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ELEIÇÕES PRESIDENCIAIS
Restauração em Washington? cai bem, ambos pensam de modo mais ou menos parecido: a América é grande, a América é bela, algumas reformas a tornarão ainda melhor; seus valores inspiram o mundo; suas alianças militares protegem a democracia liberal contra os tiranos. Biden e Harris não se empenham em realizar muito mais feitos do que Obama durante seus dois mandatos, ou seja, pouca coisa. Pelo menos não terão a imprudência de pretender, como este último o fez na noite de sua eleição: “Poderemos nos lembrar deste dia e dizer a nossos filhos que o aumento do nível dos oceanos começou a se desacelerar, e o planeta, a se curar”. Oito anos depois, quando Obama cedeu lugar a Trump, os filhos haviam crescido sem que o aumento do nível dos oceanos tivesse se desacelerado. Por mais limitado que seja no começo, o roteiro do “ticket” Biden-Harris comporta ao menos um objetivo entusiasmante: pôr o atual presidente para fora da Casa Branca e purificar, assim, uma instituição que os democratas consideram profanada por um bandido. Um de seus dirigentes recentemente comparou Trump a Benito Mussolini, estimando que “Putin é Hitler”.2 Um alvo tão detestado deveria mobilizar contra si o eleitorado democrata em 3 de novembro. A maioria das capitais europeias espera também o retorno a Washington de uma presidência “normal”.
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m 2008, quando Barack Obama designou o veterano centrista Joe Biden como seu candidato à vice-presidência, a prudência parecia se impor: os democratas já expressaram seu desejo de ruptura escolhendo um negro progressista contrário à Guerra do Iraque para suceder George W. Bush. Em novembro, será Biden quem carregará as cores do partido. Contudo, este último não inspira nenhum fervor. Um bom elenco político pediu então que ele escolhesse como companheiro de chapa um símbolo empolgante. Não aquele da radicalidade política, mas aquele da “inclusão”, por isso a designação de Kamala Harris, filha de imigrantes, um jamaicano e uma indiana, e casada com um judeu. A audácia para por aí, pois, de resto, a senadora da Califórnia é uma política convencional e oportunista, que ninguém associa a outra coisa que não seja uma forte ambição pessoal e um talento consumado para levantar fundos junto aos bilionários.1 Os corredores de Wall Street, onde já se havia visto uma euforia em março quando Biden venceu Bernie Sanders, ficaram agitados de novo com o anúncio da designação de Harris. Tendo amargado uma derrota brutal durante a campanha das primárias democratas – precisou se retirar da disputa no fim do ano passado antes do primeiro escrutínio –, ela ficará devendo tudo ao homem que a escolheu e a quem poderá suceder. Isso
© Cesar Habert Paciornik
POR SERGE HALIMI*
Decididamente incapazes de se livrar da liderança norte-americana, inclusive quando esta é exercida por um chefe inculto e vociferante, elas imaginam que uma administração democrata as tratará com um pouco de piedade e que dará mais credibilidade à lenga-lenga habitual sobre a democracia, o “mundo livre” e os valores do Ocidente. Devemos nos regozijar de tal restauração pelo
único motivo de que a alternativa está enfeitada com as cores do apocalipse? *Serge Halimi é diretor do Le Monde Diplomatique. 1 M ichela Tindera, “Billionaires Loved Kamala Harris” [Os bilionários amaram Kamala Harris], Forbes, Nova York, 12 ago. 2020. 2 Segundo Jim Clayburn, um dos líderes da maioria democrata na Câmara dos Representantes, 2 ago. na CNN.
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EDITORIAL
Políticas públicas e estratégia eleitoral POR SILVIO CACCIA BAVA
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pouco mais de dois meses das eleições municipais, o governo Bolsonaro prepara o lançamento de um conjunto de políticas sociais para os eleitores de baixa renda. Anuncia o Renda Brasil (R$ 300?) para substituir o Bolsa Família (R$ 190), indicando que o valor será maior que o deste último e que os beneficiários serão em maior número (6 milhões de pessoas), o que faria esse programa chegar a cerca de 25 milhões de brasileiros. Para isso, o governo não quer injetar dinheiro novo nos programas sociais. Ele propõe acabar com o seguro-desemprego e o abono salarial (R$ 61 bi), com o salário-família (R$ 2 bi), com o seguro-defeso para os pescadores (R$ 2,8 bi), com a farmácia popular (R$ 2,8 bi) e com outros programas, como o financiamento da agricultura familiar. Estudo recente do Itaú-Unibanco propõe uma redução de R$ 76 bi nos programas sociais existentes para manter o teto de gastos.1 Lançará também o Casa Verde e Amarela, em substituição ao Minha Casa Minha Vida. O novo programa, com uma ótica de mercado, incorporará regularização fundiária e recursos para reformas para quem já tem residência. As taxas de juros serão também diferenciadas por região, sendo as menores para o Nordeste. O acesso ao crédito do Casa Verde e Amarela para aquisição ou reforma deverá atingir 956 mil famílias na primeira fase e os recursos deverão estar disponíveis em sessenta dias.2 O que muda? Acabam os fortes subsídios que o MCMV tinha para a faixa de renda de até R$ 1.800 de renda familiar, que dessa maneira perde o acesso ao novo programa. E é provável que a questão da regularização fundiária não passe do anúncio, pois seria necessário enfrentar os interesses do capital imobiliário e desapropriar áreas que em sua maioria pertencem a grandes empresas. Não é preciso dizer o quanto as maiorias empobrecidas são sensíveis a ações que buscam aliviar o quadro de carências vividas no seu cotidiano. Apesar de ter sido contra a definição do valor de R$ 600 para o auxílio emergencial, definido pelo Congresso Nacional, Bolsonaro foi quem se beneficiou com a elevação
© Claudius
de seus índices de popularidade com a distribuição desse auxílio para 65,3 milhões de pessoas. Os efeitos sociais dessa ajuda foram identificados por estudo recente de Marcelo Neri (ver tabela). 3 O impacto do auxílio emergencial foi muito expressivo. Mas o que mais impressiona nesses números é o fato de que 87% tinham renda de até R$ 70/dia em julho de 2020. E vale notar que 52,1 milhões de brasileiros e brasileiras não contam com mais de R$ 17,42 por dia para todas as suas necessidades. A Caixa Econômica Federal pagou quatro parcelas do auxílio emergencial até 23 de julho. Desse total, 19,2 milhões já eram beneficiários do Programa Bolsa Família; 10,5 milhões constavam do Cadastro Único e outros 35,6 milhões não tinham nenhum registro de pagamento de benefícios anterior à pandemia (54% do total).4 Da segunda quinzena de junho à segunda semana de agosto, de acordo com o Datafolha, a aprovação do governo Bolsonaro foi de 32% para 37%, sua melhor taxa de ótimo e bom. O segmento em que ele mais cresceu foram os beneficiários desse programa emergencial.
so, isto é, cortar o orçamento das políticas existentes. Além do ataque a essas políticas sociais, as universidades, a pesquisa científica e a cultura sofrem brutais reduções. O único orçamento que cresce é o da Defesa, cujos gastos efetivos passaram de R$ 67 bi em 2018 para R$ 75 bi em 2019, com tendência de alta em 2020.5
Neste cenário de recessão, de aumento do desemprego e empobrecimento generalizado, o que vai acontecer quando o governo federal encerrar o auxílio emergencial? Mesmo considerando que o Renda Brasil se efetive e chegue aos 25 milhões de pessoas que o governo se propõe a atingir, sobram 40 milhões de brasileiros que se habilitaram por sua condição de pobreza a acessar o auxílio emergencial e que não terão mais nenhum recurso para enfrentar as adversidades. O que vai acontecer com a popularidade de Bolsonaro? O grande empresariado exige que o governo mantenha o teto dos gastos sociais, diminua os custos trabalhistas, reduza as políticas de saúde, educação, assistência social, e não aceita nenhum aumento de tributos. O que o governo está fazendo é abaixar o pi-
1 “ Itaú diz que cortes bancariam novo programa social dentro do teto”, Folha de S.Paulo, 23 ago. 2020. 2 Fabio Pupo, “Bolsonaro faz investida em área social usando como base programas de Lula”, Folha de S.Paulo, 24 ago. 2020. 3 M arcelo Neri, citado por Vera Batista, “Qual foi o impacto imediato da pandemia do Covid sobre as classes econômicas brasileiras?”, Blog do Servidor, 25 ago. 2020. 4 D isponível em: https://agenciabrasil.ebc. com.br/economia/noticia/2020-07/auxilio-emergencial-653-milhoes-de-brasileiros-recebem-4a-parcela. 5 Rodrigo Zeidan, “O mito dos gestores militares”, Folha de S.Paulo, 22 ago. 2020.
Evolução da renda per capita durante a pandemia 2019
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Jul. 2020
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Variação
Até ½ salário mínimo
65,2
31,04
52,1
24,62
–13,1
De ½ a 2 salários mínimos
111,94
53,29
132,45
62,58
+20,51
+ de 2 salários mínimos
32,92
15,67
27,09
12,8
–5,83
Total
210,06
100
211,62
100
Renda per capita
milhões de pessoas
milhões de pessoas
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NA MIRA DO TIRANO
Arte e cultura da ponte pra cá Aprendemos a escrever, aprendemos a ler, aprendemos sobre nossa ancestralidade e nossa capacidade de produzir mundos diferentes daquele que encontramos ao chegar aqui. Em saraus espalhados pelas periferias, nós nos alfabetizamos de fato quando não tínhamos dinheiro nem sequer para um busão até o centro da cidade
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POR HELENA SILVESTRE*
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u tinha pelo menos 12 anos quando descobri que era negra, afrodescendente, mestiça, afro-indígena. Pareceria estranho dizer isso se não soubéssemos que o Brasil é um país estruturalmente racista e que há tempo demais temos sido coniventes. Nesse mesmo processo descobri coisas sobre minha identidade, meu bairro, meu lugar no mundo e também sobre mundos do lado de lá da ponte – antes mesmo de vê-los com meus olhos. Foram os portais do rap, da cultura, da produção cultural exercida como profissão de fé por artistas favelados que não ganham nem nunca ganharam o suficiente para viver apenas de sua arte. Em meio a chacinas, violências de toda sorte, desemprego e diásporas forçadas, as rimas dos anos 1990 contavam não somente sobre a vida dura, mas também sobre uma ética que se constituía entre iguais – tentando sobreviver ao movimento do capital e sua expansão neoliberal que tragava
nossa vida para a ciranda do dinheiro. O rap narrava a tragédia das estatísticas, nomeava mortos que antes figuravam apenas como números e apontava um desejo de futuro para a fratria órfã:1 vida tranquila “num terreno no mato [...], sem luxo, descalço, nadar no riacho, sem fome, pegando as frutas no cacho”.2 Esse desejo não se realizou: o adensamento das metrópoles e seu decorrente problema habitacional – de falta, inadequação ou insegurança – foi ampliado, com a moradia consolidada definitivamente entre as mercadorias que só acessa quem tem dinheiro. A alimentação possível para nós, antes marcados pela chaga da fome, se deu pela via do mercado de comodities, convertendo nossa fome em ativos da Bolsa de Chicago, regados a agrotóxico. A água está prestes a ser privatizada por esse desgoverno genocida. Mas outros desejos se realizaram, e eles reafirmam tanto a arte e
a cultura quanto a educação como inimigas do fascismo, do autoritarismo e do conservadorismo. Aprendemos a escrever, aprendemos a ler, aprendemos sobre nossa ancestralidade e nossa capacidade de produzir mundos diferentes daquele que encontramos ao chegar aqui, sobre nossa capacidade de organização e nosso poder quando estamos juntos, caminhando na mesma direção. Em saraus espalhados pelas periferias, nós nos alfabetizamos de fato quando não tínhamos dinheiro nem sequer para um busão até o centro da cidade. Cultura e arte possuem o poder de desenhar realidades que ainda não existem, de vislumbrar modos diferentes de viver, revelando que o modo como vivemos não é natural e pode ser mudado, transformado, revolucionado. Como um respiro de lucidez no meio da guerra, a arte oferta ao motoka entregador a possibilidade de elaborar a própria vida
em rimas que partilha com seus iguais. Oferta a possibilidade de parar por um segundo e olhar para nós mesmos e nossa vida, de sermos – como Carolina Maria de Jesus – elaboradores de nossa própria experiência, protagonistas de nosso destino, escritores do nosso drama e da nossa rebelião. Por essas razões, a arte e a cultura figuram sempre entre os maiores inimigos da tirania e da opressão e, do rap em diante, quase três décadas depois, olhar as crianças nas escolas com seus cabelos black power, orgulhosas de seu rosto e de seu nariz, me explica de certa maneira por que é que o presidente e seus asseclas declararam guerra. Para quem quer conservar as coisas como elas estão, a cultura e a arte são mesmo perigosíssimas, e elas também habitam as veias dos movimentos de mulheres, nos feminismos que revelam invisibilizadas existências femininas. Para as vidas brancas
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© Moises Patrício
e sempre nomeadas talvez seja difícil compreender o tamanho do passo que é perceber-se a si próprio e reconhecer-se em si mesmo. Para o marxismo, poderia ser chamado de em si e para si, mas direi apenas que a cultura e a arte permitiram que nos reconhecêssemos como negras e passássemos a questionar representações sempre brancas, que não dizem respeito à representatividade, mas, ao contrário, revelam dispositivos de controle e/ou tutela. Visibilizar para questionar nossos piores salários, nossa maioria entre desempregadas e trabalhadoras precárias, o porquê de vivermos aglomeradas, de sermos os mais assassinados e a maioria absoluta entre famintos e encarcerados. Cultura e arte não são apenas sobre obras, mas sobre modos de viver. Esta é a potência que localiza tanto a cultura e a arte (como também a educação) entre os principais inimigos do atual governo. A arte, assim como a política, é exercício de desna-
turalização do agora e possibilidade de criação consciente do futuro. Os poderes instituídos buscam desidratá-la de suas possibilidades revolucionárias, criminalizando o que não conseguem capturar ou domesticar. Um dos principais mecanismos utilizados em democracias liberais é arrancar as condições materiais necessárias à produção cultural e artística por parte dos pobres. Exemplifico. Os gastos do setor público com o financiamento à cultura sempre foram pífios e ainda assim vêm sendo reduzidos. Em 2011, destinou-se para a área cultural 0,28% do total de despesas consolidadas da administração pública. Nem meio por cento e, mesmo assim, em 2018, esse montante foi reduzido a 0,21%, 3 restringindo o direito a produzir arte e cultura e, portanto, a produzir narrativa, registro, memória e identidade a quem tem poder econômico (ou amigos mecenas – o que dá no mesmo).
