04/09/20
CAPA
04/09/20
REPORTAGEM
Tchau, Toffoli
Liminares controversas, proximidade excessiva com a política e a marca indelével da censura: um retrato da pior presidência da história do Supremo Tribunal Federal Fabio Leite José Antonio Dias Toffoli, o ministro mais jovem da história a assumir a presidência do Supremo Tribunal Federal, entrega no próximo dia 10 ao colega Luiz Fux o comando de um tribunal desgastado junto à opinião pública. Não apenas por decisões que ele próprio assinou, algumas resgatando entendimentos já ultrapassados que salvaram o futuro de companheiros que o colocaram no tribunal, mas também pela reação desproporcional a
notícias e opiniões críticas à corte, muitas delas provenientes das falanges bolsonaristas. Hoje com 52 anos, Toffoli assumiu o comando do STF em setembro de 2018 pregando “harmonia” e invocando o papel de “mediador” dos conflitos da sociedade, mas deixa como herança um pesado passivo, representado por um inquérito sem fim, que transformou a corte em polícia e censora, a pretexto de defender a instituição de ofensas, ameaças e fake news. Em seu discurso de posse, o ministro recorreu à filósofa alemã Hannah Arendt para enaltecer a democracia e combater o totalitarismo. Àquela altura, a Lava Jato estava no auge, escancarando a banalidade do mal da corrupção brasileira e tentando romper um
padrão que deforma a democracia e perpetua projetos de poder. Pois foi justamente na gestão de Toffoli que o Supremo reagiu para impor travas à operação. Em dois anos, foram três golpes capitais. Caiu o entendimento que permitia a prisão de réus após condenação em segunda instância, permitindo a soltura de condenados na Lava Jato, como o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o exministro José Dirceu. Processos envolvendo crimes comuns, como corrupção e lavagem de dinheiro, e que guardavam relação com campanhas foram transferidos para a Justiça Eleitoral. A corte também decidiu que réus delatados devem ser ouvidos depois dos delatores, o que resultou na anulação de condenações. “Se não fosse este Supremo Tribunal Federal, não haveria combate à corrupção no Brasil”, bradou Toffoli, após proferir seu voto no julgamento que sacramentou esta última decisão, em outubro de 2019. As decisões beneficiaram, entre outros, políticos que ajudaram Toffoli a ascender na carreira. Advogado nascido em Marília, no interior de São Paulo, o ministro trabalhou como assessor em gabinetes petistas na Assembleia Legislativa de São Paulo e na Câmara dos Deputados na década de 1990, quando tentou tornar-se juiz por meio de concurso público. Foi reprovado duas vezes. Toffoli se especializou em direito
04/09/20 eleitoral na função de advogado do PT. Quando Lula chegou ao poder, em 2003, ele se transferiu para Brasília. Foram mais de dois anos assessorando José Dirceu na Casa Civil e, depois, defendendo o governo petista como advogadogeral da União. No meio jurídico, Toffoli é visto como o ministro mais político do Supremo – e sua passagem pela presidência do tribunal acentuou essa percepção. Os primeiros sinais vieram logo na largada, quando ele propôs um “pacto” entre os três Poderes e se dispôs a exercer o papel de “moderador” no tumultuado cenário nacional. “Ao se apresentar como poder moderador, ele (Toffoli) mostra uma absoluta ignorância à Constituição, porque poder moderador se aplica a monarquias constitucionais e não em uma República como o Brasil. Ele coloca como se o Supremo fosse um juiz em audiência de conciliação em primeiro grau. Não existe isso. Com essas posições políticas, ele assume as fragilidades de formação jurídica, mostra que ainda não percebeu o que é ser juiz. Atua como um político a fazer cortesias com poderosos e potentes”, afirma o jurista Walter Maierovitch, que exerceu a magistratura por 35 anos. O período foi farto nos gestos de cortesia com o mundo da política. Além da participação em agendas do presidente Jair Bolsonaro para divulgar programas do governo e almoços com vários ministros da Esplanada, só nos últimos doze meses Toffoli recebeu mais de uma centena de deputados, senadores,
governadores, ex-parlamentares e dirigentes partidários em seu gabinete. Na lista estão figuras como o deputado Paulinho da Força, do Solidariedade, o senador Ciro Nogueira, do Progressistas, e o Pastor Everaldo, do PSC, todos alvos de investigação ou denunciados por corrupção — este último, por sinal, está preso. Decisões de Toffoli agradaram a políticos enrolados com a Justiça, incluindo os novos ocupantes do poder. Bolsonaro, que antes o chamava de ministro petista, passou a elogiá-lo e a ouvi-lo, em uma aproximação que começou ainda antes da posse do presidente, com a escolha do general Fernando Azevedo e Silva para ser o ministro da Defesa. Até então, Azevedo era assessor de Toffoli no Supremo.
Iniciado o governo Bolsonaro, ele passou a funcionar como um elo entre o Planalto e a corte. É claro que decisões de um juiz do Supremo não se guiam por conveniências políticas – nem deveriam. Mas Bolsonaro não tem do que reclamar do ministro que outrora chamava de petista. Por meio de uma liminar, Toffoli suspendeu por mais de quatro meses a investigação do “rachid” no antigo gabinete do senador Flávio Bolsonaro na Assembleia Legislativa do Rio, em razão do compartilhamento de dados do Conselho de Controle de Atividades Financeiras, o Coaf, e da Receita Federal com o Ministério Público. A decisão, assinada durante o recesso de julho do ano passado, paralisou mais de mil investigações em todo o
04/09/20 país. Três semanas antes, o Fisco havia cobrado explicações de empresas que contrataram os serviços do escritório de advocacia da mulher do ministro, Roberta Rangel. A decisão que atendeu os anseios do filho 01 do presidente Bolsonaro pegou mal, inclusive entre os colegas de toga. No fim de novembro, o caso do compartilhamento de dados do Coaf foi levado ao plenário, e Toffoli sofreu uma fragorosa derrota. Quando oito ministros já haviam se manifestado contra a liminar de Toffoli, o próprio presidente da corte decidiu mudar seu voto. Na ocasião, alguns ministros que costumam ser mais comedidos não conseguiram se conter. “Tem uma pergunta mais fácil?”, disse Edson Fachin ao ser indagado por jornalistas sobre o confuso voto de Toffoli. Luís Roberto Barroso foi ainda mais irônico, dizendo que era preciso “chamar um professor de javanês” para interpretar a mudança de entendimento do colega. “Nesses dois anos como presidente, o ministro Toffoli tomou várias medidas graves sem comunicar o plenário. Esse tipo de expediente só deveria ser usado para casos urgentes, com danos irreparáveis. O caso do Coaf, no qual ele mudou o voto de forma envergonhada, foi de uma gravidade que em qualquer país sério daria o impeachment dele”, afirma Maierovitch. Embora o chefe do Supremo tenha a prerrogativa de decidir
quando e quais processos serão levados a julgamento no plenário, é por meio das decisões monocráticas, como foi a do Coaf, que ele exibe seu poder de forma mais direta. Nos últimos 15 anos, o rol de procedimentos que podem ser analisados e decididos individualmente pelo presidente do STF só cresceu, incluindo recursos que suspendem processos e habeas corpus que libertam presos. Isso ocorre com maior frequência durante o período de plantão judiciário, em janeiro e julho, quando todas os casos vão para análise da presidência. Um levantamento feito pelo Supremo em Números, projeto da Escola de Direito da FGV do Rio de Janeiro, mostra que entre os últimos oito presidentes, Toffoli foi o segundo que mais proferiu decisões monocráticas – ele fica atrás apenas da sua antecessora, Cármen Lúcia. Foram 102 despachos diários, na média. Só nos meses de plantão judiciário o ministro proferiu 1,1 mil decisões.
