National Geographic Portugal #239 (Fevereiro 2021)

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N AT I O N A L G E O G R A P H I C . P T

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FEVEREIRO

2021

´ RIOS OS MISTE DOS

A E X PA N SÃO E U RO P E I A DA V E S PA-A S I ÁT I C A

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C I N C O R E L ATO S D E MU L H E R E S MIGRANTES

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C O S TA R I C A : P R E S E RVA R O PA R A Í S O

N.º 239 MENSAL €4,95 (CONT.)

Podem ser letais. Sem eles, porém, a vida é impossível.



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S U M Á R I O

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Vivemos num mundo de vírus e a pandemia recordou-nos o seu poder destrutivo. No entanto, também há benefícios associados a eles, sobretudo na capacidade adaptativa. São formidáveis para o bem e para o mal e aí radica o seu mistério e o seu interesse para a ciência.

A península de Osa, na Costa Rica, é um paraíso de biodiversidade e um modelo de conservação baseada no ecoturismo. A pandemia, porém, colocou a teste este escudo protector.

Os mistérios dos vírus

Costa Rica: preservar o paraíso

T E XTO D E JA M I E S H R E E V E

T E X T O D E D AV I D Q U A M M E N

F OTO G RA F I A S D E C H A R L I E

F OTO G RA F I A S D E C RA I G C U T L E R

H A M I LT O N J A M E S

Na capa Imagem de um Mimivirus, um dos maiores e mais complexos vírus que se conhecem. Os cientistas acreditam que o estudo destes agentes infecciosos poderá ajudar a entender as origens e proliferação de muitos agentes patogénicos. ILUSTRAÇÃO DE MARKOS KAY


R E P O R TA G E N S

S E C Ç Õ E S

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A S UA F OTO VISÕES

Cinco relatos de mulheres migrantes

Em 2019, residiam fora do seu país de origem 130 milhões de mulheres. E dezenas de milhões foram obrigadas, por desastres naturais, doença, violência ou pobreza, a migrar dentro dos seus países ou para o estrangeiro.

EXPLORE As ondas gigantes da Nazaré GRANDE ANGULAR A vida ainda por estudar E D I TO R I A L

T E XTO D E AU RO RA A L M E N D RA L F OTO G RA F I A S D E T H E E V E R Y D AY P R O J E C T S

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I N ST I N TO BÁ S I C O Amor picante entre os porcos-espinhos N A T E L E V I SÃO P RÓX I M O N ÚM E RO

A expansão europeia da vespa-asiática

Chegou a França a partir da China em 2004 e já colonizou grande parte da Europa. Esta espécie invasora compete com os invertebrados autóctones por alimento, dizima pomares e cria um novo problema para a apicultura. Os especialistas tentam mitigar o seu progresso imparável. T E X T O D E E VA VA N D E N B E R G

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Lisboa a aguarela

Pelo pincel da artista russa Inna Korneeva, a capital portuguesa ficou gravada em pranchas repletas de vida e arte, captando a essência e cores de uma cidade cosmopolita. Neste diário de uma ilustradora, propomos-lhe uma abordagem completamente diferente à cidade. T E XTO D E G O N Ç A LO P E R E I RA RO SA I L U S T R A Ç Õ E S D E I N N A K O R N E E VA

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V I S Õ E S

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A SUA FOTO

N O R B E R T O E S T E V E S A coruja-do-nabal é a mais diurna de todas as aves nocturnas, mas é pouco comum em Portugal. “Foi

um privilégio observar esta ave a caçar, embora ela pareça admirada por me avistar”, brinca o fotógrafo.

G O N Ç A L O P O Ç O Com os nevões que se abateram em Janeiro sobre os pontos mais altos do país, o acesso à Torre da serra da Estrela a partir de Piornos foi fechado ao trânsito. Um túnel rodoviário assumiu este aspecto congelado durante algumas horas.


J O S É V E N T U R A M I N A As escavações sistemáticas na cidade romana de Ammaia, perto de Marvão, começaram na década

de 1990 e têm emergido volumetrias importantes. Já foram identificados o Fórum e o Anfiteatro da cidade. Em Janeiro deste ano, quando um nevão matinal pintou de branco toda a região, um fotógrafo destemido fez levantar um drone e captou Ammaia como poucas vezes se viu, sugerindo uma versão impressionista das estruturas que os romanos ali construíram há quase dois mil anos.


DAR ASAS À

CONSERVAÇÃO DA NATUREZA O nome científico é Aquila fasciata. Mais conhecida como águia-de-Bonelli. O nome podia ser qualquer um. O importante é que continua a voar livre nas florestas portuguesas. Esteve quase para cair nas garras da extinção, mas, com a ajuda do Homem, escapou ao destino de tantas outras espécies. A conservação da biodiversidade ganha asas quando existe vontade de defender tudo o que a natureza nos dá. Só nas últimas quatro décadas, a população mundial de espécies selvagens diminuiu 60%. Sinais de alerta que despertam para a urgência na adoção de princípios para benefício da preservação da biodiversidade. O caso da águia-de-Bonelli é um exemplo de como este caminho pode ser invertido. Um sinal de esperança e um incentivo à procura de soluções. Ave de rapina classificada em Portugal com o estatuto de “espécie em perigo”, e com caráter de conservação prioritária na União Europeia, a também conhecida como águia-perdigueira nidifica em várias propriedades da The Navigator Company do sudoeste alentejano e Algarve, e tem tido um acompanhamento por parte desta empresa desde 2006. No âmbito do projeto LIFE “Conservação de Populações Arborícolas de águia-de-Bonelli em Portugal”, a Navigator definiu, em conjunto com o CEAI – Centro de Estudos da Avifauna Ibérica, um plano de conservação para os 16 territórios de águia-de-Bonelli, ou seja, 16 casais que habitam nos espaços florestais geridos pela Companhia. A par, existem quatro ninhos, ou locais de nidificação estáveis, dentro de propriedades, em redor dos quais foram constituídas áreas de proteção entre os 3 e os 4,5 hectares, denominadas “áreas de alto valor de conservação”.

As florestas sustentáveis da The Navigator Company apoiam a National Geographic Portugal a diminuir a sua pegada ecológica. Fontes: IUCN Red List | Livro Vermelho dos Vertebrados de Portugal (2005) | WWF, 2019, “Climate, Nature and our 1,5°C Future”


As alterações climáticas estão a contribuir para a degradação e transformação de habitats em que as espécies vivem há milhares de anos. Estima-se que haja 8 milhões de espécies de plantas e animais no planeta, e cerca de 1 milhão estão agora ameaçadas de extinção, muitas delas nas próximas décadas. Em Portugal, mais de 60% das plantas avaliadas estão em risco de extinção e 42% das espécies de vertebrados identificados estão ameaçados.

AS PROPRIEDADES GERIDAS PELA NAVIGATOR ALBERGAM CERCA DE

740 ESPÉCIES DE FLORA E 235 DE FAUNA, INCLUINDO

publirreportagem

VÁRIAS ESPÉCIES PROTEGIDAS E ENDÉMICAS.


V I S Õ E S

Portugal

O cerro de Santa Bárbara, a norte de Alcoutim, guarda a ruína do Castelo Velho. Construído entre os séculos VIII e IX, este pequeno alcácer residencial terá sido ocupado por um grupo familiar de um muçulmano, talvez da tribo berbere dos kutama. PEPE BRIX




Guiné-Bissau

Os bijagós da Guiné-Bissau têm sempre presente a música nas suas vidas e em especial nas cerimónias. Bastante criativos, transformam materiais naturais ou reciclados em instrumentos musicais. Este jovem usa latas e plástico como pele para produzir os seus sons. PEDRO NARRA



Quénia

O Bogoria é um lago salino e alcalino. Sazonalmente, acolhe uma das maiores congregações de flamingos no mundo. A alcalinidade, o calor, a actividade vulcânica sob o lago e as condições geológicas proporcionam o habitat ideal para o desenvolvimento de cianobactérias azul-esverdeadas que, combinadas com outros elementos, criam caleidoscópios de cores. JOSÉ FRAGOZO


E X P L O R E O S M I S T É R I O S E M A R AV I L H A S Q U E N O S R O D E I A M N AT I O N A L G E O G R A P H I C

AS ONDAS GIGANTES DA NAZARÉ

MIGUEL RIOPA/GETTY IMAGES



UMA CONSPIRAÇÃO DE ELEMENTOS É PRECISO UMA COMBINAÇÃO IMPROVÁVEL DE FACTORES GEOLÓGICOS, OROGRÁFICOS E METEOROLÓGICOS

para que se formem, na praia do Norte da Nazaré, as ondas gigantes que têm corrido o mundo desde que um surfista norte-americano, Garrett McNamara, as popularizou. Descubra os “ingredientes” de uma receita quase irrepetível no planeta.

No Outono e no Inverno, as tempestades são mais frequentes, produzindo ondulação com mais energia. 227 km

NAZARÉ

Nazaré

Peniche

5 km

O CANHÃO DA NAZARÉ É uma depressão profunda no mar e constitui um dos maiores canhões submarinos da Europa continental, com 227 quilómetros de extensão Chega a ter 5.000 metros de profundidade e prossegue até às imediações da costa. O canhão poderá estar associado à falha sísmica da Nazaré. 30metros 25 20 15 10 5

Altura média de uma onda. Menos de 5m

0 ILUSTRAÇÃO DE ANYFORMS DESIGN

A IMPORTÂNCIA DO FUNDO Em alto-mar, mesmo as grandes tempestades costumam produzir ondulação constante se a profundidade for considerável.

Garrett McNamara 2011 23,70m

A ACÇÃO REGULAR DO CANHÃO Esta depressão tem efeitos poderosos na ondulação. Quebra as ondas em duas, aumentando a sua velocidade enquanto elas percorrem a zona do canhão.

Rodrigo Koxa 2017 24,38m

Torre de Belém 30m


Perto da costa, a velocidade da ondulação reduz, mas, em contrapartida, a altura de rebentação aumenta.

As ondas que se deslocam sobre o canhão em direcção à praia do Sul mantêm a velocidade quase até à praia porque têm cerca de 50 metros de distância até ao fundo.

Junto do promontório, as ondas galgam o degrau do canhão e dirigem-se para a praia do Norte, encontrando as congéneres que se propagavam pela plataforma.

FACTORES METEOROLÓGICOS Ao contrário do que o senso comum poderia sugerir, o vento não tem de soprar com grande velocidade. O fenómeno da ondulação de grande dimensão requer vento fraco e offshore, associado à ondulação de norte/noroeste. As ondas encontram dois fundos diferentes: Fundo de praia regular a norte; As duas ondas juntam-se, acumulam energia e ganham maiores dimensões. Nazaré

Canhão a sul

Importante igualmente é o promontório que divide a praia do Sul, onde a ondulação nunca atinge grande altura, e a praia do Norte. Com frequência, o mar tem dois comportamentos diferentes nas duas praias.

O tempo em que a vaga está activa tem de ser de 14 segundos ou mais.

Por norma, quando a previsão meteorológica antecipa ondulação com mais de três metros para a região, os surfistas sabem que o canhão tem capacidade para triplicar esse valor.

A REPETIÇÃO Quando a onda da praia do Norte recua de novo, reencontra-se na zona de convergência com ondas em formação e acentua a energia, conferindo à onda seguinte muito mais altura.


G R A N D E

A N G U L A R

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HIPOGÉNICOS

TEXTO E FOTOGRAFIAS DE ANTÓNIO LUÍS CAMPOS

A VIDA AINDA POR ESTUDAR O QUE PODE RESIDIR NO INTERIOR DE U M A M I N A O U N U M A G R U TA E S C U R A que cobrira de geada as urzes das encostas vizinhas, o ar gélido penetra nos pulmões com a mesma resistência com que nos aproximamos do portão de entrada na mina, por onde se somem, no escuro, homens e máquinas, a um ritmo alucinante. De coração apertado, descemos ao âmago das minas da Panasqueira, umas das principais unidades mineiras de Portugal. Das entranhas da terra, extraem-se valiosos minérios. Destaca-se o volfrâmio (também conhecido como tungsténio), objecto de negócios dúbios durante a Segunda Guerra Mundial e material cobiçado como endurecedor de ligas metálicas para armamento. Hoje, é valioso por ser um importante componente de aplicações eléctricas. Sob as estruturas mineiras espalhadas pelo território nacional, muitas das quais abandonadas ou sobre as quais subsistem dúvidas sobre a viabilidade financeira e ambiental, abrem-se agora novos horizontes. Uma equipa conjunta das universidades portuguesas de Évora e do Algarve, do Instituto de Recursos Naturais e Agrobiologia de Sevilha e da empresa Serviços Mineiros da Andaluzia estuda os microrganismos existentes em ambientes hipogénicos (onde o oxigénio é deficitário), desvendando lentamente um mundo pouco conhecido e para o qual, há bem pouco tempo, se avançava apenas com retroescavadoras e brocas de proporções hercúleas. O HERCULES tem efectivamente uma palavra a dizer. Não se trata de uma referência ao semideus grego, mas sim ao laboratório eborense homónimo – que, como integrante do projecto transfronteiriço ProBioma (Prospecção em Ambientes Subterrâneos de Compostos Bioactivos Microbianos) busca, em articulação com investigadores espanhóis, plantas, fungos e animais de dimensões ínfimas em minas subterrâneas e grutas do Alentejo e Andaluzia. NUMA MANHÃ INVERNAL

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“São, na verdade, nichos de biodiversidade desconhecidos e uma fonte para microrganismos que sobreviveram às mudanças no seu habitat durante milhares de anos”, explica Ana Teresa Caldeira, a coordenadora do projecto naquela unidade académica. “Podem esconder a chave para a elaboração de antibióticos e fármacos antitumorais.” O projecto em curso tem como objectivo identificar organismos biológicos com uso potencial para a medicina, agricultura e ambiente, primeiro à escala laboratorial, mas depois com o foco assumido na procura de aplicações viáveis comercialmente em grande escala. Parte do pressuposto de que, nos confins profundos dos ambientes menos conhecidos e à partida menos favoráveis ao desenvolvimento da vida, haverá organismos resistentes e potencialmente úteis para a ciência.


No interior das minas da Panasqueira, cruzando tecnologia de ponta com a dureza de uma profissão milenar que se desenvolve a centenas de metros de profundidade, uma complexa operação retira valiosos minérios. No futuro, grutas e minas como esta poderão ser também fonte de fármacos e cosméticos. À esquerda, uma das lagoas multicolores da mina do Lousal, alvo de um projecto de recuperação ambiental.

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G R A N D E

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HIPOGÉNICOS

uma linha de investigação (literalmente) obscura, a verdade é que pouco se sabe sobre estes habitats subterrâneos. As condições ambientais são peculiares devido a regimes de humidade e temperatura praticamente constantes ao longo do ano. A reduzida ventilação e a consequente baixa oxigenação do ar contribuem para o desenvolvimento de propriedades biológicas únicas. Activa ou abandonada, uma mina muito raramente desaparece da paisagem, como o Centro Ciência Viva do Lousal testemunha com eloquência. Estabelecido numa antiga mina de pirites, no limite noroeste da Faixa Piritosa Ibérica, este centro de educação científica integra-se num esforço mais vasto e ambicioso de recuperação ambiental da exploração, abandonada em 1988, que inclui também E M B O R A P O S S A PA R E C E R

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um museu mineiro. De certa forma, conta a história da mineração no Alto Alentejo. As antigas lagoas de retenção de águas, de cores vibrantes devido aos depósitos de óxidos de enxofre, são um lembrete pungente do preço ecológico a pagar a longo prazo... Porém, ao entrar nas antigas galerias, toscamente escavadas na rocha, na companhia de uma vasta equipa de investigadores ibéricos, o registo muda por completo. A excitação sente-se na pele à medida que o burburinho em “portunhol” cresce, proporcional à escuridão que nos envolve, apenas entrecortada pelos movimentos nervosos dos focos das lanternas frontais. O grupo espalha-se. Num cruzamento de túneis, a investigadora Valme Jurado Lobo pousa a pesada mochila e, cuidadosamente, retira um estranho


Em pleno século XXI, existe um nicho pouco explorado na biosfera, com perspectivas muito promissoras: os ambientes subterrâneos. martelo de geólogo em riste, recolhe amostras de rocha, auxiliada por uma aluna de bata surpreendentemente branca, dado o entorno barrento e bafiento. Entre investigadores seniores, pós-doutorados e doutorandos, o grupo é constituído por mais de uma dezena de cientistas, especializados em diferentes áreas técnicas. para os compridos corredores universitários, a comunidade científica vem sendo confrontada com uma escassez de novos antibióticos em desenvolvimento para combater os riscos da crescente resistência antimicrobiana. De acordo com os investigadores do ProBioma, “só oito dos 51 novos antibióticos e produtos biológicos em desenvolvimento clínico para tratar microrganismos patogénicos resistentes a antibióticos são tratamentos inovadores, adicionando valor à oferta actual de medicamentos”. E uma boa parte dos fármacos actuais apresenta apenas soluções imediatas, sendo modificações das classes de antibióticos já existentes. A Organização Mundial da Saúde tem chamado a atenção para a emergência global de saúde que vai comprometer seriamente o progresso da medicina moderna: a resistência aos compostos antimicrobianos. É fundamental mais investimento na pesquisa e desenvolvimento de antibióticos capazes de combater infecções resistentes a antibióticos. Fazendo uma retrospectiva histórica, percebe-se que a procura por antibióticos inovadores no século passado se concentrou inicialmente na produção de compostos bioactivos por organismos do solo. Mais tarde, o foco do desenvolvimento e investigação passou para o mundo marinho. Em pleno século XXI, porém, existe um nicho pouco explorado na biosfera, com perspectivas promissoras para a investigação biomédica: os ambientes subterrâneos. Segundo a equipa do ProBioma, grutas e minas são um óptimo ambiente para a descoberta de novas substâncias bioactivas. Ainda assim, a investigação neste ramo não tem sido profunda, constatando-se que o conhecimento sobre microbiologia subterrânea em território nacional é limitado, exceptuando alguns estudos em grutas vulcânicas dos Açores, uma realidade com condições distintas das grutas do continente, graníticas ou calcárias. DA S S I N U O SA S GA L E R I A S S U B T E R R Â N E A S

A investigadora Valme Jurado Lobo faz amostragens de ar no interior de uma mina de pirites em Lousal, que serão mais tarde analisadas em laboratório. Esta informação é fulcral para a compreensão das dinâmicas das minas e das características biológicas dos microrganismos em estudo.

dispositivo, que parece um “Y” amarelo em tamanho XL. É um amostrador de ar para amostras microbiológicas, que permitirá à equipa conhecer melhor as dinâmicas de fluxos gasosos destas galerias. A seu lado, um cabelo grisalho desponta do capuz do fato biológico completo. Cesáreo Sáiz Jiménez, coordenador do projecto no Instituto de Recursos Naturais e Agrobiologia, fita a parede num local aparentemente tão vazio como o resto da mina. No entanto, olhando bem de perto e com luz rasante e lateral, o motivo torna-se aparente: uma colónia de organismos destaca-se do fundo escuro. Uma pequena amostra é recolhida para um tubo Eppendorf. Metros adiante, uma percussão seca e sincopada ecoa no ambiente sinistro da cavidade. Maria Clara Costa, da Universidade do Algarve, de

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Pormenores de amostras minerais recolhidas na mina da Panasqueira, que em meados do século passado era a maior e mais importante mina de Portugal e uma das maiores explorações de volfrâmio do mundo. Durante a Segunda Guerra Mundial chegou a ter mais de dez mil trabalhadores e a processar mil toneladas de materiais por dia.