Mas ao longo dos anos, impulsionados pela fome da alma, os mesmos que foram privados do direito a produzir arte têm lutado por essa possibilidade com unhas e dentes. Programas como Cultura Viva, Pontos de Cultura, Programa VAI ou a Lei de Fomento à Periferia nasceram na marra, arrancados pela mobilização de artistas populares e/ou periféricos. Segundo a Pnad, o segmento da cultura soma mais de 5 milhões de trabalhadores, dos quais 44% são autônomos,4 dependendo de eventos e contratações sazonais para sobreviver, já que editais e fomentos públicos não alcançam a maioria. A realidade geral é tanto mais dramática nas periferias. Aqui, o genocídio não é uma experiência nova, mas a pandemia e a política assassina dos governos exacerbaram ainda mais a tragédia, trazendo luto a muito mais que 100 mil famílias, já que padecemos a tristeza de perder crianças despencando pelo vão do elevador. A fome, que nunca desapareceu completamente de nós, atingiu uma velocidade maior que a do vírus e muito maior que a das políticas públicas de assistência, fazendo artistas populares e produtores culturais periféricos – que já desenvolviam sua produção em condições absurdamente precárias – ficar em total desamparo: cancelamento de todas as atividades, redução ainda maior dos recursos empregados nos programas de fomento (vide o Programa VAI, por exemplo) e fim dos bicos que faziam em quaisquer outras áreas para pagar as contas. O drama é grave, já que quase todos esses artistas ganham tão pouco que não possuem reservas e já no primeiro mês de emergência sanitária se encontravam em situação extremamente vulnerável, até mesmo para comer duas refeições por dia. Além da falta de recursos e de todos os agravantes que pesam sobre a população periférica (como moradias superlotadas, falta de água, aumento da letalidade policial etc.), sofremos com o isolamento social que abala nossa saúde mental, já que os espaços de encontro onde nos realizamos como fazedores culturais são também aqueles em que elaboramos nossa existência como resistência, além da tragédia. São espaços que nos permitem vislumbrar outro mundo, em que nós, como artistas e como povo periférico, existiremos plenamente. Diante do caos, invocamos então as mesmas tecnologias que nos ampararam durante quinhentos anos de colonização, aquelas que nos preservaram quando nossos cultos e danças foram criminalizados e nos mantiveram de pé nos anos 1990. Para
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nenhum de nós há solução individual, e é apenas em comunidade que logramos manter-nos vivos, física e artisticamente. O tão falado autocuidado, aqui, não se dedica exclusivamente a repensar práticas e hábitos que nos suportem individualmente: só existimos em comunidade e, portanto, autocuidado é cuidar da nossa existência e da existência de nossas comunidades, sem as quais não somos possíveis. Os coletivos culturais de periferia, mais enraizados e com capilaridade maior do que muitas organizações monolíticas, passaram a atuar coletando doações de alimentos, distribuindo comida, fraldas, leite, ajudando pessoas a se cadastrarem nos auxílios possíveis, provendo acompanhamento psicológico aos mais fragilizados. Foi dessa maneira que os artistas de periferia construíram caminhos para sanar sua fome de comida, porque nosso destino se confunde com o destino de nossos territórios. Essa mobilização, stricto sensu, não se definiria como atividade artística, mas certamente como prática cultural, pois defende a vida dos nossos contra a necropolítica do poder, e nosso modo de viver contra o disciplinamento total. A tarefa de primeira hora assumida pelo movimento de cultura da periferia foi a de defender a vida. É exatamente por isso que esse movimento, embora descentralizado, angaria apoio de parcelas cada vez maiores da população e provoca a construção de mediações como a Lei Aldir Blanc, que terá grande importância para todes, mas que não nos ilude em relação ao caráter nefasto de nossos governantes. Isso porque, muito antes de a lei ser aprovada, nos organizamos em espaços autônomos e virtuais de produção, reinventando nossas possibilidades, ainda que apoiadas em condições precárias de conexão, como as que se impõem a todes nas bordas da cidade. Fizemos e seguiremos fazendo, para alimentar nossa gente de horizontes mais amplos do que este presente encarcerado, e porque não desistimos de debater, de formar e informar, de educar onde tudo falta; não desistimos de disputar o futuro. *Helena Silvestre é escritora periférica, editora da Revista Amazonas e educadora na Escola Feminista Abya Yala. 1 T ermo de Maria Rita Kehl que dá nome a uma coletânea de textos seus publicada em 2008. 2 “ Vida Loka, parte 2”, Racionais MC’s. 3 Carmen Nery, “Participação da cultura no orçamento reduz em todas esferas de governo em 2018”, Agência IBGE, 5 dez. 2019. 4 Pedro Stropasolas, “Primeiros a parar na pandemia, profissionais da cultura relatam abandono do governo”, Brasil de Fato, 30 abr. 2020.
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A VERDADEIRA RESISTÊNCIA
A guerra para viver de cultura no Brasil A ascensão de Bolsonaro à Presidência da República consolida de forma incomparável o enfraquecimento e a sabotagem à memória e à preservação da cultura brasileira. Chegou 2020 e com ele a pandemia de Covid-19, completando o cenário de escassez e caos. O setor cultural, que já vinha se mantendo com muita dificuldade, viu-se em extrema vulnerabilidade POR MELINA HICKSON*
status de prioridade para a produção artística brasileira. Foi feita uma escuta grandiosa por meio de conferências, seminários e encontros diversos pelos rincões do Brasil. Políticas públicas eficazes saíram dali, como o Plano Nacional de Cultura e os planos setoriais, que deveriam ter se tornado políticas de Estado, garantindo a permanência entre diferentes governos. Acreditava-se à época que esses ganhos seriam definitivos. Não foram. Basta acompanhar a linha do tempo a partir do primeiro mandato da presidenta Dilma Rousseff. Possivelmente de forma não intencional, as escolhas de Ana de Hollanda e Marta Suplicy enfraqueceram o ministério. Ambas trouxeram de volta os ares da elite intelectual paulista para a cadeira, afastando o diálogo com os fazedores de cultura em sua imensa diversidade e procedências. Houve um esfriamento dos programas já existentes criados pela dupla baiana Gilberto Gil e Juca Ferreira. No segundo mandato, a presidenta Dilma trouxe de volta Juca para assumir o MinC. Mas, sem tempo de retomar o fôlego, ele caiu junto com ela, no golpe de 2016. Caíram também as expectativas de voltarmos a ter protagonismo na cultura. Daí para a frente, a sequência de tragédias para o segmento cultural, como para o próprio país, é estarrecedora. Quem primeiro tentou extinguir o MinC foi o ex-presidente Michel Temer, mas recuou. Em dois anos de mandato, revezaram-se quatro ministros no cargo. Todos receberam severas críticas da classe artística, também indignada com o golpe. A ascensão de Bolsonaro à Presidência da República consolida de forma incomparável o enfraquecimento
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esde que a vitória de Jair Bolsonaro começou a parecer certa, o setor cultural ficou em alerta. Por uma simples razão: ele já havia escolhido a cultura como inimiga. E, sim, a cultura é realmente sua inimiga. Não pode ser diferente quando consideramos seu perfil. O desmonte na área promovido por ele desde que assumiu o poder era esperado. Da extinção do Ministério da Cultura à tentativa de retirar do MEI profissões ligadas às produções artísticas, passando pelas péssimas escolhas dos presidentes da Fundação Nacional das Artes, da Fundação Palmares e dos cinco secretários que, em apenas um ano e meio, estiveram a passeio pela Secretaria de Cultura. Tudo isso só mostra o vazio que esse tema ocupa em sua mesa e o ódio que o presidente cultiva pela cultura brasileira. Mas, fazendo um exercício de olhar o passado recente, não foi só quando Bolsonaro assumiu que começamos a perder campo, infelizmente. Evidente que tudo ficou muito pior, não há parâmetro histórico. Nunca vivemos um momento tão terrível para quem vive de cultura no Brasil, desde sua redemocratização. No entanto, atacar esse projeto é um pouco mais fácil. Difícil e doloroso é aceitar que, mesmo nos governos do campo da esquerda, muitas vezes a cultura não tem o protagonismo e a estabilidade que merece. O Ministério da Cultura teve sua fase gloriosa na era do ex-presidente Lula quando foram criados e executados projetos que poderiam ter mudado definitivamente a forma como o Brasil cria, produz e consome sua arte e cultura. Finalmente, memória, preservação, fruição, descentralização eram os objetivos dos programas dessa época, que concederam, pela primeira vez na história,
e a sabotagem à memória e à preservação da cultura brasileira. Chegou 2020 e com ele a pandemia de Covid-19, completando o cenário de escassez e caos. O setor cultural, que já vinha se mantendo com muita dificuldade, viu-se em extrema vulnerabilidade. A cultura brasileira é tão heterogênea que, num momento dramático como este, as desigualdades ficam ainda mais expostas. A forma como a cultura no Brasil é produzida, financiada e consumida é completamente diferente entre suas regiões e, obviamente, as consequências desse trauma que estamos vivendo também são radicalmente diferentes entre os que vivem da cultura.
Mesmo durante o governo Lula ficou nítida a concentração de financiamentos de projetos culturais nas cidades sudestinas Mesmo durante o governo Lula ficou nítida a concentração de financiamentos de projetos culturais nas cidades sudestinas. Essa foi uma grande luta na época: entender como seria possível descentralizar os recursos da Lei Rouanet e sensibilizar os patrocinadores a investir em outros territórios e em projetos fora do ambiente mainstream. Nunca houve êxito, nem mesmo com ministros nordestinos e, por isso, mais sensíveis à importância da descentralização e democratização do acesso aos mecanismos de financiamento a projetos culturais. Rio de Janeiro, São Paulo e, esticando um pouquinho mais, Minas Gerais e Distrito Federal sempre con-
seguiram patrocinadores e visibilidade midiática para seus projetos. Enquanto no Nordeste, por exemplo, onde nasci e vivo, os trabalhadores da cultura precisam lutar muito mais para conquistar espaço entre as carteiras de clientes das marcas privadas ou para participar de editais públicos e privados. Resistir por aqui faz parte do fazer cultural em todos os tempos. Nestes estados, especialmente do Norte e do Nordeste, produzir cultura com recursos mínimos e suportes insuficientes não é novidade. A cultura no Brasil é o espelho de sua própria sociedade. É desigual, racista, injusta, em que poucos têm muito, e muitos, quase nada. O mainstream musical é um grande exemplo disso. O que se verifica é um volume enlouquecedor de dinheiro na mão de poucos, e novos artistas e outros gênios da música contemporânea não possuem uma casa própria para viver. A desigualdade no mercado da música sempre se acentuou com a participação da mídia comercial, que escolhe uns poucos para dar visibilidade. Apesar das mudanças que a internet trouxe para a produção, a difusão e o consumo de música no Brasil, as televisões e rádios comerciais ainda são responsáveis, como já eram há vinte anos, por formar um público de massa que investe e consome um mesmo tipo de música, mesmo num país tão rico e diverso. Em um momento como o que estamos vivendo, de pandemia e completo desalento, todas essas diferenças ficam mais expostas. E o único jeito de continuar sobrevivendo de cultura é com a participação efetiva do Estado. Mesmo alguns governos ditos de esquerda não conseguiram criar projetos emergenciais durante a pandemia, como é o caso no meu estado, Pernambuco. Ironicamente, uma tentativa de alívio vem do maior inimigo da cultura, o governo federal, não por vontade ou iniciativa próprias, claro, mas por insistência de alguns parlamentares de esquerda que se sensibilizaram com a penúria vivida por esses trabalhadores. A Lei Aldir Blanc homenageia um dos grandes nomes da música popular brasileira, que morreu de Covid-19 e com imensas dificuldades financeiras. Um caso típico da desigualdade que relatei, e olha que Aldir era branco, de classe média, com mais acesso do que muitos outros artistas pelo Brasil. A Lei Aldir Blanc prevê que recursos da ordem de R$ 3 bilhões, que estavam parados no Fundo Nacional de Cultura, sejam enviados para todos
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CULTURAS INDÍGENAS
*Melina Hickson é produtora cultural e empresária artística.
Canto do povo de um lugar A história europeia das instituições e das ideias, em seus diferentes matizes, é uma história da redução dos plurais. Línguas se singularizam em língua; culturas se singularizam em cultura; territórios se singularizam em território. Na constituição dos Estados modernos, povos se singularizam em povo POR BRUNO M. MORAIS E VICTOR ALCANTARA E SILVA*
ESSE NEGÓCIO DE POVOS E PRIVILÉGIOS
Talvez os ministros rissem da anedota. A piada, contudo, estaria neles.
Quando um homem e sua família resolveram deixar a aldeia aos pés da missão em que seu povo havia sido reduzido e regressar às cabeceiras do Rio Trairão, onde nasceram e morreram seus pais e avós, o chefe de posto da Funai lhes teria negado o direito. Não se poderia esperar do Estado que demarcasse uma nova terra quando, nos arredores da missão, seu povo já tinha uma terra demarcada. Tremendo impasse, contra o qual se poderia evocar argumentos técnicos, jurídicos, as convenções internacionais, a Constituição. O homem, no entanto, optou por uma solução mais simples: acompanhado de seu filho, subiu o rio até o ponto em que as águas cavam poços nas pedras; diante do rebojo, levantou a cabeça, limpou o pigarro e cantou a história daquele lugar. Quando baixaram novamente à aldeia, o homem e seu filho haviam inventado um novo nome, o nome de um povo. Podiam bater novamente às portas da Funai. Os mapas não registrarão a localização desse rio porque seu nome aqui é fictício – não exporíamos os indígenas aos desmandos do órgão oficial –, mas asseguramos que a história é verídica. Está apurada nos cadernos de campo de um antropólogo do norte amazônico. Poderia ser, no entanto, uma anedota para os homens de terno nas salas de situação do Palácio do Planalto, uma ilustração do ódio de Abraham Weintraub aos plurais: “Odeio o termo ‘povos indígenas’, odeio esse termo!” – disse a bom som na famosa reunião do dia 22 de abril, cuja gravação foi publicizada a requerimento do Supremo Tribunal Federal. “Só tem um povo neste país!”
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os estados e municípios única e exclusivamente para socorrer o setor cultural. A dúvida é se esse dinheiro chegará a todas as famílias que precisam desesperadamente dele. A gincana da burocracia, imposta na regulamentação da lei, e a falta de conhecimento dos governos estaduais e municipais podem colocar a perder o recurso, que, uma vez não executado, deverá ser devolvido aos cofres da nação. Para que essa lei fosse aprovada, o setor cultural precisou se mobilizar. A partir disso, um novo movimento de articulação entre os entes da cadeia produtiva e criativa começou a tomar corpo em todo o país. Por aqui, um grupo do segmento da música criou o Acorde – Levante pela Música de Pernambuco, numa mobilização inédita do setor em termos de diversidade, com a participação da cena musical contemporânea, cultura popular, mestres de maracatus, afoxés, cirandeiros, movimento negro, movimento periférico, povos tradicionais e de terreiro, agentes do interior, técnicos e produtores. O grupo entregou uma série de ideias e soluções para o governador, que nem sequer recebeu seus integrantes para uma reunião solicitada. Parece ser um fato isolado, mas mostra o que já citei: o diálogo para a concretização de políticas públicas comprometidas com o setor cultural é complicado até entre governos aparentemente mais sensíveis. Porém, é fato que não será mais possível trabalhar com cultura no Brasil daqui para a frente sem entendê-la enquanto luta coletiva e politicamente ativa. Conferências populares, associações que estavam desativadas, coletivos, cooperativas culturais, todos voltaram a se mexer, a conversar e se organizar em nome da superação. A cultura popular e quem vive dela, as periferias das cidades e os estados periféricos do Brasil são a inspiração. São deles a verdadeira resistência de quem conserva a história e a tradição, algo fundamental em tempos em que se tenta apagar a memória de um país. Não se sabe ainda o tamanho das sequelas que a última eleição para presidente causará, ou quais sequelas essa pandemia deixará. Mas o esforço conjunto, movido seja pelo medo, pela dor ou pela esperança, será fundamental neste momento para garantir a soberania, a liberdade e a permanência do fazer cultural do povo brasileiro.