Para o jurista Joaquim Falcão, professor titular de Direito Constitucional da FGV do Rio, há uma “concentração de poder” demasiada na figura do presidente do Supremo. Além disso, ele enxerga excessos no que chama de “plantonismo” para definir a profusão de decisões monocráticas durante os plantões judiciários. As consequências desses problemas, por óbvio, variam de acordo com o perfil de quem está com a caneta. Para Falcão, o STF se divide em duas alas: a dos ministros institucionais, mais técnicos e imunes aos vírus da política, e a dos ministros de conjuntura, que rompem a neutralidade e atuam de forma estratégica conforme as circunstâncias. “Esse modelo de conjuntura foi a prioridade do presidente Toffoli, que colocou em jogo a impessoalidade e a neutralidade, extrapolando os limites dos Três Poderes. A função do ministro é dizer se aquilo é constitucional ou não e não fazer
04/09/20 acordos com o governo, se encontrar com presidente para discutir pautas e estratégias”, afirma. Além de Flávio Bolsonaro, estão entre os figurões da política beneficiados pelas decisões monocráticas de Toffoli o governador do Rio, Wilson Witzel, do PSC, que conseguiu uma decisão favorável para protelar o processo de impeachment na Assembleia Legislativa fluminense, e o senador José Serra, do PSDB, que teve duas investigações suspensas pelo ministro. Ambas as decisões ocorreram no último plantão judiciário. Enquanto decidia sobre os pleitos judiciais de políticos enrolados, em outra frente Toffoli não poupava tinta para fustigar a Lava Jato. Foi, aliás, a revelação do apelido dele nas mensagens internas trocadas por Marcelo Odebrecht com executivos da empreiteira que levaram o ministro Alexandre de Moraes a censurar Crusoé e O Antagonista em abril do ano passado, no famigerado inquérito do fim do mundo. O pedido para que fossem adotadas providências em relação à reportagem foi feito a Alexandre pelo próprio Toffoli, por mensagem de texto. O inquérito havia sido instaurado de ofício por Toffoli. Alexandre havia sido escolhido para conduzir o inquérito por Toffoli. O inquérito, que tem partes mantidas até hoje em segredo, empilha medidas polêmicas. De instrumento pensado inicialmente para conter eventuais arroubos do
projeto de poder bolsonarista, virou um buraco sem fundo repleto de decisões que afrontam o texto constitucional, aquele mesmo que o Supremo deveria guardar. Como no Brasil são as circunstâncias que mandam, o procedimento acabou ganhando a chancela do plenário – ante a franca campanha da militância contra a corte àquela altura, reconhecer os excessos da apuração secreta significaria se curvar aos ataques. Em seu último plantão como presidente do Supremo, Toffoli despachou mais um torpedo que atingiu em cheio a Lava Jato. Atendendo a um polêmico pedido do procurador-geral da República, Augusto Aras, ele determinou que forças-tarefas da operação enviassem todas as suas bases de dados, incluindo informações sigilosas, para a PGR. A invasão de competência desagradou ao ministro Edson Fachin, o juiz natural da ação, que revogou a decisão assim que
retornou no recesso. Há tempos o ministro nomeado em 2009 pelo expresidente Lula tem criticado a maior operação de combate a corrupção já deflagrada no país. Entre os seus argumentos está o de que a Lava Jato “destruiu empresas”. Foi com base nessa premissa que ele inovou ao costurar com o governo federal e o Tribunal de Contas da União um acordo de cooperação que exclui o Ministério Público das negociações envolvendo os acordos de leniência, uma espécie de delação premiada feita por empresas. A decisão representou mais um tijolo na muralha que continua a ser erguida contra a Lava Jato. “Toffoli tentou assumir um papel de moderador que não cabe ao Supremo. Não é atribuição do presidente do STF fazer acordos com o Poder Executivo. A corte precisa ser absolutamente independente. Foi uma gestão muito contraditória, que se comprometeu em atender aos interesses dos
04/09/20 detentores do poder para tentar manter uma política de boa vizinhança”, afirma o jurista Miguel Reale Júnior, que foi ministro da Justiça no governo Fernando Henrique Cardoso. Mais recentemente, a veia política de Toffoli o colocou na articulação para tentar emplacar o atual ministro da Justiça, André Mendonça, na vaga que será aberta com a aposentadoria do decano Celso de Mello em novembro. Com tantos retrocessos alcançados nos dois últimos anos, é improvável que o próximo presidente do Supremo, Luiz Fux, tenha condições de reparar rapidamente os danos da gestão que acaba na próxima semana. Como o próprio Toffoli profetizou em seu discurso de posse há dois anos, citando trecho de uma música de Renato Russo, “o futuro não é mais como era antigamente”.
04/09/20
REPORTAGEM
Eles conseguiram Dallagnol era a alma da Lava Jato. Foi ele o responsável por montar o grupo de procuradores que reuniu a maior coleção de delações e provas documentais de corrupção, e gerou o maior número de condenações da história do país. Graças a esse trabalho, centenas de empresários, políticos, operadores financeiros e criminosos do colarinho branco foram para a cadeia.
Os inimigos da Lava Jato agora têm o troféu que buscavam há tempos: Deltan Dallagnol deixa a força-tarefa no momento mais delicado da operação, com ataques de todos os lados
Fabio Serapião Que a Lava Jato não seria mais como antes, quando se consagrou como a maior operação de combate à corrupção da história recente do país, já se sabia desde que o exministro da Justiça Sergio Moro foi empurrado para fora do governo – como atestaram as trocas de mensagens entre ele e o presidente Jair Bolsonaro que vieram a público nesta semana. Com Augusto Aras no
comando da Procuradoria-Geral da República fazendo de tudo para boicotar a operação, em sintonia fina com Jair Bolsonaro, um presidente cada vez mais obstinado pela reeleição, abraçado com o que de há de pior na política e preocupado em evitar que as investigações alcancem a primeira família, dificilmente as investigações prosperariam da mesma maneira e sob os mesmos valores e princípios.
A equipe montada por Dallagnol em 2014, quando ele foi escolhido pelo Ministério Público Federal do Paraná para ser o coordenador da Lava Jato, uniu profissionais tarimbados para lidar com casos escabrosos de corrupção e jovens técnicos dedicados, capazes de tocar adiante apurações envolvendo empresários de altíssimo calibre, considerados intocáveis até então, e políticos poderosos, protegidos pela blindagem judicial de sempre. Os desentendimentos no grupo eram raros. Ao primeiro sinal de divergência, Dallagnol agia para garantir a unidade. “Ele era um líder natural”, diz um de seus colegas.
