, as ramificações do escândalo da Odebrecht], Le Monde Diplomatique, set. 2017. 10 “Odebrecht and Braskem plead guilty and agree to pay at least $3.5 billion in global penalties to resolve largest foreign bribery case in History” [Odebrecht e Braskem se declaram culpadas e concordam em pagar pelo menos US$ 3,5 bilhões em multas globais para resolver o maior caso de suborno estrangeiro da história], comunicado à imprensa do Departamento de Justiça dos Estados Unidos, Washington, DC, 21 dez. 2016. 11 “Conclusiones generales del inform final de la TRC” [Conclusões gerais do informe final da CVR], parágrafo 103, Comissão da Verdade e Reconciliação, Lima, 2003. 12 “ Verónika Mendoza: ‘Il faut ouvrir un débat politique avec la population, mais à partir de ses propres réalités et de son propre langage’” [Verónika Mendoza: “Devemos abrir um debate político com a população, mas partindo de suas próprias realidades e de sua própria linguagem”], Venezuela en Vivo, 21 out. 2016. Disponível em: www.romainmigus.info. 13 Marco Aquino e Marcelo Rochabrun, “Presidente interino de Perú dice ‘no es el momento’ de plantear una nueva Constitución” [Presidente interino do Peru diz que “não é hora” de propor uma nova Constituição], Reuters, 20 nov. 2020. 14 Hernando de Soto, “#DebateConstitución – Verónika Mendoza y Hernando De Soto”, YouTube, 21 nov. 2020.
© Diego Delso/Wikimedia
ram acusados de enriquecimento ilegal. Toledo, Humala e Kuczynski tiveram de responder por crimes de corrupção diante da justiça. O assunto deu uma guinada trágica no caso do ex-presidente García: quando a polícia chegou à sua casa para prendê-lo, ele pegou seu Colt Anaconda e apontou a arma para si próprio. Esse quadro levantou uma questão: enquanto as ruas exigiam “vamos mandá-los embora”, como foi que o protesto popular não encontrou uma tradução eleitoral? Várias razões explicam isso. Como apontou a Comissão da Verdade e Reconciliação,11 Fujimori instrumentalizou o conflito armado para desacreditar ou perseguir seus adversários, acusados de cumplicidade com o terrorismo ou de fazer apologia dele. Em uma sociedade traumatizada pela guerra, esse estigma jogou a esquerda “radical” para a marginalidade, segundo a opinião pública, quando seus representantes não foram simplesmente colocados na prisão. Ao mesmo tempo, Fujimori cimentou o clientelismo por meio do Ministério da Presidência. Essa estrutura, alimentada pelo dinheiro das privatizações, era responsável por distribuir ajudas às famílias pobres, sem passar pelos canais institucionais do Estado. Tal dispositivo garantiu a Fujimori um apoio significativo nos meios populares.
Le Monde Diplomatique Brasil
.
36
Le Monde Diplomatique Brasil JANEIRO 2021
LIVRE COMÉRCIO E MEIO AMBIENTE
O acordo UE-Mercosul e o Cerrado Tratado tende a reforçar o modelo de dependência pós-colonial de exportação de commodities e importação de industrializados, além de impactar importantes políticas de fortalecimento da agricultura familiar e tradicional e programas de compras públicas, que já vêm sendo sucateados. Para o Cerrado,alvo da expansão da captura de terras, seria uma verdadeira catástrofe POR EMMANUEL PONTE E MAUREEN SANTOS*
D
POR QUE COLOCAR O CERRADO NO CERNE DESTE DEBATE? É importante localizar melhor do que se trata alguns capítulos da parte comercial do acordo UE-Mercosul. Em seu capítulo de bens, privilegia a redução e eliminação de tarifas, assim como a ampliação de cotas de carne, etanol, entre outros, cuja produção figura como principal vetor do desmatamento da Amazônia e do Cerrado e da maior parcela das emissões de gases de efeito estufa (GEE) do Brasil. O modelo de produção dessas commodities, baseado em grandes latifúndios para pecuária e monocultura, está no centro dos conflitos de terra, ameaçando direitos de povos indígenas, comunidades tradicionais e camponeses. Embora seja inquestionável a importância da Floresta Amazônica, parece evidente o lugar de invisibilidade do Cerrado no debate. Estamos falando de uma região que, segundo o geógrafo Carlos Walter Porto-Gonçalves, ocupa 36% do território nacional –
© Andressa Zumpano/Acervo ActionAid Brasil
Entre 2003 e 2018, cerca de 49% dos conflitos de terra no campo brasileiro aconteceram no Cerrado, conforme os dados sistematizados anualmente pela Comissão Pastoral da Terra.2 Mais recentemente, esses conflitos aumentaram de forma acelerada – especialmente na região hoje chamada de Matopiba. 3 Estamos falando do processo de um modelo agropecuário que constrói o vazio por sua própria mecânica ao destruir a fauna e a flora e provocar a expulsão de comunidades campesinas, povos indígenas e populações tradicionais. Essa destruição é o que produz esse vazio e institui a justificativa de sua atuação.