EM UM NOME, NADA Inventar um povo é tanto concebê-lo como encontrá-lo – e qual é a diferença? No caso desse homem, é preciso dizer que sua família compartilha a mesma história de boa parte dos indígenas do Brasil: em meados do século XX, quando a Amazônia era invadida pelos projetos militares que pretendiam, a seu modo, inventar um país, as aldeias enfrentavam os surtos epidêmicos de gripe e malária. Os indígenas se viam na encruzilhada de ceder ao assédio dos sertanistas e missionários, que, sob a condição de se assentarem nas áreas reservadas pelo Estado, prometiam a salvação em Cristo e na cloroquina; ou, a outra opção, resistir e se isolar na mata, arriscando a morte por doença ou pelo calibre 44 empunhado pelos que avançavam na rabeira desses grandes projetos. Os que optavam pela primeira ingressavam nos censos dos órgãos indigenistas do Estado, que passava a identificá-los por um nome – o nome de um povo. Pergunte, no entanto, aos Wai-Wai, por exemplo, o que significa esse nome curioso que lhes puseram e a resposta será: nada. Algumas vezes acrescentam: “É só nome mesmo”. O nome pelo qual o Estado designa a maior parte dos povos indígenas do Brasil é, como esse, ou um acidente linguístico, ou uma maldade, e há nisso algo afeito ao próprio sentido político do termo “povo”.
POVO NO PLURAL No volume I de seu Vocabulário das instituições indo-europeias, o linguista francês Émile Benveniste faz uma investigação filológica do vocabulá-
“Odeio o termo ‘povos indígenas’, odeio esse termo. Odeio. O ‘povo cigano’. Só tem um povo neste país. Quer, quer. Não quer, sai de ré. É povo brasileiro, só tem um povo. Pode ser preto, pode ser branco, pode ser japonês, pode ser descendente de índio, mas tem que ser brasileiro, pô! [Vamos] Acabar com esse negócio de povos e privilégios.” Abraham Weintraub, 22 de abril de 2020
rio que designa a ideia de “povo” em línguas da Europa e do Oriente. Não há, segundo ele, de uma ponta a outra do mundo indo-europeu, uma raiz que atravesse as línguas e designe uma sociedade organizada. Há, no entanto, um método: “Toda designação de caráter étnico”, diz Benveniste, “se faz por diferença e oposição”. Segundo esse método, os contornos de um povo são marcados, manifesta ou implicitamente, na fronteira com outro e, portanto, implicam uma perspectiva. No passado – e este é o exemplo do linguista –, iranianos e indianos se designavam arya, reconhecendo-se como falantes de uma língua compreensível entre si e filhos de uma mesma ascendência. O termo arya derivaria na forma persa eran e depois iran. “Iraniano” seria, portanto, a continuidade do antigo termo comum, uma lembrança dos tempos que antecediam a fronteira que algum dia fora traçada de modo que, quem a mire em um mapa-múndi, enxergue dois povos distintos. O termo “Índia”, que nos mapas de hoje assinala o outro lado da fronteira, teria sido um empréstimo grego da palavra com que os persas nomeavam o rio e a província de seus vizinhos – Hindu, no persa; Sindhu, no sânscrito. A Europa conheceu os que viriam a ser os indianos pela perspectiva dos gregos, que por sua vez os conheceram através dos olhos dos persas. Passados vinte séculos ou mais, esse acidente linguístico embarca em uma caravela e, de sua proa, através de uma luneta, chega aos povos do Novo Mundo, daí em diante conhecidos como “índios”. Essa invenção dos “povos índios” – ou, no vernáculo de Weintraub, “povos indígenas” – é um problema à modernidade. Historiadores como Eric Hobsbawm, Edward Thompson e Reinhart Koselleck, entre outros, demonstram como a história europeia das instituições e das ideias, em seus diferentes matizes, é uma história da redução dos plurais. Línguas se singularizam em língua; culturas se singularizam em cultura; territórios se singularizam em território. Na
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variante que, por qualquer motivo, fora eleita como oficial. Sumiam os cantos. Na constituição dos Estados modernos, as fronteiras políticas se reduzem a uma única fronteira política, universal e totalizante: ou os povos indígenas renunciam às suas expressões enquanto povos, ou, no vernáculo de Weintraub, “saem de ré”. Seja lá o que isso signifique, um povo saindo de ré não é uma imagem de todo ruim. Entrevistando um cacique Macuxi, ele mesmo um dos “involuntários da pátria” apartado ainda criança de sua família sob os auspícios oficiais para ser “integrado” como peão de uma fazenda de gado, ele riscou umas linhas no chão: “O Rio Uailã corre para o Rio Cotingo; o Rio Cotingo, para o Rio Branco;
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constituição dos Estados modernos, povos se singularizam em povo. Não à toa, a invenção de um país, o Brasil, na relação com os povos indígenas e em qualquer tempo, mobiliza a agenda de “descer” (das serras, dos rios), “reduzir” (nas missões), “pacificar” (o bravo) e “integrar” (à sociedade nacional) – verbos oficiais, conjugados até hoje pela lei. Com efeito, sob a disciplina dos missionários e do chefe de posto da Funai, a diversidade e a forma como ela se expressava em pequenos detalhes, como a arte plumária, as pinturas corporais e as técnicas de fabricação dos artefatos, foram sendo afuniladas. Quando os idiomas indígenas não eram proibidos, os muitos dialetos de uma mesma língua perdiam espaço para uma
Amazônia - Imagem aérea do Rio Napo, afluente do Rio Solimões
o Rio Branco corre o caminho todo até o Amazonas”, disse. “Minha história é remar contra a corrente.”
DANÇANDO COM COBRAS As águas cantam nos rebojos das cabeceiras do Rio Trairão. A passo de índio, são quatro ou cinco dias de viagem rio acima desde a missão, caminho pelo qual o homem foi mostrando ao filho as marcas nas pedras e nas árvores que indicavam os caminhos de seus antepassados, as antigas aldeias, os lugares em que caçavam, pescavam, em que se escondiam dos inimigos, fossem bicho ou gente – na Alta Amazônia, as onças se apresentam de muitas formas. Lá em cima, então, e por sobre o barulho das águas, o velho cantou a história do povo daquele lugar: a história do povo da cobra grande que vivia no fundo daqueles poços; e a história de seu velho pai, que dançava com elas. A história dizia que, como eles mesmos faziam agora, o velho vinha à beira do rio escutar as águas e, um dia, por entre elas, escutou o canto das cobras. A princípio, o velho resistiu, mas a curiosidade de ver a festa das cobras foi mais forte. O velho mergulhou até o fundo do poço, onde as mulheres cobras, lindas e enfeitadas, dançavam no pátio de uma aldeia. O perigo exigia que ele bailasse o mais rápido possível: se elas vissem seus pés, as cobras saberiam que ele era humano. Por essa razão, ou pelo efeito da bebida fermentada de mandioca, suas pernas bambearam logo. As cobras o flagraram. Só por sorte ele conseguiu subir de volta à superfície e regressar à sua casa, aonde chegou vomitando a comida que lhe haviam dado: pedaços de pau, folhas e algas. Nunca mais o velho foi o mesmo. Apesar do medo, ele sempre dava jeito de voltar àquelas corredeiras; ausentava-se por dias, voltava ressaqueado e doente. Quando, uma vez, uma grande sucuri invadiu as casas da aldeia, deram por sua falta – as cobras o haviam transformado, finalmente. Cantada entre pai e filho, anos depois, essa história operava uma nova transformação: apresentava o avô ao seu neto, confundiam-lhes os destinos. As cobras davam aos homens um novo lugar no mundo. Quando ao baixarem de volta o rio, o homem e seu filho bateram novamente às portas da Funai para requerer a demarcação das cabeceiras do Rio Trairão como a terra indígena do povo da Cobra Grande – um povo que os projetos militares fizeram descer das cabeceiras, reduziram na missão, pacificaram e guiaram à integração com a sociedade nacional. Ou os indígenas renunciavam a seu canto como povo de um lugar, ou saíam de ré.
CONTRA A CORRENTE É nesse sentido que a imagem não é de todo ruim. Ruim, talvez, seja o que o Brasil reserva a esses povos, que os leva a sair de ré. Os vaticínios oficiais, afinal, nunca foram favoráveis: ainda em 1832, Karl von Martius publicou nas Cortes cariocas um livro chamado O estado do direito entre os autóctones no Brasil, cujo argumento era, antes de qualquer outro, o de que os povos indígenas estavam fadados ao desaparecimento. Não o bastante, anos depois o mesmo Von Martius ressurgiu premiado pelo imperador com esta potente metáfora fluvial, o primeiro ensaio de “história do Brasil”: três longos rios resumiriam a nação, sendo o primeiro e mais caudaloso o rio da raça branca; outro, menor, corresponderia aos indígenas; outro, menor ainda, seria alimentado pela raça negra. O mito das três raças salvou-lhes do extermínio apenas para diluir suas águas nesse rio do povo brasileiro – no singular, note-se. À noite, nas malocas do Alto Rio Negro, os pajés cantam um mito diferente. Um mito no sentido contrário: uma cobra-canoa que, subindo o rio, vai deixando pedaços de seu corpo e de cada qual brota um povo. Brota a floresta ela mesma, brotam os lugares. Há algo de muito indígena nesse movimento em que se engajam o cacique Macuxi, ou o homem e seu filho, remando contra a corrente. Contrariando as previsões oficiais de seu desaparecimento, os indígenas seguem subindo às cabeceiras, reatando laços com seus parentes, multiplicando os lugares, refazendo o mundo, cantando. Poder conhecer as canções desses povos é, de fato, um tremendo privilégio. Nesses tempos de seca, em que o sumiço da floresta ameaça a sobrevivência não só do povo brasileiro (seja ele quem for), mas dos povos do mundo (seja qual fronteira os divida), é bom lembrar quem guarda as cabeceiras de onde escoa a água que abastece o Brasil. *Bruno M. Morais é advogado, sócio da Morais & Azanha Advocacia Socioambiental, mestre em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo e doutorando em Direito Socioambiental pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Autor de Do corpo ao pó: crônicas da territorialidade Kaiowá e Guarani nas adjacências da morte, vencedor do prêmio Anpocs e publicado pela Editora Elefante; e Victor Alcantara e Silva é mestre em Antropologia pela Universidade de São Paulo e doutorando na mesma disciplina pela Universidade de Brasília. Colabora com a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) em sua Gerência de Povos Isolados e de Recente Contato.
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UM OLHAR PARA A HISTÓRIA EM BUSCA DE PISTAS E CAMINHOS
O cinema em tempos de cólera A tática é doentia: mantêm-se as instituições, não mais para fomentar, mas para perseguir e destruir os patrimônios pelos quais deviam zelar. É o que faz o Ministério do Meio Ambiente com a Amazônia, a Funai com os índios, o MEC com as universidades e o Ministério da Saúde com toda a população na pandemia. Com o cinema não seria diferente... POR THIAGO B. MENDONÇA. COLABORARAM ADIRLEY QUEIRÓS, AFFONSO UCHOA, CRISTINA AMARAL, EWERTON BELICO E LUIZ PRETTI*
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© Vitor Flynn
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s portas fechadas da Cinemateca impedem que os antigos funcionários, mesmo que de forma voluntária, façam a mínima manutenção no acervo. Cercado de policiais armados, o governo federal tomou as chaves e desfez os vínculos com todos os colaboradores. Restam para cuidar de toda a memória fílmica do país dois bombeiros, abandonados à própria sorte, sem saber o que fazer diante de um acervo de mais de 250 mil rolos de filmes. Salvo engano, pela primeira vez há uma interrupção total das atividades dessa instituição desde que ela foi criada, nos anos 1940. Com essa atitude, o atual governo demonstra que não pretende interromper apenas o passado, mas também o presente. Junto com a Cinemateca, todas as estruturas de financiamento e regulação do cinema brasileiro foram paralisadas. A tática é doentia: mantêm-se as instituições, não mais para fomentar, mas para perseguir e destruir os patrimônios pelos quais deviam zelar. É o que hoje faz o Ministério do Meio Ambiente com a Amazônia, a Funai com os índios, o Ministério da Educação com as universidades e o Ministério da Saúde com toda a população na pandemia. Com o cinema não seria diferente. Esse projeto destrutivo é calcado nas ideologias dos setores mais reacionários do Brasil, principalmente de militares, que defendem que o maior “erro da ditadura” foi, além de não ter exterminado seus inimigos (uns 30 mil, segundo o atual presidente), não perceber que a esquerda conseguiu hegemonizar o pensamento na arte e na educação, mesmo com a repressão. A ideia é sufocar qualquer pensamento contrário àqueles que hoje estão no poder. Diante desse quadro, o que pode propor o cinema? Como resistir a esse panorama de terra arrasada? Estamos à altura dos desafios que se apresentam? E, não menos importante: que erros cometemos para que o cinema fosse destruído sem causar nenhuma comoção na maioria dos brasileiros? Ao pensarmos este momento, é natural procurar paralelo em outro golpe autoritário, o de 1964. Entre ou-
tros motivos, porque o atual presidente reivindica ser fruto do que havia de pior na tradição castrense que controlou o país por mais de vinte anos. Mas talvez nos seja útil pensar essa relação a contrapelo: o golpe interrompeu um processo constante de mudanças iniciado com a Revolução de 1930, que trouxe avanços enormes ao país: pela primeira vez a classe trabalhadora ganhou representação, direitos básicos foram garantidos e um projeto de Brasil, que envolvia uma mudança radical na educação e na cultura, foi apresentado. O cinema brasileiro moderno nasceu desse novo paradigma: evidenciava a exploração sofrida pelas classes populares e ao mesmo tempo sua generosidade e criatividade, apostando em um porvir. A transformação prometida, po-
rém, faltou ao encontro. O que surgiu foi seu contrário: uma contrarrevolução “preventiva” que apagaria a chama da liberdade e criaria um novo paradigma de país, até hoje vigente. Nos primeiros anos após o golpe, artistas e intelectuais seguiam com certa liberdade seus trabalhos.1 A ditadura rompera o elo entre essa produção e as classes “perigosas”, camponeses e operários, que tiveram suas lideranças duramente perseguidas (e mortas) a partir de 1964. Se em um primeiro momento o ímpeto do pré-golpe não arrefeceu, aos poucos a euforia deu lugar à autocrítica e ao pessimismo. O Cinema Novo Brasileiro, movimento revolucionário que surgiu nesse processo radical de mudanças, foi duramente abalado pelo golpe. Uma das discussões centrais
que davam sentido a esse cinema era a superação do subdesenvolvimento. Seus instrumentos eram a liberdade formal e autoral, profundamente comprometidas com as mudanças estruturais necessárias para superar a desigualdade no país. Sufocados entre a censura oficial, a censura econômica (com o golpe tornou-se ainda mais difícil o apoio financeiro para filmes críticos) e o medo da repressão física (pois a tortura e o desaparecimento eram um fantasma crescente, rondando o imaginário e a vida prática de muitos criadores), muitos artistas aceitaram negociar com a ditadura. Alguns inclusive ajudaram a pensar e gerir a Embrafilme, uma empresa de cinema estatal, criada pela ditadura. Vale ressaltar que a Embrafilme foi criada
