National Geographic Portugal #236 (Novembro 2020)

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N AT I O N A L G E O G R A P H I C . P T

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N OV E M B RO

2020

UM NOVO MUNDO, UM NOVO FUTURO

5

603965 000006

00236

N.º 236 MENSAL €4,95 (CONT.)

omo a c nc a, a natureza e a cultura vão mudar

O S C I E N T I S TA S , O S N O S S O S N OVO S S U P E R- H E RÓ I S

O P O RT U N I DA D E PA R A SA LVA R O P L A N E TA

UM V Í RU S P Õ E A H UM A N I DA D E À P ROVA



N AT I O N A L G E O G R A P H I C

N OV E M B RO 2 02 0

S U M Á R I O

ESPECIAL UM MUNDO VIRALIZADO

2

16

26

Nos pisos hospitalares destinados a doentes com COVID-19, os profissionais de saúde cada vez mais exaustos atendem os doentes e ouvem os seus medos. “Se não o fizer, quem o fará?”, pergunta uma enfermeira.

A comunidade científica continua a tentar compreender o coronavírus e a lutar contra a pandemia, mas o processo tem avanços e recuos. A ciência é assim, mas a única forma de derrotar o vírus é confiando nela.

A pandemia que lotou os cemitérios também esvaziou as ruas, forçando os habitantes a recolher a casa. Os indonésios só abandonaram o lar para assistir a cerimónias religiosas e para recolher alimentos.

Dossier: Bélgica

Confiança na ciência

Dossier: Indonésia

F OTO G RA F I A S

T E X TO D E RO B I N M A R A N T Z H E N I G

F OTO G RA F I A S

D E C É D R I C G E R B E H AY E

F OTO G RA F I A S D E G I L E S P R I C E

D E MU H A M M A D FA D L I

PETER VAN AGTMAEL / MAGNUM PHOTOS


R E P O R TA G E N S

S E C Ç Õ E S

36

A S UA F OTO DOSSIER: VIVER C OM A C OV I D - 1 9

Reflexão sobre a natureza

A pandemia recordou-nos a urgência de cessar os maus-tratos que infligimos ao planeta. A nossa reacção ao vírus só terá efeitos duradouros sobre o ambiente se modificarmos comportamentos e modo de pensar. T E X TO D E RO B E RT KU N Z I G F OTO G RA F I A S D E J O H N C H I A RA

50

EXPLORE Apresentação Como o vírus ataca A música, uma semente de esperança GRANDE ANGULAR Pragas e pestes do passado E D I TO R I A L N A T E L E V I SÃO P RÓX I M O N ÚM E RO

Dossier: Jordânia

As severas medidas de isolamento ajudaram a controlar o número de mortes por COVID-19 na Jordânia, mas agravaram o desemprego e generalizaram as carências, sobretudo para os refugiados concentrados em campos sobrelotados. F OTO G RA F I A S D E MO I S E S SA M A N

70

Na capa No passado dia 22 de Junho, o Gran Teatro de Barcelona reabriu as portas depois do confinamento perante uma plateia singular: o público era constituído por 2.292 plantas. EMILIO MORENATTI / AP / GTRES

Repensar a cultura

A pandemia afectou os nossos modos de vida e de trabalho e sublinhou a necessidade de abordar as desigualdades sociais. Para sobreviver a este vírus, teremos de criar sociedades mais justas e igualitárias.

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T E XTO D E P H I L L I P MO R R I S F O T O G R A F I A S D E PA R I D U K O V I C

80

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Retratos de família

Um fotógrafo percorreu os Estados Unidos para registar as histórias das famílias que perderam os seus entes queridos devido à COVID-19 ou a complicações relacionadas com a doença. Encontrou rostos e biografias escondidos pelo manto estatístico impensável. F O T O G R A F I A S D E WAY N E L AW R E N C E

N AT I O N A L G E O G R A P H I C

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DE CIMA PARA BAIXO: JOHN CHIARA; MOISES SAMAN; PARI DUKOVIC; WAYNE LAWRENCE



V I S Õ E S

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A SUA FOTO

J O Ã O A L M E I D A Em plena época da brama, os veados da serra da Lousã descansam nas florestas mais densas durante o dia.

Com arte, é possível observar as fêmeas a cuidar das crias, amamentando-as, protegendo-as e cuidando da sua pelagem.

P E D R O M AT E U S O incêndio florestal de Oleiros foi um dos piores do ano. Com o fogo extinto, o fotógrafo reparou no contraste

da natureza morta com o vermelho do uniforme do bombeiro, unindo a imensidão de cores vagas e a tristeza das cores perdidas.


D I O G O N Ó B R E G A Há tesouros que permanecem escondidos ou mal conhecidos, mesmo resultando da mão do homem.

A barragem do Varosa, em Lamego é um exemplo. Escondida nas escarpas, reduz o observador a uma escala minúscula.




VISÕES

N AT I O N A L G E O G R A P H I C

ROMPER O DISTANCIAMENTO Depois de mais de dois meses sem qualquer espécie de contacto humano, Mary Grace Sileo (à esquerda), a sua filha, Michelle Grant, e outras pessoas da família


O coronavírus mudou a maneira como vimos a este mundo, como vivemos neste mundo e como partimos deste mundo.

A COVID-19

descobriram uma solução. Penduraram um plástico numa corda de roupa no quintal de Mary, em Wantagh (EUA). Depois, uma de cada lado, abraçaram-se através do plástico. AL BELLO, GETTY IMAGES


AMOR EM TEMPO DE COVID Quando o confinamento foi levantado em Itรกlia, vรกrios rituais tiveram finalmente lugar. Marta Colzani e Alessio Cavallaro puseram mรกscaras, dentro da Igreja de Sรฃo


Vito, em Barzanò, para um dos primeiros casamentos pós-confinamento celebrados em Itália. Em Março, o Vaticano conferiu aos bispos poderes discricionários para planear os serviços religiosos. DAVIDE BERTUCCIO


MORTE EM TEMPO DE COVID Quando as mortes começaram em Bérgamo, uma das cidades italianas mais duramente atingidas, a morgue e o crematório ficaram sobrelotados. O exército foi


mobilizado para transportar os caixões para outras cidades do Norte de Itália. Nesta imagem, trabalhadores de Novara transportam caixões de um camião do exército para o crematório do cemitério. ALEX MAJOLI, MAGNUM PHOTOS


NASCIMENTO EM TEMPO DE COVID A vida nem sempre pode esperar. No fim de Abril, Kim Bonsignore planeara ter o segundo filho num hospital perto de casa, em Manhattan. A sobrelotação


dos hospitais fê-la mudar de ideias e o parto da filha, Suzette, teve lugar na sua sala de estar. A pandemia e a incerteza económica poderão dissuadir os casais de terem mais filhos no futuro próximo. JACKIE MOLLOY


RESILIÊNCIA EM TEMPO DE COVID Após 11 semanas de confinamento total, a província chinesa de Hubei aliviou as restrições para mais de 55 milhões de pessoas. Os moradores foram


saindo aos poucos de casa, quase todos de mรกscara, para retomar actividades anteriormente consideradas rotineiras. Voltaram, cuidadosamente, a usufruir de pequenos prazeres, como danรงar na rua. GETTY IMAGES


ALVÉO L O

INVASÃO VIRAL

SARSCoV-2

O coronavírus dissemina-se através de partículas respiratórias. A infecção ocorre na passagem nasal e pode afectar constituintes mais profundos dos pulmões, os alvéolos.

Alvéolos

Célula Tipo II

Capilar

Cavidade alveolar Célula Tipo I

O2 CO2

COMO O VÍRUS ATACA POR

Responsáveis pelas trocas de oxigénio e dióxido de carbono no sangue, os alvéolos são o alvo do ataDESTAQUE, que lançado pelo vírus (1, em baixo). EM BAIXO

NO INTERIOR DA CÉLULA

4

MANUEL CANALES E ALEXANDER STEGMAIER

LA ALVEOLAR TIPO II

Ainda não é evidente como o coronavírus se infiltra no organismo e como o sistema imunitário pode reagir exacerbadamente, com consequências letais. Eis como a infecção pode começar: o vírus SARS-CoV-2, causador da COVID-19, alcança as proteínas ACE-2 que revestem a superfície de muitas células humanas importantes, incluindo as células alveolares tipo II existentes nos pulmões.

SARS-CoV-2 ARN

Assume o comando O vírus pirateia a célula anfitriã e obriga-a a criar cópias do seu código biológico.

M

EM

BR

AN

A D A

CÉLU

Membrana lipídica

3

Cria um exército As partículas são transformadas em mais vírus, que são de novo libertados no interior da cavidade alveolar: as células anfitriãs são destruídas. Libertação de ARN.

Proteína S

Receptores ACE 2

Libertação de ARN

1

Consegue o acesso Como uma chave numa fechadura, o coronavírus serve-se da sua singular proteína S em forma de coroa para se infiltrar numa célula e replicar-se.

2

Acciona os alarmes A célula alerta o sistema imunitário, pedindo-lhe ajuda. Segundo os peritos, é possível que o vírus iniba estes sinais de alerta.


Espaço intersticial

Capilar permeável

DESTAQUE, EM BAIXO

REACÇÃO ORGÂNICA O líquido acumula-se nos pulmões à medida que o organismo se defende (5, em baixo), provocando falta de ar e pneumonia. O vírus continua a atacar mais células.

Fluido

Glóbulos brancos

As lesões alveolares e a inflamação podem desencadear síndrome de dificuldade respiratória, coagulação sanguínea anormal, insuficiência de órgãos e morte.

N O I N T E R I O R DA C AV I DA D E A LV E O L A R

6 O I

Combate a resistência Um influxo de linfócitos ataca as células infectadas e saudáveis, causando inflamação.

AR

TIP

5

Provoca uma defesa Células imunitárias denominadas macrófagos libertam citocinas, proteínas que dilatam os vasos sanguíneos e mobilizam células de combate ao vírus.

EOL

Citocinas

LU

LA

ALV

Macrófago

Glóbulo branco

Linfócito R

E

SP O S T A

Ó A T I N F L A M

R

IA

A cavidade enche-se de líquido e resíduos celulares, prejudicando a função pulmonar. Plasma sanguíneo

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Baralha o sistema Nos casos graves, o sistema imunitário reage de forma exacerbada, contribuindo para a disfunção múltipla de órgãos e para o choque séptico.

A debilitação dos vasos sanguíneos causa fugas de plasma para o interior do espaço intersticial, exercendo ainda mais pressão sobre os alvéolos.

TAYLOR MAGGIACOMO E EVE CONANT ARTE: ANTOINE COLLIGNON FONTES: HOWARD M. HELLER, HARVARD MEDICAL SCHOOL; DANIEL S. CHERTOW, NIH CLINICAL CENTER E NIH NIAID


CORRIDA À VACINAÇÃO

20

20 n. a J

Laboratório

Ma r.

A investigação já realizada para outros coronavírus, como o SARS e o MERS, ajuda os cientistas nesta nova corrida.

Ensaio de fase I

POR DIANA MARQUES E ALEXANDER STEGMAIER

Ensaios clínicos

Ensaio de fase II

Segundo os peritos, talvez seja necessário o desenvolvimento de múltiplas vacinas e duas doses de vacina por pessoa, porventura em tomas anuais, para iniciar o processo de protecção da população mundial contra a COVID-19. Nenhuma vacina tem 100% de eficácia e, uma vez aprovada, ainda há muitos obstáculos a superar até a inoculação poder ser feita de forma generalizada. Os governos e os cientistas definiram cronogramas diferentes e sobrepostos para a obtenção de uma vacina. Eis um cenário ambicioso.

Maio

Uma vacina tem de demonstrar segurança e eficácia ao longo de múltiplas etapas antes de obter aprovação governamental.

Produção em grande escala As vacinas podem ter ingredientes biológicos e biotecnológicos complexos: a produção em massa poderá ser um estrangulamento.

Ensaio de fase III

l. Ju

Potencial autorização de emergência

021

.2 Jan

Set .

Ma r.

Nov.

Quantidades limitadas de uma vacina poderão ser disponibilizadas a grupos prioritários e de risco.

Estimativa da oferta e da procura anual global de vacinas 15,8 mil milhões 14,1 mil milhões de doses

Será necessária uma ampla rede de sistemas refrigerados para transportar as vacinas dos locais de fabrico para os países de todo o mundo.

7,4

1,3 Dez.

2020

Dez.

2021

Transporte a nível mundial

Dez.

2022

Dez.

2023

PROTECÇÃO DE GRUPO

Aprovação potencial

Distribuição No terreno, as autoridades locais serão responsáveis pelo armazenamento e transporte do produto até às comunidades necessitadas.

Campanha de vacinação Será orientada de acordo com a dimensão, os recursos e vontade da população: haverá muita procura de seringas, equipamento de protecção e mão-de-obra especializada.

DADOS DE AGOSTO DE 2020 FONTES: PRASHANT YADAV, CENTER FOR GLOBAL DEVELOPMENT E INSEAD; MARGARET A. LIU, INTERNATIONAL SOCIETY FOR VACCINES; JOHN J. DONNELLY, VACCINOLOGY CONSULTING, LLC.; UNICEF; OMS

v. No

Para tornar mais difícil a propagação da COVID-19, os peritos crêem que até 70% da população precisará de ter recuperado da doença ou de ser protegida por vacinação. A população remanescente continuará susceptível à doença. Se uma vacina precoce só tiver 50% de eficácia (o limiar mínimo actualmente definido pela FDA), uma taxa de vacinação de 100% não garantiria, por si, a imunidade de grupo, mas poderia oferecer protecção contra repercussões mais graves do vírus.

Ju l.

13,5

Se t.

de doses necessárias (2 por pessoa)

o Mai

Utilização de emergência

ESTAMOS AQUI

J a n . 2 022


E X P LO R E

MU ´S I C A

É possível plantar a esperança

substituindo situações familiares por incógnitas desorientadoras. Muito mudou e muito continua a mudar. Por isso, é bom encontrar algo totalmente inesperado... mas positivo em todos os sentidos. Peculiar. Belo. Transbordante de vida. A Espanha foi atingida muito cedo por esta crise e o confinamento no país vizinho durou três meses. Em Junho, a flexibilização das restrições foi celebrada com um concerto no Gran Teatre del Liceu em Barcelona. O público? 2.292 plantas vivas. A audiência verdejante foi presenteada com um quarteto de cordas a interpretar a peça “Crisantemi” de Giacomo Puccini. O nome significa crisântemo, uma flor que os italianos usam para expressar A C OV I D - 1 9 E N C U R R A LO U - N O S ,

a perda e de luto. Foi, de alguma maneira, uma piscadela de olhos simbólica ao sofrimento registado em Itália, um dos países mais duramente afectados pela pandemia em Março. A expectativa do artista Eugenio Ampudia era a de tornar a casa da ópera mais verde e, com isso, fazê-la parecer “viva, mesmo sem pessoas”. Um público humano invisível beneficiou: após o concerto, as plantas foram oferecidas aos profissionais de saúde de Barcelona. A receptividade da população catalã foi brilhante. Como escreveu um colunista, “num ano com tanta escuridão e sofrimento tão intenso, um acto de absurda bondade conseguiu animar-nos.” – PAT R I C I A E D M O N D S

No final da actuação do quarteto UceLi, o ar das ventoinhas gigantes agitou as folhas das plantas gerando um som que, com um pouco de imaginação, soou como o aplauso da natureza. EMILIO MORENATTI, AP IMAGES


ARQUEOLOGIA DA BÍBLIA

JÁ NAS BANCAS


APRESENTAÇÃO

Seguiremos em frente depois deste ano devastador. Mas como e para quê?

Chamamos-lhe novo coronavírus. Ou SARS-CoV-2. Ou COVID-19. Independentemente do nome, o vírus dominou por completo o ano de 2020, troçando das nossas defesas e dominando a nossa existência. Nesta edição, exploramos as implicações que a pandemia tem para a ciência, o ambiente e para as culturas de todo o planeta. T E XTO D E

CY N T H I A G O R N EY

um homem da província de Java Central, na Indonésia, montou uma barreira de postes de bambu, pintou a palavra “LOCKDOWN” num pedaço de plástico e bloqueou a estrada de entrada na aldeia. Um agente funerário belga começou a vestir-se para trabalhar com um fato de protecção. Uma criança de Detroit queixou-se de dor de cabeça e, um mês depois, apenas 12 pessoas tiveram autorização para comparecer no seu funeral e o sofrimento dos pais ficou ocultado pelas máscaras. Eis o que este ano exigiu que compreendêssemos: que um único fenómeno liga estas pessoas, estes lugares, esta tristeza, este medo. A maior parte de nós não é epidemiologista ou sobrevivente da gripe pneumónica de 1918; para a maioria dos seres humanos, antes de 2020, a palavra “pandemia” pertencia à história, à ficção distópica ou a livros de jornalistas de ciência. O esforço para entender o novo coronavírus como o verdadeiro evento global em que se transformou é exaustivo. Mesmo para o observador mais experiente, o acompanhamento dos desenvolvimentos da ciência é perturbador: “Até para uma fã da ciência como eu, tem sido inquietante observá-los a discutir, discordar, rodopiar sobre si mesmos e reavaliar. Já dei por mim a desejar que algum herói vestido com uma bata de laboratório varresse a doença e a fizesse desaparecer”, escreve Robin Marantz Henig nesta edição. É um acto simultâneo de arrogância e de esperança apelidar os textos e imagens reunidos nesta revista como registo da pandemia – um registo é algo para que se olha depois do acontecimento, em retrospectiva. Quando chegaremos ao fim do túnel? Vamos seguir em frente porque temos de o fazer, mas como e para quê? E o que nos mudou durante este ano devastador? Estas são algumas das questões que os jornalistas e fotógrafos se propuseram explorar nesta edição. E S T E A N O,

sobre a percepção da investigação científica num futuro marcado pelo coronavírus, Henig questiona-se sobre a hipervelocidade do trabalho de laboratório, grande parte do qual conduzido com uma abertura sem precedentes para um público também desesperado por um super-herói de laboratório. N A S UA R E F L E X ÃO


A P R E S E N TAÇ ÃO

N AT I O N A L G E O G R A P H I C

F OTO G R A F I A D E DA N N Y W I LC OX F R A Z I E R

“Talvez, de uma maneira estranha, ver os cientistas tentarem construir um avião ao mesmo tempo que o fazem voar seja uma faceta positiva para compreender o processo científico”, escreve Henig. Talvez. Somos uma espécie impaciente e egocêntrica, capaz de magníficos actos de heroísmo e de uma estupidez inacreditável. Quais as probabilidades de termos aprendido um caminho sustentável para atravessar esta calamidade? Não parecem certas, pois alteram-se de um dia para o outro.

1. Outra notícia falsa assegurava que 14 elefantes tinham invadido uma aldeia chinesa, tinham-se embriagado com vinho de milho e perdido a consciência num jardim.

Enquanto tentávamos dominar o vocabulário da quarentena e da lavagem das mãos durante 20 segundos, a temperatura do planeta continuou a subir. O optimismo pelos efeitos ambientais colaterais da pandemia sentia-se no ar, e certamente, parte era merecido. Os golfinhos regressaram aos canais de Veneza (1) – desculpem, não era verdade, embora desejássemos muito que fosse. Os punjabis conseguiram ver os Himalaia pela primeira vez em décadas porque a desaceleração económica reduziu fortemente a poluição – sim, isso era real, tal como os relatórios que registaram níveis de poluição atmosférica mais reduzidos em Banguecoque e São Paulo.


2. Cerca de metade dos trabalhadores norte-americanos não podem trabalhar em casa, pelo que, provavelmente, ficarão atrás dos que podem, comenta Nicholas Bloom, economista da Universidade de Stanford. A situação será “uma bombarelógio para a desigualdade”.

Quando se reformou, Chester Lovett, um antigo carteiro, esperava passar algum tempo com os dez filhos. Chester morreu devido a complicações associadas à COVID-19. Com as regras

da pandemia, apenas dez pessoas puderam comparecer no funeral. Após o serviço fúnebre, o irmão soltou uma pomba para simbolizar o espírito de Chester a levantar voo.

“Cessação do movimento”. Esta expressão do presidente queniano Uhuru Kenyatta ao decretar o confinamento no seu país foi estranhamente poética. Durante algum tempo, região a região, parecia que o mundo inteiro tinha parado em 2020. As avenidas vazias. O comércio encerrado. Um quarteto de Barcelona a tocar Puccini numa sala de ópera cheia de vasos de plantas. Porém, mesmo aqueles que podiam permanecer em casa conseguiam ver que o movimento não cessara por completo. As ambulâncias continuavam em movimento, as urgências e os cuidados intensivos trabalhavam freneticamente. Uma massa enorme de trabalhadores e pessoas desfavorecidas continuou a enfrentar diariamente o perigo de contágio por coronavírus por não ter outra hipótese. (2) Como Robert Kunzig escreve sobre as repercussões da pandemia no ambiente, a poluição atmosférica já está a recuperar e, este ano, a tundra siberiana ardeu. “Irá a experiência da COVID-19 mudar, de forma duradoura, a maneira como tratamos este planeta, no qual quase oito mil milhões de seres humanos lutam para sobreviver?”, pergunta. “Como seria se as economias do mundo fossem geridas dentro dos limites estabelecidos pela natureza?” O ano também fez surgir novos guerreiros, como recordam vários testemunhos nesta edição. Pessoas dispostas a colocar as malditas máscaras na cara e a fazer o possível para liderar, consolar e cuidar dos outros à sua volta, mesmo quando os outros estão na iminência de sucumbir. Como seria se substituíssemos as palmas dirigidas aos trabalhadores subitamente rotulados como “essenciais” por salários mais altos, mais protecção e benefícios de saúde garantidos? Como seria se nos forçássemos por ler os números da infecção, não para reavaliar os nossos próprios riscos, mas para aceitar a miséria desproporcional que a pandemia provocou nas famílias e nas latitudes desprotegidas. Como seria se olhássemos de perto os rostos enlutados pela COVID-19 quando é mais confortável desviar os olhos? Aquela criança de Detroit? Chamava-se Skylar Herbert. A mãe é polícia, o pai bombeiro. Tinha 5 anos. j


GRANDE ANGULAR

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H I STÓ R I A E PA N D E M I A

TEXTO DE GONÇALO PEREIRA ROSA F OTO G R A F I A S D E ADRIANO FAGUNDES

AS PRAGAS E AS PESTES NUNCA NOS DEIXARAM C O N H EC I M E N TO E S U P E R ST I Ç ÃO O P U S E RA M-S E S E M P R E E M MOM E N TO S D E P E RT U R BAÇ ÃO DA SAÚ D E P Ú B L I C A . DA A N T I G U I DA D E , C H EGA M L I Ç Õ E S VA L I O SA S.