Ao longo desta semana, no entanto, a Lava Jato sofreu mais um golpe. Na terça-feira, o coordenador da força-tarefa de Curitiba, Deltan Dallagnol, anunciou seu desligamento da operação. “Sonhamos junto o sonho de um país menos corrupto. Serei eternamente grato a vocês por isso”, afirmou em sua despedida.
Apesar de alguns percalços naturais como em toda cruzada dessa magnitude, o êxito da força-tarefa, constituída vinte dias depois de o doleiro Alberto Youssef ser preso pela Polícia Federal, foi consistente e duradouro. Os últimos meses, no entanto, haviam sido especialmente
04/09/20 pesados e desgastantes para Dallagnol. Não bastassem os recentes problemas de saúde da filha de um ano e dez meses, razão pela qual ele teria de se dedicar mais tempo à família, o procurador estava debaixo de uma pressão inclemente. Dallagnol assistia entre estupefato e incrédulo ao voluntarismo de um procurador-geral da República obcecado em querer: 1. acessar documentos sigilosos da operação; 2. articular para que ele fosse alvo de sanções disciplinares no Conselho Nacional do Ministério Público, o CNMP; 3. manobrar para que prepostos seus conseguissem levar a julgamento o célebre episódio do PowerPoint, que alçava Lula a líder da organização criminosa que tomou de assalto a Petrobras, apesar de a apresentação de Dallagnol já ter sido considerada legal por quatro instâncias judiciais – além de o caso já restar prescrito. O procurador já havia sido alvo de questionamentos em razão de palestras ministradas para empresas. Também enfrentou, em 2019, uma sórdida campanha destinada a colocar em xeque sua credibilidade e a da operação que comandou, com base em um material roubado por hackers estelionatários que incluía trocas de mensagens suas e de algumas das principais autoridades da República. Dallagnol, porém, ainda resistia a abandonar a coordenação da força-tarefa, por temer pelo futuro da operação. Internamente, pessoas próximas a ele reconheciam que alguns erros poderiam ter sido cometidos ao longo de seis anos. Mas, nos últimos
tempos, se consolidava a convicção de que as críticas e os ataques não visavam mais a correção dos equívocos e de possíveis excessos que poderiam muito bem ser sanados nas instâncias existentes dentro do MPF. O objetivo era mesmo implodir a operação. Durante a semana, o procurador se deu conta de que a batalha interna contra um PGR decidido a atuar em várias frentes para asfixiar as investigações e se valer de informações sigilosas para uso político parecia perdida. Na noite de quinta-feira, 27, ele tomou a decisão de deixar a Lava Jato. Em nenhum momento, porém, admitiu que estava saindo em razão dos ataques ou de qualquer pressão. Publicamente e em conversas reservadas, sustentou que tomou a decisão para se dedicar ao tratamento da filha. Mais cedo, Augusto Aras havia estado com o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, um dos maiores críticos da operação na corte.
No dia seguinte ao anúncio, Dallagnol e Alessandro Oliveira, que seria anunciado como seu sucessor, conversaram por telefone. Oliveira, que vinha atuando na assessoria de Lindôra Araújo, se colocou à disposição para uma transição sem sobressaltos. “A Lava Jato vai seguir firme, é composta por 14 procuradores da República que tomam decisão de forma colegiada. O Alessandro é um colega competente, dedicado, tem conhecimento e experiência, é um colaborador e apoiador da Lava Jato”, disse. Nesta quinta, Dallagnol falou a Crusoé sobre os rumos da operação: O que fazer para evitar que o que foi feito seja perdido? Não existe atalho. Procuradores, juízes e parlamentares que são engajados na causa anticorrupção não conseguirão defender os avanços ou barrar retrocessos sozinhos. É preciso apoio e engajamento cívico. As pessoas
04/09/20 precisam se envolver nessa causa porque é delas. São elas que sofrem quando o dinheiro é desviado. São elas que sofrerão com filas na saúde, com má qualidade da educação, com falta de segurança pública, com mortes nas estradas, com subdesenvolvimento. É importante que cobrem dos governantes seus compromissos, liguem ou mandem mensagens para os deputados e senadores, participem do debate público e votem bem. O avanço civilizatório na direção de mais integridade na vida pública depende da participação política a título de cidadania. Pela primeira vez, a Lava Jato encontra oposição até dentro do próprio MPF. Como superar essa situação? Acreditamos que o caminho sempre é o do diálogo com o procurador-geral, do debate transparente dentro e fora da instituição e do envolvimento da sociedade nisso, assim como em outras matérias de interesse público. O sr. se arrepende de algo? Vivemos vinte anos em seis. Foi uma jornada muito intensa de aprendizado e aperfeiçoamento. Com o privilégio da visão retrospectiva, faríamos melhor ou diferente aquilo que deu errado ou gerou polêmica. No caso do acordo com a Petrobras, que permitiu que mais de 2 bilhões de reais ficassem no Brasil, a ideia (de fazer uma fundação) era boa, mas teríamos incluído outros órgãos na negociação, como AGU, CGU e a
própria PGR, o que certamente teria permitido seu aperfeiçoamento e a protegido contra críticas. Mas sempre tivemos a intenção de fazer o nosso melhor, de trabalhar com excelência, dentro da lei, de modo dedicado e inovador.
Lhano no trato com os colegas, Dallagnol não quer se indispor com a nova direção da fora-tarefa nem quer ser o responsável por anunciar a débâcle da operação. Embora não admita publicamente, sabe, no entanto, que a Lava Jato está condenada a definhar, diante das ações premeditadas de Aras, da complacência do STF e do silêncio sepulcral de Bolsonaro e do bolsonarismo, que surfou na onda da operação para chegar ao poder, mas preferiu abandonar a bandeira quando percebeu que o Ministério Público poderia alcançar os seus.
Uma das evidências de que o futuro não será mais como era antigamente foi que, na noite de quarta-feira, sete integrantes da força-tarefa da Lava Jato em São Paulo pediram demissão coletiva. Apontaram “incompatibilidades insolúveis” com a procuradora Viviane de Oliveira Martinez, responsável pelas investigações no estado. Nos bastidores, os procuradores reclamam que Viviane não teria capacidade técnica para coordenar a Lava Jato, o que provocaria confusão e atraso nas investigações. Os procuradores da força-tarefa paulista também a acusaram de pedir o adiamento de uma das operações que investigam o senador José Serra, do PSDB, e de trabalhar intramuros para barrar novas negociações para acordos de delação premiada.