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oficialmente poucos meses depois do AI-5. Houve então uma mudança sutil no léxico até então em uso: a questão do subdesenvolvimento (que envolvia esferas de superação políticas, sociais, estéticas, culturais e econômicas) foi substituída pela questão do combate à ocupação imperialista. A estratégia foi a abertura de canais de financiamento e diálogo e a construção de um discurso anti-imperialista, acompanhada de leis protecionistas dentro da lógica política de substituição das importações vigente. Um exemplo dessa mudança de rumo do cinema está no texto do crítico e realizador Gustavo Dahl, “Mercado é Cultura” (1977). Egresso do Cinema Novo e um de seus ideólogos, ele se tornou um quadro importante na Embrafilme a partir do governo Geisel. Dahl defendia que, “para que o país tenha um cinema que fale a sua língua, é indispensável que ele conheça o terreno onde essa linguagem vai-se exercitar. Esse terreno é realmente o seu mercado. Nesse sentido explícito, é válido dizer que ‘mercado é cultura’, ou seja, que o mercado cinematográfico brasileiro é, objetivamente, a forma mais simples da cultura cinematográfica brasileira”. Ao que parece, houve uma grande transformação no ideólogo do Cinema Novo que defendia o papel central do artista. Não havia mais o paraíso da revolução e da emancipação das consciências a ser alcançado. O mercado passou a ser o horizonte. Treze anos de ditadura e sua modernização conservadora convenceram Dahl e muitos realizadores de sua geração que era hora de abandonar suas antigas ideias.2 Por outro lado, havia o desenvolvimento acelerado das telecomunicações, construindo um novo paradigma cultural, que rapidamente se tornaria hegemônico. E, como sabemos, a ditadura cuidou para que seus aliados monopolizassem esses
meios. Os grandes canais de televisão incorporaram grande parte dos criadores de esquerda em seus quadros. Muitos artistas acreditaram, em um primeiro momento de boa-fé, que poderiam trazer um toque pessoal para essa estrutura, trabalhando sutilmente em suas dramaturgias os problemas cotidianos da classe trabalhadora. Os traumas do golpe fizeram alguns vislumbrar na televisão uma possibilidade de falar às massas, que aceitaram indiferentes a ditadura (ao menos essa foi a leitura de grande parte dos intelectuais da época). Com o tempo, essas aspirações mostraram-se ilusões. Na prática, as TVs se apropriaram de uma forma sofisticada, fruto de um acúmulo estético e político do teatro brasileiro, diluindo, no entanto, seu conteúdo. Essa forma (tendo como produto principal as telenovelas) acabou por servir como instrumento de conciliação da ditadura com a classe trabalhadora, que, até a ruptura de 1964, sustentara politicamente os projetos emancipatórios.3 A chegada da redemocratização não arrefeceu a ideia de que mercado é cultura. Ao contrário, esse se tornou o pensamento hegemônico que perdura até hoje. Após a destruição, no governo Collor, da Embrafilme e de toda a estrutura que sustentava o cinema brasileiro, as políticas e discussões públicas apontavam para esse caminho. Não à toa, o Ministério da Cultura de FHC defendia que a “cultura é um grande negócio”, com suas leis de incentivo calcadas na decisão das empresas de reverter parte dos impostos devidos ao Estado em investimento cultural. Os anos Lula trariam um modelo híbrido:4 se no atacado investia nas grandes produções, no varejo possibilitava que outras formas também se manifestassem. O Ministério da Cultura, com Gilberto Gil à frente, criou diversos projetos inovadores
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que permitiram novos olhares sobre o Brasil. A busca de descentralização dos investimentos em produções de cinema foi um elemento catalisador para uma explosão criativa que tomou conta do país. O fortalecimento da Ancine e a criação do Fundo Setorial resultariam, na década seguinte, em uma expansão da produção brasileira sem precedentes (comparável em número de filmes somente ao ápice dos anos 1970). Essa expansão da produção, no entanto, não foi acompanhada de um projeto que efetivamente fizesse esses filmes chegar à população brasileira. Não se enfrentou o mercado de exibição e, quando o governo buscou enfrentar os monopólios do sistema de telecomunicações, sofreu uma fragorosa derrota. Em todo esse processo, contestou-se pouquíssimo a concentração das salas de exibição, em grande parte dominadas por empresas norte-americanas. A euforia dos realizadores, vivendo um período inédito de grande fluxo de capital para a produção, nos fez perder de vista o fundamental: a criação de uma grande cadeia de exibição que visasse à maioria de nosso povo. Na prática, nos mantivemos submissos às ordens do mercado, produzindo para um nicho elitizado, com poder aquisitivo suficiente para frequentar salas de cinema. O preço desse descaso é pago agora com o silêncio da maioria da população diante da morte anunciada do cinema brasileiro. Vence o capital internacional e seus aliados locais, somados ao neofundamentalismo cristão, que aos poucos hegemonizam os espaços, apagando culturas, transformando tudo em mero produto de consumo e eliminando o que não está sob seu domínio. Perde o cinema brasileiro, que luta como pode para se manter em pé, visando um futuro em que as muitas vozes potentes de nossa cultu-
ra possam viver e sobreviver participando na construção de nossas múltiplas identidades e modos de vida. O que a história nos mostra é que mercado e ditaduras andam juntos quando lhes é conveniente. Sabemos aonde isso pode nos levar: censura, precarização do trabalho, aniquilação das diferenças. Estamos diante do perigo real de extinção do passado, presente e futuro de nossa arte cinematográfica. Lembremo-nos de nossas lutas pretéritas como um alerta para o presente. Olhemos para nossa história, atentos às pistas que podem abrir os caminhos, conscientes dos erros que não podemos voltar a cometer. Escutemos aqueles que nos precederam e lutaram a luta justa: Zózimo Bulbul, Glauber Rocha, Ozualdo Candeias, Raquel Gerber, Andrea Tonacci, Helena Solberg, Nelson Pereira dos Santos, entre tantos outros. Cineastas que souberam inventar e realizar um cinema do futuro, sonhar um país que caiba a todos nós. *Thiago B. Mendonça, Adirley Queirós, Affonso Uchoa, Cristina Amaral, Ewerton Belico e Luiz Pretti são realizadorxs do cinema brasileiro. 1 P artimos para essa reflexão do seminal texto de Roberto Schwarz, “Cultura e política 1964-1969”, parte do livro O pai de família e outros estudos . 2 Uma nota importante: não se trata de usar Gustavo Dahl como um bode expiatório. Pelo contrário, mencionamos suas ideias aqui por considerá-lo um dos mais importantes pensadores de cinema de sua geração. As escolhas que ele fez só podem ser compreendidas no contexto de um grupo de cineastas que buscava sobreviver e produzir no contexto difícil de uma ditadura que perdurou no tempo. Seria um anacronismo descabido fazer qualquer julgamento moral ou pessoal sobre isso. 3 Este parágrafo parte de textos e reflexões fundamentais de Paulo Bio Toledo, Rafael Villas Bôas e Iná Camargo Costa. As eventuais impropriedades, no entanto, se devem exclusivamente aos autores. 4 Vale ressaltar que esse modelo é mais próximo do que era defendido por Gustavo Dahl em seu texto já citado de 1977. Não seria incorreto dizer que as políticas públicas de cinema na era Lula, com seus erros e acertos, devem muito às suas reflexões.
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O MERCADO PÚBLICO E A HISTÓRIA NEGRA DE PORTO ALEGRE
Privatização ameaça território sagrado Em 5 de junho, o prefeito de Porto Alegre, Nelson Marchezan Junior (PSDB), apresentou edital prevendo a concessão da administração do Mercado Público, por 25 anos, à iniciativa privada. A medida ameaça um espaço sagrado de religiões afro-brasileiras, um território repleto de histórias, de relações surpreendentes entre paredes e caminhos, mercadorias, divindades e seres humanos POR VÍTOR QUEIROZ*
nacional, Iphae e Iphan) associaram-se, tendo em vista a patrimonialização definitiva do prédio que abriga o Mercado Público e de algo que está bem no meio dele, o Bará do Mercado, do qual falava Pai Tiago. Essa união de pessoas e instituições tão diversas foi impulsionada pela intenção de prevenir as possíveis descaracteriza-
ções ou mesmo danos a esse edifício, seu entorno e, especialmente, à memória da população negra local, que poderiam decorrer da concessão. Em setembro de 2019, o prefeito confirmou sua intenção de lançar o edital. Depois de algumas consultas públicas, convocadas para discuti-lo, foi lançada, no dia 4 de novembro,
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ai Tiago de Bará gravou uma live improvisada, em sua própria casa, no dia 4 de junho deste ano. Visivelmente nervoso, ele advertia: “Nós podemos perder o nosso espaço sagrado [...]. A gente não está falando só do Bará do Mercado. Todas as paredes, todos os portais, todos os caminhos internos e externos do Mercado Público são espaços sagrados desde quando ele não existia. Desde quando as ganhadeiras vendiam seus quitutes para comprar a alforria dos seus maridos, dos seus parentes, dos seus amigos”. Pai Tiago preside uma entidade destinada à proteção das religiões afro-brasileiras no Rio Grande do Sul, a Associação Independente em Defesa das Religiões Afro-Brasileiras (Asidrab), além de ser pai de santo. Sua fala era motivada pelo lançamento iminente de um edital que concederia a administração do Mercado Público da capital gaúcha, por 25 anos, à iniciativa privada. De fato, o prefeito Nelson Marchezan Junior (PSDB) apresentaria esse edital, por videoconferência, no dia seguinte. Ainda que o documento de concessão mencionasse que o Mercado é um patrimônio histórico municipal e citasse as religiões afro-gaúchas em um de seus anexos, a visão desse mesmo lugar que sua leitura trazia era oposta àquela do religioso. Pai Tiago faz questão de qualificar todo o Mercado como um espaço sagrado, um território repleto de histórias, de relações surpreendentes entre paredes e caminhos, mercadorias, divindades e seres humanos. Já o Mercado do edital e das declarações oficiais da prefeitura é sobretudo um espaço físico. De meados de 2019 para cá, diversos setores da sociedade civil (dos afrorreligiosos à OAB-RS e aos permissionários, os comerciantes do Mercado) e da política (do poder legislativo municipal e estadual ao Ministério Público, o Tribunal de Contas e os serviços de patrimônio regional e
Exu (estatueta) – povo Yorubá, Nigéria, c.1880-1920
© Reprodução
uma Frente em Defesa do Mercado Público na Câmara de Vereadores da cidade. Em março deste ano, houve a última audiência pública na Assembleia Legislativa do Estado, antes do agravamento da crise sanitária causada pelo coronavírus. Depois disso, por conta da pandemia, Marchezan alterou o funcionamento do Mercado, muitas vezes sem consulta a seus trabalhadores, por meio de diversos decretos especiais. Desde o lançamento do edital, a agitação se intensificou nas redes sociais, com destaque para a atuação da Asidrab, dos permissionários, da deputada estadual Sofia Cavedon (PT) e da frente encabeçada pelo vereador Adeli Sell (PT). A batalha judicial e a tentativa de patrimonializar de uma vez por todas esse espaço sagrado, porém, estão longe de terminar.
O CORAÇÃO DA CIDADE O Mercado Público é, realmente, central para a vida da capital gaúcha sob muitos aspectos – econômico, popular, religioso etc. Sua construção, que em outubro completa 151 anos, se confunde com a história de Porto Alegre, fundada como uma pequena freguesia no final do século XVIII e elevada à capital de província por conta das rotas comerciais que começaram a passar por ali. O Mercado, localizado na zona portuária de uma cidade que tem porto até em seu nome, logo acabou se tornando o coração dessa povoação com ares de entreposto mercantil. Além de pessoas e mercadorias, porém, muitas lembranças circulam aquele espaço. Elas fazem parte da história oficial porto-alegrense e também perpassam suas inúmeras memórias afetivas e familiares. Para a comunidade negra local, o Mercado Público é ainda um dos territórios de referência da área central da cidade. A despeito do branqueamento da identidade gaúcha, que convence até mesmo alguns de seus artistas e intelectuais,1 Porto Alegre foi construída pelas mãos de milhares de escravizados. No antigo Largo do Paraíso, antes mesmo de o Mercado existir, as chamadas pretas-minas e uma multidão de ambulantes negros vendiam de tudo, de quitutes e ervas a amuletos. Por ali, entre as docas do carvão e das frutas, passavam também os cativos africanos ou brasileiros recém-chegados à cidade, vindos dos portos do Rio de Janeiro ou de Paranaguá. Décadas depois, toda essa região central continuava sendo ocu-
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pada por uma expressiva população afrodescendente que, mais tarde, passaria por dolorosos processos de deslocamento forçado e invisibilização. Esses processos foram (e, de certa forma, ainda são) contínuos e sempre vieram acompanhados de políticas públicas conservadoras, que invariavelmente se colocavam do lado da modernidade, da civilização ou da higiene. Era preciso, aos olhos dos homens de bem do passado e dos especuladores imobiliários de hoje, limpar o centro, respectivamente, de seus costumes africanizados e de sua população empobrecida. No entanto, essa história não ficou no passado. Como diria a mãe de santo Yá Vera Soares de Oyá, na mencionada audiência pública do mês de março: “Nós tivemos lutas incessantes por essa questão de território. E, no olhar da matriz africana, a questão do nosso sagrado, que centraliza todo um comércio, que movimenta um capital a partir dos povos tradicionais que compram e gastam. E perdura a renda per capita daquilo ali. [...] Mais uma vez querem tirar nossa identidade. A identidade do preto, da tradição africana que perdura neste estado. Porque o Mercado Público está localizado em Porto Alegre, mas ele hegemoniza 60 mil casas tradicionais que têm no estado do Rio Grande do Sul e que, de uma forma ou de outra, vêm, sim, à capital para saudar aquele sagrado”. Yá Vera refere-se ao ritual do passeio. Trata-se de uma peregrinação que marca o final da iniciação dos adeptos do batuque, importante religião de matriz africana do Rio Grande do Sul (ao lado da umbanda, do candomblé etc.) e a única que tem sua origem nesse estado. Nesse ritual, o novo adepto, cercado por outros membros de seu terreiro, vai até o Mercado Público, uma igreja – normalmente a do Rosário, também no Centro Histórico – e, finalmente, a uma praia – em geral, o Cais Mauá, bem em frente ao Mercado – para saudar as entidades das águas, em especial a deusa Oxum. Essa divindade, junto ao orixá Bará, protege toda a cidade de Porto Alegre. O passeio devolve ao tempo do instante e do agora a presença negra maciça que existiu nesses lugares antes de aqueles processos de desterritorialização e gentrificação os atingirem. Essa peregrinação – que consagra o novo filho de santo, mas também renova o axé, a força vital, da própria cidade – é marcada por uma percepção do espaço e do tempo própria do batuque. Fazê-la caber em algum agendamento, credenciar os terreiros que podem ou não realizá-la ou instituir qualquer tipo de regra extrarreligiosa, como provavelmente
acabaria acontecendo caso o Mercado Público fosse administrado pela iniciativa privada, seria um desrespeito com os batuqueiros, que estão entre os principais guardiões da história negra da cidade.