Não é só na medicina que a procura de compostos bioactivos acontece. É igualmente pertinente na agricultura. Um exemplo relevante dessa abordagem é o combate a pragas de insectos em produções hortícolas e de árvores de fruto, sendo a actividade biocida desses elementos testada em diversas bactérias fitopatogénicas. Cruzando longitudinalmente o Baixo Alentejo, a Faixa Piritosa Ibérica é uma longa formação geológica que penetra na Andaluzia, quase até Sevilha. E é ali que o ProBioma incide, seguindo uma abordagem inovadora, com recurso à biotecnologia e biologia molecular para o estudo da transcriptómica e do genoma completo dos microrganismos em análise. Ao longo da história, o subsolo desta região, rico em minerais, tem sido testemunho de múltiplos esforços das comunidades locais para a sua exploração mineira. É um território hostil, que imprimiu stress às espécies lá existentes, ao longo da evolução, o que as levou ao desenvolvimento de metabolismos capazes de sobreviver à escassez de nutrientes orgânicos. Ali, só os mais fortes vingam através da produção de compostos bioactivos contra outros organismos concorrentes, numa luta silenciosa mas implacável pelos poucos recursos disponíveis. No outro Alentejo, na sombra da austera fachada da Sé de Évora, o quartel-general do HERCULES parece uma verdadeira Babel. Cientistas de várias nacionalidades trabalham em conjunto sob os tectos abobadados de tijolo burro, emprestando uma banda sonora multilingue a este centro de investigação. Debruçada sobre um sequenciador de ADN de nova geração Miseq Ilumina, de aspecto futuris-

ta, Teresa Caldeira estuda dados aparentemente ininteligíveis. Segundo ela, os resultados são auspiciosos: “A análise do genoma das bactérias seleccionadas permitiu já encontrar conjuntos de genes envolvidos na síntese de metabolitos secundários e a identificação de mecanismos genéticos associados à produção desses compostos bioactivos, que apresentam também actividade antibacteriana e antitumoral.” E acrescenta: “Devido à sua capacidade de degradar compostos xenobióticos, poluentes de solos e águas, pela sua produção de lípidos, compostos surfactantes ou polissacarídeos, com propriedades de melhoria de solos agrícolas, muitos destes microrganismos são benéficos para o ambiente e podem vir a ser utilizados em grande escala.” Dias mais tarde, uma centena de quilómetros a sul, à saída da mina do Lousal, e à medida que a proverbial luz ao fundo do túnel cresce, um céu plúmbeo aguarda os investigadores que terminam mais uma campanha de campo. Entre o ribombar surdo e distante dos trovões, uma chuvada torrencial cai e a neblina densa abate-se, fazendo as silhuetas das torres mineiras parecer os gigantes de Dom Quixote de La Mancha. Sob os pés, o caminho de regresso rapidamente se torna um riacho lamacento, mas o aguaceiro é bem recebido pela equipa após horas na escuridão, a respirar ar viciado. Estiveram num ambiente improvável que, nos próximos anos, se espera que traga à comunidade científica e ao público novas soluções tecnológicas providenciadas pelos minúsculos organismos que fazem das húmidas e escuras galerias a sua casa. FEVEREIRO 2021


«Acreditamos no poder da ciência, da exploração e da divulgação para mudar o mundo.» A National Geographic Society é uma organização global sem fins lucrativos que procura novas fronteiras da exploração, a expansão do conhecimento do planeta e soluções para um futuro mais saudável e sustentável. NATIONAL GEOGRAPHIC MAGAZINE PORTUGAL

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EDITORIAL

COSTA RICA

pequeno país da América Central com uma população de apenas cinco milhões de habitantes, oferece há vários anos pistas interessantes sobre as estratégias que outras nações podem seguir para assegurar um futuro para o planeta. Em Setembro de 2019, a Costa Rica recebeu o Prémio Campeões da Terra, o galardão ambiental mais importante atribuído pela Organização das Nações Unidas. Não foi o reconhecimento de um indivíduo, organização ou iniciativa em concreto, mas sim do país pelo seu papel na conservação da natureza e pelos esforços para promover a descarbonização (o neologismo agora usado para explicar a redução das emissões de carbono nas actividades humanas) da economia e combater as alterações climáticas. Em Fevereiro do mesmo ano, o governo lançou o Plano Nacional de Descarbonização (2018-2050), um roteiro ambicioso que estabelece objectivos de médio e longo prazo para atingir zero emissões líquidas de carbono até 2050, modernizando ao mesmo tempo a economia da Costa Rica. Foi o primeiro país a apresentar um plano deste tipo após a assinatura do Acordo de Paris. O plano inclui medidas para levar a cabo reformas nos transportes, energia, indústria, gestão de resíduos, práticas A C O S TA R I C A ,

Um exemplo de conservação

agrícolas ou uso do solo, entre outras áreas. A Costa Rica já atingiu a meta de produção de 98% da sua energia através de fontes renováveis. Também conseguiu alcançar uma cobertura florestal de 52% do território depois de décadas de desflorestação no século passado. Nesta edição da National Geographic, publicamos uma extensa reportagem sobre a Costa Rica para explicar minuciosamente o exemplo de conservação oferecido pela península de Osa. Nesta maravilha natural, muitos projectos de conservação estão ligados às receitas do turismo, sector que nos últimos meses sofreu muito com a pandemia e colocou fortes constrangimentos na sustentabilidade do modelo. Entrevistámos ainda o presidente da Costa Rica, Carlos Alvarado, para discutir os desafios ambientais que o seu país e o mundo inteiro enfrentam. O líder costa-riquenho entende que o exemplo dado pelo seu país pode servir de referência para outros e por isso promove diversas iniciativas ambientais internacionais. Alvarado afirma que as mudanças climáticas são “o maior desafio da nossa geração”. Está em jogo o futuro do nosso planeta e “estamos a ficar sem tempo para agir”. Obrigado por ler a National Geographic!

A península costa-riquenha de Osa é uma das regiões com maior biodiversidade da Terra. As histórias de conservação deste paraíso natural ajudam a entender os desafios ambientais enfrentados pela Costa Rica e pelo mundo inteiro.

CHARLIE HAMILTON JAMES


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A C OV I D -1 9 R E C O R DA- N O S O P O D E R D E ST RU T I VO D O S V Í RU S , M A S A V I D A , TA L C O M O A C O N H E C E M O S , S E R I A I M P O S S Í V E L S E M E L E S .

Texto de David Quammen Fotografias de Craig Cutler


Embora temidos como agentes de doença, os vírus conseguem também operar maravilhas, moldando a evolução desde o início dos tempos. Cerca de 8% do nosso DNA tem origem em vírus que infectaram os nossos antepassados há muito tempo, introduzindo genes virais nos seus genomas. Alguns destes genes desempenham agora papéis fundamentais nas fases iniciais do desenvolvimento embrionário e na placenta que envolve este feto com 13 semanas de idade. LENNART NILSSON, TT/SCIENCE PHOTO LIBRARY (COMPOSIÇÃO COM DUAS IMAGENS)

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Com um tubarão-zebra a nadar ao seu lado, um mergulhador do Aquário do Pacífico, em Long Beach, mostra a imagem de um bacteriófago, um tipo de vírus que infecta as bactérias. Inofensivos para plantas e animais, os bacteriófagos são essenciais para manter os ecossistemas marinhos saudáveis. Estes vírus pululam nos oceanos da Terra.

O Habitat de Recifes Tropicais e o Jardim de Corais Moles deste oceanário contêm 1.389.875 litros de água, com um número estimado de 5.320 biliões de vírus. Ordenados em fila, esses vírus dariam quase oito voltas à Terra. DOMINIK HREBÍK E PAVEL PLEVKA, LABORATÓRIO DE VIROLOGIA ESTRUTURAL, CEITEC, UNIVERSIDADE MASARYK, REPÚBLICA CHECA (BACTERIÓFAGO)




Um crânio de Neandertal, um dos mais completos descobertos até à data, repousa junto de esqueletos humanos no Museu do Homem, em Paris. Quando deixaram África, os seres humanos modernos cruzaram-se com os Neandertais e adquiriram instantaneamente genes que haviam evoluído ao longo de centenas de milhares de anos. Os cientistas descobriram 152 genes herdados dos Neandertais que contribuem para criar uma resposta imunitária. Agora, concluíram que estes genes permitiram aos nossos antepassados combater os novos vírus que encontraram na Europa. RÉMI BÉNALI


I m a g i n e m o s o

p l a n e t a

s e m v í r u s .

Com uma varinha mágica, fazemo-los desaparecer. O vírus da raiva desaparece de repente. O vírus da poliomielite desaparece. O letal vírus do Ébola desaparece. O vírus do sarampo, o vírus da papeira e várias gripes deixam de existir. Há uma enorme diminuição do sofrimento e da morte humana. O VIH desaparece de repente e, por isso, a catástrofe da Sida nunca aconteceu. O Nipah e o Hendra, o Machupo e o Sin Nombre deixam de existir e os registos de caos nunca aconteceram. A dengue? Desapareceu. Todos os rotavírus desaparecem: uma enorme bênção para as centenas de milhares de crianças em países menos desenvolvidos cuja morte é causada por eles todos os anos. O vírus da Zika? Desapareceu. O vírus da febre-amarela? Desapareceu. A herpes B, que contagia alguns símios e é frequentemente transmitida aos seres humanos? Desapareceu. Já ninguém tem varicela, hepatite, zona ou até a constipação comum. A varíola? Esse vírus foi erradicado na natureza em 1977, mas agora desaparece dos congeladores de alta segurança onde as últimas e assustadoras amostras foram armazenadas. O vírus SARS de 2003, o sinal de alarme que sabemos agora ter assinalado o início da actual época pandémica? Deixou de existir. E, como é óbvio, o nefasto vírus SARS-CoV-2, causador da COVID-19, com os seus efeitos tão surpreendentemente variados, tão complicado, tão perigoso, tão transmissível, desapareceu. Já se sente melhor? As coisas não são tão simples. Este cenário é mais equívoco do que parece. De facto, vivemos num mundo de vírus inimaginavelmente abundantes e diversificados. Só nos oceanos poderá haver mais partículas virais do que estrelas observáveis nos céus. Os mamíferos podem ser portadores de um mínimo de 320 mil espécies de vírus diferentes. Quando lhes somamos os vírus que infectam animais não-mamíferos, plantas, bactérias terrestres e todos os outros possíveis hospedeiros, o total é incalculável. 8

N AT I O N A L G E O G R A P H I C


O neurocientista Jason Shepherd, da Universidade de Utah, segura a imagem de uma reconstrução tridimensional de uma cápsula proteica semelhante a um vírus que desempenha um papel fundamental na cognição e na memória. O gene ARC, que contém o código para criar esta maravilha esférica, foi adquirido pelos vertebrados terrestres a partir de um antepassado semelhante a um vírus há cerca de 400 milhões de anos. A cápsula, que se assemelha aos cápsides que envolvem os genomas virais, transporta informação genética entre os neurónios do cérebro humano (em cima), bem como no cérebro de muitos outros animais. SIMON ERLENDSSON, LABORATÓRIO DE BIOLOGIA MOLECULAR MRC (CÁPSULA); ROBERT CLARK (CÉREBRO)


Além dos números, existem grandes consequências: muitos vírus trazem vantagens adaptativas à vida na Terra, incluindo à vida humana. Não poderíamos prosseguir sem eles. Não teríamos emergido do lodo primordial sem eles. Há duas secções de DNA com origem em vírus que residem actualmente no genoma dos seres humanos e de outros primatas, sem os quais a gravidez seria impossível. Aninhado entre os genes dos animais terrestres, existe DNA viral que ajuda a embalar e armazenar as memórias em minúsculas bolhas de proteína. Outros genes ainda, adoptados de vírus, contribuem para o desenvolvimento dos embriões, para a regulação do sistema imunitário e para a resistência ao cancro, efeitos importantes que só agora começam a ser conhecidos. Na verdade, os vírus desempenharam papéis essenciais na fase inicial das grandes transições evolutivas. Se eliminássemos todos os vírus, como na nossa especulação inicial, a enorme diversidade biológica que agracia a vida no nosso planeta, desabaria como uma belíssima casa de madeira da qual todos os pregos fossem abruptamente retirados. Um vírus é como um parasita, mas, por vezes, esse parasitismo assemelha-se mais a uma simbiose, uma dependência recíproca que beneficia o visitante e o hospedeiro. Tal como o fogo, os vírus são um fenómeno nem sempre exclusivamente bom ou mau: podem trazer vantagens, ou causar destruição. Depende do vírus, da situação, do nosso ponto de referência. São os anjos negros da evolução, formidáveis e terríveis. É isso que os torna tão interessantes. a diversidade dos vírus, temos de começar pelos fundamentos daquilo que são e daquilo que não são. É mais fácil dizer aquilo que não são. Não são células vivas. Uma célula, do tipo que se agrupa em grande número para formar o corpo do leitor, ou o meu, ou o corpo de um polvo, contém maquinaria avançada para construir proteínas, produzir energia e executar outras funções especializadas. Varia consoante a célula em questão pertença a um músculo, a um xilema ou a um neurónio. As bactérias também são células e têm atributos semelhantes, embora muito mais simples. Um vírus não é nada disto. A simples tarefa de dizer o que é um vírus tem sido tão complicada que as definições mudaram ao longo dos últimos 120 anos. Em 1898, o bo-

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A R A AVA L I A R M O S

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tânico holandês Martinus Beijerinck, que estudou o vírus do mosaico do tabaco, conjecturou que se tratava de um líquido infeccioso. Durante algum tempo, a definição de vírus pautou-se maioritariamente pelo seu tamanho: mais pequeno do que uma bactéria, mas, à semelhança desta, capaz de provocar doenças. Mais tarde, pensou-se que os vírus seriam agentes submicroscópicos, contendo apenas um minúsculo genoma, que se reproduzia no interior de células vivas. Hoje sabemos que isso foi apenas o primeiro passo para os perceber melhor. “Vou defender um ponto de vista paradoxal, nomeadamente que os vírus são vírus”, escreveu o biólogo francês André Lwoff em “The Concept of Virus”, um influente ensaio publicado em 1957. Não foi muito útil enquanto definição, mas serviu de aviso, dizendo, de outra forma, que “são singulares”. Estava somente a pigarrear, limpando a voz antes de se lançar numa complexa disquisição. André Lwoff sabia que os vírus são mais fáceis de descrever do que propriamente de definir. Cada partícula viral é composta por um conjunto de instruções genéticas (escritas em DNA, ou nessa outra molécula capaz de conter informação, o RNA), embaladas numa cápsula proteica (conhecida como cápside). Em alguns casos, o cápside encontra-se rodeado de um envelope membranoso (semelhante ao caramelo de uma maçã caramelizada), que o protege e o ajuda a ligar-se a uma célula. Um vírus só consegue copiar-se a si mesmo depois de entrar numa célula e controlar a maquinaria de impressão tridimensional que transforma a informação genética em proteínas. Se a célula hospedeira não tiver sorte, serão fabricadas muitas novas partículas virais, que irrompem, deixando a célula destruída. Esse tipo de danos (como os provocados pelo SARS-CoV-2 nas células epiteliais das vias respiratórias humanas) é parte da forma como um vírus se torna patogénico. No entanto, se a célula hospedeira tiver sorte, talvez o vírus se limite a instalar-se neste confortável posto avançado, ficando dormente ou integrando o seu pequeno genoma no genoma do hospedeiro. Aguardará calmamente. Esta segunda possibilidade tem muitas implicações para a mistura de genomas, para a evolução, até para a nossa noção de identidade enquanto seres humanos.


Num popular livro publicado em 1983, o biólogo britânico Peter Medawar e a sua mulher, Jean, asseveravam: “Não conhecemos nenhum vírus que faça bem. Alguém disse em tempos, e muito bem, que um vírus é ‘uma má notícia embrulhada em proteína’”. Estavam errados. Muitos outros cientistas dessa época também erraram, mas esse ponto de vista continua a ser aceite, e compreensivelmente, por qualquer pessoa cujo conhecimento dos vírus seja limitado a notícias tão más como a gripe e a COVID-19. Hoje em dia, porém, sabemos que alguns vírus fazem bem. Aquilo que está embrulhado na proteína é uma remessa genética que poderá originar bons ou maus resultados. Esta pergunta obriga-nos a olhar de relance para o passado, fixando-nos há quase quatro mil milhões de anos, num tempo em que a vida na Terra estava a emergir de um caldo rudimentar de moléculas longas, compostos orgânicos mais simples e energia. Digamos que algumas das moléculas longas (provavelmente RNA) começaram a replicar-se. A selecção natural darwiniana deve ter começado aqui, quando estas moléculas (os primeiros genomas) se reproduziram, entraram em mutação e evoluíram. Em busca de vantagem competitiva, algumas podem ter encontrado ou criado protecção no interior de membranas e paredes, dando assim origem às primeiras células. Essas células multiplicaram-se por fissão, dividindo-se em duas. Dividiram-se também num sentido mais abrangente, divergindo entre si de maneira a transformarem-se em Bacteria e Archaea, dois dos três domínios da vida celular. O terceiro, Eukarya, surgiu algum tempo mais tarde. Inclui-nos a nós e a todas as outras criaturas (animais, plantas, fungos e alguns micróbios) constituídos por células com anatomia interna complexa. Estes são os três grandes ramos da árvore da vida, tal como se apresenta actualmente. Onde encaixam, então, os vírus nesta narrativa? Serão um quarto grande ramo? Ou uma espécie de visco, um parasita vindo de outro sítio? A maioria das versões da árvore omitem os vírus por completo. Segundo uma escola de pensamento, os vírus não deveriam estar incluídos na árvore da vida porque não estão vivos. É um argumento persistente, dependendo daquilo que consideramos “estar vivo”. Para mim, o mais intrigante é incluir os vírus na grande tenda a que chamamos Vida e depois interrogarmo-nos sobre como lá entraram. Há três grandes hipóteses explicativas das origens evolutivas dos vírus, conhecidas pelos cientistas como "Virus-first" (vírus antes das células), Escape e Redução. Segundo a hipótese do "Virus-first", os vírus surgiram antes das células, compondo-se de alguma forma a partir desse caldo primordial. Segundo a hipótese do Escape, houve genes, ou pedaços de genomas, que escaparam das células, ficaram encapsulados em cápsides de proteína e fugiram ao controlo, descobrindo um novo nicho enquanto parasitas. D E O N D E V I E RA M O S P R I M E I RO S V Í RU S?

Como contar os vírus Para contarmos os vírus existentes no Habitat de Recifes Tropicais e Jardim de Corais Moles do Aquário do Pacífico, pedimos ajuda a Alexandra Rae Santora, uma doutoranda que trabalha com Jed Fuhrman, docente da Universidade do Sul da Califórnia. Alexandra introduziu a amostra num filtro de 0,02 micrómetros que capta bactérias e vírus, utilizando um corante que se fixa no DNA para os tornar visíveis sob um microscópio de epifluorescência. Os organismos maiores são bactérias e os pontos são vírus. Com uma grelha de contagem, a cientista determinou o número de vírus no campo visual. Tendo em conta a dimensão do filtro e volume de água, foi-lhe possível calcular a população por litro.

ALEXANDRA RAE SANTORA


Segundo a hipótese da redução, os vírus surgiram quando algumas células diminuíram de tamanho devido à pressão competitiva (uma vez que é mais fácil replicar-se quando se é mais pequeno e simples), perdendo genes até ficarem reduzidos a um minimalismo tal que só conseguiam sobreviver parasitando células. Existe uma quarta variante, conhecida como hipótese quimérica, inspirada noutra categoria de elementos genéticos: os transposões (por vezes designados por genes saltadores). A geneticista Barbara McClintock deduziu a sua existência em 1948 e essa descoberta valeu-lhe a atribuição de um Prémio Nobel. Estes elementos oportunistas alcançam o seu sucesso darwiniano saltando, simplesmente, de uma parte de uma genoma para outra, em casos raros de uma célula para outra e até de uma espécie para outra, utilizando recursos celulares para se copiarem sucessivamente. A autocópia protege-os da extinção acidental. Acumulam-se de forma invulgar. Constituem cerca de metade do genoma humano. De acordo com esta teoria, os primeiros vírus poderão ter surgido de tais elementos, pedindo emprestadas proteínas celulares para revestirem a sua nudez com cápsides protectores, uma estratégia mais complexa. Todas estas hipóteses têm mérito. Em 2003, novas provas fizeram as opiniões dos especialistas tender para a redução: os vírus gigantes. no interior de amebas, que são eucariotas unicelulares. Estas amebas foram recolhidas em água captada numa torre de arrefecimento em Bradford, em Inglaterra. No interior, havia uma bolha misteriosa. Era suficientemente grande para ser observada com um microscópio óptico (supostamente, os vírus são demasiado pequenos para tal, sendo visíveis apenas através de um microscópio electrónico), e parecia uma bactéria. Os cientistas tentaram detectar genes bacterianos neles contidos, mas não encontraram nenhum. Por fim, uma equipa de investigadores da cidade francesa de Marselha, convidou o vírus a infectar outras amebas, sequenciou o seu genoma, reconheceu-o e chamou-lhe Mimivirus, porque imitava as bactérias, pelo menos em tamanho. Em termos de diâmetro, era enorme, maior do que a mais pequena das bactérias. O seu genoma também era enorme para um vírus, com quase

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V Í R U S G I G A N T E F O I D E S C O B E RT O

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A imagem de um embrião humano com apenas oito células espreita atrás de Joanna Wysocka, da Universidade de Stanford. Joanna e os seus colegas descobriram que um retrovírus endógeno humano (uma sequência genética adquirida a partir de uma infecção viral ancestral) é activado nesta fase do desenvolvimento e produz proteínas. Segundo a equipa, é possível que este gene, conhecido como HERV-K, proteja o embrião de infecções virais e ajude a controlar o desenvolvimento fetal. LENNART NILSSON, TT/SCIENCE PHOTO LIBRARY (EMBRIÃO); MARK WOSSIDLO, UNIVERSIDADE DE STANFORD/ UNIVERSIDADE DE MEDICINA, VIENA (BLASTOCISTO)

1,2 milhões de letras de comprimento, comparado por exemplo, com as 13 mil do vírus da gripe ou as 194 mil da varíola. À semelhança do RNA, o DNA é uma molécula longa, constituída por quatro bases moleculares diferentes, que os cientistas abreviam usando as primeiras letras. Tratava-se de um vírus “impossível”: de natureza viral, mas demasiado grande em termos de escala, como uma borboleta amazónica recém-descoberta, com um metro de envergadura de asas. Jean-Michel Claverie era então um membro sénior dessa equipa marselhesa. A descoberta do Mimivirus “causou muitos problemas”, contou-me. A sequenciação revelou quatro genes


bastante inesperados – genes para codificar enzimas que se presumia serem unicamente celulares e nunca dantes vistos num vírus. Estas enzimas, explicou Jean-Michel, encontram-se entre os componentes que traduzem o código genético de modo a formarem proteínas a partir de aminoácidos. “Por isso, surgiu a pergunta: ‘Para que precisa um vírus daquelas enzimas sofisticadas, normalmente activas em células, se tem a célula ao seu dispor?’” De facto, qual é a necessidade? A inferência lógica é que o Mimivirus as conserva porque a sua linhagem teve origem na redução do genoma de uma célula. O Mimivirus não era fruto do acaso. Vírus gigantes semelhantes não tardaram a ser detectados no mar dos Sargaços e o nome inicial tornou-se um género, Mimivirus, incluindo agora vários gigantes.