04/09/20 Viviane de Oliveira assumiu o posto de coordenadora em março. Dois meses depois, enviou um relatório a Aras levantando suspeitas de que não haveria “livre distribuição” de processos na Lava Jato. A denúncia teria motivado o procurador-geral a atacar publicamente o grupo paulista durante a live com a presença de advogados lulistas para a TV do PT, quando Aras fez um ataque frontal à Lava Jato e chegou a dizer que era preciso “corrigir rumos” e acabar com o “lavajatismo”. O palco escolhido não poderia ser mais adequado. De fato, não se pode perder de vista que foi o PT, desde antes da prisão de Lula, quem iniciou a campanha para demolir a Lava Jato. Mobilizou sua tropa contra o então juiz Sergio Moro, tentou nomear ministros em tribunais superiores compromissados em frear a operação, valeu-se de blogueiros aliados com o intuito de desacreditar o trabalho e até hackers apareceram na trama para desqualificar os investigadores que atuavam na linha de frente da operação – Deltan Dallagnol incluído. Enquanto bolsonaristas refugiaram-se oportunamente no silêncio, deputados petistas comemoraram, nas redes, a despedida de Dallagnol. O paulista Paulo Teixeira disse que “o procurador Dallagnol prestou grande desserviço ao país”. A atmosfera de festa nos grupos de WhatsApp e em blogs ligados ao PT teve um sabor ainda mais especial: além do
desligamento do procurador, a semana ainda os brindou com a absolvição de Lula no TRF-1 no caso das palestras pagas pela Odebrecht. Uniram-se ainda na comemoração figurões do PSDB e advogados criminalistas com clientes enrolados na Lava Jato. Para eles, a troca de comando deve diminuir o ritmo do andamento dos casos. Senão apenas pela ausência de Dallagnol, mas pelo tempo que deve levar o novo coordenador da Lava Jato para se inteirar do trabalho. Guindado à chefia da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba, o procurador Alessandro José Fernandes de Oliveira pode até ser considerado entre os colegas como um profissional discreto, sério e dedicado. Mas, internamente no MPF, o clima é de preocupação com o que vem por aí. Oliveira, desde janeiro de 2018, integrava o grupo de trabalho da Lava Jato na PGR. Atuava em ações que correm nas cortes superiores, especialmente em casos de investigados com foro
especial. Em junho, ele deu indicações sobre de que lado ele está: resolveu não acompanhar os três colegas que deixaram o núcleo de Brasília, em resposta à tentativa da coordenadora, Lindôra Araújo, braço direito de Aras, de acessar dados sigilosos da força-tarefa em Curitiba. A próxima batalha a ser travada em nome da sobrevivência do que restou da operação ocorrerá na semana que vem. No dia 10, Aras decidirá se a força-tarefa da Lava Jato será prorrogada e por quanto tempo. Há material para ao menos mais 15 fases da operação para os próximos meses, além de 300 investigações em andamento que poderão resultar em novas denúncias. E ao menos cinco novos acordos de delação estão prontos para homologação ou em fase de negociação. Aras estaria inclinado a prorrogar a força-tarefa em Curitiba por um prazo mais curto, algo em torno de 60 dias, e com número menor de integrantes, o que
04/09/20 representaria mais uma derrota para a operação. Na terça-feira, a subprocuradora-geral da República Maria Caetana Cintra Santos, integrante do Conselho Superior do Ministério Público, assinou um despacho prorrogando a Lava Jato por um ano. Caetana tomou a decisão na condição de relatora de um pedido de prorrogação feito pelos próprios integrantes da operação. A questão é que, além de provisória, a decisão não obriga Aras a segui-la. E é aí que mora o problema: sob a caneta do PGR, nomeado por Jair Bolsonaro e aplaudido de pé pelo PT e pelo PSDB, a Lava Jato nunca esteve tão a perigo. Nunca antes o Brasil viu uma coalizão política tão forte e unida em torno de um mesmo objetivo.
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REPORTAGEM
Intimidade indesejada Toffoli interveio novamente: suspendeu as duas investigações sobre o senador e determinou que todo o material colhido pelos procuradores fosse lacrado e protegido de vazamentos.
Surge mais uma evidência de que amizades estreitas com investigados não impedem Gilmar Mendes de decidir: desta vez, com José Serra, beneficiado por duas decisões do ministro nas últimas semanas Fabio Leite Na manhã do dia 3 de julho, uma operação da força-tarefa da Lava Jato em São Paulo surpreendeu o mundo político. Pela primeira vez, a Polícia Federal batia à porta de um tucano paulista de alta plumagem com um mandado de busca e apreensão. O alvo era o senador José Serra. Enquanto os agentes vasculhavam o imóvel atrás de documentos, procuradores denunciavam, com base em provas mais antigas, o ex-governador e a filha dele, Verônica Serra, por
lavagem de dinheiro no esquema da Odebrecht. Dados recentes das quebras de sigilos bancário, fiscal e telemático de Serra já estavam sob análise dos procuradores quando, 18 dias depois, o senador foi alvo de mais uma operação. Desta vez, o braço eleitoral da PF conseguiu autorização judicial para entrar no gabinete e no apartamento funcional de Serra, em Brasília, em busca de provas de um suposto caixa dois de 5 milhões pago pela Qualicorp, em 2014, quando ele se elegeu ao Senado. Bastaram poucas horas para que a ação fosse suspensa por uma liminar do presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, no plantão judiciário. No dia 29 de julho, a pedido da defesa de Serra,
Esse roteiro já é conhecido, mas há uma parte ainda não conhecida da história – mais especificamente, nos instantes que antecederam a liminar de Toffoli – que torna mais interessante o esforço empreendido para travar a apuração. Crusoé descobriu com fontes ligadas ao processo que, na véspera da decisão na qual o presidente do Supremo mandou paralisar e lacrar tudo, o juiz federal Diego Paes Moreira, da 6ª Vara Criminal de São Paulo, deferiu um pedido feito pela força-tarefa da Lava Jato para compartilhar com o procurador-geral da República, Augusto Aras, uma parte do material obtido com a quebra de sigilo telemático de Serra. A ideia era convencê-lo a pedir a suspeição de Gilmar Mendes nos casos envolvendo o senador – era sabido que, ao final do recesso, os recursos de Serra teriam o gabinete do ministro como destino. O material, mantido até agora sob sigilo, seria suficiente, na leitura dos procuradores, para deixar Gilmar Mendes longe do caso. São e-mails trocados entre o ministro e o senador que demonstram haver amizade íntima entre os dois, algo que, pela
04/09/20 contra Serra no início de julho. Viviane, segundo seus colegas demissionários, queria deixar a operação para depois da criação da Unidade Nacional Anticorrupção, a Unac, projeto encampado por Aras para concentrar as grandes investigações de corrupção na PGR e que não tem prazo para sair do papel.