.
esde que foi anunciado o texto final do acordo de associação entre a União Europeia e o Mercosul, em junho de 2019, diversos debates tomaram corpo. De um lado, a visão corporativa, que enxerga com bons olhos o incremento dos indicadores econômicos como o PIB, resultado de mais exportações, e alguma preocupação com a concorrência no mercado interno, com produtos industrializados europeus entrando no país com preços mais competitivos. De outro, visões críticas que elencam possíveis impactos do acordo sobre os direitos humanos e territoriais, o meio ambiente e o clima, a agricultura familiar e camponesa, assim como para o mundo do trabalho. O acordo entre os blocos é dividido em três textos: comercial, cooperação e diálogo político. Embora apresentado como um pacto do século XXI que levaria seus países-membros a padrões ambientais mais altos, o acordo não avança em como isso seria possível de fato, trazendo capítulos contraditórios entre si e com potenciais violações socioambientais para o Cerrado brasileiro e seus povos.
PERSPECTIVAS CASO O ACORDO SEJA RATIFICADO
O modelo de produção das commodities está no centro dos conflitos de terra quando consideradas suas áreas de transição – e se conecta a todos os outros biomas, com exceção dos Pampas do Sul. É o segundo maior bioma do país, conhecido como o berço das águas por abrigar três grandes aquíferos – Guarani, Bambuí e Urucuia –, além de importantes bacias hidrográficas que abastecem diversas regiões da América Latina. Trata-se de uma das regiões ecológicas mais antigas, considerada a savana mais biodiversa do mundo. Essa savana brasileira apresenta uma variedade enorme de paisagens, por isso por vezes utilizamos seu nome no plural: cerrados.1 Essa diversidade não se dá apenas em termos ecológicos: no Cerrado temos também uma riqueza extensa de modos de vida, culturas e ancestralidades. São raizeiras, geraizeiros, vazanteiros, retireiros, brejeiros, apanhadoras de flores sempre-vivas, pescadores, ribeirinhos, extrativistas, quebradeiras de coco-babaçu, quilombolas, mais de oitenta povos indígenas, entre muitos outros. Uma infinidade de identidades e modos de vida que historicamente construíram
seu bem viver de forma a proteger e disseminar os cerrados. Sua própria forma de autoidentificação denota a relação de profunda conexão e intimidade com a natureza. Nesse sentido, a importância do Cerrado para a manutenção da vida de forma ampla é fundamental. Apesar disso, um movimento de destruição e degradação da região em pouco mais de meio século resultou em mais de metade dos cerrados desmatados. Esse movimento promove um deslocamento do Cerrado como sustento da vida e da água, entremeado aos diferentes saberes e fazeres de seus povos, para um Cerrado alvo de um desenvolvimento restrito, concentrador, que reduz seus territórios e a pluralidade de sua sociobiodiversidade ao domínio de um sistema produtivo monocultural. Trata-se de um modelo agroindustrial voltado às exportações e baseado em transgênicos, agrotóxicos e concentração fundiária. É precisamente esse modelo que o acordo comercial que pressiona a demanda pela produção de commodities tende a aprofundar.
