Crusoé #124 (11.09.2020)

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O ministro e as empreiteiras crusoe.com.br/edicoes/124/o-ministro-e-as-empreiteiras 10 de setembro de 2020

Edição semana 124 - Reportagem Reprodução/MPF

Marcelo Odebrecht fala aos procuradores: depoimento sigiloso sobre e-mails Crusoé teve acesso à íntegra da apuração da Procuradoria-Geral da República sobre a relação de Toffoli com a Odebrecht e a OAS. Em vídeo exclusivo, Marcelo Odebrecht explica o esforço da companhia para contar com os préstimos do “amigo do amigo de meu pai” 10.09.20 Rodrigo Rangel Luiz Vassallo

Em abril do ano passado, uma reportagem de Crusoé revelou o teor de um documento de nove páginas enviado por Marcelo Odebrecht à Operação Lava Jato. Respondendo a dúvidas dos investigadores surgidas durante a análise de uma leva de e-mails até então inéditos trocados por ele com outros executivos da companhia, o empreiteiro-delator revelava a identidade de um personagem ao qual se referia como 1/15


“o amigo do amigo de meu pai”. Era José Antonio Dias Toffoli, hoje ministro do Supremo Tribunal Federal, que à altura da troca de mensagens ocupava o posto de advogado-geral da União. “Afinal vocês fecharam com o amigo do amigo de meu pai?”, perguntou Marcelo a dois altos executivos da empreiteira. “Em curso”, respondeu Adriano Sá de Seixas Maia, um dos chefes da área jurídica do grupo. Os investigadores queriam saber quem era o misterioso personagem e qual era a tratativa em curso. Além de revelar que se referia a Toffoli, Marcelo Odebrecht contou que a conversa se referia a “tratativas que Adriano Maia tinha com a AGU sobre temas envolvendo as hidrelétricas do rio Madeira”. A reportagem acabou censurada por ordem do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal. Atendendo a um pedido feito por Dias Toffoli por meio de uma mensagem de texto, ele ordenou que a matéria fosse retirada do ar. A decisão foi expedida nos autos do rumoroso inquérito do fim do mundo, que investiga fake news, ameaças e ofensas à corte. Em seu despacho, Moraes chegou a sustentar que se tratava de uma notícia falsa. Era um falso argumento, obviamente. A insólita ordem de censura expedida sob o timbre de um tribunal cuja missão principal é zelar pelo bom cumprimento da Constituição, que protege a liberdade de imprensa e a liberdade de expressão, ganhou contornos de escândalo. Dias depois, ao se dar conta de que, sim, o documento publicado por Crusoé existia, e de que não havia qualquer excesso na reportagem, Moraes revogou a decisão.

Aquele e-mail, porém, era apenas um de um acervo monumental com o qual delegados e procuradores da Lava Jato ainda deparariam. Uma parte o próprio Marcelo Odebrecht entregou espontaneamente como parte de seu acordo. Outra, mais extensa, foi encontrada quando os investigadores finalmente conseguiram, depois de muitas tentativas, quebrar as várias camadas de criptografia do notebook do empreiteiro, apreendido ainda na 14ª fase da Lava Jato, em junho de 2015. Como continha menção a autoridades com foro privilegiado, o material reunido pela força-tarefa da operação em Curitiba foi transferido para um HD de 1 terabite e enviado para o relator da operação no Supremo Tribunal Federal, o ministro Edson Fachin. A quantidade de informações era oceânica: 1.888.621 arquivos, entre eles mais de 700 mil e-mails, muitas planilhas e textos diversos.

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O disco rígido continha uma espécie de espelho do computador pessoal de Marcelo. No STF, o procedimento foi autuado em segredo de justiça. Em agosto do ano passado, Fachin enviou os autos para análise da Procuradoria-Geral da República. Àquela altura, os dados já haviam sido processados e era possível realizar pesquisas por palavras-chave. Foi a partir dali que, mergulhando no universo dos arquivos ainda secretos do empreiteiro, os procuradores destacados para atuar nos processos da Lava Jato que correm na PGR descobriram que aquela mensagem revelada por Crusoé em abril de 2019 era só uma de dezenas que faziam menção a Toffoli e aos vários assuntos que a Odebrecht tentou resolver, sempre buscando a ajuda do hoje ministro, no período em que ele era chefe da AGU no governo Lula. Os procuradores viram nesse conjunto de e-mails indícios suficientes para apurar, nas palavras deles, “o possível cometimento de fato penalmente relevante por José Antonio Dias Toffoli, praticado à época em que ocupava o cargo de advogado-geral da União”. As trocas de mensagens, com a devida contextualização, chegaram a ser reunidas em uma peça bem-acabada que deveria ser enviada na sequência a Edson Fachin pelo procurador-geral da República, Augusto Aras, pedindo a abertura de um procedimento específico para apurar as suspeitas relacionadas a Toffoli. Não se tem notícia, até hoje, de que Aras tenha dado o devido encaminhamento ao material. Em vez de serem reconhecidos pela coragem da iniciativa, os procuradores que realizaram o trabalho só tiveram problemas – em junho passado, eles pediram demissão coletiva e deixaram o grupo de trabalho da Lava Jato na PGR por discordarem do animus de Augusto Aras em relação à operação. O mesmo grupo, como o leitor verá mais adiante, havia preparado um segundo pedido de investigação que poderia alcançar Toffoli, desta vez em razão de sua relação com outra empreiteira, a OAS. Na primeira quinzena de julho, uma reportagem do jornalista Diego Escosteguy narrou os bastidores do esforço vão dos procuradores e revelou alguns dos principais achados relacionados ao ministro. Crusoé avançou na apuração e teve acesso, com exclusividade, não só à íntegra do material reunido pelos investigadores como também à gravação de um depoimento sigiloso no qual, por quase quatro horas, dois dos integrantes da então equipe da Lava Jato na PGR, com autorização do ministro Edson Fachin, ouviram Marcelo Odebrecht sobre os arquivos relacionados a Toffoli. O conjunto do material é eloquente. Conjugados os e-mails e as respostas prestadas em viva voz por Marcelo Odebrecht, é possível saber, por exemplo, que a empreiteira pagou caro a um escritório de advocacia indicado pelo próprio Toffoli para “intermediar” a relação com ele. Marcelo Odebrecht não chega a cravar, com todas as letras, que essa era uma forma de repassar dinheiro ao ministro, mas afirma que os emails, que sugerem a existência de um esquema para remunerar os favores por meio do tal intermediário, são claros (assista aos principais trechos do vídeo ao longo desta reportagem). O empreiteiro também relata que era comum o envio de presentes a Toffoli e conta que, em pelo menos duas ocasiões, se reuniu pessoalmente com ele, fora de agenda oficial, para estreitar a relação e para tratar de assuntos de interesse da 3/15


companhia – um dos encontros foi na casa do ministro, em Brasília, e outro no apartamento de um advogado indicado como “intermediário” da relação. A apuração preliminar dos procuradores mostra ainda que, com a anuência de Toffoli, a Odebrecht usou sua velha máquina de lobby no Congresso Nacional, aquela mesma que abastecia parlamentares com polpudas propinas, para ajudar na aprovação do nome do ministro para assumir a cadeira no Supremo, em 2009. Embora os e-mails deixem claro o interesse de Marcelo Odebrecht em manter a relação estreita com Toffoli depois que ele virou ministro da mais alta corte do país, a grande maioria das tratativas se refere ao período em que ele comandou a AGU, no governo Lula. Eram dois, basicamente, os temas de maior interesse da empreiteira. O primeiro envolvia a construção das usinas de Santo Antônio e Jirau, no rio Madeira, em Rondônia. Desde o início dos anos 2000 a Odebrecht estava de olho nessa empreitada. Tanto que fez um acordo com a estatal Furnas para realizar estudos para avaliar a viabilidade técnica dos projetos. A empreiteira esperava que, dada a sua precedência no tema, teria caminho livre para tocar os empreendimentos sem ser incomodada por concorrentes. Mas não foi exatamente o que aconteceu. Houve alguns embates no caminho, inclusive dentro do próprio governo e nos tribunais. A Odebrecht tinha, por exemplo, um contrato de exclusividade com possíveis fornecedores de turbinas para as usinas que passou a ser questionado. Quando os projetos avançaram, a companhia foi acusada de agir para limitar a concorrência. Também havia conflitos relacionados aos leilões das duas usinas. A empresa de Marcelo Odebrecht acabou ficando com o projeto de Santo Antônio, em 2007, e um consórcio integrado pela Camargo Corrêa, outra gigante da empreita pilhada nas investigações do petrolão, levou Jirau, no ano seguinte. A AGU comandada por Toffoli, que chegou a montar uma força-tarefa para tratar do assunto depois de ser destacado por Lula para dirimir o impasse entre as construtoras aliadas, era peça chave no processo e catalisou uma parte expressiva do interesse da Odebrecht, interessada em resolver as querelas a seu favor – por fim, as duas gigantes acabaram agraciadas. Tocador de vídeo https://cdn.crusoe.com.br/uploads/2020/09/VIDEO-5.mp4 00:00 04:33 O outro tema que levou a Odebrecht a montar guarda na Advocacia-Geral da União envolvia a discussão bilionária sobre a extinção do chamado crédito-prêmio do IPI. O assunto era de interesse dos grandes exportadores brasileiros, que poderiam sofrer sérios prejuízos caso o governo resolvesse voltar a cobrar deles o pagamento do imposto, do qual estavam isentos havia anos em função de um antigo decreto-lei, do final dos anos 1960. Era uma guerra que, pelos valores envolvidos, mereceria todos os esforços para ser vencida – a disputa girava em torno de 200 bilhões de reais. A 4/15


Odebrecht tinha especial interesse por causa da petroquímica Braskem, da qual era controladora. Segundo o próprio Marcelo Odebrecht, a depender do desfecho da discussão, a empresa poderia sofrer um rombo de 4 bilhões em suas contas. As partes interessadas envidaram esforços diversos em busca de uma solução. No Congresso, tentaram resolver a parada por meio de medidas provisórias negociadas à base de propinas que mais tarde viriam a ser reveladas em acordos de delação na Lava Jato. O assunto, porém, estava amarrado a decisões da Justiça, e nos tribunais a atuação da AGU poderia fazer toda a diferença. Por isso, Marcelo Odebrecht e os demais executivos do grupo que lidavam freneticamente com a questão (nos arquivos do empreiteiro há 501 e-mails tratando do assunto) passaram a mirar Toffoli como alguém que poderia ajudá-los. No depoimento prestado no início de maio aos procuradores Victor Riccely e Luana Vargas, em uma sala da Procuradoria da República em São Paulo, Marcelo Odebrecht é um tanto comedido ao responder às indagações sobre as mensagens relacionadas ao ministro do Supremo. Também pudera. Como delator em pleno usufruto dos benefícios do acordo firmado com a Procuradoria (hoje ele está em prisão domiciliar), para ele não chega a ser propriamente um bom negócio comprar briga com um integrante da Suprema Corte. Além disso, se fosse peremptório nas respostas, estaria diante de outro problema que, da mesma forma, tem potencial para colocar em risco sua condição de réu colaborador: por que, afinal, ele teria omitido informações tão graves ao fazer a delação? Diante desses dois dilemas, o Marcelo Odebrecht que aparece no vídeo se divide entre um personagem que não pode negar o que está registrado nos e-mails e outro que não deseja aprofundar ainda mais o fosso em que se meteu. É justamente nesse contexto que ele já começa transferindo para Adriano Maia, um de seus subordinados, a responsabilidade pelo relacionamento com Toffoli – além de “amigo do amigo de meu pai”, o ministro é tratado nas mensagens como “amigo de Adriano” e “amigo de AM”. Marcelo afirma que é Adriano quem pode esclarecer em quais bases se dava a relação com o próprio Toffoli e seus intermediários, com quais ele tinha se incumbido de negociar. A postura, aliás, é semelhante àquela que ele adotara ainda no ano passado, ao explicar por escrito quem era “o amigo do amigo de meu pai” e a história por trás do e-mail. Tocador de vídeo https://cdn.crusoe.com.br/uploads/2020/09/VIDEO-7.mp4 00:00 11:27 Adriano de Seixas Maia, de 46 anos, construiu uma longa e sólida carreira na Odebrecht. Entrou na companhia ainda jovem e chegou ao posto de diretor jurídico. Nessa condição, foi um dos responsáveis pela costura do acordo de delação premiada firmado pelos executivos da empreiteira com a Lava Jato. Ele deixou a Odebrecht em

