National Geographic Portugal #237 (Dezembro 2020)

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Mapa Suplemento Conservação da natureza em Lousada

N AT I O N A L G E O G R A P H I C . P T

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DEZEMBRO 2020

SALVAR OS

O P UM A DA PATAG Ó N I A RECUPERA TERRENO

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O Á RC T I C O C OMO N U N C A NINGUÉM O VIU

5

A LINGUAGEM UNIVERSAL DAS CANÇÕES DE EMBALAR

N.º 237 MENSAL €4,95 (CONT.)

GRANDES LAGOS



N AT I O N A L G E O G R A P H I C

DEZEMBRO 2020

S U M Á R I O

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30

Os Grandes Lagos contêm 84 % da água superficial da América do Norte. As alterações climáticas, a poluição e as espécies invasoras estão agora a ameaçar este precioso recurso hídrico. T E XTO D E T I M F O LG E R

As mães que embalam os mais pequenos transmitem-lhes a sua esperança, os seus medos e os seus sonhos. Estas canções, comuns a todas as culturas do mundo, constituem um eco da história de quem as canta.

F OTO G RA F I A S D E

T E XTO E F OTO G RA F I A S D E

KEITH LADZINSKI

HANNAH REYES MORALES

Salvar os Grandes Lagos dos Estados Unidos

A linguagem universal das canções de embalar

Na capa Perspectiva do lago Superior visto de Grand Marais, no Minnesota. JORDAN SHOPPER/EYEEM/ GETTY IMAGES

KEITH LADZINSKI


S E C Ç Õ E S

R E P O R TA G E N S

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C A R TA D A PRESIDENTE A S UA F OTO

Sonhos árcticos

A longa noite polar da região mais setentrional da Rússia congela no tempo vidas e lendas de outras eras. A fotógrafa Evgenia Arbugaeva, nascida neste lugar, revisita as paisagens da sua infância para captar o espírito indómito desta região inóspita onde cada sonho tem a sua própria cor. T E XTO E F OTO G RA F I A S D E E V G E N I A A R B U G A E VA

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VISÕES EXPLORE Mais carcaças ou mais olhos no mar? GRANDE ANGULAR Golias da floresta Mapa-suplemento: Lousada na rota da sustentabilidade

E D I TO R I A L ÍNDICE N A T E L E V I SÃO

O puma da Patagónia ganha terreno

O Parque Nacional de Torres del Paine, na Patagónia chilena, é o melhor lugar do mundo para avistar pumas na natureza. O êxito da recuperação destes felinos é um exemplo da eficácia de uma política conservacionista vocacionada para a coexistência de espécies.

P RÓX I M O N ÚM E RO

T E X T O D E E VA VA N D E N B E R G F OTO G RA F I A S D E A N D O N I C A N E L A

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Vistos a partir do solo

O fotógrafo holandês Jan Vermeer já percorreu o mundo para documentar vida selvagem, mas, em Março, com as restrições da pandemia, teve de confinar-se em casa. Essa circunstância permitiu-lhe documentar os cogumelos do seu jardim e das matas vizinhas. T E XTO E F OTO G RA F I A S D E JA N V E R M E E R

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D E Z E M B R O

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NATIONAL GEOGRAPHIC SOCIETY UM ANO EM REVISTA

C A RTA DA P R E S I D E N T E

Respostas a um mundo em rápida mudança

O MUNDO MUDOU DRASTICAMENTE

desde que aceitei o cargo de directora-geral da National Geographic Society em Janeiro. Quando olharmos para 2020, as organizações serão analisadas pela forma como reagiram a dois eventos globais: a pandemia de COVID-19 e o movimento de justiça racial impulsionado pelo racismo sistémico e pela violência contra os negros norte-americanos. A National Geographic cobriu ambos os temas extensivamente. Em resposta à pandemia, a National Geographic Society concentrou o foco dos seus programas de educação no apoio a professores, pais e alunos com recursos de aprendizagem em casa, incluindo uma série que liga alunos a exploradores da National Geographic nos sete continentes. Para ajudar os educadores a desenvolver recursos de ensino à distância, foram atribuídas bolsas a professores em comunidades com poucos recursos e afectadas pela pandemia. E, para garantir que as notícias sobre COVID-19 seriam divulgadas com segurança e incluiriam histórias de comunidades marginalizadas, lançámos um fundo de emergência global para jornalistas, financiando mais de 150 projectos em mais de 50 países. Ao mesmo tempo, acelerámos os esforços da National Geographic Society para identificar e apoiar o trabalho dos exploradores, de cientistas, de educadores e contadores de histórias negros ou indígenas. Embora a nossa comunidade de bolseiros e educadores nunca tenha sido mais diversificada do que é hoje, temos ainda mais a fazer. Em Julho, anunciámos um grupo de jornalistas cujos projectos incluem documentar a resistência das mulheres indígenas contra a exploração dos recursos naturais e contar as histórias de quem perdeu um membro da família devido à violência armada. Também fizemos uma parceria com as redes de televisão da National Geographic para

promover a diversidade na produção de televisão com o nosso Programa Field Ready. Só podemos cumprir a missão de proteger as maravilhas do nosso mundo quando pessoas de todas as etnias, identidades, experiências e capacidades tiverem um papel no nosso trabalho. Com esse objectivo, entramos em 2021 como uma organização mais forte, posicionada para a excelência e relevância num mundo em rápida mudança. Ao longo da minha carreira, procurei organizações que partilhassem os meus valores: compromisso com a missão, ousadia, educação transformadora e dedicação à promoção de mudanças significativas. Sinto-me honrada em dirigir esta instituição e estou grata pelo vosso contínuo apoio. j

Jill Tiefenthaler, Directora-geral da National Geographic Society

MARK THIESSEN



V I S Õ E S

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A SUA FOTO

M A R C O A LV E S Os espigueiros de Soajo, no concelho de Arcos de Valdevez, ainda são usados para secar o milho.

Foram construídos em altura para evitar que roedores e outros animais oportunistas pilhassem o sustento da aldeia.

S O T E R O J O S É Cerca de dois metros de envergadura de asa desta águia-real podem ter os seus inconvenientes.

“Quando deparei com ela, quase me esquecia de fotografar”, brinca o autor.


D I O G O N Ó B R E G A A ponte romana de Vila Pouca, perto de Tarouca, confere mistério à paisagem. “Já andei por muitas terras, mas esta ponte sobre o rio Varosa transmite uma calma e uma beleza brutais”, confessa o autor.




V I S Õ E S

Portugal

À sua maneira, há dois monumentos notáveis nesta fotografia captada em Évora. O Templo Romano desafia a lei da erosão e mantém a imponência. Em primeiro plano, o Opel de 1954 desafia as leis da mecânica. JORGE DE OLIVEIRA




Portugal

A chegada do Verão aos Açores traz consigo visitantes típicos de zonas tropicais. Um dos mais carismáticos é o golfinho-pintado do Atlântico, espécie extremamente activa e curiosa que vive habitualmente em grupos numerosos. NUNO VASCO RODRIGUES



Moçambique

Um lagarto do Nilo encontra um antílope morto. Procurava insectos, mas depara-se-lhe uma carcaça nutritiva. A estação seca no Parque Nacional da Gorongosa produz muitas mortes de animais por falta de alimento ou água, mas o ciclo de vida nunca se interrompe. PIOTR NASKRECKI


E X P L O R E QUE NOS RODEIAM N AT I O N A L G E O G R A P H I C

Mais carcaças ou mais olhos no mar? de cetáceos estão documentadas para a região dos Açores, um hot-spot mundial destes animais e um laboratório vivo, mas ainda pouco se sabe sobre a maioria. Com actividade tipicamente oceânica, migrações de grande escala e carácter esquivo, os cetáceos não são fáceis de estudar, apresentando desafios logísticos e financeiros à investigação. O aparecimento de carcaças destes animais afigura-se por isso uma oportunidade única para saber mais sobre eles, nomeadamente as causas de morte, as doenças associadas, a presença de contaminantes, os padrões reprodutivos e a dieta, entre outros parâmetros indicativos do estado das populações locais. Nos últimos 31 anos, em todo o arquipélago, a Direcção Regional dos Assuntos do Mar registou a ocorrência de 458 arrojamentos de cetáceos, pertencentes a 19 espécies. O cachalote figura em segundo lugar (16% das ocorrências) numa lista liderada pelo golfinho-comum (26%) e onde 7% dos animais não são passíveis de identificação, dado o estado avançado de decomposição. Se, por um lado, o aumento gradual das mortalidades registadas (50% de aumento a cada década) pode ser encarado como um sinal de alarme e reflexo da intensificação de fenómenos antropogénicos (que comprovadamente representam ameaças à vida destes animais), também a “amostragem” tem aumentado consideravelmente ao longo deste período, havendo hoje mais embarcações na água, o que potencia o aumento do número de registos. “O aumento da capacidade de resposta aos arrojamentos, do conhecimento sobre a ecologia das espécies e do modo como são afectadas pelas actividades humanas” são factores decisivos para a conservação destes animais, diz Marco Aurélio Santos, biólogo da Rede de Arrojamentos de Cetáceos dos Açores. — Nuno Vasco Rodrigues C E RC A D E T R I N TA E S P É C I E S

NUNO VASCO RODRIGUES



G R A N D E

A N G U L A R

GOLIAS DA FLORESTA N AT U R E Z A , A M B I E N TA L I S M O, E C O L O G I A , B I O D I V E R S I D A D E E S U S T E N TA B I L I D A D E A N DA M D E M ÃO S DA DA S E M LO U SA DA .

N AT I O N A L G E O G R A P H I C


Erguido aos céus como uma prece, este carvalho centenário é o exemplo vivo de um Gigante Verde na mancha florestal de Lousada, um concelho que tem assumido forte impulso conservacionista.

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G R A N D E

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GIGANTES VERDES

T E X TO D E PAU LO RO L ÃO

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FOTO G RA F I A S D E PEDRO MARTINS

“ E S T E É U M G I G A N T E V E R D E ! ” , anuncia João Gonçalo

Soutinho com uma alegria mal disfarçada. Munido de uma suta (uma espécie de régua que confere o diâmetro), mede o tronco de uma das duzentas árvores que compõem a mancha florestal que distingue o solar brasonado ao bom estilo renascentista do século XVIII. O ambiente deveria ser brumoso, com gnomos e duendes em tropelias entre a imensidão de carvalhos, castanheiros e duas altaneiras sequóias. Mas não é o caso – o sol outonal, para o efeito, também serve. Uma ronda pelo bosque da Casa de Ronfe permite perceber o motivo de as árvores de grande porte serem designadas por Gigantes Verdes. Escondem o azul do céu, desafiam as alturas, estendem os ramos como um gigantesco chapéu-de-chuva, tingem de verde a atmosfera. Todas têm uma história para contar, uma longa história escrita nos seus anéis. Os Gigantes Verdes foram o mote para um projecto de grande fôlego, iniciado no mestrado de João Gonçalo Soutinho. Num território relativamente exíguo, concentram-se exemplares de grande porte e antiguidade, que interessava documentar e cartografar. Esse longo trabalho está em curso e já detectou 7.400 “gigantes”. Cada um constitui um mundo à parte, onde fervilha a vida e as relações simbióticas. O abate de uma árvore antiga corta um extenso cordão umbilical que liga uma plétora de organismos à vida. Persuadindo os proprietários a não as abater, o projecto mantém vivos sistemas de biodiversidade complexos e majestosos. N AT I O N A L G E O G R A P H I C

as águas do rio Sousa correm céleres por força da levada que se estreita devido ao engenho humano. Deslizam com tanta rapidez que fazem accionar as penas do rodízio do moinho implantado numa das margens desde pelo menos o século XIX. O moleiro Luís Queirós conhece o rio como poucos e é o proprietário do único moinho de água da região ainda em actividade.“Herdei-o do meu avô”, afirma com um pingo de orgulho, enquanto os grãos de milho são triturados pela mó até se transformarem em pó de farinha. Mas Luís Queirós não é, simplesmente, moleiro – proporciona, também, visitas de alunos e é um dos mais entusiastas aderentes do Projecto Guarda-Rios, uma das iniciativas da autarquia com a equipa Lousada Ambiente. A dinamização deste projecto, aliás, percebe-se a poucas centenas de metros a jusante, onde as máquinas amansam uma das margens, restaurando-lhe o figurino natural, que antes era espartilhada por um muro de pedra que provocava cheias sazonais. A A L G U N S Q U I L Ó M E T R O S D E D I S TÂ N C I A ,


O padre Mota e a Capela de Nossa Senhora da Ajuda são enquadrados por um tulipeiro, a maior árvore do concelho (em cima). O teatro das marionetas é um dos grandes chamarizes para os alunos mais jovens (à esquerda). Loureiro

A1

1

Lustosa

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Santa Margarida Sousela

Figueiras

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Macieira

LOUSADA

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Boim Nevogilde

Caíde de Rei

Meinedo Lodares

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G R A N D E

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GIGANTES VERDES

Daniela Barbosa, responsável pelos projectos Lousada Guarda-Rios e Lousada Charcos, explica os vectores de intervenção: “Fazemos a monitorização do rio, patrulhando-o. Para tal, existe conjunto de voluntários que colaboram na monitorização, vigiando o rio em troços de 200 metros e preenchendo uma ficha sobre o seu estado uma vez por mês.” Adriana Marques, profissional da área da saúde, é uma das voluntárias, pois sempre se interessou pelas questões do ambiente. Não hesitou: “É fantástico conseguir conciliar as minhas duas actividades”, diz. Como existe uma grande interligação entre todos os projectos, Daniela e Adriana vão para a zona do carvalhal perto do moinho para plantarem mais árvores. Em paralelo com o Projecto Lousada Guarda Rios, existe o Projecto Lousada Charcos, intervencionando estas pequenas massas de água nas margens dos rios, nos jardins de casas senhoriais e nas escolas. Um dos maiores charcos do concelho, nas proximidades do rio Mezio, é uma linha de água que terá em breve um centro interpretativo através da recuperação de um moinho com pavimento de vidro para que se possa assistir ao fluxo da água. Daniela Barbosa veste o fato impermeável que lhe permite uma incursão no rio. Com uma rede, recolhe detritos e, pouco a pouco, as águas tendem a ficar mais cristalinas e límpidas. No ar, esvoaça uma garça-real, pairando sobre o Mezio como que aprovando com satisfação a acção humana, pois também esta ave, como outras, é beneficiária da limpeza que se vai efectuando. Pedro e Francisco, envergonhados mas de alma cheia, aproximam-se com o olhar aguçado da curiosidade. Faltaram às aulas, devidamente justificados pelos professores, Não perdem pitada da acção “até porque gostamos mais de estar aqui do que na aula de matemática”, brincam. Têm perfeita consciência da importância ecológica dos projectos em curso no seu concelho. Este é, aliás, um dos pontos-chave da estratégia da Lousada Ambiente: sensibilizar os jovens para as questões ambientais, num concelho que regista a maior taxa de natalidade do país e que é também um dos mais jovens. Em todos os níveis de ensino, os alunos andam de braço dado com a conservação da natureza, assimilando conceitos e comportamentos responsáveis. A massa estudantil é um dos maiores focos da Lousada Ambiente, concretizada no projecto BioEscola, que abrange um vasto leque de actividades para os vários níveis de escolaridade. Para confirmar a abrangência do projecto, há que ir à Casa das Videiras, que serve de sede à organização em pleno coração da vila. Num armário, e um pouco por todo o lado, encontra-se um exemplar colecção de… tudo: insectos, ossadas, reproduções de aves, casas-ninho, livros e manuais e, no laboratório, uma estufa, um aquaterrário, materiais biológicos de flora, animais aquáticos, anfíbios, répteis, fósseis de trilobites, petrologias e minerais. Pedro Sá, juntamente com Ernesto Gonçalves e Luís Cunha, responsáveis pelo BioEscola, explica, no ecrã do portátil, os microrganismos que preparou de antemão, minuciosamente recolhidos na lamela: “Mostramos aos alunos e eles demonstram grande interesse pelas actividades laboraN AT I O N A L G E O G R A P H I C

toriais.” Rivalizando com o laboratório em entusiasmo, o teatro das marionetas capta a atenção dos mais jovens – é como contar a história da Carochinha e do João Ratão em versão ambientalista. em mansões e casas senhoriais ou não fosse esta região um dos pilares da fundação da nacionalidade. É nestas casas que mais faz sentido o projecto Lousada Jardins, que abrange mais de 50 propriedades. São belos exemplos arquitectónicos mas, além da distinção das suas fachadas, notabilizam-se também pelos jardins anexos. Um dos casos mais paradigmáticos é a Casa de Juste, que possui uma capela própria e está rodeada de um frondoso espaço ajardinado e de árvores de grande porte. Fernando Guedes, proprietário, diz com visível agrado que a Casa de Juste, onde uma fracção é dedicada ao turismo, “é uma das primeiras parceiras do projecto, o que para nós é motivo de orgulho”. Diego Alves, responsável pelo Lousada Jardins, esclarece que “toda a extensão da propriedade abrange jardins com um quilómetro de comprimento e dez mil árvores na totalidade”. É nas traseiras da mansão que reside o ex-líbris floral: os jardins geométricos e as áreas relvadas. Mesmo sendo privados, os jardins das casas fidalgas de Lousada não deixam de integrar o património de flora da povoação, zelados por diligentes jardineiros que asseguram a sua manutenção. Um dos factores que marca indelevelmente a paisagem do concelho em termos agrícolas são os vinhedos que se espraiam um pouco por todo o lado, mas, em Lousada, há técnicas menos comuns. Ali, existe algo que perdura nas tradições de várias gerações: a Vinha do Enforcado. São pés de vinha plantados em altura e que podem alcançar diversos metros de verticalidade, suportados por árvores vivas com feridas e zonas mais susceptíveis à decomposição e colonização por organismos vários, sendo exemplos vivos da adaptação da biodiversidade à mão humana. Além da vinha que trepa por elas acima, também outras espécies faunísticas encontram ali abrigo, como insectos, morcegos, aves e também fungos. São fontes de vida e uma memória cultural do concelho. Esta verticalidade permite que o terreno seja aproveitado para outras culturas, rentabilizando a área agrícola. Contudo, a técnica está a perder-se porque implica esforço e perigo. A colheita é feita em escadas de madeira com degraus bastante desnivelados. E as quedas, que já aconteceram, podem trazer consequências nefastas. Cláudia Silva, responsável pelo projecto Lousada Ancestral – Vinha do Enforcado, elucida que “até ao momento, existem mais de oito mil árvores de suporte identificadas que se distribuem por cerca de oitenta quilómetros. É um trabalho de sapa, pois, primeiro, começámos por fazer um mapeamento por satélite para perceber quais as áreas mais importantes a explorar”. Por outro lado, este estudo permite que se possa contactar com as pessoas que ainda utilizam esta prática, como Maria Antónia Barbosa, que informa: “Estas vinhas, em algumas zonas, têm mais de cem anos de idade e, para as manter, temos de fazer enxertos de umas para as outras.” O C O N C E L H O D E L O U S A DA É F É RT I L


Plantar Lousada e Guarda-Rios são dois dos grandes projectos em curso em Lousada. Em cima, duas voluntárias supervisionadas pelo botânico Rafael Marques ajudam a enriquecer a área arbórea do monte Crastinho e, em baixo, Daniela Barbosa coordena acções de sensibilização ambiental no rio Mezio, alertando para o risco de poluição e para os valores de biodiversidade destas águas.