O BARÁ DO MERCADO Desde o início da pandemia, as atividades dos permissionários sofreram severas restrições por parte da prefeitura. O Mercado Público passou todo o mês de julho, por exemplo, de portas fechadas. A Covid-19, que de fato tem se espalhado velozmente no Rio Grande do Sul, justificaria tais ações. Para eles, porém, as medidas foram aplicadas de forma desigual, uma vez que outros estabelecimentos comerciais puderam funcionar com menos limitações. A propósito, as quatro floras, lojas especializadas em produtos afrorreligiosos, que ficam à esquerda de cada uma das quatro portas do Mercado, foram obrigadas a seguir protocolos especialmente rígidos... Por ora, o estabelecimento tem funcionado com apenas duas dessas portas abertas. Para os religiosos de matriz africana da cidade, esse não é um mero detalhe. O ritual do passeio acontece por conta do assentamento de Bará que existe no centro do prédio. Na verdade, esse orixá vive ali. No batuque, assim como em outras religiões afro-brasileiras, a força vital (axé) dos fiéis e dos próprios deuses deve ser ativada, assentada e plantada, isto é, enterrada cuidadosamente. Assentamentos são, portanto, pedras (otás) e outros objetos que servem de suporte para os fundamentos (áwo) que mantêm a vitalidade de alguém. Os assentamentos correspondem a verdadeiros corpos externos: eles personificam seres humanos e divinos específicos. E, como Bará é o deus das encruzilhadas, seu assentamento, sua casa, fica bem no meio do edifício, no cruzeiro formado pelo encontro das duas vias que dividem a construção, suas lojas e armazéns em quatro partes. Bará, também chamado de Exu, é o orixá do movimento, que dá vida e dinâmica a tudo. Além disso, ele é o mensageiro imprevisível e zombeteiro que comunica e efetiva a vontade de todos os outros deuses. Bará deve ser honrado antes de qualquer atividade, recebendo a primeira porção de tudo o que se oferta aos outros deuses. Essa divindade também ocupa os espaços públicos. Bará é o dono da rua. Ele é o responsável pelos encontros (e confrontos) entre as coisas e as pessoas, pela abertura e fechamento das possibilidades, dos caminhos. É por isso que as quatro portas do Mercado, que levam diretamente ao seu cruzeiro central, projetando-o no espaço da cidade, devem permanecer
simultaneamente abertas. É através delas e do fluxo constante de pessoas e mercadorias em todas as direções que, afinal, a circularidade promovida por esse deus é garantida. Como os objetos extremamente poderosos que estariam ali, junto aos alicerces do prédio, teriam sido assentados pelos escravizados que o construíram em 1869, os fundamentos do Bará se confundem com as fundações do Mercado Público. Em outras versões da história, eles foram enterrados por uma importante personalidade regional, Osuanlele Erupê, mais conhecido como príncipe Custódio. Custódio era membro da família real de Ajudá, no atual Benin, e veio para o Brasil exilado por motivos políticos, chegando ao Rio Grande do Sul no final do século XIX. Ele teria sido proprietário de uma banca no Mercado, no início do século seguinte, e estabeleceria boas relações com a elite gaúcha da época.
Sua construção, que em outubro completa 151 anos, se confunde com a história de Porto Alegre
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PATRIMÔNIO De modo geral, os afrorreligiosos têm enfrentado a Covid-19 com paciência, respeitando os protocolos sanitários locais e da OMS em todo o país, o que não surpreende em cultos nos quais tudo é feito de modo cíclico e lento, com longos períodos de resguardo entre um ritual e outro. Além disso, o território e a memória dos mortos são elementos centrais para as comunidades de terreiro. No caso do Mercado Público de Porto Alegre, todas essas dimensões se cruzam. São os ancestrais do povo de santo que o levantaram. Foram eles mesmos, ou o príncipe Custódio – uma figura memorável do batuque gaúcho –, que plantaram o Bará no meio do prédio. A notícia do lançamento do edital de concessão no meio da pandemia, em contraste com o pesar do momento, indignou os afrorreligiosos. Para uma parte deles, a prefeitura teria aproveitado a crise sanitária para tocar o projeto de modo rápido e sorrateiro. Nas palavras de um pai de santo, ditas assim que ele soube que essa proposta seria levada adiante: “Essa administração intolerante e racista do Marchezan não respeita nem o período de Covid, em que a gente está com mais de 30 mil mortos neste Brasil [...]. Covardemente, o Marchezan está lançando o edital de concessão do Mercado Público. Que é que ele vai fazer? Aí sim, ele vai justificar que
tem doença, que tem Covid, vai ter uma coletiva de imprensa em que tem que se cadastrar para poder falar. Ou seja, ninguém de nós vai poder se manifestar, tá, pessoal?”. A mobilização on-line que se formou desde então contradiz essa avaliação sombria. De qualquer forma, o carinho que a maioria dos porto-alegrenses tem pelo Mercado, defendendo-o por décadas, é um dos maiores indícios da força que emana desse território sagrado. A história do Mercado Público sempre foi repleta de ameaças, afinal. Além de seu prédio ter sido atingido por grandes incêndios e inundações, a ideia de derrubar o Mercado em nome da modernidade acompanha a rotina dos permissionários há tempos. O prédio quase veio abaixo, por exemplo, na administração do prefeito Thompson Flores, nos anos 1970. Na época, a população reagiu a tal ponto que ele abriu mão do projeto e o prédio acabou sendo tombado como patrimônio histórico municipal. De lá para cá, o Largo do Mercado foi declarado sítio arqueológico e mesmo o assentamento do Bará foi registrado como patrimônio imaterial de Porto Alegre em 2013. Apesar disso tudo, a casa desse orixá ainda não está totalmente protegida, correndo o risco, inclusive, de virar uma espécie de shopping, apenas com sua antiga arquitetura preservada. Neste momento, a patrimonialização definitiva, em âmbito federal, do prédio e do Bará está sendo deliberada. E não se trata somente de manter as paredes do Mercado de pé, mas de salvaguardar tanto os jeitos de mercar dos permissionários quanto a convivência entre o sagrado e o profano desse lugar que viu a cidade nascer, dessa encruzilhada central que serve de moradia para o deus que tudo inicia, desse território densamente povoado pela memória dos africanos escravizados que viveram na capital gaúcha. Levará tempo para que se construa um processo de patrimonialização que contemple a importância do Mercado para a população de Porto Alegre como um todo. Certamente Bará há de permitir que isso seja feito com o devido zelo e que sua casa seja mantida, após a pandemia, do jeito que ele gosta: frequentada por todo tipo de gente, cheia de cheiros e cores, agitada e com suas quatro portas bem abertas. Vítor Queiroz é mestre em História e doutor em Antropologia pela Unicamp. Pesquisa os cultos afro-brasileiros, questões étnico-raciais, arte, patrimônio e território. 1 G abriela Sales, “Cineasta gaúcha faz comentário racista em live”, Fórum, 7 jul. 2020.
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OBSERVATÓRIO DE EDUCAÇÃO: ENSINO MÉDIO E GESTÃO www.observatoriodeeducacao.institutounibanco.org.br
O papel da escola no enfrentamento do racismo
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s manifestações antirracistas realizadas em todo o mundo este ano apontam que, se queremos construir uma sociedade equânime, é necessário compreender qual o papel que cada estrutura socioeconômica desempenha na reprodução do racismo a fim de desenhar estratégias eficazes para o seu enfrentamento. A educação, enquanto elemento nevrálgico para qualquer mudança, é essencial nesse debate, de modo que, sem uma educação efetivamente antirracista, não é possível pensar em uma sociedade igualitária. Segundo o antropólogo Kabengele Munanga,1 professor da Universidade de São Paulo (USP) e um dos principais estudiosos das relações étnico-raciais na sociedade brasileira, o enfrentamento do racismo demanda uma abordagem tripartite: legislação, educação e ações afirmativas. A legislação opera no combate direto às manifestações materiais do racismo. Há muito o que se conquistar nesse campo. Porém, como o racismo é um fenômeno de ordem política e também cultural e psíquica, de modo que as subjetividades dos sujeitos brancos e não brancos são educadas a reproduzir a superioridade branca, a legislação não tem poder de se efetivar na materialidade socioeconômica e, sobretudo, nos domínios mais subjetivos em que opera o racismo cotidiano. De acordo com Mununga, é na educação que se constroem essas imagens estereotipadas e discriminatórias do sujeito e da população negra, de modo que apenas a prática educativa tem o poder de desconstruí-las: “Só a própria educação é capaz de desconstruir os monstros que criou e construir novos indivíduos que valorizem e convivam com as diferenças”. Que tipo de educação tem esse poder transformador? De acordo com Munanga, a resposta encontra-se em uma educação antirracista, multicultural e pluriversal, ou seja, que não seja universal – focada em uma única visão de mundo eurocêntrico –, uma vez que acomoda a pluralidade das visões de mundo, valorizando a diversidade que nos faz humanos. A educação é central tanto para a reprodução do racismo como para o seu enfrentamento. Nas palavras da pesquisadora Sueli Carneiro:2 “A educação sempre foi um campo de batalha para nós, negros”. A chamada grande batalha começa ainda no século XIX, com a luta abolicionista, que já pautava o acesso à educação. A Frente Negra Brasileira, nas décadas de 1930 e 1940, permanece na construção de massivo processo para facilitar o acesso à educação, e o movimento negro, desde a constituinte até o presente, mantém-se nessa mesma luta. O grande mito da democracia racial continua sendo reiterado quando até mesmo as imagens de luta e enfrentamento do racismo só são amplamente divulgadas se internacionais. O papel do movimento negro brasileiro na garantia do acesso à educação e na construção de uma agenda político-pedagógica rumo a um currículo e uma prática educacional antirracistas é central, garantindo nos últimos trinta anos conquistas fundamentais, como as ações afirmativas e a Lei nº 10.639/2003, que altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), tornando obrigatório o ensino da cultura e história africana, atualizada depois pela Lei nº 11.645/2008, que contemplou a história e cultura indígena.
entre duas pessoas, confundindo-o com bullying. Não o enxergam como um sistema que se retroalimenta e se reinventa.”3 Assim, construir uma educação antirracista implica encaminhar os conflitos interpessoais, mas sobretudo reconhecer e valorizar as identidades e histórias de todos os sujeitos no ambiente escolar. Quando o currículo e o material didático só estão compostos de uma única perspectiva, na qual a história dos povos africanos e indígenas começa a partir da dominação e da escravização, há um silêncio estrutural que invisibiliza sua cultura e possivelmente desengaja os estudantes não brancos. Kabengele Munanga compreende esse silêncio como uma das ferramentas mais eficazes na perpetuação do racismo brasileiro no processo educativo dos sujeitos. O silêncio sobre as diferenças e diversidade começa no âmbito doméstico e persiste no ambiente escolar. Diante da não consideração da questão racial por pais e professores, as crianças negras deparam-se ainda com a ausência da história e de representações positivas de seu povo nas disciplinas e materiais didáticos. Os silêncios, ancorados no mito da democracia racial, transformam a educação brasileira em um grande perpetuador das diferentes formas de reprodução do racismo e da desigualdade. Sueli Carneiro destaca que o projeto brasileiro de nação é a recriação da Europa nos trópicos, de modo que a educação passa a ser reprodutora disso: “Se existe história, é o Ocidente que construiu história; se existe civilização, é o Ocidente que produziu; se existe conhecimento relevante, é o conhecimento produzido pelo Ocidente. E todo esse processo de destituição das pessoas não brancas – dos negros em especial – da condição de ser sujeitos de conhecimento, sujeitos cognocêntricos, tem a ver com a própria destituição das pessoas negras de ser plenamente humanas e que chamo em minha tese de doutorado de epistemicídio, que é negar. Negar ao outro a capacidade de produzir cultura, conhecimento e de ser sujeito relevante. Isso é obra da escravidão, da colonização e que o pós-abolição não resolveu. A escola reitera isso, não é gratuito que nossas primeiras experiências de racismo ocorram na escola”.
INTERLOCUÇÕES ÁFRICA E DIÁSPORA AFRICANA
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romover uma educação antirracista vai muito além de simplesmente combater as manifestações materiais do racismo cotidiano, como ofensas e xingamentos. Apesar de positivas, as medidas que promovem a melhoria do clima escolar e a dissolução de conflitos com base em discriminação étnico-racial não bastam para a construção de uma educação efetivamente inclusiva e equânime. A educação antirracista implica necessariamente a revisão do currículo, garantindo sua pluriversalidade, bem como a composição de um corpo docente etnicamente diverso e formado em competências curriculares que abranjam a cultura e a história de povos africanos e ameríndios. Ednéia Gonçalves, diretora executiva da Ação Educativa, destacou, em reportagem do site do Centro de Referências em Educação Integral (11 jun. 2019), que não basta que as escolas tratem o racismo como um conflito interpessoal. É preciso compreender a sua dinâmica estrutural, promovida inclusive pela própria escola, quando esta não aborda a história e a cultura dos sujeitos e povos não brancos a partir de sua própria perspectiva: “As escolas trazem o racismo como uma questão
os últimos anos, gestores e educadores de todo o país passaram a colocar em prática iniciativas com o propósito de enfrentar a desigualdade étnico-racial na educação. Na construção de uma educação antirracista, é importante não apenas visibilizar essas iniciativas, mas compartilhar os conhecimentos adquiridos, as conquistas e desafios, contribuindo ainda mais para a equidade no ensino e na aprendizagem. O projeto Interlocuções África e Diáspora Africana,4 desenvolvido no Centro Educacional Maria Santa, em Pau Brasil, na Bahia, estimulou um diálogo plural entre estudantes, professores, comunidade e o movimento negro, valorizando a cultura, a identidade e o pertencimento étnico-racial através do enfrentamento dos estereótipos raciais e do preconceito. Além de pesquisar as origens africanas e indígenas de expressões usuais e cotidianas, os estudantes realizaram uma pesquisa sobre a formação da favela Pau-Brasil, refletindo sobre a relação centro/periferia e as desigualdades raciais. Depois de atividades formativas com os professores, os mesmos passaram a desenvolver práticas voltadas ao fortalecimento da identidade negra e da autoestima dos alunos em parceria com o movimento negro. As atividades abordaram ainda a formação histórica das favelas, contrapondo as imagens estereotipadas dos territórios e populações afro-brasileiros. Reunidos em grupos de pesquisa, os estudantes foram provocados a repensar o território onde vivem e as favelas em sua composição cultural e criativa, para além do racismo territorial. Por fim, os estudantes remontaram, através de maquetes, as favelas em sua diversidade, provocando reflexões de pertencimento, fortalecendo a autoestima e a autoimagem positiva, de maneira interdisciplinar, envolvendo toda a escola. A educação possui um papel transformador e central na sociedade, de modo que, se a construção de um ensino antirracista envolve múltiplas abordagens e perspectivas, isso se deve ao caráter estrutural e sistêmico que o próprio racismo possui em nosso cotidiano. Educar para a diversidade, enfrentando as desigualdades, é um desafio histórico que demanda escuta, atenção e compromisso com a equidade.
1 Ver em: https://bit.ly/32zd8Cu. 2 Ver em: https://bit.ly/3hBJuTp.
3 Ver mais em: https://bit.ly/2YIuAn2. 4 Ver em: https://bit.ly/31AcTbd.
COMO CONSTRUIR UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA?