letra fria da lei que rege a atuação de magistrados, tornaria o ministro suspeito para julgar os recursos de Serra. Com aval do juiz federal, o material seria enviado durante o recesso de julho para o gabinete do PGR, a quem compete fazer pedidos de suspeição de ministros do STF. A ação, porém, foi frustrada pela liminar de Toffoli, que mandou lacrar todo o material reunido até então pelos investigadores – o que incluía, evidentemente, as mensagens. Tão logo retornou ao trabalho, em agosto, aconteceu exatamente o que os procuradores se prepararam para evitar: Gilmar Mendes assumiu os casos que o presidente havia paralisado e passou a proferir suas decisões, todas favoráveis a Serra. Como mostrou Crusoé, no dia 20 de agosto o ministro determinou a suspensão da ação penal contra Serra e a filha, que já haviam se tornado réus na 6ª Vara da Justiça Federal de São Paulo pela suposta
lavagem de dinheiro ilícito pago pela Odebrecht em uma conta controlada por Verônica Serra na Suíça. Depois, o ministro foi além. Ordenou que o Ministério Público desse aos advogados de Serra “acesso imediato” a “tudo o que contra ele houver” nas seis investigações em andamento na Lava Jato paulista. Não se sabe se foi um possível vazamento do pedido de suspeição de Gilmar que levou Toffoli a brecar tudo nos últimos dias do plantão, mas a investigação envolvendo Serra entra no rol das “incompatibilidades insolúveis” que levaram sete procuradores da força-tarefa paulista a se demitirem na última terça-feira. Em uma manifestação enviada a membros do Conselho Superior do MPF, os investigadores afirmaram que além do “desmonte” do grupo, com a redistribuição de inquéritos conexos aos investigados por eles, a procuradora Viviane Martinez, dona do gabinete oficialmente habilitado para receber os casos da Lava Jato, tentou adiar a operação deflagrada
Ainda em junho, os procuradores descontentes escreveram para Viviane no grupo que a força-tarefa mantinha em um aplicativo de mensagens. Disseram que a investigação que ela queria protelar “vinha consumindo uma enorme quantidade de horas” dos colegas, com “integrantes virando noites para organizar as provas” e “preparar uma operação que, pela primeira vez na história, implicava a cúpula paulista do Partido da Social Democracia Brasileira em corrupção e lavagem de capitais”. Apesar do descontentamento coletivo, Viviane manteve sua opinião. Crusoé apurou que, dentro da força-tarefa, a procuradora também atrasou o andamento do pedido feito ao juiz federal para compartilhar os e-mails de Serra com a PGR, a fim de embasar a suspeição de Gilmar Mendes. Com as decisões de Toffoli, mandando lacrar tudo, e do próprio Gilmar, liberando o material à defesa do tucano, ao menos por ora só os advogados do senador têm acesso, formalmente, às mensagens. Na semana passada, quando os defensores de Serra foram à sede da Procuradoria em São Paulo para
04/09/20 copiar o material sigiloso, Gilmar deu uma decisão que beneficiou o exgovernador na outra investigação que lhe rendeu dor de cabeça em julho, até ser suspensa por Toffoli. Contrariando a jurisprudência do Supremo, defendida por ele mesmo, o ministro puxou para si a investigação sobre o caixa dois de 5 milhões de reais da Qualicorp em 2014, que estava na Justiça Eleitoral por decisão da corte. A decisão de Gilmar saiu duas semanas antes dos crimes supostamente praticados por Serra prescreverem. Mais uma vez, o ministro deu razão à defesa do tucano e reconheceu o foro privilegiado de Serra no caso, pelo fato de a PF investigar fatos que poderiam ter relação com o atual mandato do senador, iniciado em 2015, o que os investigadores negam. Mensagens apreendidas pela Lava Jato já haviam levado a um pedido de suspeição de Gilmar Mendes em investigação relacionada a outro grão-tucano, o ex-ministro e ex-senador Aloysio Nunes Ferreira. Em março do ano passado, a forçatarefa de Curitiba pediu para a PGR solicitar o afastamento do ministro após identificar, por meio dos registros telefônicas, que Aloysio atuou junto a Gilmar para interferir nos processos envolvendo seu amigo e operador tucano Paulo Vieira de Souza, o Paulo Preto. O pedido foi arquivado pela então procuradorageral, Raquel Dodge. Condenado por fraude e formação de cartel nas obras do Rodoanel no governo de Serra em
São Paulo (2007-2010), o ex-diretor da Dersa tinha acabado de ser preso pela terceira vez – em 2018, em duas oportunidades ele foi solto por decisão de Gilmar. Na estatal paulista, Paulo Preto era apadrinhado de Aloysio. Durante a investigação, os procuradores encontraram um cartão de crédito entregue ao exministro em um hotel na Espanha vinculado a uma conta mantida pelo afilhado na Suíça. Em uma das mensagens apreendidas no celular de Aloysio, Gilmar Mendes é tratado como “nosso amigo”. Aos colegas detentos do Complexo Médico Penal de Pinhais, para onde vão os presos da Lava Jato no Paraná, Paulo Preto se referia a Gilmar como “goleiro”, capaz de fazer milagres na defesa do time. A relação do ministro com tucanos como Serra e Aloysio é pública e histórica. Todos se aproximaram no governo de Fernando Henrique Cardoso. Gilmar foi advogado-geral da União. Serra,
ministro da Saúde. Aloysio comandou o Ministério da Justiça. Paulo Preto era assessor especial da Presidência da República. Os encontros entre eles não se limitavam aos gabinetes. Em 2017, por exemplo, Gilmar ofereceu um jantar em sua casa para comemorar o aniversário de 75 anos de Serra. Participaram do convescote outros nomes de peso da política igualmente enrolados com a Justiça, como o então presidente Michel Temer, do MDB, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, do DEM, e o deputado federal Aécio Neves, do PSDB. Este último, também próximo e beneficiado por decisões de Gilmar. Um relatório da Polícia Federal apontou que entre fevereiro e maio daquele ano, Aécio trocou 46 ligações via WhatsApp com um número de telefone atribuído a Gilmar. As chamadas ocorreram no período em que o tucano já era investigado no STF por suspeita de ter recebido propina da JBS. Uma
04/09/20 das chamadas ocorreu no mesmo dia em que Gilmar deu uma decisão favorável a Aécio, livrando-o de prestar depoimento à PF em um dos inquéritos da Lava Jato. Além de ter assinado decisões favoráveis a pedidos dos próprios tucanos, Gilmar também registra em seu histórico recente uma decisão que beneficiou um importante advogado de tucanos. Em setembro do ano passado, o ministro concedeu um salvo-conduto sigiloso ao escritório de José Roberto Santoro, que defende Aloysio Nunes e Paulo Preto. A medida impede que a Lava Jato investigue o advogado após a descoberta de que a banca dele recebeu 3,7 milhões de euros em Portugal de uma conta controlada por Paulo Preto nas Bahamas. Foi para essa conta que o operador tucano transferiu 113 milhões de reais que estavam escondidos na Suíça após o início da Lava Jato. Desde que o ex-diretor da Dersa foi preso pela primeira vez, aventase a possibilidade de um acordo de delação premiada em que ele revelaria tudo o que sabe sobre malfeitos envolvendo a cúpula tucana. Aos mais conhecidos, porém, Paulo Preto, que agora está em prisão domiciliar por causa da pandemia, rechaça a possibilidade. O motivo? Ele diz confiar no “goleiro” Gilmar. Procurado, o ministro do Supremo evitou falar sobre o assunto. Limitou-se a dizer que o caso que envolve José Serra está em segredo de Justiça. O senador tucano não se manifestou.