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G R A N D E

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GIGANTES VERDES

Cada gigante verde constitui um mundo à parte, onde fervilha a vida e as relações simbióticas. O abate de uma árvore antiga corta um extenso cordão umbilical que liga uma plétora de organismos à vida.

João Gonçalo Soutinho, responsável pelo Projecto Gigantes Verdes, mede o diâmetro de uma árvore de grande porte que rodeia a Casa de Ronfe, uma das grandes casas senhoriais do concelho. O município tem também em curso um projecto sobre os jardins históricos associados às casas senhoriais de Lousada. N AT I O N A L G E O G R A P H I C


A Vinha do Enforcado estende-se entre o vale do Sousa e Terras de Basto. Não é exclusiva de Lousada, mas a sua área de distribuição é caso único no mundo. da natureza para os gabinetes. Os grandes motores de arranque da Lousada Ambiente são o vereador Manuel Nunes, formado em História e Arqueologia e acérrimo defensor do ambientalismo sustentável, e Milene Matos, que assegura a gestão administrativa e organizativa do projecto. No edifício da Câmara Municipal, o gabinete de Manuel Nunes é o espelho do envolvimento do vereador em todos os projectos ambientais que estão a revolucionar a vila e a envolver os lousadenses. Em cima de uma bancada, estão empilhados vários livros, mote suficiente para Manuel Nunes apresentar o Plano Municipal de Leitura: “É uma produção nacional que consta da publicação de obras, incluindo uma de banda desenhada, que contam histórias em que o interveniente é o ambientalismo. Existem diversos autores. As obras não estão à venda, são exclusivamente para os alunos”. Fazendo um rewind no tempo, o vereador recorda o início do impulso ambiental local: “Começámos pela ciência, e não é por acaso que a equipa é constituída por tantos biólogos. Fizemos muito trabalho de investigação e tudo o resto nasceu sobre esses alicerces.” Milene Matos, também ela bióloga, foi “recrutada” da Universidade de Aveiro e sentiu-se empolgada com o impulso conservacionista no concelho. Em 2016, assegurou a função de coordenação geral, gestão financeira e angariação de recursos. “Somos profissionais do ambiente”, faz questão de esclarecer, explicando os passos já dados: “A prioridade foi implementar uma estratégia municipal de sustentabilidade sobre cinco eixos: investigação científica, educação ambiental transversal a todo o público, envolvimento social, eficiência de recursos e agenda de sustentabilidade interna, reconhecendo que a autarquia tem de dar o exemplo.” E que esse exemplo, se bem sucedido, pode contagiar os concelhos e as regiões vizinhas. É T E M P O , E N T R E TA N T O , D E T R A N S I TA R

é feito na Mata do Vilar, um espaço emblemático para os lousadenses que o utilizavam como área de lazer nas décadas de 1930 e 1940. “Tem uma aura romântica”, diz Ana Maria Pereira, que nos conduz pelos trilhos e recantos do espaço verdejante. Em 2008, o município adquiriu o terreno com intenção de o recuperar e de combater as espécies invasoras abundantes. A mata não tinha linhas de água, mas sabia-se que já as tivera. Por isso, houve um trabalho de desbaste em diversas intervenções e a água voltou a brotar. Hoje, é um lugar onírico e talvez seja a metáfora apropriada do envolvimento comunitário com a conservação da natureza. Nos últimos quatro anos, a autarquia colocou a conservação da natureza e a sustentabilidade no centro de uma estratégia integrada. Contagiou a população e inspirou o país. Como nos romances de Tolkien, tudo começou com a natureza e por causa da natureza. O resto cabe à determinação humana. j O R E G R E S S O À N AT U R E Z A E A O A R L I V R E

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«Acreditamos no poder da ciência, da exploração e da divulgação para mudar o mundo.» A National Geographic Society é uma organização global sem fins lucrativos que procura novas fronteiras da exploração, a expansão do conhecimento do planeta e soluções para um futuro mais saudável e sustentável. NATIONAL GEOGRAPHIC MAGAZINE PORTUGAL

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AUREA DIAZ ESCRIU, Directora-geral BERTA CASTELLET, Directora de Marketing JORDINA SALVANY, Directora Criativa ISMAEL NAFRÍA, Director Editorial JOSÉ ORTEGA, Director de Circulação RAMON FORTUNY, Director de Produção


D E Z E M B R O

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EDITORIAL

GRANDES LAGOS

Avaliação dos lagos (à distância)

TEXTO DE SUSAN GOLDBERG

o e s tado dos Grandes Lagos, e há já muitos anos que, durante as minhas visitas anuais de Verão, fico feliz pelo que não vejo. Não vejo multidões de californianos (desculpem!) a invadir cidades adoráveis à beira do lago como Petoskey ou Glen Arbor. Não vejo hordas de nova-iorquinos (desculpem!) a chapinhar no lago Michigan ou a descer estrepitosamente as íngremes areias brancas das dunas Sleeping Bear. Não quero ofender as multidões das costas dos EUA, mas deu-me sempre grande satisfação sentir que os encantos ainda prístinos do Noroeste do Michigan eram o meu segredo ou, pelo menos, um segredo guardado por um número pequeno de pessoas. Ultimamente, tenho ponderado as desvantagens de estar longe da vista e longe do pensamento. A maior parte das pessoas raramente pensa nos Grandes Lagos ou sabe o nome dos cinco, mas deveria preocupar-se com eles porque, como diz Tim Folger na reportagem deste mês, os Grandes Lagos são “indiscutivelmente o recurso mais precioso do continente, bem mais valioso do que o petróleo, o gás ou o carvão”. Em conjunto, os lagos possuem mais de 20% da água doce superficial da Terra. Quase 40 milhões de americanos e canadianos “bebem água destes lagos, pescam neles, transportam mercadorias sobre eles, cultivam nas suas margens e trabalham em cidades que não existiriam” sem eles, escreve o jornalista. Ainda assim, abusamos deles de uma forma terrível: poluindo-os, introduzindo espécies invasivas, permitindo que o escoamento de fertilizantes desenvolva manchas de algas tão grandes que podem ser vistas do espaço. As alterações climáticas significam que os lagos

FOTOGRAFIA DE KEITH LADZINSKI

CRESCI NO MICHIGAN,

não congelam tanto quanto congelavam antes e as tempestades severas tornaram-se mais frequentes. Na Terra, para onde quer que se olhe, existem grandes problemas. Incêndios fora de controlo na costa Oeste dos Estados Unidos e, surpreendentemente, no Árctico siberiano. Degelo na Antárctida e glaciares a derreter nos Himalaia. A destruição desregrada da floresta amazónica. São temas frequentemente abordados na National Geographic. Mas ouvimos menos sobre o que está a acontecer com os Grandes Lagos, um ecossistema insubstituível e frágil fundamental para sobreviver. Leiam a reportagem de Tim Folger. Apreciem a beleza da paisagem através das belíssimas imagens de Keith Ladzinski. Tornem-se defensores dos Grandes Lagos. (Mas, por favor, não os visitem.) Obrigado por ler a National Geographic. j

Jovens divertem-se no lago Michigan, junto do farol em Michigan City, Indiana. Os cinco Grandes Lagos fazem fronteira com oito estados dos EUA (Illinois, Indiana, Michigan, Minnesota, Nova York, Ohio, Pensilvânia e Wisconsin) e uma província canadiana, Ontário.


TÃO GRANDES,

2




TÃO FRÁGEIS os Grandes Lagos

CONTÊM 84%

DA ÁG UA D O C E D E S U P E R F Í C I E D O S E S TA D O S U N I D O S . C O N T R I B U Í R A M PA R A T R A N S F O R M A R O PA Í S N UM G I GA N T E AG R Í C O L A E I N D U ST R I A L . AGORA , PORÉM ,

as alterações climáticas,

a poluição e as espécies invasoras A M E A Ç A M O R E C U R S O M A I S VA L I O S O D O C O N T I N E N T E .

T E X TO D E TIM FOLGER F OTO G R A F I A S D E KEITH LADZINSKI


LAGO ERIE Uma gigantesca eflorescência de algas cobriu a zona ocidental do lago Erie no Verão de 2019. No auge, a eflorescência abrangeu mais de 1.600 quilómetros quadrados. As eflorescências podem libertar toxinas na água, causando erupções cutâneas e lesões no fígado. Antigamente, eram raras, mas agora podem acontecer todos os verões. PÁ G I N A S A N T E R I O R E S

LAGO MICHIGAN A água das cheias inunda um passeio pedonal em Montrose Beach, perto da baixa de Chicago. Na primeira metade de 2019, chuvadas intensas provocaram o aumento do nível das águas no lago em mais de 50 centímetros. Os cientistas prevêem que as condições climáticas adversas se tornem mais frequentes nesta região nas próximas décadas.



LAGO SUPERIOR O rio Hurricane desagua na margem sul do lago Superior, o maior corpo de água doce do planeta à superfície. O lago, que contém mais de metade do total da água existente nos cinco Grandes Lagos, enfrenta uma grande variedade de ameaças, desde as espécies invasoras ao desaparecimento do gelo de Inverno.

Para os anishinaabe, a caça nunca foi um desporto e a vida nunca foi encarada com ligeireza. se aproximou de Tom Morriseau Borg, ele sentiu um misto de gratidão, admiração e humildade: o alce estava a oferecer-se, uma dádiva de vida e de carne feita pela floresta, que Tom iria partilhar com a família e os amigos. Este anishinaabe praticante da caça tradicional com armadilha cresceu perto do lago Nipigon, na região ocidental da província de Ontário. Há muitos séculos que os anishinaabe ali pescam, caçam e montam as suas armadilhas. Depois de abater o alce, Tom espalhou um pouco de tabaco sobre o animal e murmurou orações de agradecimento, exactamente como o seu avô lhe ensinara. No entanto, ao cortar a carcaça, a gratidão de Tom transformou-se em repugnância. Quando tentou extrair o fígado, que deveria ser carnudo, ele liquefez-se numa pasta sangrenta. Desde então, Tom tem encontrado outros fígados doentes como este em vários animais. “Vejo-os em coelhos, castores e perdizes”, disse. “As minhas partes preferidas do coelho eram o coração e o fígado. Mas agora já não os comemos.” P O R I S S O , Q U A N D O O G R A N D E A L C E M AC H O

6

N AT I O N A L G E O G R A P H I C



GRANDES LAGOS EM PERIGO

LAGO SUPERIOR

Uma das maiores superfícies de água doce do mundo corre perigo. Factores de pressão ambiental como as alterações climáticas, as espécies invasoras, as substâncias químicas tóxicas, os poluentes agrícolas e a construção imobiliária na orla costeira estão a degradar o ecossistema dos Grandes Lagos. O lago Superior é o menos ameaçado. Os lagos Erie, Ontário e Michigan são os que correm riscos maiores.

Gelo a desaparecer, águas a aquecer Com margens pouco povoadas, o lago sofre menos pressões, mas o recuo da cobertura de gelo e a subida da temperatura das águas são um problema grave para as espécies aquáticas e para o turismo de Inverno.

581.000 habitantes: 9.500 milhões de litros de água consumidos por dia

Lago Nipigon

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BACIA DOS

Red Rock

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CANADÁ GRANDES BACIA DO LAGOS MISSISSÍPI AN E STA D O S AMÉRICA CE I O U NI D O S DO NORTE NT Â ATL

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SUPERIOR LAGO . Duluth Superior

Via de acesso reservado Estrada principal Via férrea Canal navegável

ÍN PEN

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Escanaba en re

Queda dos stocks de peixes

A água deste lago está a ficar cada vez mais transparente, devido a mexilhões invasores que filtram o fitoplâncton, mas isso não significa que seja saudável. Sem plâncton, muitas espécies sofrem.

O desenvolvimento urbanístico no lago Huron é pouco acentuado. A presença de bivalves invasores e a libertação dos excedentes de salmão criados em cativeiro provocaram declínios de longa duração das populações de peixes pequenos.

13,3 milhões de habitantes: 40.900 milhões de litros de água consumidos por dia

3,1 milhões de habitantes; 31.600 milhões de litros de água consumidos por dia

Milwaukee

Racine

Canal fluvial e Serviços Chicago Sanitários de Chicago Canal Calumet-Sag

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LA I NFE RIO R

Água sem vida

o eg sk u M Muskegon Grand Rapids Holland

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Carreira fluvial Kalamazoo

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LAGO MICHIGAN

Fond du Lac

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Green Bay

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50 km

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Limite dos Grandes Lagos

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Maior

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Stress dos lagos devido a factores humanos

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Infra-estruturas

Menor

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Elkhart

Lansing

Battle Creek Ann Jackson Arbor Adrian Toledo umee Ma Fort Wayne

Lima MATTHEW W. CHWASTYK, JASON TREAT E ROSEMARY WARDLEY; KELSEY NOWAKOWSKI FONTES: PROJECTO DE AVALIAÇÃO E CARTOGRAFIA AMBIENTAL DOS GRANDES LAGOS; GABINETE DE ESTATÍSTICAS DO CANADÁ; GABINETE DE CENSO DOS EUA; COMISSÃO DOS GRANDES LAGOS; EPA; NOAA; USGS; GREEN MARBLE; DAVID ALLAN E OUTROS, PNAS, JANEIRO DE 2013


O seu futuro está em risco, devido a: Lago Superior

Lago Superior Lago Huron Lago Ontário

Maior

Stress devido a poluição Menor

Lago Huron Lago Ontário

Maior

Stress devido ao aumento de temperatura Menor Lago Michigan

Lago Erie

Lago Michigan

Lago Superior Lago Huron Lago Ontário

Maior

Stress devido a espécies invasoras Menor

Lago Erie

Lago Erie

Lago Michigan

Águas mais quentes

Espécies invasoras

O escoamento agrícola, devido ao uso de adubos e ao transbordo das redes de saneamento básico, geram uma quantidade excessiva de nutrientes nos lagos. Isto provoca eflorescências de algas tóxicas que privam as águas do oxigénio essencial à vida.

À medida que vão aquecendo, as águas exercem pressão sobre a flora e a fauna que estão adaptadas ao ciclo habitual de temperaturas do lago. O aquecimento também diminui o número de dias em que os lagos se encontram cobertos de gelo.

Intrusos viraram de pernas para o ar a cadeia alimentar em detrimento das espécies autóctones. Muitos chegaram nos tanques de lastro dos cargueiros, enquanto outros foram introduzidos para beneficiar a pesca desportiva.

São Lou renç o

Poluição

LAGO ONTÁRIO

Ameaça da poluição urbana A urbanização, a poluição e a produção de electricidade contribuem para a existência de níveis elevados de stress. As centrais eléctricas que usam a água dos lagos para arrefecimento matam muitos peixes em estado larvar.

Lago Nipissing

Greater Sudbury

Montréal Canal South Shore

Á Canal CANAD Beauharnois Ottawa NIDOS U DOS A T S E o nç Canal Lago re Champlain Wiley-Dondero Montpelier Canal Iroquois

I.

Blind River te Canal do Nor I. Manitoulin Co ckb urn

10,2 milhões de habitantes: 38.900 milhões de litros de água consumidos por dia

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1.300km

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Montanhas

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Canal Oswego O I R Lago Oneida Á T ON

O L A GCanal Erie

Rochester Rio Niagara Canal in Cat. Niagara Cayuga-Seneca sF o g La Buffalo

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Youngstown

Canton Pittsburgh

Canal Champlain Para Nova Iorque

Canal Erie

215 quilómetros

Albany

Springfield Hartford

LAGO ERIE

Excesso de nutrientes

Cleveland Akron

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Hudson

Guelph Kitchener Hamilton Canal Welland (Via de São Lourenço) Port Sarnia London Flint Long Huron es m Point a Th Detroit Lago t St. Clair Erie Windsor IE

Sandusky

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Lago Simcoe

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Baía Geor gia n

O menos profundo dos cinco lagos é afectado por factores de stress como a densidade demográfica nas regiões costeiras e elevados níveis de poluição. O escoamento agrícola provoca eflorescências de algas perigosas.

12,2 milhões de habitantes: 26.100 milhões de litros de água consumidos por dia

nd Isla ng o t. L Es land g Is Lon Newark Nova Iorque

Abertura para o oceano Canais foram escavados através das barreiras naturais, ligando os lagos ao sistema fluvial do Mississípi e assim ao oceano Atlântico. No entanto, essa abertura também expôs os lagos a espécies invasoras.


TESOUROS MOLDADOS PELO GELO Os Grandes Lagos formaram-se quando alguns vales, profundamente escavados e moldados pelo avanço e recuo dos glaciares ao longo de milhares de anos, se encheram com água do degelo no final da última glaciação. C A M A D A

MINN.

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G E L O

L A U R E N T I N A

lo Extensão do ge s há 10.0 0 0 ano

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QUEBEC

C A N A D Á

WISCONSIN

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Extensão do lago há 13.000 anos

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ONTÁRIO

NOVA IORQUE

MICHIGAN PENS.

ILLINOIS

100 km

INDIANA

OHIO

E S TA D O S U N I D O S

Da bacia hidrográfica ao mar

Lago Superior

MINN.

Duluth

ONTÁRIO

QUEBEC

Port Huron

Cataratas do Niágara

Detroit

Buffalo

Lago Erie

INDIANA

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100

NOVA IORQUE

200 300

U N I D O S

400 500

OHIO

Detroit, Michigan

Port Huron, Michigan

Buffalo, Nova Iorque

Cataratas do Niágara ERIE -64 74 metros acima do nível do mar NÍVE L DO M AR

Represas Soo

HURON -228

0

E S T A D O S

PENS.

ILLINOIS

183 metros acima do nível do mar

Profundidade

Lago Ontário

MICHIGAN

Duluth, Minnesota

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Lago Huron

WISCONSIN

Lago Michigan

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C A N A D Á

MICH.

ço

MICHIGAN -281

SUPERIOR -406 metros de profundidade

MATTHEW W. CHWASTYK, JASON TREAT Y ROSEMARY WARDLEY, NGM; KELSEY NOWAKOWSKI. FONTES: USGS; NOAA

ONTÁRIO -244

metros

ONT.

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A profundidade máxima do lago Superior (406 metros) contrasta com a menos profunda do lago Erie (64 metros). A água vinda de noroeste acaba por atingir o Atlântico, caindo pelas cataratas do Niágara e desembocando no mar através do rio São Lourenço.