Quando o embrião humano já é um blastocisto com várias células (em cima), o HERV-K (tingido de verde) continua presente, mas concentrado em células que se tornarão um bebé. VÍRUS

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Há pelo menos 150 milhões de anos que os vírus infectam mamíferos, deixando neles genes que conduziram a um avanço evolutivo extraordinário: a placenta, que permite que os nutrientes e o oxigénio cheguem ao feto e que os resíduos e o dióxido de carbono saiam. Os seres humanos e outros mamíferos com placentas podem deslocar-se com as suas crias ainda não nascidas, tornando-as menos vulneráveis aos predadores. Nos seres humanos, dois genes com origem em vírus (o sincitina-1 e o sincitina-2) ajudam a formar a membrana placentária que se agarra ao útero. Esta membrana também pode ajudar a impedir que o sistema imunitário da progenitora ataque o feto como objecto estranho. LENNART NILSSON, TT/SCIENCE PHOTO LIBRARY (FETO COM 16 SEMANAS). MODELO: MELODY CARBALLO, COM 35 SEMANAS NA IMAGEM

NOTA DO EDITOR

Esta fotografia de um feto, nas páginas 2-3, e a fotografia do embrião da página 13 foram captadas pelo fotógrafo sueco Lennart Nilsson (1922-2017). O seu trabalho pioneiro de documentação da vida antes do nascimento foi mostrado pela primeira vez na revista Life, em 1965, e continua a ser insuperável.


Depois, a equipa de Marselha descobriu outros dois gigantes (mais uma vez, parasitas de amebas): um colhido em sedimentos marinhos de baixa profundidade, ao largo da costa do Chile, o outro numa lagoa na Austrália. Com o dobro do tamanho do Mimivirus, ainda mais anómalos, foram atribuídos a um género diferente, ao qual Jean-Michel Claverie e os seus colegas chamaram Pandoravirus, numa evocação da caixa de Pandora mitológica, como explicaram em 2013, devido “às surpresas que esperavam encontrar a partir do seu estudo aprofundado”. O co-autor sénior do ensaio foi Chantal Abergel, virologista e bióloga estrutural (bem como esposa de Jean-Michel). Referindo-se ao Pandoravirus, Chantal disse-me, com uma gargalhada cansada: “Traziam grandes desafios. Eram os meus bebés.” Explicou-me como fora difícil dizer o que eram aquelas criaturas – tão diferentes das células, tão diferentes dos vírus clássicos, contendo tantos genes em nada parecidos com qualquer coisa antes vista. “Tudo aquilo torna-os fascinantes, mas também misteriosos.” Durante algum tempo, chamou-lhes NLF: new life-form [novas formas de vida]. Contudo, ao observar que não se replicavam por fissão, Chantal e os colegas aperceberam-se de que eram vírus. Os maiores e mais desconcertantes encontrados até à data. Estas descobertas sugeriram ao grupo de Marselha uma variante ousada da hipótese da redução. Talvez os vírus tivessem origem na redução de células ancestrais, mas células de um tipo que já não existe na Terra. Este tipo de “protocélula” ancestral talvez fosse diferente do antepassado universal comum a todas as células actualmente conhecidas e tivesse competido com ele. Talvez estas protocélulas saíssem derrotadas dessa competição e fossem excluídas de todos os nichos disponíveis para as formas de vida independentes. Poderão ter sobrevivido como parasitas noutras células, reduzindo os seus genomas e transformando-se naquilo a que chamamos vírus. Desse reino celular desaparecido, talvez restem apenas os vírus, como as cabeças de pedra gigantes da ilha da Páscoa. serviu de inspiração a outros cientistas, em especial Patrick Forterre, do Instituto Pasteur em Paris, que formularam novas ideias sobre o que são os vírus e quais os papéis construtivos que representaram e continuam a representar na evolução e funções da vida celular. Patrick argumentou que as definições anteriores de “vírus” eram inadequadas porque os cientistas confundiam as partículas virais (pedaços de genoma envoltos em cápsides, devidamente conhecidos como viriões) com a totalidade de um vírus. No seu entender, isso estava tão errado como confundir uma semente com uma planta ou um esporo com um cogumelo. O virião é apenas o mecanismo de dispersão, afirmou. A totalidade do vírus também inclui a sua presença numa célula, assim que assume o controlo da maquinaria celular para replicar mais viriões: mais sementes suas. Ver as duas fases juntas é ver que a célula se tornou efectivamente parte da história da vida do vírus.

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D E S C O B E RTA D O S V Í R U S G I G A N T E S

VÍRUS

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Os pulmões preservados de uma menina com 2 anos, que morreu em 1912 no Hospital Charité, em Berlim, comprovam que o vírus do sarampo foi transmitido de uma vaca para um ser humano no século IV a.C., mais de mil anos antes do que outrora se pensou. O biólogo evolutivo Sébastien Calvignac-Spencer, do Instituto Robert Koch, encontrou este espécime no Museu de História Médica de Berlim. Procedeu à sequenciação deste genoma do sarampo, o mais antigo que se conhece, e utilizou-o (bem como outros genomas do sarampo) para determinar em que momento divergiu do vírus bovino. MARKUS BACHMANN


Patrick Forterre reforçou essa ideia inventando um novo nome para a entidade conjunta: virocélula. Esta ideia também resolvia o enigma do vivo-ou-não-vivo. Segundo o investigador, um vírus está vivo quando é uma virocélula, apesar de os seus viriões serem inanimados. “A ideia subjacente ao conceito da virocélula era sobretudo centrar-me nesta fase intracelular”, disse-me numa videochamada a partir de Paris. Trata-se da fase delicada em que a célula infectada, tal como um zombie, obedece às instruções do vírus, lendo o genoma viral e replicando-o, mas nem sempre sem falhas, tropeções e erros. Durante esse processo, “novos genes podem surgir de um genoma viral. E eu considero isto muito importante”, acrescentou Patrick. Os vírus trazem inovação, mas as células reagem com as suas próprias inovações defensivas, como a parede celular ou o núcleo, numa corrida rumo a maior complexidade. Muitos cientistas presumiram que os vírus alcançaram as suas principais alterações evolutivas através do paradigma do “vírus carteirista”, roubando DNA a um e outro organismo infectado para, em seguida, usarem as peças roubadas no genoma viral. Patrick Forterre argumenta que o roubo pode, com mais frequência, acontecer ao contrário e serem as células que roubam genes aos vírus. Uma visão ainda mais arrebatadora, partilhada por Patrick, Jean-Michel e outros cientistas da área, incluindo Gustavo Caetano-Anollés da Universidade de Illinois, defende que os vírus são a mais importante fonte de diversidade genética. Segundo esta linha de raciocínio, os vírus enriqueceram as opções evolutivas das criaturas celulares ao longo dos últimos milhares de milhões de anos, depositando novo material genético nos seus genomas. Este processo bizarro é uma versão de um fenómeno conhecido como transferência horizontal de genes: genes fluindo lateralmente e atravessando fronteiras entre diferentes linhagens. A transferência vertical de genes é a forma hereditária mais comum: dos progenitores para os seus descendentes. O fluxo de genes virais para os genomas celulares tem sido “impressionante”, argumentaram Patrick Forterre e um co-autor num artigo recente. Essa cicunstância pode ajudar a explicar algumas grandes transições evolutivas, como a origem do DNA, a origem do núcleo celular nas criaturas complexas, a origem das paredes celulares e possivelmente a divergência daqueles três grandes ramos da árvore da vida. as discussões interessantes com cientistas, por vezes, realizavam-se em contactos directos, face a face. Há três anos, voei de Montana nos Estados Unidos para Paris porque queria conversar com um homem sobre um vírus e um gene. Esse homem era Thierry Heidmann e o gene chamava-se sincitina-2. Thierry e o seu grupo descobriram-no, examinando o genoma humano em busca de pedaços de DNA que parecessem o tipo de gene que um vírus usaria para produzir o seu envelope. Encontraram (Continua na pg. 22) cerca de vinte.

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N T E S DA PA N D E M I A ,

VÍRUS

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PEQUENOs E SIMPLES Os vírus são apresentados com 20 mil vezes o seu tamanho real. A esta escala, a largura de um cabelo humano teria 50 vezes a altura desta página.

Cápside

Nilo Ocidental 50nm

DNA

Zika Cerca de 55 milhões 50nm de vírus de Zika poderiam caber no ponto final desta frase.

Aumentado x10

Vírus adeno-associado 20 nanómetros (nm) de diâmetro

INSTRUÇÕES VIRAIS

uso do genoma

Gripe A vacinação é semelhante a um treino para o 80-100nm sistema imunitário. A exposição a um vírus enfraquecido, a um vírus morto ou ao componente de um vírus ensina o organismo a reconhecer esse invasor específico e a atacá-lo. Se o vírus for encontrado, o sistema imunitário será capaz de reagir mais depressa. O sarampo e a gripe são vírus que as vacinas conseguiram controlar com sucesso.

Os cientistas conseguem agora inserir DNA no genoma de muitos vírus rudimentares e, em seguida, utilizá-los para disponibilizar esse material a células específicas. Esta investigação promissora poderá conduzir a métodos mais seguros de terapia genética.

Sarampo 80-100nm

Vírus marinhos Estes vírus minúsculos infectam os Archaea, microrganismos oceânicos que oxidam a amónia e desempenham um papel fundamental no ciclo do carbono e do azoto. As infecções regulares dos Archaea por estes vírus podem contribuir para regulação destes ciclos, que têm impacte em ecossistemas inteiros.

Vírus fusiforme de Nitrosopumilus (NSV) 65nm

IMPULSIONADORES DA EVOLUÇÃO Transmitidos por roedores, os arenavírus costumam atravessar a membrana celular, utilizando receptores que importam ferro para as células. Em resposta aos vírus, estes receptores têm sido continuamente modificados, num exemplo de como os vírus moldam a evolução da vida. Arenavírus 80-100nm

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Vírus de Imunodeficiência Humana (VIH) 80-100nm

Dengue 50nm

Vírus transmitidos por mosquitos

EDITORES VIRAIS

Os vírus de tamanho médio, como o vírus do Nilo Ocidental e o da dengue, são transmitidos para os seres humanos pela saliva da picada de um mosquito e deslocam-se pelo organismo através da corrente sanguínea.

Os vírus entram numa célula e assumem o controlo sobre a sua maquinaria para se replicarem, mas os retrovírus como o VIH fazem-no inserindo os seus genes no DNA da célula. Se o fizerem em células germinativas, o DNA poderá integrar o genoma do hospedeiro. Existem milhares de fragmentos de retrovírus ancestrais no genoma humano. Os cientistas descobriram que uma membrana fundamental da placenta dos mamíferos evoluiu com a ajuda destes genes retrovirais ancestrais.

Coronavírus São conhecidos sete coronavírus que infectam os seres humanos: um deles deu origem à actual pandemia. O seu nome deve-se às suas proteínas com espigões que os ajudam a atacar as células e a propagar-se através de gotículas respiratórias e aerossóis.

SARS-CoV-1 80-120nm

Envelope

RNA

Espigão de proteína

SARS-CoV-2 (causa COVID-19) 120nm

MERS-CoV 120-135nm

As células são alicerces da vida, mas os vírus, com toda a sua diversidade genética, podem partilhar esse papel. Os primeiros vírus e células do nosso planeta evoluíram provavelmente numa relação simbiótica de predador e presa. As provas existentes sugerem mesmo que os vírus talvez começassem por ser células, mas perderam a sua autonomia à medida que foram evoluindo para prosperarem como parasitas de outras células. Esta relação de dependência deu início a uma longa história de co-evolução. Vivendo nas células, os vírus obrigaram os hospedeiros a adaptar-se e essas alterações obrigaram os vírus a adaptar-se, num ciclo interminável de tentativas de superação mútua.


Bacteriófagos À medida que os vírus se tornam maiores, também se tornam mais sofisticados. Os bacteriófagos são vírus que atacam bactérias. Este (à direita) infecta a E. coli. Os bacteriófagos têm cabeças complexas que transportam DNA e estruturas de cauda complexas que identificam e se fixam às células hospedeiras para, em seguida, injectarem material genético viral através de tubos especializados.

Varíola 325 x 260nm

Vírus do Ébola 970 x 80 nm

ADAPTADORES letais Os vírus grandes que infectam os seres humanos, como a varíola e o Ébola, tendem a apresentar uma taxa de mortalidade elevada. Isso deve-se provavelmente ao facto de muitos vírus maiores transportarem proteínas virais, além dos seus próprios genes, que sobrecarregam e desactivam as defesas do hospedeiro.

Raiva 75 x 180nm

UMA ÁRVORE DA VIDA MAIS INCLUSIVA?

Há milhares de milhões de anos, a vida na Terra separou-se em três ramos: Archaea, Bacteria e Eukarya. Investigações recentes sugerem que os vírus devem ser considerados um quarto ramo. Este diagrama, baseado na comparação de formas de proteínas de vírus e organismos celulares, mostra que os vírus partilham muitas características primitivas com antepassados celulares ancestrais e, provavelmente, evoluíram em paralelo com eles.

ARCHAEA Organismos monocelulares que partilham características com Eukarya e Bacteria e prosperam em ambientes extremos.

O M P T E

EUKARYA Organismos mono ou multicelulares cujas células têm núcleo organizado.

BACTERIA Organismos monocelulares sem núcleo organizado de Eukarya Organismo celular

VÍRUS


GRANDES E COMPLEXOS

Bacteriófago T4 90 x 200nm Mimivirus 750nm

PISTAS IMPORTANTES SOBRE AS ORIGENS PRIMITIVAS

Neste diagrama, a distância entre vírus e organismos indica a familiaridade entre cada um deles.

A hipótese da redução parte do pressuposto de que os vírus diminuíram de tamanho a fim de conseguirem servir-se da maquinaria do hospedeiro para se reproduzirem. Novas provas em defesa desta ideia chegaram sob a forma de vírus gigantes da família Mimiviridae. Eles instalam “fábricas de vírus” nas células hospedeiras que podem assemelhar-se a algumas das mais antigas interacções entre vírus e células.

JASON TREAT E EVE CONANT; MESA SCHUMACHER ARTE: MARKOS KAY. FONTES: GUSTAVO CAETANO-ANOLLÉS, UNIVERSIDADE DE ILLINOIS; MYA BREITBART, UNIVERSIDADE DO SUL DA FLORIDA; EDWARD CHUONG, UNIVERSIDADE DO COLORADO


“Dois deles, pelo menos, revelaram-se muito importantes”, disse-me. Eram importantes porque tinham capacidade para desempenhar funções essenciais à gravidez humana. Eram o sincitina-1, descoberto por outros cientistas, e o sincitina-2, descoberto pelo grupo de Thierry Heidmann. A forma como estes genes virais se tornaram parte do genoma humano e os fins para os quais se adaptaram são pormenores de uma história impressionante que começa com o conceito dos retrovírus endógenos humanos. Um retrovírus é um vírus com um genoma de RNA que funciona numa direcção oposta à habitual (daí o retro). Em vez de utilizarem DNA para fabricar RNA, que por sua vez actua como mensageiro enviado à impressora 3D para fabricar proteínas, estes vírus utilizam o seu RNA para fazer DNA e depois integram-no no genoma da célula infectada. O VIH, por exemplo, é um retrovírus que infecta as células imunitárias humanas, inserindo o seu genoma no genoma da célula, onde permanece latente. Em determinado momento, o DNA viral é activado, tornando-se um modelo para a produção de muitos mais viriões de VIH, que matam a célula à medida que dela irrompem. Eis a grande reviravolta: alguns retrovírus infectam as células reprodutoras (as células que produzem os óvulos ou o esperma) e, ao fazê-lo, inserem o seu DNA no genoma hereditário do hospedeiro. Estas secções inseridas são retrovírus “endógenos” (interiorizados) e, quando incorporadas em genomas humanos, são conhecidas como retrovírus endógenos humanos (HERV). Se não se lembrarem de mais nada deste artigo, talvez seja bom os leitores recordarem o seguinte: 8% do genoma humano é constituído por este DNA viral, incorporado na nossa linhagem por meio de retrovírus, ao longo da evolução. Cada um de nós é 1/12 HERV. O gene sincitina-2 é um dos mais importantes dessas secções. Estive quatro horas no gabinete de Thierry Heidmann enquanto ele me explicava a origem e as funções deste gene específico, com o computador ao lado para me mostrar tabelas e gráficos. A essência é quase simples. Um gene que originalmente ajudou um vírus a fundir-se com células hospedeiras conseguiu entrar no genoma de animais ancestrais. Depois, foi reformulado para gerar uma proteína semelhante, que ajuda a fundir as células de modo a criar uma estrutura especial em redor daquilo que viria a ser a placenta, criando assim uma nova possibilidade para alguns ani22

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mais: a gravidez interna. Essa inovação foi muito importante para a história evolutiva, permitindo que as fêmeas transportassem os seus descendentes de um lado para o outro dentro do corpo, em vez de os abandonarem, vulneráveis, num local, como os ovos deixados num ninho. O primeiro gene deste tipo com origem num retrovírus endógeno acabou por ser substituído por outros, semelhantes, mas mais adequados ao desempenho da função. Ao longo do tempo, a configuração deste novo modo de reprodução melhorou e a placenta evoluiu. Entre estes genes virais adquiridos, encontra-se a sincitina-2, uma de duas sincitinas presentes nos seres humanos que ajuda a fundir células para formar uma camada placentária adjacente ao útero. Essa estrutura singular, funcionando como mediadora entre progenitora e feto, permite a entrada de nutrientes e oxigénio, a saída de resíduos e dióxido de carbono, e, provavelmente, protege o feto de ser atacado pelo sistema imunitário da progenitora. É quase um milagre de eficiência de design, no qual a evolução moldou um componente viral, transformando-o num componente humano. Fiz uma pausa para almoçar e depois prosseguimos a conversa durante mais duas horas. Por fim, com o cérebro a zumbir e o bloco de notas cheio, perguntei-lhe: o que diz tudo isto sobre o modo como a evolução funciona? Ele riu-se com gosto e eu ri-me também, maravilhado e cansado. “Os nossos genes não são apenas os nossos genes”, resumiu. “Os nossos genes também são genes retrovirais.” desses retrovírus, que nos deram a sincitina-2, é apenas um exemplo, entre outros, de padrões grandiosos. Outro é o gene ARC, que se exprime como resposta à actividade neuronal em mamíferos e moscas. É muito parecido com um gene retroviral com código para um cápside proteico. Investigações recentes de várias equipas, incluindo uma liderada por Jason Shepherd, da Universidade de Utah, sugere que o ARC desempenha um papel essencial no armazenamento de informação dentro das redes neurais. Dito de outra maneira: na memória. O ARC parece fazê-lo empacotando informação derivada da experiência (incorporada como RNA) nas pequenas bolsas proteicas que a transportam de um neurónio para outro. Na Faculdade de Medicina da Universidade de Stanford, Joanna Wysocka, juntamente com O C O N T R I B U TO


um grupo de colegas, descobriu provas da presença de fragmentos virais produzidos por outro retrovírus endógeno, conhecido como HERV-K, em embriões humanos na fase mais incipiente, que poderão desempenhar um papel positivo na protecção do embrião contra infecções virais, contribuir para o controlo do desenvolvimento fetal – ou ambos. Além disso, o grupo centrou o seu estudo num transposão específico que parece ter-se introduzido no genoma humano como uma espécie de secção de prólogo ao HERV-K e depois descoberto formas de se copiar e saltar para outras partes do genoma, encontrando-se actualmente presente em 697 cópias dispersas. Estas cópias parecem contribuir para a activação de quase 300 genes humanos. “Para mim, aquilo que é verdadeiramente incrível é que os HERV constituem cerca de 8% do genoma humano”, disse Joanna. Há uma parte do nosso ser que, no essêncial, é “o cemitério de antigas infecções retrovirais”. É ainda mais assombroso ver como, nas palavras da minha interlocutora, “a nossa história de infecções retrovirais passadas continua a moldar a nossa evolução enquanto espécie”. Se 8% do meu (e do seu) genoma é DNA retroviral e metade deste é composto por transposões, então talvez a própria noção de individualidade humana (muito menos de supremacia humana) seja menos sólida do que costumamos pensar. óbvia desta agilidade evolutiva é que, por vezes, os vírus podem mudar de hospedeiro, saltando de uma espécie para outra, tornando-se patógenos bem-sucedidos nesse novo e estranho hospedeiro. Chama-se a isso zoonose e é assim que surge a maior parte das novas doenças humanas infecciosas, através de vírus adquiridos de um hospedeiro animal não-humano. No hospedeiro original (cientificamente conhecido como hospedeiro reservatório), um vírus poderia ter-se comportado sossegadamente, mantendo-se pouco abundante e com pouco impacte, durante milhares de anos. Poderia ter atingido um conforto evolutivo no hospedeiro reservatório, aceitando a sua segurança em troca de não causar problemas. Num novo hospedeiro, porém, como um humano, o acordo prévio não é obrigatoriamente respeitado. O vírus pode irromper abundantemente, provocando desconforto ou sofrimento na vítima. Se, além de replicar-se, o vírus conseguir propagar-se, de ser humano para ser humano, contagiando algumas dezenas de outros indivíduos, teremos um surto. Se contagiar uma comunidade ou um país, teremos uma epidemia. Se der a volta ao mundo, teremos uma pandemia. E assim voltamos ao SARS-CoV-2. Alguns tipos de vírus têm mais probabilidade de causar pandemias do que outros. Perto do topo da lista dos candidatos mais preocupantes encontram-se os coronavírus, devido à natureza dos seus genomas, à sua capacidade para evoluir e ao seu historial de causar doenças humanas graves, como a SARS (síndrome respiratória aguda grave) em 2002-2003 e a MERS (síndrome respiratória (Continua na pg. 29) do Médio Oriente) em 2012 e 2015.