R

oda-se o prato com mil cuidados, não vá a falta de destreza do portador provocar um incidente épico num artefacto que resiste desde a Antiguidade. Está escrito em aramaico, uma língua semítica falada originalmente na Síria e ainda hoje usada. As inscrições, essas, não poderiam ser mais modernas. Descrevem a doença e o modo de a tratar. Terá sido um artefacto de boticário, um prato para preparar mezinhas medicinais. O idioma pode ser exótico, mas o tema está mais próximo do que nunca. Apesar de mais de catorze séculos nos separarem, na doença permanecemos vulneráveis. O objecto seguinte aborda outra dimensão da relação humana com a debilidade física. Uma moeda evoca um reino alemão assolado pela doença. No solo, jaz uma vítima, curiosamente com formas voluptuosas de mulher. A figura régia aponta para os céus. Os súbditos obedecem, procurando nos deuses a resposta para as doenças terrenas. Neste amuleto da Europa Central, certamente usado pelo portador para escapar à pestilência, condensa-se boa parte da percepção sobre a doença e as suas causas desde a Antiguidade. Desde que a pandemia de 2020 nos impôs um novo quotidiano, vários autores debruçaram-se de novo sobre as fontes clássicas, procurando pistas para compreender o modo como a epidemia era processada na Antiguidade. A Praga de Atenas, no século V a.C., terá sido N AT I O N A L G E O G R A P H I C

a primeira cujos relatos nos chegaram. Ocorreu durante a Segunda Guerra do Peloponeso. Forçado pelos acontecimentos militares a retirar, Péricles concentrou a sua população no interior das muralhas sem saber que um inimigo mais esquivo já penetrara nas suas defesas. Os atenienses já estavam minados pela doença. Tucídides, que escreveu sobre o tema, conta que os “doentes perdiam de imediato a esperança. A sua atitude e espírito tendiam a esvair-se e os doentes não lutavam pela vida”.

Esta máscara do século XVII ou XVIII foi abundante na Europa Central. Era usada nas visitas a comunidades já doentes e visava proteger o portador. Tenta tapar todos os orifícios de penetração das impurezas e vinha, por vezes, acompanhada de perfumadores que produziam odores fortes junto do nariz, na esperança de evitarem o contágio. Não resultavam. TODOS OS ARTEFACTOS FOTOGRAFADOS COM AUTORIZAÇÃO DO MUSEU DA FARMÁCIA, ANF


AG O STO 2 02 0


GRANDE ANGULAR

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H I STÓ R I A E PA N D E M I A

Oriundo da Palestina, este prato medicinal contém inscrições em aramaico. É um dos mais antigos “documentos” de relação com a doença de que dispomos em Portugal.

Sem ferramentas para compreender a epidemia e sem conhecimento sobre os germes e o seu papel na doença infecciosa, as sociedades humanas procuravam causas nos céus. “Numa situação de epidemia, quando tudo falha, o último refúgio é a salvação espiritual”, defende João Neto, director do Museu da Farmácia, a instituição portuguesa que possui mais acervo sobre a relação entre a sociedade e a doença. “Não é raro que, em cidades tomadas pela peste, os cidadãos dirijam a sua fúria contra o imperador ou os membros de congregações religiosas que não os souberam proteger pelo exemplo.” Noutras ocasiões, a fúria dirige-se contra comunidades específicas. O médico Galeno conta que, na Praga Antonina (um provável surto de varíola trazido pelos soldados da campanha da Selêucia no século II d.C.), os ânimos voltaram-se contra os deuses pela quebra do pacto de protecção com os cidadãos de Roma. Em resposta, Marco Aurélio terá sugerido que a doença era um castigo para punir os grupos religiosos que pugnavam pela heresia monoteísta. Fenómenos idênticos percorreram o mundo ao longo dos vários surtos, por vezes com escandaloso aproveitamento de rivalidades étnicas e religiosas. O romancista Richard Zimler construiu “O Último N AT I O N A L G E O G R A P H I C

Cabalista de Lisboa” precisamente sobre essa tensão entre cristãos e cristãos-novos após um surto de peste em Lisboa, no início do século XVI. A matança que se seguiu foi conduzida em nome da limpeza sanitária. de 2020, a equipa do Museu da Farmácia tem farejado todas as oportunidades para aumentar o acervo com objectos que ajudem a contar para a posteridade a história do surto tantas vezes abordado pela literatura distópica, mas nunca interiorizado. Mal a jornalista Rosário Salgueiro, da RTP, foi presenteada com uma máscara por costureiras portuguesas em Paris, depois de os grandes ateliers modificarem as prioridades e iniciarem a confecção de máscaras, João Neto pôs-se em marcha e assegurou o artefacto. Há igualmente uma patente portuguesa na colecção: a máscara transparente “Be Angel”, desenvolvida pela empresa Elastoni Confeccções, para ajudar os surdos a lerem os lábios mantendo a protecção facial. E testes rápidos. E tantos outros objectos. “Não é propriamente o coleccionismo que nos move”, diz João Neto. “É sentirmos que está a ocorrer história à nossa frente e que temos obrigação de resgatar alguns pedacinhos que ajudem a contá-la mais para a frente.”

D E S D E O I N Í C I O DA PA N D E M I A


Várias maneiras de lidar com a peste: os relicários de santos apelavam à proximidade dos fiéis com os ossos ou restos orgânicos de velhos santos na esperança de evitar o contágio. Em cima, um perfumador do Império Bizantino, ícone perfeito da concepção de que a doença se instalava pela inalação de substâncias impuras. Em baixo… o reverso da moeda: um amuleto contra a doença.


GRANDE ANGULAR

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H I STÓ R I A E PA N D E M I A

Desse ponto de vista, os primeiros kits para testes rápidos são tão espectaculares como a máscara alemã do século XVII que abre o espaço expositivo do Museu em Lisboa. Charles de Lorme, médico de Luís XIII, é habitualmente creditado pela invenção desta indumentária, tão extravagante como inútil. Ela fala-nos de uma crença na poluição do ar como causa principal para a doença. Chegaram a ser tão abundantes que se tornaram ícones dos “médicos das pragas“ na comedia dell arte e no Carnaval veneziano. “Se a doença é uma praga venenosa que pode desequilibrar os humores ou fluidos corporais, a máscara estanque é entendida como protecção“, diz João Neto. Em muitos modelos, ela dispunha de perfumadores junto do nariz com um composto de mais de cinquenta ervas e especiarias, incluindo a canela, o mel ou a mirra. Purificado o cérebro, o médico “fardado” já poderia visitar os doentes. O sinistro bastão que acompanha muitas destas máscaras completa o quadro mental da época. “Esticado, mantinha o doente a uma distância respeitável – de algum modo, era o distanciamento social da época”, diz João Neto. com o estudo de velhas pragas. Apesar da sofisticação, não aprendemos tanto quanto isso. Na Praga de Justiniano, Constantinopla TEMOS ALGO A APRENDER

N AT I O N A L G E O G R A P H I C

Marcas de respostas inventivas a novos problemas de saúde. No topo, uma máscara desenvolvida para surdos conseguirem ler os lábios. Em cima, dois exemplos de testes rápidos para a COVID-19, desenvolvidos por empresas portuguesas.

teve conhecimento, com dois anos de antecedência, da praga que já circulava na Europa. Nada fez para mitigar a onda que se formava no horizonte. Fará esta velha história soar alguma sineta de alarme? Escrevendo sobre a peste negra do século XIV (que, aliás, só se tornou negra com os cronistas do século XIX – antes era apenas a “Pestilência”), Giovanni Bocaccio relatou o caso de alguns pequenos grupos que responderam à emergência de forma peculiar. Afastaram-se, recusando contacto com qualquer doente. Proibiram até as referências verbais à doença e aos doentes. A doença não entrava pelo ar, pela porta ou pelos ouvidos... Nos últimos 150 anos, aprendemos muito sobre as epidemias e os agentes patogénicos. Descobrimos até que a Praga de Justiniano foi causada pela bactéria Yersinia pestis, algo impensável na Antiguidade. Conhecemos o mundo microscópico e a ciência avançou. Raspando a superfície, porém, continuamos a encontrar velhas superstições que nos ligam ao prato aramaico do século IV e à máscara de bico de pato. j



«Acreditamos no poder da ciência, da exploração e da divulgação para mudar o mundo.» A National Geographic Society é uma organização global sem fins lucrativos que procura novas fronteiras da exploração, a expansão do conhecimento do planeta e soluções para um futuro mais saudável e sustentável. NATIONAL GEOGRAPHIC MAGAZINE PORTUGAL

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E D I TO R I A L

1

Contemplando um mundo refeito

TEXTO DE SUSAN GOLDBERG

FOTOGRAFIA DE CHRISTIAN K. LEE

Em Killeen (EUA), familiares cercam Demario Title, de 19 anos, envergando parte da indumentária que ele planeava usar no baile de finalistas da escola em Maio. O evento foi cancelado devido à COVID-19.

o novo coronavírus alterou a vida tal como a conhecíamos. Em todo o mundo, um número impressionante de pessoas contraiu COVID-19 e um número crescente de pessoas morreu. Nenhuma parte da vida ficou intocada: o trabalho, a escola, a vida familiar. Tradições como formaturas e funerais mudaram, tornando-se quase irreconhecíveis. Esta edição foca-se na forma como a pandemia alterou o nosso mundo e como poderá alterar a forma como pensamos e agimos no futuro. Penso muito sobre o modo como esta crise afectará o futuro das crianças. D E S D E O I N Í C I O D O A N O,

Durante as videochamadas que realizámos desde que começámos a trabalhar em casa em Março, vi filhos pequenos de colegas em segundo plano (e ocasionalmente em primeiro plano). Preocupa-me pensar de que modo serão afectados academicamente depois de terem sido empurrados para o ensino à distância. Preocupam-me ainda mais os adolescentes que não vejo durante as videochamadas: crianças às quais as escolas forneciam computadores adequados e acesso à Internet e uma refeição (ou mais) por dia. Espero que a ajuda prossiga, mesmo que as escolas permaneçam fechadas. E espero que esses jovens sejam suficientemente resilientes para recuperarem. Penso também nos jovens que estavam a atingir o seu potencial quando chegou a pandemia, destruindo tantos sonhos. Esses jovens com 18 a 25 anos enfrentaram desafios desde o nascimento. Cresceram na transição para o século XXI, marcado pela ameaça do terrorismo e treinando desde o ensino básico exercícios de protecção em cenários de tiroteio na escola. A recessão de 2008 atingiu duramente muitas famílias e os alunos acumularam dívidas para pagar a faculdade. E agora são confrontados com o cancelamento dos estágios, com a rescisão das ofertas de trabalho, os estágios cancelados e um “ano sabático” não planeado. É um presente envenenado. Talvez não. Recentemente li um ensaio sobre 2020 escrito por Cate Engles, que concluiu os estudos em Maio numa escola particular do Ohio. À semelhança das turmas do último ano do secundário dos Estados Unidos, a dela “foi imediatamente lançada num mundo que não se importava com as tradições dos alunos finalistas, com as médias e planos para a faculdade”, escreveu. Não havia pompa, só circunstâncias inesperadas. A entrada na faculdade ficou adiada por um ano. “Em vez de se preocupar com vestidos e corpetes, a nossa geração dedicou os fins-de-semana a lutar por justiça onde ela já deveria ter sido exercida há muito tempo”, escreveu. Cate espera que o resultado deste movimento se traduza em “artigos jornalísticos sobre o impacte que esta geração teve no mundo e não na pista de dança”. Estou certa de que não tinha essa tolerância ou sabedoria aos 18 anos. A mesma determinação encontra-se expressa por muitos protagonistas desta edição, os novos heróis da sociedade contemporânea. Obrigado por ler a National Geographic. j


11/20 UM MUNDO VIRALIZADO

Estetoscópio, viseira, fato-macaco: estas peças essenciais da pandemia foram deitadas no lixo à porta de um hospital na cidade belga de La Louvière por um médico que as retirou entre a ambulância e o serviço de urgências num esforço para evitar mais contágios. O TRABALHO DE CÉDRIC GERBEHAYE FOI PARCIALMENTE FINANCIADO PELO FUNDO DE EMERGÊNCIA COVID-19 PARA JORNALISTAS DA NATIONAL GEOGRAPHIC SOCIETY.


DOSSIER

´BELGICA

Nas enfermarias da COVID-19, profissionais de saúde exaustos tratam dos doentes e ouvem os seus medos sussurrados. “Se eu não fizer isto, quem fará?”, pergunta uma enfermeira. FOTO G RA F I A S D E

CÉDRIC GERBEHAYE

3


Os efeitos psicológicos do trabalho são visíveis no rosto deste técnico, enquanto prepara um paciente para uma TAC num hospital de La Louvière. Na Primavera passada, a Bélgica registou a mais elevada taxa de mortalidade


per capita do mundo por COVID-19: mais de nove mil mortes até finais de Maio, num país com 11,7 milhões de habitantes. A propagação diminuiu, mas, em meados do Verão, iniciou-se uma nova vaga

5


DOSSIER: bélgica

POR CYNTHIA GORNEY

N AT I O N A L G E O G R A P H I C

6

C

equipou-se segundo as instruções dadas pelos profissionais de saúde: máscara facial, viseira, fato-macaco, dois sacos por cima dos sapatos e duas luvas nas mãos. Aprendeu a segurar e a operar a máquina através do plástico. Num lar em Bruxelas, vi uma mulher idosa olhar uma enfermeira nos olhos quando esta veio fazer o teste da COVID-19. “J’ai peur”, disse-lhe a mulher. Tenho medo. A enfermeira pegou-lhe nas mãos, inclinou-se sobre ela e disse: “Eu também tenho medo.” Ela e a sua equipa iriam testar quase 150 pessoas só naquele dia. Quando se virou para Cédric no fim do teste, a sua voz assumiu um tom grave. Ela parecia devastada, resistente, sofredora e furiosa – tudo em simultâneo. “Mais ninguém se pode aproximar destas pessoas”, disse. “Se eu não fizer isto, quem fará?” Cédric tem 43 anos e é neto de dois sobreviventes da Segunda Guerra Mundial, um belga e um holandês. Não é invulgar para ele, enquanto fotojornalista, presenciar conflitos armados e a morte. Na Primavera passada, porém, enquanto se demorava em hospitais, lares de idosos e carros de transporte de cadáveres, apercebeu-se de que os belgas da sua geração estavam a assistir, pela primeira vez, àquilo que os seus avós viram: o país em crise e com medo. J’ai peur. Durante algumas semanas de Março e Abril, a taxa de mortalidade por COVID-19 per capita da Bélgica parecia ser a mais alta do mundo. Estariam as autoridades belgas simplesmente a contar os números com mais honestidade do que os outros? Independentemente da resposta, os danos observados por Cédric Gerbehaye enquanto acompanhou agentes funerários e pessoal hospitalar em Bruxelas e noutras duas cidades mais pequenas, também se faziam sentir entre os vivos: homens e mulheres na linha da frente, cuidando dos doentes, improvisando, assoberbados. Certa tarde, à porta de um hospital em Mons, duas enfermeiras sentaram-se junto dele em silêncio, de ombros caídos, fumando cigarros durante a sua pausa. Quando uma delas encostou a cabeça ao ombro da outra, Cédric lembrou-se de pequenos animais aninhados uns nos outros, em busca de calor. Vi as vossas irmãs nas clínicas de Gaza, depois dos bombardeamentos, disse para si próprio. Tal como elas, vocês fazem parte da história, embora estejam demasiado cansadas para se preocuparem com isso. Ele ergueu a máquina fotográfica. As enfermeiras não olharam para cima. j É D R I C G E R B E H AY E

Depois de explicar os procedimentos do teste da COVID-19 a um utente de um lar de idosos em La Louvière, a enfermeira restringe-o, com relutância, para lhe fazer o teste. Uma das explicações para o elevado número de mortes da Bélgica poderá ser o facto de muitos pacientes idosos que morreram sem tratamento formal de COVID-19 terem sido contabilizados como baixas da pandemia.

BÉLGICA EUR OPA

RESPOSTA AO SURTO O início do surto de COVID-19 da Bélgica começou no dia 4 de Fevereiro, data em que foi relatado o primeiro caso confirmado. A ordem de confinamento foi dada no 44.º dia. No 100.º dia, havia registo de 8.918 mortes. Dia 1

Resposta do governo Inexistente

Severa

Dia 100 100

200

300 mortes*

*MÉDIA DE SETE DIAS TAYLOR MAGGIACOMO E IRENE BERMAN-VAPORIS. FONTES: OXFORD COVID-19 GOVERNMENT RESPONSE TRACKER; CENTRO EUROPEU DE PREVENÇÃO E CONTROLO DAS DOENÇAS




Longas horas de trabalho com máscara deixaram uma cicatriz temporária no rosto de Yves Bouckaert, chefe da unidade de cuidados intensivos do Hospital Tivoli, em La

À E S Q U E R DA :

Louvière. E M B A I X O : Um médico faz uma visita ao domicílio, decide que a doente poderá ter COVID-19 e chama uma ambulância para a transportar para o hospital. A O F U N D O :

Uma enfermeira desinfecta o seu equipamento entre doentes. À semelhança de outros países, a Bélgica teve dificuldades em fornecer equipamentos suficientes para os profissionais de saúde.


Depois de transportar o corpo de uma pessoa morta por COVID-19 do hospital para um carro funerário em La Louvière, um agente funerário exausto é desinfectado pelo seu colega com um pulverizador, dos pés à


cabeça, antes de ambos seguirem para o próximo trabalho. Para protegerem os colegas mais velhos, mais vulneráveis à doença, os agentes mais jovens faziam turnos de 24 horas.

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À medida que a pandemia crescia e o pessoal do Hospital Tivoli, em La Louvière, se esforçava por manter o ritmo, um serviço de emergência pediátrica com as paredes alegremente revestidas com personagens de filmes


de animação infantis foi requisitado para receber doentes com COVID-19. Estes agentes funerários estão a terminar os preparativos para levarem o corpo de um doente que não sobreviveu ao vírus.

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Em Mons, na Bélgica, duas enfermeiras refugiam-se na companhia uma da outra durante uma pausa no turno. À semelhança de unidades de saúde em todo o mundo, os hospitais belgas ficaram assoberbados com o fluxo


de doentes. Afastadas dos seus deveres habituais, estas enfermeiras foram recrutadas para trabalhar a tempo inteiro contra a COVID-19. São tropas de reforço para uma longa e esgotante batalha.

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REPENSANDO A NOSSA S O C I E DA D E

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Precisamos de con�iar na ciência

Distanciamento social em Londres, no Parque Jubilee Gardens, perto do London Eye.

FOTO G RA F I A S D E GILES PRICE


Os investigadores esforçam-se por compreender o coronavírus, mas o ritmo é incerto. É assim que a ciência funciona. Por inquietante que seja, é a única maneira de derrotar esta pandemia.

um tema em comum nos livros e artigos que escrevi ao longo dos últimos 40 anos, é o fascínio por aquilo que os cientistas têm aprendido sobre o corpo humano. Uma longa carreira dedicada a explicar a investigação biomédica justificou um profundo respeito pelo processo científico. Apesar dos ocasionais erros e autocorrecções, estou convencida de que, em última análise, este processo conduz-nos a uma melhor compreensão do mundo e da maneira de nele prosperarmos. Por isso, quando a comunidade científica começou a tentar perceber o coronavírus, eu estava disposta a seguir os seus conselhos sobre a forma de me manter em segurança, baseados na hipótese de o vírus ser transmitido sobretudo por gotículas resultantes de tosse e de espirros que permaneciam sobre as superfícies. Limpava cuidadosamente as bancadas, esforçava-me por não tocar na cara e lavava as mãos. Cerca de duas semanas e meia depois de a minha cidade, Nova Iorque, encerrar, os cientistas começaram a transmitir uma mensagem diferente: todos deveriam usar máscara. Foi uma reviravolta espectacular. O conselho inicial sugerira a dispensa da máscara, excepto para aqueles que trabalhassem na linha da frente dos cuidados de saúde. Esta revisão baseou-se, em grande medida, numa nova hipótese: o coronavírus propagava-se sobretudo através do ar. Qual delas estava certa, então? Transmissão através de superfícies ou aerossóis? Deveríamos ter mais medo de sermos contaminados pelos botões do elevador ou pelas pessoas que respiram perto de nós? SE EXISTE

ENSAIO DE

ROBIN MARANTZ HENIG

Como foram obtidas estas imagens O fotógrafo captou as novas rotinas com uma câmara de imagens térmicas, para mostrar de que maneira a temperatura corporal se tornou um indicador da possibilidade de infecção. As temperaturas são convertidas num gradiente cromático, que vai desde os azuis frios aos cor-de-laranja quentes.