Kingston, Ontário

Os Grandes Lagos em perfil Montreal, Quebec

Estação geradora de Beauharnois Barragem Moses-Saunders Barragem Iroquois

Pointeau-Père, Quebec


Tom suspeita que a pulverização com herbicidas conduzida pelas empresas madeireiras na bacia hidrográfica do lago Nipigon esteja a provocar danos nos animais. “Os rebentos das plantas são o alimento favorito do alce”, disse. “Eles prosperam ao ingerirem essas plantas jovens.” Ou melhor, prosperavam até elas serem envenenadas. “É assim que as coisas acontecem. Os herbicidas escorrem para os cursos de água, chegando às represas dos castores. Agora, eles têm as entranhas em mau estado”, contou. “Quando vejo maldades e interferências, sinto uma grande tristeza. E nunca pensei que as mudanças a que tenho assistido na floresta nos últimos 15 anos pudessem ocorrer tão depressa”, disse, enquanto acabava de contar a sua história numa fresca noite de Verão, na sua casa de Nipigon. Tom mantém-se em excelente forma física, graças a uma vida inteira de trabalho duro na manutenção de gasodutos, acompanhada pela sua actividade paralela de caça com armadilhas. De vez em quando, ouvia-se à distância um camião a rolar pela Auto-Estrada Transcanadiana. Da casa de Tom Borg, no meio de coníferas altas, há 33 anos, avista-se o rio Nipigon, um prolongamento do lago do mesmo nome. O lago Nipigon tem uma superfície de aproximadamente 4.850 quilómetros quadrados, embora no mapa pareça um charco, comparado com o corpo de água para onde escorre: o Lago Superior, o maior dos cinco Grandes Lagos. Enquanto a mulher de Tom, Donna, nos servia fatias grossas de bannock, o pão ázimo típico da região, barradas com doce de bagas de roseira brava, ele lamentava as transformações da terra que ama. Até as estações do ano mudaram. Por vezes, em Dezembro, os lagos ainda não têm gelo. Os ventos são mais violentos. A pelagem de Inverno dos animais que ele caça (castores, martas, arminhos, doninhas) desenvolve-se numa altura mais tardia da estação do que quando ele era novo. “Já nada é como dantes.” As alterações testemunhadas por Tom Borg e muitas outras a que ele ainda não assistiu na sua bacia hidrográfica relativamente prístina estão a transformar as restantes bacias hidrográficas dos Grandes Lagos. Os cinco lagos (Superior, Huron, Michigan, Erie e Ontário) são provavelmente o recurso mais precioso do continente, incalculavelmente mais valioso do que o petróleo, o gás ou o carvão. No seu conjunto, contêm mais de um quinto da água doce da superfície do planeta (22.700 biliões de litros) e 84% da existente na América do Norte.

Quase 40 milhões de norte-americanos e canadianos vivem na bacia hidrográfica dos Grandes Lagos. Bebem água dos lagos, pescam neles, transportam mercadorias através deles, cultivam as suas margens e trabalham em cidades que não existiriam sem os lagos. E, claro, poluem-nos. Introduzem espécies invasoras que alteraram os lagos de forma definitiva. Devido à contínua emissão de gases com efeito de estufa, modificaram as condições climáticas existentes em grandes extensões da bacia hidrográfica dos Grandes Lagos, aumentando a frequência das tempestades violentas. “É grave o que está a acontecer aqui”, disse Tom, enquanto bebíamos chá. “Quando passamos algum tempo nesta terra, percebemos que algo está errado. Não sei se conseguiremos travá-lo.” do continente, os Grandes Lagos são meros “recém-chegados”. Constituem um legado da última glaciação da América do Norte, um período em que glaciares com vários quilómetros de espessura prolongavam-se desde o Sul do Kansas ao Árctico. Quando os glaciares recuaram, há 11 mil anos, escavaram as bacias que viriam a transformar-se nos Grandes Lagos. Contudo, os actuais contornos e o sistema de escoamento dos lagos só se formaram há três mil anos. Nenhuma outra característica da Terra rivaliza com os lagos. São o maior sistema de água doce do mundo. Todos os lagos, sejam eles frios e profundos com margens florestadas, como o lago Superior, ou quentes e rasos e rodeados de cidades industriais, como o lago Erie, partilham uma vida secreta. Acolhem um mundo oculto que a maioria dos leitores nunca verá. Se tivermos sorte, poderemos avistar um lobo, encontrar um alce ou talvez pescar um esturjão de 95 quilogramas. Mas essas criaturas famosas roubam protagonismo a um elenco secundário muito mais humilde, sem o qual os lagos morreriam. “Respire fundo e, em seguida, volte a respirar fundo. Dessas duas inspirações, uma era composta por diátomos”, afirmou o ecologista Andrew Bramburger, colaborador da agência canadiana Environment and Climate Change Canada, actualmente responsável pela administração e aplicação de grande parte das políticas públicas ambientais do país. No ano passado, quando Andrew ainda trabalhava na Universidade de Minnesota Duluth, conversámos numa sala de aula vazia. Ele exaltou então o papel desempenhado pelos diátomos, um tipo de algas com paredes celulares feitas de sílica, (Continua na pg. 16) como suporte de vida. N O Q U E S E R E F E R E À H I S TÓ R I A G E O G R Á F I C A

GRANDE S LAGOS

11


LAGO MICHIGAN Enquanto o Sol se põe, uma cortina de chuva desce de nuvens de tempestade junto da Orla Lacustre Nacional de Sleeping Bear Dunes, na costa nordeste do lago Michigan. Dos cinco Grandes Lagos, só o Michigan se situa inteiramente no território dos Estados Unidos.



IMPACTE DA AGRICULTURA

Lago Nipigon

A água doce é fundamental para a indústria agrícola da bacia dos Grandes Lagos, que bombeia diariamente cerca de 1.500 milhões de litros da água da bacia para fins de irrigação. A região serve de suporte a 25% da produção agrícola do Canadá e a 7% da dos EUA, mas a qualidade da água, o habitat dos animais selvagens e as populações de peixe têm diminuído nas últimas décadas devido ao uso excessivo de adubos e outras pressões.

BACIA DO LAGO SUPERIOR

Área total de culturas

ESTADOS UNIDOS 160,4 milhões de hectares

CANADÁ 37,8 milhões de hectares

A monocultura intensiva…

Baía Thunder

GO LA

M I N N E S O TA Área total de culturas nas bacias dos Grandes Lagos

CA NA ES TA DÁ UN DOS IDO S

RIOR SUPE

Duluth

11,4 milhões de hectares

É comum semear a mesma cultura no mesmo solo todos os anos. Culturas em linha, como milho, soja e forragem são dominantes na região meridional dos Grandes Lagos.

Área de cultura de milho

3,5 milhões de hectares

MICH. acia do L. Superior

Área de cultura de soja

3.6 milhões de hectares

Área total tratada com fertilizantes, cal ou preservantes dos solos

EUA

CAN.

3.824; 728 1.348; 192 BACIA DO LAGO MICHIGAN

WISCONSIN

Green Bay Appleton

8 milhões de hectares

… exige grandes quantidades de adubo…

LAGO MICHIGAN

Quanto se prolonga a utilização de um terreno para a mesma cultura, mais adubos são necessários para repor no solo os nutrientes que não conseguem regenerar-se naturalmente.

Bacia do L. Michigan Área total tratada com estrume

Milho Soja

1.077.186 750.746

Milwaukee

1.8 milhões de hectares

ILLINOIS

Chicago

Azoto Fósforo

… o que provoca eflorescências de algas maciças. Os nutrientes dos adubos, como o azoto e o fósforo, escorrem para os afluentes que desaguam nos lagos, causando um leque variado de impactes adversos.

Algas Oxigénio

O adubo e o estrume, ricos em azoto e fósforo, não são absorvidos e escorrem para os afluentes, acabando por chegar aos lagos.

As algas florescem com os nutrientes em excesso, que originam eflorescências que absorvem a luz solar e o oxigénio, asfixiando a vida.

MATTHEW W. CHWASTYK E JASON TREAT; KELSEY NOWAKOWSKI FONTES: MINISTÉRIO DA AGRICULTURA DOS EUA; GABINETE DE AGRICULTURA E PRODUTOS AGRÁRIOS DO CANADÁ; NASA; USGS; U.S. EPA; NOAA; CENTRO DE CIÊNCIA AQUÁTICA DO MIDWEST SUPERIOR, USGS

As plantas e algas mortas decompõem-se: as bactérias privam o sistema de oxigénio, ao decomporem a matéria orgânica.


Uso do solo

Concentração total de fósforo

Cultura Prado Matos Floresta Zona húmida Área urbana

Lago Superior

Lago Ontário

Elevada

Derrames de fósforo

Cada quadrado representa 50 toneladas por ano

Lago Huron

Lagos a montante Atmosfera Floresta, zonas húmidas e matagais Fertilizante agrícola Outra fonte agrícola Estrume Efluentes urbanos Águas residuais e descargas de fábricas

Reduzida

50 km

Lago Michigan

Bacia do L. Huron EUA

Lago Erie

CAN.

294.636; 260.501 319.423; 275.887

BACIA DO LAGO HURON

O N T Á R I O

Abundância de nutrientes Os processos naturais, as escorrências de adubos e as águas residuais provenientes do tratamento de esgotos fornecem uma enorme abundância de fósforo e azoto aos lagos, provocando eflorescências de algas tóxicas.

LA G

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Greater Sudbury

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BACIA DO LAGO ERIE

Erie

Bacia do L. Erie

Bacia de Ontário

801.764; 460.998 1.133.130; 496.939

223.403; 114.324 94.126; 151.523

EUA

CAN.

PENS.

Cleveland

I NDIAN A O

BACIA DO LAGO ONTÁRIO

Lago St. Clair

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NOVA IORQUE

Buffalo

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Lansing

Fort Wayne

LAGO RIO ONTÁ

EUA

CAN.

Eflorescências de algas As eflorescências de algas no lago Erie pioraram na última década. Visível a partir do espaço, a água azul-esverdeada, carregada de nutrientes, persiste durante semanas, ameaçando a saúde humana, a água potável e a vida selvagem.

O 12

Severidade da efervescência de algas 9 no lago Erie Ocidental

Grande Pântano Negro Este pântano, com 4.000 quilómetros quadrados, foi outrora um sumidouro natural para o excesso de nutrientes. Em 1900, já fora quase totalmente drenado para que os colonos pudessem cultivar os seus solos férteis.

A gravidade das eflorescências de algas acima do nível 3 é nociva para a qualidade da água.

6 3 0 2002

2005

2010

2015

2019


“Diz-se que a floresta tropical da Amazónia é o pulmão do planeta”, disse. “A verdade, porém, é que são os diátomos presentes nos oceanos, nos rios e nos lagos que fabricam cerca de metade do oxigénio da nossa atmosfera.” Os diátomos também bombeiam oxigénio nos lagos. Sem eles, os lagos sufocariam. E são a principal fonte de alimento dos lagos. Se os diátomos forem saudáveis, tudo o que vive nos lagos também será saudável. Há 20 anos que Andrew Bramburger estuda as algas nos Grandes Lagos e noutros grandes lagos de todo o planeta. Na maior parte das regiões do mundo, um lago é uma superfície que se pode ver de uma margem para a outra. O entusiasmo de Andrew pelos lagos era tão grande que ele não conseguia evitar partilhá-lo e não apenas por palavras. Convidou-me a participar num evento mensal especial: convidou-me a nadar no lago Superior com um grupo de amigos. Fazem isso durante todo o ano, mesmo no Inverno, mergulhando de plataformas de gelo para os lugares onde há água livre, contou, cheio de alegria na voz. E – imaginem a minha sorte – o próximo baptismo gélido teria lugar dentro de quatro dias. Numa tentativa cobarde de escapar ao evento, murmurei que não trouxera o fato de banho. Andrew interrompeu-me de imediato: “Pode usar um dos meus.” Enquanto me preocupava, em silêncio, com o sarilho em que me metera, Andrew abriu o seu computador portátil e mostrou-me imagens de alguns dos habitantes mais pequenos do lago Superior. Os investigadores identificaram cerca de três mil espécies de diátomos nos Grandes Lagos, havendo provavelmente muitas mais por descobrir. Vistos ao microscópio, são dos seres vivos mais estranhamente belos entre todos, com uma variedade caleidoscópica de formas. À semelhança das plantas, os diátomos e outras algas servem-se da luz para transformar a água e o dióxido de carbono em hidratos de carbono simples. São um alimento de alta qualidade para o zooplâncton, pois são “sumarentos e ricos em lípidos”, segundo a descrição de Andrew Bramburger. Ele e outros investigadores documentaram uma tendência alarmante que remonta há 115 anos: os diátomos dos Grandes Lagos estão a diminuir de tamanho. Essa diminuição parece relacionar-se com as alterações climáticas. À medida que os lagos aquecem, os diátomos vão-se afundando, o que diminui a sua capacidade para captar luz. “Os maiores não conseguem manter-se a flutuar”, afirmou o investigador. “Se a tendência se mantiver, haverá diátomos mais pequenos e em menor quantidade, 16

N AT I O N A L G E O G R A P H I C

prevendo-se a sua substituição por organismos que serão, na melhor das hipóteses, artigos alimentares de baixa qualidade e, na pior, tóxicos.” As espécies invasoras de moluscos, introduzidas por navios oceânicos, constituem uma ameaça ainda maior aos diátomos, tendo provocado uma redução de 90% do seu número no lago Erie ao longo dos últimos 35 anos. Uma perda equivalente de outras plantas fundamentais e mais conhecidas, como o capim da savana africana, saltaria imediatamente para os cabeçalhos das notícias. Mas os diátomos não interessam muito à comunicação social. Como este organismo é tão abundante e insubstituível, causa surpresa que se saiba tão pouco sobre o que acontece aos diátomos durante o Inverno. “Ao longo de cinco meses por ano, o lago fica


LAGO HURON Uma plantadeira distribui sementes de feijão em parte de uma exploração agrícola de três mil hectares pertencente à firma Zwerk and Sons, perto do lago Huron. Mais de cinco mil explorações agrícolas no Michigan foram certificadas por um programa voluntário apoiado pelo Estado e pelas agências locais, com o objectivo de promover práticas que reduzam a poluição.

coberto de gelo e não fazemos a mínima ideia do que se passa lá em baixo”, disse Andrew. Durante os invernos de 2017 e 2018, Andrew e alguns colegas da Universidade de Minnesota resolveram preencher esta lacuna do nosso conhecimento e aventuraram-se nas superfícies geladas de vários lagos cujas águas confluem no lago Superior. Ali, abriram alguns buracos no gelo. Em vez do cenário lamacento que tinham imaginado, as águas debaixo do gelo fervilhavam de vida. “As taxas de fotossíntese medidas sob o gelo eram 60% das registadas durante o Verão. E isto observou-se a uma profundidade de 60 centímetros de gelo e 60 centímetros de neve. Pensávamos que, lá em baixo, existia apenas um mundo frio, escuro e aborrecido, quando, na verdade, se passa imenso.” O zooplânc-

ton era abundante (cerca de 1500 indivíduos por litro). Deslocava-se livremente, devorando algas. Se não existisse uma safra saudável de diátomos para sustentar o frenesi alimentar do zooplâncton durante o Inverno, a produtividade do lago ressentir-se-ia no resto do ano. Uma vez que os pequenos peixes dos lagos se alimentam de zooplâncton, uma diminuição drástica deste provocaria uma queda abrupta das populações de peixe. “É o ponto de partida para a cadeia alimentar da Primavera”, afirmou Andrew. A energia solar capturada pelos diátomos fornece as calorias que se transformam na carne de criaturas cada vez maiores, numa florida cadeia de luz incorporada. “Só pescamos um achigã grande no Verão, porque estes bicharocos andaram a fazer o seu trabalho durante o Inverno”, disse. GRANDE S LAGOS

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“É GRAVE, O QUE ESTÁ A ACONTECER AQUI... SABEMOS QUE ALGO ESTÁ ERRADO. Uma das conclusões mais contra-intuitivas descobertas pelo grupo é que os diátomos são mais eficientes debaixo do gelo coberto de neve do que debaixo do gelo sem neve por cima. Os diátomos precisam de um equilíbrio ideal entre profundidade e luz solar. Se forem demasiado ao fundo, não obtêm luz suficiente. Se permanecerem numa região demasiado alta da coluna de água, podem queimar-se. É possível que a neve os proteja da luz solar em excesso. Sob gelo sem neve, a radiação solar pode danificar os pigmentos fotossintéticos dos diátomos. Uma explicação possível: “Os seus sistemas fotossintéticos, os seus pigmentos, estavam basicamente a ser bombardeados e queimados”, afirmou Andrew Bramburger. Foi uma descoberta preocupante. “Esta é uma realidade que vai afectar os Grandes Lagos à medida que formos perdendo o nosso revestimento de neve e de gelo e os nossos invernos aquecerem, tornando-se mais secos e mais ventosos”, disse. “Mais secos e mais ventosos significa que vamos começar a perder a neve sobre o gelo e, à medida que o calor aumentar, vamos simplesmente começar a perder o gelo. Nos Grandes Lagos, estamos a assistir a grandes eflorescências de algas, de uma espécie chamada Aulacoseira. É um diátomo de grandes dimensões e gosta de viver no fundo sob gelo espesso coberto de neve. Se começarmos a perdê-lo, vamos provavelmente perder uma das componentes verdadeiramente importantes da cadeia alimentar. “É uma corrida para perceber o que acontece no Inverno, antes que não haja Inverno para perceber.” Estava prevista chuva forte para a manhã do nosso mergulho, o que me dera esperanças de evitar aquela provação. Não tive sorte. Às 5h40 da manhã do dia marcado, 13 pessoas acocoraram-se em torno de uma fogueira, numa praia escura e pedregosa, envolta em nevoeiro e não muito distante da baixa de Duluth. Bebíamos café. Este mergulho de grupo assinalaria 47 meses consecutivos de saltos para o lago. Michael Scharenbroich, um dos amigos de Andrew, mediu a temperatura da água: “10,6ºC”, gritou. São horas. Sem calçado aquático adequado, fiquei para trás na corrida para a água, bamboleando sobre os seixos. Então, a necessidade de aliviar as dores nos pés sobrepôs-se à minha 18