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A EXPANSÃO DO EVANGELISMO
Uma Internacional reacionária Desde o início dos anos 1980, o evangelismo mobiliza multidões de fiéis reunidos por uma mesma visão ultraconservadora do mundo. Capazes de articular alianças transfronteiriças como entre a Coreia do Sul e os Estados Unidos (pág. 16 ), os pastores dessa corrente vituperam contra o aborto e o casamento homossexual, em nome de uma leitura literal da Bíblia. Eles não se esquecem, contudo, de garantir a si mesmos rendas bastante confortáveis (pág. 18 ). Há muito tempo ausentes da arena política, os evangélicos investem cada vez mais no espaço público, a ponto de influenciar eleições na Nigéria (pág. 20 ) e em todo o mundo (a seguir ) POR AKRAM BELKAÏD E LAMIA OUALALOU*
caiu para 69%. No Brasil, em 1970, 92% dos habitantes se declaravam católicos; em 2010, eles não passavam de 64%, tendo as “deserções” beneficiado as múltiplas igrejas evangélicas, sobretudo as pentecostais, que proliferam no país.2 Em 2018, o candidato à Presidência Jair Bolsonaro contou com o voto de 70% dos evangélicos. Seus 11 milhões de votos fizeram a diferença para que ele superasse Fernando Haddad, o candidato do Partido dos Trabalhadores. Em 2016, Donald Trump, ainda mais abertamente do que seus antecessores republicanos Ronald Reagan e
George W. Bush, cortejou esse eleitorado, tido agora como essencial para sua reeleição em novembro. Hoje, evangélico rima com político. O ponto de partida para essa mudança pode ser localizado nos Estados Unidos. Foi lá, na década de 1910, que nasceu o pentecostalismo, o qual dá grande importância à narrativa de Pentecostes e à influência do Espírito Santo sobre os apóstolos de Jesus Cristo. Foi nessa época que missionários começaram a viajar pelo planeta com a missão de divulgar os princípios fundamentais do pentecostalismo: o renascimento, ou o início de
uma nova vida, efetivado por meio de uma conversão pessoal que passa por um “segundo batismo”; e a centralidade da Bíblia na vida diária, bem como sua inerrância, isto é, a afirmação doutrinária de que ela não contém erros. Soma-se a isso a importância do testemunho pessoal na expressão da fé. Relançado pela “segunda onda” dos anos 1960, o movimento ganhou força mais uma vez, vinte anos depois, quando surgiu, ainda nos Estados Unidos, o neopentecostalismo. Nessa “terceira onda”, os fiéis viram-se instados a integrar a necessária luta cotidiana contra o mal e o demô© Tom Brenner/Reuters
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o Rio de Janeiro a Seul, passando pela Cidade do México e por Lagos, há quatro décadas o mundo protestante passa por uma dinâmica ultraconservadora que influencia as questões sociais, societais, econômicas e diplomáticas. Com seus 800 milhões de fiéis, o evangelismo cristão – uma corrente do protestantismo – tem tido um avanço fulgurante.1 No início do século XX, 94% da população da América do Sul era católica; apenas 1% dos habitantes do continente afirmavam ser protestantes. Hoje, estes são 20%, e a proporção de fiéis ao Vaticano
Presidente Donald Trump posa para fotos segurando a bíblia em frente a igreja Episcopal St. John, em Washington
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e a criação de mídias são um trunfo crucial, assim como o proselitismo de rua e as campanhas intensivas de evangelização nas redes sociais. A galáxia evangélica está longe de ser homogênea. Os batistas, que remontam ao século XVII e contabilizam hoje 100 milhões de crentes, dividem-se em uma infinidade de igrejas bastante progressistas ou moderadas, sendo uma de suas grandes figuras o ex-presidente dos Estados Unidos Jimmy Carter, ganhador do Prêmio Nobel da Paz de 2002. Nem todos os neopentecostais são adeptos da teologia da prosperidade e nem todos votam em candidatos de direita, com parte desse grupo oferecendo um forte apoio aos presidentes venezuelanos Hugo Chávez e Nicolás Maduro. Mas a maioria permanece ultraconservadora, quando não reacionária. Frequentemente favorável à pena de morte e ferozmente contrário ao aborto, o neopentecostalismo rejeita, em nome da “defesa da família”, leis favoráveis a minorias lésbicas, gays, bissexuais e trans (LGBT+). Em Uganda, as igrejas evangélicas militam permanentemente em prol do endurecimento de uma legislação que já criminaliza a homossexualidade, reivindicando leis que autorizem “terapias de conversão” dedicadas a mudar a orientação sexual de pessoas LGBT+. No Malaui, na África do Sul e no Zimbábue, o discurso homofóbico e anti-imigração é amplificado por televangélicos que, entre os mais famosos, como o “profeta” Sheperd Bushiri, detêm fortunas colossais. A laicidade e o secularismo estão na mira dos evangélicos. Seja no Brasil, na Nigéria ou na Coreia do Sul, o discurso político está impregnado de referências religiosas muitas vezes hostis à modernidade e ao progresso. Para Valdemar Figueredo, professor de Ciência Política e teólogo brasileiro, o objetivo dos evangélicos é “retroceder, ir contra o Estado laico, a ciência autônoma, a importância das universidades, o pensamento livre, a condição da mulher, as questões de gênero, os direitos das minorias. São grupos medievais no pior sentido. Politicamente, isso muda tudo: já não se trata mais de uma discussão entre conservadores e progressistas, em um contexto democrático. A partir do momento em que o lema do governo é ‘Deus acima de tudo’, isso significa que tudo está em risco”. Encarnando a alternância à esquerda, o presidente mexicano, Andrés Manuel López Obrador, também não hesita em adotar a linguagem político-bíblica, proclamando-se “discípulo de Jesus Cristo” e aliando-se a um pequeno partido conservador, o Encuentro Social
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nio. Eles também foram chamados a dar particular importância aos sinais e prodígios do divino. Milagres, curas, “profetização” e “falar em línguas” (linguagem espiritual sobrenatural com a qual o fiel se comunica diretamente com Deus) são os grandes pilares dessa religião abertamente proselitista.3 Foi então que os círculos neopentecostais começaram a difundir a teologia da prosperidade, que faz da fé meio de obtenção de abastança financeira. A riqueza, portanto, passou a ser apresentada como um sinal de saúde espiritual, sem que haja motivo para condená-la (ao contrário, a pobreza é muitas vezes considerada uma punição divina). Os crentes são chamados a fazer doações regulares para apoiar sua Igreja. Doar dinheiro tornou-se, assim, um gesto profilático que pode afastar o mal, resolver problemas pessoais e permitir curas. Aqui e ali, retumbantes escândalos financeiros e morais macularam esse esplendor.4 Fiéis abusados procuraram a Justiça, e televangélicos como o famosíssimo Jimmy Swaggart, estrondoso perseguidor do mal diante das câmeras, tiveram de prestar atos de contrição por ter cedido à tentação da carne, o que inspirou o sucesso Jesus, He Knows Me [Jesus, Ele me conhece], da banda de rock Genesis. Mas a máquina estava funcionando. Aos poucos foram surgindo as transnacionais evangélicas. As trocas entre países aumentaram. Os missionários norte-americanos foram sucedidos por quadros locais, continuando o recrutamento de novos seguidores. Escolas, universidades, centros culturais e hospitais brotaram do solo: tudo deveria contribuir para a difusão da doutrina. No mundo inteiro, inclusive na França, onde o movimento conta quase 700 mil seguidores e continua crescendo,5 a força dos evangélicos reside em sua capacidade de sacudir velhas estruturas hierárquicas e mostrar pragmatismo. Eles constroem templos em qualquer lugar: um cinema desativado, um pequeno restaurante, uma garagem velha. Não há crise vocacional entre os pastores: enquanto a Igreja Católica luta para conseguir sacerdotes, qualquer evangélico pode assumir um ministério, basta um pouco de carisma e algumas cadeiras de plástico ao redor de um teclado elétrico e de uma Bíblia. A comunhão entre os evangélicos se fortalece pelo fato de que o rito é baseado na emoção: eles cantam, riem, choram com a evocação da crucificação de Cristo, entram em transe. A música é o elemento central da celebração, e seu acervo é imenso: gospel, rock cristão, country evangélico etc. Nessa dinâmica, a comunicação
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Iluminação Nós, cristãos dos Estados Unidos, saudamos a obediência de Donald Trump à Palavra de Deus sobre Jerusalém. [...] Biblicamente, como cristãos, estaremos perante o Todo-Poderoso e seremos responsáveis pelo que fazemos ou não por Israel e por nossos companheiros judeus. Laurie Cardoza-Moore, militante evangélica sobre a transferência da Embaixada dos Estados Unidos de Tel Aviv para Jerusalém, Haaretz, 6 dez. 2017.
Fé Mudamos a capital de Israel para Jerusalém. Isso é para os evangélicos. Você sabe, é incrível esta história: os evangélicos se regozijam com isso ainda mais do que os judeus. É verdade, é incrível! Donald Trump, em campanha em Oshkosh, Wisconsin, 18 ago. 2020. Heresia As forças ocidentais antichinesas tentam perturbar a estabilidade social de nosso país e até derrubar o poder político por meio do cristianismo. [...] Nós apoiamos fortemente o país para que ele traga à Justiça as raras ovelhas negras que se colocam sob a bandeira do protestantismo [evangélico] a fim de contribuir com a subversão da segurança nacional. Xu Xiaohong, presidente do Movimento Patriótico Protestante, uma organização de culto estatal ligada ao Partido Comunista Chinês (PCC), ao qual os protestantes chineses devem aderir, 11 mar. 2019 (La Croix, 18 mar. 2019).
Catecúmenos Estamos, com razão, muito mobilizados em relação ao islamismo, mas, nos bairros [populares franceses], seria bom prestarmos também um pouco de atenção no que fazem os evangelistas [sic], que estão amplamente presentes, são menos visíveis, muito proselitistas e ainda interferem no ensino. Laurence Rossignol, senador socialista, 15 out. 2019. Concílio Estamos muito honrados por estar de volta ao Reino da Arábia Saudita pela segunda vez em menos de um ano. Reunimo-nos com Sua Alteza Real, o príncipe herdeiro, Mohammed bin Salman, e outras autoridades para discutir terrorismo, paz, liberdade religiosa e direitos humanos. Joel Rosenberg, escritor israelo-norte-americano, após visita a Jidá à frente de uma delegação de evangélicos norte-americanos, em 10 de setembro de 2019 – quase um ano após o assassinato do jornalista Jamal Khashoggi por um comando saudita, em Istambul, e algumas semanas após a crucificação e decapitação de cerca de quarenta opositores sauditas.
(Encontro Social), liderado por cristãos evangélicos muito interessados em ajudar o presidente mexicano “em assuntos de vida e de família”. Em toda parte, os evangélicos marcam pontos. As relações entre as religiões são diretamente afetadas. Enquanto a Igreja Católica e os protestantes tradicionais dialogam regularmente com os diversos representantes do islã, os evangélicos, que apoiam o Estado de Israel, não escondem sua hostilidade aos muçulmanos, que muitas vezes são vistos simultaneamente como inimigos potenciais e como uma população a ser convertida. *Akram Belkaïd é jornalista do Le Monde Diplomatique ; Lamia Oualalou é jornalista e autora de Jésus t’aime! La déferlante
évangélique [Jesus te ama! A onda evangélica], Cerf, Paris, 2018. 1 S alvo indicação em contrário, as estatísticas citadas neste artigo foram retiradas de estudos publicados pelo Pew Research Center, um organismo norte-americano independente que dedica grande parte de suas atividades ao estudo das religiões nos Estados Unidos e em todo o mundo (www. pewresearch.org). 2 Ler Lamia Oualalou, “Les Évangélistes à la conquête du Brésil” [Os evangélicos conquistam o Brasil], Le Monde Diplomatique, out. 2014. 3 C f. Jean-Yves Carluer, L’évangelisation. Des protestants évangeliques en quête de conversions [Evangelização. Evangélicos protestantes em busca de conversões], Exelcis, Charols, 2006. 4 Ler Ingrid Carlander, “La foire aux miracles des télévangélistes américains” [Nos Estados Unidos, a feira dos milagres dos televangélicos], Le Monde Diplomatique, jun. 1988. 5 C f. Évangéliques de France, la course aux adeptes [Evangélicos da França, a corrida pelos convertidos], documentário de 52 minutos de Cyril Vauzelle, LF Production, Montreuil, 2016.
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PRÓ-ESTADOS UNIDOS, ANTICOMUNISTAS E HOSTIS À COREIA DO NORTE
Os evangélicos sul-coreanos na arena política Bastante conectados aos conservadores norte-americanos e defensores de um anticomunismo feroz, os evangélicos sul-coreanos foram desorientados pelo encontro, em junho de 2019, do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, com seu colega norte-coreano, Kim Jong-un POR KANG IN-CHEOL*
fevereiro de 2019. Com esse feroz anticomunista, último primeiro-ministro de Park, as igrejas protestantes viram-se então como as forças motrizes da direita radical. Que azar: após a derrota de seu partido nas eleições legislativas de 15 de abril, Hwang teve de renunciar.
PROGRESSISTAS ERAM MAIORIA Por muito tempo, os evangélicos conservadores da Coreia do Sul optaram por se manter longe das questões sociais e do debate político, mas, há trinta anos, começaram a intervir nas questões sociais e então a se imiscuir nos assuntos políticos. No início do século XX, a sociedade sul-coreana passou a viver uma competição feroz entre religiões, embora haja uma porcentagem excepcionalmente alta de pessoas que declaram não ter religião (mais da metade da população). Em 1945, quando o país se libertou da ocupação japonesa, ele tinha 100 mil protestantes, apenas 0,5% da população. Mas esse número cresceu rapidamente na década de 1950, sobretudo durante a Guerra da Coreia (1950-1953), a ponto de torná-los a segunda maior comunidade religiosa do país, logo após os budistas. Em 2015, os protestantes coreanos eram 9.676.000, de acordo com o serviço nacional de estatísticas da Coreia, o equivalente a 19,7% da população. Já a proporção daqueles que não declaram filiação religiosa passou de 49,6% em 1995 para 46,9% em 2005, antes de subir para 56,1% em 2015. Atualmente, a Igreja protestante sul-coreana administra seis canais de televisão, 109 universidades, 631 escolas primárias e secundárias e 196 estabelecimentos médicos. Ela possui 259 associações. 2 Sua presença também chegou ao Parlamento, onde a porcentagem de eleitos dessa denominação oscilou entre 31% e 41% nas últimas duas décadas. Além disso, as igrejas protestantes sul-coreanas têm um papel cada vez mais visível no cenário
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a primavera de 2020, quando a pandemia de Covid-19 ameaçava se espalhar pela Coreia do Sul, os evangélicos conservadores continuaram com suas reuniões diárias, exigindo a renúncia do governo e se recusando a substituir as cerimônias religiosas presenciais pelos cultos on-line. Ao contrário dos budistas e dos católicos, eles consideraram que estava em curso um ataque à “liberdade de religião” e aproveitaram para lançar uma ofensiva contra o presidente Moon Jae-in, acusado de ser “subordinado à China socialista” (onde o vírus surgiu), com a intenção de recuperar o terreno perdido entre a população. No outono de 2016, a sociedade sul-coreana viu-se cindida em dois campos. De um lado, manifestantes carregando velas acesas exigiam o impeachment da presidenta Park Geun-hye; de outro, manifestantes brandindo a Taegeukgi, a bandeira nacional, faziam a contramobilização, na qual as igrejas protestantes tiveram um papel central. O confronto terminou com a vitória esmagadora do movimento das velas, do qual participaram 17 milhões de cidadãos,1 e culminou na renúncia de Park, em 10 de março de 2017, que foi julgada e presa. Em maio seguinte, Moon Jae-in, que personificava o espírito das vigílias à luz de velas, foi eleito presidente da República. Apesar de seu baixo quórum, as manifestações Taegeukgi continuaram. Porém a espetacular reaproximação com a Coreia do Norte após os Jogos Olímpicos de Inverno de Pyeongchang, em fevereiro de 2018, causou grande turbulência. Ainda mais porque Donald Trump – eleito graças ao apoio dos protestantes conservadores dos Estados Unidos – teve um papel determinante para essa reaproximação. O movimento conservador recuperou a confiança com a chegada de Hwang Kyo-ahn à liderança do Partido da Liberdade da Coreia (PLC, que sucedeu ao partido Saenuri, da ex-presidente Park), em
internacional. Seus missionários começaram a atuar ali na década de 1980 e hoje são mais numerosos que os dos Estados Unidos. Em 2009, eram 20 mil; dez anos depois, 30 mil. No início da década de 1990, quase metade das cinquenta maiores igrejas protestantes do mundo (em número de fiéis) eram sul-coreanas. Durante o período colonial (19051945), sob a influência dos missionários vindos dos Estados Unidos, grande parte dos protestantes tornou-se conservadora, até fundamentalista. A partir da década de 1950, ocorreu uma série de cismas. O conservadorismo teológico combinou-se com o conservadorismo político, e o progressismo teológico com o progressismo político. No final desse processo, no início dos anos 1970, os progressistas representavam menos de 20% do conjunto dos protestantes.3 Eles se juntaram ao Conselho Nacional de Igrejas da Coreia (The National Council of Churches in Korea, NCCK) para estimular o movimento pela democracia e derrubar a ditadura. Por causa desse ativismo, até o final dos anos 1980 a imagem dominante do protestantismo no país era bastante progressista. O envolvimento de alguns evangélicos em movimentos sociais fortaleceu ainda mais essa reputação. No entanto, no final de 1989, os protestantes conservadores, até então dispersos, reuniram-se sob a égide do Conselho Cristão da Coreia (Christian Council of Korea, CCK), que renunciou à antiga doutrina que separava a Igreja do mundo secular. Desde o início, o CCK superou claramente o NCCK em número de fiéis e em recursos. Tanto que, no meio da década de 1990, aproveitando as dificuldades financeiras do NCCK, o CCK assumiu o controle e sufocou seu espírito. A partir dos anos 2000, as igrejas protestantes tornaram-se conservadoras, sem, no entanto, adentrar a arena política (em julho de 2020, o CCK tinha 55 igrejas, contra nove da NCCK).