Diversos estudos e projeções evidenciam pontos que colocam o acordo União Europeia-Mercosul como um catalisador de impactos negativos que já estão em vigor pelo modelo de desenvolvimento agrário exportador, aprofundado pelo desmantelamento de políticas socioambientais levado a cabo pelo governo Bolsonaro. Esse modelo carrega consigo elementos que caminham em conjunto: grilagem, desmatamento, monocultura, agrotóxicos, conflitos, expulsão de comunidades. Os efeitos perversos dessa combinação já são conhecidos: perda de biodiversidade, contaminação do solo e dos mananciais, emissão de gases de efeito estufa e um enorme contingente populacional que tem sua cultura, modos de vida e segurança e soberania alimentar violentamente impactados. Todas essas tendências devem se aprofundar com o aumento da demanda gerada pelo acordo. O Brasil é o maior consumidor de agrotóxicos (em volume) e o maior comprador dos chamados “pesticidas altamente perigosos” do mundo – muitos deles banidos em outras regiões, como nos países da própria União Europeia. Ironicamente, a Europa é uma das maiores exportadoras de agrotóxicos para o Brasil, inclusive daqueles cuja utilização ela mesma não permite. O tratado pretende reduzir em 90% as tarifas sobre esses químicos.4 O Estudo de Impacto de
JANEIRO 2021
Além disso, como evidenciado pelo Relatório Anual do Desmatamento no Brasil, elaborado pelo MapBiomas em 2019, o Cerrado tem sido desmatado com mais rapidez do que a Amazônia, avançando inclusive sobre áreas protegidas, terras indígenas e territórios quilombolas. Só em 2019, segundo o estudo, o Cerrado perdeu 408,6 mil hectares, uma área equivalente a 3,4 municípios do tamanho do Rio de Janeiro. Olhando especificamente para as queimadas, outro levantamento, realizado pelo Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe), revelou que mais da metade do fogo que se alastrou pelo Cerrado estava concentrado no Matopiba, região onde se concentra o avanço do agronegócio sobre vegetação nativa.10 É precisamente do Matopiba e do Cerrado mato-grossense (que faz divisa com Pantanal e Amazônia) que vem metade da soja brasileira exportada para a União Europeia. Estudos de cadeia de suprimentos, que buscam verificar se a origem dos produtos tem relação com desmatamento, apontam a soja como o produto que representa 47% do risco de desmatamento ligado à compra de commodities da Europa. As análises apontam ainda que 85% da soja proveniente do Matopiba está associada a desmatamento.
.
Sustentabilidade (Sustainability Impact Assessment), produzido pela London School of Economics and Political Science (LSE) e encomendado pela União Europeia, projeta um aumento de 47,6% de exportação de pesticidas a partir do acordo.5 Segundo dados oficiais de 2019, na última década o Brasil registrou 40 mil casos de contaminação6 (e são subnotificados). Ao mesmo tempo, tem o recorde de liberação de novos químicos pelo atual governo, com 474 apenas em 2019, e, em fins de novembro, 2020 já contava 404 novas liberações.7 A questão sobre os agrotóxicos impõe ainda outro questionamento: como o aumento do uso de agrotóxicos dialoga com as barreiras fitossanitárias europeias? Haveria um duplo padrão de produção, em que o Brasil separaria as mercadorias “tipo exportação”, com menos químicos, e a de “consumo interno”, com menos rigidez e consequentemente mais risco para os brasileiros? Ou a Europa flexibilizaria suas legislações para consumir esses produtos? 8 De uma forma ou de outra, o ônus socioambiental ligado à contaminação e perda de biodiversidade ainda se assentaria no Mercosul. Um efeito cascata do uso de pesticidas e sementes geneticamente modificadas, para além da contaminação dos solos e a mortandade das abelhas, é a contaminação da produção de agricultores familiares, camponeses, povos e comunidades tradicionais – em especial daquelas que produzem de forma agroecológica. O veneno utilizado nas monoculturas penetra no solo e se espalha pelo ar, contaminando rios que são rega de roças e destruindo a biodiversidade da qual depende o cultivo ecológico. O uso das sementes transgênicas, em especial de milho e soja, contamina as variedades de sementes crioulas de agricultores que as armazenam e as reproduzem por gerações, contribuindo com a conservação de um patrimônio genético brasileiro, mas que se perde ao entrar em contato com a variedade modificada. Em relação à questão climática, segundo estudo9 conduzido pela organização Grain, que analisa a ampliação de cotas previstas no “Acordo para carne bovina, queijo, etanol, fórmula infantil, aves, arroz, leite em pó desnatado e açúcar”, a liberalização comercial tende a impulsionar o comércio das principais commodities agrícolas causadoras das mudanças climáticas, o que levará a um aumento de 8,7 milhões de toneladas por ano nas emissões de GEE. Isso equivale praticamente às emissões anuais de uma cidade de 4 milhões de habitantes, como Belo Horizonte.