04/09/20
REPORTAGEM
Outra meia reforma
O governo envia ao Congresso uma proposta de reforma administrativa que até ajuda, mas não resolve o grave cenário dos gastos com o funcionalismo público e seus incontáveis privilégios
Helena Mader Digitar textos com rapidez foi uma das habilidades mais valorizadas no mercado de trabalho dos anos 1980. À época, os disputados cursos de datilografia ensinavam os profissionais a não “catarem milho” – expressão muito usada para se referir aos mais lentos na digitação. Há décadas obsoleta, essa atividade ainda faz parte da realidade do serviço público: o governo federal tem hoje 3.073 datilógrafos em seu quadro de efetivos, com remuneração básica que supera 10
mil reais. Como exemplos de anacronismo, a folha de pagamento da União tem ainda onze operadores de telex e um operador de videocassete – todos efetivos, com estabilidade e altos salários. A existência desses cargos é apenas uma amostra de quão arcaico é o serviço público brasileiro, cuja estrutura é composta por carreiras ultrapassadas, que jamais são submetidas a avaliações efetivas e controle de produtividade. A folha de pessoal da União custará 337 bilhões de reais no ano que vem, o que representa 22% de todos os gastos do governo federal. As despesas com o funcionalismo, que cresceram 142% em pouco mais de uma década, drenam os recursos para investimento sem entregar aos cidadãos, em contrapartida, serviços de qualidade.
Depois de uma série de recuos por questões políticas, o presidente Jair Bolsonaro finalmente enviou ao Congresso uma proposta de reforma administrativa. Entregue nesta quintafeira, o texto traz até algumas mudanças importantes que corrigem determinadas distorções do serviço público. Mas, 22 anos depois da última reforma do estado, as mudanças na legislação propostas por Bolsonaro ainda são insuficientes para promover uma ampla modernização da máquina pública e acabar de fato com os incontáveis privilégios do funcionalismo. Ou seja, para dar uma satisfação ao mercado, o presidente entregou ao Congresso uma reforma pela metade – o mesmo que já havia feito com a reforma tributária. A proposta de emenda à Constituição avança, de certa forma, ao extinguir a estabilidade para alguns cargos, acabar com as progressões automáticas na carreira por tempo de serviço, abrir a possibilidade de demissão de funcionários públicos ímprobos, incompetentes ou cujo trabalho não é mais necessário e ao pôr fim a algumas gratificações salariais inexistentes no setor privado. O texto, porém, tem abrangência limitada: só vale para quem ainda vai ingressar no serviço público. A reforma não atinge os grupos mais privilegiados, como magistrados,
04/09/20 membros do Ministério Público, conselheiros e ministros de tribunais de contas, parlamentares e militares. Por exemplo, a perda das vantagens e dos chamados penduricalhos não afetarão essas categorias, que recebem os salários mais elevados do funcionalismo. O fim da estabilidade também não abarcará servidores públicos de carreira de estado – como os funcionários da Polícia Federal, Receita e Itamaraty. Ao contrário das outras categorias, esses grupos de servidores também não terão seus salários reduzidos em caso de redução de jornada. Com a versão mais light da reforma administrativa, o preocupante cenário fiscal permanece o mesmo: os gastos com pessoal continuam crescendo num ritmo mais elevado que a arrecadação. Há ainda dois itens na proposta – os famosos jabutis – que conferem novos poderes ao presidente da República: ele poderá, por exemplo, extinguir órgãos públicos por decreto. Atualmente, o Poder Executivo só pode se desfazer de órgãos por meio de projetos de lei. O presidente ou o ministro de estado também terão mais liberdade para escolher funcionários que irão ocupar cargos comissionados e funções de confiança. O alcance limitado da proposta é fruto de um pesado e histórico lobby de corporações e sindicatos, com influência no Congresso e no governo, ao qual os presidentes de turno costumam ser sensíveis. De acordo com dados do Ministério da Economia, a despesa com pessoal do setor público representa cerca de
13,6% do PIB brasileiro. Nos Estados Unidos, por exemplo, esse percentual é de 9,5%. Mantidas as atuais projeções de crescimento dos gastos, em 2030, a folha de pessoal da União vai chegar a 14,8% de tudo o que é produzido no país. A despeito de as contas públicas estarem em frangalhos, no mês passado o Senado deu uma pequena demonstração da força do lobby desses setores: os parlamentares avalizaram um reajuste de servidores durante a pandemia, decisão com impacto estimado de 120 bilhões de reais. O aumento havia sido vetado pelo presidente Jair Bolsonaro. Coube à Câmara manter o veto e impedir o reajuste. “Sempre estaremos próximos de uma eleição e sempre haverá lobby e pressão”, afirma o deputado federal Thiago Mitraud, do Novo de Minas Gerais. Presidente da Frente Parlamentar da Reforma Administrativa, o parlamentar articula um movimento para que alguns dispositivos da proposta enviada pelo governo, como a proibição de férias de mais
de 30 dias e o fim da aposentadoria compulsória como punição, alcancem os atuais funcionários públicos. Entre 2003 e 2018, o número de servidores na administração pública federal aumentou 34%. No mesmo período, o funcionalismo ganhou aumentos salariais indecentes, se comparados à realidade do setor privado. Mais de 500 cargos tiveram aumentos de 50% acima da inflação. Outros 220 postos receberam aumento real acima de 100%. E 12% dos servidores efetivos foram agraciados com aumento real maior do que 130%. A complexidade da burocracia estatal também é refletida na elaboração dos contracheques dos funcionários públicos. As folhas de pagamento de servidores têm até 440 rubricas, que incluem as mais variadas gratificações, bônus, comissões, vantagens, incentivos, retribuições, antecipações, auxílios, adicionais e indenizações. Uma sopa de letrinhas que multiplica os vencimentos. Mais de 80% das rubricas previstas na folha de
04/09/20 pagamento do funcionalismo não têm equivalência no setor privado. “Além da mudança das regras do funcionalismo do Executivo, os poderes Judiciário e Legislativo também precisam promover com urgência suas próprias reformas”, defende o economista Paulo Feldmann, professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP. As situações mais gritantes de privilégios estão na Justiça. Mexer em regalias do Judiciário, entretanto, ainda é um tabu no Brasil. Tramitam no Congresso propostas de emenda à Constituição que preveem mudanças em mordomias escandalosas de magistrados, como 60 dias de férias por ano. A benesse é um acinte ao trabalhador brasileiro, que tem direito a no máximo um mês de descanso remunerado. No último dia 28, o presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, agravou o cenário de descalabro ao liberar a venda de um terço de férias – assim, os magistrados convertem o benefício equivalente a 20 dias em
abono salarial e ainda podem usufruir de 40 dias. Há um obstáculo quase intransponível para a extinção de privilégios como esse: o medo paralisante que parte da classe política tem da toga. A cada tentativa de pautar propostas que acabam com regalias de juízes e desembargadores, recados ameaçadores surgem de tribunais. O projeto que proíbe penduricalhos e acaba com supersalários, por
exemplo, é constantemente travado nas comissões. Levantamento do Conselho Nacional de Justiça revelou que, no ano passado, os magistrados brasileiros receberam, em média, 50 mil reais mensais. Com a entrega da PEC que altera as regras do funcionalismo, projetos que reduzem benesses do Judiciário e do Ministério Público devem ganhar força no Congresso. Mas a aprovação, como sempre, vai depender da pressão da sociedade.