Além disso, em janeiro de 2003, as forças lideradas pelo CCK realizaram duas vigílias de oração na praça da prefeitura de Seul, com a participação de dezenas de milhares de fiéis. Em seguida, em colaboração com grupos de direita, organizou no início de março um encontro com a presença de mais de 100 mil pessoas – uma estreia espetacular no cenário político, saudada com entusiasmo pelos partidos e organizações sociais reacionários. Alguns militantes de direita formaram um Partido Protestante; outros conservadores criaram o grupo Nova Direita Protestante. Em cinco anos, de 2003 a 2008, eles tiveram um sucesso significativo. Afirmando-se na oposição, atrapalharam a maioria das grandes reformas do governo democrata (2003-2008) de Roh Moo-hyun – chamado, assim como seu antecessor, de “esquerdista pró-Coreia do Norte”. Após uma intensa campanha, ajudaram a eleger Lee Myung-bak, um ancião da megachurch (megaigreja) de Seul (mais de 2 mil fiéis), como presidente da República (2008-2013), abrindo o caminho para uma era de conservadorismo. Na década de 2010, diversas ONGs protestantes de ultradireita foram criadas. A maioria de seus membros são jovens treinados para se tornarem bravos “guerreiros da internet”. As igrejas evangélicas sul-coreanas se destacam pelo ardor militante e pela agressividade. Alguns se envolveram inclusive em manipulação política, recebendo secretamente o apoio de serviços de inteligência do Estado ou produzindo e disseminando informações falsas, especialmente durante as campanhas eleitorais. Seus eixos políticos são bastante simples: preservar e reforçar o anticomunismo, os sentimentos pró-Estados Unidos e a hostilidade à Coreia do Norte; impedir a adoção de leis, decretos ou políticas que garantam os direitos de minorias sexuais, muçulmanos, objetores de consciência, migrantes e refugiados; recriar uma
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© Kim Hong-Ji/Reuters
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Os evangélicos conservadores da Coreia do Sul começaram a intervir nas questões sociais e então a se envolver em política tendência favorável ao regime que apoiam, especialmente durante as eleições; proteger e promover os interesses das igrejas no que diz respeito à gestão das escolas e instituições de proteção social, à tributação do clero etc. Se o anticomunismo já fazia parte da doutrina social do protestantismo sul-coreano na década de 1930, em 2013 a direita inventou um personagem que vai além: o “homossexual esquerdista pró-Coreia do Norte”. Ele se baseia na ideia de que muitas minorias sexuais são de esquerda, ou de que a esquerda se alinha com as concepções dessas minorias. Após o sequestro, em julho-agosto de 2017, de 23 missionários protestantes no Afeganistão e o assassinato de dois deles, outra teoria conspiratória apareceu: a “islamização da Coreia do Sul”, graças à aliança entre muçulmanos e “esquerdistas” – isto é, governos de centro e todos aqueles que não são de direita. A tese não se relaciona à influência do islã na sociedade sul-coreana – extremamente marginal, já que o país tem 150 mil muçulmanos em uma população de mais de 51 milhões de habitantes –, porém se liga à teologia messiânica do protestantismo sul-coreano.
Este último não deixou de lado sua obsessão pela Coreia do Norte. Desde meados da década de 1990, a direita protestante prepara a “conquista do Norte pela evangelização”, prevendo, em caso de colapso do regime – seu maior desejo –, a criação de mais de 10 mil igrejas em dez anos. Missionários são enviados para a fronteira sino-norte-coreana, e não é raro que grupos de desertores norte-coreanos, apoiados por partidários da direita protestante, enviem folhetos de propaganda criticando o regime de Pyongyang em grandes balões perto da fronteira. Essa militância próxima do militarismo baseia-se em diversas dinâmicas religiosas, transmitidas para muitas pessoas pela Igreja protestante conservadora norte-americana, sobretudo nos anos 1990 e 2000: a visão de um mundo dividido entre “nós” e “os terroristas”, o conceito de guerra espiritual, a fé escatológica fundada no pré-milenarismo – doutrina que afirma que Jesus retornará à terra, matará Satanás e reinará por mil anos. Isso permite oferecer aos crentes uma identidade de guerreiros de Deus, com a previsão da chegada do anticristo e seu domínio do mundo, ou seja, a luta final entre o Bem e o
Mal.4 Da mesma forma, o retorno do povo judeu a Jerusalém é visto como um sinal do fim dos tempos. Isso explica por que as manifestações da direita sul-coreana, desde 2017, costumam exibir a bandeira de Israel ao lado da Taegeukgi e, às vezes, das listras e estrelas norte-americanas. Até o ano passado, não era raro ver pastores recitando orações em inglês ou enviando mensagens de gratidão ao presidente dos Estados Unidos, que se empenhava em derrubar o regime norte-coreano. Em abril de 2003, em resposta a essas orações, o comandante em chefe das forças norte-americanas, Leon J. LaPorte, visitou o pastor David Yonggi Cho, fundador da Igreja Yoido (Yoido Full Gospel Church) e um dos mais poderosos líderes da direita protestante sul-coreana. Em agosto do mesmo ano, o presidente George W. Bush festejou, em uma carta ao CCK, “o espírito de amizade entre a Coreia do Sul e os Estados Unidos durante as grandes vigílias de oração realizadas em Seul”.5 Para os evangélicos sul-coreanos, os Estados Unidos são ao mesmo tempo a “pátria da fé”, que evangelizou e civilizou o povo (mais de 87% dos missionários protestantes que vieram para a Coreia entre 1893 e
1983 eram norte-americanos), os salvadores do país – o que por si só já merece elogios e gratidão – e os salvadores do mundo. Desse modo, consideram necessário tomar o país como exemplo e com ele manter, a qualquer custo, estreitas relações de cooperação. Segundo uma mentalidade religiosa e colonial que estabelece uma relação hierárquica com os Estados Unidos, o povo norte-americano é um “povo eleito”. Em compensação, para a direita protestante dos Estados Unidos, o protestantismo sul-coreano tem um valor periférico. Esse desequilíbrio não impediu que as relações se consolidassem. Existem mais de 4 mil igrejas protestantes sul-coreanas nos Estados Unidos, que efetivamente garantem uma geminação doutrinária. Visitas e reuniões mútuas são frequentemente organizadas. Pessoas formadas em escolas teológicas conservadoras norte-americanas ocupam cargos importantes na Coreia do Sul, como pastores ou professores em grandes igrejas ou em seminários de direita. Por meio desse pessoal familiarizado com os métodos norte-americanos, foram difundidas teologias como o fundamentalismo, o apocalipse pré-milenarista e a guerra espiritual.
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POR DENTRO DA REDE RECORD
SABOTAGEM DOS ACORDOS DE PAZ É compreensível que o histórico encontro entre Moon Jae-in, Kim Jong-un e Donald Trump em Panmunjom, no dia 30 de junho de 2018, tenha provocado certo constrangimento em suas fileiras. Embora tenham saudado a iniciativa, eles logo alertaram contra o que chamam de “oferta de paz enganosa de Pyongyang”. Como escreve Park Chansoo, colunista do diário de centro-esquerda Hankyoreh: “Os conservadores do Sul devem se sentir traídos, pois esperavam que Trump adotasse medidas de retaliação contra a Coreia do Norte”.6 Park se pergunta se a direita protestante não buscará escolher – assim como alguns intelectuais de extrema direita, que pedem aos conservadores uma linha política menos dependente dos Estados Unidos – uma doutrina que não dependa de Trump ou da direita protestante norte-americana. Por enquanto, porém, o encontro de Panmunjom serviu para nada mais além de fotos – o que é ótimo para a campanha eleitoral de Trump: nenhum progresso significativo foi feito nas relações entre os Estados Unidos e a Coreia do Norte, ou mesmo entre as duas Coreias. A atmosfera de exaltação e esperança que reinava na península pouco a pouco se dissipa, para grande deleite da direita protestante coreana. O sentimento de traição que ela experimentou em relação a Trump foi transformado em alívio. Em outubro de 2019, o pastor Jeon Kwang-hoon, presidente do CCK, lançou um Movimento de Luta Nacional pela Renúncia do Presidente Moon, instalando tendas em frente à Casa Azul, o palácio presidencial,
onde reúne com frequência milhares de pessoas, ao que chama de “assembleias do Eterno no deserto”. No entanto, após o surgimento de vários casos de Covid-19, a opinião pública tornou-se cada vez mais desfavorável a essas manifestações. As autoridades de Seul aproveitaram para encerrar a ocupação do local. Preso e depois libertado sob fiança em abril, o pastor não desistiu e, junto com a direita, retomou sua cruzada ideológica contra os três grupos de inimigos identificados nas últimas décadas: os partidos e organizações à esquerda, os hereges (o que inclui todas as outras religiões) e os homossexuais. Após o fracasso nas eleições legislativas de abril, a direita evangélica retomou sua campanha de balões de propaganda contra a Coreia do Norte. E com ainda mais zelo, já que Trump e os conservadores norte-americanos não mostram nenhuma disposição para negociar com Pyongyang. Em junho de 2020, entidades como os Combatentes pela Coreia do Norte Livre (Fighters for Free North Korea), uma organização de desertores norte-coreanos que vivem em Seul, e o grupo protestante Voz dos Mártires da Coreia (The Voice of the Martyrs Korea) lançaram panfletos de propaganda do outro lado da fronteira, apesar da opinião pública extremamente desfavorável a esse tipo de provocação. A campanha provocou o furor de Pyongyang, que a usou de pretexto para demolir o gabinete de ligação Norte-Sul criado após o encontro em Panmunjom.7 A direita protestante parece acreditar que essas ações agressivas não apenas se conformam com sua doutrina, mas também servem para manter seu impacto e presença política. No entanto, parece claro que o futuro de todas as igrejas protestantes coreanas está obscurecido por essa política de ódio que apenas reforça seu isolamento social.
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Não admira que os evangélicos dos dois países pareçam irmãos gêmeos: forte participação eleitoral, coalizão com forças políticas de direita, anticomunismo, discriminação contra homossexuais, rejeição de refugiados e imigrantes, posições pró-Israel e antimuçulmanas etc. Isso sem falar no apoio à pena de morte, que as diferencia de outras igrejas ocidentais. No entanto, existem algumas questões políticas que a direita protestante sul-coreana aborda com menos frequência e com menos paixão do que sua contraparte do outro lado do Pacífico, como o direito ao aborto, a pesquisa com células-tronco embrionárias, as drogas, a pornografia e o feminismo. A direita protestante sul-coreana não participa do debate sobre o ensino do criacionismo ou sobre a oração nas escolas públicas. E, enquanto os militantes dos Estados Unidos privilegiam a luta contra o islã após os ataques do 11 de Setembro, os sul-coreanos continuam obcecados pelo confronto com o vizinho do Norte.
*Kang In-Cheol é professor da Universidade Hanshin (Coreia do Sul) e autor de Protestantismo coreano e anticomunismo (em coreano), Jungsim, Seul, 2007. 1 “ Ler Sun Ilk-kwon, “‘Révolution des bougies’ à Séoul” [Em Seul, a “Revolução das Velas”], Le Monde Diplomatique, jan. 2017. 2 “ Religião na Coreia – 2018”, relatório do Ministério da Cultura, Esportes e Turismo (em coreano), Seul, 2018. 3 “ Kang In-Cheol, Resistência e rendição: regimes militares e religião (em coreano), Hanshin University Press, Osan, 2013. 4 “ Ler Ibrahim Warde, “Il ne peut y avoir de paix avant l’avènement du Messie” [Não pode haver paz antes da chegada do Messias], Le Monde Diplomatique, set. 2002. 5 Carta publicada no site do CCK, 2003. 6 Park Chansoo, “Do conservadorismo pró-Estados Unidos ao conservadorismo pró-Japão” (em coreano), Hankyoreh, Seul, 11 jul. 2019. 7 Ler Martine Bulard e Sun Ilk-kwon, “La politique du rayon de soleil” [A política do raio de sol], Le Monde Diplomatique, jun. 2018.