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2018, na esteira do furdúncio interno decorrente das investigações. Adriano é apontado por Marcelo como aliado do pai dele, Emílio Odebrecht, e do cunhado, Maurício Ferro – hoje, ele trata os dois como inimigos figadais dentro do grupo. Os e-mails reunidos pelos procuradores mostram que Marcelo Odebrecht cobrava com frequência que Adriano Maia se mantivesse próximo a Toffoli, seja diretamente, seja por meio dos tais intermediários, os advogados Sérgio Renault e Luiz Tarcísio Teixeira Ferreira. Renault chegou a ocupar postos de confiança no governo durante a era petista. Foi assessor de assuntos jurídicos da Casa Civil e também secretário de reforma do Judiciário do Ministério da Justiça, a convite do então ministro Márcio Thomaz Bastos. Luiz Tarcísio, também próximo ao PT, trabalhou na gestão de Marta Suplicy na prefeitura de São Paulo. Foi no apartamento de Luiz Tarcísio, na capital paulista, que Marcelo Odebrecht teve um dos encontros pessoais com Toffoli – o outro foi na casa do ministro. Em ambos, segundo o empreiteiro, Adriano Maia estava presente. Marcelo Odebrecht queria que Adriano cuidasse de manter viva a relação, até para não sobrecarregá-lo. Ele fazia questão de cobrar isso rotineiramente. “Me encontrei em um jantar esta 5ª com Toffoli e ficamos de marcar um encontro. Você conseguiu manter contato?”, escreveu Marcelo a Adriano Maia em abril de 2013 – o ministro havia sido empossado no Supremo quatro anos antes. Adriano responde assim, com a observação de que os antigos intermediários seguiam disponíveis: “Marcelo, desde que ele se tornou ministro do Supremo, não. Meu contato se dava através de Renault e Tarcísio, com quem sempre podemos contar para reavivá-lo (eles sempre mencionam isso)”. Tocador de vídeo https://cdn.crusoe.com.br/uploads/2020/09/VIDEO-3.mp4 00:00 05:36 Em outubro do ano seguinte, ao ser alertado sobre um assunto de interesse da empreiteira que guardava relação com o Supremo, Marcelo voltou a cobrar: “Temos mantido a relação?”. “Desde que assumiu nova posição adotou postura muito cautelosa no contato conosco, direcionando eventuais demandas a intermediários”, devolveu Adriano Maia. Em setembro de 2009, dias após Toffoli ser escolhido por Lula para ocupar uma vaga no Supremo, Marcelo Odebrecht e Adriano Maia se articulam para ajudar no processo de aprovação do ministro pelo Senado. Onze dias antes da sabatina, Marcelo escreve: “Temos que ver como promover uns encontros reservados de T com alguns amigos da casa de cima de CMF. Eles e nós podemos ter com isto um aliado no futuro”. CMF é Cláudio Melo Filho, um dos lobistas mais atuantes da Odebrecht em Brasília, especialmente no Congresso Nacional. Cláudio Melo está copiado no e-mail. Adriano, que tinha a incumbência de fazer a ponte, diz: “Checarei interesse do t e falo com claudio”. O próprio Marcelo se coloca à disposição para ajudar. “Me avisem se 6/15


conveniente eu estar em algum”, escreve ele. A uma semana da sabatina, Adriano atualiza o assunto. “Me alinhei com claudio sobre um contato que ele pediu para fazermos. Sem a presença dele.” No depoimento aos procuradores, Marcelo dirime eventuais dúvidas sobre o episódio: ele confirma que Toffoli aceitou a oferta de ajuda da Odebrecht e pediu que a empreiteira fizesse contato com pelo menos um senador. “Nesse caso aqui você vê que foi minha iniciativa. Por que eu digo isso? Porque aí depois, o Adriano bota: checarei o interesse dele e falo com Cláudio. Aí, eu digo: me avise se conveniente eu estar. Aí, o Adriano fala: me alinhei com Claudio sobre um contato que ele, o Toffoli, pediu para fazer. Quer dizer, provavelmente Adriano foi lá: Toffoli, precisa de alguma ajuda? Toffoli deve ter dito: não, mas tem um senador em especial que eu tô vendo alguma dificuldade , será que vocês podem me ajudar? Pelo que tá aí… O que na verdade era mais do que comum. É o que o pessoal chamava de beija-mão, todos os ministros depois que eram escolhidos e antes de serem aprovados, eles faziam isso, e para fazer isso, muitas vezes eles buscavam empresários que tinham… E nesse caso eu mesmo perguntei a Adriano: ó, você não quer checar com o Toffoli se ele quer isso? E pelo retorno, ele pediu para falar com um.” Tocador de vídeo https://cdn.crusoe.com.br/uploads/2020/09/VIDEO-6.mp4 00:00 03:42 Um dos procuradores indaga: “Em que sentido um juiz, um ministro poderia ser um aliado da empresa?”. Marcelo, de novo recorrendo ao cuidado de sustentar que não via ilegalidade no ato, diz: “Você ter um ministro que você ajudou ele”. “Na verdade é o seguinte. O que que você cria a expectativa? Se você ajudou o cara de alguma maneira, lá na frente ele recebe você, ele vai te escutar, cria uma boa vontade”, prossegue. Na sequência, o empreiteiro sintetiza o relacionamento com Toffoli e diz o que esperava desse relacionamento. “Existia, sim, essa relação, a gente tentou aproximação, uma das razões que eu sempre dizia para o Adriano manter esse contato é porque eu achava que era uma pessoa que tinha o potencial, que seria importante a gente ter ele como um aliado futuro.” As cobranças de Marcelo se sucedem. “Relacionamentos de longo prazo se cultivam melhor em fases onde justamente não temos demandas imediatas. Comente com ele qd (quando) quer comer uma boa comida baiana em SP”, escreve. “Veja se manda algo para ele desejando feliz 2011 em nosso nome”, diz em outro e-mail, enviado a Adriano mais adiante. “Ele estará lá por muitos anos e precisamos cultivá-lo para manter uma parceria próxima”, afirma o empreiteiro em mais uma mensagem. A certa altura, Marcelo Odebrecht faz um pedido: “Lembrem da paca que prometi”. Em razão desse registro, especificamente, há um momento curioso no depoimento prestado aos procuradores. O empresário, se antecipando a uma possível interpretação de que “paca” poderia ser mais um dos tantos códigos que usava para tratar de vantagens 7/15


indevidas a autoridades, apressou-se em dizer: “Numa das conversas que eu tive com ele no passado, eu tinha prometido a ele (Toffoli) a história de comer uma paca. Porque meu pai criava paca. Então, ele tinha ouvido falar dessa história da paca, porque Lula tinha falado para ele da história da paca. Então, eu prometi para ele que eu faria essa paca para ele… A paca é o animal mesmo…”. “Paca é paca mesmo.”

A orientação do chefe foi seguida à risca por Adriano Maia, a julgar pelo teor dos emails reunidos pela equipe da PGR e pelo que o próprio Marcelo Odebrecht narrou em depoimento. Adriano atuou, por exemplo, em uma costura para que a Odebrecht entrasse nas discussões sobre a construção e a possível privatização do sistema de saneamento do município paulista de Marília, terra dos Toffoli. Um dos irmãos do ministro, José Ticiano Dias Toffoli, era o vice-prefeito da cidade à época. Ao reunir informações sobre o caso, os procuradores concluíram haver indícios de que, em troca do possível negócio, a Odebrecht se comprometeu a apoiar campanhas de políticos locais. A empreitada acabaria não dando certo – como mostraremos mais adiante, depois de um jantar em Brasília em que Toffoli aproximou o irmão de outro empreiteiro, Léo Pinheiro, a OAS acabou ficando com o projeto. Tocador de vídeo https://cdn.crusoe.com.br/uploads/2020/09/VIDEO-2.mp4 00:00 01:34 Apesar de se esforçar para não ser peremptório ao falar das mensagens que lançam suspeitas sobre a relação com Toffoli, em várias ocasiões Marcelo Odebrecht diz que os e-mails são claros. Em um deles, ao tratar do esforço contra o cancelamento do crédito-prêmio de IPI, ele exorta Adriano Maia a “buscar nossos ‘amigos’” na advocacia da casa e alerta dois diretores do grupo: “Estejam atentos ao DGI decorrente da linha AM (Adriano Maia). Não costuma ser baixo, até porque o intermediário que me foi qualificado por eles para negociar estes temas cobra bem a parte dele”. DGI, no dicionário da Odebrecht, é um acrônimo para despesas gerais indiretas – ou seja, propina. Para os procuradores, que esmiuçaram a mensagem na peça enviada ao gabinete de Aras, é uma indicação de que Marcelo entendia que o melhor caminho

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para solucionar a questão era por meio da AGU e da Casa Civil, recorrendo aos serviços dos “amigos de Adriano Maia”. O intermediário em questão, concluem os procuradores, é Sérgio Renault.

É nesse contexto que, depois de saber que Toffoli havia visitado o Supremo para tratar da inclusão na pauta da corte de um processo que poderia colocar um fim na questão, o que ia no sentido contrário ao interesse da empresa, Marcelo escreve a outros executivos, com cópia para Adriano Maia: “AM precisa falar com o amigo. Ele não quer o dele?”. Os investigadores leram a mensagem como uma indicação de que Marcelo queria que Adriano acionasse Toffoli. Sobre a pergunta “ele não quer o dele?”, chegaram a escrever em um dos expedientes da apuração: “Não se mostra necessário fazer maiores ilações para inferir o significado dessa corriqueira expressão: ele deixa a entender que essa conduta do então AGU, contrária aos interesses da Odebrecht, impediria que ele recebessse algum benefício (DGI) da empresa”. Nessa troca de mensagens, há um detalhe curioso: Adriano Maia, ao responder a Marcelo, simplesmente apaga da mensagem do chefe a pergunta. Os procuradores escreveram: “A expressão ‘ele não quer o dele?’ mostrou-se tão explícita que o próprio Adriano Maia – ao responder a mensagem de Marcelo Odebrecht confirmando que teria uma reunião no dia seguinte para ‘tratar do tema’, isto é, tratar do seu amigo Toffoli, faz uma pequena (mas sintomática) alteração no conteúdo dos e-mails copiados, justamente excluindo aquela frase”. Tocador de vídeo https://cdn.crusoe.com.br/uploads/2020/09/VIDEO-8.mp4 00:00 05:53 Àquela altura, a Odebrecht queria que o Palácio do Planalto mantivesse, sem vetos, o texto de uma medida aprovada a fórceps pelo Congresso que contemplava o pleito da companhia. Ao mesmo tempo, queria empurrar o julgamento do tema no Supremo, o que poderia jogar o plano por terra. A essa altura, Marcelo Odebrecht escreve: “Se for para resolver (o problema que ele criou no S e os vetos) acho que T e R valem até mesmo o número da chantagem deles”. A antiga equipe da Lava Jato na PGR relaciona “T” a Toffoli e “R” a Renault, um dos dois intermediários. O próprio Marcelo Odebrecht diz que Toffoli credenciou o advogado como seu interlocutor. O “número da 9/15


chantagem” seria, na leitura dos procuradores, o valor alto que, segundo Marcelo, foi pedido para resolver o imbróglio. No depoimento, o empreiteiro confirma a suspeita e reafirma o que já havia explicitado nos e-mails: ele propôs pagar de 20% a 25% do valor exigido de imediato pelos intermediários e deixar o restante para depois.