RESISTÊNCIAS AO TRATADO Diante dessas questões, povos indígenas, populações campesinas e comunidades tradicionais, junto de ONGs e organizações internacionais, têm ultrapassado as barreiras da institucionalidade para tentar barrar o acordo. Tais grupos denunciam a falta de consulta sobre os termos da negociação – realizada apenas entre as delegações oficiais entre as partes e sem nenhum processo participativo. Importante destacar que o Brasil é signatário da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que regulamenta o direito de Consulta Livre, Prévia e Informada (CLPI) a grupos que serão afetados por grandes projetos e decisões políticas. No texto do acordo há uma breve menção a um “compromisso das partes em promover o envolvimento das comunidades locais e dos povos indígenas nas cadeias de fornecimento de produtos florestais” e à necessidade de consentimento dessas populações, mas tal redação claramente configura uma compreensão equivocada do direito à CLPI, que envolve processos participativos com base em protocolos construídos pelas próprias comunidades, e coloca os sujeitos em questão como mera mão de obra em favor dos objetivos do acordo, sem reconhecer o impacto em sua cultura e seus modos de vida. Em setembro e outubro de 2019,
duas delegações, uma de lideranças indígenas da Articulação Brasileira de Povos Indígenas do Brasil (Apib) e outra de lideranças de quebradeiras de coco-babaçu, do Movimento Interestadual de Quebradeiras de Coco-Babaçu e do Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais, viajaram à Europa para alertar autoridades, empresas e sociedade europeia sobre as violências cometidas contra povos indígenas e populações tradicionais. Em meio às denúncias, destacava-se a ausência de consultas no processo de formulação do acordo com a União Europeia e a certeza de que a medida aprofundaria os conflitos. À época, Sonia Guajajara, líder da Apib, disse em entrevista para a agência de notícias internacional Reuters que “[assinar] o acordo seria fechar os olhos para o que está acontecendo no Brasil. Seria a institucionalização do genocídio”.11 Em dezembro de 2020, a Frente contra o Acordo Mercosul-União Europeia e EFTA-Mercosul lançou seu manifesto,12 que reitera que “a abertura comercial, nos termos deste acordo, trará impactos socioeconômicos, trabalhistas, fundiários, territoriais, ambientais e climáticos significativos para o Brasil e os demais países do Mercosul, tendo como maiores beneficiários as empresas transnacionais interessadas na importação de matérias-primas baratas, na privatização de serviços e na ampliação de mercado para seus produtos industrializados”. A carta, assinada por mais de cem ONGs, articulações indígenas e de comunidades tradicionais, movimentos sociais e sindicais, ainda classifica as alusões às preocupações ambientais contidas no acordo como retóricas, já que seu capítulo Comércio e Desenvolvimento Sustentável não fornece mecanismos para sua exigibilidade. A essas vozes brasileiras, unem-se as de ONGs e setores políticos mais progressistas da Europa, que pressionam para que seus líderes assumam que o lastro de violação de direitos humanos e destruição ambiental estejam calculados na pegada de impacto socioambiental europeu. Recentemente, negociadores do Mercosul e da União Europeia sinalizaram que se encontrarão novamente no início de 2021 para aprofundar as discussões sobre cláusulas socioambientais no acordo, tendo em vista as inúmeras críticas e a visibilidade internacional das queimadas, índices de desmatamento e retrocessos ambientais em curso no Brasil. No entanto, é importante lembrar que o acordo privilegia relações comerciais, e não de proteção climática ou de direitos humanos. Não há como cláusulas ambientais, simplesmente
Le Monde Diplomatique Brasil
37