N AT I O N A L G E O G R A P H I C

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A mudança no conselho dado sobre as máscaras assustou-me. Não por força do novo conselho em si – estava mais que disposta a usar máscara, se os peritos me diziam que devia fazê-lo – mas devido à sinistra metamensagem que pressentia estar-lhe subjacente: os cientistas estavam a tentar perceber a crise em cima do joelho. De repente, as opiniões mais credíveis, emitidas pelos peritos mais inteligentes do mundo, começaram a parecer pouco mais do que palpites, por bem-intencionados que fossem. Vale a pena fazer uma pausa e reflectir sobre o efeito de longo prazo de vermos os cientistas a tactearem hipóteses, procurando uma forma de compreender melhor o coronavírus e de combater a doença por ele causada, a COVID-19 – em público e a uma velocidade alucinante. Até para uma fã da ciência como eu, tem sido inquietante observá-los a discutir, discordar, rodopiar sobre si mesmos e reavaliar. Já dei por mim a desejar que algum herói vestido com uma bata de laboratório varresse a doença e a fizesse desaparecer. Em 1955, quando Jonas Salk introduziu a sua vacina contra a poliomielite e venceu uma doença terrível, eu ainda era bebé. Desde então, a minha mãe mencionou sempre o seu nome com reverência. (1) Enquanto a comunidade científica procura denodadamente libertar-nos de uma epidemia aterradora, aparentemente intratável, poderá haver outro final feliz que nos proporcione não apenas a sobrevivência, mas também a sabedoria. Se retirarmos alguma lição importante desta triste experiência, espero que possamos confiar no processo científico como apoio para a superação de uma crise existencial.

1. O vírus da poliomielite podia tornar as crianças paralíticas e causou pânico todos os verões, levando ao encerramento de acampamentos e de piscinas.

enganarmo-nos: o desafio é enorme e inédito. O coronavírus conhecido como SARS-CoV-2 alia uma enorme capacidade de contágio a uma natureza letal, numa mistura feroz a que Anthony Fauci, director do Instituto

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N ÃO VA L E A P E N A

2. A reacção imunológica exacerbada, conhecida por “tempestade de citocinas”, também se observa no herpes, no Ébola, e noutros vírus, bem como no cancro e em doenças auto-imunes.

40%

30

Nacional para as Doenças Alérgicas e Infecciosas dos EUA, chamou o seu “pior pesadelo”. Em primeiro lugar, ninguém na Terra possuía imunidade quando ele apareceu. Em segundo lugar, é transmissível pelo ar e infecta as vias respiratórias superiores, o que significa que é rapidamente expelido de volta para o ar e pode flutuar à deriva, passando de pessoa para pessoa. Em terceiro lugar – aquela que é, provavelmente, a sua pior característica –, o vírus é mais contagioso antes de provocar sintomas, o que significa que os portadores se sentem bem precisamente durante o período em que há mais probabilidades de nos infectarem. Os truques utilizados por este vírus para frustrar o contra-ataque do organismo são diabolicamente eficazes. Uma vez no interior, por via nasal ou bucal, o coronavírus ultrapassa a primeira linha de defesa imunitária, infiltra-se facilmente nas células, gera cópias de si próprio e assegura-se de que essas cópias funcionam, utilizando um mecanismo de correcção que muitos outros vírus nem sequer possuem. Consegue transformar as células pulmonares de um ser humano em material inútil, semelhante a vidro triturado, rebentar os vasos sanguíneos ou destruí-los por meio de coágulos microscópicos, e avariar os mecanismos internos de um rim, do coração ou do fígado, tornando-os demasiado rígidos para serem reparados. Pode minar as células que atacam os vírus invasores e, em seguida, provocar uma reacção imunitária secundária que se descontrola gravemente, acabando paradoxalmente por causar a sua própria catástrofe. (2) E qualquer pessoa que entre em contacto próximo com uma pessoa já infectada pode provavelmente ficar também infectada.

Antes da pandemia de coronavírus (Janeiro 2019) Já na pandemia (Abril 2020)

Militares *

Ciência Medicina

Religião

10

Empresas * Governo * 0

Norte-americanos que afirmam depositar muita confiança nos líderes destas áreas de conhecimento, antes e depois do surto de coronavírus. *ALTERAÇÃO ESTATISTICAMENTE INSIGNIFICANTE

DIANA MARQUES FONTE: CARY FUNK, CENTRO DE INVESTIGAÇÃO PEW


É o pior pesadelo de Fauci? Eu quase fiquei sem dormir. No momento em que esta pandemia ameaça o mundo inteiro, o combate tem sido bastante público. O cidadão comum está a obter informações privilegiadas sobre teorias científicas habitualmente reservadas a conferências académicas e a revistas de baixa circulação. Grande parte do debate sobre estas ideias tem lugar na televisão, no Twitter, no Facebook e em convívios nos jardins de epidemiologistas de bancada. Às vezes, dou por mim a perguntar-me se alguém envolvido nesta discussão saberá, de facto, de que maneira a ciência funciona. Milhares de investigadoresa reorientaram os seus laboratórios, mesmo que muito distantes da virologia ou das doenças infecciosas, para atacarem colectivamente esta hidra de sete caREPENSANDO A NOSSA beças. Nunca se viu nada assim, S O C I E DA D E com os cientistas envolvidos em colaborações internacionais a todo o vapor até quando alguns dos seus líderes políticos disparam uns sobre os outros. Assistir a este crescente esforço científico tem sido uma espada de dois gumes: senti-me encorajada por testemunhá-lo, mas foi tão difícil de acompanhar que também contribuiu para a minha ansiedade generalizada. Portanto, fiz aquilo que tenho feito ao longo de toda a minha vida adulta: contactei alguns cientistas para ouvir a opinião deles. Esta é uma fantástica vantagem de sermos jornalistas: podermos fazer perguntas estúpidas a gente inteligente. Normalmente, costuma ajudar-me a esclarecer o meu próprio raciocínio. Desta vez... nem por isso. A ciência de vanguarda expõe sempre o pouco que é conhecido, mesmo por presumíveis peritos. Por isso, estes telefonemas esclareceram-me 3O. recorde sobre o caminho que nos falta percorrer. Mesmo foi estabeem assim, foi interessante ouvir que muitos cientis- lecido 1967, com a vacina da tas andavam à procura de respostas. “Tem sido extraordinário ver como as pessoas papeira. O cientista estão a usar os seus talentos e dons para resol- Maurice ver este problema”, disse-me Gregg Gonsalves, Hilleman utilizou o co-director da Parceria Global para a Justiça na vírus que a Saúde, da Universidade de Yale. “Todas as pes- isolara partir da soas querem dar o seu contributo”, ainda que sua filha.

A TECNOLOGIA APONTA O CAMINHO

ILUSTRAÇÃO: RACHEL LEVIT RUIZ

sejam formadas em Direito, Geografia, Antropologia, Artes Plásticas ou outros domínios muito distantes. Toda esse enfoque na investigação permitiu obter uma enorme quantidade de informação num período de tempo incrivelmente curto. Poucas semanas depois da primeira transmissão animal-para-humano de que há conhecimento, os cientistas já tinham sequenciado o genoma completo do vírus. No Verão, mais de 270 potenciais fármacos contra a COVID-19 estavam a ser objecto de ensaios clínicos activos nos Estados Unidos. Quanto à demanda do San-

Nunca houve igualdade no acesso de banda larga à Internet. A pandemia expôs esse fosso. No entanto, os progressos das redes de telecomunicações de alta velocidade 5G alimentarão um surto de crescimento, desde a telemedicina à banca, educação e transportes, proporcionando ligações mais rápidas e mais acesso. “Vai ser um maremoto de mudança”, afirma David Grain, antigo presidente de uma empresa de torres de comunicações então chamada Global Signal. As redes mais eficientes reduzirão os custos e ajudarão as pequenas empresas arrasadas pela pandemia a alcançarem novos clientes e a crescerem. — D A N I E L S T O N E

to Graal, uma vacina, uma legião de investigadores de dezenas de países já identificou mais de 165 candidatos no princípio de Agosto. Os progressos foram tão rápidos que até um hiper-realista como Fauci – partidário da tese de que é preciso explicar ao público a enorme importância de realizar ensaios clínicos de grande escala antes da introdução de novos fármacos – afirmou sentir-se “prudentemente optimista” para afirmar que poderia ser disponibilizada uma vacina no início do próximo ano. Se ele tiver razão, ficaria pronta três anos mais depressa do que o mais rápido dos desenvolvimentos de vacinas da história. (3)

PRECISAMOS DE CONFIAR NA CIÊNCIA

19


Por vezes, contudo, a ciência não pode ser apressada. “Existe uma espécie de sorte imprevisível na iniciativa científica”, disse-me Gregg Gonsalves. “A rapidez e a escala do que está a acontecer actualmente poderão ser apenas um prelúdio das descobertas fortuitas que vamos ter de fazer num período de tempo mais longo.” telefonei a Howard Markel, director do Centro para a História de Medicina da Universidade de Michigan. Aparentemente, o coronavírus mudava de forma de uma maneira aterradora. Parecia que, todos os dias, eu abria o jornal e lia que mais um sistema de órgãos poderia ser afectado pelas suas acções devastadoras ou que um novo grupo etário também era vulnerável. Howard, porém, contou-me que isso era mais do que previsível: a explosão de sintomas novos e variados acontece sempre que qualquer vírus altamente contagioso entra repentinamente em cena. “Quanto mais material clínico e mais doentes temos, mais probabilidades existem de observar essa natureza polimorfa”, afirmou. Foi o que aconteceu nos primeiros tempos da Sida, na década de 1980. Na alvorada de qualquer nova doença, não param de surgir manifestações estranhas que surpreendem os médicos. Mesmo que as probabilidades de surgir um sintoma raro sejam, por exemplo, apenas de uma para mil, os médicos vão observá-lo com muita frequência porque um milhar de doentes pode acumular-se praticamente de um dia para o outro numa doença nova. Por isso, as reviravoltas e as mudanças nas declarações públicas sobre a COVID-19 não são sinais de que os cientistas se encontram atordoados: são sinais de que os cientistas estão a gerar uma torrente de nova informação, tentando perceber a doença à medida que vão progredindo. Por último, telefonei a um velho amigo, Stephen Morse, professor de epidemiologia na Escola de Saúde D E S E G U I DA ,

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4. Em 1989, Stephen Morse organizou a primeira conferência dos EUA sobre vírus emergentes, na esperança de dar aos cientistas ferramentas de previsão da próxima epidemia viral.

NUNCA SE VIRA NADA ASSIM: OS CIENTISTAS PARTICIPARAM EM COLABORAÇÕES INTERNACIONAIS, A TODO O VAPOR, APESAR DE OS POLÍTICOS CONTINUAREM A DISPARAR UNS SOBRE OS OUTROS.


Medição da temperatura na L’Ecole de Battersea, no Sul de Londres.

Pública Mailman, da Universidade de Columbia. Stephen praticamente previu a catástrofe actual há três décadas. (4) Hoje sente-se desconcertado com todo o frenesi. “Não é assim que eu gostaria de ver a ciência ser feita, tudo a acontecer tão depressa”, disse. Esforçou-se bastante por encontrar um aspecto positivo dessa rapidez. “Há mui-

to conhecimento disponível”, arriscou dizer. Mas, e se parte desse suposto conhecimento vier a revelar-se errado?, perguntou. “A ciência é um processo autocorrectivo. Talvez o próprio esforço para corrigir os erros conduza a um conhecimento aperfeiçoado.” PRECISAMOS DE CONFIAR NA CIÊNCIA

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Havia dois grãos na engrenagem que continuavam a incomodar-me. Em primeiro lugar, a politização do processo pode travar o progresso. Mesmo que a ciência alcance um conhecimento mais rigoroso da COVID-19, de como tratá-la e, um dia, até preveni-la, talvez a história não venha a ser contada dessa maneira. Existe um número suficiente de interesses e alianças para que a verdade seja desvirtuada sem grande esforço. (5) Em segundo lugar, a própria ciência poderá sair prejudicada. Se os investigadores seguirem por atalhos, de modo a obterem resultados mais rápidos, ou derem saltos muito maiores do que os permitidos pelos dados disponíveis, com vista a darem conselhos, poderão involuntariamente macular o próprio processo do qual dependem. Com efeito, não muito depois da minha conversa com Stephen Morse, li um relatório elaborado por uma equipa de peritos em epidemiologia e bioestatística da Faculdade de Saúde Pública Bloomberg, da Universidade Johns Hopkins, onde se sugeria que muita da investigação inicial era demasiado superficial para ter grande utilidade. Os especialistas analisaram os primeiros 201 ensaios clínicos da COVID-19, realizados na China, EUA e outros países. Aparentemente, tinham sido saltadas muitas etapas. Num terço dos ensaios, não havia definição clara do sucesso do tratamento. Quase metade eram tão pequenos (100 doentes ou menos) que não eram efectivamente informativos e, em dois terços, não fora cumprida a regra de ouro do “estudo cego”, que impede os investigadores de saberem quais dos participantes vão receber o tratamento em estudo. Mesmo assim, estes ensaios clínicos foram divulgados, em parte porque revistas científicas de referência, como o “New England Journal of Medicine” e as publicações da editora PLOS, se comprometeram a acelerar o processo de avaliação por

5. A estranha campanha lançada para minar Anthony Fauci afirmou que os seus primeiros conselhos eram demasiado optimistas, ignorando o aviso constante: “Isto pode mudar.” 6. A avaliação por pares ajuda, mas não é uma garantia: das primeiras 25 retractações de artigos sobre o coronavírus, 14 saíram publicadas em revistas com avaliação por pares.

pares, empurrando para o prelo os artigos sobre coronavírus em metade do tempo habitualmente requerido. Outro canal de publicação envolve os servidores de pré-impressão, que publicam artigos na Internet antes de estes serem avaliados por pares. Estes servidores, criados para promover a transparência na investigação científica, são mais antigos do que a pandemia, mas a sua popularidade explodiu assim que os estudos sobre o coronavírus começaram a pulular. Os jornalistas e os seus leitores esfomeados por actualizações escreveram artigos sobre estudos divulgados nestes servidores de pré-impressão por mais pequenos ou preliminares que fossem. (6) Quando são publicitados novos resultados, ainda que fracos ou condicionais, que contradizem resultados anteriores, aqueles de nós que tentamos acompanhar o processo podemos sentir-nos frustrados e confusos. Mas aquilo que verdadeiramente me preocupa é que as pessoas com uma visão céptica da ciência possam encontrar, nestas aparentes oscilações de informação e conselhos de saúde pública, razões para rejeitarem liminarmente conselhos cientificamente fundamentados. está por todo o lado, nos EUA e noutros países, e é pernicioso. Já gerou dúvidas sobre consensos especializados em matérias como as alterações climáticas, o controlo das armas, a segurança da vacinação e outras questões polémicas. Estamos também a assistir à emergência dos defensores de teorias da conspiração sobre a COVID, que insistem que a pandemia é uma conspiração ou um embuste. Lançam acusações venenosas sobre os responsáveis pela saúde pública, alguns dos quais se demitiram após demasiadas ameaças de morte. Tem sido espantoso ver vídeos de pessoas que berram com proprietários de lojas ou vereadores municipais por lhes exigirem que usem máscara. Isto não é apenas um fenómeno norte-americano. Com a falsa informação, a desinformação e as O S E N T I M E N TO A N T I C I Ê N C I A

TALVEZ A PANDEMIA CONSIGA CONVENCER OS PRÓPRIOS CÉPTICOS DE QUÃO IMPORTANTE A DESCOBERTA CIENTÍFICA É PARA O FLORESCIMENTO DA HUMANIDADE.


teorias da conspiração sobre o coronavírus a circularem pelo mundo, a Organização Mundial da Saúde veio declarar que estamos a enfrentar dois surtos de saúde pública em simultâneo: a pandemia propriamente dita e uma “infodemia” de ideias perigosamente enviesadas a seu respeito. Na verdade, não é preciso ser um acérrimo defensor de teorias da conspiração sobre a COVID para recusar quaisquer lições que esta pandemia nos possa ensinar: basta ser um ser humano comum, de vistas curtas e falível. “Todas as epidemias que estudei acabam sempre com amnésia global”, disse Howard Markel. “Voltamos à nossa vidinha alegre.” Os “problemas gritantes” que contribuíram para o surto (crescimento urbano, destruição de habitat, viagens internacionais, alterações climáticas, refugiados de guerra) limitam-se a persistir à medida que as pessoas vão REPENSANDO A NOSSA perdendo interesse pelo tema e S O C I E DA D E que mais tempo, mais dinheiro e mais recursos são dedicados à ciência. “Os políticos passam ao espectáculo seguinte, enquanto os responsáveis pelas políticas públicas clamam no deserto.” O século XXI já foi classificado como aquilo a que Howard Markel chama o século das epidemias: SARS em 2003, gripe H1N1 (gripe suína) em 2009, MERS em 2012, Ébola entre 2014 e 2016, e, agora, a COVID-19 em 2019, 2020 e ninguém sabe por quantos mais anos. Cinco epidemias em 20 anos, cada uma ligeiramente pior do que a anterior e a actual várias vezes mais grave do que as outras quatro juntas.

FUNCIONAR À DISTÂNCIA

de uma maneira estranha, ver os cientistas tentarem construir um avião ao mesmo tempo que o fazem voar seja uma faceta positiva para compreender o processo científico. Talvez a pandemia consiga convencer os próprios cépticos de quão importante a descoberta científica é para o florescimento da humanidade. É essa a esperança de Lin Andrews, directora de apoio aos professores no Centro Nacional para a Educação Científica. “Em geral, as pessoas confiam inatamente nos cientistas, mas, quando se trata de um tema polarizado, a situação pode mudar”, afirmou esta antiga professora de Biologia do ensino secundário. TalTA LV E Z ,

ILUSTRAÇÃO: RACHEL LEVIT RUIZ

vez esta nossa observação sem filtros acabe por revelar-se positiva. Afinal, a melhor maneira de reforçar a confiança na ciência é mostrando toda a experimentação e afinação de hipóteses – enlouquecedora, quando esperamos ansiosamente por respostas para uma epidemia global, mas, se virmos bem, o único caminho para alcançarmos os resultados que nos permitirão prosseguir a vida. Segundo os inquéritos, a opinião pública está menos desalentada por ver os cientistas em acção do que eu temia. Desde 2015 que o Centro de Investigação Pew acompanha aqui-

A Internet permitiu que milhões de pessoas trabalhassem remotamente, mas expôs-nos ao risco de ciberataques. Segundo Jesper Andersen, director-geral da firma de cibersegurança Infoblox, “é mais complicado garantir a segurança de um negócio inteiramente operado à distância”, para não falar num consultório de telemedicina ou numa rede de automóveis com piloto automático. As VPN (redes virtuais privadas) actuais não funcionarão com eficiência se milhões de pessoas trabalharem a partir de casa. Os servidores descentralizados aumentarão a velocidade. Formas mais elaboradas de início de sessão reforçarão a segurança na Internet. — D S

lo que os norte-americanos pensam sobre a ciência e essa opinião tem-se tornado solidamente mais positiva, incluindo num inquérito realizado em Abril e Maio de 2020, quando o coronavírus disparava e muitos dos inquiridos se encontravam sujeitos a confinamento. Em Janeiro de 2019, no último inquérito conduzido antes da pandemia, os inquiridos mostravam-se inclinados a confiar nos cientistas: 86% reconheciam que tinham “muita” ou “bastante” confiança de que os cientistas levavam a sério o interesse público. Esse nível de confiança subiu ligeiramente para 87% durante a pandemia.

PRECISAMOS DE CONFIAR NA CIÊNCIA

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N AT I O N A L G E O G R A P H I C

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No entanto, quando telefonei a Cary Funk, directora de estudos científicos e sociais no Pew, para conversar sobre estes resultados encorajadores, ela disse-me para não me deixar levar pelo entusiasmo, afirmando que a história é um pouco mais complexa. Os inquéritos revelam uma profunda clivagem partidária quanto à confiança depositada nos cientistas. Os membros do Partido Republicano e os independentes seus simpatizantes mostram relutância em aceitar a ciência sem hesitações. Há menos de metade das probabilidades, comparando com os Democratas, de exprimirem “muita” confiança nos cientistas, proporção que se tem mantido teimosamente baixa: 27%. (7) Os inquéritos do Pew também reflectem uma profunda divisão racial no comportamento face à ciência. Segundo um inquérito conduzido no início deste ano, os adultos negros

7. Pouco depois do aumento súbito dos casos de coronavírus nos EUA em Julho, o Centro Pew apurou que apenas 46% dos republicanos consideravam a COVID-19 uma ameaça “importante” à saúde pública, comparados com 85% entre os democratas.

têm menos probabilidades do que a população em geral de confiar na ciência médica. Também têm menos probabilidade de confiarem nos novos tratamentos ou vacinas contra a COVID-19: somente 54% dos inquiridos negros se deixariam inocular, “certamente” ou “provavelmente”, contra a COVID-19, comparados com 74% de brancos e hispânicos. Esta desconfiança, exacerbada pelos maus cuidados de saúde dispensados a muitos doentes negros nos consultórios médicos e nas urgências hospitalares, é especialmente inquietante no contexto da COVID-19, que mata mais do dobro de negros do que de brancos. As clivagens raciais e políticas quanto à forma como a ciência é vista são especialmente insidiosas no momento presente, em que os cépticos podem minar quaisquer progressos feitos pelos cientistas no combate ao coronavírus. No cenário pessimista, se um número suficientemente elevado de cépticos ignorar as medidas de controlo e as vacinas, isso pode privar completamente a ciência da sua capacidade para nos proteger.