A

D E S VA N TAG E M

O fluxo de genes virais para os genomas celulares tem sido “impressionante”, dizem os cientistas, e poderá ajudar a explicar algumas grandes transições evolutivas, como a origem do DNA, do núcleo e das paredes celulares e até a separação dos três grandes domínios da vida.


Os cientistas ainda estão a tentar descobrir a origem do coronavírus conhecido como SARS-CoV-2. O morcego-de-ferradura-grande e o pangolim-chinês (à esquerda) foram contemplados como possíveis hospedeiros. Vírus encontrados em ambas as espécies são parentes do vírus pandémico. Maciej Boni, professor associado de biologia da Universidade Penn State, e uma equipa internacional, conseguiram rastrear o vírus até há cerca de cem anos, quando os 24

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coronavírus dos pangolins divergiram dos coronavírus dos morcegos. Há 40 a 70 anos, o vírus SARS-CoV-2 poderá ter evoluído a partir dos vírus de morcegos conhecidos mais estreitamente aparentados. “Sabe-se pouco sobre a diversidade destes vírus”, disse Maciej Boni, acrescentando que foram identificadas dezenas de milhares de genomas de vírus de gripes avícolas, mas menos de cem são conhecidos como coronavírus. “Em princípio, poderá haver vírus mais

próximos do SARS-CoV-2 ou muito parecidos com o SARS-CoV-2, a circular entre morcegos: no entanto, ainda não fizemos estudos suficientes em morcegos e não sabemos.” Este morcego (morcego-de-ferradura-grande) foi capturado na região de Tashkent, no Usbequistão, em 1921. O pangolim (Manis pentadactyla) veio da província chinesa de Guizhou, em 1945. FOTOGRAFADO NO MUSEU DE HISTÓRIA NATURAL DO CONDADO DE LOS ANGELES (MORCEGO E PANGOLIM)


VÍRUS

25


O funcionamento interno de um equipamento de criomicroscopia electrónica mostra a sua complexidade tecnológica. Capaz de criar imagens de vírus quase a nível atómico, a três dimensões, o microscópio revelou a familiar estrutura com espigões do SARS-CoV-2. Um monitor utilizado como microscópio (à direita) mostra uma secção transversal do vírus e um modelo informático 3D. LEO HILLIER, LABORATÓRIO DE BIOLOGIA MOLECULAR MRC; ZUNLONG KE, LESLEY MCKEANE E JOHN BRIGGS, LABORATÓRIO DE BIOLOGIA MOLECULAR MRC (IMAGENS DE MONITOR)



Esta fatia da reconstituição do SARS-CoV-2 a partir de tomografia crio-electrónica (em cima) mostra que os espigões formam ângulos estranhos. Estes espigões têm três articulações (anca, joelho e tornozelo) que lhes permitem mudar de posição, talvez para aumentar a probabilidade de se fixarem numa célula. Um modelo molecular com resolução atómica (à direita) mostra as proteínas que compõem o espigão, com cadeias idênticas mostradas a vermelho, laranja e amarelo, as quais, por sua vez, estão protegidas por cadeias de glicanos (moléculas semelhantes a açúcar tingidas de azul) que escondem o espigão dos anticorpos humanos quepoderiamdestruí-lo.Acompreensão da estrutura do espigão é fundamental para a eficácia das vacinas. MATEUSZ SIKORA, INSTITUTO MAX PLANCK DE BIOFÍSICA (RENDERIZAÇÃO DO MODELO MOLECULAR); POR CORTESIA DE BEATA TUROŇOVÁ E MARTIN BECK, LABORATÓRIO EUROPEU DE BIOLOGIA MOLECULAR (CORTE TRANSVERSAL DE SARS-COV-2)


Por isso, quando a frase “novo coronavírus” começou a ser usada para descrever o agente que estava a causar trilhos de doença em Wuhan, na China, aquelas duas palavras foram suficientes para que os cientistas de todo o mundo estremecessem. Os coronavírus pertencem a uma categoria tristemente célebre de vírus, os vírus de RNA de cadeia simples, que incluem as gripes, o Ébola, a raiva, o sarampo, o Nipah, os hantavírus e os retrovírus. A sua má reputação deve-se, em parte, ao facto de um genoma de RNA de cadeia simples ser propenso a mutações frequentes à medida que o vírus se replica e de essas mutações gerarem uma enorme variedade genética aleatória com a qual a selecção natural pode trabalhar. No entanto, os coronavírus evoluem com relativa lentidão, para vírus de RNA. Têm genomas relativamente longos (o genoma do SARS-CoV-2 tem cerca de 30 mil letras), mas os seus genomas mudam menos velozmente do que outros, por possuírem uma enzima de verificação que corrige as mutações. No entanto, conseguem fazer um truque chamado recombinação, através do qual duas estirpes de coronavírus, infectando a mesma célula, trocam entre si secções dos seus genomas, dando origem a uma terceira estirpe híbrida de coronavírus. Pode ter sido isso que deu origem ao novo coronavírus: o SARS-CoV-2. O vírus ancestral residiria provavelmente num morcego, possivelmente um morcego-de-ferradura, pertencente a um género de pequenas criaturas insectívoras com focinhos em forma de ferradura que costumam ser portadores de coronavírus. Se tiver ocorrido recombinação, acrescentando alguns novos e fundamentais elementos de um coronavírus diferente, isto poderá ter ocorrido num morcego ou noutro animal. Os pangolins foram uma das espécies sugeridas, mas há mais candidatas. Os cientistas estão a explorar estas e outras possibilidades, sequenciando e comparando genomas dos vírus encontrados em vários potenciais hospedeiros. Até à data, tudo o que sabemos é que o SARS-CoV-2, tal como hoje existe nos seres humanos, é um vírus subtil capaz de continuar a evoluir. os vírus dão e os vírus tiram. Talvez sejam difíceis de enquadrar na árvore da vida porque, afinal de contas, a história da vida não tem a forma de uma árvore. A analogia arbórea é apenas a nossa forma tradicional de ilustrar a evolução, tornada canónica por Charles Darwin. Mas Darwin, por genial que fosse, não sabia nada sobre transferência horizontal de genes. Na verdade, não sabia nada sobre genes. Não sabia nada sobre vírus. Tudo é muito complicado, percebemos agora. Até os vírus, que parecem tão simples à primeira vista, são muito complicados. Se, por um lado, os seres humanos conseguem perceber os vírus em toda a sua complexidade, tendo uma visão mais clara do emaranhado de ligações existentes no mundo natural, por outro, quando reflectem sobre os seus próprios conteúdos virais perdem parte do seu distanciamento sublime. Deixo então aos leitores a tarefa de decidir se isso são vantagens ou desvantagens. j

P

OR CONSEGUINTE,

VÍRUS

29


Duas araras-escarlate pintam de cor um feto arbóreo (Schizolobium parahyba) na península de Osa, na Costa Rica. A espécie está ameaçada devido à fragmentação de habitat, captura e tráfico para animais de estimação, mas a população de Osa tem prosperado. A arara tornou-se o símbolo de uma história de sucesso. DAVID PATTYN NPL / MINDEN PICTURES


TEXTO DE JAMIE SHREEVE F O T O G R A F I A S D E C H A R L I E H A M I LTO N JA M E S

PRESERVAR O PARAÍSO A P E N Í N S U L A D E O S A , N A C O S TA R I C A , É UM MODELO

DE

C O N S E R VA Ç Ã O .

AG O R A , A C OV I D -1 9 E S TÁ A PÔR

À

P R O VA

O

FUTURO

D E S TA M A R AV I L H A N AT U R A L .



A floresta invade a praia de Cabo Matapalo, famosa entre os surfistas, na extremidade meridional da península de Osa. Os esforços de conservação estão associados ao fluxo de receitas do turismo, que se viu reduzido a quase nada pela pandemia.


Q

se mudou para a península de Osa, na Costa Rica, já tinha cinco filhos, seis galinhas, um cão e 700 colones, o equivalente a cerca de um dólar na altura. Estava então grávida pela sexta vez. Celedonia lembra-se bem da razão pela qual veio: terrenos gratuitos. Nessa época, a península, com a forma de um cotovelo com 1.800 quilómetros quadrados na costa do Pacífico Sul da Costa Rica, era uma floresta de fronteira, separada do continente por uma faixa quase impenetrável de mangues e acessível sobretudo por barco. Celedonia trouxe também consigo o namorado, mas ele “odiava a natureza e fugia dos insectos”, recorda. Nessa altura, Celedonia pegou num machado e limpou, ela própria, o terreno que escolheu. “Enquanto abatia as árvores, pensava no tempo que teriam demorado a crescer e eu cortei-as num instante”, diz. “Foi isso que fizemos. Abatemos a floresta para vivermos.” Cerca de 40 anos mais tarde, Doña Celedonia, como é respeitosamente tratada por todos, ainda vive no mesmo sítio, numa vila chamada La Palma. Quando a conheci, num dia de Junho de 2019, vestia calças de ganga e uma blusa branca com padrão floral. Mostrou-me o jardim e a casa e, a avaliar pela sua passada confiante, ninguém diria que é quase cega. Q UA N D O C E L E D O N I A T E L L E Z

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N AT I O N A L G E O G R A P H I C

A botânica Ruthmery Pillco Huarcaya recolhe sementes de uma ucuuba (Virola surinamensis) nas secções de floresta de crescimento antigo ainda existentes em Osa. As novas árvores resultantes das sementes serão plantadas em zonas degradadas, na esperança de atraírem macacos-aranha e outros animais que dispersem sementes. “As árvores que plantarmos poderão morrer, mas as árvores plantadas pelos animais vão recriar a floresta original”, acredita Ruthmery.


Para Doña Celedonia, era um dia de redenção: em vez de eliminar a floresta, estava a trazer um pouco dela de volta. A seu convite, uma organização sem fins lucrativos chamada Osa Conservation convocara grupos locais e governamentais para plantar 1.700 rebentos de árvores nativas na sua quinta de nove hectares. No Dia da Árvore, efeméride celebrada anualmente na Costa Rica, muitos dos seus seis filhos, 16 netos e 14 bisnetos reuniram-se para comemorar, juntamente com grande parte da comunidade. Houve espectáculos, discursos, jogos e danças realizadas por crianças vestidas com os coloridos trajes tradicionais. A National Geographic Society, uma organização sem fins lucrativos, ajudou a financiar esta reportagem.

Por volta do meio-dia, o grupo desceu até ao riacho para ver Doña Celedonia plantar a última árvore simbólica. O seu neto Pablo escavou um buraco. Doña Celedonia disse: “Talvez devolva a minha quinta à floresta.” Osa é uma das áreas mais férteis do planeta. Apesar de ocupar menos de 0,001% da superfície da Terra, alberga 2,5% das suas formas de vida. A variedade de habitats da península (floresta nebulosa, floresta húmida de baixa altitude, pântanos, mangues, lagoas de água doce e lagoas costeiras) é um refúgio para milhares de espécies, incluindo populações de araras-escarlate, macacos-aranha e outras espécies cujo efectivo está a diminuir na maior parte do seu território histórico. H E C TA R E A H E C TA R E ,

P R E S E R VA R O P A R A Í S O

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Cinco espécies de felinos selvagens deambulam pela floresta, quatro espécies de tartarugas-marinhas sobem desajeitadamente os areais das praias do Pacífico para ali porem os seus ovos. A leste, tubarões-martelo e baleias-de-bossa sobem o fiorde do golfo Dulce para parirem. Contudo, o ecossistema de Osa é frágil. Já esteve à beira da destruição duas vezes no passado devido ao crescente impacte das comunidades que abatiam a floresta para viverem, ou garimpavam os rios de Osa em busca de alguns gramas de ouro. Nos últimos anos, algumas comunidades de Osa tornaram-se defensoras apaixonadas da natureza que outrora exploraram: em vez de abaterem árvores ancestrais para obterem madeira, abrem trilhos para ecoturistas e, em vez de abaterem ilegalmente animais selvagens, perseguem os caçadores furtivos. Agora, porém, a região enfrenta uma nova ameaça. A pandemia de COVID-19 devastou a economia da Costa Rica, fechando a torneira turística que financiara a mudança para estilos de vida ambientalmente sustentáveis. Os corações e as mentes dos habitantes de Osa estão a virar-se para uma ética de conservação, mas eles continuam a ter estômagos. “Os habitantes locais são próximos da natureza”, diz Hilary Brumberg, funcionária da Osa Conservation que liderou o projecto de reflorestação na quinta de Doña Celedonia. “Mas quando se trata de alimentar a família ou de proteger a natureza, a família vem primeiro.” de 37 anos, juntou-se à organização em 2017, depois de ter passado seis anos numa batalha desencorajadora pela conservação na Amazónia peruana. “Quando cheguei a Osa, voltei a sentir esperança”, contou enquanto tomávamos o pequeno-almoço na estação biológica da Osa Conservation, no Sudoeste da península. “Na Amazónia, eu via macacos-aranha uma ou duas vezes por ano. Aqui vejo-os uma ou duas vezes por dia. Foi uma experiência transformadora.” Andy Whitworth apressou-se a atribuir alguns dos louros do sucesso de Osa às políticas de reflorestação pioneiras da Costa Rica. Ao longo da última metade do século XX, as florestas que outrora cobriram 75% do país foram sistematicamente despidas devido à extracção de madeira, à criação de gado e à plantação de culturas como a banana e o ananás. Em menos de uma geração, apenas um quinto da terra se encontrava coberta por árvores. A N DY W H I T WO RT H ,

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N AT I O N A L G E O G R A P H I C

Em meados da década de 1990, porém, o Estado tomou medidas para inverter a tendência. Aprovou uma lei proibindo o abate de árvores sem um plano de gestão pormenorizado e criou um programa para pagar aos proprietários de terras para as manterem florestadas e plantarem árvores novas, financiado por um imposto nacional sobre a gasolina. Em apenas 25 anos, o coberto florestal da Costa Rica mais do que duplicou e o país vai bem encaminhado no seu objectivo: ter árvores a revestir 60% do seu território até 2030. Se a companhia de electricidade abater uma árvore, terá de fornecer fundos para plantar cinco, explicou Andy. Pode ser louvável, mas dificilmente é um fim em si mesmo, comentou. “Limitarmo-nos a promover o coberto florestal é perigoso. Podemos acabar com uma floresta vazia. Aquilo em que estamos focados é na recuperação de todo o ecossistema.” Nos últimos anos, uma rede de armadilhas fotográficas coordenada pela Osa Conservation e outros grupos locais, tem revelado como as florestas estão pujantes de vida. Um censo da década de 1990 quase não descobrira animais selvagens em Osa fora do Parque Nacional de Corcovado, que abrange a maior parte da região ocidental da península. Agora, detectam-se animais onde antes estes tinham sido caçados até desaparecerem. Os pumas, outrora raros no parque e nunca vistos fora dele, estão a recuperar. Os ocelotes também estão a regressar em grande força, bem como os jaguarundis, outro felino de pequeno porte. Os porcos-do-mato abundam em Piedras Blancas, um parque nacional no sector mais distante do golfo. Os pecaris, uma espécie aparentada, não estão a ter tanto sucesso fora do Parque de Corcovado, e talvez não seja de admirar, porque são apreciados pela sua carne e por se deslocarem em grandes bandos, facilmente visados pelos caçadores. Os pecaris são uma das presas preferidas dos jaguares e também estes se têm esforçado para recuperar fora dos limites do parque. Em última análise, a única maneira de assegurar a saúde do ecossistema de Osa é reflorestá-lo. Para tal, a Osa Conservation está a ajudar a preencher a floresta, plantando árvores em quintas privadas estrategicamente posicionadas, como a de Doña Celedonia. A curto prazo, os plantios ao longo de rios e riachos em áreas cultivadas fornecem sombra para os animais de criação, contribuem para prevenir a erosão do solo e criam um habitat para aves e outros animais selvagens. Mas o objectivo a longo prazo é


criar um corredor de vegetação ininterrupto de Corcovado a Piedras Blancas e, por fim, até ao vasto Parque Internacional de La Amistad, nas montanhas de Talamanca, partilhado pela Costa Rica e pelo Panamá. Isto não só exigirá políticas governamentais amigas do ambiente, mas também a aquisição de terrenos a agricultores e a criadores de gado. “As estratégias nacionais deram início a esta grande alteração na floresta”, disse Andy. “Mas a verdadeira ligação à vida selvagem tem de vir de baixo para cima.” Uma das razões para a abundância de espécies em Osa é a escassez de uma em particular. Até à década de 1960, a península era habitada apenas por meia dúzia de garimpeiros de ouro, ocupantes ilegais e foragidos, cuja reputação de marginais contribuiu para manter a população em geral à distância. Nessa época, 80% da península ainda estava coberta por floresta de crescimento antigo. Isso começou a mudar no início da década de 1970,

Ficava ainda um problema por resolver: retirar do interior do parque cerca de 250 colonos arreigados, que contemplavam a empresa madeireira, os vigilantes da natureza e os cientistas com graus de hostilidade idênticos. No final, a maioria aceitou mudar-se para as terras que lhes foram oferecidas no lado oriental da península, incentivada por uma indemnização agregada superior a um milhão de dólares para “melhorias” nas terras, como desflorestação, plantações e edificações. Durante muitos anos, registaram-se poucos conflitos no parque. Foi então que o preço do ouro começou a subir em flecha. A ideia de ganhar fortuna desencadeou a segunda crise de Osa. No início da década de 1980, cerca de 1.400 mineiros trabalhavam ilegalmente no parque. “Os danos foram colossais”, contou Dan Janzen, um destacado ambientalista sediado na Costa Rica, recrutado em 1985 para estudar as repercussões da actividade mineira. Quase todos os animais do terço mais a sul do parque foram caçados para alimentar as comunidades de garimpeiros.

“As comunidades locais são próximas da natureza, mas quando se trata de alimentar a família ou de proteger a natureza, a família vem primeiro.” Hilary Brumberg, Osa Conservation

quando, incentivada pela conclusão da Inter-American Highway South, a população duplicou para cerca de 6.000 pessoas, ocupando principalmente a faixa de terra cultivada do lado oriental da península. A maior parte da terra desabitada pertencia a uma multinacional madeireira demasiado distante e mal gerida para exercer controlo. Por isso, quem conseguisse limpar um pedaço de terra poderia chamar-lhe seu. Entretanto, um posto de investigação biológica da península também atraiu outra subespécie humana: cientistas estrangeiros. Mais de mil especialistas visitaram a região na década de 1960. À medida que os colonos se impunham na rica bacia do Corcovado, no lado ocidental da península, os cientistas ajudaram a fazer soar o alarme: se não fosse criado um parque para proteger Osa, as suas florestas e respectiva biodiversidade desapareceriam. Liderado por Álvaro Ugalde, o pai do sistema de parques da Costa Rica, o governo negociou uma troca de terras complicada com a empresa madeireira, que resultou na criação do Parque Nacional de Corcovado em 1975.

Em vez de recorrer ao método que designou por “pistolas e estrelas douradas” para expulsar os mineiros, Janzen recomendou que se dedicasse um ano a conhecê-los para depois os convencer a saírem de livre vontade ou a enfrentarem a possibilidade de serem presos. A estratégia funcionou, mas, nos anos seguintes, o governo regrediu frequentemente para uma abordagem mais militarista, que exacerbou o ressentimento da população local. Rancho Quemado, perto do centro da península, foi o lugar de aplicação mais catastrófica do método das “pistolas e estrelas douradas”. O povoado fora erguido na floresta na década de 1960 por uma família chamada Ureña, oriunda de Buenos Aires, na Costa Rica. Os seus habitantes, como outros da península, subsistiam cultivando a terra e caçando animais selvagens. A cada dois anos, um bando de pecaris chegava a Rancho Quemado, vindo do parque, e os caçadores da aldeia matavam sempre cerca de 80% dos animais – uma matança muito acima de qualquer limiar de sustentabilidade. (Continua na pg. 42) P R E S E R VA R O P A R A Í S O

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LUGAR IDÍLICO PARA A VIDA SELVAGEM

COSTA RICA San José

Península Nicoya

COSTA RICA PANAMÁ

Península de Osa

PERSPECTIVA

100 km

Terraba

Co

ron

ado

A península de Osa é uma das regiões com maior biodiversidade da Terra. Os investigadores descobriram que o golfo Dulce acolhe uma variedade excepcional de espécies. Grupos de conservação e comunidades locais desenvolvem esforços para preservar esta rara combinação de árvores de crescimento antigo, floresta húmida de baixa altitude e uma baía com uma configuração singular.

NICARÁGUA

Habitats

ía

Áreas protegidas

Ba

Parque Nacional

Mangues

Reserva florestal

Outras florestas

Corredor biológico A ESCALA VARIA NESTA PERSPECTIVA. A DISTÂNCIA DE RINCÓN A PUERTO JIMÉNEZ É DE 27 KM.