apensadas ao mesmo projeto, mitigarem os profundos impactos gerados pelo modelo expresso na forma e instrumentos presentes no acordo. Nesse sentido, o acordo União Europeia-Mercosul tende a reforçar o modelo de dependência pós-colonial de exportação de commodities e importação de industrializados, além de impactar significativamente importantes políticas sociais de fortalecimento da agricultura familiar e tradicional e programas de compras públicas, que já vêm sendo sucateados. Para o Cerrado, alvo da expansão da captura de terras, seria uma verdadeira catástrofe, já que está calcado em um modelo que mina tanto o bem viver de povos indígenas e populações tradicionais e camponesas quanto a possibilidade de alterar as políticas e práticas produtivas nacionais para as próximas duas décadas. *Emmanuel Ponte é especialista em campanhas da ActionAid Brasil, membro da coordenação executiva da Campanha Nacional em Defesa do Cerrado e mestrando em Análise de Políticas Internacionais da PUC-Rio e Maureen Santos é coordenadora do Grupo Nacional de Assessoria da Fase, membro do Grupo Carta de Belém e professora do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio. 1 V er mais em Carlos W. Porto-Gonçalves, Dos cerrados e de suas riquezas: de saberes vernaculares e de conhecimento, Rio de Janeiro e Goiânia, Fase e CPT, 2019. 2 Ver em CPT, Os custos ambientais e humanos do negócio de terras: o caso do Matopiba , 2018. 3 M atopiba é conhecida como a região que representa a mais recente fronteira de expansão do agronegócio, pela junção de parte dos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia. 4 Dados apresentados por Thomas Fritz em Acordo UE-Mercosul: ameaça para a proteção do clima e dos direitos humanos (Misereor, Greenpeace Alemanha, Dreikönigsaktion-Hilfswerk der Katholischen Jungschar-DKA, CIDSE, 2020). O autor ainda aponta que as plantações de soja consomem mais da metade dos agrotóxicos vendidos no Brasil, sendo 90% dessa produção composta por variedades transgênicas. O agrotóxico mais utilizado é o herbicida glifosato. 5 V er Report for the EU Mercosur Association Agreement (AA) Sustainability Impact Assessment (SIA) [Avaliação do Impacto de Sustentabilidade (SIA) do acordo EU-Mercosul], The London School of Economics and Political Science, 2020. 6 Globo Rural, “Brasil registra 40 mil casos de intoxicação por agrotóxicos em uma década”, 31 mar. 2019. 7 Rikardy Tooge, “Governo libera o registro de 42 agrotóxicos genéricos para uso dos agricultores”, G1, 27 nov. 2020. 8 M aureen Santos, “Acordo União Europeia-Mercosul e a problemática relação entre clima e comércio”, Heinrich-Böll-Stiftung, 18 nov. 2020. 9 Grain, “Acordo comercial União Europeia-Mercosul intensificará a crise climática provocada pela agricultura”, 25 nov. 2019. 10 Sarah Fernandes, “Destruição do Cerrado em 2019 foi mais rápida que na Amazônia e avançou sobre áreas protegidas”, De Olho nos Ruralistas, 11 jun. 2020. 11 Fabio Teixeira, “ENTREVISTA-Sônia Guajajara pressiona UE a bloquear acordo com Brasil por mortes de indígenas”, Reuters, 4 nov. 2019. 12 Para ler a carta: http://bit.ly/3p4gZ4f.
38
Le Monde Diplomatique Brasil JANEIRO 2021
MISCELÂNEA
livros
internet
U
m diário vivíssimo da luta de classes no Brasil. Esse livro, organizado pela Editora Expressão Popular, reúne cerca de sessenta artigos escritos por Roberto Amaral entre 2014 e 2020. Amaral é um dos poucos que desde 2014 percebia a crescente ameaça fascista na sociedade brasileira, por isso mesmo essa coletânea de artigos é instigante e precisa. O incansável militante vai à gênese da formação brasileira para explicar o Brasil de hoje, sempre atento às lições dos tempos de Getúlio, Lott, Brizola e Lacerda. Em cada movimento de resgate do passado para entender o presente, o autor submete o leitor a um coerente exame da história do país, confrontando a desigualdade social com o caráter antiprogresso de nossa classe dominante. Em essência, Amaral demonstra a reprodução e a vigência da relação entre casa-grande e senzala no Brasil de hoje. Como explicar a força do bolsonarismo? Como explicar a fragmentação do campo progressista? Como explicar a desorganização da esquerda? Como se tivesse viajado no tempo, já em 18 de março de 2016 o autor escreveu: “o projeto em curso não se limitará à eventual deposição de Dilma, pois
RESPONSABILIDADE E CORRUPÇÃO Renato Polillo, Contracorrente
N
ão é exagero dizer que a Lei Anticorrupção fez emergir uma nova disciplina no ordenamento jurídico brasileiro: o Direito da Conformidade. Um dos pontos mais debatidos sobre essa lei é a previsão de responsabilidade objetiva da pessoa jurídica – isto é, a possibilidade de responsabilização de empresas e entidades equiparadas em casos de ilícitos administrativos estabelecidos na lei, independentemente da comprovação de dolo ou culpa sobre os atos praticados em seu benefício por administradores, empregados ou intermediários. É em meio a esse debate que Renato Polillo faz, em Responsabilidade e corrupção, um magistral estudo crítico sobre o tema. Suas páginas oferecem mais que uma análise da Lei Anticorrupção e da
.