Injecção de uma vacina experimental refrigerada da COVID-19 na Universidade de Oxford.


que Lin Andrews tem razão quando diz que este é um momento bom para ensinar, talvez não tanto aqueles de nós que já têm pontos de vista enraizados, mas aqueles cuja infância está a ser formatada pelo coronavírus. Estas crianças (a quem alguns já chamam a Geração C) poderão crescer com menos paciência para a polarização que obscurece as respostas de hoje. Vamos imaginar que eles passam os seus anos de formação a observar o processo científico de perto. E vamos imaginar que, no final, os cientistas nos conseguem mesmo salvar. Estamos agora no ano de 2040 e a Geração C é toda adulta. De repente, surge uma nova pandemia. Baseados naquilo que aprenderam durante a COVID-19, numa idade impressionável, estes jovens adultos reconhecem a urgência do novo surto, ignorando rapidamente quaisquer afirmações de que se trata de um embuste. Põem a máscara, respeitam o distanciamento social e vacinam-se assim que uma vacina é desenvolvida (e é desenvolvida rapidamente, porque os cientistas também aprenderam algo entretanto). Seguem as recomendações dos peritos porque sabem ser a melhor maneira de se protegerem, não só a si próprios, mas também aos seus vizinhos, de uma epidemia semelhante àquela que acompanhou o seu crescimento e matou centenas de milhares de pessoas. A Geração C supera a nova pandemia com um número relativamente baixo de mortos, ou perturbações económicas, por ter aprendido algumas lições fundamentais na infância: os conselhos de saúde pública baseiam-se na melhor informação disponível, esses conselhos podem ser mudados quando novas informações surgem, a ciência é um processo iterativo no qual não há vias rápidas. Talvez nessa altura também já existam mais trabalhadores nas profissões que nos acompanharam durante a catástrofe do coronavírus: mais médicos, enfermeiros e paramédicos; mais especialistas em doenças infecciosas, epidemiologia, virologia e microbiologia, todos eles tendo escolhido uma carreira que viram a funcionar no seu melhor quando eram miúdos. Isto já aconteceu antes. Alguns dos cientistas actualmente empenhados no combate ao coronavírus, como Gregg Gonsalves e Howard Markel, acabaram por fazer aquilo que fazem depois de terem ajudado a resolver a Sida, um mistério viral anterior que nos matou de maneiras nunca dantes vistas. G O S TA R I A D E AC R E D I TA R

Portanto, a pergunta a fazer é a seguinte: irá a Geração C reagir de outra maneira, sem ser com “amnésia global”, quando a próxima epidemia surgir, como quase certamente surgirá? É isto que eu ambiciono, não só para recuperar a minha própria confiança, entretanto beliscada, mas também pelas minhas duas adoradas netas, que teriam de viver a realidade que mais me assusta. Muito depende do que acontecer nos próximos meses. Imaginem, a título meramente argumentativo, que as curvas epidemiológicas que me têm obcecado ao longo deste ano acabam por jogar a nosso favor e que conseguimos regressar a uma situação relativamente parecida com a normalidade. Imaginem que são descobertos tratamentos que tornam a COVID-19 uma doença de curto prazo e curável para quase todos. Imaginem que uma vacina é desenvolvida em breve e que uma parte importante da população mundial é inoculada. Se tudo isso acontecer, por que razão não havemos nós de emergir de tudo isto valorizando mais as iniciativas científicas em todo o seu esplendor confuso? Tento agarrar-me a essa esperança, apesar dos discursos desrespeitosos e insultuosos dos políticos e dos zelotas defensores da “escolha pessoal”, que põem em causa tudo o que os cientistas fazem. Tento convencer-me de que, por vezes, os anjos da humanidade acabam por prevalecer. E que temos o equivalente a um exército de anjos (cientistas, educadores, médicos, enfermeiros, trabalhadores de saúde) que tem trabalhado incansavelmente para garantir um final feliz desde que a imagem fantasmagórica do coronavírus, com os seus picos eriçados, começou a assombrar os nossos sonhos colectivos. É nesse final que tento acreditar. Um final no qual emergimos de tudo isto com uma apreciação renovada da ciência como a melhor oportunidade da humanidade para se salvar do sofrimento e da morte extemporânea. j PRECISAMOS DE CONFIAR NA CIÊNCIA

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Neste cemitério da zona oriental de Jacarta, uma parcela de terreno foi limpa apenas para as vítimas de COVID-19. As sepulturas cristãs estão assinaladas por cruzes. As sepulturas muçulmanas estão agrupadas e marcadas com placas semelhantes a pilares. A Indonésia é a pátria de 13% dos muçulmanos de todo o mundo.


DOSSIER

INDONESIA

A pandemia que enchia cemitérios também esvaziou as ruas até certo ponto. As pessoas continuaram a aventurar-se fora de casa para as tarefas essenciais: as festividades religiosas e a entrega de alimentos.

FOTO G RA F I A S D E

MUHAMMAD FADLI

UM MUNDO VIRALIZADO

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11/20



Os protocolos de distanciamento desaparecem quando a palavra se espalha: distribuição gratuita de alimentos e de máscaras, em instalações militares de Jacarta. Com 273,5 milhões de habitantes, a população da Indonésia é a quarta maior do mundo. A sua economia, em crescimento rápido antes da pandemia, depende consideravelmente do sector informal que inclui trabalhadores independentes com poucos recursos de emergência para pagarem alimentação e alojamento.


DOSSIER: indonésia

TEXTO DE CYNTHIA GORNEY

N AT I O N A L G E O G R A P H I C

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A

a mudik, o nome que os indonésios dão à grande viagem de férias feita pelas comunidades urbanas até às aldeias da família. A população muçulmana da Indonésia é a maior do mundo e a mudik do Ramadão é um acontecimento colossal. Num ano normal, quando o mês de jejum diário se aproxima das celebrações finais, o fotógrafo Muhammad Fadli entraria com a mulher e a filha na sua carrinha e enfrentaria o trânsito, tentando sair da capital, Jacarta. A viagem até à terra natal de Fadli demora 36 horas, através de estradas serpenteantes, e inclui uma travessia de barco, mas é lá que vivem os pais. Fadli é filho único. Em finais de Abril passado, com o número de infectados a subir vertiginosamente, o governo indonésio restringiu as viagens entre regiões durante seis semanas. Retido na cidade, Muhammad continuou a trabalhar. Com o seu assistente de fotografia ao volante, percorreu as ruas desertas. Certa manhã, ao dobrar uma esquina, avistou um grande aglomerado de automóveis parados, motos, homens e mulheres a pé, encostados uns aos outros, empurrando-se com urgência para chegarem a algum sítio. “Encosta”, pediu-lhe Muhammad. Ajustou a máscara e saiu a correr. Quis saber o que se passava. Sem olharem para ele, disseram-lhe: “Bantuan sosial.” Assistência social. Arroz, máscaras e bolos de soja, distribuídos por homens vestidos de uniforme, do lado de lá de um portão fechado. Os militares das forças armadas não paravam de gritar “Tolong sosial distancingnya” [Por favor, mantenham-se afastados]. Não servia de nada. A necessidade e ansiedade são forças propulsionadoras, sobretudo numa multidão. Enquanto os homens desistiam e abriam o portão, Muhammad Fadli apercebeu-se da importância e da bênção que eram os modestos confortos da sua família. Ele tinha um emprego. Os indonésios já estavam a desafiar a interdição de viajar, espalhando o vírus de uma ponta à outra do arquipélago, mas ele sabia que em casa dos pais não havia convidados. Nesse Ramadão, Muhammad faria a sua visita por videoconferência, através do telemóvel, e até já conseguia imaginar tudo: as roupas de festa guardadas, a mãe de cabelo descoberto, sem necessidade de um hijab por se encontrar em família, e o pai sentado a seu lado, no sofá. Cumprimentar-se-iam com a saudação indonésia do Ramadão: “Peço-te sinceramente perdão pelas minhas falhas passadas.” E depois ficariam confortavelmente instalados, a conversar. j PA N D E M I A E S T R A G O U

Á SIA

INDONÉSIA

RESPOSTA AO SURTO O surto de COVID-19 na Indonésia iniciou-se em 2 de Março, com os dois primeiros casos confirmados. No 54.º dia do surto, um novo decreto proibiu temporariamente as viagens terrestres, marítimas e aéreas no território nacional. Número de baixas ao 100.º dia: 1.883 mortos. Dia 1

Resposta do governo Inexistente

Dia 100

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Severa

20 30 mortes* * MÉDIA DE SETE DIAS

TAYLOR MAGGIACOMO E IRENE BERMAN-VAPORIS FONTES: OXFORD COVID-19 GOVERNMENT RESPONSE TRACKER; CENTRO EUROPEU PARA A PREVENÇÃO E CONTROLO DE DOENÇAS


E M B A I X O : Um sinal encaminha os automóveis e motociclos para um caminho improvisado onde dois enfermeiros aguardam para procederem a colheitas de sangue, a fim de fazerem testes de anticorpos à

COVID-19. À semelhança dos EUA, a Indonésia fez inicialmente poucos testes. A O F U N D O : Nas zonas rurais com escassa cobertura de saúde, alguns moradores definiram as suas próprias precauções de

quarentena. Um aldeão de Purwodadi cortou varas de bambu para construir esta barreira. O sinal multilingue menciona uma excepção: os agricultores que vão para os arrozais podem passar.


O retratista Sigit Parwanto, transportando amostras na imagem, contava com as encomendas dos turistas na popular praia Parangtritis Beach, em Java‌ atÊ à Primavera passada, quando os visitantes desapareceram.


E M B A I XO, À E S Q U E R DA :

O número de voos marcado para estes pilotos da Batik Air diminuiu com a pandemia. E M B A I X O , À D I R E I TA : Surakso Widarso ainda limpa um local de peregrinação em

Java, embora este se apresente deserto. A O F U N D O , À D I R E I TA :

Amigos desde a infância, na ilha de Samatra, estes jovens estavam a construir as suas vidas em Jacarta, quando a COVID-19 encerrou os

seus locais de trabalho. Agora regressam a casa de barco. A O F U N D O , À E S Q U E R D A : num local de testes, enfermeiros de Jacarta recolhem sangue dos condutores que permanecem no interior dos automóveis.

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No primeiro dia da suspensão temporária de voos comerciais e viagens marítimas, nada se mexe no Aeroporto Internacional de Yogyakarta. As novas instalações foram construídas no centro de Java para gerir um número


de turistas que pode atingir 20 milhões por ano. As medidas restritivas impostas às viagens pelo governo foram anunciadas em Abril, menos de um mês após a inauguração formal do aeroporto.

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REPENSANDO O PA P E L DA N AT U R E Z A

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A natureza resiste: os pinheiros da região oriental da Califórnia podem viver mais de quatro mil anos.

FOTO G RA F I A S D E JOHN CHIARA

Não desperdicemos esta oportunidade


A pandemia lembrou-nos a necessidade de travarmos a decadência do planeta. Talvez nos inspire a impedir a catástrofe climática se resistirmos a retomar o modo de vida anterior.

de 1858, três anos antes da guerra da secessão dos EUA, um jovem engenheiro chamado John T. Milner entrou a cavalo em Jones Valley, nos Apalaches, no estado de Alabama. Fora ali enviado pelo governador para planear uma nova ferrovia, pois havia riquezas nas montanhas. Na crista da montanha Red, avistara-se um veio grosso de minério de ferro. “Subi ao topo da montanha Red e observei aquele belíssimo vale”, recordou Milner mais tarde, depois de ajudar a fundar a cidade de Birmingham no vale: “Era um enorme jardim que se estendia até onde a vista alcançava… Nunca antes eu vira um povo agrícola tão perfeitamente abastecido e tão feliz. Criavam tudo o que precisavam para comer e vendiam milhares de quilogramas de trigo. As suas aldeias ficavam junto de riachos lindos, de águas transparentes… Era, no seu conjunto, uma civilização sossegada, descontraída, com uma bela agricultura, bem estruturada e regulada.” Cerca de um quarto dessa civilização bem regulada era constituído por afro-americanos escravizados. A cidade projectada por Milner e por outros era uma espécie de plantação industrial, apoiada no trabalho escravo. Entretanto aconteceu a guerra, mas quando Birmingham foi, finalmente, fundada, na década de 1870, os seus fundadores aproximaram-se o mais possível dessa visão. Com riquezas de carvão e ferro capazes de rivalizar com as da Grã-Bretanha, o berço da revolução industrial, mas com a vantagem acrescida de poder contar com mão-de-obra negra barata, os habitantes do Alabama construíram uma nova economia e uma “Cidade Mágica”. N A P R I M AV E R A

ENSAIO DE

ROBERT KUNZIG

Como foram captadas estas imagens John Chiara construiu uma câmara escura de grandes dimensões, montou-a num atrelado e conduziu-a até diversos locais. Captou imagens a negativo directamente sobre película negativa de cor. REPENSANDO O NOSSO MUNDO

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N AT I O N A L G E O G R A P H I C

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A cidade gerava riqueza para alguns e garantia uma vida decente a muitos mais. Era uma cidade que produzia carris e vigas para construir uma nação próspera. No entanto, estava destinada a ser a cidade com mais segregação dos EUA, como Martin Luther King, Jr. viria a dizer em 1963. E era uma das mais poluídas. Em mais nenhum sítio é tão visível a alma destroçada do capitalismo como em Birmingham, no Alabama. Em mais nenhum sítio é tão evidente até que ponto as visões do futuro podem ser importantes. Desde Março, tenho vivido a pandemia na companhia da minha mulher, natural do Alabama, numa casa localizada a menos de dois quilómetros da montanha Red. Quase todas as noites escutamos, como um murro, as desoladoras notícias nacionais. Todas as manhãs, como outras pessoas afortunadas nestes tempos de epidemia, vou dar um longo passeio pelo bairro, ouço as aves mais ousadas a cantar e vou ver como está a horta. Não sou de cá, mas afeiçoei-me a este sítio. De certa forma, espero, dar-lhe mais atenção poderá ajudar-me a perceber melhor o mundo. O meu trabalho na revista National Geographic consiste em reflectir sobre o ambiente global. Quando a pandemia surgiu, encontrava-me a bordo de um navio, na Antárctida. A nossa edição de Abril, dedicada ao 50.º aniversário do Dia da Terra, ia a caminho dos assinantes. Como será a Terra no 100.º aniversário, em 2070? – era a pergunta dessa edição. De regresso a Washington durante alguns dias, completamente desorientado por 2020, peguei em “A Peste”, o romance de Albert Camus escrito em 1947. Estava a voar das livrarias, explicava o jornal “The Guardian”. De facto, os paralelos eram um pouco assustadores. “Eles continuavam a fazer os seus negócios, planeavam viagens, davam opiniões”, escreveu Camus sobre os primeiros tempos da negação em Oram, na Argélia. “Como 38

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1. A vaga de calor na Sibéria “teria sido impossível sem as alterações climáticas induzidas pelos seres humanos”, concluiu um grupo de cientistas em Julho. 2. Ao remover um obelisco, o autarca de Birmingham, Randall Woodfin, desafiou uma lei do estado do Alabama de 2017.

poderiam ter-se preocupado com algo como a peste, que condena qualquer futuro?” O nosso futuro, contudo, não está condenado. Tornou-se simplesmente mais desconcertante e aberto. Que efeitos de longo prazo terá a pandemia da COVID-19 sobre o ambiente? Qual será o significado, para a atmosfera das nossas cidades e o plástico dos nossos oceanos, de a floresta húmida ter diminuído ainda mais e de o clima ter continuado a aquecer este ano, estando já tão quente que enormes parcelas da tundra siberiana arderam? (1) Irá a experiência da COVID-19 mudar, de forma duradoura, a maneira como tratamos este planeta, no qual quase oito mil milhões de seres humanos lutam para sobreviver? “A primeira revelação terrível desta crise sem precedentes foi que todas as coisas que pareciam separadas são inseparáveis”, escreve o sociólogo francês Edgar Morin num novo livro sobre as lições a retirar da pandemia. Fechados como nunca estivemos, tornámo-nos mais abertos do que nunca à possibilidade de repensar o nosso percurso enquanto espécie. Ele partilha connosco uma experiência excepcional: Morin tem 99 anos e nasceu sob a sombra da pandemia da gripe de 1918. Em meados de Junho, enquanto eu lia o seu livro, os EUA assistiam à quarta semana de manifestações após o homicídio de George Floyd. Os monumentos da confederação tinham começado a desabar no Sul do país, incluindo em Birmingham. (2) Os apelos a uma “mudança sistémica” faziam-se ouvir por todo o lado. Subitamente, a ideia de que o sistema que precisa de mudar vai desde a maneira como tratamos os negros à maneira como tratamos a Terra e desde o governo federal ao coração de cada um de nós pareceu ganhar um significado emocional. As condições climáticas extremas, a pandemia e a violência policial fazem-nos ganhar mais consciência do mesmo sentimento: vulnerabilidade. Em 2020, ela tornou-se uma experiência quase universal.

AS CONDIÇÕES CLIMÁTICAS EXTREMAS, A PANDEMIA E A VIOLÊNCIA POLICIAL TORNAM-NOS CIENTES DO MESMO SENTIMENTO: A VULNERABILIDADE.


Esse sentimento partilhado de vulnerabilidade poderá abrir os nossos corações à necessidade de transformar o nosso mundo para o bem comum. Também poderá levar-nos a olhar para as outras pessoas como meras ameaças e fazer-nos ansiar pelo regresso à normalidade vivida antes da pandemia – com mais muros e menos viagens aéreas, talvez, mas praticamente o mesmo grau de destruição ambiental. A forma como o futuro se desenrola não pode ser prevista. É algo que construímos. Este ano, enquanto passeava a pé pela montanha Red e olhava para o vale, não me foi difícil ter presente essa verdade banal, mas essencial. no meio da dor e do sofrimento, houve vislumbres de um mundo mais verde. O encerramento da actividade REPENSANDO O NOSSO económica teve um efeito notório MUNDO na poluição atmosférica. A maior pureza do ar não era só bonita: na China, entre meados de Fevereiro e meados de Março, evitou cerca de nove mil mortes, ou mais, segundo cálculos de investigadores da Universidade de Yale, aproximadamente o dobro do número de mortes causado pelo coronavírus na China. No entanto, esse decréscimo foi apenas temporário. Chegado o mês de Julho, a economia chinesa retomara a actividade e a poluição era pior do que no ano anterior. A redução das emissões de carbono também foi acentuada a nível mundial, chegando a atingir 17%, no início da Primavera. Mas também aí houve um retrocesso e, segundo cálculos dos investigadores, em todo o ano de 2020 essa redução não será superior a 8%, dependendo 3. Na América do rumo da pandemia. Por um lado, há uma do Norte, a grande queda: isto mostra que, com uma arma população total de apontada à cabeça, somos capazes de parar de aves conduzir e de voar. Por outro lado, o nível de diminuiu 29% desde dióxido de carbono continuou a aumentar este 1970, ano, embora mais vagarosamente. Para mansegundo as conclusões ter o aquecimento global a que temos assistido de um desde o século XIX abaixo do limite acordado a estudo de 2019. Foi nível internacional de 2ºC, teríamos de reduzir uma perda as emissões a quase zero o mais tardar em 2070. de quase três mil Isso exigiria declínios semelhantes ao de 2020 milhões todos os anos, durante várias décadas. de aves. N O I N Í C I O,

SAIA E FIQUE LÁ FORA

ILUSTRAÇÕES: RACHEL LEVIT RUIZ

E o que dizer das aves que, como se noticiou ao longo deste ano, se mostraram excepcionalmente sonoras e felizes por todo o lado? Também reparei nelas e fiquei ansioso por voltar a falar com o ornitólogo que me inspirara a aprender algumas das suas canções. Mario Cohn-Haft trabalha no Instituto Nacional de Investigação Amazónica, em Manaus, no Brasil, uma cidade que tem sofrido muito com a pandemia. Ele conhece bem a Amazónia e sabe de cor as vocalizações de mais de mil aves. Mario desvalorizou toda a conversa sobre a recuperação dos animais selvagens.

Os parques nacionais dos EUA sofreram uma redução dramática do número de visitantes na Primavera passada, mas os números recuperaram mais tarde, juntamente com as vendas de autocaravanas e bicicletas. A instituição Leave No Trace Center for Outdoor Ethics diz que os praticantes de actividades de lazer afirmaram ter passado mais tempo ao ar livre este ano e trocaram desportos de aventura que exigissem viajar por actividades mais próximas de casa como a observação de aves, a jardinagem e o ciclismo. Muitas cidades encerraram o trânsito em algumas ruas para criarem espaço para jantares ao ar livre, eventos públicos e parques. — D A N I E L S T O N E

“Aquilo que tenho visto é um declínio constante da abundância e diversidade das espécies, ao longo dos 30 anos que aqui passei”, disse, recordando que Manaus cresceu, transformando-se numa metrópole industrial com dois milhões de habitantes. (3) A pandemia não mudou nada. Mario temia até uma reacção negativa contra os animais selvagens, começando pelos morcegos, os transmissores do novo coronavírus. “As relações da humanidade com a natureza sempre foram ambivalentes” disse. “Este tipo de acontecimento promove medo.” Este ano a desflorestação da Amazónia foi mais grave do que em 2019, ano em que se acentuara de forma dramática. REPENSANDO O NOSSO MUNDO

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Há várias décadas que os problemas ambientais actualmente vividos se têm agravado. Se a COVID-19 fizer alguma diferença a longo prazo, não será porque parou o trânsito durante algum tempo. Será porque a experiência global mudou a nossa cultura. “A ciência demonstra com clareza que esta década é a década decisiva para o futuro da humanidade na Terra”, disse Johan Rockström, director do Instituto Potsdam para a Investigação do Impacte Climático, sediado nos arredores de Berlim. O seu gabinete fica na torre de um antigo observatório astronómico. Quando conversámos, numa quinta-feira de Maio, ele encontrava-se praticamente sozinho no enorme edifício do século XIX. Desde 2009 que Johan e outros investigadores dizem que a humani-

dade está a colidir com nove “fronteiras planetárias” diferentes. A biodiversidade que estamos a perder enquanto arrasamos florestas e extinguimos espécies é uma dessas fronteiras. O azoto que estamos a largar nas vias fluviais, vindo de campos agrícolas excessivamente adubados, é outra. Os cientistas debatem a maneira como estas fronteiras podem ser quantificadas e se, para além delas, haverá “pontos de viragem” de mudança catastrófica. No entanto, o princípio básico de que estamos a prejudicar perigosamente o planeta é difícil de contestar. As alterações climáticas são o melhor exemplo disso. Por que razão nos é tão difícil aceitar a existência desta ameaça bem documentada? Elke Weber, psicóloga da Universidade de Princeton, passou décadas a investigar essa questão. “O problema fundamental é a nossa miopia excessiva enquanto espécie”, disse-me. “Vivemos centrados em nós. Vivemos centrados no aqui e agora.”