04/09/20
REPORTAGEM
Varejão no escuro Eduardo Pazuello, recebeu um ofício assinado pelo presidentes dos Conselhos de Secretários de Saúde, em que eles – pasme – simplesmente se recusavam a prestar contas desses recursos.
Primeiro, como mostrou Crusoé, o governo federal usou recursos do combate à Covid para afagar deputados e senadores. Agora, os gestores que receberam a verba querem mantê-la fora do radar da fiscalização
André Spigariol Há três semanas, Crusoé revelou que o governo usou uma verba bilionária destinada a combater o coronavírus – um total de 13,8 bilhões de reais – como moeda de troca em negociações políticas com parlamentares. Com o toma lá dá cá chancelado pelo Ministério da Saúde, pela Secretaria de Governo da Presidência e pela liderança do governo no Congresso, parte do
dinheiro que deveria parar nos cofres das cidades mais afetadas pela pandemia acabou direcionada a redutos eleitorais de deputados e senadores, não importando o grau de disseminação da doença nesses locais. Houve casos em que a verba foi parar em municípios que nem sequer haviam sido atingidos pela epidemia de coronavírus. Procurados para falar sobre a efetiva aplicação dos recursos no combate à Covid-19, que já matou de 120 mil pessoas no país, os prefeitos contemplados se prontificaram a defender a transparência na utilização do dinheiro público. Não foi bem o que aconteceu. Em 1º de julho, dia da liberação do dinheiro pelo governo federal, o ministro da Saúde,
Semanas antes, técnicos do Ministério da Saúde haviam inserido no Sistema de Informações sobre Orçamento Público em Saúde, o Siops, uma funcionalidade criada para que os secretários de Saúde dos municípios declarem como a verba dedicada ao coronavírus vem sendo gasta. Apesar de ser opcional, várias cidades começaram a inserir informações no banco de dados, que é usado por órgãos de controle – como o TCU – para fiscalizar o orçamento federal. A atitude constrangeu os gestores interessados em omitir as informações e eles iniciaram, então, uma ofensiva para inviabilizar o sistema. “Tira o painel!”, bradou um dos representantes municipais em reuniões reservadas com o Ministério da Saúde. “A pessoa que assume um cargo de gestão pública deveria ter dois CPFs”, lamentou outro, fazendo alusão aos processos em curso nos órgãos de controle contra gestores suspeitos de mau uso de recursos públicos. A pressão deu resultado e a Saúde acabou “congelando” o painel de gastos dos prefeitos relacionados à Covid-19 – a tela
04/09/20 ficou travada e ninguém mais conseguia abastecer a plataforma. Quem tentava acessar o sistema dava de cara com uma mensagem do ministério no centro da página informando a suspensão até o dia 31 de agosto do “quadro Covid-19” – esperava-se uma solução até aquela data. Como não houve acordo e o prazo para resolver o assunto estourou, o secretário-executivo do Ministério da Saúde, Élcio Franco, encomendou aos técnicos da pasta a minuta de uma portaria para não apenas liberar o uso da ferramenta, mas também torná-la obrigatória. AAdvocacia-Geral da União, em parecer, declarou que a exclusão do quadro representaria um retrocesso na transparência dos gastos públicos. Caberá ao ministro Eduardo Pazuello a palavra final. A dúvida é se ele vai ousar contrariar — às vésperas de eleições municipais — as pressões políticas para que os dados sobre a aplicação do dinheiro do coronavírus se mantenham numa caixa preta. Nos bastidores, ainda haveria uma divergência entre gestores estaduais e parlamentares que carimbaram a verba sobre a quem caberia decidir como o dinheiro para o coronavírus deve ser usado. Para Élcio Franco, número 2 de Pazuello, os 13,8 bilhões devem ser utilizados conforme o critério dos administradores estaduais e municipais. “A portaria que provê recursos para estados e municípios,
na sua finalidade coloca bem claro que é para os gestores de saúde (definirem)”, afirmou na última semana. Mas o tema não está necessariamente pacificado. A Secretaria de Governo, comandada pelo general Luiz Eduardo Ramos, foi quem chamou os parlamentares para carimbar a verba, e com a anuência do próprio Ministério da Saúde, como revelou a reportagem de Crusoé. Parlamentares de diferentes partidos, incluindo aqueles que indicaram dinheiro da Covid-19 para seus redutos eleitorais, dizem estar se articulando para que prefeitos possam usar a verba em outras áreas que não apenas a da saúde, o que joga mais uma cortina de fumaça sobre o assunto. Nesta semana, o Senado aprovou um projeto de lei da senadora Kátia Abreu, do PDT, que permite o uso de recursos inicialmente destinados à Saúde na
Educação, tendo em vista a retomada de aulas presenciais. “Há prefeitos que não vão conseguir gastar todos na saúde, muitos prefeitos estão querendo devolver, e nós teremos o retorno às aulas”, justificou. “Tem muita gente que recebeu o recurso e não vai gastar. O dinheiro foi liberado para custeio, mas a portaria não permite a compra de equipamentos, por exemplo. Tem algumas iniciativas no Congresso para que se possa usar esse dinheiro com outras finalidades”, fez coro o senador emedebista Eduardo Gomes, líder do governo no Congresso. Com tanto mistério em torno da aplicação dos recursos, uma negociação política por trás e o claro interesse de gestores em manter a verba fora da lupa da fiscalização, o que não falta é dúvida sobre onde o dinheiro que deveria ser usado no combate ao coronavírus vai efetivamente parar.
04/09/20
04/09/20
DIOGO MAINARDI
A verdade Glenn Greenwald, enquanto festejava o fim da Lava Jato, tentando tirar proveito de um triunfo que não era dele (e sim de Jair Bolsonaro, Gilmar Mendes e Augusto Aras), encontrou um tempinho para homenagear nosso site. Ele disse: “Deltan/Antagonista X o mundo/ a verdade.” Ele estava certo, claro. Voltei a fazer jornalismo, em O Antagonista, por causa da Lava Jato. Quando publicamos nosso primeiro post, no dia da posse de Dilma (Jair) Rousseff, os procuradores de Curitiba, coordenados por Deltan Dallagnol, ainda tateavam no escuro, mas eu sabia que eles acabariam topando com o esquema criminoso que alimentava o Brasil mais arcaico e mais nojento. Depois de seis anos de disputa,
porém, é preciso reconhecer que a turma “Deltan/Antagonista” tomou uma sova dos quadrilheiros reunidos sob a bandeira de “o mundo/a verdade”. De fato, no mesmo instante em que a derrota da Lava Jato era sacramentada, com o afastamento de Deltan Dallagnol, Jair Bolsonaro anunciava, no jardim do Palácio da Alvorada, mais quatro parcelas do coronavoucher, circundado por alguns dos mais célebres codinomes do departamento de propinas da Odebrecht, sócios do presidente da República no lucrativo negócio brasiliense. A verdade, como disse Verdevaldo, é que os criminosos ganharam mais uma vez. A verdade é que o Brasil está destinado a ser saqueado por essa gente ordinária. A verdade é que os defensores da bandidagem nem precisam mais mascarar seus propósitos infames. A verdade é que nosso bananismo atávico sempre prevalece. Até quando? Até Sergio Moro ser eleito em 2022.