Ilha Caño

Agujitas

-182m

18KM DA COSTA

-45 m

Punta Llorona A natureza em primeiro O esforço dos defensores da natureza na década de 1990 levou a Costa Rica a classificar 28% do seu território para protecção ambiental.

Carate Punta Salsipuedes

RICA EM BIODIVERSIDADE

O

C E

A

N O

Mais de 140 mamíferos, 460 aves e milhares de plantas e insectos, muitos dos quais em perigo, foram identificados nos 1.800 quilómetros quadrados de terra e 200 quilómetros de orla costeira que constituem este ecossistema vital.

Mamíferos da floresta húmida Pumas e porcos-do-mato, entre outros mamíferos, estão a recuperar nesta paisagem tropical. A sobrevivência da vida selvagem na região depende de um habitat em expansão e de um património genético diversificado.

Mangues Estas árvores resistentes à água salgada revestem as orlas costeiras e zonas pantanosas da região. Refúgio para centenas de espécies terrestres e marinhas, são igualmente vitais para prevenir a erosão costeira.

RILEY D. CHAMPINE E MANUEL CANALES; ALEXANDER STEGMAIER. ARTE: MATTHEW TWOMBLY FONTES: HILARY BRUMBERG, NOELIA HERNÁNDEZ E ELEANOR FLATT, OSA CONSERVATION; NASA; CIMAR, UNIVERSIDADE DA COSTA RICA; GEBCO; ESA CLIMATE CHANGE INITIATIVE LAND COVER PROJECT; WDPA

As suas raízes terrestres, que reduzem a força das ondas durante as tempestades, também filtram a poluição e os detritos que podem escorrer para o oceano.


Das cumeeiras aos recifes Para sustentar as populações de animais selvagens, os voluntários conservam uma rede de terras privadas e públicas, criando um corredor biológico que liga a península de Osa a zonas protegidas de grande altitude.

Á CA

Neily

G o l f o Punta Arenitas

Baía Golf i to

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u

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C o to

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-45m

Baía Pavón

-45m

Ameaças persistentes A agricultura, a construção de estradas e actividades ilegais como a caça e a mineração de ouro ameaçam a floresta húmida. Os escoamentos agrícolas podem descer para o golfo, ameaçando os recifes de coral e a vida marinha.

Pavones

Punta Banco

Cabo Matapalo

Profundezas raras A formação semelhante a um fiorde tem uma foz de águas rasas e um porto abrigado de águas profundas. Os quatro principais rios que desaguam na bacia regulam a temperatura e a salinidade da água.

Tubarões-martelo Depois de acasalarem em mar aberto, os tubarões-martelo têm aqui as suas crias entre Março e Agosto. Os cientistas estudam aqui as suas deslocações e comportamento.

AM Á

ST A R I CA

CO

P A C Í F I C O

PA N

Baleias-de-bossa A península de Osa é o único berçário conhecido das baleias-de-bossa dos mares do Norte e do Sul. A temperatura média da água (270C) ajuda-as a conservar o calor corporal.



Um puma olha surpreendido para uma armadilha fotográfica. Um conjunto de armadilhas colocadas por grupos de conservação, funcionários de eco-alojamentos e habitantes locais revela que as populações de pumas e de três outras espécies de felinos selvagens recuperaram na península desde finais da década de 1990. Continua a haver poucos jaguares.


Em 2008, porém, os pecaris vieram acompanhados por vigilantes da natureza, alguns dos quais armados. Com os seus próprios guardas para os protegerem, os pecaris tornaram-se destemidos, devorando as culturas, enquanto os aldeãos os observavam, impotentes. Foi uma vitória a curto prazo para a conservação: os aldeãos mataram apenas cinco pecaris nesse ano. A longo prazo, porém, alargou o fosso que separava o parque das pessoas. onze anos mais tarde, o local tinha uma energia muito diferente. Fui acompanhado por Marco Hidalgo, gestor de contacto comunitário da Osa Conservation. No restaurante ao ar livre de Enrique Ureña, sobrinho Q UA N D O V I S I T E I RA N C H O Q U E M A D O

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do patriarca da família, a migração sazonal dos pecaris pela aldeia voltou a ser tema de conversa, mas agora a hipótese de trabalho era o melhor modo de proteger os animais. Outrora, Enrique fora um dos maiores opositores do parque, pois temia que os vigilantes da natureza estivessem demasiado espalhados pelo terreno. Advogou a necessidade de voluntários locais para escoltar os pecaris enquanto estes se deslocavam. Marco referiu que a Osa Conservation implementara um projecto de vigilância de pecaris colocando coleiras transmissoras em alguns animais para que os movimentos do grupo pudessem ser facilmente acompanhados. “Quem deve usar as coleiras não são os pecaris”, disse Espiritu, a mãe idosa de Enrique, inter-


Dois garimpeiros de ouro trabalham num riacho junto do Parque Nacional de Corcovado. O garimpo de ouro, que durante décadas foi um modo de vida em Osa, é ilegal na Costa Rica porque polui o ambiente, mas o Estado tolera alguma mineração artesanal. Certas comunidades outrora dependentes da extracção mineira conseguiram, com sucesso, redireccionar a sua economia para o ecoturismo.

rompendo a conversa a partir do sofá onde estava sentada, no canto da sala. “São os caçadores.” A transformação de Rancho Quemado foi forjada pela necessidade, pois não havia emprego suficiente para todos. A sua orientação, porém, foi determinada pelo ensino. Em 2002, Enrique Ureña e 14 outros conterrâneos, com idades compreendidas entre 14 e 60 anos fizeram um curso intensivo de biologia florestal. Entre outras lições, os alunos aprenderam como os pecaris actuam como “engenheiros do ecossistema”. Dispersam as sementes, criam habitats para animais aquáticos quando chafurdam no solo e alteram a estrutura da floresta comendo as sementes de plantas comuns, permitindo assim que outras, mais raras e diversificadas, tenham possibilidade de vingar.

Ao aprenderem que a biodiversidade em seu redor era um chamariz natural, os moradores aprenderam também a criar negócios ecoturísticos. Agora, a aldeia monitoriza o movimento dos pecaris, faz censos de aves, mantém armadilhas fotográficas, recolhe sementes de árvores e disponibiliza passeios da floresta e programas educativos para crianças. Marco Hidalgo ajudou a orientar e a incentivar esta mudança de atitude, mas não colhe os méritos do seu sucesso. “Eles pegaram nas ferramentas e mudaram por si próprios”, afirmou. Nem todas as comunidades de Osa passaram por tamanha metamorfose. Marco disse-me que Los Angeles de Drake, uma aldeia na zona norte da península, se opõe tão encarniçadamente à conservação que, quando o trabalho o leva até lá, tem de estacionar atrás do portão fechado da escola para não lhe vandalizarem o carro. No entanto, pelo menos em 2019, apercebi-me de uma mudança profunda a favor da protecção da natureza em muitas das pessoas que conheci. Passei dois dias com Tomas Muñoz, que cresceu em Dos Brazos de Rio Tigre, outra aldeia outrora dependente da actividade mineira ilegal que apostou no ecoturismo para sobreviver. Tomas começou a caçar quando tinha 10 anos e a peneirar ouro dois anos mais tarde. Ele calcula que tenha passado 25 dias por mês na selva desde os 14 anos, idade em que desistiu da escola. Aprendeu todos os truques da floresta, incluindo a maneira de fugir aos vigilantes da natureza e à polícia. Aprendeu que deveria caminhar apenas sobre raízes e pedras para não deixar pegadas. Não se deveria lavar no riacho junto do qual acampara, porque a espuma aparece a jusante. E não poderia usar cremes nem protector solar porque os cheiros estranhos são fáceis de detectar na floresta. “Certa vez, farejei o óleo multiusos das armas dos vigilantes”, disse-me. “Estavam a 80 metros de distância. Dispersámo-nos e vimo-los passar do outro lado do rio. Nunca me apanharam”, acrescenta com um sorriso. “Eu corria demasiado depressa.” Quando tinha 20 anos, Tomas deixou de caçar porque um dos seus tios, que trabalhava como guia, o convenceu de que estava a desperdiçar a vida e que poderia viver muito melhor se conduzisse turistas até aos animais em vez de os matar para consumir a sua carne. Contudo, não foi fácil superar a atracção atávica pelo modo de vida antigo. P R E S E R VA R O P A R A Í S O

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A variedade de habitats da península (floresta nebulosa, floresta húmida de baixa altitude, pântanos, mangues, lagoas de água doce e lagoas costeiras) gera refúgios para milhares de espécies.

Um grupo de golfinhos-de-bico-comprido nada ao largo de Isla del Caño,no oceano Pacífico, cerca de 24 quilómetros a oeste da baía de Drake. Grupos com milhares de golfinhos reúnem-se junto da costa de Osa, atraídos pela previsível abundância de presas. 44

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P R E S E R VA R O P A R A Í S O

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“O meu tio levou-me a um posto de vigilantes da natureza e vi galinhas selvagens e pecaris mesmo ao meu lado”, recorda. “O meu instinto foi procurar um pau ou uma pedra para os matar. O instinto estava na minha cabeça. Precisei de dois anos para me livrar dessa vontade.” Tomas contou-me a sua história enquanto caminhávamos numa praia cinzenta, junto da entrada meridional do Parque de Corcovado. Passámos esse dia no parque. Tomas trazia consigo o tripé para a sua telescópio de observação sobre o ombro como uma espingarda, parando abruptamente para atrair alguns macacos-aranha para perto de nós com um chamamento, para me apontar um carcará-do-norte, uma família de macacos-capuchinhos, uma minúscula rã ou um quati-de-nariz-branco a mordiscar um caranguejo. No dia seguinte, levou-me a visitar a aldeia de Dos Brazos, que tem um trilho até ao parque saindo da sua zona oriental. Foi construído pelos próprios aldeãos, na sua maioria antigos mineiros de ouro. Tomas ajudou a formar alguns para serem guias, enquanto outros aldeãos forneciam alojamento a turistas, refeições e aulas de culinária. O trilho não tem ligação à rede prévia do parque, mas o seu acesso é mais fácil e proporciona alguns dos melhores pontos de observação de aves da península. “Antigamente, as pessoas só falavam sobre o ouro que apanhavam”, disse Tomas. “Agora, as conversas são sobre aves.” não houve turistas para quem cozinhar, nem trabalho para os guias em Dos Brazos nem em Rancho Quemado. Não houve voluntários em Osa Conservation para tratar das árvores, nem para manter os predadores longe das crias de tartaruga-marinha na praia do Pacífico. A Costa Rica optou por uma reacção agressiva à ameaça da COVID-19, proibindo todas as viagens internacionais. No final de Novembro de 2020, quando os Estados Unidos já tinham sofrido 264.808 mortes, a Costa Rica registara 1.690. No entanto, os prejuízos económicos foram catastróficos. A indústria turística desabou, estancando o financiamento do sistema nacional de parques, obrigando as autoridades a encerrar Corcovado no mês de Março e a retirar os vigilantes do parque. Durante algumas semanas, tudo esteve calmo. Foi então que foi lançado o aviso numa conversa de grupo entre alguns guias turísticos de Osa numa rede social: alguém estava a aproveiN A P R I M AV E R A S E G U I N T E ,

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tar-se da falta de turistas e da aplicação da lei para organizar caçadas dentro do parque. Dois caçadores mataram nove pecaris por desporto. Quando contactei Dionisio Paniagua Castro, guia turístico de longa data e, desde a pandemia, activista em prol da conservação da península, consegui sentir a sua angústia pelo telefone. “Tantos animais… para se divertirem!” disse. “Tínhamos mesmo de fazer algo.” Os guias alertaram as autoridades, que destacaram forças policiais para o local e fizeram algumas detenções. Contudo, o parque era demasiado grande e a aplicação da lei demasiado dispersa e esporádica para gerir o crescente desastre. Não eram apenas os caçadores. Com o desemprego e o aumento do preço global do ouro devido


Nadadores preparam-se para a prova de natação Golfo Dulce Open Water Crossing, no lado oriental da península, organizada para atrair mais visitantes durante a época baixa do turismo, no final do Verão. Os nadadores irão partilhar o golfo com baleias-de-bossa vindas do Pacífico Sul no Verão para parirem as suas crias nestas águas protegidas.

à pandemia, os mineiros estavam a regressar ao parque em números que não se viam há décadas. Os traficantes de droga e os madeireiros também estavam a tirar partido da agitação. No entanto, agora existia outra linha de defesa: os próprios habitantes de Osa. Em resposta à crise, Carlos Manuel Rodríguez, então ministro do Ambiente da Costa Rica, ressuscitou a ideia de um grupo de 52 vigilantes da natureza voluntários, constituído por guias e líderes de diferentes comunidades, incluindo Rancho Quemado e La Palma, que poderiam receber formação em tecnologia de vigilância e ser posicionados no terreno para criar uma zona-tampão em redor do parque. Não têm armas, mas têm telefones, câmaras fotográficas e ligações à comunidade e conse-

guem alertar rapidamente as forças responsáveis pela aplicação da lei quando detectam actividades ilegais. Grande parte do problema parece ser causado por grupos organizados vindos de fora da península. Porém, dado o colapso da economia turística, era inevitável que alguns autóctones não tivessem muitas escolhas para além de pegarem nas pás e nas peneiras e juntarem-se aos mineiros ilegais do parque. “As pessoas têm de encontrar formas de ganhar dinheiro e o garimpo de ouro é uma delas”, disse-me Tomas Muñoz ao telefone. Perguntei-lhe se ele próprio sentia essa tentação, uma vez que era um dos guias que ficara sem trabalho. Ouvi a angústia na sua voz quando me respondeu. “Estou a tentar não ir por aí.” j P R E S E R VA R O P A R A Í S O

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E N T R E V I S TA C O M O P R E S I D E N T E DA C O S TA R I C A , C A R L O S A LVA R A D O POR ISMAEL NAFRÍA

“ESTAMOS A FICAR SEM TEMPO PARA AGIR” Carlos Alvarado é presidente da Costa Rica desde Maio de 2018. Neste país com cinco milhões de habitantes, que concentra 6% da biodiversidade do planeta, um quarto do território está protegido. Em 2019, a Costa Rica recebeu o Prémio Campeões da Terra, o maior galardão ambiental das Nações Unidas, pelo seu papel na protecção da natureza e pelos esforços para promover a descarbonização da economia e combater as alterações climáticas. Falei com o presidente em Nova Iorque quando foi receber o prémio na Cimeira da Acção Climática em Setembro de 2019. A entrevista teve continuidade através de correio electrónico. Que significado tem para si e para o seu país o prémio das Nações Unidas? Deixa-me muito orgulhoso e feliz porque se deve ao esforço de todo o país e não de uma pessoa, de um governo ou de uma iniciativa. O que a Costa Rica está a conseguir hoje em matéria ambiental é resultado do trabalho anterior de muitas pessoas. Há 70 anos, decidiu-se avançar com energias limpas e renováveis, principalmente hidroeléctricas, geotérmicas e eólicas. Há 50 anos, decidiu-se avançar com um modelo de parques nacionais. Depois, na década de 1980, com as áreas de conservação e, posteriormente, com sistemas de pagamentos por serviços ambientais para protecção de florestas em zonas privadas. Tudo isso permitiu que hoje produzamos quase 99% de energia limpa e renovável e tenhamos uma cobertura florestal de 52% do nosso território. O que fazemos hoje terá impacte decisivo daqui a 20 ou 30 anos. Como conseguiram atingir 52% de cobertura florestal no país? No século passado, registou-se um forte processo de desflorestação. O país passou de mais de 70% de cobertura florestal para 20%, devido à criação de gado e à expansão de áreas agrícolas. O processo estava a destruir os nossos ecossistemas e apostámos na reflorestação. Naquela época, dizia-se que isso iria destruir a economia agrícola, mas 48

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optou-se pela conservação como forma de proteger o ambiente e de desenvolver a economia com o ecoturismo. Foram criados os primeiros parques nacionais, corredores biológicos, áreas protegidas e zonas-tampão. Com impostos sobre os combustíveis fósseis, paga-se aos proprietários de terras por serviços ambientais. Existe um incentivo para que conservem a sua floresta. Considera a crise climática um dos maiores desafios da nossa geração? Sim. Disse-o no meu discurso de tomada de posse: é o maior desafio da nossa geração. Há muito a fazer: combater a pobreza, aumentar a inclusão, reduzir as diferenças de género e combater a discriminação. Temos de fazer tudo isso, mas só a resolução da crise climática dará um futuro à humanidade. Se não for resolvida, pode tornar–se o fim do jogo. E é por isso que esta geração tem uma responsabilidade enorme. É a geração que decide se isto continua por mais 50 mil anos ou pára. É um ponto de viragem na história da humanidade. E está optimista? Acha que chegaremos a 2050 depois de conseguirmos dar passos certos? Sim, estou optimista. Mas estou optimista por ter os pés assentes na terra. Olho para o meu país e digo: “Sim, consegue-se, está feito!” Demonstrámos que é possível. Que lições devemos tirar da pandemia em relação ao futuro do planeta? Não devemos tomar o planeta como garantido. O mundo está a alterar-se a uma velocidade cada vez maior. Agir já é essencial para que nós, os nossos filhos e netos, tenhamos um lar seguro e saudável. É uma responsabilidade inter-geracional perante a história da humanidade. A pandemia apanhou de surpresa o mundo e fez disparar os alarmes da última oportunidade disponível para reduzir os impactes do risco iminente produzidos pelas alterações climáticas, pelas consequências que estas têm na vida das


Carlos Alvarado e a primeira-dama, a arquitecta Claudia Dobles, lideram o Pano Nacional de Descarbonização da Costa Rica. Foram fotografados no Parque Solar Cooperativo inaugurado em Março de 2019, que fornece energia eléctrica produzida a partir de fontes renováveis a 5.000 famílias de Pocosol de San Carlos, na zona setentrional do país.

pessoas, ecossistemas e sistemas produtivos. Estamos a ficar sem tempo para agir e a nossa geração não pode continuar a adiar acções urgentes no combate contra as alterações climáticas. O que espera da colaboração internacional neste domínio? A máxima solidariedade e a resposta global do multilateralismo. A mobilização de recursos dos países desenvolvidos para os países em desenvolvimento é fundamental, seja através de fundos não reembolsáveis, através de permutas de dívida por natureza, permutas de dívida por descarbonização ou por resiliência e adaptação às alterações climáticas. Numa conversa recente com o novo presidente dos Estados Unidos, Joseph Biden, alertei-o para duas ameaças que a região enfrenta: as devastadoras consequências económicas e fiscais da pandemia e as alterações climáticas, que intensificam os fenómenos migratórios na América Central. Propus-lhe uma abordagem multilateral solidária ROBERTO CARLOS SÁNCHEZ

e efectiva para alcançar uma reconstrução económica verde e resiliente. Estou certo de que, nessa questão, os Estados Unidos desempenharão um papel importante. De que forma a pandemia afectou os planos ambientais da Costa Rica? Reafirmou a necessidade de trabalhar para que a Costa Rica alcance uma recuperação económica sustentável. Ensinou-nos que os governos devem dar prioridade às acções que estejam em linha com uma recuperação económica verde e azul. Esta pandemia revelou as ligações reais entre saúde, ambiente e bem-estar, e que é possível tomar decisões e fazer políticas públicas centradas no bem-estar das pessoas. Quais os principais desafios a que a Costa Rica se propôs em matéria ambiental? O nosso roteiro é o Plano Nacional de Descarbonização 2018-2050. Com ele, traçámos o caminho para uma Costa Rica competitiva, moderna e eficiente, para ter, até 2050, uma nova geração que beneficiará por viver num país sustentável, saudável e solidário.

Excertos da entrevista realizada com o presidente da Costa Rica, Carlos Alvarado. Em breve, a versão completa poderá ser lida no site nationalgeographic.pt P R E S E RVA R O PA R A Í S O

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MULHERES EM MIGRAÇÃO M OV I DA S P E L O M E D O , PELA ESPERANÇA O U P E L O D E S E S P E R O, MILHÕES DE MULHERES MIGRAM TO D O S O S A N O S E M B U S C A D E U M A V I DA M E L H O R .

T E X TO D E AU R O R A F OTO G R A F I A S D E T H E 50

ALMENDRAL E V E R Y DAY

PROJECTS


Depois de lavar a roupa num charco à beira da estrada, uma mulher caminha para casa na Somalilândia devastada pela seca. As alterações climáticas alteraram por completo milhões de vidas no Corno de África. À medida que vacas, cabras e camelos vão morrendo, não resta outra solução aos pastores seminómadas como ela senão mudarem-se para outro sítio, frequentemente para campos de deslocados ou para as cidades.