O princípio do fim do carbono?

É provável que a COVID-19 cause uma redução sem precedentes nas emissões de dióxido de carbono.

Segundo as projecções, as emissões globais deveriam atingir o auge por volta de 2024, mas o declínio deste ano, devido aos confinamentos associados à COVID-19, poderá prenunciar um ponto de viragem antecipado na luta contra as alterações climáticas.

100

Em 2015, registou-se aquecimento de 1°C *

1 Janeiro 1 Junho

Crise financeira

-8%

80

2020 Projecção da quebra deste ano

Mudança diária em 2020 60

Segundo choque Primeiro choque petrolífero

40

EM IS S ÕE S GLOBAI S D IÁRIAS REL ACI ONADAS COM E NE RGI A Milhões de toneladas de CO2

20

Segunda Guerra Mundial 1918 Depressão Gripe pneumónica

10

0 1900

1950

2000

2020

T E N D Ê N C I A S H I STÓ R I C A S As recuperações de crises passadas provocaram retomas rápidas das emissões, incluindo o maior aumento ano após ano de que há registo, após a crise financeira de 2008. A descarbonização das fontes de energia ajudaria a quebrar a ligação entre o crescimento económico e as emissões. * ACIMA DOS NÍVEIS PRÉ-INDUSTRIAIS LAWSON PARKER; SCOTT ELDER. FONTES: AGÊNCIA INTERNACIONAL DE ENERGIA; EMISSÕES DURANTE A PANDEMIA: LE QUÉRÉ E OUTROS, NATURE CLIMATE CHANGE 2020; TRAJECTÓRIAS DE AQUECIMENTO ACTUAIS E PLANEADAS E ESTIMATIVA DAS EMISSÕES 2040-2100: ZEKE HAUSFATHER, THE BREAKTHROUGH INSTITUTE; CONCENTRAÇÃO: MET OFFICE HADLEY CENTRE

J

F

M

A

M

J

AC T UA L I DA D E Os decréscimos causados pelo confinamento parecem ser instáveis e temporários.


100

Trajectória actual (3,1°C até 2100*)

O mundo prossegue sem alterações às políticas actuais.

Trajectória desejada (2,8°C)

Este cenário já reflecte o impacte das políticas existentes e as intenções políticas já expressas.

4. O simulador está disponível, a título gratuito, em climateinteractive.org/ tools/ en-roads. Surpreendentemente, o controlo demográfico não ajuda muito.

abaixo de 2ºC. (4) John assegurou-me que o modelo se baseava na ciência mais recente. Qualquer pessoa com paixão por números pode gostar do simulador. Eu fiquei fascinado. Um dos meus mundos futuros levava a eficiência energética ao máximo nos automóveis e nos edifícios, reduzia as fugas de gases com efeitos de estufa de oleodutos, gasodutos e explorações agrícolas e impedia novos investimentos em carvão e petróleo até 2025 e 2035, respectivamente. Pus em prática mais algumas medidas e quase consegui atingir 2ºC. A remoção de algum CO2 da atmosfera fez-me cruzar a linha da meta. Como a tecnologia para o fazer ainda não foi comprovada, John prefere aumentar o preço do carbono.

O volume de CO2 na atmosfera contribui para o aquecimento e reflecte as nossas emissões ao longo dos séculos. A redução de 8% de 2020 só abrandará ligeiramente o seu crescimento. CO NCEN TRAÇÃO ATMO SFÉRICA Partes por milhão de CO2

80

Cenário sustentável (1,7°C)

60

408,6

Mitigação global rápida trava o aumento da temperatura média global abaixo de 2°C.

411,5

414,3

Projecção pré-COVID

414 Projecções revistas com impactes do COVID

40

20

0 2020

EMIS SÕE S DIÁRIAS GLOBAIS RELACIONADAS COM ENERGIA Milhões de toneladas de CO2. (estimativa)

Emissões líquidas de 0 em 2070

2050

2100

C E N Á R I O S F U T U RO S É viável manter o aquecimento global a não mais de 2°C acima dos níveis pré-industriais, mas exige cortes drásticos e imediatos das emissões, mantidos ano após ano durante décadas, até as emissões líquidas atingirem o zero.

2018

2019

2020

As reduções de 2020 podem contribuir para impedir o CO2 atmosférico, mas são apenas o início de uma tendência.

O AQUECIMENTO NESTES CENÁRIOS FUTUROS É APENAS UMA ESTIMATIVA, PROPENSA A INCERTEZAS DEVIDO À SENSIBILIDADE CLIMÁTICA E AOS CICLOS DE RETORNO DO CARBONO. ÀS PROJECÇÕES FORAM ACRESCENTADAS AS EMISSÕES DE PROCESSOS INDUSTRIAIS, COMO A CALCINAÇÃO DO CIMENTO.

41

N AT I O N A L G E O G R A P H I C

Essa era uma boa estratégia de sobrevivência no Paleolítico, mas agora, que nos espalhámos sobre a Terra, enfrentamos ameaças que não são aqui, nem agora, como os leões eram naquela altura. As alterações climáticas são globais e, para travá-las, teremos de tomar medidas cujos benefícios só se farão sentir num futuro distante. No entanto, temos tendência a preferir escolhas que preservem o que existe agora. A escala e complexidade do problema climático também nos desencorajam de pensar nele. Mas há maneiras de fazê-lo parecer mais fácil de gerir. Certa manhã, John Sterman, director do MIT System Dynamics Group, mostrou-me um simulador de “escolha o seu próprio futuro” que criou com uma equipa chamada Climate Interactive. Dezoito barras permitiam ao utilizador definir políticas públicas que afectam o clima. Um número grande no canto superior direito indica o aumento da temperatura a nível global até 2100. O desafio é manter a subida

41


N AT I O N A L G E O G R A P H I C 42


5. Recordar às pessoas que o seu país tem uma história antiga também as incentiva a pensar no futuro e no ambiente a longo prazo, descobriu Elke Weber.

Muitos democratas e republicanos já usaram este simulador. “Ele permite às pessoas criarem o futuro que querem ver”, comentou sem nunca sugerir o que escolher. A descoberta do próprio caminho é muito mais convincente e estimulante. “Eles chegam ao fim com a sensação de que é importante resolver o problema”, disse Sterman. “E de que é possível.” No decurso das suas experiências de psicologia comportamental, Elke Weber descobriu muitas outras formas de incentivar as pessoas a centrarem-se mais no futuro. Uma delas é particularmente relevante neste momento. Membros de um grupo são questionados sobre o que pensam em relação às alterações climáticas e qual a sua disposição para fazerem escolhas a favor do ambiente. Aos do segundo grupo foram feitas as mesmas perguntas mas, primeiro, passaram alguns minutos a escrever um breve ensaio sobre como gostariam de ser recordados pelas gerações futuras. “Todos odiamos o facto de termos de morrer”, explicou a investigadora. “De vez em quando, lembram-nos de que somos mortais.” Na sua última experiência, pelo menos, esse lembrete fez as pessoas ficarem mais preocupadas com o ambiente e mais dispostas a ajudar. (5) P O D E S E R R E V I G O RA N T E pensar

A natureza e o património edificado coexistem na ilha artificial de Treasure Island, na baía de São Francisco.

com antecedência na Terra que vamos deixar aos nossos filhos e na história que eles vão contar sobre nós. O mesmo aplica-se à história que contamos a nós próprios, conscientemente ou não, e de onde vem essa história. A narrativa subjacente à civilização europeia e americana tem exercido um grande efeito sobre o planeta nos últimos séculos. A Bíblia é um bom ponto de partida. Em Génesis 1, Deus diz: “Façamos o homem à Nossa imagem… para que domine sobre os peixes… as aves… os animais domésticos… todos os répteis…” REPENSANDO O NOSSO MUNDO

43


Os actos individuais não são suficientes para reduzir o aquecimento.

A revisão das repercussões da COVID-19 sobre fontes e sectores da energia mostra que só se limita o aquecimento com fontes alternativas, aperfeiçoamento da eficiência energética e melhorias nos sistemas de transporte e armazenamento de energia.

Solução sustentável para a crise

PROCURA POR FONTE

A LACUNA

As tecnologias actuais e futuras, bem como as políticas públicas bem centradas, poderão acelerar uma transformação global da energia.

2020 O consumo de petróleo caiu a pique quando a aviação e outros meios de transporte (quase 60% da procura global) foram abrandados pelas restrições impostas pela COVID-19. 2040 Num cenário sustentável, as energias renováveis (maioritariamente eólica e solar) aumentam de 14% para 34% da procura total de energia, substituindo os combustíveis fósseis.

CENÁR IOS DE EMIS SÕ E S PARA 2050 COM CE NÁRIO S AS SO C IAD OS A EN ERG IA Mil milhões de toneladas de CO2

P RO CURA GLOBAL ANUAL DE E NERGI A Equivalente a milhões de toneladas de crude 2020 Estimativa

2019

2040 Cenário sustentável

45

Trajectória actual (3,1°C*)

-9% 4.000

Energia -8 -5

Trajectória desejada (2,8°C)

40

3.000

+1

2.000

1.000

-3

As energias renováveis baratas, com acesso preferencial à rede de abastecimento eléctrico, mantiveram-se resilientes durante a pandemia.

Métodos de redução para atingir cenário sustentável

-7 36

RENOVÁVEIS

Eólica Solar fotovoltaica Transporte de biocombustíveis 30

Marés Outras

0

Petróleo

Carvão

Gás

Nuclear

EFICIÊNCIA

Renováveis

Indústria

EMISSÕES POR SECTOR 2020 As reduções causadas pela COVID são ineficientes, com impactes pequenos nos sectores com maiores emissões. 2040 As emissões diminuem com a transição dos combustíveis fósseis na indústria e transportes para fontes eléctricas. As energias renováveis e o nuclear descarbonizam a rede.

Edifícios Sector automóvel Aviação e navegação Transportes

Outros

20

OUTROS

Transição de combustíveis

Indústria

Sequestro de carbono. Eficiência de recursos

-19 EM IS SÕE S D IÁRI AS DE C O 2 Milhões de toneladas de CO2 2019

11 Junho 1 Jan.

Aviação

-62%

2020 (diário)

Actividades comerciais e públicas

Mudanças comportamentais

-36 2040 Cenário sustentável

10

10

Veículos eléctricos Nuclear Cenário sustentável (1,7°C)

Residenciais +3

-21

0

0 *ACIMA DOS NÍVEIS PRÉ-INDUSTRIAIS ATÉ 2100

LAWSON PARKER; SCOTT ELDER. FONTES: AGÊNCIA INTERNACIONAL DE ENERGIA; LE QUÉRÉ E OUTROS, NATURE CLIMATE CHANGE 2020 (EMISSÕES PROVENIENTES DA CALCINAÇÃO DE CIMENTO OMITIDAS)


6. A Pequena Idade do Gelo já foi associada tanto a erupções vulcânicas como à actividade solar. Essas flutuações naturais não estiveram relacionadas com o aquecimento global da actualidade 7. Se o objectivo for a felicidade, o crescimento do PIB não consegue comprá-la nos países ricos: inquéritos realizados mostram que a felicidade está estagnada há décadas.

e traumatizaram uma geração, um economista americano chamado Simon Kuznets desenvolveu uma forma de medir o rendimento de cada país. Aqui estava um número, único e sedutor, associado ao crescimento económico. Depois da Segunda Guerra Mundial, o aumento desse número, que viria a ser conhecido como Produto Interno Bruto (PIB), tornou-se uma obsessão para os governos. “Essa fixação tem sido usada para justificar desigualdades extremas de rendimento e riqueza associadas a uma destruição sem precedentes do mundo vivo”, escreveu a economista britânica Kate Raworth. Resumindo: o crescimento económico, enraizado numa interpretação errada da Bíblia, ampliada pelo Iluminismo e pela Revolução Industrial, transformou-se na nossa história global. Para Kate Raworth, nada disto é positivo para nós. Como seria se as economias do mundo fossem geridas dentro dos limites estabelecidos pela natureza? Os defensores do crescimento sempre tiveram um poderoso argumento moral: o crescimento económico tirou milhares de milhões de pessoas da pobreza e outros milhares de milhões ainda precisam dos seus benefícios. O problema não é o crescimento ser todo negativo, diz Kate Raworth no seu livro “Economia Donut”, publicado em Portugal em 2018. É óbvio que alguns países ainda precisam de muito mais, mas outros não. (7) O crescimento já não deveria ser a aspiração mais importante. O donut exemplifica aquilo que, para Kate, deveria ser o nosso objectivo. A parte de fora é o “tecto ecológico”, as fronteiras planetárias definidas por Johan Rockström e os colegas. A parte de dentro são “os alicerces sociais”: o alimento, a saúde, a educação e outros factores essenciais para a dignidade humana. A ideia é permitir que todos os habitantes da Terra possam ter uma vida digna sem arruinar o planeta para todos. REPENSANDO O NOSSO MUNDO

45

45

N AT I O N A L G E O G R A P H I C

Ellen Davis, teóloga da Universidade Duke, reflectiu aprofundadamente sobre essa passagem. “Quando ouvimos falar em ‘domínio’ pensamos em ‘dominar’, uma imposição rígida, exercida de cima para baixo, do poder humano sobre o resto do mundo”, disse. Neste contexto, porém, Ellen acha que a palavra hebraica radah tem um significado diferente. Sendo assim, a civilização ocidental baseia-se em parte na interpretação errada de um dos seus textos de base. Não há dúvidas de que o Génesis conferiu um estatuto especial aos seres humanos, por serem as únicas criaturas à imagem de Deus, explicou Ellen. Mas Deus abençoou as outras criaturas antes de nos abençoar a nós e fê-lo da mesma forma, ordenando-lhes que crescessem e se multiplicassem. Seja qual for o significado de radah, pode não ser “aniquilar a bênção”, acrescentou a minha interlocutora. E, no entanto, é isso que estamos a fazer: erradicar mais uma espécie enquanto subjugamos a Terra. Em vez de “dominar”, Davis traduz radah como “actuar com mestria entre as criaturas”. Deus queria que fôssemos artesãos qualificados, seguindo o seu exemplo ao criar-nos. Mas também guardiões qualificados da criação. A grande reviravolta seguinte na narrativa ocidental aconteceu no século XVII, com o Iluminismo, que libertou as nossas mentes do domínio total exercido pelos textos antigos, mas ampliou a ideia de que deveríamos dominar a Terra. Uma das raízes do Iluminismo, segundo o historiador alemão Philipp Blom, encontrava-se na Pequena Idade do Gelo do século XVI, um período tão frio que apareceu um icebergue ao largo de Roterdão e não se registaram colheitas em toda a Europa. (6) A religião não conseguia salvar as colheitas e as comunidades questionaram a sua autoridade. Procuraram então a aprendizagem sistemática, através da observação e da experiência. Olharam por isso para a ciência. Foi assim que a ideia de progresso entrou na civilização ocidental. E, desde o início, escreve Blom, ela sempre foi considerada um sinónimo de crescimento económico. Antes, o crescimento fora lento e intermitente e assim se manteve até à Revolução Industrial dos séculos XVIII e XIX. Depois, impulsionado pela ciência e pela tecnologia, bem como pelos recursos extraídos das colónias, levantou voo. No século XX, o crescimento económico tornou-se um fim em si. Durante a Grande Depressão, quando as economias entraram em colapso


N AT I O N A L G E O G R A P H I C

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Neste quarteirĂŁo de Manhattan, um punhado de ĂĄrvores espreita a 12 andares de altura.


8. E como conseguiremos lá chegar? O donut é No passado mais uma ideia do que um esquema. Para mumês de Maio, 38 dar esse projecto é preciso uma transformação cidades cultural profunda, uma mudança colectiva das globais da rede C40 mentalidades que a pandemia, por mais horrícompromevel que seja, poderá favorecer. “Acho que esta teram-se a não pandemia está a empurrar-nos mais depressa regressar para o futuro que sabíamos que queríamos”, disà “vida normal” se Kate Raworth. enquanto Poderíamos ter visto ténues premonições desrecuperam de uma se futuro este ano se estivéssemos predispostos pandemia a isso. Poderíamos tê-lo visto na decisão tomada com “raízes na em Janeiro pela BlackRock, que gere quase três destruição biliões de euros em activos, de começar a reduambiental”. zir o investimento no carvão, embora ainda não no petróleo e no gás. Também poderíamos ver essa mudança na decisão tomada em Julho pela União Europeia de investir 550 mil milhões REPENSANDO O NOSSO de euros em medidas climáticas MUNDO nos próximos sete anos, ou na proliferação de ciclovias nas ruas de cidades europeias e norte-americanas. Ellen Davis viu-a em Maio quando fez o seu discurso no Festival da Homilética, que contou com a participação de milhares de pregadores cristãos, que este ano se inscreveram num curso de formação de uma semana na Internet, para aprenderem como pregar sobre as alterações climáticas. Dois terços dos norte-americanos estão preocupados com o tema, segundo um inquérito recente. É o mesmo número de sempre, apesar da pandemia e apesar da indiferença da actual presidência. Há, porém, pontos de viragem sociais e climáticos, concluiu uma equipa liderada por Ilona Otto, do Instituto Potsdam, num artigo publicado no início de Fevereiro. A mudança pode começar numa sala de reuniões, no governo ou nas ruas. Sempre que se inicia uma mudança, por vezes, espalha-se de forma contagiosa, e as pessoas são inspiradas pelo exemplo de outras. Uma pequena minoria pode mover-nos a todos. É claro que esses anjos de viragem podem não ser os melhores. Neste ano terrível, sobretudo, o medo pode facilmente conduzir-nos à viragem no sentido de reduzirmos a despesa e recuperarmos a situação anterior. Kate Raworth está a centrar-se nas cidades, tentando convencê-las a

UM PLANETA, DUAS CRISES

“emergirem desta emergência” com um novo rumo. (8) No início de Abril, no meio do seu próprio confinamento, Amesterdão tornou-se a primeira cidade a adoptar o seu modelo de donut, prometendo pensar em todos os impactes de tudo o que faz. Para começar, disse que iria reduzir para metade o seu consumo de matérias-primas até 2030. “As pessoas sentem-se atraídas por histórias que lhes dêem esperança, que lhes dêem esperança num futuro seguro no qual elas sejam importantes”, disse Kate Raworth. “E nesta história voltamos a ligar-nos ao mundo vivo,

O interesse público pelo aquecimento global nos EUA atingiu um pico histórico em Novembro do ano passado, segundo investigadores das universidades de Yale e George Mason. A grande maioria dos norte-americanos acredita que o aquecimento global causado pelos seres humanos é real e sente-se preocupada ou mesmo pessoalmente responsável. Surpreendentemente, um inquérito realizado em Abril concluiu que a COVID-19 não alterara as preocupações com o clima, embora tenha reduzido a cobertura noticiosa do tema. “A questão parece ter amadurecido”, afirmou Anthony Leiserowitz, da Universidade de Yale. “Parece-me um sinal muito promissor.” — R O B E R T K U N Z I G

voltamos a ligar-nos à nossa comunidade e fazemos perguntas importantes sobre o que significa prosperar.” quando Martin Luther King, Jr., levou a campanha dos direitos civis até Birmingham, um ponto de viragem na luta contra a segregação, decorrera exactamente um século desde a proclamação da emancipação de Lincoln. Decorrera igualmente um século desde que John T. Milner abrira a primeira mina na montanha Red para fornecer ferro à confederação. Em 1962, a U.S. Steel encerrou a última. Durante 99 anos, aquela secção da cumeeira a sudoeste de Birmingham fora devastada. EM 1963,

REPENSANDO O NOSSO MUNDO

47


Os planos de recuperação económica da actualidade determinarão o nosso clima no futuro.

Pensar em grande para a via ecológica

Os governos estão a tomar decisões que vão moldar as infra-estruturas, a indústria e o clima durante décadas. Os incentivos oferecem uma oportunidade única para promover o crescimento, criando um futuro mais sustentável.

IMPACTE DA PANDEMIA NO INVESTIMENTO ENERGÉTICO Havia previsões de crescimento no investimento na energia em 2020, mas a COVID-19 encaminhou o mundo rumo à maior quebra da história: uma redução de um quinto (quase 400 mil milhões) comparada com 2019. Os combustíveis fósseis representaram a quase totalidade do prejuízo. Q UE DA HI STÓRI C A no investimento em combustíveis fósseis

das necessidades de investimento para acompanhar um cenário sustentável são pouco compatíveis com as tendências actuais

Investimento mundial em energia $1.500 mil milhões Valores em USD 2019

A queda a pique em todos os sectores energéticos, sobretudo nos combustíveis fósseis, foi motivada pela diminuição da procura, a descida dos preços e a volatilidade dos mercados.

2040

$921

MIL MIL HÕ E S

2030

1.000

$776

O declínio do preço do petróleo em 2014 fez diminuir o investimento no petróleo e no gás. As energias renováveis 2019 prejudicaram os investi- $343 mentos no carvão. MI L Renováveis M I L H Õ E S

Combustíveis fósseis * 500 Redes de electricidade e abastecimento de baterias Nuclear 0 2000

M IL M IL H ÕE S

Eficiência energética†

2010

2020

2030

2040

* FORNECIMENTO DE COMBUSTÍVEL E DE ENERGIA COM BASE EM COMBUSTÍVEIS FÓSSEIS †DADOS ANTERIORES A 2014 NÃO DISPONÍVEIS

VANTAGENS DE NOS TORNARMOS ECOLÓGICOS Os preços mais acessíveis das energias renováveis e o potencial de milhões de novos empregos no sector da energia limpa são dois benefícios que os governos devem ter em consideração quando estruturarem os planos de recuperação económica após a COVID-19. E N E RG I A M A I S BA R ATA Em cerca de dois terços do mundo, a energia eólica e solar são as fontes de energia menos dispendiosas.