HISTÓRIA DO PRESENTE: CONCILIAÇÃO, DESIGUALDADE E DESAFIOS Roberto Amaral, Expressão Popular
trata-se, através de golpe de Estado de novo tipo [...], de implantar um governo politicamente autoritário, socialmente regressivo e economicamente neoliberal-ortodoxo, pró-Estados Unidos”. Há exemplo mais certeiro disso do que o atual governo Bolsonaro? Impossível não reconhecer a precisão e a lucidez política do ex-ministro de Ciência e Tecnologia do governo Lula, há mais de quatro anos, sobre qual é o projeto da classe dominante para o país. Examinar e confrontar esse projeto autoritário e violento da casa-grande é uma necessidade civilizatória. É preciso entender o caminho até aqui percorrido para criar condições de mudarmos esse rumo. Se o programa neoliberal, derrotado nas urnas em 2014, foi adotado por Levy, Meirelles e segue com Guedes, é porque Cunha, Aécio, Temer, Moro, Villas Bôas e seus pares agiram como legítimos representantes da classe dominante antipovo e autoritária, instalando o regime da ditadura constitucional ao corromperem o Estado democrático de direito. Então, qual é a saída? Como derrotar a corrupção e a violência da classe dominante que só fazem agudizar os problemas do povo? Diante desse caráter golpista da ordem burguesa, não resta outro caminho aos democratas: disputar a consciência das massas. É no debate com o povo de qual país queremos que reorganizaremos e construiremos a força social necessária para democratizar nosso Brasil. Além de um diário vivo, História do presente é bússola. [Giovani del Prete] Bacharel em Relações Internacionais pela UFABC, é militante e trabalhador internacionalista junto a movimentos populares do mundo todo..
responsabilidade objetiva nela prevista; elas trazem também uma ampla investigação do próprio instituto de responsabilização da pessoa jurídica em nosso sistema jurídico. Ele apresenta o funcionamento da Lei Anticorrupção por meio de um diálogo entre o direito civil e o direito administrativo, passando pelas bases históricas da criação da norma e do próprio combate internacional à corrupção, com análises críticas que estimulam a reflexão do leitor sobre como o Brasil vem combatendo os atos de corrupção aqui praticados, decorrentes de uma relação bastante complexa e ainda pouco transparente entre os sistemas corporativo empresarial e de governo. [Valdir Simão] Advogado e consultor em gestão pública e governança corporativa. Auditor-fiscal da Previdência Social e da Receita Federal do Brasil por 29 anos, ocupou vários cargos na administração pública, entre eles os de ministro do Planejamento, Orçamento e Gestão, ministro-chefe da Controladoria-Geral da União, secretário da Fazenda, presidente do INSS, secretário adjunto da Receita Federal e secretário executivo da Casa Civil da Presidência da República..
NOVAS NARRATIVAS DA WEB Sites e projetos que merecem seu tempo ÓPERA E MACHINE LEARNING David Li é um artista digital que cria animações interativas, como um rosto elástico do personagem Morty, para o canal Adult Swim (animação que esteve no Festival Internacional de Linguagem Eletrônica do Brasil em 2018), ou uma experiência de composição de óperas em tempo real por meio de machine learning, para o Google Arts & Culture. O projeto, chamado Blob Opera, mistura experiências anteriores dele com música de coral, plasticidade de materiais e interatividade. Impressionante e divertido, para todas as idades. https://david.li
VIDAS NEGRAS IMPORTAM A cada 23 minutos um jovem negro é assassinado no Brasil. Isso significa que mais de 23 mil pessoas negras de 15 a 29 anos são assassinadas por ano no país. Os dados são do Mapa da Violência, produzido pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais. Gama Revista, a agência de jornalismo Alma Preta, Corinthians e Atlético Mineiro uniram-se para dar nomes e rostos às estatísticas. Lá você conhecerá Rogério, 19 anos, “o rapaz que sonhava em ter uma barbearia e foi morto com dois tiros no dia de seu aniversário”. Ou Ágata, 8 anos, “a menina que amava ler e estudar, ensinava inglês para o tio, jogava xadrez e sonhava em ser bailarina”. https://vidasnegras.gamarevista.com.br
CAPELA SISTINA 360° O site do Vaticano publicou uma visita virtual à Capela Sistina, em 360 graus e ótima qualidade de imagem. Uma visita como essa pode ser quase considerada melhor do que ver ao vivo, quando geralmente há muita gente e se tem pouco tempo e dificuldade de observar detalhes. Sem contar a pandemia, obviamente. A capela foi pintada pelos maiores artistas da Renascença, incluindo Michelangelo, Rafael, Perugino e Sandro Botticelli. Poderia ter informações interativas em cada arte, mas, mesmo tendo apenas uma boa fotografia, é um passeio virtual imperdível. http://www.vatican.va/various/ cappelle/sistina_vr [Andre Deak] Diretor do Liquid Media Lab, professor de Jornalismo e Cinema na ESPM, mestre em Teoria da Comunicação pela ECA-USP e doutorando em Design na FAU-USP.