R I N T R O D U Ç ÃO

Raxma Xasan Maxamuud nunca quis abandonar a sua casa, na Somalilândia. No entanto, um longo ciclo de secas transformou os rios em poeira e ressecou a erva de que o seu gado se alimentava. Nas Honduras, a violência levou Kataleya Nativi Baca, uma mulher transgénero, a empreender uma viagem perigosa até à fronteira dos Estados Unidos. As mulheres representam cerca de metade de todas as pessoas que migram a nível internacional e dentro das fronteiras dos seus próprios países. Algumas são atraídas por promessas de um futuro melhor, mas, para aquelas que enfrentam a fome ou o perigo no seu país natal, a migração é um risco corrido para assegurar a própria sobrevivência. Para esta reportagem, os fotógrafos de The Everyday Projects, uma rede cuja missão consiste em desafiar estereótipos apresentando perspectivas diferentes, analisam a maneira como as dificuldades e a obrigação, a violência, a pobreza, as alterações climáticas e outras forças prejudicam gravemente as vidas das mulheres, empurrando-as para viagens que alteram a sua existência. Segundo a Organização Internacional para as Migrações, 272 milhões de pessoas (entre as quais 130 milhões de mulheres) não viviam no seu país de origem em 2019. Mais de 60% desses migrantes vivem na Ásia e na Europa. No entanto, a maior parte das migrações internacionais acontece a nível regional, com as deslocações para (e entre) países do Médio Oriente, Norte de África e África Subsaariana a aumentarem mais depressa. 52

N AT I O N A L G E O G R A P H I C

Nas últimas décadas, as mulheres têm migrado para países mais ricos, a fim de garantirem, elas próprias, o sustento da família e já não para se reunirem a familiares. Arranjam emprego como prestadoras de cuidados a crianças e idosos ou como empregadas domésticas, bem como na indústria e na agricultura. Já se descreveu essa transição como “feminização das migrações”. Há mais probabilidades de as mulheres migrantes que vivem no estrangeiro serem sobrequalificadas para estes empregos e de ganharem menos dinheiro do que os homens, remetendo uma percentagem superior dos seus rendimentos para as suas famílias, que permaneceram no país de origem. Para as mulheres que fogem à violência e à pobreza, as rotas clandestinas seguidas tornam-nas mais vulneráveis ao tráfico sexual, à agressão e à violação. E, para as mulheres que partem para países com quadros legislativos débeis, ou mulheres sem documentos, assegurar os direitos fundamentais pode revelar-se impossível. A migração forçada de refugiados e requerentes de asilo cresceu em média 8% por ano entre 2010 e 2017, em comparação com menos de 2% referente às migrações internacionais. De 33,8 milhões de pessoas obrigadas a migrar para o estrangeiro em 2019, cerca de metade eram mulheres. Nesse ano, outros 33,4 milhões de pessoas, mais de metade das quais mulheres, viram-se obrigadas a migrar dentro dos seus próprios países, 75% das quais devido a catástrofes naturais. Segundo uma estimativa do Banco Mundial, em 2020 a pandemia da COVID-19 provocou uma quebra inédita de 20% nas remessas mundiais de dinheiro enviado para os países de origem. O medo, a raiva e a pobreza estão a atiçar o ressentimento e a xenofobia e os migrantes vêem-se frequentemente vitimizados como bodes expiatórios, acusados de serem transmissores de doenças ou culpabilizados pelos males sociais exacerbados pela pandemia. Nas próximas páginas, relatamos as histórias de cinco mulheres migrantes que exemplificam facetas diversas da experiência de relocalização: a decisão de partir; a esperança e as dificuldades da viagem; a chegada em circunstâncias desconhecidas; a adaptação a uma nova vida; e a consciencialização de que, por muito traumático que seja o desenraizamento, a migração pode ser uma via para a liberdade.


Esperança e resiliência Nos últimos anos, milhões de mulheres deixaram as suas casas, atravessando fronteiras em busca de uma nova vida. A COVID-19 abrandou este caudal, mas os factores de pressão que obrigam a migrar (como a violência, a opressão, a seca e a pobreza) subsistem. A esperança de mudar leva muitas mulheres a arriscarem viagens cujo resultado oscila entre o feliz e o trágico.

ONLINE

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SOMÁLIA

A rede The Everyday Projects usa a fotografia para desafiar estereótipos e alargar os seus relatos a todo o mundo. Oito fotógrafas juntaram-se para documentar as repercussões da migração sobre as mulheres no mundo. Esta reportagem contou com apoio da National Geographic Society. Um guia criado pelo Centro Pulitzer para alunos do segundo e terceiro ciclos encontra-se disponível em pulitzercenter.org/womenonthemove.

PÁGINA 54

MUDAR OU MORRER

| Depois de a seca matar os seus animais, esta pastora

somali não tem outra alternativa senão juntar-se a milhares de outras pessoas que vão vendo o tempo passar num campo para deslocados.

HONDURAS

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MÉXICO

A dura VIAGEM

PÁGINA 60

| A expectativa anima esta mulher transgénero durante a tra-

vessia da fronteira entre o México e os Estados Unidos. Depois, o desespero instala-se.

VIETNAME

u

O CONTRATO

SINGAPURA

PÁGINA 68

| Uma mulher procura segurança financeira para a sua família

assinando um contrato de casamento com um homem na rica cidade de Singapura.

MYANMAR

u

AUSTRÁLIA

ENCONTRAR a PAZ

PÁGINA 72

| Uma mulher rohingya, cuja família fugiu à violência e

à opressão na sua aldeia de Myanmar, saboreia a segurança e a liberdade em Sydney.

PAQUISTÃO

PÁGINA 76

| Uma jovem mulher nascida na diáspora afegã do Paquistão deixa a sua casa em busca de mais liberdade através dos estudos.

NOVAS ESCOLHAS

ZIMBABWE u ÁFRICA DO SUL

QUIRGUÍZIA u RÚSSIA

IÉMEN u PAÍSES BAIXOS

A COVID-19 agrava as dificuldades de milhares de mulheres que migram de países vizinhos para a África do Sul.

A xenofobia atormenta as mulheres atraídas para a Rússia por promessas de emprego, vindas de países da Ásia Central.

Uma fotógrafa fugida do Iémen dilacerado pela guerra sente saudades da família. “Um dia, voltarei a estar com eles.” natgeo.com/womenonthemove


SOMÁLIA

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SOMÁLIA F OTO G R A FI A S DE NIC HO LE S O BE CKI

Mudar ou morrer PERDEU PRATICAMENTE TUDO O QUE TINHA QUANDO A SECA MATOU OS SEUS ANIMAIS. AGORA, VÊ O TEMPO PASSAR NUM CAMPO DE DESLOCADOS.

A

s ovelhas foram as primeiras a morrer. Sem erva para comer, ficaram magras e apáticas e os seus balidos foram enfraquecendo. “Estavam a morrer à nossa volta, como se tivessem sido envenenadas”, conta Raxma. Pastores na aldeia de Haya, na região central da Somalilândia, um autoproclamado estado da Somália que ninguém reconhece, Raxma e a sua família criavam 300 cabras e ovelhas e 20 camelos. Num espaço de quatro semanas de seca, em 2016, todos os animais morreram. Os pastores somalis seminómadas, que contam a passagem dos anos pela chegada regular das chuvas, começaram a reparar que, nos últimos 20 anos, as chuvas eram mais erráticas, deixando de estar alinhadas pelos restantes ritmos da vida. “Se alguém ainda duvidar das alterações climáticas, basta vir cá”, resume Sarah Khan, directora da Subdivisão para os Hargeysa do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados. Raxma conta-nos que tem cerca de 36 anos. Durante o seu tempo de vida, as secas graves costumavam acontecer duas vezes por década, mas a seca devastadora de 2016 e 2017 destruiu cerca de 70% da economia pastoril da Somalilândia – a indústria primária do país.

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Um jovem camelo puxa pelo hijab de Cadar Maxamed, em Xinjiinle, na região setentrional da Somalilândia. O camelo recebeu o nome de Baruud (“duro”) porque a sua progenitora sobreviveu a vários anos de seca, ao contrário da maior parte dos animais de Cadar. Os camelos e outros animais domésticos constituem a base da riqueza das sociedades pastoris da região.

MULHERE S EM MIGRAÇÃO

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Olhando para o céu, uma mulher observa um enxame de gafanhotos na região central da Somalilândia. As condições climáticas extremas foram agravadas pela maior praga de gafanhotos do deserto dos últimos 22 anos.



Os rios e lagos alimentados pelas chuvas, outrora responsáveis pelo sustento de numerosas gerações de pastores, desapareceram. Em 2016, os poços da aldeia de Haya secaram pela segunda vez em cinco anos. A aldeia alugou camiões para trazerem água de outra cidade, mas “sentíamo-nos sedentos”, diz Raxma. Os aldeãos não lavavam a roupa. E, ao contrário do que sucedera no ano de abundância em que Raxma nasceu, não deram nomes aos anos maus, na esperança de que esses tempos fossem esquecidos. “Antigamente, vendíamos cabras e tínhamos carne e manteiga. Não precisávamos da ajuda de ninguém. Costumávamos ajudar os outros porque tínhamos bens a mais.” Os pastores somalis não medem a riqueza em função do que conseguem comprar, mas pela dimensão dos rebanhos. A perda de animais equivale a perder a casa, ver o automóvel roubado e a conta bancária esvaziada – tudo num só dia.

Em Haya, o fedor da morte causado por milhares de carcaças de animais a apodrecer pairava no ar, mas a família de Raxma conseguiu resistir durante três meses, enquanto a seca de 2016 se agravava. As famílias com camelos sobreviventes partilharam o leite com aquelas cujos rebanhos tinham perecido. À medida que a comida escasseava, os adultos reservaram as porções maiores para as crianças mais novas. A diarreia generalizou-se, conta Raxma, e temeu-se pela vida. Quando os animais morreram todos, os aldeãos reuniram o dinheiro disponível e alugaram um camião para serem conduzidos a um campo de PDI (pessoas deslocadas internamente) perto de Burco, na região central da Somalilândia. Segundo estimativas do Banco Mundial, 143 milhões de habitantes da África Subsaariana, da Ásia do Sul e da América Latina serão obrigados a mudar-se dentro dos seus próprios países devido às alterações climáticas até 2050.


EM CIMA

Raxma Xasan Maxamuud, de 36 anos, encontra-se há três anos num campo para deslocados nos arredores de Burco, na Somalilândia. Tem saudades da abundância e felicidade dos seus tempos de pastora, antes de os rebanhos da família perecerem devido à seca.

Raxma encontra-se actualmente num campo, à semelhança de mais 600 mil habitantes da Somalilândia, todos dependentes de ajuda humanitária para obterem comida e água. Raxma ainda não perdeu a esperança. Deu à sua filha mais nova, nascida já no campo, o nome de Barwaaqo, uma palavra evocativa da prosperidade, abundância e felicidade vividas quando os rebanhos são saudáveis, as chuvas abundantes e as terras verdejantes. Raxma perdeu quase tudo, mas o nome da sua filha exprime a gratidão sentida pelo facto de a sobrevivência da sua família ser, em si mesma, uma espécie de riqueza. — A. A.

À ESQUERDA

As irmãs Maryan Yusuf, de 15 anos, e Xaawa Yusuf, de 12, estudam árabe na residência da família no Norte da Somalilândia, sob o olhar da mãe, Caasha Jaamac (ao centro), de 40 anos. A família viu-se obrigada a reconstruir a vida por duas vezes, depois de perder tudo: primeiro, devido à seca e, mais tarde, devido a um ciclone. Muitos somalis encaram os estudos como forma de preparação dos filhos para um futuro em que o tradicional modo de vida pastoril possa deixar de ser viável.

Cerca de seiscentas mil pessoas estão ENCALHADAS

na Somalilândia, dependendo de ajuda humanitária para obter comida e água. MULHERE S EM MIGRAÇÃO

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MÉXICO HONDURAS

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HONDURAS u MÉXICO F OTOG R A FI A S DE DANIE LLE VILLASANA

A dura viagem FUGINDO DO PERIGO, ELA ENFRENTOU O DESAFIO DA VIAGEM ATÉ À FRONTEIRA ENTRE OS EUA E O MÉXICO, MAS ENCONTROU ALI MAIS VIOLÊNCIA E INCERTEZAS.

A

ntes de partir de Tapachula, no México, Kataleya Nativi Baca telefonou à sua irmã do apartamento que partilhava com mais duas migrantes da América Central. “Amanhã, vou estar muito mais longe”, disse. Kataleya, de 28 anos, uma mulher transgénero, era tratada como pária na sua terra natal de San Pedro Sula, nas Honduras. A mãe rejeitou-a. O irmão espancava-a. Num país onde a espiral de violência é alimentada pelo machismo, pessoas homossexuais, bissexuais, transgénero e intersexuais (LGBTQ) são vítimas de assédio, muitas vezes violento. Uma rede de grupos de direitos humanos apurou que mais de 1.300 dessas pessoas foram assassinadas na América Latina e nas Caraíbas desde 2014, 86% das quais na Colômbia, no México e nas Honduras. Para muitas, o desafio dessa viagem perigosa em busca de asilo nos EUA é preferível ao perigo sentido no seu país. Tapachula, uma cidade fronteiriça no Sul do México, é um local onde acorrem migrantes da América Central, das Caraíbas e de África. Kataleya passou ali quatro meses, enquanto esperava que lhe fosse concedido um visto através do México até Tijuana, na fronteira com os EUA.

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Kataleya Nativi Baca, de 28 anos, fugiu das Honduras depois de suportar muitos anos de assédio violento. Aqui, depois de fazer a travessia da Guatemala para o México numa jangada, prossegue a viagem até à fronteira com os EUA. TRABALHO FOTOGRÁFICO PARCIALMENTE APOIADO PELA INTERNATIONAL WOMEN’S MEDIA FOUNDATION

MULHERE S EM MIGRAÇÃO

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Samanta Hilton, Alexa Smith e Escarle Lovely descansam na sua cidade natal de San Pedro Sula, nas Honduras. A América Latina é a região do mundo mais perigosa para mulheres transgénero como elas. TRABALHO FOTOGRÁFICO PARCIALMENTE APOIADO PELA INTERNATIONAL WOMEN’S MEDIA FOUNDATION



Antes de subir para o autocarro, Kataleya fez as suas despedidas das pessoas por quem passava na rua, dos seguranças do seu restaurante favorito de comida rápida e das suas companheiras de quarto – estranhas que se haviam tornado suas amigas, no desafio partilhado da fuga. “Vou-me finalmente embora de Tapachula”, disse. Funcionários dos serviços de imigração mandaram o autocarro parar para verificarem os documentos dos passageiros – a primeira de 20 paragens e postos de controlo que haveriam de marcar o ritmo perturbado e angustiado das 72 horas e quatro mil quilómetros seguintes. Muitos migrantes que não conseguem obter os documentos de trânsito preferem atravessar o México à boleia ou a pé, de modo a evitarem as autoridades e o risco de terem de saltar de um comboio em andamento. São sujeitos à violência de quadrilhas criminosas, agressões sexuais, extorsão, recrutamento pela criminalidade organizada e raptos. Kataleya teve sorte: tinha documentos. Ao terceiro dia de viagem, o fedor da casa de banho era tão intenso que as pessoas enrolavam lenços à volta do nariz sempre que a porta se abria. As mochilas e as carteiras pareciam rebentar, de tão carregadas que iam com roupas amarrotadas e artigos de higiene. Kataleya lavou-se com toalhitas e retocou o batom. Horas depois de partirem de Tijuana, o autocarro irrompeu em grande agitação. Os migrantes acotovelavam-se contra as janelas, espreitando uma linha metálica que serpenteava pela imensidão de erva amarelada. Era a vedação da fronteira com os EUA. Em Tijuana, Kataleya recebeu o número pelo qual o seu requerimento de asilo seria avaliado: 4.050. Nessa altura, as autoridades estavam a avaliar o requerimento número 2.925. Seis meses mais tarde, e cerca de duas semanas antes da data prevista para a avaliação do seu requerimento, o governo norte-americano encerrou a fronteira devido à pandemia de COVID-19, suspendendo a apreciação dos pedidos de asilo. Entre a incerteza e a violência na fronteira com o México e a rejeição sentida no seu país, Kataleya apercebe-se de que a esperança que a impulsionara a empreender a viagem até aos EUA foi substituída por um pavor visceral que não consegue evitar. Durante este período, foi assaltada e espancada em abrigos para migrantes LGBTQ. Noutras ocasiões, precisou do apoio financeiro de vários homens. O desespero instalou-se. “Da noite para o dia, tudo se desmoronou”, diz. — A. A. 64

N AT I O N A L G E O G R A P H I C

EM CIMA

Kataleya permaneceu quatro meses na cidade de Tapachula, no Sul do México, até obter o visto que lhe permitiu empreender a viagem de autocarro de quatro mil quilómetros para norte, até à fronteira dos EUA, em vez de caminhar ou andar à boleia. À D I R E I TA

Tijuana assinalou o final da viagem de Kataleya através do México e o início do seu processo como requerente de asilo. A espera de um mês tornou-se permanente para Kataleya (de T-shirt cor-de-rosa) quando os EUA fecharam a fronteira a todos os imigrantes em Março de 2020, devido à pandemia.


A esperança que impulsionara Kataleya a empreender a viagem até aos EUA foi substituída por um PAVOR que não consegue evitar.

MULHERE S EM MIGRAÇÃO

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Transpondo fronteiras

Um círculo verde indica o

Há muito que a guerra, a fome e a procura de oportunidades incentivam homens e mulheres a abandonarem os seus países de origem, como demonstra este mapa, ilustrativo dos milhões de pessoas que viviam no estrangeiro em 2019. Nas últimas duas décadas, as mulheres têm, cada vez mais, viajado sem a companhia de familiares, geralmente para estudar ou trabalhar. Nos seus países de destino, a participação das mulheres migrantes na força laboral excede o de mulheres não-migrantes em 15%. A viagem isolada acarreta riscos de exploração e de violência de género, mas a decisão de partir não é, frequentemente, uma escolha. DISPARIDADE DE GÉNERO NAS MIGRAÇÕES

Destino

Origem

Mais mulheres do que homens chegaram

Mais mulheres do que homens partiram

Cerca de metade

Cerca de metade

Menos mulheres do que homens chegaram

Rastreando as suas deslocações

Canadá

número de mulheres migrantes em determinado país. Nos EUA, esse círculo é grande, pois representa 26,4 milhões de mulheres.

AMÉRICA DO NORTE

O enchimento a cor mostra que entraram mais mulheres do que homens nos EUA. O número de mulheres que saíram do país (2,4 milhões) é indicado pelo círculo roxo. O tom claro significa que aproximadamente o mesmo número de mulheres e homens saíram dos EUA.

Estados Unidos

México

Cinco milhões de raparigas e mulheres do México vivem no estrangeiro, 97% das quais nos EUA.

Pequenas Antilhas

Honduras

Venezuela†

Menos mulheres do que homens partiram

AMÉRICA DO SUL

MIGRANTES DO SEXO FEMININO 10.000.000

Bolívia

5.000.000

Metade das 1.200 mil migrantes do sexo feminino residentes na Argentina provêm dos vizinhos Bolívia e Paraguai.

1.000.000 100.000 Número de mulheres que vivem fora do seu país de origem (2019)

Paraguai Argentina

DESLOCAÇÃO EM BUSCA DE TRABALHO Os trabalhadores migrantes representavam quase dois terços dos 271,6 milhões de pessoas que viviam em países estrangeiros em 2019. Quase 48% dos migrantes internacionais eram mulheres. Migrantes internacionais* 271,6 milhões (47,9% mulheres)

Trabalhadores migrantes 164 milhões

MULHERES TRABALHADORAS A maioria das mulheres que deixam a sua casa, partindo para outro país, têm 20 a 50 anos de idade.

Estudantes 5,3 milhões

Migrantes femininas internacionais População mundial feminina

Crianças 37,7 milhões

41,5% Mulheres trabalhadoras

Refugiados registados† 25,9 milhões (48,3% mulheres)

9,2%

60-69

9,6% 12,8%

50-59

17,4%

40-49

20,5%

30-39 16,5%

20-29 Pedidos de asilo 3,5 milhões

66

70+

10-19 0-9

7,9% 6,1%

* Categorias não mutuamente exclusivas. † Mais 3,6 milhões de venezuelanos foram deslocados para o estrangeiro, não sendo contabilizados como refugiados.


Na União Europeia, vivem 31 milhões de migrantes do sexo feminino, quase dois terços dos quais originários de países fora da UE. Grande parte viaja em busca de trabalho ou asilo. Dezanove milhões de mulheres originárias de países da UE vivem no estrangeiro. Os países com números quase iguais de origem e destino são apresentados com círculos intersectados.

Rússia União Europeia

Ucrânia

EUROP A

Turquia

Cazaquistão

ÁSIA

ÁFR IC A

China

Afeganistão

Síria

Paquistão

Egipto

Nepal

Bangladesh Myanmar (Birmânia)

Índia

Vietname Filipinas

Tailândia

Somália

Singapura

A Índia possui o maior número de cidadãos residentes no estrangeiro: 17,5 milhões. As mulheres e raparigas representam um terço desses migrantes, dos quais 1,3 milhões (a maior percentagem) vivem nos EUA.

Os migrantes africanos tendem a dirigir-se para países vizinhos, especialmente na África Ocidental, onde 84% dos migrantes do sexo feminino se deslocaram dentro da região.

OCEÂNIA

DISPARIDADES DE GÉNERO ENTRE OS MIGRANTES Mulheres Homens

Hiato entre homens e mulheres 0

Rússia China Ucrânia Filipinas Canadá Tailândia Cazaquistão Alemanha

1

2

3

4

5

6 milhões

1,4 milhões 0,8

Mais mulheres do que homens

Muitas das mulheres que abandonam estes países partem em busca de emprego ou de estudos. Em muitos países não existem barreiras sociais ou jurídicas à migração com especificidade de género.