EMPREGOS S U ST E N TÁV E I S Uma transferência maciça para energias limpas poderá criar mais sete milhões de empregos do que a trajectória actual. 2017

$150

120

90 Custo da electricidade nos EUA

Dólares por megawatt-hora. Valores em USD 2019

Estimativa 60

Capacidade prevista 30 Capacidade instalada

2030 2050

’50

100 milhões de empregos 80

’17

60

Empregos no mercado global de energia Eólica Offshore Gás Carvão Eólica Onshore Solar

0 2014 ’20

’30

2050

40

Renováveis Eficiência energética Flexibilidade energética e rede

20

Nuclear Combustíveis fósseis Trajectória actual

0 Abaixo do cenário de + 2°C

LAWSON PARKER; SCOTT ELDER. FONTES: AGÊNCIA INTERNACIONAL DE ENERGIA; BLOOMBERGNEF; AGÊNCIA INTERNACIONAL DE ENERGIAS RENOVÁVEIS


9. “A maior ameaça para o ambiente é o afastamento entre as pessoas e a natureza”, disse Wendy Jackson. “A única forma de conservarmos algo é gostarmos dela.”

Nasceu dois dias depois de segregacionistas brancos atacarem à bomba a Igreja Baptista da Rua 16, matando quatro meninas – um crime que ajudou a aprovar a Lei dos Direitos Civis. Jerri Haslem acabara de renunciar a uma carreira empresarial para trabalhar como oradora motivacional na área da saúde, quando o director do parque, T.C. McLemore, a convenceu a ajudá-lo a tentar aumentar a sua influência junto da comunidade. Nos primeiros anos, o parque pretendia ser um destino de aventura para caminheiros, ciclistas de montanha e montanhistas. “Era um parque para as pessoas de Homewood”, disse Jerri, referindo-se ao subúrbio predominantemente branco onde eu e a minha mulher vivemos. “Mas o parque fica em Birmingham!” A pandemia atingiu Birmingham com força. Neste Verão, a cidade enfrentava um buraco orçamental de 53,5 milhões de euros por insuficiência de receitas fiscais devido ao encerramento de empresas. O vírus, entretanto, progredia. O parque também enfrentava um futuro complexo: é uma parceria público-privada, mas com pouco financiamento público. No entanto, a pandemia também foi boa para o parque. O número de visitantes atingiu máximos históricos. Segundo Jerri Haslem, foi visitado como nunca pelos habitantes negros, alguns dos quais chegando por uma nova entrada, a norte: o lado de Birmingham. Iam ao parque para saírem de casa, para caminharem na natureza, “para ouvirem o raio dos pássaros”. “Tem de haver muitas forças diferentes”, prosseguiu Jerri Haslem. Agora estávamos a falar sobre a maneira como esta semente de novidade poderá vir a prosperar. “Tem de ser o governo, a comunidade, as pessoas comuns, as pessoas ricas. Têm de ser todos. Se forem apenas os pobres, não vai resultar. Se forem apenas os ricos, não vai resultar. Têm de ser todos. E está a acontecer, de forma orgânica, por causa da COVID.” j REPENSANDO O NOSSO MUNDO

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49

N AT I O N A L G E O G R A P H I C

“Não havia nada naquela montanha” nessa altura, disse Wendy Jackson, antiga directora da Freshwater Land Trust, uma organização ambiental local. “Não havia árvores. Nada, excepto as instalações mineiras.” Quando Wendy a visitou pela primeira vez, por volta de 2004, há mais de quatro décadas que a terra não era perturbada, excepto quando as pessoas ali vinham despejar lixo. A floresta voltara a crescer. O kudzu engolira as encostas iluminadas pelo sol como uma maré verde e revestira as fronteiras da floresta. Não era natureza prístina, mas era um ressurgimento da natureza. E, escondidos no meio dos bosques, viam-se os poços arruinados das minas, pelos quais um século de mineiros, brancos e negros, desciam todas as manhãs para o interior da montanha, seguindo o veio inclinado de minério de ferro a profundezas cada vez maiores. As árvores cresciam pelas janelas e telhados caídos das casas de banho em betão, onde os homens lavavam a poeira vermelha à noite. Parecia “que estávamos a tocar no passado de Birmingham”, comentou Wendy. Em 2005, ela e o Freshwater Land Trust negociaram um acordo com a U.S. Steel para comprar 450 hectares da montanha e transformá-la um parque. O Parque da Montanha Red abriu em 2012. Nos primeiros anos, eu e a minha mulher fomos lá poucas vezes. Não sei porquê, mas não estava no nosso radar. (9) Então, chegou a pandemia. Agora fazemos uma caminhada no parque quase todas as manhãs de domingo. O parque fica dentro dos limites da cidade, mas é suficientemente grande para conseguirmos desaparecer na floresta e andar sozinhos com as aves e as cigarras. Quando o calor se faz sentir, descansamos sob a brisa fresca de uma entrada da mina. E com a indústria do aço tão diminuída e a existência de menos poluição automóvel, a vista ali do alto, sobre o vale, é mais límpida do que antigamente. No início de uma manhã deste Verão, fui passear com Jerri Haslem, a primeira funcionária superior negra do parque, recrutada no ano passado. Nascera em Birmingham, em 1963, disse-me enquanto caminhávamos junto de uma pequena ferrovia que em tempos transportou minério de ferro para as fundições. Filha de um operário da indústria do aço, nasceu na ala da maternidade reservada a negros, na cave de um hospital, numa cidade que preferia ter os seus parques encerrados a eliminar a segregação.


Na Jordânia, morada de uma das maiores concentrações de refugiados do mundo, sudaneses aguardam a sua vez de trocar vales por alimentos, numa mercearia de Aman. O recolhimento obrigatório e a recessão económica trazidos pela pandemia atingem particularmente os refugiados. A maioria dos sectores de emprego legal está vedada aos não-jordanos.


DOSSIER

UN MUNDO VIRALIZADO

11/20

JORDANIA

Para o enorme número de refugiados que vivem na Jordânia uma dificuldade vem atrás da outra. Na sua maioria, têm conseguido evitar a COVID-19, mas não a perda de emprego e as privações da crise.

FOTO G RA F I A S D E

MOISES SAMAN

51


Refugiadas sírias fazem filas com a devida distância enquanto aguardam os donativos da UNICEF: são conjuntos de higiene e outros bens necessários. As famílias vivem num povoado de tendas nos arredores de


Al-Mafraq. Centenas de milhares de outros refugiados vivem em acampamentos especiais ou bairros urbanos. O distanciamento social nessas zonas mais sobrepovoadas ĂŠ um luxo inatingĂ­vel.

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DOSSIER: JORDÂNIA

TEXTO DE CYNTHIA GORNEY

N AT I O N A L G E O G R A P H I C

54

P

o governo encerrou quase tudo: fronteiras, lojas e escolas. Depois, proibiu a presença de civis nas ruas. Tanques e camiões do exército reforçaram o confinamento imposto sem excepções, nem mesmo para adquirir comida ou medicamentos. Aman fica nas montanhas e, da sua cozinha, o fotógrafo Moises Saman conseguia ouvir os ecos das sirenes da cidade, semelhantes às que se usam nos avisos de ataques aéreos. Ficou em casa com a família até as restrições abrandarem, com saídas apenas durante o dia para fins devidamente aprovados. Então, foi à procura dos sítios onde vivem os refugiados. Vivem actualmente na Jordânia cerca de 750 mil refugiados recentes, reunidos em campos reservados para o efeito ou dispersos por aldeias e bairros. Vêm da Somália e do Sudão, mas em grande maioria são sírios que fugiram à guerra civil. Ao captar as suas fotografias, dentro de habitações improvisadas e apartamentos urbanos na Primavera passada, frequentemente acompanhado por trabalhadores da UNICEF, Moises percebeu que os terríveis cenários inicialmente imaginados naquelas instalações tinham sido evitados. O rigor das medidas de confinamento adoptadas pela Jordânia, juntamente com um rastreio agressivo dos contactos, terá mantido a epidemia à distância: em finais de Agosto, havia apenas 15 mortes por COVID-19. Já o rescaldo do confinamento foi mais complicado. A pandemia afectou a economia, eliminando o trabalho informal de que muitos refugiados dependem. As escolas e os centros comunitários, abruptamente encerrados, eram lugares seguros que davam apoio às crianças refugiadas, sobretudo às raparigas, para as quais o ensino é uma protecção contra o casamento precoce. Quando as aulas passaram a ser leccionadas através da Internet ou da televisão, as crianças sem acesso a computadores tentaram fazer os trabalhos de casa e os exames no único ecrã existente nas suas casas: o do telemóvel da família. Para completar trabalhos de casa num telefone, consomem-se dados móveis. O carregamento dos dados custa dinheiro. Aos donativos essenciais para esta pandemia, como sabão, baldes e lápis, a UNICEF acrescentou uma forma de assistência bastante moderna: carregamentos de dados para ajudar crianças determinadas a continuarem a estudar. j R I M E I RO,

Para as crianças refugiadas ou marginalizadas, como estas raparigas da comunidade da minoria étnica jordana Dom, as escolas e centros de assistência são fontes essenciais de apoio. No entanto, essas instalações estiveram fechadas durante meses devido à pandemia.

ÁS IA

JORDÂNIA

RESPOSTA AO SURTO Na Jordânia, o surto de COVID-19 iniciou-se em 3 de Março, dia em que foi registado o primeiro caso confirmado. As restrições governamentais começaram no 16.º dia do surto e o recolhimento obrigatório 24 horas por dia foi imposto ao 19.º dia, durante três dias. O impacte ao 100.º dia: nove mortes registadas. Dia 1

Resposta do governo Inexistente

Severa

Dia 100 2

4 mortes

TAYLOR MAGGIACOMO E IRENE BERMAN-VAPORIS FONTES: OXFORD COVID-19 GOVERNMENT RESPONSE TRACKER; CENTRO EUROPEU PARA A PREVENÇÃO E CONTROLO DE DOENÇAS



No Campo de Irbid, onde vivem alguns dos mais de dois milhões de palestinianos residentes na Jordânia, funcionários do Ministério da Saúde encontram uma pessoa disposta a colaborar num dia de testes aleatórios


à COVID-19. No final do Verão, com o levantamento de restrições impostas pelas políticas de confinamento, este país com mais de dez milhões de pessoas só registara 15 mortes causadas pelo vírus.

57



Para os refugiados sírios, as repercussões da pandemia representaram mais uma sobrecarga a uma existência já difícil. No campo de refugiados de Mafraq, esta mãe observa os dois

À E S Q U E R DA :

filhos e o conteúdo de uma caixa de donativos da UNICEF. O pai das crianças trabalha como operário e, como a maioria dos refugiados, perdeu o emprego durante o confinamento. E M B A I X O : Tomando

novas precauções antes de proceder às rondas, este enfermeiro dos Médicos sem Fronteiras protege-se num hotel de Aman arrendado pela organização para alojar doentes hospitalares no período pós-operatório.

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Quando a Grande Mesquita al-Husseini abriu após o confinamento, houve tantos fiéis desejosos de entrar que se formou uma multidão à porta. No interior e no exterior, tapetes individuais foram dispostos com uma


distância de segurança. As exigências de distanciamento social sobrepuseram-se à instrução islâmica, segundo a qual as orações em grupo devem ser feitas com os crentes encostados uns aos outros.

61


Uma brisa, um telhado e pelo menos uma circunstância que ele consegue controlar: um jovem jordano reserva um momento para si. Durante o confinamento, os cÊus de Aman ficaram frequentemente salpicados por


papagaios, muitos dos quais feitos em casa. Para incentivar uma forma de diversão que não exigisse exposição a multidões, algumas empresas ofereceram papagaios com um aviso impresso: fiquem em casa.

63


´M E R O S A PA N D E M I A E M N U

Preço de uma pandemia: a pobreza espalha-se por todo o planeta

Em finais de 2020, prevê-se que mais de cem milhões de pessoas se encontrem em situação de pobreza extrema, vivendo com menos de 1,60 euros por dia. Outros milhões de pessoas estão a empobrecer. As situações de confinamento prolongado poderão agravar estas previsões, já de si sombrias, em 2021. INFOGRAFIA DE

ALBERTO LUCAS LÓPEZ

64


TRÊS LIMIARES DE POBREZA

O Banco Mundial categoriza a pobreza em três escalões, baseado em dados fornecidos individualmente por cada país: 4,65 euros por dia, um limiar típico dos países de rendimento médio. 2,70 euros por dia, como se regista em países de rendimento médio-baixo. 1,60 euros por dia, nos países mais pobres do mundo (considerada pobreza extrema).

4 MIL MILHÕES DE PESSOAS NA POBREZA

4,65 euros

OU MENOS, POR PESSOA, POR DIA

Em 2021, entre 218 milhões e 306 milhões de pessoas em todo o mundo caíram abaixo deste limiar típico de países como a Colômbia, o Peru e a Sérvia.

PIOR CENÁRIO POSSÍVEL

PREVISÃO ANTERIOR À PANDEMIA

3 MIL MILHÕES

2,70 euros

OU MENOS, POR PESSOA, POR DIA

2 MIL MILHÕES

A maior parte dos 246 a 318 milhões de pessoas que, segundo as previsões, poderão cair abaixo deste limiar de pobreza vivem em países da Ásia Austral, incluindo a Índia e o Bangladesh.

1,60 euros

OU MENOS, POR PESSOA, POR DIA

MIL MILHÕES

Em 2021, prevê-se que mais 111 a 149 milhões de pessoas possam cair abaixo deste limiar de pobreza correspondente a países de rendimento baixo como o Chade, a Etiópia e o Mali.

0 2000

2005

2010

2015

2020

FONTE: BANCO MUNDIAL


0

EMPURRADOS PARA A POBREZA Os efeitos da COVID-19, combinados com outras catástrofes, repercutem-se de maneira diferente em cada país. Muitos países mais ricos têm-se mantido relativamente protegidos. Alguns dos países mais pobres do mundo enfrentam as maiores dificuldades. Neste gráfico, as barras coloridas mais compridas representam a projecção do salto das taxas de pobreza do país, desde o início de 2019 (pré-pandemia) até finais de 2020.* A vida com

€ 1.60

pessoa/dia ou menos

€ 2.70

ou menos

Percentagem da população neste escalão de pobreza no início de 2019 (antes da pandemia da COVID-19)

€ 4,65

PAÍSES CLASSIFICADOS POR ORDEM DA MAIOR ALTERAÇÃO COMBINADA NOS TRÊS ESCALÕES DE POBREZA

PERCENTAGEM DA POPULAÇÃO

%

2

6

8

10

12

BELIZE GUIANA Honduras Iraque Sudão Vanuatu

Botswana

Nicarágua PERU

Namíbia México Argélia Fiji Equador Quirguízia Albânia Bolívia Jamaica Sta. Lúcia Tonga Brasil

ou menos

Percentagem projectada da população em finais de 2020 (durante a pandemia da COVID-19)

4

Irão Sri Lanka SAMOA Micronésia El Salvador Guatemala Marrocos Montenegro Colômbia Cabo Verde Kiribati Paraguai FILIPINAS Geórgia Mauritânia Kosovo

*BASEADO NUMA ANÁLISE, REALIZADA A MEIO DO ANO, DE PAÍSES COM BAIXO A MÉDIO RENDIMENTO. DADOS NÃO DISPONÍVEIS PARA A ÍNDIA, PAQUISTÃO E SENEGAL.

Gabão Tunísia

ALBERTO LUCAS LÓPEZ. SHELLEY SPERRY. FONTE DOS DADOS: LAKNER, C., ET AL., “HOW MUCH DOES REDUCING INEQUALITY MATTER FOR GLOBAL POVERTY?” JUNHO DE 2020. AS CONCLUSÕES SÃO DOS AUTORES E NÃO DO BANCO MUNDIAL.

0%

2

4

6

PERCENTAGEM DA POPULAÇÃO

8

10

12


14

16

18

20

22

24

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32

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36

38

40

42

Zimbabwe

LIBÉRIA São Tomé e Príncipe Congo Ilhas Salomão

TIMOR-LESTE Haiti SÍRIA África do Sul

Lesoto

Serra Leoa

Chade Comores

Eswatini (Suazilândia)

14

16

18

20

22

24

26

28

30

32

34

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38

40

42


PERCENTAGEM DA POPULAÇÃO

44

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52

54

56

58

60

62

64

66

68

70

72

74

BELIZE

Honduras Iraque

Botswana

Namíbia África do Sul

O governo sul-africano tentou impedir o aumento dos preços dos bens alimentares essenciais para evitar o empobrecimento das famílias.

Angola Quirguízia

NIGÉRIA

Iémen

Zâmbia Comores

Micronésia Guatemala

Na Guatemala, as famílias indígenas não conseguiram vender os seus produtos nos mercados. Nas zonas rurais, não têm frequentemente acesso a serviços de saúde e de segurança social.

Kiribati Eswatini FILIPINAS Mauritânia

44

46

48

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PERCENTAGEM DA POPULAÇÃO

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98

100

%

Zimbabwe

Sudão

A pior praga de gafanhotos em várias décadas (especialmente no Corno de África) destruiu as colheitas em África, no Médio Oriente e na Ásia Austral, agravando a pobreza e as crises alimentares.

Vanuatu LIBÉRIA São Tomé e Príncipe Congo Ilhas Salomão

TIMOR-LESTE Haiti SÍRIA

No Sudão do Sul, 4 em cada 5 pessoas viviam em pobreza extrema antes da pandemia de COVID-19.

SUDÃO DO SUL

Lesoto MIL MILHÕE

Os africanos enfrentam uma recessão pela primeira vez em 25 anos: milhões de pessoas sobrevivem com menos de 1,60 euros por dia.

Serra Leoa

Chade

No Iémen, as restrições de viagem impostas pela COVID-19 aumentaram em 20% o número de crianças subnutridas: prevê-se que esse número atinja 2,4 milhões este ano.

As barras vermelha, amarela e azul de cada país indicam a mudança percentual da população em três escalões de pobreza. Todas as barras começam no início de 2019 e estão projectadas até Dezembro de 2020. Ver chave para os pormenores. BELIZE. Dependente do turismo, perdeu milhares de empregos. As pessoas que vivem com 1,60 euros por dia poderão aumentar de 14 para 24% até ao final deste ano.

SÍRIA. Quatro em cada cinco sírios vivem na pobreza, após anos de guerra e migrações forçadas. A redução dos empregos e o preço dos alimentos poderão agravar a miséria.

LIBÉRIA. Entre 2000 e 2019, a Libéria fez progressos no acesso a água potável, educação e electricidade. Essas conquistas estão agora em perigo.

SUDÃO DO SUL. Mais do que a COVID-19, a guerra deu origem à taxa de pobreza. Doze milhões de pessoas passam fome todos os dias e há 4,2 milhões de crianças sem abrigo.

PERU. Sem uma segurança social forte, os vizinhos reuniram recursos em Lima para comprar alimentos. Durante o confinamento, o emprego sofreu limitações drásticas.

NIGÉRIA. O preço dos alimentos chegou a aumentar 50%. A taxa de desemprego subiu, desencadeando agitação social no país durante o confinamento.

TIMOR-LESTE, SAMOA. Nestas ilhas do Pacífico as taxas de infecção são baixas. Sem turismo, porém, mais de um milhão de ilhéus poderá cair na pobreza extrema.

FILIPINAS. Milhões dependem das remessas enviadas pelos emigrantes. Em Maio, os confinamentos reduziram essas remessas vitais em 19%, comparativamente com 2019.


Protegido da cabeça aos pés, Sterling Johnson higieniza um comboio da Bay Area Rapid Transit nas instalações de Concord, na Califórnia.

F O T O G R A F I A S D E PA R I D U KOV I C


SEM SABER BEM COMO,

REPENSANDO A NOSSA S O C I E DA D E

Como um vírus e a agitação social puseram à prova a nossa humanidade

A COVID-19 mudou a forma como vivemos e trabalhamos, destruindo alguns dos nossos rituais mais acarinhados. E, a par das manifestações mundiais em prol da justiça social, também nos recordou a necessidade desesperada de resolvermos a injustiça na nossa sociedade e de protegermos melhor os mais vulneráveis que vivem entre nós. ENSAIO DE

PHILLIP MORRIS

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Ruby Moss conseguiu reunir forças para se ajoelhar e rezar. Embora estivesse gravemente debilitada pelo vírus, pediu a Deus para salvar a vida de Adolphus Moss, seu marido há 32 anos. Ele estava a degradar-se rapidamente. Um enfermeiro acabara de lhe telefonar do hospital em Tuscaloosa, no Alabama (EUA), para a avisar que Adolphus já não conseguia respirar por si. “Ouve o meu apelo, Senhor. Poupa-lhe a vida”, repetia Ruby em desespero. Vários minutos mais tarde, recebeu a resposta. “Lamento. Ele não sobreviveu”, disse-lhe uma voz do outro lado do telefone. A cerimónia fúnebre realizou-se em Abril, junto da sepultura de Adolphus Moss no cemitério da Igreja Baptista de Fourth Creek, na cidade de York. Sem fanfarra nem qualquer celebração pública da sua vida, Adolphus, de 67 anos, diácono da sua igreja e respeitado líder cívico da sua comunidade rural, baixou à terra. O enterro durou dez minutos. “Não pude dar ao meu marido a cerimónia de despedida que ele merecia”, disse Ruby. “Disseram-nos que podíamos ter a presença de dez pessoas e que duas teriam de ser agentes funerários. Parecia que estávamos num mundo completamente diferente. Não parecia real.” O ano de 2020 trouxe mudanças inimagináveis à maneira como vivemos e à maneira como morremos. Os moribundos morrem sozinhos. Os sobreviventes choram solitários. O ritual da morte mudou tanto que deixou de ser reconhecível. O velório irlandês, com as suas tradições que reuniam pessoas a cantarem, a abraçarem-se e a brindarem ao falecido em redor do caixão aberto, foi drasticamente simplificado. A lavagem ritual dos corpos dos mortos, amplamente praticada nas religiões do Extremo e do Médio Oriente, é agora feita com equipamentos de protecção ou nem sequer é praticada.