JANEIRO 2021
CANAL DIRETO
Le Monde Diplomatique Brasil
39
SUMÁRIO LE MONDE
diplomatique
Capa
BRASIL
Ano 14 – Número 162 – Janeiro 2021 www.diplomatique.org.br
As duas capas estão maravilhosas. Lila Cruz arrasa sempre! Bel Ribeiro, via Instagram
Mais uma capa incrível! Laiani Antonieto, via Instagram
OLHA ESSAS CAPAS! Como sempre, o dinheiro mais bem gasto do meu mês. Lara Caldas, via Twitter
02
Quem será o próximo inimigo? Por Serge Halimi
03
Indispensável Diplô! Raquel Rolnik, via Twitter
“A América está de volta, pronta para governar o mundo”
04
Cada capa do Le Monde Diplomatique é uma arte diferente, sou apaixonada.
Editorial
Editor Luís Brasilino
Lições aprendidas sobre a democracia brasileira Por Silvio Caccia Bava
Editora-web Bianca Pyl
Capa
Editor de Arte Cesar Habert Paciornik
A pandemia e o agronegócio no Brasil Por Allan Rodrigo de Campos Silva
Estagiária Samantha Prado
Covid-19 na trilha do trabalho precário e vulnerável: o caso dos frigoríficos Por Fernando M. Heck e Lindberg N. Júnior
Ana Fer, via Twitter
Todo mês uma arte de capa linda do Diplô. Guilherme, via Twitter
Geopolítica da fome Por José Raimundo Sousa Ribeiro Junior
Edição linda, edição formosa! Nick Faria, via Twitter
Pan-demônio e Sars-Cov-2 Por Larissa Bombardi, Immo Fiebrig e Pablo L. M. Nepomuceno
As ilusões do decrescimento
A produção social de doenças e de crises Por Cássio Arruda Boechat
Importante a ideia de parar de crescer em vez do contrário.
O mito da biossegurança Por Lucile Leclair
Débora Murta Braga, via Instagram
14
Grande margem para os governos locais
16
Keir Starmer, novo líder trabalhista
18
A campanha da City de Londres pelo Brexit
20
O acordo comercial mais importante do mundo
Louco para ver a manchete: “Um bolsonarismo sem Bolsonaro”. Victor Teramoto, via Instagram
Para nos prepararmos também para um bolsonarismo sem Bolsonaro. Fernando Nicolazzi, via Twitter
Periferias de São Paulo: conjunturas e pós-pandemia As candidaturas coletivas são um avanço, porém devemos lembrar que as eleições no Brasil sempre foram fraudadas; a mais recente foi a de 2018, na qual o candidato que a venceria para presidente foi preso e teve seus direitos cassados. “A única coisa que os trabalhadores têm a perder com a extinção do capitalismo são suas correntes.” (Karl Marx) Orlando F. Filho, por e-mail
Participe de Le Monde Diplomatique Brasil : envie suas críticas e sugestões para diplomatique@diplomatique.org.br As cartas são publicadas por ordem de recebimento e, se necessário, resumidas para a publicação. Os artigos assinados refletem o ponto de vista de seus autores. E não, necessariamente, a opinião da coordenação do periódico.
Capa: © Cesar Habert Paciornik
Os estados desunidos da América Por Richard Keiser
.