0,6 0,4 0,3 0,3 0,3 0,3

Nepal México Myanmar Egipto Síria Paquistão Bangladesh Índia

Menos mulheres do que homens

-0,5 milhões

Em alguns países, existe legislação com especificidade de género ou normas sociais que restringem as viagens das mulheres. Há leis na Síria, Paquistão e Egipto que dificultam a obtenção de passaporte para as mulheres.

-0,8 -0,9 -1,0 -1,4 -2,0 -2,6

-5,4 0

1

2

3

4

5

6

7

8

9

10

CHRISTINE FELLENZ E MONICA SERRANO; KELSEY NOWAKOWSKI. FONTES: CLARE MENOZZI, DIVISÃO DE POPULAÇÃO DA UN; OIT; IOM; UNESCO; ACNUR

11


VIETNAME

SINGAPURA

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V I E T N A M E u S I N GA P U R A F OTO G R A FI A S D E AM RITA CH ANDRADAS

O contrato EM BUSCA DE SEGURANÇA FINANCEIRA, CORREU O RISCO DE DEIXAR A SUA CASA, NO VIETNAME, EM TROCA DE UM CASAMENTO CONTRATADO COM UM HOMEM DE UM PAÍS MAIS RICO.

N

o dia do seu casamento, Ngoc Tuyen estava rodeada de estranhos. Sentou-se num banco do jardim botânico de Singapura, com um vestido vermelho debruado a renda preta e uma fita no cabelo bordada com missangas em forma de margaridas. Conhecera o noivo há dois meses e a família deste quando ali chegara, 16 dias antes. O mediador matrimonial interpretou a cerimónia para vietnamita e selaram o compromisso com um beijo seco nos lábios. Após assinar os documentos, o casamento de Tuyen ficou oficializado. “Que bom começo”, disse Tuyen. “Quero trabalhar o mais depressa possível.” Tuyen é uma migrante matrimonial – uma de dezenas de milhares de pessoas originárias do Vietname na última década. Tudo começa quando os mediadores matrimoniais avisam mulheres nas aldeias e cidades rurais de que vão receber a visita de homens vindos da Coreia do Sul, China, Taiwan e Singapura. Foi assim que Tuyen, de 34 anos, conheceu Tony Kong, de 45. A sua fotografia apareceu publicada no mural de Facebook de um mediador, acompanhada por um endereço na cidade de Ho Chi Minh e uma data em que ele viria ver e conversar com potenciais esposas. 68

N AT I O N A L G E O G R A P H I C

Esta mulher vietnamita casou-se com um homem singapurense há 11 anos e tem dois filhos dele, mas vive num casamento infeliz. Tem medo de

divorciar-se porque depende do marido para a renovação do visto de residência, arriscando-se a perder a guarda dos filhos.


MULHERE S EM MIGRAÇÃO

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Os termos eram claros: as mulheres deveriam vir preparadas para negociar mensalidades para si próprias e famílias e os homens deveriam declarar o seu salário. Em retribuição da sua beleza, juventude e companhia, as mulheres pretendem estabilidade financeira e, no caso de Tuyen, a oportunidade de trabalhar e enviar dinheiro para casa, para a família. As remessas de dinheiro são determinantes nas regiões rurais pobres do Vietname. “Não se trata de amor”, explica Mark Lin, casamenteiro e proprietário da agência matrimonial True Love Vietnam Bride, em Singapura. Mark sabe que a sua indústria se aproveita da disparidade económica. Em Singapura, o rendimento médio anual é de 75.100 euros; no Vietname, é de 6.330. Independentemente dos defeitos que impeçam os seus clientes de arranjar mulheres para se casarem em Singapura, pelo menos têm mais dinheiro do que as suas companheiras vietnamitas.

Tuyen pediu a Tony uma mensalidade de 302 euros, tendo-lhe ele contraproposto 180 euros, o montante que ganharia se tivesse ficado no seu país a vender comida numa banca de rua. Não é suficiente para sustentar a família, mas ela tem esperança de conseguir emprego num salão de manicura, caso a sua licença de trabalho seja aprovada. Poderia assim enviar dinheiro para os pais e para o seu filho de 5 anos. Para permanecer e trabalhar em Singapura, uma esposa migrante precisa de apresentar um requerimento para a concessão de um visto de visitante de longa duração, que é renovado a pedido do marido anualmente ou de dois em dois anos. Se ele não pedir a renovação, a mulher perde os seus documentos e possivelmente a custódia de todos os filhos nascidos do matrimónio. As mães, que dependem dos maridos para continuarem a viver em Singapura, podem sofrer maus tratos, negligência e infidelidade,


EM CIMA

Ngoc Tuyen e Tony Kong convivem no dia do seu casamento em Singapura, em Novembro de 2019. Um mediador matrimonial organizou o seu primeiro encontro, no Vietname, dois meses antes.

segundo notícias da comunicação social e relatórios de organizações que disponibilizam serviços de apoio. Tuyen, que se exprime rudimentarmente em mandarim, afirma não saber o que o seu novo marido pretende de si e, por isso, cozinha para ele e faz-lhe companhia. Não sabe se, nem quando, conseguirá obter o seu visto de visitante de longa duração. Isso depende do salário mensal do marido e Tony tem estado desempregado. No entanto, no dia do seu casamento, Tuyen mostrou-se disposta a desempenhar o papel de recém-casada. “Estou muito feliz”, disse. E depois, mais uma vez, perguntou ao intérprete quando lhe seria permitido trabalhar. — A. A.

À ESQUERDA

A Agência Matrimonial Mayle é uma das poucas que ainda restam em Singapura, depois das medidas repressivas tomadas pelo Estado contra os mediadores, por delitos e esquemas financeiros relacionados com imigração e tráfico de seres humanos. Muitos mediadores transferiram os seus serviços para a Internet, onde as jovens mulheres podem tentar atrair a atenção masculina.

Para trabalharem em Singapura, as migrantes DEPENDEM

dos maridos para a renovação dos seus vistos.

MULHERE S EM MIGRAÇÃO

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MYANMAR

AUSTRÁLIA

04

M YA N M A R u AU S T R Á L I A F OTO G RA FI A S D E M RID ULA AM IN

Encontrar a paz DEPOIS DE FUGIR A PERSEGUIÇÕES RELIGIOSAS E DE SUPORTAR UMA ATRIBULADA VIAGEM DE BARCO, ELA E A FAMÍLIA ENCONTRARAM LIBERDADE E APOIO NUM NOVO LAR.

A

princípio, Sajeda Bahadurmia, então com 26 anos, não sabia se os homens fardados iriam fazer-lhe mal. Corria o ano de 2013 e ela iria passar 14 dias, entre 23 de Abril e 6 de Maio, com o marido e os quatro filhos numa viagem de barco através do mar de Timor, partindo de uma cidade portuária na Indonésia rumo a Darwin, na ponta norte da Austrália. O navio transportava mais de cem migrantes, incluindo muitos rohingya, como eles, que fugiam à opressão no Myanmar, bem como dezenas de pessoas do Bangladesh e duas da Somália. Sempre que uma onda forte rebentava contra o casco, ela apertava o filho de 1 ano contra o peito, ao ver os tubarões nas águas escuras. A filha Asma, então com 10 anos, perguntou-lhe: “Vamos morrer?” Quando a Marinha de Guerra Australiana os recolheu, ela não sabia se os marinheiros iriam espancá-la, insultá-la ou apalpá-la, como os militares de Myanmar tinham feito no seu país. Mas foram simpáticos, conta. Respeitaram os costumes muçulmanos e os exames sanitários às refugiadas foram feitos por mulheres. Em seguida, as migrantes foram conduzidas a um centro de detenção em Darwin.

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Sajeda Bahadurmia, de 32 anos, abraça a mais velha dos seus seis filhos, Asma, de 16 anos, numa praia perto de Sydney. Sajeda veste um xaile branco que a mãe lhe ofereceu como amuleto de protecção há seis anos, antes de ela iniciar a sua terrível viagem de três meses. Muçulmanos rohingya, fugiram às perseguições em Myanmar, mas o refúgio encontrado na Austrália ainda é incerto, uma vez que não beneficiam de residência permanente.

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Na Austrália, Sajeda ouviu as pessoas DIZENDO

o que pensavam e sentiu-se à vontade para fazer o mesmo.

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EM CIMA

Noor Asma, uma mulher rohingya de Myanmar, durante uma aula de inglês em Sydney, segura ao colo o bebé recém-nascido. A maior parte das mulheres rohingya da turma chegou ali de barco entre 2013 e 2016, fugindo da violência. À ESQUERDA

Sajeda, ao centro, manifesta-se para exigir direitos para os refugiados na Austrália, país onde muitos vivem com vistos temporários durante longos anos, sem residência permanente, e outros são retidos em centros de detenção. “Quero que as nossas mulheres, tal como as outras mulheres, tenham oportunidades”, diz. “Quero que todos possam voar como eu.”

Há muito que o governo de Myanmar persegue os rohingya, uma minoria étnica muçulmana. A violência começou em 2012, levando Sajeda e a sua família a fugirem. Em finais de 2017, cerca de um milhão de rohingya já tinham escapado para o vizinho Bangladesh e para outros países. “Não podemos confiar na noite”, recorda Asma, hoje com 16 anos, referindo-se ao tempo em que os militares lhes entravam pela casa adentro. Violavam as mulheres e arrastavam os homens para a rua, detendo-os ou obrigando-os a trabalhos forçados. O governo de Myanmar proibiu o uso da palavra “rohingya”. Durante os três meses que passaram no centro de detenção, Asma e Sajeda sentiram-se ofendidas por as autoridades as tratarem por números, consoante o navio em que tinham chegado: ROM006 e ROM007. Mesmo assim, rapidamente se adaptaram à sua nova vida. Quando começou a frequentar a escola pública, Asma não sabia falar inglês, mas sorria e ria à mesa com as suas colegas australianas enquanto comiam pão com salsicha. “Fiquei obcecada com aquela comida em Darwin”, diz Asma. Por fim, Sajeda, hoje com 32 anos, e a família foram reinstaladas em Sydney, ao abrigo de um programa australiano que lhes pagou as passagens de avião e subsidiou as suas despesas de sustento durante os primeiros meses. Na qualidade de refugiados, tinham direito a receber ajudas do Estado. Sajeda descobriu o ketchup e perdeu-se de amores pelo churrasco australiano. Ofereceu-se como voluntária para trabalhar numa cozinha comunitária, arranjou um trabalho a tempo parcial na escola dos filhos e aprendeu a conduzir. A família mudou-se para uma casa nova em Lakemba, um subúrbio de Sydney onde se falava rohingya nas ruas. Viu a alegria estampada nos olhos dos filhos quando abriram a porta da sua primeira casa. “A palavra ‘liberdade’ surgiu, vinda não sei muito bem de onde”, diz Asma. “Estava escrito que era aqui que eu deveria estar. Esse sentimento de pertença inundava-me por dentro.” Em Myanmar, quem dizia o que pensava em voz alta arriscava-se a ser morto. Na Austrália, Sajeda ouviu as pessoas a exprimirem em público os seus pensamentos e ela fez o mesmo. No exterior da mesquita de Lakemba, vendo os muçulmanos espalharem-se pela rua após a oração, ela maravilha-se com o que vê: “É a primeira vez que vejo algo assim.” — A. A. MULHERE S EM MIGRAÇÃO

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PAQUISTÃO

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PAQ U I S TÃO F OTO G R A FI A S DE SAIY NA BAS H IR

Novas escolhas DEIXANDO A VIOLÊNCIA DA SUA CIDADE NATAL, OPTARAM POR PROSSEGUIR OS ESTUDOS E DESCOBRIRAM UMA CULTURA MAIS ABERTA QUE INSPIRAVA A CRIATIVIDADE.

A

cidade de Quetta, no Paquistão, encontra-se rodeada de altas montanhas cobertas de neve, mas Farheen, de 22 anos, nunca se aventurou lá. Não frequentava os bazares da cidade, fazia poucos amigos e evitava os rapazes. Gosta muito de dançar, mas apenas diante do espelho, em casa: na sua cultura, as mulheres podem ser envergonhadas por dançarem. “Não sou conservadora”, diz. “Tenho é muito medo.” Farheen, que tem apenas um nome, é uma hazara. Pertence a um grupo étnico afegão e a uma minoria religiosa xiita que há mais de um século é perseguida, discriminada e massacrada por grupos étnicos rivais e pelos talibã, entre outros extremistas religiosos. A pobreza e as vagas sucessivas de guerra e violência no Afeganistão empurraram muitos hazara para longe do país. Na década de 1960, os avós de Farheen atravessaram a fronteira com o Paquistão e instalaram-se em Quetta, cidade onde vivem actualmente cerca de meio milhão de hazara. Desde 2003, centenas, talvez mesmo milhares, de hazara em Quetta têm sido assassinados durante ataques e atentados à bomba. A cultura hazara pode ser brutalmente patriarcal.

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Bibi Sabar, de 22 anos, à esquerda, tira um auto-retrato com uma amiga, no exterior da Mesquita Faisal, em Islamabad. Bibi mudou-se para Islamabad para estudar Tecnologias de Informação, incentivada pela sua família porque a violência contra raparigas de etnia hazara, como ela, na sua cidade natal de Quetta tornava perigosa a universidade local.

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Em Islamabad, Bibi apanha um autocarro com colegas da universidade para irem a um centro comercial. Este passeio teria sido raro em Quetta, onde a violência perpetrada contra as muçulmanas xiitas hazara por militantes sunitas gera receios de sair dos complexos residenciais murados.


“Falam em homicídios por honra com imensa ligeireza”, diz Farheen, referindo-se à prática de os homens matarem as mulheres que crêem ter envergonhado a família. “Isso assusta-me.” Farheen dá a seguinte explicação: “Quando uma pessoa parte para Quetta, a sua mente começa a fechar-se. Tal como a mente, o coração.” No entanto, quando alguém se afasta de Quetta, a mente e o coração abrem-se. Os hazara que se irritam com os rigores da vida em Quetta podem decidir que, para terem um futuro, precisam de migrar para países como a Austrália, o Irão e a Turquia. Para muitos jovens hazara residentes em Quetta, os estudos têm sido o seu caminho rumo a uma nova confiança e à liberdade. Segundo a interpretação hazara dos valores islâmicos, os estudos são socialmente desejáveis e um imperativo religioso. Constituem um objectivo para toda a vida, quer para homens quer para mulheres. Para Farheen, isso implicou deixar Quetta, em 2017, para estudar literatura na Universidade Nacional de Línguas Modernas em Islamabad, a capital do Paquistão. Uma vez ali chegada, Farheen diz que os seus medos se atenuaram. Começou a viajar de autocarro para as aulas e a frequentar locais públicos cheios de movimento. Ficou com o espírito mais aberto. Quando pela primeira vez ouviu falar em K-pop, o género musical oriundo da Coreia do Sul, desvalorizou-o. “Os rapazes pareciam raparigas e usavam maquilhagem”, diz. Mas as canções, fáceis de memorizar, chamaram-lhe a atenção. Começou a ouvir atentamente as letras e, pouco depois, estava viciada. Agora diz sentir-se mal pelo seu juízo desfavorável. “A K-pop ajudou-me muito a aceitar novas ideias.” Farheen interessou-se pela cultura coreana. Estudou o idioma e praticou danças de K-pop. As bandas interpretavam canções sobre homofobia, saúde mental e a dificuldade de ser adolescente, o que a ajudou a emergir de vários anos de ansiedade e depressão. Ela vê a sua incursão até Islamabad como um primeiro passo no sentido de descobrir um mundo para lá dos limites de Quetta. Depois de se licenciar, gostaria de visitar o Canadá, estudar dança nos EUA ou fazer uma viagem pelo Afeganistão, o seu país natal. Consegue imaginar-se a viver na Coreia do Sul. Acima de tudo, Farheen segue um rumo que a libertará do seu passado e do peso da história de perseguição da sua cultura. Para onde quer ir? Farheen diz: “Para um sítio onde ninguém me conheça.” — A. A. 80

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EM CIMA

Haleema, de 22 anos, à esquerda, uma rapariga hazara de Quetta, que só tem um nome, conversa com os colegas durante uma aula de poesia. Para financiar o curso universitário em Islamabad, Haleema trabalha como educadora de infância. Planeia tornar-se professora. À D I R E I TA

Outra rapariga hazara de Quetta, Farheen, de 22 anos, estuda literatura inglesa em Islamabad. Faz os trabalhos de casa num hostel para mulheres perto da sua universidade. Sobre a cabeceira da cama, vêem-se fotografias das estrelas de K-pop a cujas canções ela atribui o mérito de terem tornado a sua mente mais aberta.


As hazara vivem em receio constante da violência em Quetta. São frequentemente obrigadas a decidir que, para terem um FUTURO e prosseguirem os estudos, têm de partir.

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Vista de frente, a cabeça é impressionante, mas a vespa-asiática não é mais agressiva do que as outras vespas sociais ibéricas. Só ataca se sentir que a colónia está ameaçada. Ninguém deve aproximar-se a menos de cinco metros dos seus ninhos. NICOLAS REUSENS/ AGETTY IMAGES

A VESPA ASIÁTICA Chegou a França vinda da China em 2004, mas instalou-se em grande parte da Europa, incluindo a Península Ibérica. Técnicos e cientistas discutem como reagir. TEXTO DE EVA VAN DEN BERG



Uma Vespa velutina abate uma abelha-melífera. As vespas adultas são vegetarianas, mas caçam invertebrados para alimentar as larvas. As abelhas-melíferas são uma presa tão abundante e fácil para elas como as ovelhas para os lobos. PASCAL GOETGHELUCK/ AGE FOTOSTOCK


Graças ao relato pormenorizado dos cientistas do Museu Nacional de História Natural de Paris, a rota da invasão da vespa-asiática é conhecida em pormenor. 86

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Os ninhos das vespas-asiáticas são sempre construídos por uma rainha durante a sua breve etapa solitária, durante a qual funda um pequeno ninho embrionário para a primeira postura de ovos. À medida que vão emergindo, as obreiras dedicam-se a ampliar o ninho, caçar e alimentar as larvas, enquanto a rainha se preocupa exclusivamente com a postura.

O primeiro testemunho oficial remonta ao dia 1 de Novembro de 2005, quando Jean-Pierre Bouguet, entomólogo amador, avistou no seu jardim, em Nérac, na Aquitânia, uma estranha vespa sugando a doce polpa de um dióspiro maduro, fruto que atrai um elevado número de himenópteros, sobretudo vespas e vespões, no Outono. Bouguet tinha a certeza de que nunca vira outra na zona. Seria um insecto mutante? Ou talvez uma espécie invasora? Para averiguar, contactou Jean Haxaire, entomólogo-adjunto do Museu Nacional de História Natural de Paris (MNHN). Embora a sua especialidade fossem os lepidópteros, Haxaire identificou o animal, comparando imagens da Internet com exemplares recolhidos em armadilhas para coleópteros. Depois de confirmar com vários especialistas, ficou claro: tratava-se de uma vespa-asiática, mais IVANVIEITO/ GETTY IMAGES

especificamente um exemplar da espécie Vespa velutina. A cerca de 50 quilómetros de Nérac, outro cidadão francês observava, há meses, o desenvolvimento de um grande ninho debaixo do alpendre do seu terraço. Em Novembro, devido a uma infiltração de água, o ninho descolou-se e caiu no solo, com alguns exemplares mortos no interior. Estes foram levados para o MNHN a fim de serem identificados: eram todos machos da mesma vespa-asiática identificada em Nérac, ficando assim comprovada a primeira nidificação da espécie observada em França. Em 2006, Jean Haxaire e os seus colaboradores publicaram a descoberta no jornal da Sociedade Entomológica de França, confirmando que a espécie invasora já se instalara no país. Nessa data, contabilizavam-se 200 ninhos em 12 departamentos e, desde então, a sua expansão tem sido imparável. A V E S PA-A S I ÁT I C A

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Um trabalhador controla vespeiros numa exploração agrícola no condado de Wangmo, no Sudoeste da província chinesa de Guizhou. Tanto as larvas como as pupas das vespas, altamente proteicas, são habitualmente consumidas fritas. 88

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Na gastronomia chinesa, as larvas de algumas vespas são um manjar, incluindo as da vespa-asiática. Além disso, os ninhos são usados para fins medicinais.

BARCROFT MEDIA/GETTY IMAGES

A V E S PA-A S I ÁT I C A

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A VIAGEM DA VESPA Tudo indica que uma única rainha fecundada tenha desembarcado em 2004 no porto de Bordéus, oculta no interior de uma peça de cerâmica. Dezasseis anos mais tarde, colonizou grande parte do território europeu, onde se fixou em França, Portugal, Espanha, Itália, Alemanha, Luxemburgo, Bélgica, Países Baixos e Suíça. No Reino Unido, os ninhos detectados foram destruídos, mas a espécie já deverá estar disseminada pelo Sul das ilhas.