N AT I O N A L G E O G R A P H I C

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Os últimos suspiros são agora rotineiramente dados sem um toque familiar reconfortante, nem um abraço de despedida. A COVID-19 transformou a morte na viagem mais solitária da experiência humana partilhada. “Os funerais são extraordinariamente importantes para gerir a dor”, comentou William Hoy, professor da Universidade de Baylor. “Um funeral por Zoom não é a mesma coisa. Temo que vamos pagar um preço elevado pela nossa incapacidade de nos abraçarmos, chorarmos e sofrermos juntos no mesmo espaço físico.” William salientou que “alguns sobreviventes que perderam familiares durante os ataques terroristas de 11 de Setembro ainda não recuperaram do facto de os corpos dos seus entes queridos nunca terem sido encontrados, nem devidamente sepultados. As pessoas de luto precisam mesmo do contacto humano”. Tornou-se dolorosamente claro que o vírus já alterou a vida tal como a conhecemos. Além de um assustador número de mortos, o vírus roubou-nos os tesouros mais essenciais da nossa experiência partilhada. Rotinas bem enraizadas, de trabalho, de estudo e de vida em família, estão agora estranhamente desfiguradas. Os hábitos diários foram virados de pernas para o ar. Os rituais comemorativos de marcos importantes das nossas vidas foram destroçados. Desde Março que, movidos pelo medo, assumimos frequentemente comportamentos invulgares, como comprar papel higiénico ou discutir com estranhos sobre a probidade de usar máscaras em público. As desigualdades estruturais e os valores perigosamente mal alinhados de sociedades de todo o mundo estão a ser examinados e avaliados. O que se qualifica como trabalho essencial? Quem é um trabalhador essencial? E por que razão se encontram os trabalhadores pobres tão desproporcionadamente nas linhas da frente e tão inadequadamente protegidos?

de turistas desembarcaram no Rio de Janeiro para um fim-de-semana de diversão em Fevereiro. É altamente provável que os foliões não estivessem a pensar nas dificuldades dos pobres enquanto bebiam caipirinhas e se divertiam nas famosas praias de Copacabana. No entanto, as dezenas de milhares de pessoas que se juntaram no Sambódromo Marquês de Sapucaí, um estádio na baixa da cidade, para assistir aos 13 desfiles do domingo de Carnaval de 2020 foram presenteadas com uma celebração de mulheres brasileiras pobres. A prestigiada escola de samba Unidos do Viradouro aproveitou o desfile para prestar homenagem às trabalhadoras negras pobres, descendentes de escravos africanos e conhecidas como lavadeiras da cidade brasileira de Salvador. Unidos do Viradouro foi considerada a melhor concorrente do concurso. O seu desfile foi aclamado pela audiência internacional. Aquele momento feliz acabou abruptamente. O Brasil registou o seu primeiro caso de COVID-19 nesse dia. Um empresário de 61 anos que visitara recentemente o Norte de Itália dirigiu-se a um hospital em São Paulo, queixando-se de febre, tosse e dores de garganta. Foi o paciente zero da América Latina. A sua infecção mostrou aos especialistas da doença que o coronavírus já deveria estar a propagar-se na América do Sul. De súbito, os hospedeiros médica e economicamente vulneráveis ao vírus, como as lavadeiras, e milhões de outras pessoas amontoadas nas favelas do Brasil passavam a correr riscos graves. Se a humanidade quiser vencer a COVID-19 e outros vírus futuros, os pobres e os socialmente desamparados terão de ser incluídos na rede de segurança que nos protege a todos. (1) Em finais de Agosto, o Brasil só era superado pelos EUA em número total de infectados e mortes confirmadas. Este é um vírus astuto. As pessoas afectadas por antigas desigualdades sociais enraizadas em diferenças de classe, casta, raça e riqueza são particularmente vulneráveis. O vírus aproveitou-se de problemas previamente existentes. E quando se cruzou com a agitação civil que eclodiu nos Estados Unidos no Verão passado deu origem a uma sucessão de crises sobrepostas. Enquanto um novo vírus atacava os pulmões, um vírus muito mais familiar continuava a travar a guerra contra a vida dos negros. Depois de ver George Floyd morrer lentamente debaixo do joelho de um agente da polícia de Minneapolis, o mundo reagiu com fúria e determinação. No Médio Oriente, na C E R C A D E 1 ,9 M I L H Õ E S

1. A nível mundial, 61% das pessoas trabalham na economia informal, como empregadas domésticas, vendedoras de rua, motoristas de serviços de entregas e trabalhadores à jorna.


Europa e nas zonas mais inesperadas da América 2 . Houve rural, ouviu-se o cântico “Black Lives Matter”. (2) manifestaEsta frase de ordem proporcionou reconhe- ções de Black Lives cimento global ao facto de a vida ser sagrada, Matter em estar interligada e precisar de protecção. Pes- 40% dos condados soas de todos os grupos demográficos e de cul- norte-ameturas bastante diferentes decidiram abandonar ricanos, 60 países e em o silêncio perante os abusos sistemáticos das todos os forças policiais e dos pontos de vista latentes continentes, excepto na dos supremacistas brancos. Antárctida. Tudo isto revelou uma conclusão simples, que teremos agora de enfrentar: para sobreviver a este vírus e aos outros que se seguirão teremos de criar sociedades mais equitativas e justas. Há uma verdade óbvia que foi posta a nu: na guerra viral, a humanidade é tão forte como o seu elo mais fraco. A nossa sobrevivência colectiva dependerá da capacidade para darmos mais valor à REPENSANDO A NOSSA relação directa que existe entre S O C I E DA D E a saúde universal e a justiça social. Também vai exigir vontade para darmos passos decisivos no sentido de aliviarmos essa interminável pandemia de pobreza esmagadora que é o calcanhar de Aquiles do planeta.

EQUILÍBRIO DO TRABALHO E DA VIDA

A L G U M A S C O M U N I DA D E S

subestimaram o vírus, considerando-o ligeiro, senão mesmo benigno. O mundo assistiu ao vaivém das suas investidas e reagiu frequentemente de forma trágica. No quarto domingo de Março, quando as taxas de infecção subiam vertiginosamente, o bispo Gerald Glenn, de 66 anos, destacado pastor evangélico de Chesterfield, no estado da Virgínia, exortava a congregação a não temer o vírus. À semelhança de muitos líderes ecuménicos, este antigo agente policial não seguiu os conselhos do governador da Virgínia, Ralph Northame, e das outras pessoas que se manifestavam contra ajuntamentos de mais de dez pessoas. “Creio firmemente que Deus é maior do que este temido vírus”, disse Gerald aos seus paroquianos. “Se tivesse de fazer o meu próprio elogio fúnebre, diria ‘Deus é maior do que qualquer desafio que enfrentemos.’ Seria o meu epitáfio.” Gerald morreu de COVID-19 três semanas mais tarde. A sua convicção religiosa nunca pareceu vacilar e a determinação letal do vírus também não. ILUSTRAÇÃO: RACHEL LEVIT RUIZ

Passadas algumas semanas, a hajj anual reduzia-se a uma proporção ínfima para contrariar o risco sanitário representado pela cerimónia. A peregrinação, que todos os muçulmanos com capacidades físicas e financeiras estão obrigados a fazer uma vez na vida, é um dos cinco pilares do islão. Por norma, mais de dois milhões de peregrinos fazem, todos os anos, a viagem até Meca. Este ano, a multidão limitou-se a mil pessoas. O vírus visa não apenas os corpos das vítimas, mas também o espírito daqueles que são obrigados a permanecer separados e isolados.

No futuro, as pessoas não trabalharão totalmente à distância, mas também não trabalharão amontoadas em escritórios. “Será um híbrido”, prevê Martine Ferland, director-geral da Mercer, uma empresa de recursos humanos. Instalações mais pequenas serão centros para colaborações presenciais esporádicas e ferramentas digitais aperfeiçoadas darão apoio para o teletrabalho. Haverá mais ênfase no equilíbrio entre a produtividade e as necessidades pessoais, permitindo que os trabalhadores organizem o horário de trabalho e encaixem-mo nos seus compromissos. A flexibilidade será o derradeiro benefício profissional, diz Martine Ferland. — D A N I E L S T O N E

Um homem de Columbus, Ohio, publicou no Verão passado, no Facebook, uma canção com a qual esperava reconfortar os amigos solitários e idosos. O meu pai, com 78 anos completados em Junho, aproveitou o seu aniversário para cantar com a sua guitarra acústica. Sentou-se em frente do computador e filmou-se a interpretar uma canção que compusera há 30 anos. Chamava-se “God’s been good to me” [Deus tem sido bom para mim]. Era uma canção de louvor e gratidão. Frank Morris, outrora pastor de uma igreja rural no sopé dos Apalaches, sentiu-se entristecido por já não poder participar, em segurança, nas cerimónias de culto semanais. A N O S S A H U M A N I D A D E À P R O VA

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Não podia igualmente comemorar o seu aniversário com os seus entes queridos, mas isso não o impediu de tentar contactar outras pessoas. Depois de ver o vídeo, perguntei ao meu pai por que razão decidira partilhá-lo. A sua resposta foi simples. “Quis comunicar com as pessoas que estão aflitas, ou doentes, e transmitir-lhes que estava a pensar nelas e que não estão sozinhas. Quis que se recordassem dos Salmos de David: ‘Nunca vi o justo desamparado, nem os seus filhos mendigando o pão’”, disse, citando uma escritura que o ouço evocar com frequência. Espero que as suas palavras sejam mais do que um estereótipo bíblico. Talvez a morte causada pelo vírus nos tenha despertado de uma maneira que não podemos ignorar. Esta catastrófica ameaça sanitária, que expõe as nossas fraquezas como espécie, também ilumina a nossa ligação. É esse o lado positivo do que está a acontecer neste momento. Sob a ameaça da peste, é-nos dada a oportunidade de reflectir sobre a forma como as comunidades e as sociedades dependem umas das outras, apesar de velhas querelas. (3) Não é uma hipérbole dizermos que somos todos peças num jogo de dominó global. Alguns de nós são mais susceptíveis, mas todos corremos perigosamente o risco de cair. norte-americanas foram atingidas pela pandemia com tanta força como Detroit. A cidade vai aguentando investidas que incinerariam a esperança noutros locais. Antiga capital automóvel do mundo, declarou falência em 2013. Antes dessa crise, sofrera já durante décadas com o desespero de ser uma das grandes cidades mais pobres dos EUA. Mesmo assim, recuperou. Moradores apaixonados ressuscitaram a sua amada cidade, investindo dinheiro nos bairros de Detroit. A zona ribeirinha da baixa da cidade parecia prestes a rugir de vida, com o ressurgimento de restaurantes e con-

3. A COVID-19 exacerbou o problema da fome nos EUA. Mais de 54 milhões de pessoas, incluindo 18 milhões de crianças, não têm comida suficiente. Entre Março e Junho, os bancos alimentares norte-americanos distribuíram 1.900 milhões de refeições.

P O U C A S C I DA D E S

SOMOS TODOS PEÇAS NUM JOGO DE DOMINÓ GLOBAL. ALGUNS SÃO MAIS SUSCEPTÍVEIS, MAS TODOS CORREMOS PERIGOSAMENTE O RISCO DE CAIR.


Angel Chavez arruma fruta num mercado semanal de produtores em São Francisco.

domínios caros. Bairros arruinados, dados como perdidos, tinham conseguido atrair promotores imobiliários e pioneiros urbanos ricos. Foi então, em meados de Março, que a COVID-19 atacou. Nesse mesmo instante, a doença pôs a descoberto todos os problemas preexistentes que tornavam Detroit vulnerável. Milhares de pes-

soas pobres da cidade, sobretudo os moradores afro-americanos, não tinham acesso a água canalizada nas suas habitações por falta de pagamento das contas. Como poderiam lavar as mãos para ajudar a manter o vírus à distância? A N O S S A H U M A N I D A D E À P R O VA

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Semanas após o início da pandemia, mais de 40% dos habitantes da cidade que antes do vírus tinham trabalho perderam os seus empregos, muitos dos quais definitivamente. Com base num inquérito realizado pela Universidade de Michigan a mais de setecentos inquiridos, a taxa de desemprego de Detroit em finais de Abril era quase de 48%. A morte entrou na cidade como um desfile. A história trágica de Jason Hargrove é um aviso exemplar sobre a interligação entre estranhos e a forma como a morte espreita os encontros mais banais. Casado e pai de seis filhos, Jason conduzia um autocarro da rede pública de Detroit. O seu trabalho era considerado essencial numa cidade onde quase 20% dos moradores dependem dos transportes públicos. No início de Março, Jason começou a ficar preocupado. Disse à mulher e aos colegas ter receio de que o seu trabalho se tivesse tornado arriscado. O pior pesadelo materializou-se quando uma mulher de meia-idade entrou no seu autocarro, instalou-se atrás dele e tossiu repetidamente. Não fez qualquer esforço para tapar a boca. Numa publicação no Facebook datada de 21 de Março, Jason Hargrove desabafou, zangado, contra a mulher não identificada. “Sinto-me violado. Sinto-me violado pelas pessoas que iam no autocarro quando isto aconteceu”, disse no vídeo. Onze dias depois de o vídeo ser publicado, Jason Hargrove morreu numa unidade de cuidados intensivos, num hospital de Detroit. Era um trabalhador da linha da frente que, em tempos de pandemia, assumiu os riscos de um emprego perigoso. “O Jason era profundamente dedicado ao seu emprego”, disse a sua mulher, Desha Johnson-Hargrove. “Não ganhava milhões, mas sentia-se directamente responsável pela segurança dos passageiros e gostava sempre de se relacionar com eles. Cumprimentava todos. Foi este o tipo de pessoa que perdemos.”

À semelhança de legiões de operadores de transportes públicos de cidades superlotadas como Tóquio, Nova Iorque ou Mumbai, Jason Hargrove não podia dar-se ao luxo de trabalhar a partir de casa. Muitos passageiros também eram trabalhadores essenciais, deslocando-se aos empregos que pagavam pouco mas que exigiam a sua presença física – uma fábrica, uma mercearia ou um lar de idosos. Os autocarros transformaram-se em pratos de petri sobre rodas. que alguns grupos de pessoas vão continuar a correr grandes riscos de adoecer, ou morrer, devido ao vírus. Pela mais simples das razões: não têm acesso a cuidados de saúde ou, como Jason Hargrove, são trabalhadores essenciais cuja exposição é praticamente certa. Isto acontece em todo o mundo. Sempre que entramos numa mercearia, reparamos nos olhos de uma mãe desesperada ou de outras pessoas sem possibilidades de se resguardarem. É essa a interligação de que, subitamente, nos apercebemos: algumas das pessoas mais vulneráveis que nos rodeiam são também as mais essenciais. “O contrato social foi violado em demasiados países e as próprias instituições globais criadas para reforçar os direitos, a igualdade, o crescimento e a estabilidade global contribuíram para a convergência de crises que o mundo enfrenta neste momento”, afirmou Sharan Burrow, secretária-geral da Confederação Internacional dos Sindicatos, uma organização sindical internacional que representa 200 milhões de trabalhadores em 163 países e territórios. Como é evidente, o vasto âmbito da pobreza global já era impressionante muito antes da chegada da COVID-19. Quase metade da população mundial vive na pobreza, segundo a Oxfam, uma instituição de caridade internacional que dedica os seus esforços a mitigar a pobreza global. A fortuna combinada das 2.153 pessoas mais ricas do mundo excede a riqueza de 4.600 miSA B E MO S , C OM TO DA A C E RT E Z A ,

EM DETROIT, A DOENÇA EXPÔS TODOS OS PROBLEMAS PREEXISTENTES, COMO A POBREZA E O DESEMPREGO, QUE TÊM POSTO A CIDADE EM PERIGO.


lhões. O coronavírus exacerbou este espectáculo 4 . Os dez de terror de maneiras ainda por determinar. Em países onde Julho, a Oxfam estimou que, até final do ano, se passa mais fome poderão morrer 12 mil pessoas por dia devido são o a fome relacionada com a COVID. Esse número Iémen, a República poderá exceder o número de mortes causadas Democrática do pela doença propriamente dita. Congo, o Está a proliferar o número de novos lugares crí- Afeganisticos onde se passa fome, não só em países desfa- tão, a Venezuela, vorecidos, mas também em países de rendimento a região médio. (4) Milhões de pessoas que conseguiam do Sael da África sobreviver com dificuldade antes da pandemia Ocidental, estão agora em risco. Os Estados Unidos não são a Etiópia, o Sudão, imunes à fome. Com as lojas obrigadas a fechar e o Sudão do as escolas relegadas para o ensino à distância, os Sul, a Síria e o Haiti. agregados familiares raramente enfrentaram tantas dificuldades. O inquérito de saúde da Fundação da Família Kaiser, realizaREPENSANDO A NOSSA do em Maio, concluiu que 26% S O C I E DA D E dos norte-americanos declararam ter passado sem refeições, ou dependido da ajuda de acções de caridade ou programas do Estado, para obterem alimentos, incluindo 13% que afirmaram ter visitado um banco alimentar para obter provisões. “A dolorosa verdade é que a insegurança alimentar está a explodir no nosso próprio quintal”, disse Abby Maxman, da Oxfam America, num comunicado de imprensa. “Neste momento, há pessoas a irem para a cama com fome em todas as cidades. Aqueles que antes já viviam aflitos, estão agora a esforçar-se muito para não irem ao fundo. No estado do Mississípi, quase um quarto dos habitantes sofre de insegurança alimentar. No Louisiana, mais de um terço das crianças têm as despensas vazias.” . Num tempo em que tantas comunidades nor- 5Em apenas te-americanas se esforçam por sobreviver sem um mês, no danos (5), as pessoas que protegem os mais vulne- logo início da pandemia, ráveis tornaram-se ainda mais fundamentais.

NOVAS FORMAS DE APRENDER

Vince Cushman, director do Banco Alimentar da Área Metropolitana de Cleveland, encharcado em suor, orientava o trânsito num parque de estacionamento municipal. Poucas pessoas iriam trabalhar nos escritórios da cidade por causa do v í r u s e, p o r i s s o, o e n o r m e p a rq u e d e NUM DIA QUENTE DE JULHO,

ILUSTRAÇÃO: RACHEL LEVIT RUIZ

quase 20% dos adultos norte-americanos afirmaram ter perdido o seu salário devido à COVID-19.

estacionamento tornara-se palco de uma distribuição semanal de alimentos que recebia cerca de duas famílias da zona de Cleveland à quinta-feira. Vince trabalha há oito anos para um dos bancos alimentares mais concorridos dos EUA. Considera o seu trabalho um serviço público e acredita que o serviço comunitário é uma característica definidora de Cleveland. Essa é uma das razões pelas quais ficou desolado quando contraiu COVID-19 em Março. Faltou ao trabalho quase seis semanas até recuperar. “Temos passado por várias épocas muito difíceis. É por isso que, em

Com o encerramento das escolas, os agrupamentos inovaram para melhorar a aprendizagem a partir de casa. Embora a igualdade de acesso à tecnologia continue a ser um obstáculo, vão ser concebidas ferramentas para encurtar as distâncias. Nos anos de escolaridade obrigatória, a tecnologia será utilizada para apoiar os trabalhos de casa, definir objectivos e avaliar progressos. A ida aos campus das faculdades poderá tornar-se opcional para os estudantes universitários, diz Michael Crow, presidente da Universidade Estadual do Arizona. Várias universidades prevêem a transição para modelos com mais vagas, oferecendo ensino de alta qualidade e baixo custo a maior escala. — D. S.

tempos de crise, acho que conseguimos reagir melhor do que em muitos lugares que não precisam de estar constantemente a lidar com a adversidade. Também temos o cuidado de não julgar as pessoas em tempo de necessidade”, afirmou. “Digo sempre aos meus voluntários: nunca conhecemos as circunstâncias que levaram uma pessoa a estar na fila à espera de receber alimentos. Não me interessa se chegaram ao parque de estacionamento num Lexus, não sabemos se são pessoas sem abrigo e vivem naquele carro. A nossa missão é tratá-las com dignidade e civismo, sabendo que temos a oportunidade de as servir”, disse. A N O S S A H U M A N I D A D E À P R O VA

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No entanto, não é apenas a fome das famílias desesperadas que preocupa os educadores em todo o mundo. A probabilidade de um número incontável de crianças estarem a sofrer reveses irrecuperáveis na sua educação é uma preocupação. Um inquérito realizado em Março, pelo Centro para Investigação dos Assuntos Públicos da Associated Press-NORC, apurou que, quando as escolas norte-americanas abandonaram as salas de aula em prol do ensino à distância, os progenitores dos agregados familiares com rendimentos inferiores a 50 mil dólares anuais ficaram particularmente preocupados com as perspectivas de futuro dos seus filhos. Cerca de 72% desses pais disseram estar preocupados com a possibilidade de os filhos serem prejudicados em termos académicos. “Já sabemos que em igualdade de circunstâncias os alunos, em média,

são beneficiados por frequentarem a escola a nível académico e a nível de desenvolvimento social e emocional”, disse Aaron Pallas, presidente do Departamento de Políticas de Educação e Análise Social do Teachers College da Universidade de Columbia. “Até as interrupções planeadas, como as férias de Verão, podem abrandar os estudantes e estas interrupções afectam mais os alunos das classes baixas do que as crianças e jovens de classe média.” Apesar de a pandemia ter encerrado as escolas e os locais de trabalho e de ter remodelado o nosso quotidiano, prossegue a revisão da história. O planeta está a transbordar de correntes de agitação racial, insurreições sociais e apelos continuados a uma reparação imediata da desigualdade social. de George Floyd, o afro-americano de 46 anos que morreu depois de ser detido em Minneapolis por suspeita de usar uma nota falsa de 20 dólares, teve início um dos maiores e mais sérios protestos da história norte-americana. Segundo vários D E P O I S DA MO RT E

Um trabalhador prepara-se para mais um dia numa grande superfície de venda grossista em São Francisco.


inquéritos, nas cinco semanas decorridas após a sua morte em Maio, 15 a 26 milhões de pessoas participaram em manifestações públicas e milhões de outras, em todo o mundo, juntaram-se em solidariedade. “A escala das manifestações de protesto a que assistimos não tem precedentes”, disse Deva Woodly, professora associada da Nova Escola de Investigação Social em Nova Iorque. “São esforços coordenados que estão a acontecer em todo o lado, em cidades, subúrbios e zonas rurais. Em mais de 40% dos condados norte-americanos, houve uma manifestação do movimento Black Lives Matter.” Um ponto de ruptura com mais de quatro séculos de idade foi finalmente atingido quando o mundo se viu obrigado a enfrentar a verdade brutal: as vidas dos negros não têm sido importantes. O caso de Floyd privou finalmente os alegremente indiferentes do privilégio da ignorância. A vida de Floyd pode não ter sido importante para alguns. A sua morte foi importante para muitos. Jovens da América rural, estudantes brancos ricos e multidões de pessoas comuns juntaram-se em solidariedade aos fundadores do Black Lives Matter e aos activistas dos direitos civis de todo o mundo, apelando à justiça racial e social. Os laços que nos unem enquanto seres humanos foram forjados no ar tão cruelmente roubado a Floyd. A COVID-19 mudou radicalmente muitos dos nossos comportamentos sociais, mas irá ela mudar também os valores das nossas culturas? As lições da história contemporânea são encorajadoras. Ao longo do século passado, registaram-se grandes avanços em matéria de direitos humanos e progresso social imediatamente após mortes horrendas e terríveis episódios de agitação social. As mulheres norte-americanas conquistaram o direito ao voto no rescaldo da devastação da Primeira Grande Guerra e da pandemia da gripe de 1918. As crises gémeas abriram as portas do mercado de trabalho norte-americano às mulheres e expuseram injustiças de género que eram impraticáveis quando a guerra acabou e a gripe abrandou. A Organização das Nações Unidas, dedicada a manter a paz entre os países e a promover os direitos humanos e sociais, foi fundada pouco depois da Segunda Guerra Mundial. Continua a ser um árbitro do conflito e das disputas globais.