N AT I O N A L G E O G R A P H I C

relutância visceral de mergulhar na água. À minha volta, cabeças desapareciam e voltavam rapidamente a aparecer acima da superfície, como um bando de lontras espantadas, de olhos arregalados pelo choque e pela alegria. Afinal, um mergulho não era suficiente. Aquecemo-nos e voltámos a saltar. E mais uma terceira vez. À medida que a fogueira se apagava e o céu clareava, mudando de cor para um cinzento prateado, o grupo começou a dispersar, mas Andrew ficou. Poucos dias depois, partiria para o Canadá, rumo a um novo emprego e era evidente que teria saudades daquelas manhãs. “Já vivi em muitos sítios em redor dos Grandes Lagos, mas no lago Superior parece existir uma certa magia para as pessoas”, contou. “Nunca vi a sensação de identificação e de vinculação ao lago que se tem em Duluth em qualquer outra cidade lacustre.” Apesar da sua beleza, o lago Superior pode ser traiçoeiro. Duluth, com 86 mil habitantes, é a segunda maior cidade do lago Superior, depois de Thunder Bay, no Ontário, e ainda está a recuperar dos danos causados por uma série de tempestades violentas, incluindo a chamada tempestade de 500 anos que assolou a cidade nos últimos oito anos. Poucos dias depois do meu encontro com Bramburger, Michael LeBeau, o supervisor dos projectos de construção de Duluth, levou-me numa volta pelas docas, onde os níveis elevados da água do lago e três tempestades com ventos violentos tinham causado inundações responsáveis por danos graves no ano anterior. Em 2016, uma tempestade desactivou o sistema eléctrico do serviço de abastecimento de água de Duluth. Situada à beira de um dos maiores corpos de água doce do mundo, a cidade esteve a poucas horas de ficar sem água. Contemplando uma belíssima extensão de área urbana costeira que, em breve, será protegida por 69 mil toneladas de rocha extraída de uma pedreira nas proximidades, Michael mostrou-se preocupado com o que o futuro reserva. “Dizem-me que quase esgotámos a pedreira”, afirmou. “Vamos gastar quase 25 milhões de euros por causa de três grandes tempestades. Foi um golpe terrível para uma cidade pequena e não muito rica. Estamos a remediar como podemos, tendo em conta


o dinheiro que temos. É perfeitamente concebível que, se estas tempestades continuarem ou piorarem, deixe de ser possível regressarmos ao ponto de partida. E ninguém consegue perceber isso.” Estas tempestades devastadoras transformar-se-ão, provavelmente, numa nova e dispendiosa normalidade. O aquecimento global está a desestabilizar a corrente de jacto, a corrente atmosférica de grande altitude que gira em torno do planeta, de oeste para leste. As diferenças de temperatura entre as altitudes médias e elevadas, responsáveis pela corrente de jacto, têm diminuído, abrandando esse vasto rio de ar. E isso tem afectado os padrões climáticos sazonais: as tempestades estão a tornar-se mais esporádicas, mas mais intensas. Alguns modelos climáticos prevêem que o número de tempestades violentas em todo o mundo duplicará por cada grau de aumento do aquecimento global, tendência essa que talvez já esteja em curso. As fortes chuvadas primaveris ocorridas em 2019 provocaram níveis recorde da altura das águas dos lagos e cheias generalizadas em toda a região dos Grandes Lagos. Enquanto seguíamos de automóvel ao longo da orla costeira, nos arredores setentrionais da cidade, Michael LeBeau contou-me que, no princípio de 2019, uma tempestade de Inverno cobriu a estrada por onde viajávamos com 120 centímetros de areia e cascalho. “Estamos a prever mais três anos de construção, partindo do princípio de que não acontece outra grande tempestade.” noutro dia de Verão carregado de chuva, um pequeno grupo de mulheres reuniu-se em torno de um sinal vermelho em forma de losango, numa praia do Parque Estadual de Maumee Bay, nas margens do lago Erie, a uma curta distância da cidade de Toledo, no Ohio. Aquilo que leram inquietou-as: “PERIGO Evitar qualquer contacto com a água. Foram detectados níveis INSEGUROS de toxinas algais.” As mulheres, estudantes na Universidade Estadual de Bowling Green, tinham estado a nadar nas águas esverdeadas e o sinal escapara-lhes à chegada. Éramos as únicas pessoas na praia e, quando me aproximei, fizeram-me perguntas às quais não soube responder: Iriam ficar bem? As N OV E C E N T O S Q U I L Ó M E T R O S A S U D E S T E ,

toxinas eram perigosas? “Nunca mais voltamos a esta praia”, disse Marharita-Sophia Tavpash, visivelmente abalada, enquanto ela e as amigas se apressavam a entrar no automóvel. Desde o início da década de 2000, as eflorescências de algas nocivas têm afectado o lago Erie quase todos os verões. Nos Grandes Lagos, vive uma grande variedade de algas e organismos semelhantes. A maioria, tal como os diátomos, são fundamentais para a saúde dos lagos. Alguns, porém, podem eliminar a vida nos lagos, asfixiando-a. Os mais problemáticos são as cianobactérias, um organismo presente em quase todos os corpos de água. Com condições favoráveis (água quente e poluída), crescem descontroladamente, formando uma espuma viscosa e verde. Quando as algas se decompõem, sugam o oxigénio da água, criando vastas zonas mortas, por vezes libertando toxinas que podem ser fatais para a vida selvagem. Nos seres humanos, podem provocar erupções cutâneas e lesões no fígado. Há apenas 25 anos, as eflorescências de algas pareciam ser um problema do passado nos EUA. Antes de o Congresso aprovar a Lei da Água Limpa, em 1972, as eflorescências tinham atormentado o lago ano após ano, mas a legislação impôs regras estritas às centrais de tratamento dos esgotos e levou à eliminação dos fosfatos nos detergentes de lavagem da roupa. As algas prosperam com fósforo: sem aportes significativos deste elemento, as eflorescências não conseguem crescer. Durante uma década idílica, o lago manteve-se livre de eflorescências. Então por que razão voltaram elas a surgir? Para me encontrar com as pessoas que resolveram esse mistério, fui de automóvel até à Universidade Heidelberg, em Tiffin, no estado de Ohio, em cuja cidade universitária de 50 hectares, na região agrícola do milho, existe aquilo a que os cientistas chamam um tesouro nacional: um meticuloso registo de 45 anos sobre as substâncias químicas escoadas para o lago Erie por dois grandes afluentes, os rios Maumee e Sandusky. Duas mulheres são responsáveis pela recolha e preservação deste acervo. Dedicaram mais de 40 anos à tarefa de diagnosticar os males do lago Erie.

AS COISAS ESTÃO A MUDAR. NÃO SEI SE CONSEGUIREMOS TRAVÁ-LAS. —TO M M O R R I S E A U B O R G , C A Ç A D O R T R A D I C I O N A L C O M A R M A D I L H A S


RIO ILLINOIS Pescadores capturam carpas asiáticas na esperança de impedirem que a sua expansão alastre para o lago Michigan. Desde que escaparam das lagoas de aquicultura e dos charcos de efluentes na bacia do rio Mississípi nas décadas de 1960 e 1970, estas carpas têm dizimado os peixes autóctones. Foram recentemente localizadas a 14 quilómetros do lago Michigan.



QUASE TODOS OS VERÕES DOS ÚLTIMOS 20 ANOS, EFLORESCÊNCIAS DE ALGAS “Somos mais antigos que a Agência Federal para a Protecção Ambiental dos EUA”, diz Ellen Ewing, enquanto almoçamos num dos refeitórios da universidade. “Somos mais antigos do que o Dia da Terra!” Ellen referia-se ao Centro Nacional para a Investigação da Qualidade da Água, da Universidade Heidelberg, fundado em 1969. Ellen começou a trabalhar neste Centro em 1976, logo depois de se licenciar na universidade, dois anos antes da sua colega e também antiga aluna de Heidelberg, Barbara Merryfield, sentada a seu lado na nossa mesa. O volume de dados que ambas reuniram ao longo das décadas permitiu aos investigadores compreender a misteriosa ressurgência das eflorescências de algas no lago Erie. Todas as semanas, durante mais de 40 anos, Ellen, Barbara e a sua pequena equipa recolheram amostras de água nos rios Maumee, Sandusky e noutras bacias hidrográficas. “Eu costumava percorrer 800 quilómetros de automóvel, por semana”, disse-me Barbara Merryfield. “Estava fora três dias por semana. “Num certo aniversário de trabalho da Barbara, calculei o número de amostras por ela processadas até então”, disse Laura Johnson, cientista que dirige o centro desde 2016. “Eram mais de dois milhões e isso era uma estimativa por baixo.” Recolhiam aproximadamente dez mil amostras por ano, testando 11 parâmetros diferentes, observou Ellen Ewing, entre duas garfadas de salada. “Somos terrivelmente eficientes.” Toda essa amostragem revelou que uma prática de conservação supostamente destinada a melhorar a qualidade da água do lago tem provocado o oposto. Na década de 1990, muitos agricultores da bacia hidrográfica do lago incorporaram técnicas da agricultura sem mobilização da terra. Em vez de lavrarem os campos na Primavera enquanto os adubavam, os agricultores começaram a espalhar granulado sobre o solo. Por lavrarem menos, a erosão do solo diminuiu, mas a quantidade de alimento para as algas que escorria para o lago aumentou inesperadamente. Quando o fósforo era introduzido a cerca de 20 centímetros de profundidade, permanecia bem incorporado no solo. Contudo, quando o 22

N AT I O N A L G E O G R A P H I C

granulado permanece sobre os cinco centímetros da camada superior do solo, o fósforo dissolve-se e escorre para o lago sempre que os campos ficam saturados de água devido à precipitação. Segundo Laura Johnson, o número de dias com cinco, ou mais, centímetros de precipitação mais do que duplicou nas últimas duas décadas. “É esse o grande problema.” A mentora de Laura, a ecologista Jennifer Tank, da Universidade de Notre Dame, tem colaborado com os agricultores para definir métodos que permitam reduzir as escorrências provenientes dos seus campos e prepará-los para os rigores de uma nova era climática. As mesmas chuvadas de Primavera que fizeram o fósforo escorrer para o lago Erie obrigaram os agricultores da região a atrasarem o plantio primaveril em 2019. Os campos estavam tão molhados e lamacentos que essa acção estava várias semanas atrasada. “Este ano [2019], um número recorde de hectares ficou por plantar”, afirmou Kaleb Kolberg, de 26 anos, agricultor de Hartford, no estado de Michigan, a quase 20 quilómetros de distância das margens do lago Michigan. A maioria das pessoas não conseguiu plantar um quarto dos seus terrenos. Apontando na direcção de um dos seus próprios campos, atrás da sua casa, Kaleb disse: “Aquele milho costuma estar duas vezes mais alto. Plantámos em condições nunca vividas antes. Costumamos colher o milho em meados de Setembro. Este ano a colheita vai acontecer em meados de Outubro.” Tinha sido um ano cheio de pressões, como se não bastassem os habituais desafios da vida agrícola. “Custa 500 euros cultivar um acre [0,4 hectares] de milho”, disse este antigo e musculado jogador de futebol americano universitário, que se descreve a si próprio como maníaco da lavoura. Só um tractor custa 250 mil euros. “Assumimos todos os riscos à cabeça, na esperança de colhermos as recompensas no Outono.” O ano correu melhor a Kaleb do que à maioria dos agricultores. Em colaboração com Colleen Forestieri e Erin Fuller, da administração regional para a conservação, e com Jennifer Tank, ele plantara azevém e trevo-encarnado como culturas de cobertura durante vários anos para proteger a sua terra nos períodos


de pousio. Andando de carro pelo Sudoeste do Michigan com Kaleb na sua carrinha de caixa aberta, numa tarde quente de Agosto, nesta paisagem aplanada pelos glaciares, até um eterno bicho da cidade como eu conseguia identificar as quintas que tinham sido plantadas com culturas de cobertura. O milho cultivado nos campos que não as tinham era nitidamente mais baixo, por vezes vários centímetros. Alguns campos nem sequer estavam plantados. Apresentavam-se demasiado molhados para o tractor poder operar. Em alguns, ainda se avistavam charcos de água estagnada. Kaleb disse que conseguira plantar mais na sua quinta do que os vizinhos graças às culturas de cobertura, que absorviam a humidade do terreno. “Com as culturas de cobertura, ficamos preparados para os dois extremos”, acrescentou. “Água a mais e água a menos.” Além de assegurar a viabilidade económica de agricultores como Kaleb Kolberg, o uso generalizado de culturas de cobertura impede o escoamento do fluxo de nutrientes que alimentam as eflorescências de algas. “Precisamos de proteger cada centímetro quadrado de terra”, disse Jennifer Tank. “Isso mudaria completamente o cenário. Precisamos de culturas de cobertura à escala de toda a bacia hidrográfica.” Apesar de todas as suas vantagens, a adopção das culturas de cobertura é difícil. “As culturas de cobertura exigem os mesmos cuidados que as culturas de rendimento”, explicou Jennifer. Os agricultores não ganham dinheiro com as culturas de cobertura. Por enquanto, as escorrências de adubos provenientes de muitas explorações agrícolas continuam a não ser regulamentadas ao abrigo da Lei da Água Limpa, mesmo depois de uma eflorescência alimentada por fósforo ter levado ao encerramento da rede de abastecimento de água de uma cidade de grande dimensão. Na sexta-feira, dia 1 de Agosto de 2014, por volta das 7 horas da tarde, o director dos serviços públicos da cidade de Toledo recebeu um telefonema do químico-chefe do departamento. Testes de rotina feitos à água da cidade demonstraram que a mesma fora poluída com microcistina, uma toxina algal. Não era uma opção aconselhar os habitantes

a ferverem a água, pois isso só serviria para concentrar o veneno. Por isso, às 2 horas da manhã, a cidade emitiu um alerta para a população não consumir água. Durante mais de dois dias, até a água estar tratada, os quase 500 mil habitantes de Toledo não puderam beber água da torneira. Passados seis anos, a catástrofe ainda deixa irritado o actual presidente da câmara municipal de Toledo, Wade Kapszukiewicz. “Houve empresas que fecharam as portas”, disse. “Hospitais suspenderam intervenções cirúrgicas – sem água, não há cirurgias. Foi um acontecimento traumático para a nossa região.” Do seu gabinete, 22 andares acima da baixa de Toledo, avista-se o rio Maumee. Há três anos, contou ele, quando uma eflorescência no lago Erie alastrou rio acima, o Maumee parecia ter sido tingido de verde. A cidade gastou mais de 840 milhões de euros a aperfeiçoar o seu sistema de protecção contra tempestades e a estação de tratamento de águas, incluindo melhoramentos destinados a filtrar e eliminar a microcistina e uma bóia com sensores especiais que vigiam a extensão das eflorescências algais perto da conduta de tomada de água da cidade, localizada no lago Erie. Por isso, não é provável que a crise se repita. É uma informação reconfortante no meio de uma pandemia. Imaginem uma cidade sem água neste momento. No entanto, Toledo ainda está a pagar pelo despejo descontrolado de fósforo e de outros adubos no lago, pois nem todos os agricultores são tão conscientes como Kaleb Kolberg. “Eu não preciso de estar acordado às 5h10 para saber que o Sol irá erguer-se a leste”, disse o autarca. “Também não preciso de fazer mais uma visita a mais uma quinta para saber que as escorrências da agricultura estão a poluir o lago Erie. Todos sabem isso. A única pergunta a fazer é a seguinte: O que vamos fazer para pará-las?”, disse. “Eu não sou contra os agricultores. Sou contra a poluição. Sei que muitos agricultores estão a experimentar tecnologias, frequentemente arrojadas, para reduzirem o escoamento agrícola. O maior problema é causado pelas mega-explorações agrícolas, especialmente as operações concentradas de pecuária (CAFO). Não são as (Continua na pg. 28) quintas familiares.”

QUE ASFIXIAM A VIDA NOS LAGOS TÊM ATORMENTADO O LAGO ERIE.


Principal exportação por porto

UMA TERCEIRA COSTA Com a mais extensa orla costeira dos EUA continentais, os O N T Á R I O Grandes Lagos têm uma vida comercial activa. Cerca de 38 milhões de toneladas de mercadorias foram movimentadas através da rota marítima de São Lourenço em 2019. Esta Baía Thunder passagem tem 15 comportas e faz parte da rota de 3.766 CAN. quilómetros do Atlântico ao lago Superior. O transporte EUA internacional, que representa uma pequena percentagem do comércio de mercadorias, foi outrora um importante MINN. meio de penetração para as espécies invasoras.

Cereal Carvão Carga a granel

LAGO SUPERIOR

Baía Silver Two Harbors

COMÉRCIO LIMITADO

Duluth

Superior

A maioria dos navios estrangeiros de mercadorias são demasiado grandes para atravessar as comportas do sistema da rota marítima: não conseguem ir para lá de Montreal. Para chegarem a locais mais distantes, as mercadorias têm de ser colocadas em cargueiros lacustres, mais compridos e mais estreitos.

Dimensão das represas do canal Welland

1829-1844 Concluído em 1833, o primeiro canal Welland tinha 44km de extensão. Ligava os lagos Ontário e Erie, contornando as cataratas do Niágara.

6,7

33,5 metros

1845-1866 O sistema foi alargado para disponibilizar uma via fluvial entre o Quebec e Ontário: a profundidade do canal aumentou para 2,7 metros.

45,7 8,1

Port Inland

WISCONSIN Charlevoix

Marinette

Rio desviado A inversão pioneira do rio Chicago, concluída em 1900, diminuiu as doenças transmitidas pela água, causadas pelo fluxo de esgotos despejados no lago Michigan, a fonte da água potável de Chicago. Hoje, porém, pode ser uma via de penetração para a invasora carpa-asiática.

Baía Green Manitowoc

Ludington

LAGO MICHIGAN Milwaukee

ILLINOIS Chicago Canal de embarque e Unidade Hospitalar de Chicago Porto de Indiana

1887-1931 Os engenheiros construíram menos comportas, mas maiores. A deslocação entre comportas era demorada e dispendiosa.

Brevort

MICH.

Porto de Burns Gary

INDIANA

82,3 13,7

1932 A expansão do canal Welland aumentou significativamente a dimensão das comportas e tornou-o muito mais profundo. 233,5

426,8 24,4

Actualidade

Extensão da represa do canal do Panamá em 2016 54,9

O sistema do canal do Panamá tornou-se o modelo preferido pela navegação oceânica, deixando o pequeno canal Welland com um volume limitado de tráfego. MATTHEW W. CHWASTYK E JASON TREAT; KELSEY NOWAKOWSKI. FONTES: SISTEMA MARÍTIMO DE SÃO LOURENÇO PARA OS GRANDES LAGOS; MINISTÉRIO DOS TRANSPORTES DOS EUA; USGS; EMPRESA DE GESTÃO DO SISTEMA MARÍTIMO DE SÃO LOURENÇO E EMPRESA DE DESENVOLVIMENTO DO SISTEMA MARÍTIMO DE SÃO LOURENÇO; AUTORIDADE DO CANAL DO PANAMÁ.


Extensão das orlas costeiras nos Estados Unidos (território contíguo) Superior

Michigan

Huron

Erie

Ontário

Outros lagos e rios

7.987km

GRANDES LAGOS

3.330km

COSTA ORIENTAL

2.625 km

GOLFO DO MÉXICO COSTA OCIDENTAL

2.081 km

Volume de carga através do Sistema de São Lourenço, 2019 Entrada Saída

1 ou menos 4

8

Carga remetida ou recebida através do Sistema de São Lourenço

32

16

milhões de toneladas

Outro porto Carreira fluvial Área urbana

50 km

Sault Ste. Marie

QUEBEC

Quebec

Trois-Rivières

Bécancour

Sorel-Tracy

Minas Bruce

C

A

N

G

D

Saída

da Entra

ía an Ba r g i eo

Cheboygan

A

Goderich

Port Huron Detroit Monroe

Sarnia Lake St. Clair

LAGO ERIE

Windsor

Toledo Sandusky

Lorain

Morrisburg

QUAL A CARGA DESTA ROTA MARÍTIMA? O Canadá depende fortemente da Rota Marítima de São Lourenço para o seu comércio nacional e internacional, sobretudo de produtos agrícolas. Os EUA servem-se da rota marítima sobretudo para exportar produtos minerais, como minério de ferro e carvão, para o Canadá.