A Odebrecht, diz Marcelo, faria uma espécie de vaquinha com outras empresas interessadas no tema para pagar a diferença. O expediente é similar ao que ele usou ao atender, em outra situação, a um pedido de propina feito por Antonio Palocci, o “Italiano” das planilhas da empreiteira. No dia seguinte à mensagem do “número da chantagem”, Marcelo Odebrecht reforça, em um novo e-mail: “E a meta ficou claro (sic): Vencer ou postergar julgamento S e os vetos do jeito que queremos?”. É Adriano Maia, o suposto “amigo” de Toffoli, quem responde: “Ficou”. As metas, na leitura dos procuradores, eram postergar o julgamento no STF, supostamente com a ajuda da AGU, ou evitar os vetos do Planalto. Nenhuma delas foi alcançada, o que, registra a peça da Lava Jato, “não afasta a existência da negociação em si, bem como da promessa de atuação”. Tocador de vídeo https://cdn.crusoe.com.br/uploads/2020/09/VIDEO-4.mp4 00:00 00:00 O outro dos dois temas principais dos e-mails de Marcelo Odebrecht, a questão das hidrelétricas do rio Madeira, se desenrola em 2007. Nesse caso, os interesses da empreiteira eram vários. Muitos se sobrepunham. E quase todos passavam, de alguma forma, pela AGU. Pode-se dizer que a já conhecida mensagem em que Marcelo se 10/15


refere ao “amigo do amigo de meu pai” é uma espécie de ponto de partida para as discussões. Uma hora depois de disparar a cobrança, aliás, Marcelo diz: “Não podemos relaxar. Esta frente e a do amigo do amigo de meu pai decidem o jogo a nosso favor”. Meses depois, ele pergunta como está agindo o “amigo de Adriano” – ou seja, Toffoli – e de novo fala em “preço”: “Temos como motivá-lo a nos defender mais? Diria que pelo desgaste que possamos estar tendo pelo envenenamento da moça o apoio dele vale uma parceria/preço bem alto”. A moça seria a então ministra Dilma Rousseff, que se opunha aos interesses da empreiteira no projeto das usinas. “Ao que parece, o apoio de Toffoli é dado em troca de um alto preço a ser pago pela Odebrecht”, anotam os procuradores em uma das peças obtidas por Crusoé. Eles destacam os seguintes pontos acerca das tratativas sobre os projetos do rio Madeira: – havia um acerto em curso dos executivos da Odebrecht com Toffoli; – a Odebrecht enxergava o então advogado-geral da União como um personagem capital para resolver os problemas relacionados ao tema; – o apoio de Toffoli valeria uma “parceria/preço bem alto”; – os executivos da Odebrecht esperavam uma atitude mais proativa de Toffoli na defesa dos interesses da empresa.

Na sequência, Adriano Maia diz que a posição de Toffoli em relação aos temas de interesse da Odebrecht refletirá a vontade de Lula, que vinha acompanhando o tema e sofrendo pressão de empreiteiros concorrentes. A certa altura, ele afirma que os pareceres deveriam ser favoráveis à Odebrecht, mas que Toffoli tinha um limite: além de não poder contrariar as decisões do então presidente, seu chefe imediato, o então advogado-geral já estava demasiadamente exposto no tema. Ao fazer esse relato a Marcelo Odebrecht, Adriano menciona o que ouvira de Sérgio Renault, o suposto intermediário da relação: “Renault diz que meu amigo não confrontará diretamente a decisão do governo. Que não se espere isso dele, por conta da forte exposição que ele diz já ter tido no tema”. Um mês depois, Marcelo pede notícias sobre o acerto com o 11/15


“amigo”. Adriano responde da seguinte forma: “Acertei o conceito. Não detalhamos ainda a proposta. O Renault estah sabendo que faremos uma proposta de solução ainda este ano”. Pouco antes de pedir demissão coletiva por discordar da postura de Augusto Aras em relação à Lava Jato, os procuradores deixaram escrito no expediente em que defendiam a abertura de uma apuração no Supremo sobre a relação entre Toffoli e a Odebrecht que, embora não seja possível, de antemão, atestar a existência de ilícitos, as mensagens contextualizadas por eles formam um mosaico que aponta para a necessidade de investigação. Os procuradores observam que, devido ao gigantismo do acervo obtido a partir da quebra da criptografia do notebook de Marcelo Odebrecht, novos documentos ainda podem surgir em relação ao assunto.

Léo Pinheiro, da OAS, ao ser preso pela Lava Jato: encontros reservados com Toffoli

Em outra frente, analisando novos arquivos entregues pelos delatores de outra empreiteira, a OAS, os procuradores encontraram mais elementos que, no entender deles, apontam para a necessidade de se abrir uma segunda investigação sobre Toffoli. Há tempos, desde os primeiros movimentos do ex-presidente da companhia, Léo Pinheiro, para negociar um acordo de delação premiada com o Ministério Público, circulavam informações sobre o relacionamento do grupo com o próprio Toffoli e com familiares do ministro. Quando vazou pela primeira vez a notícia de que Léo Pinheiro ameaçava contar que pagou uma reforma na casa de Toffoli, a negociação do acordo foi suspensa pelo então procurador-geral da República, Rodrigo Janot. O assunto voltaria tempos depois, mas sem a história da casa. Entre os capítulos de sua delação, Léo Pinheiro limitou-se a falar de uma doação a José Ticiano, o irmão de Toffoli que foi vice-prefeito de Marília. Ainda assim, essa parte do relato foi arquivada pela sucessora de Janot na PGR, Raquel Dodge. Acontece 12/15


que, mais recentemente, o mesmo grupo de procuradores que se debruçava sobre os emails da Odebrecht teve acesso a uma parte ainda desconhecida dos registros da central de pagamentos de propina da OAS. Lá estavam registrados, com todas as letras, o pagamento de uma pequena obra na casa de Toffoli e os repasses para o irmão do ministro – uma parte, inclusive, via caixa dois. Diante das novas evidências, os procuradores pediram que Aras solicitasse ao Supremo o desarquivamento do procedimento que Dodge mandara para a gaveta e, além disso, incluísse o próprio Toffoli na investigação, por supostamente ter recebido vantagem indevida do presidente da OAS.

Toffoli é parte integrante da suposta trama relacionada à doação ao irmão dele. Em sua delação, Léo Pinheiro contou que, durante um jantar no restaurante Piantela, em Brasília, ouviu de José Ticiano Dias Toffoli e de um aliado político dele em Marília um pedido: eles queriam 1 milhão de reais para “comprar” a renúncia do então prefeito da cidade, Mário Bulgarelli. José Ticiano era o vice e queria assumir o posto. O ministro Dias Toffoli esteve no jantar, mas segundo Léo Pinheiro deixou o restaurante antes de o pedido de dinheiro ser feito. O empreiteiro relatou ainda o repasse de 1,5 milhão de reais à campanha de José Ticiano. Em contrapartida, o irmão do ministro garantiria à OAS um contrato milionário – o que de fato acabou acontecendo – para a construção do sistema de saneamento do município, uma obra realizada com recursos federais que o próprio José Antonio Dias Toffoli havia ajudado a liberar, durante o governo do PT. Na contabilidade paralela da empreiteira, os procuradores encontraram o registro do repasse do dinheiro, confirmando o relato de Léo Pinheiro. Só que havia mais. Em meio às planilhas, havia a anotação de uma despesa de 15 mil reais em valor líquido (e 18.750 brutos). Logo abaixo dos códigos que mostram quem autorizou o pagamento – em última instância, foi o próprio Léo Pinheiro –, há uma anotação: “reforma casa Dias Toffoli” (imagem acima). Ao propor a reabertura da apuração, os investigadores 13/15


observam haver “robustos indícios” de que a OAS custeou a obra na residência do ministro. Embora no depoimento prestado na delação Léo Pinheiro tivesse dito que não mantinha relação de amizade com Toffoli, outros arquivos reunidos pela equipe da Lava Jato apontam para o sentido oposto. Há evidências, inclusive, de que os dois se encontraram com alguma regularidade entre os anos de 2010 e 2013. Foram pelo menos dez encontros. Alguns deles, na casa de Toffoli. Há nos registros encontrados na agenda do empreiteiro um dado curioso: três encontros ocorreram em um apartamento da Asa Sul de Brasília que, segundo os procuradores, está registrado em nome de uma assessora de Toffoli desde os tempos da AGU. Ela trabalha hoje no gabinete do ministro no STF. Os investigadores demonstram estranhamento com a descoberta: por que, afinal, as reuniões aconteciam na casa de uma auxiliar do ministro? No pedido para reabrir a apuração, eles listam mensagens já conhecidas capturadas em aplicativos do telefone de Léo Pinheiro com menção a Toffoli. “Todo esse conjunto de mensagens reforça a existência de uma relação perene entre Toffoli e Léo Pinheiro”, pontuaram. Adriano Machado/Crusoé

Newman, o assessor de Toffoli: ponte com Léo Pinheiro, segundo os procuradores

Além de interagir com o próprio ministro, o empreiteiro também mantinha contatos frequentes com Ricardo Newman de Oliveira, outro funcionário da estrita confiança de Toffoli no Supremo. De 2012 a 2014, registra um dos documentos, eles trocaram 106 ligações. Newman é um personagem conhecido dos leitores de Crusoé. Ele apareceu em uma reportagem publicada ainda em 2018 sobre transferências mensais de dinheiro que o escritório da mulher de Toffoli, a advogada Roberta Rangel, fazia para o ministro – o assessor tinha procuração para movimentar as contas. Os procuradores afirmam que coube a Newman tratar com Léo Pinheiro da obra na casa de Toffoli. 14/15


Em maio de 2013, o empreiteiro escreve a um de seus auxiliares: “O Ricardo me ligou dizendo que lhe pediu um assunto da residência do amigo dele. Pode providenciar”. “Ok, o pessoal da empresa já marcou de ir lá novamente para verificar esta nova demanda. Lhe explico pessoalmente”, respondeu minutos depois o funcionário da OAS. A despesa com a reforma foi registrada nos arquivos secretos da empreiteira em agosto de 2013. Não se tem notícia, também nesse caso, de que o atual procuradorgeral da República, Augusto Aras, tenha enviado para o Supremo a petição preparada por seus ex-auxiliares. Crusoé está aberta a manifestações de Toffoli — que nesta quinta-feira, 10, transferiu a presidência do Supremo para o ministro Luiz Fux — e dos demais personagens mencionados nesta reportagem.