6. Segundo um grupo ligado ao mundo do trabalho, calcula-se que terão sido perdidos 400 milhões de empregos em todo o mundo devido à COVID-19, empurrando possivelmente meio milhão de pessoas para a pobreza. As mulheres e os jovens são os mais afectados.

Os soldados norte-americanos negros, regressados daquela mesma guerra travada contra a tirania e o fascismo, foram um catalisador precoce e poderoso do movimento dos direitos civis e da abolição de sistemas enraizados de racismo legalizado. Agora, outra crise grave persiste devido às investidas incansáveis de um vírus. Ela exige uma reacção universal. A COVID-19 começou por atacar os mais vulneráveis entre nós e depois ganhou forças, saltando para as cavalitas dos mais fracos, para nos atacar de forma indiscriminada. Casos do vírus continuaram a aparecer em todo o mundo. O vírus investiu implacavelmente sobre os problemas de saúde previamente existentes e as desigualdades sociais alimentaram um inferno global. São claras as lições a retirar para o fundo: exigir mudança e trabalhar em prol da justiça global são as melhores esperanças de sobrevivência da humanidade. Estamos todos ligados às lavadeiras negras do Brasil. Estamos universalmente vinculados a trabalhadores essenciais não valorizados, como Jason Hargrove, que continuou a conduzir um autocarro em Detroit até poucos dias antes de morrer de COVID-19. Com um elevado custo humano, financeiro (6) e social, o coronavírus ilumina os laços inextricáveis que nos unem a todos. Pessoas que há muito são invisíveis demonstraram ser indivisíveis. “O Jason sempre tomou medidas concretas para garantir a segurança dos seus passageiros e a higienização do seu autocarro”, disse Desha sobre o seu falecido marido. “Ele preocupava-se com a protecção dos seus passageiros e, em troca, os passageiros protegiam-no dos desordeiros. Eles sabiam que estavam todos juntos no mesmo autocarro.” A morte pôs este espelho inclemente no nosso rosto: estamos todos juntos no mesmo autocarro. j A N O S S A H U M A N I D A D E À P R O VA

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UM MUNDO VIRALIZADO

11/20

E M B A I XO : Elaine Fields estava casada com Eddie há 45 anos. O marido morreu devido a complicações causadas pela COVID-19 em Abril, em Detroit. À D I R E I TA : Salim Joseph, o líder muçulmano sufita de Detroit, foi hospitalizado com COVID-19 antes de morrer por insuficiência renal. Entre as pessoas que o choram, estão o filho Yusuf Joseph (de branco) e o neto Humza Joseph.


DOSSIER

ESTADOS UNIDOS Um fotógrafo regista histórias de pessoas que perderam os seus entes queridos devido à COVID-19 ou a complicações relacionadas com a doença.

FOTO G RA F I A S D E

WAYNE LAWRENCE

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No Louisiana, os negros correspondem a um terço da população, mas representam dois terços das vítimas de COVID-19. E M B A I XO : Em Greensburg, onde o seu irmão de 35 anos, Marsha, vivia,

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Derrick Chaney e a sua noiva Lyndsay Fagan descansam após o funeral. À D I R E I TA : A igreja do pastor Antoine Jasmine localiza-se na freguesia de Saint John the Baptist, que chegou

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a ter a maior taxa de mortes de COVID19 per capita. Os pais de Antoine morreram devido ao vírus no passado mês de Abril, com poucas horas de intervalo.



DOSSIER: ESTADOS UNIDOS

TEXTO DE CYNTHIA GORNEY

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Q

já tentou fixar nos meses que se passaram desde que tudo isto começou? Quantas contagens de casos, percentagens de risco, taxas de infecção por milhão de habitantes, actualizações diárias do número de óbitos? Uma pandemia é uma história contada com enxurradas de números. Na redacção do jornal “Detroit Metro Times”, onde trabalhava como redactora, Biba Adams foi interiorizando números atrás de números, à medida que o novo coronavírus se propagava, saindo da China, atravessando a Europa, entrando nos Estados Unidos e por fim no “seu” Michigan. Na segunda semana de Março, as autoridades de saúde confirmaram os primeiros casos de COVID-19 em Detroit. Alguns dias mais tarde, a mãe de Biba queixou-se de tosse. Wayne Lawrence conheceu Biba Adams em Junho, enquanto visitava três cidades dos EUA para fotografar as pessoas enlutadas pela pandemia: mulheres e homens contaram-lhe o que custara perder um ente querido devido à COVID-19 ou a complicações relacionadas com a doença. Naquela altura, o vírus já matara a mãe de Biba Adams. Matara também a tia e a avó. Programas de rádio e de televisão puseram Biba no ar e, sempre que falava, expressava dor e fúria. Se os líderes políticos se tivessem comportado de outra forma quando receberam os primeiros avisos, disse Biba repetidamente, talvez as suas parentes ainda estivessem vivas. “Perder a mãe doeria sempre”, disse Biba Adams numa conversa telefónica no final de Julho, quando o número de mortes devido à pandemia nos EUA estava no limiar de 150.000. “Perdê-la no meio de 150.000 pessoas é ainda mais doloroso. Não quero que ela seja apenas um número. Ela tinha sonhos que queria concretizar. Era uma pessoa. E eu vou manter o seu nome vivo.” Elaine Head. É esse o nome da mãe de Biba Adams. Todas as fotografias de Wayne Lawrence captaram pessoas enlutadas porque os rostos, tal como o nome dos mortos, são tão importantes como os números. O jovem, com os braços em redor da noiva, chama-se Derrick Chaney e é caldeireiro numa fábrica de produtos químicos. Conta que o irmão mais velho, Marsha Chaney, tinha 35 anos quando morreu de COVID-19 na unidade de cuidados in(Continua na pg. 90) tensivos de um hospital. UA N TO S N Ú M E RO S

“Ela era mais do que um número, era uma pessoa”, diz Biba Adams, de Detroit, fotografada com a filha, Maria Williams, e a neta, Gia. A mãe de Biba, Elaine Head, morreu de complicações causadas pela COVID-19 na Primavera, com 70 anos. “Ainda era relativamente nova para quem tem saúde”, diz Adams. “Poderia ter vivido mais 20 anos.”


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A morte por COVID-19 do farmacêutico Yves-Emmanuel Segui, do Bronx, deixou a família desolada: a mulher Gisele (ao centro) e as filhas Morit (à esquerda) e Chloe.


E M B A I XO , À E S Q U E R D A :

“Fiquei sempre ao lado dele, mas não consegui salvá-lo desta doença horrível”, diz Flor Betancourt (à direita), acompanhada da mãe, Inocencia Vazquez, no

E M C I M A , À ESQUERDA:

Kevin Mofield e Shatifia Cooke choram a mulher de Kevin e mãe de Shatifia, Tiffany Mofield, que apresentava sintomas de COVID-19 quando morreu em Abril, aos 43

edifício de Brooklyn onde vivia o irmão, Juan Vazquez. Há muito incapacitado pela amputação das pernas devido à diabetes, Juan morreu de complicações causadas pela COVID-19.

anos. Tiffany estava quase a completar uma pena de 5 anos. EM CIMA, À D I R E I TA : Em Nova Jersey, o vírus infectou Tony Whalen, de 45 anos, a mulher, Laura, e o filho Maji (à esquerda). Só o irmão

E M B A I XO , À D I R E I TA :

O marido de Alice Halkias, Michael, de 82 anos, morreu de complicações causadas pelo vírus em Maio. O casal geria o Grand Prospect Hall, em Brooklyn.

de Maji, Cai (à direita), escapou. Tony morreu em Março por falência de múltiplos órgãos. Laura quer que a certidão de óbito seja emendada para esclarecer que o marido morreu devido a COVID-19.


O vírus atingiu Nova Orleães com força. Ellis Marsalis, Jr., pianista, saxofonista e patriarca de uma dinastia de jazz, morreu em Abril devido a complicações causadas pela COVID-19.

E M B A I XO :

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O compositor Delfeayo Marsalis (em baixo) é um dos seis filhos de Marsalis. À D I R E I TA : Debra “Midnight” Washington, de um dos clubes sociais mais adorados da cidade,

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enfeita-se para dar as boas-vindas a um membro que sobreviveu à COVID-19. No entanto, há pouco para celebrar: o fundador do clube, Ronald Lewis, morreu devido ao vírus em Março.



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Contando com Marsha e Derrick, havia nove irmãos na casa da família, na pequena cidade de Greensburg. Marsha era camionista. Foi jogador de futebol americano no liceu e estudou engenharia na faculdade. “Não tínhamos amigos”, diz Derrick. “Tínhamo-nos uns aos outros. Era ele que nos mantinha todos juntos.” As duas jovens com os braços da mãe à volta da sua cintura são as irmãs Segui: Morit e Chloe. O pai, Yves-Emmanuel Segui, emigrou para os EUA vindo da Costa do Marfim, onde se formou como farmacêutico. Lá, o quotidiano era em francês. Em Nova Jersey, onde criou a família, Yves chumbava constantemente no exame para obter a licença de farmacêutico, feito em língua inglesa. Sempre que chumbava, começava a estudar para repetir a prova. Foi por isso que “The New York Times” usou o título “O Indómito Farmacêutico do Bronx” no seu obituário, depois de a COVID-19 o matar aos 60 anos. Na sua oitava tentativa, Yves superou o exame e arranjou, finalmente, trabalho numa farmácia, para a qual se deslocava de autocarro e comboio vindo de Newark, gastando três horas de viagem em cada sentido. A mulher de camisola branca e cabeça erguida enquanto chora, é Elaine Fields, cujo marido, Eddie, tinha 68 anos quando morreu num hospital de Detroit em Abril. Eddie era um operário fabril reformado da General Motors, excelente jogador de bowling e fanático por automóveis clássicos. As tragédias são comuns, diz o início de uma canção do falecido artista gospel Walter Hawkins. “Todos os tipos de doenças. As pessoas esfumam-se.” Quando Biba Adams foi recolher os objectos pessoais da mãe ao hospital, descobriu um papel com a letra dessa canção dobrado dentro da carteira de Elaine Head. Hawkins escreveu a canção há muitos anos. É sobre gratidão e não sobre doença. O coro, aliás, agradece a Jesus. Mas o lamento dos versos prenuncia um contágio moderno virulento, um sistema de saúde dilapidado e uma sociedade profundamente estratificada, juntando-se para atacar, com grande ferocidade, as minorias raciais e os pobres dos EUA (gráfico, à direita). “As pessoas não ganham o suficiente para pagarem. Nenhum lugar parece seguro”, prossegue a canção. A letra não corresponde exactamente à verdade durante a pandemia de 2020. Algumas pessoas conseguem ganhar o suficiente. Alguns lugares são seguros ou, pelo menos, mais seguros do que outros. E algumas tragédias não são, de todo, comuns. Biba Adams emoldurou a letra e pendurou-a na sala de jantar. Em Julho, organizou por fim o memorial da sua mãe no quintal, onde os convidados com máscaras escutaram a canção de Hawkins e recordaram-na. Encomendou uma caixa de borboletas vivas para libertar porque a mãe teria gostado do gesto. “Preciso de fazer esta cerimónia”, disse. “Preciso de fechar esta porta.”  j

MATTHEW W. CHWASTYK, IRENE BERMAN-VAPORIS E TAYLOR MAGGIACOMO; KELSEY NOWAKOWSKI FONTES: DEPARTAMENTO DA SAÚDE E DE SERVIÇOS HUMANOS DO MICHIGAN; GABINETE DE SAÚDE PÚBLICA DO LOUISIANA; SAÚDE PÚBLICA DE NOVA IORQUE; THE NEW YORK TIMES; OXFORD COVID-19 GOVERNMENT RESPONSE TRACKER


NOVA IORQUE

DOENÇA DA DISPARIDADE

MICHIGAN

Detroit

E S TA D O S U N I D O S

Embora os dados demográficos sejam preliminares e incompletos, é evidente que a COVID-19 está a afectar desproporcionalmente as comunidades de cor e os trabalhadores do sector dos serviços. Três cidades reflectem o efeito da pandemia.

ÁREAMETROPOLITANA DEDETROIT LAPEER

OAKLAND

ST. CLAIR

LOUISIANA

Casos de COVID-19 por etnia Cada ponto = 35 casos, por condado Afro-americano Caucasiano Outro Desconhecido

Resposta do governo Inexistente

Detroit

WAYNE

1.603 casos no Michigan

10 km

Severa

1.315 casos na A.M.D.

1 de Março 2020

ÁREAMETROPOLITANA DENOVAORLEÃES

53.674

casos cumulativos confirmados na área metropolitana até 31 de Julho

4.992

Mortes relatadas

31 de Julho 2020

A pobreza, o acesso desigual aos cuidados de saúde e o número elevado de pessoas por habitação aumentam o risco. Na cidade, maioritariamente negra, a taxa de pobreza das famílias é 17,8%, muito superior à taxa nacional de 10,1%.

ST. TAMMANY

2.267 Casos no Louisiana

ORLEÃES L Ã

ST. JAMES

Nova Orleães

Mais de um terço dos moradores de Detroit vivem em condições de pobreza. A cidade é 79% negra. Os problemas de saúde preexistentes incluem uma taxa de diabetes duas vezes superior à média nacional.

MACOMB O LIVINGSTON

Nova Iorque

Nova rleães 1.037 Casos na A.M.N.O.

ST. CHARLES JEFFERSON

Casos de COVID-19 por etnia Cada ponto = 35 casos, por paróquia

31 de Julho

33.750

casos cumulativos confirmados na área metropolitana

1.485

mortes relatadas

10 km

BRONX

5.426 Casos na cidade

MA NH AT TA N

CIDADEDENOVAIORQUE Afro-americano Hispânico Caucasiano Outro Desconhecido

1 de Março

9.877 Casos no Estado de Nova Iorque

Afro-americano Caucasiano Outro Desconhecido

Casos de COVID-19 por etnia † Cada ponto = 50 casos, por bairro

Mi ssi QU ss íp MINE i S

Os bairros de Nova Iorque onde se registou o maior número de casos tinham o número mais elevado de negros e hispânicos, trabalhadores essenciais dos serviços e agregados familiares com rendas de casa altas face aos rendimentos auferidos.

229.834

casos cumulativos confirmados na cidade

QUEENS

5 km

23.002

mortes relatadas

STATEN ISLAND

BROOKLYN

1 de Março

31 de Julho

*MÉDIA DE CASOS EM SETE DIAS. A 5 DE JUNHO, MICHIGAN DIVULGOU DADOS SOBRE OS CASOS PROVÁVEIS. †MICHIGAN E LOUISIANA NÃO DIVULGAM DADOS COM REFERÊNCIA A ETNIAS OU FREGUESIAS.



À E S Q U E R D A : A loja que Abdelfattah Abedrabbo fundou em Detroit vende artigos para o lar com desconto. Abdelfattah, imigrante palestiniano que criou seis filhos em Dearborn

com a mulher, Azizeh, morreu de complicações causadas por COVID-19 aos 65 anos, em Abril. Azizeh e a filha, Sara, choram junto do local onde ele foi enterrado.

A máscara da agente da polícia de Detroit LaVondria Herbert tem o rosto e o nome da filha, Skylar, que não completou 6 anos de vida.

E M B A I XO :


N AT I O N A L

G E O G R A P H I C

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NA TELEVISÃO

Especial COVID 19: Na Linha da Defesa 2 3 D E N OV E M B R O, A PA RT I R DA S 2 2 H 1 0

Pesca no Limite E S T R E I A : 1 0 D E N OV E M B R O, À S 2 3 H

Está à porta a sétima temporada da série “Pesca no Limite: Norte vs. Sul”. A época do atum-rabilho na Carolina do Norte nunca foi tão dura. Nesta temporada, regras mais rígidas e menos quotas de pesca reacendem as conhecidas tensões entre pescadores do Norte e do Sul.

Rebuilding Paradise E STRE I A : 26 D E N OV EM B RO, ÀS 2 2 H 1 0

Em Novembro, o canal National Geographic estreia três documentários que abordam a luta global contra a pandemia. Em “Os Caçadores de Vírus”, investigamos histórias antigas sobre doenças e pragas ao longo da história e as lições que o seu estudo encerra. Em “Contágio: Do Ébola à COVID 19”, promovemos uma retrospectiva dos sinais de alerta produzidos já nesta década pelo surto preocupante de Ébola. Por fim, em “Breakthrough: A Luta Contra o Vírus”, tomamos o pulso ao movimento global de cientistas, médicos e personalidades públicas que procuram meios eficazes para combater as ameaças invisíveis nas várias arenas em que se movimentam.

Em Novembro de 2018, um incêndio florestal consumiu a cidade de Paradise, na Califórnia, matando 85 pessoas e desalojando 50 mil. Resiliente e solidária, a comunidade local procura reconstruir a cidade perdida, encontrando apoio nos vizinhos e amigos. ASYLUM ENTERTAINMENT (NO TOPO); PFTV (AO CENTRO); NATIONAL GEOGRAPHIC (EM BAIXO)


Wild Africa SÁ B A D O S E D OM I N G O S D E N OV E M B RO, A PA RT I R DA S 1 7 H

Yukon Vet E S T R E I A : 1 6 D E N OV E M B R O, À S 1 7 H

Michelle Oakley é a estrela da sexta temporada de “Yukon Vet”, uma série bem-sucedida que revela o mundo das consultas a animais de estimação e de salvamento de animais selvagens. Na imensidão do Yukon canadiano, a veterinária tanto se ocupa dos gatos domésticos como dos indomáveis alces.

Photo Ark 2 ESTREIA: 27 DE N OV E M B R O, À S 1 7 H AQUAVISION TV PRODUCTIONS (NO TOPO); LUCKY DOG FILMS (AO CENTRO) E NATIONAL GEOGRAPHIC (EM BAIXO)

África é um de vários sinónimos continuamente associados à National Geographic nestes 132 anos de actividade. Voltamos em Novembro ao nosso continente favorito com uma série de documentários emitidos aos sábados e domingos deste mês. Em foco estarão as magníficas criaturas que, prosperando nos ecossistemas diversificados do continente, dão lições de sobrevivência. Das latitudes frias próximas da Antárctida ao calor sufocante da savana, não perca “Africa Deadliest 6”, “Wild Uganda and South Africa: Land of Extremes”, “Opportunists”, “Africa’s Big Five”, “Ultimate Adversaries”, “The Flood Countdown” e “Hostile Planet: Africa Compilation”. Nunca mais olhará para o continente negro da mesma forma.

Joel Sartore está de volta com “Photo Ark 2”, uma nova edição do seu projecto de documentação fotográfica da biodiversidade global, aclamado em todo o mundo. Por mais teimoso que seja, nenhum animal consegue fugir à máquina fotográfica e à lendária paciência de Sartore.


P R Ó X I M O

N Ú M E R O

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DEZEMBRO 2020

A fragilidade dos Grandes Lagos

Vários factores ambientais sobrepostos ameaçam a maior fonte de água doce da América do Norte e uma das mais importantes do mundo.

Canções de embalar

Em todo o mundo, quaisquer que sejam, as cantilenas para confortar as crianças à hora de dormir, são um reflexo das esperanças e medo dos pais.

Sonhos do Árctico No Norte remoto e gélido da Rússia, uma cidade permanece congelada no tempo e pintada pelas cores da longa noite polar.

O regresso do puma da Patagónia O puma recupera terreno no Parque Nacional Torres del Paine, no Chile, à medida que a pressão humana afrouxa e as suas presas abundam.

N AT I O N A L G E O G R A P H I C

KEITH LADZINSKI


História

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