Rochester

E S TA D O S

U Conneaut Ashtabula Porto de Fairport PENS.

Cleveland

Lago Champlain

N.H.

NOVA IORQUE Oswego

Hamilton Thorold Canal Welland Buffalo Porto Colborne Nanticoke

Erie

O H I O

Bowmanville

Toronto Mississauga Oakville

VERMONT

Johnstown Ogdensburg

Bath LAGO Picton ONTÁRIO Oshawa

MICHIGAN

Salaberry-de-Valleyfield

Á

O N T Á R I O

LAGO HURON

Montreal

NIDOS

Carga que transitou pelo menos por uma represa do Sistema de São Lourenço. 2019 em milhões de toneladas Tráfego interno canadiano 14,8

Exportações canadianas para os EUA 3,7 Exportações canadianas para outros países 3,9

Exportações dos EUA para o Canadá 9,4 Exportações dos EUA para outros países 1,5 Importações para o Canadá, excepto EUA 3,4 Importações para os EUA, excepto Canadá 1,7

Outras manufacturas 1,2 Tijolos de cimento 0,6 Escória de forno 0,7 Gasolina 1,0 Cimento 1,3 Combustíveis 1,6 Outros minérios 1,0 Coque de petróleo 0,6 Gipsite 0,6 Escória de ferro 2,4 Sal 2,5 Outros produtos agrícolas 0,3 Milho 0,7 Canola 1,2 Soja 1,6 Trigo 5

Manufacturas 0,7 Outros minérios 0,3 Sal 0,5 Coque de petróleo 0,8 Carvão betuminoso 2,4 Escória de ferro 4,5 Outros produtos agrícolas 0,1 Soja 0,4 Trigo 1,1 Outras manufacturas 1 Açúcar 0,5 Produtos químicos 0,5 Ferro e aço 0,7 Minério 0,8 Outras manufacturas 0,5 Ferro e aço 0,8 Minério 0,4

GRANDE S LAGOS

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LAGO MICHIGAN No subsolo de Chicago, prosseguem as obras num dos maiores projectos de engenharia civil do mundo: o Plano de Túneis e Reservatórios da cidade. Projectado para reduzir as cheias e impedir que o efluente dos esgotos não-tratados seja descarregado no lago Michigan, prevê-se que o sistema esteja plenamente operacional em 2029.



As CAFO, operações concentradas de produção animal, são essencialmente fábricas onde se produzem animais. Quando o número de animais existentes numa CAFO ultrapassa os limites impostos pela EPA, essa CAFO é obrigada a reger-se pelas leis da água limpa, mas muitas mantêm-se imediatamente abaixo dos limites legais e escapam à regulamentação. Segundo as conclusões de um estudo recente, o número de animais produzidos entre 2005 e 2018 nas explorações de produção animal na bacia hidrográfica do Maumee, com 21.500 quilómetros quadrados, mais do que duplicou: de nove milhões para vinte milhões. A quantidade de estrume aplicada nos campos durante o mesmo período aumentou cerca de 40%. Enquanto não forem impostas restrições mais apertadas ao escoamento de fósforo, as eflorescências de algas continuarão a ser uma característica permanente do lago Erie. Um cientista contou-me que, a manterem-se as tendências actuais, a ocorrência de eflorescências aumentará para o dobro em 2040. “Não se trata de um problema monetário”, afirmou Wade Kapszukiewicz. “É um problema de responsabilização.” esconde a sua fragilidade. Ao longo de vários meses, visitei-os todos, excepto o Huron. Cada lago merece ter a sua própria história. O Michigan e o Huron, que são, de facto, duas camadas do mesmo lago, têm um problema oposto ao do lago Erie: estão demasiado limpos. Centenas de biliões de mexilhões invasores quase eliminaram a totalidade do plâncton existente nas suas águas: os mexilhões conseguem filtrar toda a água do lago Michigan em cerca de uma semana. Os níveis de mercúrio e de PCB na bacia hidrográfica do lago Ontário são tão elevados que não é seguro ingerir muitos dos seus peixes. Encontrei-me com dezenas de investigadores que dedicaram carreiras inteiras a tentarem compreender e proteger os lagos. Comandantes de navios de recreio contaram-me como as eflorescências de algas arruinaram a sua subsistência. E descobri que começaram a aparecer eflorescências nocivas no lago Superior, o menos degradado dos lagos. A melhor descrição para o destino dos lagos e dos milhões de habitantes que deles dependem pode encontrar-se numa palavra em idioma anishinaabe: zaasigaakwii, para a qual não existe qualquer equivalente em língua inglesa. “Refere-se às aves que chegam na Primavera e que são então atingidas por uma grande tempestade”, afirma Michael Wassegijig Price, um espeA I M E N S I DÃO D O S L AG O S

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N AT I O N A L G E O G R A P H I C

cialista em conhecimento ecológico tradicional da Comissão Indígena para os Peixes e a Vida Selvagem dos Grandes Lagos. “É aquilo que acontece quando somos atingidos por um acto inesperado na natureza.” Como tempestades duradouras ou eflorescências de algas num lago do Norte. Há 18 anos, Tom Borg viveu a sua própria experiência de zaasigaakwii. Num dia de Fevereiro, deslizava sobre o lago congelado perto de sua casa na sua moto de neve, à semelhança do que fizera vezes sem conta noutros dias de Inverno. Não estava longe da orla costeira florestada quando, de repente, o gelo cedeu debaixo de si. Felizmente, a água tinha apenas 90 centímetros de profundidade, “mas estava tão brutalmente fria como a nove metros”, contou. “Senti dores horríveis, como se


COMO AJUDAR A organização Nature Conservancy colabora com os agricultores para reduzir o fluxo de fósforo que escorre para os Grandes Lagos, através do plantio de culturas de cobertura e de outras práticas: nature.org A organização Friends of the Detroit River está a recuperar os cursos de água e a terra no Michigan e em Ontário, concentrando os seus esforços no rio Detroit: detroitriver.org Os ojibwe consideram sagrado o arroz selvagem e cultivam-no há muitos séculos. A aquisição deste produto à comunidade injecta dinheiro na economia local e contribui para a promoção do desenvolvimento sustentável: llwildrice.com

LAGO MICHIGAN O Festival da Guarda Costeira, em Grand Haven, começou por ser um piquenique informal para as famílias da Guarda Costeira, em 1924. Agora atrai 350 mil pessoas todos os verões, com concertos, passeios fluviais e fogo-de-artifício. A tradição foi interrompida em 2020, devido à pandemia. MORGAN HEIM

tivesse punhais espetados nas pernas.” Sem saber bem como, conseguiu retirar a moto de neve do lago e conduzi-la até à cabana, onde acendeu uma fogueira que evitou uma hipotermia que, de outro modo, seria garantida. “Se não fosse aquilo que o meu avô me ensinou (manter-me calmo e não entrar em pânico), talvez não tivesse sobrevivido.” Numa fria manhã de Setembro, a enseada da baía Kama parece serena e intacta, imune a qualquer perigo. Pouco depois, a margem desaparece de vista, quando eu e Tom começamos a subir por um trilho íngreme, ladeado de áceres. Algumas destas árvores parecem brilhar, devido à alquimia da estação que torna as suas folhas vermelhas como o fogo. Passamos por um riacho e por uma pequena cascata, cujas águas em breve se reuni-

rão ao Grande Lago dos anishinaabe, acabando por precipitar-se do alto das cataratas do Niágara. A cada passo que damos, trilho acima, as ameaças que pairam sobre os cinco mares de água doce do continente parecem dissipar-se momentaneamente, transformando-se em problemas de outro mundo, de outra época. Tom faz uma pausa e sugere que eu leve comigo para casa uma folha de ácer, uma dádiva da bacia hidrográfica, um talismã tão frágil e maravilhoso como o lago lá em baixo. Mais tarde, reflectindo sobre o dia em que quase morreu de frio, disse-me que talvez não tivesse sido tão cuidadoso como deveria. Se reparasse com mais atenção no gelo, talvez pudesse ter visto o perigo que o aguardava. “A natureza não é malévola”, disse. “É inclemente.” j GRANDE S LAGOS

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Texto e fotografias de HANNAH REYES MORALES

Canções de embalar Em culturas de todo o mundo, as canções de embalar são janelas que nos permitem vislumbrar as esperanças, os medos e os sonhos dos pais quanto ao futuro.


MONGÓLIA

Altanzul Sukhchuluun e a filha, Khulan, aninham-se à hora de dormir, em Ulan Bator. Altanzul é enfermeira numa clínica de cuidados familiares do seu bairro, onde trata de mulheres e crianças que vivem em comunidades com a atmosfera mais poluída do país. REPORTAGEM E FOTOGRAFIAS DE HANNAH REYES MORALES O TRUST TIM HETHERINGTON FINANCIOU A COBERTURA FOTOGRÁFICA DESTA REPORTAGEM.

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TURQUIA

No campo de refugiados de Boynuyogun, na província de Hatay, raparigas sírias brincam com bonecas antes de se deitarem. Está demasiado calor para brincar ao ar livre durante o dia. Por isso, as raparigas dormem a sesta de tarde e vão para o recreio à noite.



ESTADOS UNIDOS

Xavier Zakrajsek, de 6 anos, abraça o seu boneco com implantes auditivos em Ayer. Xavier é surdo e usa implantes cocleares para ouvir melhor. Todas as noites, depois de lhe cantar uma canção de embalar, a mãe, Jessica, diz-lhe que o ama num tom bem alto, no caso de o implante não estar a funcionar. “Quero sempre dizer-lho, não vá isso ser a última coisa que ele ouça.”


A canção ganha vida à medida que a noite cai. Ouvimo-la aninhar-se debaixo do cobertor, deslizar entre as dobras dos braços que embalam, em quartos de todo o mundo. Para tantas crianças, um coro oculto enche as suas noites de música. Cantam-lhes canções de embalar. 36

FILIPINAS

Amy Villaruel deita a filha, Jazzy, na província de Bataan. Para a família, que depende da pesca para subsistir, a hora de dormir é ditada pelas marés. O marido de Amy e os filhos pescam durante a noite.

OUÇA A CANÇÃO DE EMBALAR DE AMY Use a câmara do seu telefone para ler os QR Codes e ouvir canções de embalar de todo o mundo.


Para Khadija al Mohammad, a noite ÁSIA sempre foi um momento de silêncio e de conforto, para acalmar os ruídos do dia. Há 19 anos, quando o filho mais velho, Muhammed, nasceu, uma década antes do início da guerra civil síria, el cantava-lhe canções de embalar. Eram melodias que lhe tinham sido transmitidas pela mãe e pela avó. Canções que evocam legados e lugares. Com o conflito cada vez mais feroz, a sua família deixou em 2013 a sua casa em Kafr Nubl, transpondo, com relutância, a fronteira com a Turquia, onde nasceu o filho mais novo, Ahmad, de 3 anos. Professora e mãe de cinco filhos, ela é uma de 12 milhões de pessoas deslocadas que partiram da Síria desde 2011, devido a um conflito que matou mais de meio milhão de seres humanos. NGM MAPS

Khadija é agora uma cidadã turca. À semelhança de muitas outras mães FILIPINAS em todo o mundo, cuida dos filhos em ambientes carregados de perigo e acalma-os com canções de embar. Entoadas nos nossos espaços mais íntimos, quando o dia se aproxima do fim, estas canções encerram em si muito mais do que a sua função. Em tempos de transição, as canções de embalar ajudam a criar espaços seguros para as crianças. Actualmente, no meio de todas as mudanças alucinantes causadas pela pandemia da COVID-19, as canções de embalar persistem como uma forma particularmente importante de preservar momentos de ternura entre os pais e os filhos pequenos. CANÇÕES DE EMBALAR

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ÁSIA

EUR.

TURQUIA

TURQUIA

As canções reflectem tempos conturbados Khadija al Mohammad vai deitar o filho, Ahmad, de 3 anos, em Sanliurfa. A família de Khadija fugiu da Síria em 2013. Ela lembra-se de como as canções de embalar evoluíram desde as encantadoras canções tradicionais que ela cantou aos filhos mais velhos, até às de hoje, que falam sobre guerra e migração.

“Pus-te no sótão a dormir, mas tive medo da cobra.”

OUÇA A CANÇÃO DE EMBALAR DE UMA REFUGIADA SÍRIA

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À D I R E I TA

Sedil al Mohammad, de 12 anos, fotografada no telhado da sua casa, costuma perguntar à mãe, Khadija, como era a vida na Síria. Khadija diz que canta canções sírias aos filhos para lhes transmitir uma noção da sua terra natal. EM BAIXO

Ao final da tarde, há pombos a esvoaçar sobre a cidade de Hatay. Centenas de milhares de sírios encontraram refúgio junto da fronteira síria. A Turquia acolhe a maior população de refugiados do mundo, incluindo 3,6 milhões de sírios que fugiram da sua terra natal.

OUÇA UMA CANÇÃO DE EMBALAR COM 4.000 ANOS

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N AT I O N A L G E O G R A P H I C


as canções de embalar ecoam as histórias de quem as canta. As canções de embalar de Khadija tornaram-se canções sobre a guerra. “Os meus filhos conhecem os meus sentimentos”, diz. Os pesadelos seguiram Khadija. Nos sonhos, lembra-se dos helicópteros e do exército sírio a persegui-la e acorda, temendo pelos filhos. Quando a vêem lavada em lágrimas, eles juntam-se em seu redor. Sentada ao lado de um colchão, no chão, ela pega cuidadosamente em Ahmad, pousa-o sobre as pernas, embala-o suavemente e canta. “Oh avião, que vais pelo céu, não faças mal às crianças na rua. Sê meigo e amável para com estas crianças.” Uma canção de embalar babilónica, com cerca de quatro mil anos, foi descoberta, inscrita numa tabuinha de argila. As canções de embalar ainda hoje servem para adormecer os bebés. C A N TA DA S E M M U I TA S C U LT U R A S ,

A organização sem fins lucrativos National Geographic Society ajudou a financiar esta reportagem.

Herdamo-las e transmitimo-las. Atravessamos fronteiras com elas e inventamos outras novas pelo caminho. Contêm vestígios dos que existiram antes de nós e conterão vestígios nossos muito depois de deixarmos de existir. Com estas canções, exprimimos mais do que os nossos maiores medos: no mesmo fôlego, exprimimos também as nossas esperanças e orações. São, provavelmente, as primeiras canções de amor que as crianças ouvem. À semelhança de muitas canções de embalar pelo mundo fora, a canção de Khadija é uma reacção às pressões do quotidiano. E embora as canções de embalar sosseguem e tranquilizem quem as ouve, as suas letras são frequentemente sombrias. Constituem uma janela aberta para os nossos medos. A canção de embalar islandesa “Bíum, Bíum, Bambaló” é assombrada por um rosto à janela. A russa “Bayu Bayushki Bayu” é um aviso para ficarmos longe da beira da cama ou um lobinho cinzento levará um bebé para a floresta, para debaixo de um salgueiro. Afinal, “Rock-a-Bye, Baby”, uma das canções de embalar mais conhecidas da língua inglesa, fala de um berço que cai do alto de uma árvore, com o bebé e tudo. Menos conhecida é a letra de uma versão moderna e mais comprida. “Dorme bebé / não tenhas medo / Não te preocupes, bebé / A mamã está aqui”, refere a última estrofe. As canções de embalar revelam os nossos medos, mas reflectem também aquilo que nos reconforta. “Agora dorme profundamente / até ao amanhecer”, conclui a melodia. os “Itsuki no Komoriuta”, ou “Canções de Embalar de Itsuki” são canções sobre raparigas que vão trabalhar como amas internas em casas de famílias abastadas na aldeia de Itsuki, durante o século XIX. “Ninguém verterá uma lágrima quando eu morrer. Só as cigarras do diospireiro irão chorar”, refere a letra de uma canção popular. Há alguns anos, nas Filipinas, cantei pela primeira vez uma canção de embalar ao meu enteado, que tinha então 4 anos. Ele sentia-se assustado quando as luzes se apagavam. Quando começou a chorar, eu tive a certeza de que estava a fazer algo terrivelmente errado, prejudicando uma relação que é preciosa e delicada para mim. Em pânico, peguei-lhe ao colo e cantei-lhe “You Are My Sunshine”. Naquela noite quente de Verão, ele adormeceu. As lágrimas secaram com o zumbido da ventoinha. Mas de quem seriam os medos que eu dissipara?

N O J A PÃO ,

CANÇÕES DE EMBALAR

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ÁFRICA

LIBÉRIA

LIBÉRIA

Histórias partilhadas à noitinha As crianças juntam-se em redor de Patience Brooks, que segura ao colo a sua filha mais nova, Marta, em Monróvia. As mães e filhos do seu bairro revezam-se para contar histórias enquanto preparam o jantar para as suas famílias.

“Dorme, bebé, dorme. A mamã quer ver-te com soninho. E quando tiveres soninho, a mamã vai sentir-se tão bem.”