Presença da vespa-asiática na Europa em 2020 Permanente Esporádica

Mas como chegara esta vespa a França, vinda dos seus territórios de origem na Ásia? As primeiras hipóteses foram apresentadas quando o MNHN conseguiu contactar um horticultor que assegurou ter visto o insecto em 2004 nessa mesma região. Era possível, disse, que tivesse chegado ao interior das peças de cerâmica chinesa que importara, a bordo de um cargueiro chinês que atracou no porto de Bordéus. Análises moleculares realizadas pelo CNRS confirmaram as suspeitas: era a Vespa velutina, da subespécie nigrithorax. Outros estudos realizados em França a partir de 2007 revelaram muitos aspectos desconhecidos desta vespa. Conseguiram até determinar, através de complexas análises genéticas, que a invasão fora, possivelmente, desencadeada por uma única rainha fecundada por um ou dois machos, proveniente de uma área situada entre as províncias chinesas de Zhejiang e Jiangsu. Como muitas outras vespas sociais, a Vespa velutina gera colónias anuais estabelecidas por uma única rainha depois de fundar um pequeno ninho 90

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na Primavera, feito com fibras de madeira mastigada. Nesse ninho embrionário, a rainha fecundada (se não o estivesse, apenas nasceriam machos dos seus ovos) deposita a sua primeira postura e cuida dela até emergir o primeiro grupo de obreiras adultas. “Estas ampliam o ninho embrionário e alimentam as larvas para que a rainha se dedique exclusivamente à produção de ovos. A colónia iniciada por uma única rainha poderá produzir 15 mil indivíduos entre Abril e Novembro. No Outono, um ninho poderá acolher 2.000 obreiras capazes de produzir mais de mil futuras rainhas e machos”, explica Claire Villemant, conservadora da colecção de himenópteros do MNHN. No final do Verão, constroem celas para criar fêmeas e machos férteis, que abandonarão o ninho no Outono, quando a vida da rainha já se aproxima do fim, iniciando os voos de acasalamento. As fêmeas, poliândricas, acasalarão com vários machos. Em seguida, a maioria dos exemplares morrerá com o despontar do Inverno, excepto as futuras rainhas. Estas empanturram-se de alimentos ricos em açúcares antes de entrarem em hibernação, escondidas nalgum recanto e, na Primavera, as que tiverem sobrevivido ao frio (estima-se que apenas 5% do total) saem em busca de um novo local para reiniciar o seu ciclo vital que pode ter lugar até 50 quilómetros do vespeiro onde nasceram, o qual, uma vez abandonado, se irá biodegradando. da sua primeira incursão em território francês, esta vespa instalou-se confortavelmente na Europa. Além de França, fixou-se na Alemanha, na Bélgica, no Luxemburgo, nos Países Baixos, na Suíça, em Itália e na Península Ibérica. É possível distingui-la por possuir o abdómen negro e exibir uma fina linha amarela no início deste e uma ampla faixa cor de laranja no quarto segmento. As rainhas medem 3,5 centímetros na Primavera. Os machos medem 3 centímetros e as obreiras, 2,5 centímetros. Em Espanha, o primeiro a avistá-las, em 2010, foi o entomólogo Santiago Pagola, em Amaiur, na comunidade de Navarra. Ele encontrou uma vespa morta no solo e entrou em contacto com Leopoldo Castro. Este especialista em himenópteros já previra a entrada iminente do invasor no País Basco, a partir de França, e acompanhara, ao pormenor, a sua evolução naquele território. Actualmente, a vespa-asiática “está presente de forma permanente em zonas da Galiza, Astúrias, Cantábria, País Basco, Navarra, La Rioja, Castela e Leão e Catalunha. De forma esporádica, também foi H OJ E , 1 6 A N O S D E P O I S

MAPA: NGM-E. FONTE: LEOPOLDO CASTRO


Nos ninhos de bútio-vespeiro, os investigadores encontraram numerosos restos de vespeiros de vespa-asiática. Tudo indica que o insecto seja parte da dieta desta ave de rapina florestal.

identificada em certas zonas de Aragão. Esteve presente nas ilhas Baleares entre 2015 e 2018, mas conseguiram erradicá-la, e foi avistada na Extremadura há uns anos, mas não voltaram a vê-la”, diz. Em Setembro de 2011, dois investigadores portugueses confirmaram em Viana do Castelo o que também já se temia na comunidade de entomólogos e apicultores portugueses: era uma questão de tempo até a vespa-asiática ser detectada em território português. José Manuel Grosso-Silva, curador das colecções entomológicas do Museu de História Natural e da Ciência da Universidade do Porto, e Miguel Maia, da Associação Apícola Entre Minho e Lima, de Vila Nova de Cerveira, confirmaram a presença deste insecto invasor em quatro apiários do concelho minhoto, publicando a sua descoberta na revista “Arquivos Entomolóxicos”, no início do ano seguinte. Nos anos posteriores, perdeu-se uma oportunidade importante para conter a progressão da espécie invasora. “Teria sido possível atrasar a progressão da espécie se as autoridades tivessem investido na captura das rainhas fundadoras na Primavera, pois cada fundadora capturada equivale a uma futura colónia a menos”, diz José Manuel Grosso-Silva. “Mata-se uma raiARTUR TABOR/NPL/CORDON PRESS

nha-fundadora e previne-se o nascimento dos milhares de obreiras que a sua colónia vai ter. O problema é que a gestão da situação da vespa-asiática tem sido muito diferente e a incapacidade de compreensão e/ou implementação pelas autoridades da captura preventiva de fundadoras na Primavera é um enigma, tendo em conta que esta abordagem é advogada desde 2015. Não creio que exista, desta forma, hipótese de eliminar a vespa-asiática em Portugal.” consumam quase exclusivamente alimentos de origem vegetal ricos em hidratos de carbono, as larvas precisam de proteínas de origem animal para se desenvolverem. E essas proteínas são fornecidas pelos adultos, sob a forma de um puré constituído por invertebrados e carcaças de todos os tipos. Entre esses invertebrados destaca-se a abelha melífera (Apis mellifera), uma presa fácil e superabundante para a vespa. Por conseguinte, o vespídeo causa baixas significativas entre os insectos autóctones, mas também afecta as colheitas de fruta e cria mais uma dificuldade para a apicultura, já afectada por diversos problemas. Pode haver mil obreiras operacionais em cada vespeiro, gerando grande quantidade de néctar. As vespas atacam furiosamente as colmeias das regiões vizinhas. Esses ataques causam baixas e provocam alterações comportamentais na colmeia que podem até causar o colapso de colónias inteiras. E M B O R A O S V E S P Í D E O S A D U LT O S

A V E S PA-A S I ÁT I C A

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A vespa-asiática invadiu o nosso território da mesma maneira que algumas vespas europeias colonizaram outros continentes. Para a Vespa velutina, as abelhas-melíferas, domesticadas há séculos e omnipresentes na Península Ibérica, são como as ovelhas para os mamíferos predadores: saborosas e desajeitadas. Costumam atacá-las quando regressam do campo carregadas de néctar e pólen. Nesse momento são a presa ideal: as vespas-asiáticas caçam-nas e, segurando-se num ramo, desfazem-nas até ficarem com a parte mais nutritiva, o tórax, que trituram para as larvas ávidas. “O pânico destes ataques leva as abelhas a deixarem de sair e a optarem por se alimentar das reservas. No entanto, se isso se prolongar demasiado, quando o Inverno chegar não terão despensa e morrerão”, explica Narcís Vicens, técnico ambiental de Girona, em Espanha. Não é curiosamente o caso de uma das abelhas melíferas da Ásia, a Apis cerana, que sabe defender-se destes ferozes himenópteros. Quando uma vespa se aproxima da colmeia da Apis cerana, as abelhas formam um grupo muito compacto à sua volta e batem as asas até aumentarem a temperatura no interior dessa massa viva: uma bola de calor que alcança 45°C, a temperatura máxima suportada pela Vespa velutina, que acaba por morrer. causado pela Vespa velutina, as autoridades dos países afectados prepararam conferências e panfletos para divulgação, alertaram as populações, colaboraram com investigadores para proteger as colmeias (utilizando redes e harpas eléctricas que dificultam a entrada destas vespas nas colmeias). O Serviço de Protecção da Natureza e do Ambiente da Guarda Nacional Republicana (SEPNA-GNR), as juntas de freguesia e o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas têm registado um número crescente de avistamentos de vespeiros em Portugal. A população tem sido alertada para não se aproximar delas. “As vespas-asiáticas têm um comportamento mais defensivo e protector das colónias do que as nossas vespas. Surgem mais animais a defender o PA R A E N F R E N TA R O P R O B L E M A

Um investigador segura um vespeiro de Vespa velutina no Instituto de Investigação de Biologia de Insectos (IRBio), em França. Estes ninhos podem atingir 80 centímetros de diâmetro e um metro de altura. AFP/GETTY IMAGES

vespeiro e reagem de forma mais rápida ao que entendem como ameaça, aumentando a probabilidade de picadas”, diz o entomólogo português. O ciclo de vida da espécie tem sido abundantemente descrito em França, mas existem diferenças significativas face ao que sucede em Portugal, sobretudo porque um Inverno menos rigoroso pode não matar todas as obreiras da colónia, permitindo que o vespeiro permaneça activo até à Primavera seguinte. “Mas os vespeiros nunca arrancam para um segundo ano de vida”, esclarece Grosso-Silva. Investigadores da Universidade de Alcalá, liderados pelo ecologista Salvador Rebollo, estudam, na Galiza, o potencial de uma ave de rapina: o bútio-vespeiro, um dos poucos predadores naturais dos ninhos de vespas na Península Ibérica. “Até 2012, ano em que a vespa-asiática apareceu na Galiza, a população reprodutora do bútio-vespeiro na nossa área de estudo, as rias Baixas, era esporádica. Contudo, segundo os nossos dados, multiplicou-se por dois ou três desde a chegada deste insecto”, explica. Os seus resultados provêm da análise dos restos de presas e fragmentos de favos de vespeiros localizados no ninho e imediações, e da análise do registo fotográfico das câmaras instaladas. “Em todos os ninhos de bútio-vespeiro estudados, apareceram restos de vespa-asiática, o que demonstra que é uma parte importante da dieta desta ave de rapina e poderá ser um potente aliado no controlo biológico da velutina”, conclui. Armadilhas, inserção de biocidas com drones ou armas, injecção de ar quente, predação e controlo biológico, destruição de ninhos, equipamentos defensivos para colmeias… São muitos os métodos testados para lutar contra a vespa, mas é consensual que esta espécie veio para ficar. Os especialistas sublinham que a gestão desta invasora deve ser acompanhada de medidas que permitam uma regulação das colmeias. Catalogadas como gado, as abelhas melíferas são criadas aos milhões e são tantas que roubam o lugar às restantes abelhas (dados recentes apontam para a existência de 1.097 espécies diferentes na fauna ibero-balear) e aos outros polinizadores silvestres, sobre os quais não se fala. Os planos implementados para a vespa-asiática e para as abelhas melíferas deverão ter igualmente em conta estas importantes espécies. j A V E S PA-A S I ÁT I C A

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D IÁRIO DE UM A I LU STR ADOR A

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N AT I O N A L G E O G R A P H I C


LISBOA A AGUARELA I L U S T R A Ç Õ E S D E I N N A K O R N E E VA

Pelo pincel da artista Inna Korneeva, a capital portuguesa fica gravada em pranchas repletas de vida e arte, captando a essência e cores de uma cidade cosmopolita.


N OTAS |

DIÁRIO DE UMA ILUSTRADORA

Casas de telha laranja, labirintos estreitos de ruas e becos, roupa a secar ao sol, gaivotas grasnando, o céu sempre azul, ou pescadores a bordo das suas embarcações. A artista russa encontrou inspiração nestes 96

N AT I O N A L G E O G R A P H I C


quadros do quotidiano lisboeta. “Nunca vi um céu tão azul como o de Lisboa”, conta. “É um mundo tão diferente do que eu conheço que procurei registá-lo nas minhas ilustrações.” LISBOA A AGUARELA

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N OTAS |

DIÁRIO DE UMA ILUSTRADORA

“Gostava que as pessoas não vivessem sempre a correr”, explica a ilustradora. “Muitas coisas à nossa volta passam despercebidas porque estamos sempre com pressa.” Nas suas representações, Inna desenha o que viu e a fez sorrir, como uma mulher que tricota no comboio com a Ponte 25 de Abril no horizonte ou um vendedor de castanhas na Baixa de Lisboa. 98

N AT I O N A L G E O G R A P H I C


A Lisboa destas aguarelas é uma cidade de becos e ruas estreitas, de prédios baixos e garridos, de fachadas nem sempre bem conservadas, mas onde fervilha o dia-a-dia da cidade e dos seus habitantes. “Adorei Alfama”, explica a autora. “A partir daí, já não quis correr para ver mais nada. Satisfez-me percorrer vagarosamente as ruas sinuosas e observar as pessoas no seu quotidiano.” LISBOA A AGUARELA

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D I Á R I O

D E

U M A

I L U S T R A D O R A

POR TRÁS DAS PRANCHAS N S F I L M E S D E A L A I N TA N N E R , L I S B OA É Q U A S E B R A N C A . N A S T E L A S D E A R PA D S Z E N E S , A C A P I TA L TO R N A- S E A M A R E L A . Q U A I S S ÃO A F I N A L O S TO N S D O M I N A N T E S D E L I S B OA?

InnaKorneevasempre adorou desenhar. A mãe comprava-lhe álbuns com reproduções de trabalhos de artistas, avidamente estudados pela criança nascida em 1978 na pequena cidade de Sosnovoborsk, na região de Penza (Rússia). Ivan Shiskin, Vasily Perov e Vincent van Gogh foram as influênciasmaisacutilantesdessaépoca. A artista não chegou a seguir um curso de Artes e especializou-se em engenharia florestal. Acabou, porém, por concretizar a sua vocação mais tarde. “O meu trabalho actualmente é na área de arquitectura paisagística. Continuo a desenhar, mas desenho jardins”, brinca. Viajante regular, Inna é também fotógrafa e ilustradora. Mantém sempre consigo um diário de viajante, anotando as impressões sobre cada local visitado e produzindo ali esboços rápidos das formas e silhuetas que mais captaram a sua atenção. Fotografa tudo e mais tarde, já na Rússia, recupera DESDE PEQUENA,

com o pincel as memórias do que mais gostou em cada viagem. Em 2012, Inna visitou Lisboa e ficou cativada com os bairros antigos. Percorreu as cidades com a lentidão e carinho que muitos lisboetas não dedicam à sua cidade, apressados pelas urgências do quotidiano. Desenhou muito nos meses seguintes. Com a preocupação de nunca alterar a arquitectura e de manter a fidelidade dos esboços face à realidade observada, Inna regressou à Rússia e começou a recuperar, a seis mil quilómetros de distância, a cidade retida na sua memória. Desenhando em aguarela “porque o computador, com frequência, contradiz o que foi desenhado no papel”, Inna voltou a Portugal noutras ocasiões, enfeitiçada pela luz dos céus de Lisboa. E foi na capital portuguesa que concretizou outro sonho, apreciando pela primeira vez quadros originais de Van Gogh. “Tudo acontece por um motivo”, diz.

A essência de uma cidade pode não estar escondida nos seus monumentos, mostrando-se em actos tão comuns como uma refeição num restaurante popular.

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INSTINTO BÁSICO

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há mais de 30 anos, Uldis Roze não faz ideia de quantas vezes já ouviu a mesma piada. “Como se reproduzem os porcos-espinhos? Com muito cuidado.” A resposta está “correcta, mas não é muito esclarecedora”, diz este professor emérito de Biologia no Queens College de Nova Iorque. Na realidade, o ritual de acasalamento do Erethizon dorsatum é bastante elaborado, prolongado e... húmido. A época anual de acasalamento da espécie acontece no início do Outono. Na árvore escolhida, a fêmea sinaliza que está prestes a procriar, segregando uma substância odorífera. Atraídos pelo cheiro, os machos lutam entre si nos ramos das árvores e no solo. Aquele que ganhar a disputa conquista também direitos de acasalamento, mas a sedução ainda não está completa. Para induzir o cio na fêmea, o macho esguicha urina para a fêmea: algumas gotas de cada vez. A urina é “impulsionada a uma velocidade tão elevada que, mesmo que um macho esteja distante da fêmea, a urina pode alcançá-la “, diz Uldis Roze. O macho continua assim, “em projecções repetidas ao longo de muitas horas”, até a fêmea entrar no “espírito”. Por norma, os dois descem da árvore para acasalar. Os espinhos podem tornar o acto de montar a fêmea numa sugestão... espinhosa. Porém, quando esta está pronta, curva a cauda por cima do lombo coberto de espinhos de forma a que a parte de baixo da cauda sem espinhos fique virada para cima. O macho pode deste modo colocar as patas nessa superfície e passar à acção. Sete meses depois, a fêmea dará à luz uma única ninhada. A cria nasce já com todos os espinhos, mas também embrulhada no saco amniótico para facilitar a chegada ao mundo. — PAT R I C I A E D M O N D S O B S E RVA D O R D E P O RC O S - E S P I N H O S

AMOR... PICANTE ENTRE OS PORCOS-ESPINHOS FOTOGRAFIA DE J O E L SA RTO R E

E X P L O R E

ESTE PORCO-ESPINHO-NORTE-AMERICANO FOI FOTOGRAFADO NO ZOOLÓGICO DAS GRANDES PLANÍCIES EM SIOUX FALL, DAKOTA DO NORTE (EUA).


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G E O G R A P H I C

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NA TELEVISÃO

Na Rota do Tráfico E S T R E I A : 1 3 D E F E V E R E I R O, À S 2 2 H 3 0 . TO D O S O S S Á B A D O S .

Tesouros do Egipto 2 E S T R E I A : 1 D E F E V E R E I R O, À S 2 3 H

Acompanhando os egiptólogos que escavam no vale dos Reis, no Egipto, a segunda temporada desta série dá conta das descobertas e contratempos vividos por quem está no campo. Utilizando tecnologia inovadora e a intuição para desvendar alguns segredos da Antiguidade, a equipa contribui para reescrever a história tal como a conhecemos.

Especial Changemakers 1 7 D E F E V E R E I R O, A PA RT I R DA S 1 3 H 3 0

No dia 13 de Fevereiro, o canal National Geographic apresenta a nova série “Na Rota do Tráfico com Mariana van Zeller”, apresentada pela jornalista portuguesa, Mariana van Zeller, vencedora de um Peabody Award em 2010, pelo documentário “The OxyContin Express”. Nesta série, a jornalista explora o funcionamento dos mercados negros mais perigosos do mundo, conquistando a confiança e entrando nas redes de quem compra e vende bens e serviços interditos. Em cada episódio, Mariana explora diferentes aspectos do tráfico clandestino – desde os mercados de drogas aos de armas ou de vida selvagem. Integrando-se neste mundo, a série dá a conhecer o funcionamento dos negócios e expõe as circunstâncias geopolíticas e o contexto que criaram esta economia paralela e lucrativa.

Este mês, o canal celebra a vida de mulheres fascinantes que fizeram história. Não perca os documentários sobre a princesa Diana, Jane Goodall, Dian Fossey, Lisa Ling, Amelia Earhart ou a brigada akashinga, as vigilantes de natureza que combatem a caça furtiva do Zimbabwe. NATIONAL GEOGRAPHIC (NO TOPO); WINDFALL FILMS LTD (AO CENTRO); KIM BUTTS (EM BAIXO)


Big Cat Month D OM I N G O S A PA RT I R DA S 1 7 H

O National Geographic Wild dedica de novo um mês à conservação dos felinos da Terra. Em todos os domingos de Fevereiro, a partir das 17 horas, dedicaremos programação especial aos fantásticos felinos do planeta, procurando enfatizar a sua diversidade, a sua capacidade para viver em nichos ecológicos em quase todos os continentes e as ameaças que pairam sobre o seu futuro. Com filmagens impressionantes, o National Geographic Wild fornece uma abordagem mais próxima e intimista de leões, tigres, chitas, panteras e outros felinos. Entre os vários programas, destacam-se as estreias de “Leopard & Hyena: Strange Alliance”, “Serengeti Speed Queen”, “Diary of a Teen Leopard”, “Cecil: The Legacy of a King”, “A Leopard Legacy”, “Jade Eyed Leopard” e “Tiger Queen of Taru”.

O Incrível Dr. Pol E S T R E I A : 1 D E F E V E R E I R O, ÀS 20H15 BEVERLY JOUBERT (EM CIMA); EARTH TOUCH (PTY) LTD (AO CENTRO); NATIONAL GEOGRAPHIC (EM BAIXO)

O veterinário mais carismático da National Geographic está de volta para mais uma temporada. No Inverno ou no Verão, a qualquer hora do dia, há sempre um animal que precisa dos cuidados mágicos do Dr. Pol, o veterinário holandês que se radicou no estado de Michigan há quatro décadas.


P R Ó X I M O

N Ú M E R O

Obcecados com Marte

O Planeta Vermelho fascina a humanidade. Quanto mais conhecemos sobre Marte, mais nos atraem os seus mistérios. As novas missões espaciais ajudarão a revelar mais segredos.

N AT I O N A L G E O G R A P H I C

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MARÇO 2021

Injustamente condenados

Em média, todos os anos, quatro pessoas condenadas à morte nos EUA são ilibadas das acusações. Depois de passar pelo corredor da morte, não é fácil começar uma nova vida.

Uma fronteira nas montanhas

Uma pequena mudança num mapa de uma agência dos EUA desencadeou uma guerra entre a Índia e o Paquistão num campo de batalha situado no ponto mais alto do mundo.

A sardinha, tesouro natural português A sardinha é o recurso alimentar marinho mais apreciado em Portugal. O censo mais recente sobre a população desta espécie trouxe notícias risonhas.

IMAGEM COMPOSTA, NASA / JPL-CALTECH / MICHAEL RAVINE / MALIN SPACE SCIENCE SYSTEMS


História

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