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A hora da Lava Toga crusoe.com.br/edicoes/124/a-hora-da-lava-toga 10 de setembro de 2020

O lado escuro do Judiciário ganhou os holofotes nesta quarta-feira, 9, graças à operação E$quema S, deflagrada pela Lava Jato do Rio de Janeiro. Ela teve por base a delação de Orlando Diniz, ex-presidente da Federação do Comércio do Rio de Janeiro, acusado de ter desviado milhões da entidade que integra o Sistema S, por meio de supostos pagamentos a escritórios de advocacia. “Quero um acordo (com a Justiça). Não tenho alternativa. Vou contar tudo”, disse Diniz à advogada criminalista Juliana Bierrenbach, em seu escritório na região central da capital fluminense, quando ainda negociava os termos de sua delação. Ele cumpriu o que prometeu. Entre os 26 denunciados por crimes como organização criminosa, estelionato, corrupção, peculato e tráfico de influência, figura nada menos do que o filho do presidente do STJ, Humberto Martins. Na casa do advogado Eduardo Martins, foram encontrados 800 mil reais: 100 mil em espécie e 700 mil num cheque. A dinheirama estava guardada numa sacolinha de papel. Para a esmagadora maioria dos brasileiros, é dinheiro que não acaba mais. Para ele, talvez não. Martins é investigado pela Lava Jato do Rio por receber, direta e indiretamente, 80 milhões de reais da Fecomércio, uma Mega-Sena acumulada. Também foram alvo de denúncia Roberto Teixeira e seu

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genro, Cristiano Zanin, advogados do ex-presidente Lula, e o ex-presidente do STJ, César Asfor Rocha, acusado de receber 2,67 milhões de reais por meio de subcontratações feitas por três escritórios contratados pela entidade na gestão Diniz. Embora não tenha sido denunciado, o onipresente Frederick Wassef, que atuou na defesa de Jair Bolsonaro e de seu filho Flávio é outro aparecer na história. Os escritórios de Wassef e de dezenas de outros advogados são suspeitos de integrar um esquema que pode ter desviado cerca de 355 milhões de reais. Os repasses a Wassef se deram por meio do escritório da advogada Luíza Eluf. Dados obtidos pelo Conselho de Controle de Atividade Financeira, o Coaf, mostram que ele recebeu ao menos 2,6 milhões. Surgiu, na investigação, até mesmo um elo de Wassef com Delúbio Soares, extesoureiro do PT. O MPF explica que a contratação de Luíza ocorreu a pedido do publicitário Marcelo Cazzo, “não tendo o trabalho realizado justificado o valor de contratação”. Segundo Diniz, a advogada, com quem se encontrou uma única vez em 2016, foi indicada ao publicitário por “Ivan Guimarães, dono da empresa Corseque Security, com quem a Fecomércio também mantinha contrato”. Ivan Guimarães foi presidente do Banco Popular no primeiro mandato de Lula, indicado ao cargo por Delúbio Soares, ex-tesoureiro do PT. Guimarães, afirmou Diniz, “era muito próximo de Frederick Wassef”. Reginaldo Pimenta/Raw Image/Folhapress

Na delação, Orlando Diniz diz que os pagamentos milionários visavam à perpetuação no poder da Fecomércio

Crusoé acompanhou todo o processo de negociação da delação de Diniz com fontes ligadas ao caso. Ao longo desse período, o ex-presidente da Fecomércio reuniu-se várias vezes com sua advogada, a criminalista Juliana Bierrenbach, para fornecer detalhes sobre como torrou centenas de milhões de reais em contratos firmados com caríssimas bancas de advogados, algumas delas ligadas a ministros de tribunais superiores – não raro, Diniz escrevia à mão os rascunhos enviados a Bierrenbach, para 2/4


serem transformados em anexos. Ainda em 2019, a primeira versão da proposta de acordo foi entregue. Em paralelo, a Lava Jato analisava os contratos assinados por Diniz, pesquisava os processos judiciais na Fecomércio e quebrava sigilos bancários e fiscais de escritórios de advocacia a fim de entender a teia de transações financeiras. Em junho de 2020, quando o acordo foi selado e homologado pelo juiz Marcelo Bretas, os investigadores tinham o mapa dos caminhos que, enfim, levariam a Lava Jato para dentro do Judiciário. Por meio das revelações de Diniz e do material amealhado na investigação, foi possível detalhar uma velha prática conhecida — mas nunca investigada nesse nível — sobre como se dão as relações nada ortodoxas entre poderosos enrolados na Justiça, advogados e integrantes do Judiciário. Na delação, Diniz é taxativo: os pagamentos milionários visavam à perpetuação no poder da Fecomércio. Para obter influência política sobre ministros do STJ, onde corriam processos contra ele, o ex-presidente da entidade contratou escritórios próximos a magistrados, como o de Eduardo Martins. “Não à toa, os integrantes do núcleo duro da organização criminosa (valeram-se), para tanto, de fraudulentos contratos de honorários advocatícios como forma de remunerar, a preços vultosos, Eduardo Martins, não pela prestação dessa espécie de serviços, mas sim por uma pretensa e propalada influência sua no Superior Tribunal de Justiça, derivada de sua relação filial com o ministro desta Corte Superior, Humberto Martins”, diz o MPF, ao denunciar o advogado. Pedro Ladeira/Folhapress

Advogado de Lula, Cristiano Zanin é apontado como integrante do núcleo duro da organização criminosa

A mesma situação se repetiu no Tribunal de Contas da União, que também questionava os gastos da gestão Diniz. Por indicação do casal Sérgio Cabral e Adriana Ancelmo, a Fecomércio desembolsou 13 milhões de reais para contratar Tiago Cedraz, 3/4


filho do ministro do TCU Aroldo Cedraz. De acordo com Diniz, a contratação não tinha por objetivo qualquer tipo de assistência técnica nos processos, mas a “compra da solução no TCU”. Além de explicar os motivos das contratações, Diniz detalhou no seu acordo como se deu a arquitetura do esquema que desviou 151 milhões de reais da Fecomércio e do Sistema S – o valor, diz o MPF, refere-se apenas ao que já foi confirmado, mas pode alcançar 355 milhões de reais. É quando entram em cena o advogado Roberto Teixeira e seu sócio Cristiano Zanin – a dupla foi denunciada por receber 68 milhões da Fecomércio. Os advogados de Lula foram apresentados a Diniz em 2012 pelo advogado Fernando Hargreaves. Na delação, o ex-presidente da Fecomércio-RJ narra um encontro no bar da piscina do Copacabana Palace, no Rio de Janeiro. Segundo o MPF, para tentar estancar uma fiscalização na Fecomércio dirigida por Carlos Gabas, conselheiro fiscal da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo e ex-ministro da Previdência dos governos do PT, Teixeira cobrou 10 milhões de reais, exigindo que 1 milhão de reais fosse entregue em espécie e que o contrato fosse feito em nome de Diniz e não da Fecomércio. De acordo com a denúncia, a partir do momento em que estreitaram a relação com Diniz, tanto Teixeira quanto Zanin passaram a comandar todas as contratações de advogados. Ao longo do período em que o esquema atuou, entre 2012 e 2016, a dupla integrou o “núcleo duro” do grupo que escoou milhões para os escritórios que fizeram a ponte entre a Fecomércio e as cortes superiores de Brasília. De acordo com a denúncia, Zanin teria intermediado a contratação de bancas de advocacia para influenciar decisões e corromper agentes públicos em processos no TCU e no STJ. O MPF imputa a Zanin, inclusive, a responsabilidade pela contratação de Eduardo Martins, filho do presidente do STJ. O objetivo seria o de “influir em atos praticados por ministros do Superior Tribunal de Justiça.” Um auditor de controle externo do TCU também teria recebido da dupla Teixeira-Zanin propina de 827 mil reais, para criar facilidades na corte. Todos os denunciados têm milhões de motivos para não gostar mesmo da Lava Jato – e os brasileiros honestos têm muita razão para continuar querendo uma Lava Toga.

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Flagrados, mas candidatos crusoe.com.br/edicoes/124/flagrados-mas-candidatos 10 de setembro de 2020

Poucas horas depois de os agentes do Ministério Público do Rio de Janeiro deixarem seu apartamento na zona sul carioca, na manhã da terça-feira, 8, o ex-prefeito Eduardo Paes, do DEM, foi ao Twitter esbravejar contra a operação que também o tornou réu pelo suposto recebimento de 10,8 milhões de reais de caixa dois da Odebrecht, em 2012, quando ele se reelegeu. “Mais uma vez, digo para vocês: não foi apresentada nenhuma nova acusação contra mim, zero. As reportagens são absolutamente idênticas ao que foi reportado três anos atrás”, esbravejou Paes, que tenta reassumir a prefeitura do Rio nas eleições de novembro e cujo codinome nas planilhas da empreiteira é “nervosinho”. Em um ponto a réplica de Paes não erra. As acusações, de fato, são antigas. Vieram à tona em 2017, no bojo da delação da Odebrecht. Mas a denúncia aceita no mês passado pela Justiça Eleitoral vai além dos meros depoimentos dos executivos da empreiteira, como ele sugere. Registros de entregas de dinheiro vivo feitos pelo doleiro da Odebrecht e delações de um ex-secretário e do próprio marqueteiro de campanha de Paes são algumas das novas provas dos repasses ilícitos que o ex-prefeito prefere ignorar.

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Eduardo Paes é apenas um dos políticos que, embora mencionados em delações e incluídos em planilhas de empreiteiras, tentarão triunfar nas urnas este ano – fazendo figa para que a população esqueça o que eles fizeram no verão passado. O elenco dos candidatos delatados não escolhe ideologias nem matizes partidários. Vai do DEM ao PCdoB, passando, é claro, pelo sempre encrencado PT e pelos não menos enrolados PTB, PSDB, PSB, PSD, PDT, Progressistas, Podemos e Republicanos – deste último partido, faz parte do rol de aspirantes a renovar o mandato nas urnas o prefeito do Rio, Marcelo Crivella. Nesta quinta-feira, 10, dois dias após a operação contra Eduardo Paes, Crivella – o mesmo que Paes acusou de estar sendo beneficiado com a ação contra ele – recebeu a visita dos investigadores na prefeitura e no condomínio onde mora. O MP apura a existência de um “QG da propina” dentro da Riotur, empresa municipal de turismo, que foi delatado pelo doleiro Sergio Mizhay. Entre os alvos da operação está Mauro Macedo, tesoureiro das campanhas de Crivella que teria operado outros esquemas para o bispo licenciado da Igreja Universal, como o recebimento de cerca de 3 milhões de reais da Fetranspor, a federação das empresas de ônibus, nas eleições de 2016 e 2010. Curiosamente, as entregas de dinheiro vivo ao tesoureiro de Crivella há dez anos, quando ele se reelegeu senador, foram feitas pela mesma transportadora de valores que entregou os malotes da Odebrecht ao marqueteiro de Eduardo Paes, em 2012. Além da delação do ex-presidente da Fetranspor, Lélis Teixeira, as transações foram confirmadas em depoimento por um funcionário do doleiro Álvaro Novis, operador dos pagamentos ilícitos tanto da Odebrecht quanto da Fetranspor. Ainda no Rio, delações sobre pagamentos de propina e caixa dois assombram as candidaturas da petista Benedita da Silva e da ex-deputada Cristiane Brasil, do PTB, filha de Roberto Jefferson. Em São Paulo, três dos principais pré-candidatos a prefeito da capital também figuram em planilhas de propina ou foram acusados em delação premiada. O deputado Celso Russomanno, do Republicanos, e o ex-governador Márcio França, do PSB, foram acusados de receber caixa dois da Odebrecht em 2010. Na eleição ao governo do estado, há dois anos, o governador João Doria chegou a explorar o codinome atribuído a França pela empreiteira, “Paris”, em peças de propaganda exibidas no horário eleitoral. Já o petista Jilmar Tatto figura nas delações do exministro Antonio Palocci e de Nestor Cerveró, ex-diretor da Petrobras, como beneficiário de caixa dois de 500 mil reais na eleição de 2010. A lista de delatados na eleição paulistana inclui ainda o ex-ministro Orlando Silva, candidato pelo PCdoB, que foi acusado de receber 3 milhões de reais da JBS em 2014. O PSDB paulista também não está escapa incólume. Embora não tenha sido envolvido pessoalmente em delações, o atual prefeito, Bruno Covas, do PSDB, foi indiretamente atingido pela chamada Lava Jato Eleitoral, com a denúncia oferecida contra o exgovernador Geraldo Alckmin, por suposto caixa dois de 11,3 milhões de reais da Odebrecht nas eleições de 2010 e 2014. Alckmin seria o coordenador da campanha de Covas, mas desistiu após virar réu por corrupção e lavagem de dinheiro em julho. 2/4