OUÇA A CANÇÃO DE EMBALAR DE PATIENCE

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de investigações sobre a maneira como as canções de embalar ajudam a acalmar, tanto o prestador de cuidados como a criança. Laura Cirelli, professora de psicologia do desenvolvimento da Universidade de Toronto, estuda a ciência da canção materna. Ela concluiu que, quando as mães cantam canções de embalar, os níveis de stress diminuem, nos bebés e nas mães. Na sua investigação mais recente, descobriu que as canções mais familiares acalmam mais os bebés do que palavras ou canções não familiares. Laura acha que cantar canções de embalar é uma “experiência multimodal” partilhada por mãe e filho. “Não só porque o bebé ouve música”, diz. “É porque está ao colo da mãe, perto do seu rosto, sentindo-a a embalá-lo com suavidade e calor.” De cultura para cultura, as canções de embalar “costumam ter um conjunto de características que as tornam tranquilizantes”, acrescenta Samuel Mehr, director do Music Lab da Universidade de Harvard, que se dedica a estudar os processos pelos quais a música funciona. O projecto do laboratório concluiu que os seres humanos conseguem descobrir características universais na música, mesmo quando ouvem canções de outras culturas. O projecto pediu a 29 mil participantes que escutassem 118 canções e identificassem se eram canções para curar, dançar, de amor ou de embalar. “Em termos estatísticos, revelou-se uma tendência mais coerente para identificar canções de embalar”, diz o investigador. Noutro estudo, o laboratório descobriu que, mesmo quando ouvem canções de embalar cantadas por outras pessoas que não os seus cuidadores ou sequer da sua própria cultura, as crianças ficam sempre mais calmas. “Parece existir algum tipo de ligação entre os cuidados parentais e a música que é universal, existindo em todo o mundo, e também antiga, diria mesmo ancestral. É algo que andamos a fazer há mesmo muito tempo.” O mais antigo registo completo de uma canção de embalar que nos chegou começa da seguinte forma: “Bebezinho na casa escura.” Fala sobre um “deus da casa” que, perturbado pelos gritos de um bebé, chama pela criança num tom sombrio. “Eles eram bastante brutais”, diz Richard Dumbrill, director do Conselho Internacional de Arqueomusicologia do Próximo Oriente, da Universidade de Londres, que traduziu a tabuinha de quatro mil anos escrita em acadiano. “Criariam os seus bebés com sentimentos de medo, na esperança de que isso os fizesse desenvolver reflexos de defesa na idade adulta.” E X I S T E U M AC E RVO C R E S C E N T E

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N AT I O N A L G E O G R A P H I C

A canção de embalar enquanto história de aviso (dorme, ou vais ver o que te acontece) é comum a várias culturas. Há muitos monstros sinistros que roubam e comem criancinhas, à espera daquelas que resistem ao sono. O horror destas visões ultrapassa aqueles que são demasiado novos para compreendê-las. Para as crianças mais velhas, porém, incluindo as que partilham a mesma cama, as canções de embalar, tal como outras formas de folclore, são um veículo importante para transmitir uma imagem do mundo. “ C A N T O PA R A M E E S Q U E C E R D O PA I D O B E B É ” , diz

Patience Brooks com um sorriso, depois de aconchegar a sua filha Marta, de 8 meses, na cama. A hora de dormir na casa de Patience, em Monróvia, na Libéria, é bastante animada. O bairro de Mamba Point vibra com a música, a confusão do jantar e as conversas. As melodias nocturnas de Patience são uma mistura de música, improvisações de instrumentos ao estilo do jazz e vocalizações para marcar o ritmo localmente conhecidas como “lie-lies.”


À ESQUERDA

Depois de muitos anos sem abrigo, Christiana Gmah canta cânticos de louvor à sua filha Orinna, na sua casa de West Point, em Monróvia. Os pais mandaram-na embora quando ela engravidou da primeira filha, Georgina, aos 13 anos. Hoje, ela vende chá e pão à noite para sustentar as filhas. EM BAIXO

A noite cai sobre a aldeia. A comunidade pobre que vive nos arredores superlotados da cidade de Monróvia carece de serviços públicos adequados e não dispõe de saneamento básico.

CANÇÕES DE EMBALAR

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Bonecos de peluche adorados pelas crianças fotografados nos quartos visitados por Hannah Reyes Morales em todo o mundo. Algumas crianças cantavam canções de embalar aos seus bonecos.


Patience faz tamborilar os dedos nas costas de Marta, enquanto ambas balouçam e a pequena vai adormecendo, com a dança da mãe. Dorme, bebé, dorme Dorme, bebé, dorme A mamã quer ver-te com soninho E quando tiveres soninho A mamã vai sentir-se tão bem A mamã vai sentir-se tão feliz Por isso, dorme, dorme Dorme, bebé, dorme Para Patience, mãe de dois filhos que teve a sua primeira bebé aos 13 anos, a maternidade traz desafios semelhantes aos que enfrentam, segundo se estima, três em cada dez adolescentes liberianas que foram mães ou estiveram grávidas entre os 15 e os 19 anos. Neste bairro, os espaços exteriores transformam-se em salas de convívio comunitárias. As mulheres revezam-se, tomando conta de dezenas de crianças enquanto elas brincam e se entretêm umas com as outras, permitindo que as mães preparem o jantar para as famílias e passem algum tempo em casa depois de um dia de trabalho. “Era uma vez…” – começa Patience e as crianças ouvem. Contam histórias e cantam músicas por turnos. O espaço minúsculo enche-se de lendas de reis e rainhas. Quando a noite cai, a atmosfera está carregada de refrães musicais sobre criaturas mágicas e aventuras na floresta. A investigação de Laura Cirelli concluiu que as crianças que partilham experiências musicais síncronas com outras pessoas têm maior probabilidade de lhes oferecer apoio. “Se cantamos as mesmas canções que os membros da nossa comunidade, essa é uma pista para o sentido de afinidade e pertença ao grupo”, resume a investigadora. A hora de dormir e as canções de embalar são tão variadas como o nosso mundo. Para Zaijan Villaruel, de 10 anos, que vive nas Filipinas, o sono é ditado pelas marés e pelas necessidades da sua família. À noite, ele pesca com o pai e os irmãos mais velhos e adormece ao som das ondas e da canoa, de regresso a casa. As Filipinas fazem parte do Triângulo de Coral, que contém mais espécies de vida marinha do que qualquer outro local da Terra. As comunidades piscatórias como a de Zaijan e o seu pai, Umbing Villaruel, vivem e dependem do mar para o seu sustento e suportam as piores consequências das alterações climáticas. CANÇÕES DE EMBALAR

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MONGÓLIA ÁSIA

MONGÓLIA

Quando a sesta é um escape temporário à poluição Crianças em idade pré-escolar de uma comunidade instalada junto de um aterro sanitário dormem a sesta num infantário de Ulan Bator. As centrais eléctricas e as casas aquecidas a carvão provocam poluição atmosférica. Estes quartos dispõem de purificadores de ar, que não existem na maioria das casas.

“Um dia em cheio está a chegar ao fim. Aproxima-se uma noite de histórias de encantar.”

OUÇA UMA CANÇÃO DE EMBALAR MONGOL

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Umbing não quer que os filhos se tornem pescadores. As capturas diminuíram drasticamente na última década devido à sobrepesca. No entanto, devido ao confinamento imposto pela pandemia, Zaijan aprendeu a pescar para contribuir para o sustento da sua família. “Ele aprendeu a sobreviver numa época de crise”, diz Umbing. Durante o dia, Zaijan canta canções que aprendeu na máquina de karaoke da sua irmã de 2 anos, Jazzy, na sua casa da província de Bataan. Ele embala-a suavemente, para a frente e para trás, e ela adormece ao som de uma canção sobre um rapaz que espera que as lágrimas de uma rapariga sequem. Nas Filipinas, de onde sou originária, as palavras “Tahan na” são murmuradas entre as canções de embalar. As palavras são frequentemente proferidas para acalmar uma pessoa que chora e podem traduzir-se como “pára de chorar”. Contudo, dizer “tahan na” a alguém, também implica dizer “sente-te segura” e “sente-te em paz”. Tahan an, que significa “casa” em filipino, é o sítio onde as lágrimas param de correr. o histórico recinto de espectáculos musicais na cidade de Nova Iorque, desenvolveu o Projecto Lullaby em 2011. Baseado em investigações segundo as quais as canções de embalar beneficiam a saúde materna, fortalecem os laços entre pais e filhos e contribuem para o desenvolvimento infantil, o projecto promove colaborações entre músicos profissionais e pessoas que foram pais recentemente para compor canções de embalar personalizadas para os seus bebés. Desde a sua fundação, o projecto já ajudou a criar milhares de canções de embalar, chegando a diversos países e a casais em hospitais, albergues para pessoas sem abrigo, programas para jovens mães e unidades de reabilitação comportamental. “Estamos basicamente a pensar nas canções de embalar como âncoras, em termos muito simples, para os pais poderem exprimir as suas esperanças, sonhos e desejos para os filhos e para si próprios”, diz Tiffany Ortiz, directora do Programa para a Primeira Infância, que supervisiona o Projecto Lullaby. “Muitas mães falam activamente sobre o uso de canções de embalar e cânticos como uma maneira de recompor o lar”, diz Dennie Palmer Wolf, consultora de investigação do Projecto Lullaby. Famílias migrantes da Grécia participaram no projecto e colaboradores locais descrevem as suas canções de embalar como “santuários portáteis”. “Tal como as orações e as histórias tradicionais, podemos levá-las para todo o lado connosco”, diz CARNEGIE HALL,

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Palmer Wolf. “Não ocupam espaço na mochila. Podemos sempre levá-las. É uma maneira de criar continuidade onde não existe quase nenhuma.” reflectem o presente, mas estão frequentemente enraizadas no passado. Na Mongólia, há muitas gerações que a canção de embalar “buuvei” é cantada pelos nómadas. O seu refrão “buuvei” significa “não tenhas medo”. “O amor é a coisa mais importante, é transmitido como um legado”, diz Bayartai Genden, cantora e dançarina tradicional mongol e avó de 13 netos. “É a magia de darmos amor ao nosso filho através das melodias.” Bayartai lamenta o nevoeiro que envolve Ulan Bator, capital da Mongólia, uma barreira que se interpõe entre ela e os seus antepassados. “Os nossos antepassados do céu azul devem estar a chorar por causa da poluição atmosférica”, diz. “O céu costumava ser azul.” Bayartai canta uma canção de embalar ao seu neto recém-nascido. Um purificador de ar zumbe, como música de fundo. AS CANÇÕES DE EMBALAR


À ESQUERDA

Uma nuvem de poluição paira sobre Ulan Bator. A poluição gerada pela combustão do carvão nos meses de Inverno levou a UNICEF a declarar uma crise de saúde infantil devido ao aumento das infecções respiratórias e à diminuição da capacidade pulmonar, em comparação com as crianças que vivem fora da cidade. EM BAIXO

Todgerel Lkhamjav (à esquerda), Dejid Bayarbaatar (à direita), e o seu filho mais novo, Galanbagana, aninham-se na cama, na sua casa nos arredores de Ulan Bator. Todgerel trabalhou nas minas de carvão durante 25 anos, mas agora é segurança numa escola. Os empregos na indústria do carvão foram desaparecendo à medida que foram impostas proibições locais à sua combustão.

CANÇÕES DE EMBALAR

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AMÉRICA DO NORTE

EUA

Mass.

ESTADOS UNIDOS

As rotinas da hora de dormir mudam durante a pandemia Anthony Hallett lê uma história infantil à sua filha Ava, de 6 anos, em Brockton, no Massachusetts. Trabalhando a partir de casa devido à pandemia de COVID-19, Anthony teve oportunidade de se juntar à rotina da hora de dormir da família.

“Boa noite, Luke, Boa noite, Luke. Boa noite, Luke, é hora de dormir.”

OUÇA A CANÇÃO DE EMBALAR DA FAMÍLIA HALLETT

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À D I R E I TA

A médica Molly Thomas faz uma videochamada para a mulher, Hannah Leslie, e as filhas, Ada e Delaney (em baixo), a partir do hospital onde trabalha. Canta uma canção de embalar às raparigas e deseja-lhes boa noite enquanto está no trabalho. Molly isolou-se da família enquanto esteve a trabalhar com pacientes com COVID-19. EM BAIXO

Allison Conlon, uma enfermeira que trata de pacientes com COVID-19, visita o filho, Lucas, de 2 anos, através de uma porta envidraçada na sua casa de Bridgewater, no Massachusetts. Fotografada no seu dia de folga, leu histórias a Lucas antes de ele dormir a sesta. Allison diz que “ler-lhe todos os dias ajudou-me a manter uma certa noção de normalidade”.

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as histórias parecem unir-nos. Quando a pandemia começou a mudar a vida do planeta, a distância física alterou drasticamente a forma como nos relacionamos. As mulheres representam quase 70% da força laboral das áreas da saúde e dos serviços sociais. Para as mães que trabalham na linha da frente da pandemia, o risco que correm para cuidarem das suas comunidades é acrescido pelo desafio de quererem proporcionar os melhores cuidados às suas próprias famílias. Elizabeth Streeter, enfermeira em Massachusetts, trabalha no piso dedicado à COVID-19 do seu hospital. Com o agravamento da pandemia, tomou a difícil decisão de se isolar dos seus quatro filhos no início de Abril, de modo a evitar expô-los ao vírus. Instalou-se numa autocaravana no quintal dos pais durante um mês, enquanto o marido ficou em casa a cuidar dos filhos. À noite, Elizabeth juntava-se à família através do telefone. Cantava ao seu filho de 3 anos a sua canção de embalar preferida enquanto lutava contra as lágrimas, sem saber quando voltaria a pegar-lhe ao colo. Allison Conlon, uma enfermeira de Bridgewater, no Massachusetts, que trabalha na unidade de cuidados intensivos de um hospital, também se separou da sua família. À noite, telefonava a Lucas, de 2 anos, para lhe ler e cantar duas canções antes de ele dormir. Ao domingo, visitava a casa da família, mas não entrava, lendo-lhe histórias do outro lado de uma porta envidraçada. Do seu lado do vidro, Allison tocava na mão do filho e dava-lhe um beijo. “O meu filho foi muito resiliente e adaptou-se muito bem à mudança e eu estou grata por isso”, comenta. A entoação de uma canção de embalar a alguém cria um vínculo. A canção liga o cuidador à criança, mas, de uma forma talvez menos visível, também conta histórias que nos ligam ao nosso passado e uns aos outros. Bayartai Genden descreve a canção de embalar como “uma troca entre duas almas”. As canções de embalar fazem parte do tecido usado pelos cuidadores para criarem espaços seguros e necessários para os sonhos se desenrolarem. Khadija al Mohammad diz que Ahmad procura as suas canções de embalar “não só para dormir, mas para sentir o meu carinho”. Estas canções recordam-nos que não estamos sós e, na escuridão da noite, parecem conter a promessa de que, do outro lado, a luz da manhã espera por nós. j E M É P O C A S T U R B U L E N TA S ,

Em Ulan Bator, uma das capitais mais frias do mundo, o Inverno é marcado não só por temperaturas capazes de atingir -28ºC, mas também por uma atmosfera tóxica. Os níveis de poluição atmosférica na capital da Mongólia chegam a ser cem vezes superiores ao limite para partículas em suspensão definido como seguro pela Organização Mundial da Saúde. Com mais de metade das crianças da Mongólia a viverem em Ulan Bator, onde a pneumonia é a segunda principal causa de morte entre crianças com menos de 5 anos, a UNICEF declarou que a poluição atmosférica da cidade se tornou uma crise de saúde infantil. “Uso estas palavras para proteger os meus filhos. Elas ajudam os meus filhos a curarem-se”, diz Oyunchimeg Buyankhuu sobre as canções de embalar que cantava quando as suas duas filhas ficavam, frequentemente, doentes por causa da poluição. A família mudou-se para longe da cidade para que as crianças pudessem respirar ar mais puro.

CANÇÕES DE EMBALAR

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Neve soprada pelo vento rodopia em redor de edifícios abandonados, mantendo uma vigília gelada sobre as ruas vazias de Dikson. Outrora peça central dos sonhos soviéticos de desenvolvimento do Árctico, a cidade portuária foi lentamente abandonada após o colapso da União Soviética em 1991.


SONHOS ÁRCTICOS A S V I DA S E A S L E N DA S F I C A M C O N G E L A DA S NO TEMPO DURANTE A LONGA NOITE POLAR, N O E XT R E MO S E T E N T R I O N A L DA RÚ S S I A .

TEXTO E FOTOGRAFIAS D E E V G E N I A A R B U G A E VA

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de Barents Mar

Murmansk

Khodovarikha CÍR CU LO

A organização sem fins lucrativos National Geographic Society ajudou a financiar esta reportagem. 58

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nos entra no sistema nunca mais deixa de chamar por nós. Passei a infância a correr pela tundra e a ver auroras boreais no meu trajecto para a escola, durante a noite polar, o nome poético que se dá aos dois meses de escuridão, que aqui não se resume apenas ao Inverno, mas a todo um estado de espírito. Há alguns anos, deixei a minha cidade natal de Tiksi, um porto marítimo isolado na costa russa do mar de Laptev, e fui viver para grandes cidades e países diferentes. Mas o Árctico chama por mim. Faz-me falta o seu isolamento e ritmo de vida mais lento. Nesta paisagem setentrional congelada, a minha imaginação voa como o vento, sem obstáculos. Só sou verdadeiramente eu quando estou aqui. O mesmo se aplica, em grande parte, às pessoas que fotografo. Por vezes, acho que as suas histórias são como capítulos num livro. Cada uma revela um sonho diferente, mas também estão ligadas ao amor por esta terra. Cada sonho tem a sua paleta de cores e a sua atmosfera. Cada pessoa aqui presente tem uma razão para cá estar. O primeiro sonho pertence a Vyacheslav Korotki. Durante longos anos, foi director da Estação Meteorológica de Khodovarikha, numa península isolada do mar de Barents. Trata-se de uma faixa de terra árida e estreita que, segundo Vyacheslav, parece um navio. Quando me encontro com ele pela primeira vez, reconheço instantaneamente o seu casaco encerado impermeável, do género que todos os homens vestiam na época soviética na minha terra natal. Ele é aquilo a que se chama um polyarnik, um especialista do Norte polar. Dedicou a vida a trabalhar no Árctico e ainda colabora nos boletins meteorológicos. Eu conseguia ouvir o gelo a deslocar-se e a chiar, com o vento a assobiar nos cabos do rádio do lado de fora da estação. Lá dentro, tudo estava sossegado. Só os passos de Vyacheslav e o ranger da madeira marcavam a passagem do tempo. De três em três horas, ele saía e regressava, murmurando observações para os seus botões: “Vento su-sudoeste, 12 metros por segundo, rajadas de até 18 metros, a aumentar de intensidade, queda de pressão, nevão a caminho.” Em seguida, relatava essas palavras a alguém que nunca vira através de um rádio velho e cheio de crepitação. Certo dia, senti-me triste. A noite polar levava os meus pensamentos para direcções caóticas. Aproximei-me de Vyacheslav Korotki com uma chávena de chá e perguntei-lhe como conseguia viver ali, sozinho, numa sucessão de dias iguais uns aos outros. Ele disse-me: “Tens demasiadas expectativas. Acho que isso é normal. Mas os dias não são todos iguais aqui. Olha, hoje

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D I Z- S E Q U E Q UA N D O O Á RC T I C O

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A RÚSSIA MAIS LONGÍNQUA

Menos de 2% da população da Rússia vive na área de 4,1 milhões de quilómetros quadrados a norte do Círculo Polar Árctico. Povoado abandonado

temos uma aurora boreal luminosa e um fenómeno raríssimo de gelo fino a cobrir o mar. Não seria magnífico vermos as estrelas logo à noite, depois de se terem escondido atrás das nuvens durante mais de uma semana?” Senti-me culpada por me debruçar demasiado sobre mim própria, esquecendo-me de observar o exterior. Dali em diante, passei a ter os olhos bem abertos. Durante um mês, vivi com um jovem casal, Evgenia Kostikova e Ivan Sivkov, que recolhiam dados meteorológicos noutra extremidade congelada da Rússia. Depois do seu primeiro ano juntos, vivendo numa cidade siberiana, Evgenia pediu ao seu amado Ivan que se juntasse a ela no Norte. Controlavam as condições meteorológicas, cortavam lenha, cozinhavam, tratavam do farol e cuidavam um do outro. Em termos de assistência médica, só podiam contar com um helicóptero distante, que poderia atrasar-se semanas caso estivesse mau tempo. Talvez devido, em parte, ao seu isolamento, os 300 chukchi da aldeia de Enurmino têm mantido as tradições, vivendo da terra e do mar, tal como os seus antepassados, mantendo os mesmos mitos e lendas transmitidos ao longo das gerações. É uma honra ser caçador e os aldeãos cumprem as quotas federais e internacionais enquanto caçam morsas e baleias para sustentar a sua comunidade durante os longos invernos. A uma curta distância de Enurmino, passei duas semanas numa cabana de madeira com um cientista que estuda morsas. Ficámos retidos no interior durante três desses dias, tomando todo o cuidado para não semear o pânico entre as cerca de 100 mil morsas locais, segundo as estimativas dos biólogos. Os animais arrastavam-se à nossa volta, abanando a cabana com os seus movimentos e lutas. Em Dikson, na orla costeira do mar de Kara, os sonhos de grandeza soviéticos estão cobertos pelo gelo. Nos seus tempos áureos, na década de 1980, era considerada a capital do Árctico russo, mas desde o colapso da URSS tornou-se praticamente uma cidade fantasma. Quando a região aquecer, talvez venham a surgir novas cidades, mas custa-me testemunhar o fracasso do esforço humano a esta escala. Durante as primeiras semanas, senti-me desiludida com as fotografias que captei na escuridão interminável de Dikson. Depois, porém, a aurora boreal explodiu subitamente no céu, colorindo tudo em tons de néon durante várias horas. Envolto numa luz verde, um monumento de homenagem aos soldados parecia o monstro de Frankenstein. Afinal de contas, no final do livro de Mary Shelley, o monstro fugiu para o isolamento do Árctico. Quando a aurora se desvaneceu, a cidade voltou a desaparecer lentamente na escuridão até que, por fim, se tornou invisível. j CHRISTINE FELLENZ FONTE: GREEN MARBLE

SONHOS ÁRCTICOS

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K H O D O VA R I K H A

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68'941° N

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53'769° E

NUM DIA SOSSEGADO E SEM VENTO, Vyacheslav Korotki vagueia na sua embarcação construída à mão numa baía estreita do mar de Barents, junto da Estação Meteorológica de Khodovarikha. Vyacheslav passou a maior parte da vida em estações isoladas no Árctico e diz que adora esta região em particular. É o seu lar há duas décadas.