Um trumpismo sem Donald Trump
Expurgo no Reino Unido Por Owen Hatherley A era das finanças autoritárias Por Marlène Benquet e Théo Bourgeron Bomba de livre-cambista na Ásia Por Martine Bulard
22
Mudanças na economia precipitadas pela Covid-19
24
A revolução fez 10 anos
Outro mundo impossível é possível Por Laurent Cordonnier Na Tunísia, as brasas persistentes do espírito de revolta Por Olfa Lamloum
26
Disputas que dividem as classes populares
28
Moscou consolida parcerias comerciais e de segurança
32 34
O impasse das políticas identitárias Por Stéphane Beaud e Gérard Noiriel
38
Revisão Lara Milani e Maitê Ribeiro Gestão Administrativa e Financeira Arlete Martins Assinaturas Leila Alves assinaturas@diplomatique.org.br Tradutores desta edição Carolina M. de Paula, Frank de Oliveira, Lívia Chede Almendary, Rita Grillo e Wanda Brant Conselho Editorial Adauto Novaes, Amâncio Friaça, Anna Luiza Salles Souto, Ariovaldo Ramos, Betty Mindlin, Claudius Ceccon, Eduardo Fagnani, Heródoto Barbeiro, Igor Fuser, Ivan Giannini, Jacques Pena, Jorge Eduardo S. Durão, Jorge Romano, José Luis Goldfarb, Ladislau Dowbor, Maria Elizabeth Grimberg, Nabil Bonduki, Raquel Rolnik, Ricardo Musse, Rubens Naves, Sebastião Salgado, Tania Bacelar de Araújo e Vera da Silva Telles. Assessoria Jurídica Rubens Naves, Santos Jr. Advogados Escritório Comercial Brasília Marketing 10:José Hevaldo Rabello Mendes Junior Tel.: 61. 3326-0110 / 3964-2110 jh@marketing10.com.br Le Monde Diplomatique Brasil é uma publicação da associação Palavra Livre, em parceria com o Instituto Pólis. Rua Araújo, 124 2º andar – Vila Buarque São Paulo/SP – 01220-020 – Brasil Tel.: 55 11 2174-2005 diplomatique@diplomatique.org.br www.diplomatique.org.br Assinaturas: Leila Alves assinaturas@diplomatique.org.br Tel.: 55 11 2174-2015 Impressão D’ARTHY Editora e Gráfica Ltda. CNPJ: 01.692.620/0001-00, Parque Empresarial Anhanguera - Rod. Anhanguera Km 33 - Rua Osasco, 1086, Cep: 07753-040 - Cajamar - SP
O retorno da Rússia à África: uma ilusão de ótica? Por Arnaud Dubien
LE MONDE DIPLOMATIQUE (FRANÇA)
Uma tese popular entre os intelectuais ocidentais
Presidente, Diretor da Publicação Serge HALIMI
A Alemanha Oriental era antissemita? Por Sonia Combe Um país espremido pelas “reformas” da década de 1990
O torniquete presidencial peruano Por Romain Migus
36
DIRETORIA Diretor da edição brasileira e editor-chefe Silvio Caccia Bava Diretores Anna Luiza Salles Souto, Maria Elizabeth Grimberg e Rubens Naves
Livre comércio e meio ambiente
O acordo UE-Mercosul e o Cerrado Por Emmanuel Ponte e Maureen Santos Miscelânea
Fundador Hubert BEUVE-MÉRY
Redator-Chefe Philippe DESCAMPS Diretora de Relações e das Edições Internacionais Anne-Cécile ROBERT Le Monde diplomatique 1 avenue Stephen-Pichon, 75013 Paris, France secretariat@monde-diplomatique.fr www.monde-diplomatique.fr Em julho de 2015, o Le Monde diplomatique contava com 37 edições internacionais em 20 línguas: 32 edições impressas e 5 eletrônicas. ISSN: 1981-7525
. Em 2020 assistimos, como se repete há séculos, a ataques racistas em diversos países. Foram centenas de pessoas vitimadas pelo preconceito enraizado na sociedade ocidental – Ágatha, João Pedro, João Alberto, Iago, João Vitor, George Floyd, entre tantos outros. Neste momento delicado, em que todas as ações de ativismo estiveram prejudicadas pela necessidade de distanciamento social imposto pela pandemia, a Viração Educomunicação mediou a produção de um manifesto antirracista, produzido por um grupo de adolescentes e jovens de todas as regiões do Brasil, que estão engajados nas mais diversas lutas. Esse manifesto multimídia ocupa a edição nº 117 da Revista Viração, lançada de forma virtual em novembro, mês no qual celebramos as lutas do povo negro por igualdade e paz. São reportagens, entrevistas, crônicas, podcasts, vídeos, imagens que abordam muitas intersecções das discussões sobre o racismo estrutural que atravessa as nossas vivências. Pensar questões raciais em um país que se estrutura por raça e gênero é um convite para discutir projetos de sociedade descolonizada que questione as perspectivas hegemônicas. Essa edição da revista representa um memorial que honra todEs que vieram antes de nós e resistiram para que a nossa história e dignidade fossem (re)conhecidas.
Assista o vídeo “Manifesto antirracista”
facebook.com/ viracao.educomunicacao @viracaoeducom @viracaoeducom contato@viracao.org