No interior do estado, a delação da empreiteira baiana também ameaça as reeleições de influentes líderes partidários, como o tucano Duarte Nogueira, em Ribeirão Preto, e o petista Edinho Silva, em Araraquara. Em São Bernardo do Campo, terra do expresidente Lula, o ex-ministro Luiz Marinho, do PT, tentará retomar a prefeitura que comandou por oito anos no auge da era petista com um enorme passivo políticopolicial: a acusação de recebimento de 12 milhões de reais de propina da OAS em troca de obras superfaturadas na cidade. Marinho aparece na delação da CCR, concessionária de rodovias, juntamente com o companheiro de partido Emídio de Souza, deputado estadual que tentará voltar à prefeitura de Osasco. Ele é acusado de receber caixa 2 para a campanha de Aloizio Mercadante ao governo do estado em 2010. Como essas serão as primeiras eleições municipais após as megadelações feitas na Lava Jato, o impacto das acusações nos resultados das urnas locais só será testado agora. Em Belo Horizonte, a planilha da Odebrecht faz sombra aos dois principais nomes do campo da esquerda na disputa contra o atual prefeito Alexandre Kalil, do PSD, na capital mineira. Tanto o petista Nilmário Miranda quanto o deputado Júlio Delgado, pré-candidato pelo PSB, aparecem na relação de caixa 2 da empreiteira em 2010. Já em Salvador, a acusação de recebimento de 250 mil reais em doações da Odebrecht para defender os interesses da empreiteira na tramitação de uma Medida Provisória no Congresso não inibiu o deputado João Carlos Bacelar de lançar sua candidatura à prefeitura de Salvador pelo Podemos. No páreo também está a ex-senadora Lídice da Mata, do PSB, suspeita de receber 200 mil da empreiteira baiana em sua eleição ao Senado em 2010. No Recife, é o ex-ministro Mendonça Filho, pré-candidato do DEM, que terá de explicar aos eleitores o pagamento de 100 mil reais que a UTC teria feito a ele há seis anos ou torcer para que o assunto tenha sido esquecido. Jogar uma cortina de fumaça sobre o tema corrupção será mais complicado na capital paranaense, berço da Lava Jato. Lá, dois parlamentares que postulam a prefeitura foram citados em delações. O emedebista João Arruda foi acusado por um exsuperintendente do Ministério da Agricultura no Paraná de receber propina de frigoríficos da região durante a Operação Carne Fraca. Já o ex-prefeito Gustavo Fruet, do PDT, é um dos nomes listados por Benedicto Junior, ex-executivo da Odebrecht, como beneficiário de 200 mil reais de caixa 2 nas eleições de 2010 e 2012. Ainda no sul do país, a planilha do Departamento de Operações Estruturadas da empreiteira baiana expõe candidatas a prefeita de espectros políticos antagônicos. Em Florianópolis, Angela Amin, do Progressistas, e em Porto Alegre, Manuela D’Ávila, do PCdoB. Com tantos candidatos suspeitos nas mais variadas modalidades e em diferentes proporções, não é de se espantar que algumas campanhas acabem por exaltar quem roubou em menor escala, numa versão provavelmente menos escrachada do que a protagonizada no último domingo, 6, por José Maria Monção, ex-prefeito da cidade de 3/4


Cocal, no Piauí, preso duas vezes por desvio de recursos públicos. Em discurso acompanhado de gargalhada de Ciro Nogueira, líder do Centrão, Monção admitiu que roubou, só que menos do que atual prefeito e rival na disputa. “Não roubei o tanto que esse aí (sucessor) roubou não, está entendendo? Esse é descarado”, afirmou. Saímos do “rouba, mas faz” para o “rouba, mas menos”.

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Roberto Livianu critica a pena de censura imposta ao procurador Deltan Dallagnol 2/6


O procurador de Justiça que preside o Instituto Não Aceito Corrupção critica os ataques à Lava Jato e diz que a vontade de Augusto Aras não pode ser maior do que a instituição 10.09.20

Helena Mader

Nos anos 1990, quando fazia doutorado em direito na Universidade de São Paulo, Roberto Livianu envolveu-se com uma bandeira que se transformaria na causa de sua vida: o combate à corrupção. Sob a orientação do professor e jurista Miguel Reale Júnior, o então jovem promotor de Justiça do Ministério Público de São Paulo defendeu uma tese em que expôs a realidade de desvios de recursos públicos no país. Em 2012, quando ele liderou uma campanha de conscientização sobre os danos da corrupção para a sociedade, sua militância na área ganhou projeção nacional. Lançada no auge do julgamento do escândalo do mensalão, a ação foi a semente para o grande projeto de Livianu: o Instituto Não Aceito Corrupção. Criado há cinco anos, o grupo realiza pesquisas, desenvolve políticas públicas anticorrupção, faz uma análise de projetos de lei em andamento no Congresso, e, principalmente, atua na mobilização da sociedade contra malfeitos em todas as esferas de poder. Em entrevista a Crusoé, o procurador de Justiça do MP de São Paulo defendeu a aprovação da proposta de emenda à Constituição que permite a prisão de condenados em segunda instância. A tramitação está travada no Congresso por interesses nada republicanos de parlamentares enrolados com a Justiça. “Essa PEC é de importância capital para o combate à corrupção”, afirmou Livianu. Ele também cobra da Câmara o fim do foro privilegiado – o texto foi aprovado pelo Senado em 2017 e, desde então, não deslancha. “A proposta dormita na gaveta do presidente da Câmara e isso é motivo de vergonha para o Brasil perante o mundo”, argumenta. O procurador ataca o “cerco” à Lava Jato montado pelo procurador-geral da República, Augusto Aras, diz que ele não “é dono do Ministério Público” e critica a pena de censura imposta ao procurador Deltan Dallagnol. Eis os principais trechos da entrevista: Na última terça-feira, 8, foi apresentado o relatório da PEC da Segunda Instância. Qual é a importância da proposta para o combate à corrupção? Essa PEC é de importância capital para o combate à corrupção. Aguardar quatro 3/6


instâncias para julgamento, a meu ver, representa um pacto com a impunidade. O mundo democrático ocidental prende após condenação em primeiro ou segundo grau, essa é a regra vigente em todos os países. Precisamos seguir esse fluxo, que é o que existe de correto. Se não fizermos dessa maneira, ficaremos para trás e seremos sempre vistos como o país da impunidade. A apresentação do relatório é positiva e espero que o Congresso tenha a percepção da importância desse tema para a sociedade. Afinal de contas, na democracia, o poder é investido em nome do povo, pelo povo e para o povo. E a expectativa da sociedade é que essa proposição avance e seja aprovada. Como o sr. vê a resistência do Congresso à PEC? Eu penso que a sociedade e a imprensa têm papéis fundamentais no avanço dessa agenda. Para que tenhamos a aprovação dessa proposição, é fundamental que a mídia jogue luz e que a sociedade apoie e perceba a relevância disso para o combate eficiente à corrupção. Processos que se eternizam e duram 20, 25 anos, são processos fadados ao fracasso, que prescreverão, e isso vai estimular práticas desonestas. Vai estimular situações como a de Cocal, no Piauí, em que um ex-prefeito veio a público na semana passada para dizer que ele rouba menos do que o atual, como se isso fizesse dele um ícone de honestidade. O avanço dessa proposição é a verdadeira vacina que nos protege da naturalização desse tipo de declaração. Especialistas criticam a ampliação dos efeitos da PEC para outros ramos do direito. O sr. acha que isso pode tumultuar a tramitação? Eu concordo que a PEC deveria focar na área penal. Na realidade brasileira, quando você não tem muito foco nas discussões, há um grande risco de eternizá-las e de abrir campo para angulações absolutamente indesejáveis. Veja o problema gravíssimo que estamos tendo com a Lei de Improbidade. O deputado Roberto de Lucena apresentou um projeto muito correto, muito apropriado, que propunha a atualização da lei. No geral, o projeto é positivo. O problema foi o substitutivo elaborado pelo relator na comissão especial, deputado Carlos Zarattini, do PT, que não foi apresentado formalmente, existe apenas na clandestinidade. Foi entregue aos membros da comissão e não foi protocolado formalmente na Câmara, não existe do ponto de vista político, jurídico e legislativo. Não se permitiu um debate sobre esse substitutivo. E ele propõe nada mais, nada menos do que praticamente a implosão da Lei de Improbidade. Ele sugere a redução de pena para corruptos, a supressão de uma das três categorias de improbidade, e dificulta a adoção de medidas cautelares. É um mundo doce e suave para os corruptos. Como o sr. avalia a diminuição da mobilização popular em torno do combate à corrupção? Tenho a percepção de que ainda existem muitas pessoas preocupadas com o tema e que continuam empenhadas na luta contra a corrupção. O presidente da República chegou ao poder prometendo o combate rigoroso à corrupção, todo mundo sabe disso. Ele prometeu ser firme contra o foro privilegiado, lutar contra o caixa dois eleitoral. Mas, agora, vemos o advogado-geral da União e o procurador-geral da República, 4/6


escolhidos pelo presidente, defendendo o foro privilegiado para o hoje senador Flávio Bolsonaro. Isso contraria completamente o discurso entoado na campanha. A gente não vê no dia a dia do governo um combate firme ao caixa dois eleitoral, nem uma agenda anticorrupção. Qual a avaliação do sr. com relação à transparência do atual governo? A gente percebe uma involução em matéria de transparência. Enquanto 130 países do mundo firmaram um pacto contra a disseminação de fake news durante a pandemia, o Brasil se negou a assinar. Isso é extremamente preocupante. E com o abandono da agenda anticorrupção, a gente vê o governo no caminho exatamente contrário, ao editar uma medida provisória que propôs a blindagem de corruptos por atos durante a pandemia. A questão da punição efetiva ao caixa dois eleitoral, que o então ministro Sergio Moro quis incluir no pacote anticrime, foi decapitada quando o pacote chegou ao Congresso. Muitas outras iniciativas tiveram o mesmo destino. Você não percebe por parte do governo federal uma ação concreta de combate à corrupção. Foi dito que não haveria o toma-lá-dá-cá, mas o governo fez acordo com o Centrão para garantir que o presidente escape de um possível impeachment. Muitos dos seguidores do presidente, fiéis a essas bandeiras, o seguem qualquer que seja a sua agenda. E a democracia propriamente dita não é o fio condutor de tudo isso. E as manifestações antidemocráticas? Acha que representam um risco real à democracia? Eu chamaria de manifestação tirânica. Defesa de AI-5, espancamento de repórter, e não ouvimos nenhuma manifestação de repúdio por parte do presidente. Em que lugar estamos vivendo? Ele capitaneava a formação de um partido conhecido como o “partido do presidente”, a Aliança pelo Brasil. Você não vê atitudes marcadamente democráticas. Nós vivemos uma crise da democracia brasileira, infelizmente. A Operação Lava Jato tem sido alvo de vários ataques, que culminaram com a saída do procurador Deltan Dallagnol. Acredita que isso representa o fim da operação? Eu espero que a Lava Jato não tenha terminado. A Lava Jato tem uma dinâmica de trabalho colaborativa, na forma de força-tarefa, e está sujeita apenas a decisões administrativas da cúpula do Ministério Público. O procurador-geral da República não é o dono do Ministério Público. Existem instâncias da administração superior. Há uma demanda por parte da sociedade pelo combate à corrupção. Não se pode simplesmente implodir a Lava Jato e não responder a essa demanda da sociedade. A vontade do procurador-geral da República não é vontade única. Existem outros organismos na instituição, existe a vontade da sociedade, o poder vigilante da mídia. Não há dúvida alguma de que a Lava Jato está sob cerco. Qual é a sua avaliação sobre a punição de censura imposta ao procurador Deltan Dallagnol pelo CNMP? Basicamente, as acusações feitas contra ele dizem respeito ao exercício da sua liberdade de manifestação do pensamento. Todos têm esse direito no Brasil. Por que os membros do MP não podem se manifestar? Eles são menos cidadãos? A meu ver, a