K H O D O VA R I K H A

NO SENTIDO DOS P ONTEIROS DO R E L Ó G I O, A P A R T I R DO TOPO ESQUERDO

Vyacheslav caminha em direcção a um farol que deixou de funcionar há dez anos. Quando ficava sem lenha, arrancava os painéis de madeira para aquecer a estação meteorológica onde vivia. Essa estação foi, entretanto, substituída por uma nova. Este aparelho de rádio transmitia dados meteorológicos, como temperatura e precipitação, à estação da cidade mais próxima, Arkhangelsk, a quase 800 quilómetros de distância. Vyacheslav continua a transmitir dados meteorológicos de três em três horas, de noite e de dia. Um modelo de farol que Vyacheslav está a construir com fósforos parece lançar uma sombra da paisagem árctica sobre a parede da estação meteorológica. O farol foi pousado sobre um livro de referência soviético: “A Dinâmica do Gelo Marinho”. O papagaio Kesha, oferecido como presente no Ano Novo pela fotógrafa Evgenia Arbugaeva, faz companhia a Korotki enquanto ele almoça na antiga estação meteorológica. Kesha tem o nome da ave de uma popular série de desenhos animados da era soviética.

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SONHOS ÁRCTICOS

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KANIN NOS

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68'657° N

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43'272° E

“TROUXE GULOSEIMAS, COMO CHOCOLATE E FRUTA”, diz Evgenia. “Estes itens são como ouro no Árctico e despertaram um enorme sorriso no rosto da [meteorologista e faroleira] Evgenia Kostikova. Ela embrulhou as maçãs, uma a uma, em folhas de jornal, como se fossem de cristal, para impedir o congelamento.”



KANIN NOS

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43'272° E


NO SENTIDO DOS P ONTEIROS DO R E L Ó G I O, A P A R T I R DO TOPO ESQUERDO

“O fim do mundo”. Foi o que o meteorologista e faroleiro Ivan Sivkov escreveu a tinta branca no seu armazém, situado junto do local onde um quebra-gelo atraca para entregar provisões ao farol e estação meteorológica Kanin Nos, todos os verões. Evgenia e Ivan, acompanhados pelo seu cão, Dragon, recolhem amostras de água para medir a salinidade da água do mar em redor da estreita península de Kanin, onde o mar de Barents e o mar Branco se encontram. O casal caminha até ao farol, onde parece pairar no meio de um nevão. É um dos poucos faróis que restam no Árctico. Há novas rotas marítimas e muitos dos navios actuais possuem sistemas de navegação modernos. Evgenia Kostikova mantém-se quente junto de um pequeno radiador, enquanto lê um livro. Quando era pequena, um amigo da sua família contava-lhe histórias sobre a vida no Árctico. Aos 19 anos, Evgenia começou a trabalhar na sua primeira estação polar. Diz que soube imediatamente que o Árctico era o lugar certo para si.

SONHOS ÁRCTICOS

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ENURMINO

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66'954° N

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171'862° O

“QUANDO ESTIVEMOS CERCADOS POR MORSAS,

a cabana tremia”, conta Evgenia Arbugaeva. “O som do rugido era muito alto. Era muito difícil dormir durante a noite. A temperatura no interior da cabana também aumentava dramaticamente devido ao calor corporal das morsas que estavam lá fora. Neste enorme viveiro de morsas do Pacífico, muitas vieram para a costa porque o aquecimento climático reduz as camadas de gelo marinho onde descansavam.”



ENURMINO

NO SENTIDO DOS P ONTEIROS DO R E L Ó G I O, A P A R T I R DO TOPO ESQUERDO

Nikolai Rovtin perde-se nos seus pensamentos depois de falar sobre a mulher, que morreu no ano passado. Agora vive sozinho numa estação meteorológica abandonada. Antes de os soviéticos tentarem desenvolver o Árctico, ele vivia numa casa chukchi tradicional. Um crânio de morsa pousado sobre a mesa da garagem de um caçador. A carne de morsa é um alimento de substância essencial da comunidade chukchi, a qual tem direito a caçar uma quota anual de mamíferos. Os caçadores usam arpões tradicionais e armas modernas. Vika Taenom usa um vestido chukchi feito por medida. Ensaia uma dança tradicional no Centro Cultural de Enurmino. Muitas dançarinas imitam os movimentos de animais e Vika evoca gansos, patos e gaivotas. A noite cai enquanto caçadores se dirigem para casa depois de caçarem esta baleia-cinzenta. Vão agora consumir a sua carne. Os caçadores mantêm-se em silêncio no regresso, falando apenas consigo e com a baleia, pedindo perdão e explicando-lhe por que razão a caçada foi necessária.

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DIKSON

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73'507° N

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80'.525° E

“IMAGINEI A MÚSICA A TOCAR E AS ESTRELAS” a brilhar em uníssono quando entrei naquela sala sossegada”, diz Evgenia Arbugaeva. “Depois, comecei a ouvir o vento a fazer bater as portas no corredor e a provocar rangidos estranhos. Na minha imaginação difusa, pensei ouvir os passos de uma pessoa… e fugi.”


DIKSON

NO SENTIDO DOS P ONTEIROS DO R E L Ó G I O, A P A R T I R DO TOPO ESQUERDO

A aurora boreal lança um feitiço colorido sobre esta praça abandonada de Dikson. A estátua homenageia os soldados que defenderam este posto avançado, em tempos de prosperidade, contra um ataque alemão, durante a Segunda Guerra Mundial. As últimas crianças a frequentar esta escola são agora adultos, mas os seus manuais ainda estão abertos, aparentemente congelados no tempo. Durante duas semanas de escuridão e tempestades, Evgenia Arbugaeva aguardou a chegada da aurora boreal para ter luz suficiente que lhe permitisse fotografar. Outrora animado por espectáculos, o centro cultural há muito que se encontra vazio. O estilo arquitectónico soviético pode ser encontrado noutros postos avançados do Árctico, desenvolvidos durante o ímpeto construtor de infra-estruturas ao longo da rota do mar do Norte. Uma boneca artesanal repousa no parapeito gelado de uma janela numa escola abandonada. Na década de 1980, Dikson foi um símbolo das ambições do Árctico e acolhia cinco mil pessoas.

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SONHOS ÁRCTICOS

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No Parque Nacional de Torres del Paine, situado na Região de Magalhães da Antárctida Chilena, dois pumas observam o horizonte ao fim da tarde, junto do lago Sarmiento de Gamboa, cercado pelas montanhas patagónicas.

PELA T O R R E S D E L P A I N E , N A P ATA G Ó N I A C H I L E N A , P A R A O B S E R VA R P U M A S E M E S TA D O S E LVA G E M .

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N AT I O N A L G E O G R A P H I C


COEXISTÊNCIA T R A N S F O R MO U -S E N O M E L H O R S Í T I O D O MU N D O AQ U I , E S T E S F E L I N O S R E C U P E R A M .

P U M A S DA PATAG Ó N I A

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N AT I O N A L G E O G R A P H I C


Este pastor dos Pirenéus foi criado como cão de guarda pelo criador de gado patagónico José Antonio Kusanovic, na província chilena de Última Esperanza. Estes cães protegem as ovelhas dos ataques dos pumas.

P U M A S DA PATAG Ó N I A

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T E X T O D E E VA VA N D E N B E R G FOTOGRAFIAS DE ANDONI CANELA

PATAGÓNIA CHILENA, DEZEMBRO, SEIS DA MANHÃ. COM INCIPIENTES RAIOS DE SOL, ABRE-SE UM NOVO E RADIOSO DIA DE PRIMAVERA no Parque Nacional de Torres del Paine. O termómetro marca poucos graus acima de zero e alguns guanacos, acompanhados das respectivas crias, chamadas chulengos, iniciam o seu dia de pastagem. No céu, um enorme condor dos Andes (a sua envergadura de asas pode ultrapassar 2,8 metros) sobrevoa, a grande altura, este território delimitado pela cordilheira dos Andes, observando-a em busca de carcaças de animais. Entretanto, numerosas aves de pequeno porte, como os tordos-patagónicos ou os abibes-austrais, debicam sementes e insectos entre os arbustos. De repente, num ponto indeterminado deste prado alpino, o matagal abana de forma estranha. Foi um movimento muito subtil, mas um dos guanacos apercebeu-se dele. Adoptando uma postura de alerta, inclina as orelhas para a frente, abre a boca e emite o seu peculiar relincho. É um alerta para os restantes, revelando grande inquietação. Depois do aviso, as pequenas aves afastam-se a toda a velocidade, tal como outros animais que se encontram nas imediações: nandus, tatus, lebres, zorrilhões… Não é o caso do condor que, a partir da sua posição, a tantos metros de altura, prossegue imperturbável o seu voo circular, observando a cena terrestre. 80

N AT I O N A L G E O G R A P H I C

Agachado e furtivo, um puma aproxima-se de um guanaco que pasta na estepe patagónica, ignorando o perigo iminente. O factor surpresa será decisivo para o sucesso do ataque do felino. Os guanacos são demasiado rápidos para os pumas e vencem-nos em corrida.


A calma regressa. Os guanacos descontraem-se e pastam novamente. A fêmea de puma, agachada sob aquele matagal que quase a denuncia, aproveita para prosseguir o avanço furtivo. Está de olho num guanaco que pasta afastado e aproxima-se até ficar a poucos metros. O puma não resistiria a uma longa perseguição, pois este herbívoro aguenta largos minutos em fuga. Recorrendo ao factor surpresa, porém, salta e aborda-o pela traseira, fixando-lhe as garras nos quadris para lhe subir pelas costas até alcançar a garganta, que apertará com as mandíbulas até cortar a respiração. Em pânico, o guanaco tenta escapar ao predador, saltando bruscamente para fazê-lo cair, una manobra que por vezes funciona. Nesta ocasião, porém, a robusta felina, aguardada a escassa distância pelas suas crias, fez uso de todas as suas

habilidades de caçadora. A fome aperta. Após alguns minutos de uma cena que faz lembrar um rodeio, o guanaco cai no solo e expira, com a boca do felino cravada no pescoço. Aterrorizada, a família fugiu em debandada. por um ser humano que, há quase 20 anos, segue os pumas deste paraíso e sabe mais do que qualquer outra pessoa sobre o seu comportamento. O biólogo Diego Araya, director da empresa Wild Patagonia, seguiu, fotografou e filmou várias gerações destes felídeos. Com outros colegas, tem sido artífice de uma metamorfose que tornou o território do Parque Nacional de Torres del Paine e os locais adjacentes (o Gran Paine) o melhor sítio do mundo (Continua na pg. 86) para observá-los. A C E N A F O I AT E N TA M E N T E O B S E RVA DA

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E M S E N T I D O H O R Á R I O, A PA RT I R D O T O P O ESQUERDO

Um puma acaba de comer um guanaco, a sua principal presa. A peça pode durar uma semana, mas quatro ou cinco animais devoraram toda a carne em apenas um dia. Os necrófagos foram até ao local em seguida para limpar a carcaça. Dois nandus, parentes afastados da avestruz, parecem posar em contraluz diante do maciço Paine. O puma é um dos seus principais predadores. Entre Novembro e Fevereiro, em plena época do cio, as lutas entre machos pelo controlo sobre um harém de fêmeas são muito frequentes. À semelhança de outros ungulados, os guanacos formam grupos mais ou menos numerosos, consoante o risco de predação que sintam. P U M A S DA PATAG Ó N I A

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Uma fêmea de puma e a sua cria deslocam-se no Parque Nacional de Torres del Paine. Aqui as fêmeas costumam ter ninhadas com duas a quatro crias. Entram no cio em Agosto e parem três meses após a cópula, na Primavera.

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AMÉRICA DO NORTE

AMÉRICA DO SUL

NIA

Território histórico

PAT

AGÓ

Território actual

Terra do Fogo

FELINO COM UMA VASTA DISTRIBUIÇÃO GEOGRÁFICA O Puma concolor tem a área de distribuição geográfica mais ampla de todos os mamíferos terrestres autóctones do hemisfério ocidental, com um território que se estende por 28 países do continente americano, desde o Yukon, no Canadá, à Região de Magalhães, na extremidade meridional do Chile. Ao longo dos 200 anos de colonização europeia, este felídeo foi eliminado em toda a metade oriental da América do Norte, à excepção de uma pequena população na Florida, que se encontra actualmente em recuperação.

ESTATUTO DE CONSERVAÇÃO DO PUMA Menor preocupação

Quase ameaçado

Vulnerável

Em perigo

Em perigo crítico

PUMA (Puma concolor) O puma conta com seis subespécies. Torres del Paine acolhe a subespécie Puma concolor puma. Estado de conservação Está classificada como espécie de preocupação menor pela UICN, mas o estado das suas populações na América Central e do Sul não é bem conhecido. Habitat O puma adaptou-se a uma grande diversidade de habitats. Embora prefira territórios com sub-bosque, também pode viver em espaços abertos com uma cobertura vegetal mínima. 86

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“Em nenhum outro lugar se podem observar os pumas tão bem como aqui em Paine”, assegura. Diego explica que, para isso ser possível, foi decisiva a mudança de mentalidade de alguns criadores de gado das zonas adjacentes ao parque nacional, nomeadamente as grandes quintas como Cerro Guido e Laguna Amarga, com milhares de hectares cada. “No passado os criadores de gado caçavam o puma no seu território porque este matava as suas ovelhas. Hoje, os seus trabalhadores assinam um contrato que proíbe explicitamente a caça, recebem turismo de natureza nas suas terras e até acolhem equipas de filmagem, como a BBC, que está a realizar um documentário sobre o puma.” Embora a equipa da cadeia televisiva britânica tenha sido forçada a interromper as filmagens de-


Os cumes nevados e os glaciares suspensos são habituais nas zonas altas do maciço Paine, que se ergue no coração do Parque Nacional de Torres del Paine, lugar ideal para observar o puma em ambiente selvagem. Fundado em 1959, o parque abrange uma superfície de 227.298 hectares.

vido à pandemia, durante a paragem Diego Araya tem observado e filmado para ela os acontecimentos mais significativos da vida deste felino que vive em 28 países do continente americano, desde o Canadá ao Chile. “É um sonho tornado realidade”, assegura o biólogo, para quem a maior motivação na vida é captar esses momentos de interacção e intimidade com a fauna silvestre. Diego Araya e Andoni Canela, autor das fotografias desta reportagem, estiveram várias vezes juntos em Gran Paine e ambos concordam que, nesta região do mundo, a coexistência entre seres humanos e pumas não só é possível, como também é uma estratégia na qual todos os participantes saem a ganhar. “As explorações ganadeiras devem modernizar-se e diver-

sificar-se, se quiserem sobreviver às diversas crises que possam afectar o território”, explica o biólogo. “Hoje é a pandemia, que deteve repentinamente o sector do turismo, mas amanhã pode haver uma crise da lã ou uma seca intensa. A diversificação das actividades económicas é essencial para sobreviver e, graças ao puma, os proprietários contam com novas ferramentas para explorar as suas terras, como unidades de ecoturismo, que até podem ser instaladas em locais pouco adequados à criação de gado.” PA R A L E L A M E N T E À R E C U P E R AÇ ÃO D O P U M A ,

aumentou também a sua presa principal, o guanaco, protegido para evitar que os criadores de gado o matem por competir com o gado pelo pasto. P U M A S DA PATAG Ó N I A