04/09/20
ARTIGO
Obrigado, Deltan! Carlos Fernando Lima Deltan Dallagnol representa o melhor do Ministério Público, do funcionalismo público e da cidadania brasileira. Posso afirmar isso sem medo de errar, pois, além de minha jornada de 40 anos de serviço público, venho de uma família de promotores de Justiça com mais de 75 anos ininterruptos de Ministério Público. Conheço Deltan desde que ele me substituiu na operação Banestado, em 2005. Tecnicamente bem preparado e incansável na sua função, sempre foi um procurador da República comprometido com resultados efetivos, tendo como objetivo a busca por um país melhor para todos nós brasileiros. Agora, após seis anos de dedicação intensa, Deltan retira-se da força-tarefa da operação Lava Jato no Paraná em virtude de problemas familiares. Depois de tantos anos de trabalho conjunto, sei que apenas uma situação como essa, que exige a sua presença junto à família, levaria a uma decisão tão difícil. Enganam-se, portanto, os conspiratórios que veem no seu afastamento um acordo com Augusto Aras. Tecnicamente, ninguém é insubstituível no Ministério Público Federal. Se há algo que toda a carreira se orgulha é da qualidade intelectual e técnica dos
procuradores da República. Entretanto, há alguns poucos procuradores realmente insubstituíveis, pois, muito mais do que conhecimento, possuem eles coragem para enfrentar interesses poderosos, habilidade para liderar outros colegas, fortaleza moral e um grande senso de dever cívico. Tudo isso caracteriza Deltan Dallagnol. Não estou dizendo que Alessandro Oliveira, que vai substituí-lo na coordenação da operação no Paraná, não tenha grandes predicados. Só o fato de já ter participado do grupo de trabalho da Lava Jato que auxiliou o gabinete da então procuradora-geral da República Raquel Dodge já indica seu comprometimento com o objetivo maior do Ministério Público, o de ser um advogado da sociedade, um defensor da coletividade, enfim, o de servir de escudo da nossa população contra tantas iniquidades e injustiças. Entretanto, é tarefa difícil substituir um gigante. Não há como negar que o Brasil perde com a saída de Deltan. É verdade que a Operação Lava Jato em Curitiba já se encontrava em procedimento de aterrissagem. Sempre disse que uma força-tarefa é como um avião, que decola somente após a definição de um plano de voo. Em seguida, ele ganha
velocidade e altura lentamente – a fase mais perigosa de todas as operações, basta ver o que aconteceu com tantas outras no passado, como a Castelo de Areia. Sobrevivendo à decolagem, uma operação chega à altitude e velocidade ideais, seu voo de cruzeiro, por assim dizer. Entretanto, toda operação vai ter que descer, vai ter que aterrissar. O seu destino é o chão, podendo pousar ou cair, conforme as turbulências que suas descobertas causem. E a Operação Lava Jato, por sua extensão e descobertas, enfrenta justamente agora uma tempestade perfeita. Mais do que isso, enfrenta um fogo de artilharia dentro do próprio estado, pois este está completamente dominado pelos interesses privados e escusos que as investigações revelaram. Assim, a operação tem sido atacada internamente. É como um avião que, além do mau tempo e da artilharia inimiga, tem problemas com a torre de controle –no caso, a Procuradoria-Geral da República comandada por Augusto Aras, que dificulta ao máximo o plano de voo. E é bom não se iludir de que a saída de Deltan vai mudar os planos de sabotagem. A Lava Jato vai definhar pela imposição de dificuldades administrativas cada vez maiores,
04/09/20 mesmo tendo ainda centenas de investigações em andamento. Mas não há investigação sem investimento de recursos humanos, técnicos e financeiros, e isso está na mão de Aras. Infelizmente, a situação a ser enfrentada não tende a melhorar. Os inimigos estão unidos no desejo de destruir a operação e, para isso, contam com representantes em todos os poderes da República e mesmo em instituições que deveriam defender a ordem democrática. O câncer da apropriação do estado por uma elite política e econômica tem metástases por todos os lados. A população, por seu turno, está cansada e sentindo-se impotente, especialmente quando percebeu que as mudanças prometidas pelo governo Bolsonaro eram apenas uma fraude. Mesmo a imprensa, tão combativa no passado, não passa de um arremedo do que foi, incapaz de ir além de relatórios de versões travestidos de notícia. Poucos são, como esta revista, capazes de se posicionar nesse mar de mentiras – não foi por outro motivo que foi objeto de censura. Deltan Dallagnol e a operação Lava Jato são parte da história do Brasil. São parte do relato de como a democracia brasileira, nascida com
a Constituição de 1988, vem sendo carcomida pelo abuso do dinheiro e corrupção, transformando-se em um arremedo democrático apenas no momento do voto. De como as esperanças foram substituídas pela ganância e pelos interesses escusos, de como os sistemas de controle se tornaram inefetivos e as leis foram sabotadas para dificultar novas investigações. Exigir dele, neste contexto, qualquer sacrifício além do que já teve é injusto. Sei que muitos batem em nossas costas desejando força e demonstrando esperança, mas, apesar dessa imensa boa vontade, as investigações encontram-se órfãs de apoio. O sistema ameaça diariamente procuradores da República com punições por comportamentos absolutamente lícitos, especialmente o de esclarecer a população sobre irregularidades descobertas. Essa é a estratégia de intimidação de funcionários públicos e procuradores da República e está atingindo seu resultado. O Ministério Público está sendo calado. A esperança que resta é que o espírito de inconformismo dos brasileiros volte aos dias de manifestações de rua de 2013, pois nenhum daqueles problemas que levaram à indignação popular foi realmente resolvido. Continuamos
sem serviços públicos, mas agora temos certeza do motivo: a corrupção que mata pessoas e esperanças dos brasileiros por dias melhores. Não podemos nunca esquecer que eles, os corruptos, temem o povo, temem o despertar da cidadania ativa, aquela que não é apenas receptora passiva de políticas públicas, essas esmolas dadas magnanimamente pelos políticos, mas uma cidadania questionadora e desafiante, sempre a exigir o correto uso do suor do nosso trabalho apropriado pelo estado. Sempre resta a esperança por dias melhores. Só tenho a agradecer a Deltan Dallagnol. Agradeço a ele por ter me convidado a participar de uma investigação tão importante, mesmo estando eu no final de uma longa carreira. Agradeço a ele ter me lembrado dos ideais do Ministério Público após tantas batalhas e dificuldades terem me tornado cínico e pragmático. Agradeço a ele ter mobilizado a população em busca de respostas para tanto malfeito. Tenho certeza que veremos Deltan ainda em muitas outras batalhas, pois ele ainda tem muito a oferecer pelo Brasil. Mas agora deixemos ele cuidar do que lhe é realmente essencial: sua família.