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plenitude do direito de manifestação é um sinal de maturidade democrática. É razoável os membros do Ministério Público serem punidos por se manifestarem? Até que ponto isso é plausível em uma democracia? A sociedade pode pagar um preço alto por isso. A PEC que restringe o foro privilegiado foi aprovada pelo Senado em 2017, mas está parada na Câmara desde então. O sr. acha que os deputados vão aprovar a proposta? Essa proposta dormita na gaveta do presidente da Câmara e isso é motivo de vergonha para o Brasil perante o mundo. Sou membro do Ministério Público e defendo o fim do foro para membros do Ministério Público também. Não se justifica mais termos figuras imunes, blindadas. O foro privilegiado nos envergonha. Precisamos de isonomia, igualdade para todos. Que pontos o sr. avalia como indispensáveis para uma efetiva reforma política no Brasil? Acho que a reforma política é a reforma das reformas, ela é imprescindível para que tenhamos avanços civilizatórios. Temos que debater a questão do sistema de voto e tantas outras que giram em torno disso, como falhas no controle dos partidos. Foge-se de um debate sobre regras de integridade para os partidos e não há democracia e transparência verdadeira dentro deles. Para piorar, no ano passado, aprovaram uma autorização para o uso de recursos do fundo partidário para a compra de helicópteros e iates de luxo. Isso é um acinte. Os partidos precisam se moldar à democracia, à transparência e à ética.

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O mais soviético resiste crusoe.com.br/edicoes/124/o-mais-sovietico-resiste 10 de setembro de 2020

VELOCIDADE DO ÁUDIO 1x 1.25x 1.50x Na manhã de segunda-feira, 7, a bielorussa Maria Kalesnikava, flautista e maestrina de 38 anos, foi empurrada por homens mascarados para o interior de uma van em cuja lataria estava estampada a palavra “Comunicação”. De Minsk, a capital da República de Belarus, ela foi levada com outros dois críticos da ditadura de Alexander Lukashenko, Anton Rodnenkov e Ivan Kravtsov, para a fronteira com a Ucrânia, ao sul. Os outros dois opositores tinham sido alertados de que, se não deixassem o país, eles ficariam presos indefinidamente. Mas Kalesnikava recusou o destino que queriam impor a ela. Rasgou o seu passaporte e jogou o que sobrou dele pela janela, impossibilitando sua entrada no país vizinho. Kaleniskava agora está detida em Minsk, assim como outros rostos que se destacaram nos protestos que se seguiram à eleição de 9 de agosto. No pleito, Lukashenko, há 26 anos no poder, declarou-se vencedor com 80% dos votos. A suspeita de fraude foi o que levou mais de 200 mil bielorussos a se manifestar. Setores da sociedade que nunca haviam desafiado o ditador, como professores, médicos e funcionários de estatais, uniram-se às passeatas. Nos últimos dez dias, porém, todos os que lideraram o movimento foram presos, deportados, deixaram o país após receber ameaças ou se encontram desaparecidos. 1/4


Na quarta-feira, 9, o advogado Maksim Znak, de 37 anos, um dos últimos integrantes do “Conselho de Coordenação” da oposição em Belarus, foi sequestrado. Uma foto de Znak sendo conduzido por homens mascarados em roupas civis foi publicada no Telegram. Após avisar pelo telefone que havia homens em frente ao prédio em que ele estava, a ligação caiu. Znak só teve tempo de mandar a frase “são mascarados” por mensagem de texto. A polícia e os serviços secretos não confirmaram a prisão de Znak, mas o enredo corresponde ao ocorrido com outros adversários da ditadura, que foram detidos e depois apareceram como exilados ou presos. Da precária comissão formada pelos manifestantes para negociar uma transição com o governo, apenas a escritora Svetlana Aleksiévich, vencedora do prêmio Nobel de Literatura, permanecia livre até esta quinta-feira. Mesmo assim, durante a semana, um grupo tentou invadir seu apartamento. Reprodução

Kaleniskava, antes de ser detida: ela se recusa a sair do país

A neutralização das vozes dissidentes denota uma mudança na estratégia repressiva usada por Lukashenko. No início, a tática era a de prender manifestantes. Mais de 6 mil chegaram a ser detidos. Quando deixavam o cárcere, dias depois, vários deles exibiam hematomas pelo corpo. No entanto, nada disso surtiu efeito, e as manifestações seguiram numerosas. A nova estratégia parece observar os conselhos oriundos da Rússia, pois emula as táticas tradicionalmente empregadas pelo Kremlin. A investida passou a ser contra todas as cabeças da oposição. Além disso, mais de 50 sites que cobriam os protestos foram bloqueados. Ao pedir ajuda a Vladimir Putin, a Belarus reata as relações com a Rússia, que andavam estremecidas. Ao longo de sua história, os laços entre os dois países foram estreitados e afrouxados em diversos momentos. Antiga Bielorússia, o país foi parte do Império Russo, tornou-se independente em 1918 e teve regiões anexadas pela Polônia até ser totalmente anexado pela União Soviética, em 1939. Com o colapso da URSS, em 1991, a Belarus não trilhou o caminho de seus vizinhos, como a Lituânia e a Polônia, que abriram seus mercados e se democratizaram. Em vez 2/4


disso, seguiu como “o mais soviético dos ex-estados soviéticos”, nas palavras de Maxim Samorukov, do Centro Carnegie de Moscou. Passou a viver de refinar o petróleo russo e revendê-lo para o Ocidente. A prática propiciou estabilidade econômica, postergando reformas de mercado e permitindo a manutenção da antiga oligarquia. Lukashenko, um ex-diretor de uma fazenda coletiva, eleito presidente em 1994, foi quem mais se beneficiou dessa articulação comercial entre o Leste e o Oeste. Reprodução/redes sociais

Putin e Lukashenko: russo quer afastar aliado da Otan e UE

Há alguns anos, Lukashenko começou a se aproximar dos Estados Unidos e da União Europeia. Sanções contra a ditadura foram retiradas e o país deixou de ser visto como mero satélite de Moscou. Na sua campanha para as eleições deste ano, Lukashenko atacou frontalmente a Rússia e ordenou a prisão de supostos mercenários russos. Foi o pior momento na relação bilateral. Contudo, quando os protestos começaram em agosto, Lukashenko, a fim de se manter no poder, não hesitou em cortar os vínculos com o Ocidente e fazer as pazes com a Rússia. Para Putin, não poderia haver regozijo maior. Ao ter o presidente vizinho como refém, ele mantém a Belarus longe do Ocidente, representado pela União Europeia e pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). A aproximação com a Rússia deve ampliar o abismo entre o ditador e a população. Nos anos 1990, os bielorussos apoiaram o arcaísmo de Lukashenko porque viram nele uma garantia contra a instabilidade econômica. Esse sentimento diluiu-se com os anos. No ano passado, pesquisas mostraram que a maioria da população prefere trabalhar no setor privado a ganhar salários estagnados em alguma estatal. Jovens que viajam com frequência para a Polônia e para a Lituânia não suportam mais o comportamento autoritário de Lukashenko, que chegou a visitar policiais antimotim com roupas militares e um rifle nas mãos.

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Abusos crusoe.com.br/edicoes/124/abusos 10 de setembro de 2020

Edição semana 124 - Diogo Mainardi

DiogoMainardina ilha do desespero 10.09.20

Jair Bolsonaro derreteu nas redes sociais. A AP Exata, que mede em tempo real as mensagens presidenciais, mostrou que, em 2020, a repercussão das asnices bolsonaristas foi positiva em 32 dias e negativa em 202 (o resto foi neutro). É claro que Jair Bolsonaro sabe disso. É claro também que, tendo derretido nas redes sociais, ele resolveu macaquear Lula, com sua aposta em instrumentos de persuasão mais arcaicos, como esmola, escambo e propaganda. A esmola e o escambo sempre funcionam. Quanto à propaganda, ela pode comprar o rebotalho da imprensa, pingando uns trocados nas contas da escória do jornalismo. Na quarta-feira, enquanto a Lava Jato revistava os escritórios do advogado de Jair Bolsonaro, do advogado de Lula, do filho de um ministro do TCU (Aroldo Cedraz) e do filho do presidente do STJ (Humberto Martins), em busca de provas sobre a propina desviada do Sistema S, o presidente do STF, Dias Toffoli – que foi advogado do PT –, recebia uma homenagem de Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre, aplaudido pelo presidente do STJ (aquele mesmo Humberto Martins cujo filho foi acusado de ter recebido 42,9 milhões de reais do operador Orlando Diniz para influenciar os ministros da corte). 1/2


Durante a homenagem, Rodrigo Maia exaltou o papel de Dias Toffoli, dizendo: “A principal marca de sua gestão é o compromisso com o Estado Democrático de Direito. Com a Constituição e a democracia. A coragem e a altivez para defender as instituições daqueles que, abusando de seus direitos, procuram não criticar, mas constranger, ameaçar e, por fim, calar os poderes da República.” Rodrigo Maia referia-se às redes sociais bolsonaristas, que continuaram a atacá-lo mesmo depois que ele se rendeu ao Palácio do Planalto. Como demonstram os números da AP Exata, porém, o que realmente destrói a democracia não é a hashtag impulsionada às 3 da madrugada pelos imbecis que comandam a máquina de propaganda de Jair Bolsonaro. O que destrói a democracia é o suborno ostensivo e generalizado: dos pobres, dos parlamentares, da imprensa e, sobretudo, do Judiciário, que abusa de seus direitos para calar aqueles que denunciam esses abusos.