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“O grande conflito entre o ser humano e a fauna silvestre deve-se ao uso do solo”, diz Diego Araya. “Começou há apenas um século e meio, quando os colonos chegaram e impuseram o seu modo de pensar. Hoje em dia, o objectivo consiste em devolver terreno à fauna e coexistir. Isso é possível estabelecendo gradientes no uso do solo, combinando zonas dedicadas à criação de gado com zonas destinadas à conservação da biodiversidade e com outras intermédias, onde ambas as funções convivam de forma harmoniosa. Aqui a população local assiste, todos os anos, à visita de milhares de pessoas que procuram uma natureza intacta e encontros únicos com os pumas. Tudo isto levou a uma revalorização económica e cultural da biodiversidade.” do guanaco, por parte do ser humano, provoque uma aparente diminuição da concorrência pelo pasto com as ovelhas, “ela redirecciona a pressão da predação do puma, orientando-a para estas últimas”, sublinha Juan Traba, investigador do Grupo de Ecologia Terrestre do Departamento de Ecologia da Universidade Autónoma de Madrid (UAM) e especialista nas interacções estabelecidas entre os animais num determinado habitat. Por outro lado, afirma, “os esforços para matar pumas facilitaram a recuperação dos guanacos, num círculo interminável de acção-reacção. Parece mais razoável e ecologicamente adequado manter populações silvestres sãs de herbívoros e predadores, apesar dos conflitos pontuais que possam surgir”. Juan tem estudado aprofundadamente o guanaco na Patagónia e acredita que a coexistência entre herbívoros silvestres e domésticos e os seus predadores é possível, embora exija uma mudança do modelo ganadeiro. “O actual modelo hiperextensivo de exploração, sem limite de espaço, nem de cabeças de gado, resulta na sobreexploração dos pastos e na eliminação de qualquer espécie concorrente. É necessário outro modelo que dedique mais esforços ao cuidado dos rebanhos. Que os vá mudando de sítio, controle as épocas e zonas de parto e incorpore medidas contra a predação, como currais nocturnos e a vigilância com cães de guarda.” Embora essas medidas impliquem, aparentemente, um aumento dos custos, os criadores de gado que optaram por elas têm reduzido os prejuízos associados à predação, por abortos das fêmeas (directamente provocados pelos ataques ou pelo impacte emocional por eles causado) e, até, E M B O R A A C AÇ A E A P E R S E G U I Ç ÃO

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N AT I O N A L G E O G R A P H I C

Dois jovens pumas descansam ao fim da tarde. Têm dois anos e tornaram-se independentes há pouco. Os irmãos permanecem juntos, mas irão separar-se gradualmente. As fêmeas ocuparão parte do território da progenitora ou permanecerão nas imediações, mas os machos afastar-se-ão, levando uma existência solitária.

pelo roubo de cabeças de gado. “Vale a pena”, assegura o ecologista. Diego Araya focou o local onde a fêmea de puma abateu um guanaco, o lugar do desmanche ao qual acorreram as suas crias, nascidas na Primavera passada e que rapidamente se tornaram independentes, aproveitando a época do ano com maior abundância de alimento. A progenitora e as crias mantêm-se alguns dias juntas da presa alternando os banquetes com longas sestas durante os quais alternarão os banquetes com longas sestas e uma ou outra escapada até ao lago para saciar a sede. Não há vegetação em redor para ocultar o cadáver e, por isso, não se afastarão demasiado do local onde jaz AT RAV É S D O S E U B I N Ó C U LO,


a sua fonte de alimento. Sobre as suas cabeças, vários condores sobrevoam-nos, em círculos, interessados na volumosa carcaça. Se vissem que era seguro descerem, poderiam devorá-la num ápice. Ao longo dos últimos 20 anos de observações, Diego acumulou uma enorme quantidade de dados sobre os pumas, que lhe permitiram reescrever com muito mais precisão a história natural deste felídeo. “Muitos dados eram desconhecidos e outros tantos diziam respeito a populações do hemisfério norte e não se aplicam aqui.” Agora, o seu sonho passa por alargar o sucesso desta história de conservação de Gran Paine a outras regiões e pela criação de corredores biológicos para que as duas centenas de exemplares que devem existir na região se expandam para outros territórios

onde também sejam respeitados. “Está a fazer-se algo parecido nos parques nacionais do Norte da Patagónia, na região chilena de Aysén, nos enormes territórios doados por Douglas Tompkins”, disse. “Mas a única forma de ligar o Gran Paine a Aysén é através da província de Santa Cruz, na Argentina, onde ainda se caçam pumas.” Apesar de tudo, Diego Araya e os seus companheiros de profissão confiam que aquilo que alcançaram em Gran Paine servirá de inspiração a outros humanos que, tal como eles, verão, em primeira mão, que as relações com a fauna silvestre podem restabelecer-se de forma satisfatória para todas as partes implicadas. Sonho louco e utópico? “Já se conseguiram vitórias mais difíceis”, afirma o biólogo. Há que dar tempo ao tempo. j P U M A S DA PATAG Ó N I A

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H I S TÓ R I A D E S U C E S S O

TEXTO E FOTOGRAFIAS DE ANDONI CANELA

DOS PIRENÉUS À PATAGÓNIA C Ã E S D E G U A R D A , F E R R A M E N TA S VA L I O S A S D E C O N S E R VA Ç Ã O

Tive oportunidade de viajar até ao Sul da Patagónia em diversas ocasiões. É um território lendário, onde a estepe e as montanhas criam paisagens magnéticas e onde o vento parece dar forma a tudo. Das últimas vezes, o meu destino foi a província chilena de Última Esperanza e o meu objectivo principal era o puma. Há seis anos, encontrei ali um animal de quatro patas e peludo que me surpreendeu. Não estava à espera de encontrá-lo naquelas latitudes. Fiquei espantado por vê-lo na estepe patagónica: o que faria ali? Seria mesmo o que eu estava a pensar? Após alguns momentos de dúvida, tive a certeza de que se tratava de um pastor dos Pirenéus. Muitos anos antes, vira pela primeira vez esta raça protegendo rebanhos de ovelhas no Norte de Navarra, a minha terra natal, entre os pastos e bosques dos vales de Roncal, Salazar e Aézcoa. Também o encontrara nos vales vizinhos de Hecho e Ansó, nos Pirenéus Aragoneses. Mas o que fazia na Patagónia? Durante séculos, os pastores dos Pirenéus tiveram por missão proteger o gado ovino dos ataques de lobos, ursos e outros animais selvagens – e também de ladrões de rebanhos. São cães grandes e fortes (podem pesar quase 100 quilogramas), embora dóceis e muito inteligentes. Hoje em dia, são muito apreciados e utilizados como cães de guarda em diversos países. Foi no encontro com aquele pastor que conheci José Antonio Kusanovic. Homem multifacetado e possuidor de grande carisma, trabalha no campo, tal como a sua família fez ao longo de gerações. Dedica-se à criação de gado, mas também desenvolve actividades relacionadas com o turis90

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mo. Além disso, há vários anos que cria cães de guarda, sobretudo de duas raças: pastor dos Pirenéus e pastor de Maremma, este último originário dos Alpes Italianos. José Antonio explica-me a origem da ideia: “Surgiu por necessidade. Estávamos desesperados por não conseguirmos criar ovelhas. Os ataques dos pumas eram constantes. Investigando a experiência noutros locais, deparámo-nos com a solução: cães de guarda. Há que escolher bem a raça e criar os cães correctamente para que se adaptem bem ao rebanho e ao terreno. Em seguida, a sua eficácia é enorme e a protecção do gado está garantida.” O processo de criação é fundamental: “A progenitora dá à luz entre o rebanho e passa as primeiras semanas junto dos cachorros no curral, convivendo com as ovelhas.” Isso deixa uma marca básica nos cães, que se sentem parte do rebanho, e leva-os a proteger as ovelhas como se fossem a sua própria família. Passadas algumas semanas, a progenitora abandona o estábulo e as crias ficam sozinhas com as ovelhas. Em poucos meses, estes cachorros transformam-se em autênticos cães de guarda. Recentemente, voltei a encontrar José Antonio Kusanovic. Orgulhoso do seu trabalho como como criador de cães, explicou-me como evoluiu na criação de pastores: “Já criei e entreguei quase 500 cães pastores no Chile, na Argentina e no Uruguai. Alguns até viajaram para os Estados Unidos. Em todos esses países, os cães estão a evitar o ataque dos pumas às ovelhas.” Agora, o Parque Nacional de Torres del Paine está repleto de cães pastores. Os pumas raramente se aproximam do gado e, por isso, os ganadeiros não sentem necessidade de abatê-los. Da última vez que vi José Antonio Kusanovic, ele contou-me uma história recente que diz muito sobre a eficácia e a importância dos cães pastores: “Na nossa quinta em Torres del Paine, tínhamos uma cadela pastora. Durante os dez anos em que viveu, os pumas não mataram uma única ovelha. Depois de a cadela morrer, os pumas abateram 27 ovelhas em duas semanas. Há pouco tempo, levei para lá um cachorro de seis meses e, até hoje, não morreu mais nenhuma ovelha.” j Os cães de guarda revelaram-se eficazes na Patagónia. Em cima, um jovem cão de guarda, fruto do cruzamento entre um pastor dos Pirenéus e um pastor de Maremma italiano, com o rebanho que defenderá em caso de ataque de um puma. À direita, crias de pastor dos Pirenéus. Ao conviverem com ovelhas desde pequenos, os cães integram-se no rebanho e desenvolvem um forte instinto de protecção.


P U M A S DA PATAG Ó N I A

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N OTAS |

DIÁRIO DE UM FOTÓGRAFO

VISTOS A PARTIR DO SOLO CONFINADO EM QUARENTENA NA REGIÃO HOLANDESA DE VELUWE, UM FOTÓGRAFO E STUDA OS FUNGOS DO SEU JARDIM E DA S F L O R E S TA S E M R E D O R .

T E X TO E F OTO G R A F I A S D E JAN VERMEER

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N AT I O N A L G E O G R A P H I C


Uma das espĂŠcies de cogumelo silvestre mais conhecidas, Amanita muscaria, ĂŠ a preferida do fotĂłgrafo e ele ficou maravilhado por descobri-la no seu quintal e no quintal do vizinho. 93


Quando a luz incide sobre o chapéu da Amanita muscaria, o padrão da área inferior do fungo assume um brilho vibrante. A espécie é famosa por ser tóxica e psicoactiva. 94

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Este pequeno cogumelo roxo, denominado Ramariopsis pulchella, crescia na província de Gelderland, na fronteira entre os Países Baixos e a Alemanha. Os grupos de conservação europeus estão a vigiá-lo, pois é possível que se encontre ameaçado. V I STO S A PA RT I R D O S O LO

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Para acasalar, um cogumelo Schizophyllum commune só precisa de tocar com o seu micélio fibroso noutro cogumelo para que as células se liguem. Esta espécie pode ter dezenas de milhares de tipos de parceiro, conseguindo reproduzir-se com os compatíveis. V I STO S A PA RT I R D O S O LO

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N OTAS |

DIÁRIO DE UM FOTÓGRAFO

O S F U N G O S S ÃO B O N S I N D I C A D O R E S D O E S TA D O D E U M A F LO R E S TA : S E S E D E S E N V O LV E M , O M E S M O A C O N T E C E A M U I TA S O U T R A S F O R M A S D E V I DA .

para captar imagens da natureza e dos seus ecossistemas. Em Março de 2020, quando a pandemia atingiu os Países Baixos onde vivo, fiquei em casa como todas as outras pessoas. Foi então que comecei a reparar nos fungos que cresciam no meu quintal e no meu bairro. O facto de os fungos prosperarem com a humidade tornou-se muito claro para mim no Outono de 2019, uma estação durante a qual ocorreu nos Países Baixos um volume excepcional de precipitação. No entanto, talvez a madeira morta seja mais importante para os fungos do que a humidade. A madeira apodrecida contém nutrientes que penetram no solo e, por sua vez, podem ajudar os microrganismos, os fungos e os insectos. Toda a cadeia alimentar colhe benefícios. À volta de minha casa, depósitos de madeira remanescentes da extracção de madeira do passado enriquecem o solo e suportam a biodiversidade. A situação poderá vir a mudar. Para efeitos de prevenção de incêndios, os ramos, os galhos e as

JÁ V I A J E I P O R TO D O O MU N D O

árvores – material que pode servir de alimento aos cogumelos – estão a ser removidos de algumas florestas holandesas. Com o aumento das centrais de biomassa, esse material pode ser transformado em energia. No entanto, caso se verifiquem perturbações no ciclo florestal, no qual a matéria apodrecida gera novo solo, o resultado poderá ser a redução da diversidade de fungos e efeitos secundários em todo o ecossistema. No meu quintal, vi diversos cogumelos crescerem e mudarem ao longo das estações. Os meus preferidos são Amanita muscaria, com os pés brancos e chapéus vermelhos garridos. Fiquei encantado por descobrir este cogumelo com bolinhas, mas o meu vizinho tinha exemplares ainda mais bonitos. Pedi-lhe que, quando cortasse a relva, os contornasse, para eu captar uma fotografia – a primeira desta reportagem. Com menos fungos, a floresta terá menos riqueza ecológica e será mais aborrecida. Por isso, estou sempre ansioso pela humidade do Outono para ver como estes organismos vão voltar a crescer. j

Com um máximo de seis centímetros de altura, o Xylaria hypoxylon é popularmente conhecido como chifre-de-veado ou pingo-de-vela. 98

N AT I O N A L G E O G R A P H I C


Í N D I C E

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2020

JANEIRO

JULHO

A dor 2 Saúde feminina 32 Longevidade 42 Ioga 60 Anatomia patológica 74 Sundarbans 82 Araras 92

Evereste, tecto do mundo 2 A crise da água 28 Stupas 52 Leopardo-das-neves 62 Algas 94 Quarentena 104

FEVEREIRO

AGOSTO

Área Marinha Protegida de Avencas Beleza moderna 2 Arquitectura animal 28 A história do Clotilda 46 Flamingos 72 Cardamomo 88

Batalha do Bussaco Pandemia do passado 2 A crise da água na Índia 36 Negócio do Além 58 A dinâmica da morte 72 Chimpanzés do Uganda 78 Metrópole confinada 92

MAPA-SUPLEMENTO: EVERESTE

MAPA-SUPLEMENTO: A TERCEIRA INVASÃO FRANCESA

MARÇO

SETEMBRO

Lixo 2 Abelhas 28 Raparigas de Chibok 40 Lince-ibérico 54 Pioneiras 68 Incêndios florestais 90

Robots 2 Mares Prístinos 32 Avestruzes 48 Gdansk 64 Um ano sem gelo 76 Leões-marinhos da Califórnia 96 Luz em lugares estranhos 104

ABRIL

OUTUBRO

Guia do optimista Caminho para 2070 2 Carros eléctricos 26 50 anos do Dia da Terra 40 Guia do pessimista Um mundo perdido 2 O mundo em 2070 26 50 anos de estragos 34

O fogo e a arqueologia em Vouzela Dinossauros 2 Indestrutíveis 46 Necrópole romana 70 Harpias 86 Stranger Fruit 98

MAIO

NOVEMBRO

Grafeno O fim dos insectos 2 Pandemia de COVID-19 26 Autismo 36 A família Tompkins 62 A caça dos inuit 84 Hubble 94

Pragas e pestes no mundo Pandemia na Bélgica 2 Repensar a ciência 16 Pandemia na Indonésia 26 Repensar a natureza 36 Pandemia na Jordânia 50 Repensar a cultura 70 Retratos de família 80

JUNHO

DEZEMBRO

Segunda Guerra Mundial 2 Hiroxima 34 Pinguins 42 Parque Marinho da Arrábida 56 Democracia no feminino 66 Biomimetismo 86 Coronavírus 102

Lousada Grandes Lagos 2 Canções de embalar 30 A noite do Árctico 56 Pumas da Patagónia 76 Cogumelos 92 MAPA-SUPLEMENTO: LOUSADA NA ROTA DA SUSTENTABILIDADE


N AT I O N A L

G E O G R A P H I C

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NA TELEVISÃO

Os Segredos Enterrados de Keros E S T R E I A : 6 D E D E Z E M B R O, À S 2 3 H 2 0

À Beira da Tempestade E S T R E I A : 1 4 D E D E Z E M B R O, À S 2 2 H 1 0

Uma nova série aborda as tempestades mais agressivas do planeta, através da experiência dos agentes sociais que trabalham nas principais regiões afectadas por furacões. Através de centenas de câmaras incorporadas em navios e plataformas petrolíferas, sabe-se hoje mais do que nunca sobre a formação das maiores tempestades e furacões em alto-mar.

Atlas dos Locais Ameaçados ESTREIA: 27 DE D E Z E M B R O, À S 2 2 H 3 0 . TO D O S O S D O M I N G O S .

Em Dezembro, o National Geographic estreia um documentário que acompanha uma viagem de investigação ao coração do mar Egeu. Este documentário desenrola-se em Keros, uma ilha desabitada no arquipélago das Cíclades. Neste cenário pitoresco de águas quentes do Mediterrâneo, uma equipa de arqueólogos desvenda aquele que poderá ser o mais antigo santuário marítimo do mundo. Em 2500 a.C., a ilha acolheu uma comunidade pujante que, durante dois mil anos, influenciou o mundo grego. As suas características estátuas de mármore influenciaram pintores como Pablo Picasso. O mistério de Keros parecia resolvido até uma equipa de arqueólogos subaquáticos começar a mergulhar…

O escritor e aventureiro Sam Sheridan viaja pelo mundo à procura dos locais mais amaldiçoados do planeta. Com tecnologia de ponta, Sam explora as histórias assustadoras, tradições e costumes mais fascinantes de cada região, revelando o lado macabro de muitos mitos. FOTOGRAFIAS DE NATIONAL GEOGRAPHIC


Wild Winter D OM I N G O S A PA RT I R DA S 1 7 H

O Inverno chegou finalmente ao National Geographic Wild. Estejam ou não preparados, predadores e presas de todos os tamanhos têm de enfrentar a estação mais dura e implacável do ano. Alguns agarram-se à vida nestes meses mais difíceis, procurando passar despercebidos. Outros encontram oportunidades para prosperar no frio e no gelo. Em pano de fundo, estão os ecossistemas mais frágeis do planeta, onde uma escassa alteração de temperatura pode ter também repercussões dramáticas na luta por alimento, abrigo ou poiso para reprodução. Em todos os domingos de Dezembro haverá programação especial sobre o Inverno selvagem, documentando como a vida selvagem de todo o globo luta com garra para sobreviver ao frio, ao gelo e à neve.

Secrets of the Zoo: Tampa E S T R E I A : 2 D E D E Z E M B R O, ÀS 17 HORAS TERRA MATER FACTUAL STUDIOS (EM CIMA E AO CENTRO); NATIONAL GEOGRAPHIC (EM BAIXO)

No dia 2, estreia uma nova série que explora o lado selvagem da Florida, acompanhando tudo o que acontece no Jardim Zoológico de Tampa, desde a entusiasmante chegada de novos animais à triste despedida de outros, passando pelos adoráveis recém-nascidos e por incríveis predadores residentes.


P R Ó X I M O

N Ú M E R O

Um rio com amplos direitos

Há três anos, a Nova Zelândia atribuiu ao rio Whanganui, venerado durante séculos pelos maori, os mesmos direitos legais de uma pessoa. O que implica essa decisão?

N AT I O N A L G E O G R A P H I C

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JANEIRO 2021

Corpos em marcha

Os animais terrestres desenvolveram inúmeras formas de locomoção. Com a ajuda de ilustradores, revelamos como espécies muito diferentes progridem com eficiência.

Vidas infantis roubadas

No Bangladesh e na província indiana de Bengala Ocidental, milhares de crianças são vítimas de abuso sexual. Duas delas explicam-nos como foram forçadas a exercer a prostituição.

Mordeduras que matam

Todos os anos dezenas de milhares de africanos morrem por culpa de mordeduras de serpente. Nem sempre é fácil receber tratamento médico ou encontrar um antídoto.

MATHIAS SVOLD


História

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