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Não me amolem crusoe.com.br/edicoes/124/nao-me-amolem 10 de setembro de 2020

Edição semana 124 - Mario Sabino

MarioSabino 10.09.20

Em 5 de julho, na cidade de Bayonne, no sul da França, o motorista Philippe Monguillot parou o ônibus que dirigia num dos pontos do seu percurso, para que três homens, um deles com um cão, subissem. Em seguida, um quarto homem se juntou ao grupo. Monguillot pediu a este último que mostrasse o seu passe e disse ao grupo que era obrigatório que todos colocassem máscaras de proteção contra o coronavírus. Monguillot começou a ser insultado pelos homens. Ele reagiu e foi empurrado para fora do ônibus. Caído no chão, o motorista levou socos e pontapés principalmente na cabeça, desferidos por dois dos agressores. Levado para o hospital, Monguillot teve morte cerebral, aos 59 anos. Deixou mulher e três filhos jovens. A brutalidade que o vitimou não foi exceção, outras semelhantes vêm acontecendo na França. Ao ser entrevistado pelo jornal Le Figaro sobre tais ocorrências, o ministro do Interior, Gérald Darmanin, disse: “Assistimos a um crise de autoridade. É preciso parar o ‘enselvajamento’ de uma certa parte da sociedade”. Quando li a frase, ela me pareceu razoável, visto que “selvagem” está dicionarizado também em francês na acepção de “não civilizado” — e civilizado é sinônimo de respeitoso, educado, cordial e outras qualidades que, espero, continuem a ser apreciadas. Qual não é a minha surpresa quando vi a fala de Darmanin ser objeto de críticas zangadas e discussões acirradas, alvo inclusive do ministro da Justiça da França, Éric Dupond-Moretti. Perguntado a respeito, o colega de Darmanin afirmou: “’Enselvajamento’ é uma palavra que suscita o sentimento de insegurança. Pior do que 1/3


a insegurança, é o sentimento de insegurança”. E completou: “Quero dirigir-me à inteligência dos franceses e não aos seus baixos instintos, porque o sentimento de insegurança pertence à ordem da fantasmagoria”. Fui entender a indignação ao ler o que escreveu o jornalista René Naba, em artigo publicado no jornal Le Parisien: “Um policial que comete um ato selvagem é um erro grave. Mas um negro ou um árabe que atira num policial ou joga o carro contra ele é enselvajamento. O vocabulário não é neutro”. Ou seja, como os assassinos de Monguillot possivelmente não eram brancos, o ministro do interior estaria sendo racista e xenófobo quando empregou a palavra relativa a selvagem. Ele a teria tomado de empréstimo da extrema direita, que a emprega constantemente para assombrar os franceses com a ideia que o país está sendo invadido por imigrantes ilegais e perigosos. Aliás, integrantes do Front National, partido da direitista Marine Le Pen, chegaram a difundir na internet a foto de um homem de 29 anos como um dos agressores de Monguillot, no que se revelou ser uma fake news. Aqui do meu canto, gostaria de dizer que continuarei a usar o termo “selvagem” e todos a ele relacionados, neologismos também, independentemente de serem utilizados da forma que for pela extrema direita ou de serem motivo de admoestações da patrulha da esquerda. Quando assisti à depredação do Boulevard Saint-Germain, em Paris, por um monte de brancos, chamei-os de selvagens, sem nem sequer cogitar longinquamente que a expressão do meu estupor pudesse conotar outra coisa que gente sem respeito, sem educação, sem civilidade. Assim como o ministro do Interior francês, acho que o mundo está sendo tomado pela selvageria de todos os lados. A brutalidade é selvagem, a ignorância é selvagem, a corrupção é selvagem, a destruição do ambiente é selvagem. O preconceito é selvagem. O autoritarismo é selvagem, inclusive em relação à língua. As palavras não são neutras, tem razão o jornalista francês que escreveu no jornal Le Parisien, mas boa parte delas sofreu tamanha transformação nos seus significados, às vezes em curto espaço de tempo, que acepções pejorativas primeiras foram canceladas, sem chance de ressurreição, por mais que haja idiotas tentando fazer isso. A história pode transformar em ruínas o que parecia ser eterno e fazer terra arrasada do que se afigurava inexpugnável — tal é a sua beleza, tal é a sua tragédia, a depender do caso. A língua é também processo histórico. Veja-se o exemplo de “gótico”, palavra que designa o estilo que floresceu na França e erigiu as mais belas catedrais do mundo. Ela foi utilizada originalmente pelos italianos, para definir o que julgavam ser a arte dos godos bárbaros. Quem diria hoje que, por ser gótica, a Notre-Dame de Paris, lambida por chamas selvagens, no sentido de indomadas, foi construída por alienígenas incultos e desprezíveis? Por falar em bárbaro, em português do Brasil, o termo ganhou também o significado de bonito, gentil, amigo, muito legal e por aí vai — o exato oposto de acepções anteriormente atribuídas a ele. Selvagens mataram Monguillot. Selvagens estão destruindo o Brasil. Não me amolem.

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Segurança pública tem jeito crusoe.com.br/secao/sergio-moro/seguranca-publica-tem-jeito 10 de setembro de 2020

Edição semana 124 - Sergio Moro

SergioMoro 10.09.20

O grande desafio de nosso tempo é a pandemia de Covid-19. É necessário buscar o controle definitivo da doença, mediante vacinação e outras medidas sanitárias, e a retomada da economia, o que envolve a complexa equação de equilibrar estímulo com controle da dívida pública. Os demais desafios que preexistiam não nos deixaram, porém, com a pandemia. Tendem talvez a se agravar. Falarei aqui de alguns desafios da segurança pública. Segundo dados do Ministério da Justiça e Segurança Pública, em 2017, atingimos o recorde do número de homicídios no Brasil, com 56.792 vítimas fatais. Em 2018, houve uma melhora, com 48.943 vítimas, uma redução de cerca de 13,5%. Já em 2019, houve 39.509 vítimas, uma redução ainda mais expressiva, de 19%, esta sem precedentes históricos. Ainda assim, 39 mil é um número muito elevado. Outros indicadores criminais não ficam atrás e são também elevados, como os 188.806 roubos de veículos e os 53.883 estupros. Este ano de 2020 é atípico. Há dúvidas se ele poderá ser considerado na linha histórica de maneira apropriada, tendo em vista os efeitos ainda incertos da pandemia na segurança pública. 1/3


Eu, pessoalmente, imaginava que os crimes iriam cair por conta das medidas de distanciamento social. As primeiras informações colhidas sobre os indicadores criminais não confirmaram tal expectativa. Embora não oficiais, dados colhidos pelo monitor da violência do G1 apontaram elevação do número de assassinatos em março e abril de 2020, na comparação com os mesmos meses de 2019. Foram 4.151 em março de 2020, contra 3.729 em março de 2019, e 3.950 em abril de 2020, contra 3.656 em abril de 2019. É certo que, em fevereiro de 2020, já havia ocorrido um aumento do número de homicídios, mas esse acréscimo pelo menos em parte encontra explicação provável nos movimentos de paralisação das polícias estaduais naquele mês, especialmente no Ceará. Os impactos econômicos da pandemia ainda serão sentidos por longo período, especialmente após o término do auxílio financeiro concedido pelo governo federal. Talvez o fim dele e o agravamento da condição social e econômica leve a novo aumento do número de crimes, embora ressalve-se que não há uma correlação necessária entre pobreza e crime — aliás, não haveria crime de colarinho branco, se existisse. De todo modo, as reduções havidas em 2018 e 2019 confirmam que a violência não é um dado da natureza em relação a qual os brasileiros precisam se resignar. Sim, é possível com políticas públicas consistentes reduzir a criminalidade. A melhor política consiste na integração das forças de segurança pública em trabalhos conjuntos, criando centros comuns de inteligência e de operações. Perdeu-se muito tempo no Brasil discutindo-se a fusão da polícia civil com a militar. Não me parece algo viável, mas aprofundar e profissionalizar a coordenação entre elas e mesmo com as forças federais é algo bastante factível. Locais como o Centro Integrado de Operações de Fronteira (Ciofi), que criamos em Foz do Iguaçu, podem fazer a diferença nessa integração, assim como a Secretaria de Operações Integradas (Seopi), que constituímos para coordenar ações das forças de segurança. Políticas sociais, econômicas ou urbanas dirigidas a focos de violência nas cidades podem fazer a diferença. Por exemplo, é conhecida a expressão de que o melhor guarda é um poste de luz. Restaurar áreas urbanas degradadas podem fazer a diferença. Se escolas de tempo integral não são uma realidade ainda possível em todo o país, nada impede a sua implementação em áreas com elevada violência urbana, de modo a retirar crianças e adolescentes das ruas pelo maior período de tempo possível. É preciso, no entanto, focalizar políticas sociais com prevenção e repressão policial coordenada e qualificada. Políticas sociais são relevantes, mas insuficientes. Criminosos devem ser presos, mediante devido processo, e assim terem o seu poder disruptivo no tecido social neutralizado. A reunião e focalização de políticas sociais com ação policial foi o que tentamos fazer com o Em Frente Brasil. Especial atenção deve ser dada ao desmantelamento de grupos criminais organizados, com a prisão e o isolamento de líderes em presídios federais e o confisco do patrimônio dessas gangues. A investigação e o processo devem ter por objetivo destruir a 2/3


organização e não apenas fazer prisões. Os meios de investigação devem ser aprimorados, com operações policiais disfarçadas e escutas ambientais. O Banco Nacional de Perfis Genéticos, que impulsionei na minha gestão, é igualmente um instrumento valioso na elucidação de crimes, ao permitir comparar o DNA localizado no local do crime com os registros já mantidos no banco. Fizemos tudo isso durante minha gestão no MJSP, com atenção especial ao crime organizado e à criminalidade violenta. Conseguimos até alguns avanços legislativos no combate a eles. Já quanto ao enfrentamento da corrupção, os avanços pretendidos, especialmente legislativos, encontraram maior dificuldade. Enfim, segurança pública tem jeito. Tão importante quanto à reforma tributária e a administrativa, é a segurança pública, que envolve o direito de ter a tranquilidade de sair à rua, sem o receio de tornar-se mais uma vítima. Planejamento, investimento, focalização e integração são os movimentos necessários.

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Wassef e o fuzil AR-15 crusoe.com.br/edicoes/124/wassef-e-o-fuzil-ar-15 10 de setembro de 2020

Uma testemunha que acompanhou a atuação de Frederick Wassef na Fecomércio do Rio conta que o advogado alvo da Lava Jato fluminense gostava de exibir suas armas de fogo por onde passava. No início de 2017, Wassef surgiu no prédio da entidade, no bairro do Flamengo, com um fuzil AR-15 pendurado no pescoço para uma corriqueira reunião de diretoria. O intuito, segundo a testemunha, era ostentar poder e intimidar funcionários alvo de uma sindicância interna. Wassef havia sido contratado pelo expresidente Orlando Diniz para investigar supostos vazamentos de informações que seriam usadas para derrubá-lo do cargo. Como revelou Crusoé, o advogado recebeu 2,6 milhões de reais pelo serviço. Em sua delação, que veio a público esta semana, Diniz afirma que Wassef optou por “desconsiderar as sindicâncias internas e conduzir a apuração dos vazamentos mediante instauração de inquéritos policiais”. Segundo o delator, o advogado da família Bolsonaro “era muito instável”, “às vezes sumia por longos períodos” e que a “contratação não valeu a pena”. Bruno Santos/Folhapress

Wassef surgiu na sede da Fecomércio do Rio com um fuzil AR-15 no pescoço

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Itamaraty de olho no general crusoe.com.br/edicoes/124/itamaraty-de-olho-no-general 10 de setembro de 2020

VELOCIDADE DO ÁUDIO 1x 1.25x 1.50x No final do mês, a Comissão de Relações Exteriores do Senado vai sabatinar, de uma só vez, mais de 30 indicações para embaixadas do Brasil no exterior. Os nomes serão votados em bloco, divididos em três. A expectativa no Palácio do Planalto e que, no afogadilho da votação, o nome do general Gerson Menandro — indicado para a embaixada brasileira em Israel — passasse despercebido, o que facilitaria sua aprovação. Mas setores do Itamaraty estão de olho. Por não ser da carreira diplomática, a escolha desagradou aos que se movimentaram nos bastidores para serem indicados ao posto. O presidente chegou a cogitar a indicação do coronel da reserva Paulo Jorge de Nápolis, diretor de marketing de uma empresa de segurança israelense, mas desistiu, aconselhado por militares. O general Gerson Menandro foi conselheiro da missão do Brasil junto à ONU. Marcelo Camargo/Agência Brasil

General Gerson Menandro: o nome do governo para a embaixada de Israel

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Conta outra, Lula crusoe.com.br/edicoes/124/conta-outra-lula 10 de setembro de 2020

Que o ex-presidente Lula já se assanha para 2022, mesmo impedido pela Justiça de se candidatar, todos já sabem – o petista confia plenamente que os processos contra ele na Justiça serão anulados, depois de julgada a suspeição do ex-juiz Sergio Moro no STF. O que poucos sabem é o que ele anda se dispondo a fazer para ganhar o apoio da esquerda e se consolidar como “o mais talhado” para conduzir o país a uma “transição para um novo contrato social”, seja lá o que isso signifique. A interlocutores, Lula garante que, se for eleito, no primeiro ano de governo colocará para votar o fim da reeleição com a ampliação da duração do mandato para cinco anos. Claro que ninguém acreditou. “Conta outra”, disse um político que compôs a aliança do PT em 2018. Adriano Machado/Crusoé

Lula diz que, se eleito, acaba com a reeleição e amplia mandato para 5 anos

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Lancha de Cabral desencalha crusoe.com.br/edicoes/124/lancha-de-cabral-desencalha 10 de setembro de 2020

VELOCIDADE DO ÁUDIO 1x 1.25x 1.50x Após dois leilões fracassados, o juiz federal Marcelo Bretas, da 7ª Vara Criminal do Rio, autorizou a venda da lancha Manhattan, que pertenceu ao ex-governador Sérgio Cabral, pela metade do preço anunciado inicialmente. A embarcação de 80 pés, com suíte, bar lounge e bote com motor, foi apreendida pela Lava Jato após a prisão de Cabral e da ex-mulher dele, Adriana Ancelmo, e levada a leilão pela primeira vez no ano passado pelo valor de 2,9 milhões de reais. Nenhuma oferta, no entanto, havia atingido o lance mínimo. Após mais de um ano encalhada, com o laudo de reavaliação reduzindo significativamente o valor, Bretas deu aval para que a lancha fosse comprada por uma empresária de Angra dos Reis, no litoral fluminense. O preço: 1,4 milhão de reais. Reprodução/TV Globo

A lancha de Sérgio Cabral foi finalmente vendida por 1,4 milhão de reais

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24 horas no batente crusoe.com.br/edicoes/124/24-horas-no-batente 10 de setembro de 2020

VELOCIDADE DO ÁUDIO 1x 1.25x 1.50x A psicóloga Emanuela Dourado Rabelo Ferraz, que foi flagrada acumulando três cargos públicos de forma ilegal, quer encerrar a polêmica sob a alegação de que já devolveu parte dos salários aos cofres públicos. A afilhada política do senador Ciro Nogueira, presidente nacional do PP, exerceu concomitantemente três cargos – um na Câmara dos Deputados, outro no governo do Piauí e o terceiro na área da saúde do Distrito Federal. Em sustentação apresentada ao Tribunal de Contas do DF esta semana, a defesa de Emanuela tentou demonstrar “a boa fé” da cliente ao afirmar que ela restituiu 74 mil reais à Câmara. Disse ainda que a psicóloga atuava presencialmente no comando do Instituto de Gestão Estratégica de Saúde do DF, trabalhava de maneira remota no gabinete da deputada federal Iracema Portella, exmulher de Ciro Nogueira, e também despachava virtualmente como assessora do governador Wellington Dias, até então aliado do presidente do PP. Só não explicou como conseguia trabalhar 24 horas por dia, de segunda a sexta-feira, já que os cargos que ocupava tinham carga horária de 8 horas diárias cada. Edilson Rodrigues/Agência Senado

Psicóloga que acumulava três cargos é afilhada política de Ciro Nogueira

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A morte da Dersa crusoe.com.br/edicoes/124/a-morte-da-dersa 10 de setembro de 2020

VELOCIDADE DO ÁUDIO 1x 1.25x 1.50x O lançamento do edital para retomada das obras do trecho norte do Rodoanel, anunciado na quarta-feira, 9, pelo governador de São Paulo, João Doria, é apontado dentro do governo como o “atestado de óbito” da Dersa. Isso porque a conclusão dos 44 quilômetros de via, que deveriam ter sido entregues em 2016, será gerenciada pelo Departamento de Estradas de Rodagem, o DER, uma autarquia, e não mais pela estatal envolvida em uma série de escândalos de corrupção nas gestões tucanas. O dinheiro desviado no trecho sul, concluído em 2010 pelo ex-diretor Paulo Vieira de Souza, o Paulo Preto, ajudou a abastecer contas pessoais de políticos e campanhas do PSDB. Já o trecho norte foi paralisado em 2018, após a prisão da cúpula da Dersa pela Lava Jato paulista, por suspeita de superfaturamento para favorecer empreiteiras como a OAS. Nele, já foram gastos cerca de 10 bilhões de reais. A estimativa, agora, é de que a conclusão prevista para 2022 onere os cofres públicos em mais 1,6 bilhão. Mesmo sem obras e com projeto de extinção já aprovado pela Assembleia Legislativa, a Dersa deve continuar existindo no papel por mais alguns anos por causa das ações trabalhistas e, claro, criminais. Adriano Machado/Crusoé

Edital de Doria para retomada das obras do Rodoanel decretou o fim da Dersa

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Parem de ressuscitar os malditos anos 80 crusoe.com.br/edicoes/124/parem-de-ressuscitar-os-malditos-anos-80 10 de setembro de 2020

Edição semana 124 - Ruy Goiaba

RuyGoiaba 10.09.20

VELOCIDADE DO ÁUDIO 1x 1.25x 1.50x A idealização de qualquer década geralmente guarda relação direta com o fato de que a pessoa que idealiza não viveu aquele período. Ou, se viveu, estava chapada demais para lembrar direito —em geral, é o que acontece com os boomers vivos nos anos 60 que até hoje acham aquela época uma maravilha. 1/4


No meu caso, isso acontece com os anos 80, aos quais sobrevivi —não sem sequelas, obviamente. No Brasil, passamos metade dessa década sob o general Figueiredo (“quem quiser que não abra eu prendo, arrebento”) e a outra metade sob os bigodes do poeta José Sarney: COMO é possível alguém achar que isso foi bom? Que saudade da inflação galopante e de esperar até três anos para receber telefone depois de comprar, hein? E de ouvir os cliques das maquininhas de remarcar preço no mercado, então? Fora aquela supernovidade que era a Aids. O pior é que, ultimamente, resolveram ressuscitar pessoas e costumes oitentistas que são ainda piores do que as clássicas atrocidades de vestuário, como ombreiras e pochetes. E não são só as novas gerações, esses “garotinhos juvenis” que nasceram com internet; é gente que, assim como eu, estava viva e consciente (ou talvez nem tanto) naquela época e should know better. Este texto será uma tentativa de listar algumas coisinhas dos anos 80 que voltaram a bombar, naquilo que Cazuza —que hoje talvez ficasse feliz por ter morrido assim que aquela década acabou— chamava de “museu de grandes novidades”. – Os fiscais do Bolsoney Como se não bastasse o aumento dos preços do arroz lembrar a época em que o grande vilão da inflação no Brasil era o chuchu —não Geraldo Alckmin, a hortaliça mesmo—, ainda aparece Jair Bolsonaro pedindo “patriotismo” aos donos de supermercado. Ato contínuo, o Ministério da Justiça determina que mercados e produtores se expliquem sobre a alta de preços do produto. Só estão faltando os buttons de fiscal do Bolsoney e as lojas fechadas “em nome do povo brasileiro”. (A inflaçãozona também, mas logo esse governo aí dá um jeito.) – Os dinossauros do rock nacional, esse celeiro de idiotas Artista popular, em geral, é bem burrão quando se trata de dar palpite sobre qualquer coisa que não seja a própria arte, mas os brasileiros capricham —e, nesse grupo, têm especial destaque os “roqueiros dos anos 80”. Em vez de morrer, como Cazuza ou Renato Russo, ou se retirar para uma velhice digna no Parque dos Dinossauros, alguns deles continuam fazendo questão de dar OPINIÕES no Twitter, com toda a inteligência e sofisticação que se espera do pensamento deles. Já escrevi aqui sobre o glorioso Roger do Ultraje e, hoje, cito o não menos glorioso Leoni do Kid Abelha, que está na outra ponta da ferradura ideológica: recentemente, o compositor da imortal “tira essa bermuda que eu quero você sério” foi ao Twitter elogiar um neostalinista, na linha “veja bem, ele não é stalinista, só defende o Stálin quando os liberais fazem isso e aquilo”. Claro! Neonazistas também não são nazistas: eles só defendem Hitler quando alguém se esquece da “humilhação à Alemanha no Tratado de Versalhes”, ora. (Para não dizerem que estou sendo injusto, registro aqui que sou fã incondicional da Paula Toller e da pandeirada que, dizem, ela deu no Leoni. Obra de arte.) – O velho e bom comunismo soviético 2/4


Já falei, aqui em cima e em outra coluna, do fenômeno do stalinismo hipster nas redes sociais e não pretendo bater mais palmas para os malucos que falam a sério no “legado de Stálin”, ainda que essas palmas às vezes me ajudem a fechar uma coluna. Mas é espantoso que haja gente disposta a debater, fora de algum esquete antigo do Monty Python, o glorioso comunismo soviético, como se o Muro de Berlim não tivesse caído e a própria URSS não tivesse se desmilinguido sozinha há cerca de 30 anos. Em algum momento a Albânia de Enver Hoxha, farol do socialismo, voltará a ser hype —se bem que, no PC do B, nunca deixou de ser. (Um amigo tem a teoria de que gostar desse tipo de coisa é como adolescente curtir black metal norueguês, aquele pessoal bacana que queimava igrejas e matava gente: é o gosto por “coisas extremas”, que tende a passar com a idade. O problema é quando os adultos chamam essa turma para a mesa deles, em vez de deixar trancada no quarto de castigo, sem internet e sem Toddy.) – A volta aos anos 80 do século 15 Pois é: tem gente que não acha suficiente voltar à década de 80 do século 20 e quer ir ainda mais longe, de volta àqueles tempos idílicos anteriores à presença do colonizador europeu nas Américas. Aquela época de paz, harmonia e, uma vez ou outra, sacrifícios humanos com paulada no crânio e gente esfolada viva. Descobri que há um movimento pela “alimentação decolonizada” —certamente, de gente tão paga-pau de americano que nem sabe escrever “descolonizada” em português. Ele pede que a gente REFLITA sobre o que está no nosso prato, incluindo café com leite, pão com manteiga (“nenhum desses alimentos é nativo de terras brasileiras”) e o próprio prato, utensílio introduzido por europeus. Afinal, os felizes e risonhos habitantes de Abya Yala, como a América Latina “era chamada por seus povos de origem”, usavam cumbucas e comiam com a mão. O pior dessa história é a ofensa à minha dignidade de gordo: ai de quem ousar mexer com meu café com leite e meu pão com manteiga. Vá você aprender tupi-guarani e fazer fogueira na sua sala para cozinhar uma mandioca, ô cretino. *** A GOIABICE DA SEMANA Nesta semana, não há rival possível: o troféu TEM de ir para a bancada do PCdoB aprovando por unanimidade, em julho, aquela emenda concedendo às igrejas um perdão de dívidas tributárias que podem chegar a R$ 1 bilhão, coisinha pouca. Também não dá para não adaptar a frase atribuída ao Tim Maia: aqui no Bananão, prostituta se apaixona, traficante se vicia e comunista perdoa um bilhão de dívida das igrejas. Esse PC não tinha como ser mais do B. PCdoB 3/4


Jandira Feghali, do PC do B, ĂŠ uma legĂ­tima comunopentecostal. Aleluia, camaradas!

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