O amém à segunda maior TV brasileira Nada melhor que uma rede de televisão para promover sua Igreja e um rebanho fiel para turbinar os rendimentos de sua empresa audiovisual... POR ANNE VIGNA*, ENVIADA ESPECIAL
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ão cinco e meia da manhã, na sede do 22º Batalhão da Polícia Militar do Rio de Janeiro, e membros de uma equipe de televisão vestem coletes à prova de balas. Entre eles está o apresentador de jornalismo Ernani Alves, do programa Cidade Alerta Rio, que vai ao ar à tarde, de segunda a sábado. E do que ele trata? Do crime, visto por todos os ângulos possíveis: durante duas horas, sem nenhuma ordem ou hierarquia, seguem-se reportagens que vão do mais sórdido estupro até um simples roubo. O tom é sempre sensacionalista, e os mocinhos estão sempre de uniforme. O Cidade Alerta é o programa de maior audiência da Record, segunda maior emissora de TV do Brasil em termos de cobertura territorial. De acordo com um relatório da ONG Andi – Comunicação e Direitos, elaborado em parceria com o Ministério Público Federal,1 o programa é recordista em infrações à lei: desrespeito à presunção de inocência e a decisões judiciais, exposição de menores, incitação ao crime, discurso de ódio e preconceito, violação ao direito ao silêncio, tortura psicológica etc. Para Olívia Bandeira, antropóloga e coordenadora do coletivo de comunicação Intervozes, “seu discurso é ‘bandido bom é bandido morto’. Eles ignoram a violência policial e defendem intervenções agressivas. Em suma, o mesmo discurso sustentado há anos pelo presidente Jair Bolsonaro”. A grade de programação da Record, porém, não se limita a “bandidos” e estupradores: ela também conta com os pastores da Igreja Universal do Reino de Deus, que, em intervalos regulares, convidam os espectadores a orar, enquanto meditam
sobre o drama que acabaram de ver. Isso porque a Record pertence a Edir Macedo, fundador e bispo dessa igreja, a terceira maior Igreja evangélica do Brasil (em número de fiéis), presente em 95 países. Sob uma aparência ascética, Edir Macedo, de 75 anos, é na verdade um poderoso homem de negócios, cujo patrimônio, em 2015, foi avaliado pela revista Forbes em R$ 1,9 bilhão. Em 1977, quando criou seu primeiro templo em uma agência funerária desativada, Edir Macedo logo se interessou em chegar ao rádio, depois à TV, para atrair fiéis. Em 1989 comprou a Record, criada em 1953, porém endividada e mal administrada, instando seus fiéis a contribuir para levantar os US$ 45 milhões de que precisava. A justiça debruçou-se sobre esse caso durante trinta anos, até que ele prescreveu, em 2019, sem que nunca se conseguisse determinar a legalidade da operação. “Edir Macedo vendeu aos fiéis a ideia de ter uma televisão evangélica, livre de pornografia e de álcool. Mas, ao adquiri-la, fez dela uma TV comercial como qualquer outra, cuja meta era destronar a Rede Globo”, a maior do país, explica o jornalista Gilberto Nascimento, autor de uma investigação sobre Edir Macedo. 2 No início da manhã e tarde da noite, a programação da Record é reservada exclusivamente aos cultos da Igreja Universal. Esse tempo de antena não é gratuito, e a estrutura evangélica carismática é um cliente generoso da Record: embora relegada aos horários menos nobres, a veiculação desses programas representaria 30% da receita do canal, um
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Imagem do Templo de Salomão, da Igreja Universal do Reino de Deus, ligada à TV Record Em 2019, com o início do mandato de Jair Bolsonaro, o grupo Record passou a ser o grande beneficiário dos investimentos em publicidade do governo federal, de acordo com uma investigação da Pública, Agência de Jornalismo Investigativo.3 Até então, esse orçamento era distribuído em função da audiência. Em 2019, a Record recebeu R$ 30 milhões em publicidade, muito mais do que duas outras igrejas evangélicas: R$ 741 mil para as mídias da Sara Nossa Terra e R$ 472 mil para a Assembleia de Deus. Já a Rede Globo passou de 48,5% do investimento publicitário do governo federal em 2007 para 16,3% em 2019. Mesmo assim, continua sendo o canal de televisão a que os brasileiros mais assistem, com 35% da audiência. A Record, que conta com uma média de 13,1% dos telespectadores, viu a verba pública que recebe do Estado passar de 26,6% em 2017 para 42,6% em 2019. O apoio da Record à candidatura presidencial de Jair Bolsonaro foi tão pouco discreto que chegou a ser investigado pela Justiça Eleitoral, que acabou não punindo o candidato. Desconfortável nos debates, Bolsonaro simplesmente se recusou a enfrentar seu concorrente no segundo turno, Fernando Haddad, do PT. Ele também não participou do último debate do primeiro turno com os outros sete candidatos, justificando a ausência por uma “indisposição” após a facada que sofrera um mês antes. No entanto, no mesmo horário em que esse debate presidencial era realizado na Rede Globo, a Record transmitia uma entrevista exclusiva de 30 minutos com Jair Bolsonaro. “Ele teve a oportunidade de falar sobre suas ideias e atacar seus adversários sem
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maná financiado pelos fiéis da Igreja. Assim, em dez anos, cerca de R$ 2,3 bilhões foram transferidos da Universal para a Record, embora os programas passem muito tarde, em um horário normalmente muito barato. Para Nascimento, só a ausência de regulamentação da mídia no Brasil pode explicar tal relação: “Edir Macedo justifica a locação de horários à Universal garantindo que a Record é independente da Igreja e que não há nenhuma razão para que ela não pague. Exceto o fato de que isso não é verdade: a Record não é independente da Universal”. Em trinta anos, o grupo Record cresceu ao lado da Igreja Universal, que, em 2010, segundo o censo religioso realizado pelo IBGE, tinha 1,8 milhão de fiéis, mais de 5 mil templos e 10 mil pastores no Brasil (ler artigo na pág. 14). O grupo Record tornou-se um império midiático com uma rede de rádios, dezessete canais de televisão, quatro portais de internet, entre eles uma plataforma de vídeos evangélicos (UniverVideo) e o jornal Correio do Povo, que tem a nona maior tiragem do Brasil. O grupo também é dono de 49% do capital do Banco Renner e administra uma centena de empresas ligadas à logística da produção de conteúdo audiovisual (transporte, seguro, alimentação etc.). Por sua vez, a Igreja possui um grupo de 64 rádios (Rede Aleluia), que cobrem 75% do território brasileiro, uma editora (Unipro), uma gravadora (Line Records), uma TV via internet e um jornal gratuito (Folha Universal), com tiragem diária de 2 milhões de exemplares – enquanto o maior jornal pago do Brasil, a Folha de S.Paulo, chega a 330 mil exemplares...
que houvesse ninguém para contestá-lo. Para Bolsonaro, que tinha apenas 10 segundos de tempo de antena no horário oficial, por pertencer a um pequeno partido, essa entrevista foi um presente”, avalia Mauricio Stycer, colunista e especialista em mídia da Folha de S.Paulo. Poucos dias antes dessa entrevista “caída do céu”, Edir Macedo havia declarado seu apoio a Bolsonaro nas redes sociais.
“A Igreja Universal, a TV Record e o PRB, apesar de suas notórias ligações, geralmente se apresentam como entidades independentes” Quando se tornou dono da Record, Edir Macedo imediatamente entrou no jogo político, primeiro apoiando candidatos a cargos locais em São Paulo, em seguida candidaturas federais e presidenciais. Em 2005, durante o primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), ele fundou um partido político, os Republicanos (PRB), que logo entrou no governo. “Edir Macedo apoiou todos os governos, qualquer que fosse sua linha política”, resume Suzy dos Santos, professora de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. “Ele lutou contra Lula até a vitória, quando então seu partido se tornou parte da coalizão governista. Ele também governou com Dilma Rousseff até sua destituição, em 2016, quando, em nome de Deus e da família, os deputados de seu partido votaram pelo impeachment. Imediata-
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mente eles encontraram um lugar no governo de Michel Temer, vice-presidente de Dilma, que a sucedeu. Agora, com Jair Bolsonaro, a proximidade ideológica é muito mais forte.” No livro que escreveu com a colega Janaine Aires sobre as relações entre a mídia e a política,4 Suzy mostra que a imensa maioria dos eleitos pelo PRB são membros da Igreja Universal ou figuras midiáticas do grupo Record, quando não as duas coisas ao mesmo tempo: “A Igreja Universal, a TV Record e o PRB, apesar de suas notórias ligações, geralmente se apresentam como entidades independentes. Na verdade, o grupo Record é um poderoso trampolim eleitoral para o partido”. Em 2006, o PRB conseguiu eleger apenas um deputado federal. Agora tem a oitava bancada parlamentar, com 32 deputados: catorze deles foram ou ainda são figuras do grupo Record. O partido também governa a cidade do Rio de Janeiro desde 2016, sob a liderança de Marcelo Crivella, ex-ministro de Dilma, sobrinho de Edir Macedo, bispo da Universal e cantor gospel – profissão que lhe garantiu inúmeras aparições nas mídias do grupo. Por fim, o presidente do PRB, Marcos Pereira, que por muito tempo dirigiu a Record e foi ministro da Indústria do governo Temer, é agora vice-presidente da Câmara dos Deputados, a cuja presidência concorrerá em 2021 – um cargo-chave no Brasil, já que todos os processos de impeachment presidencial passam por ele. Com Pereira no comando, Bolsonaro teria pouco com que se preocupar em relação aos cerca de cinquenta processos que já foram iniciados contra ele. Em março deste ano, dois filhos do chefe de Estado, Flavio Bolsonaro (senador) e Carlos Bolsonaro (vereador do Rio de Janeiro), entraram no PRB, assim como sua mãe, Rogéria Braga, cotada como vice de Crivella nas eleições municipais de 2020. A aliança das famílias Bolsonaro e Macedo seria então oficialmente selada, na cidade dominada pelo Cristo Redentor. *Anne Vigna é jornalista (Rio de Janeiro).
1 “ Violações de direitos na mídia brasileira”, Andi – Comunicação e Direitos, em parceria com o coletivo Intervozes e a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, Brasília, 2016. 2 O Reino, Companhia das Letras, São Paulo, 2019. 3 M ariama Correia e Bruno Fonseca, “Governo gastou mais de R$ 30 milhões em rádios e TVs de pastores que apoiam Bolsonaro”, Pública, São Paulo, 15 jun. 2020. Disponível em: apublica.org. 4 Janaine Aires e Suzy dos Santos, Sempre foi pela família : mídias e políticas no Brasil, Mauad, Rio de Janeiro, 2017.
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“FUNDAMENTALISMO DE COLARINHO-BRANCO”
A “República Pentecostal” da Nigéria Qualquer pretensão presidencial na Nigéria está obrigada a conciliar favores de igrejas tão ricas quanto influentes, inclusive os candidatos muçulmanos... POR ANOUK BATARD*
“campos de redenção” e “cidades sagradas” reúnem regularmente dezenas e até centenas de milhares de fiéis. Além de espaços dedicados ao culto, essas empresas religiosas transnacionais possuem centros de formação teológica, maternidades, clínicas, veículos de comunicação, escolas e até universidades.
UNIVERSIDADES Assim, nesse país cujos quase 200 milhões de habitantes se dividem igualmente entre cristãos e muçulmanos, pode-se observar a organização de um discurso público impregnado de pentecostalismo. O estilo pentecostal está tanto no universo da cultura popular (cinema, música, stand-up
comedy, reality shows, talk shows) como no mundo dos negócios, da educação e da administração pública, e até em esferas mais altas do Estado. O papel político de pastores e instituições cristãs é tal que alguns estudiosos apresentam o país como uma “República Pentecostal”.2 Esse “fundamentalismo de colarinho-branco”, nas palavras do sociólogo Ebenezer Obadare,3 surgiu na década de 1970, quando a Nigéria se beneficiou do boom do petróleo. Milionários surgiram como que por encanto e não desapareceram com a crise que veio depois: uma crise econômica, social e política tão profunda quanto duradoura. Naquele momento, o discurso neopentecostal
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a Nigéria, epicentro do despertar cristão na África e no mundo, o neopentecostalismo, comumente chamado de cristianismo renascido (born again), nutre a renovação evangélica. Potência demográfica e econômica, esse país da África ocidental produziu um número significativo de pastores ricos e famosos no mundo inteiro. Entre eles, David Oyedepo, bispo da Igreja da Fé Viva, cuja fortuna foi avaliada em US$ 150 milhões em 2015, e Chris Oyakhilhome, do Ministério Internacional dos Crentes do Mundo do Amor, igreja mais conhecida pelo nome de Embaixada de Cristo, que possui de US$ 30milhões a 50 milhões em bens pessoais.1 Suas “megaigrejas”,
ofereceu elementos explicativos para o enriquecimento de uma minoria, estigmatizando os usos maléficos da feitiçaria pelas elites políticas e econômicas. Diante dos múltiplos escândalos de corrupção, a doutrina da santidade, que prega o ascetismo, andava de mãos dadas com a retórica da moralização da vida pública em voga. O cristianismo renascido inscreveu-se, portanto, em um movimento mais geral de desconfiança em relação à política e de crítica do poder. Concomitantemente e em condições bastante semelhantes, outro movimento religioso se desenvolveu, assentado em uma reforma moral: o islã salafista. Ancorada nos campi universitários, a renovação carismática foi trazida por jovens urbanos instruídos das classes médias – que estavam estudando e se preparando para entrar no mercado de trabalho em um contexto de desengajamento e privatização do Estado, acompanhado de discursos que exaltavam o sucesso e a “resiliência” empresarial. Justamente, o neopentecostalismo floresceu no final da década de 1980, substituindo a doutrina da santidade pela doutrina da prosperidade, vinda dos Estados Unidos. Referindo-se ao que também é conhecido como teologia da abundância, a pesquisadora Ruth Marshall-Fratani menciona uma “mistura de textos bíblicos e psicologia popular norte-americana do estilo ‘autoajuda’ (self-help) e ‘autonomia pessoal’ (personal empowerment)”, que responde às aspirações de ascensão social que os diplomas não conseguem mais garantir.4
RENASCIMENTO ESPIRITUAL NA PRISÃO
David Oyedepo é bispo da Igreja da Fé Viva e teve sua fortuna foi avaliada em US$ 150 milhões, em 2015
Inicialmente, a ideia de renascimento (born again) remetia a uma busca por autorrenovação em um nível individual (na tradição do protestantismo clássico), mas então ela passou facilmente a ser aplicada no nível da nação nigeriana, considerada corrompida e traída por aqueles que a controlavam desde a independência, ocorrida em outubro de 19605 – o que significava essencialmente os militares. O retorno ao regime civil começou com a eleição, em 1999, de Olusegun Obasanjo, ex-chefe de Estado que era então o único cristão desde a guerra civil (1967-1970) a ter exercido o poder (1976-1979). Duas décadas depois, portanto, ele contou especialmente com o movimento do cristianismo renascido para seduzir o eleitorado cristão (anglicanos, protestantes, católicos e aqueles que haviam aderido ao cristianismo renascido) e para construir sua legitimidade como presidente. Durante a campanha eleitoral, ele falou sobre sua experiência de renascimento
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O primeiro “mártir” Em 1820, Assaad Shidyaq, jovem cristão maronita do Monte Líbano, conheceu Jonas King, missionário vindo dos Estados Unidos, e se converteu ao protestantismo – algo muito longe de ser seguro. O Oriente Médio, sob domínio otomano, era então atravessado por prosélitos evangélicos. Lá eles abriram escolas com o aval mais ou menos implícito da Sublime Porta, que tentava dividir as várias igrejas cristãs. Em reação, o patriarca maronita Youssef Hobaich publicou um édito estipulando que qualquer conversão a outra religião acarretaria excomunhão automática. Assaad foi banido de sua comunidade e detido por vários anos no mosteiro de Qannoubine, até sua morte, em 1830. Segundo outra versão, as autoridades religiosas maronitas teriam decidido emparedá-lo vivo em uma caverna. Desnutrido, ele teria enlouquecido antes de morrer. De qualquer forma, Assaad Shidyaq é reconhecido por muitas igrejas evangélicas ocidentais como o primeiro “mártir” protestante no Oriente Médio. Seu terrível destino forçou seu irmão, Ahmad Faris Chidyaq, a abandonar o Líbano e viver em outros países mediterrâneos (Egito, Malta, Tu-
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espiritual na prisão, após ter sido vítima da repressão perpetrada pelo ditador Sani Abacha, que ficou no poder de 1993 até sua morte, em 1998. Muitos cristãos viram no retorno de Obasanjo pelas urnas uma expressão da vontade divina. Seus sucessores, incluindo muçulmanos, adotaram a mesma estratégia, bajulando o eleitorado evangélico. O contexto de democratização mostrou-se, portanto, propício ao desenvolvimento do pentecostalismo no espaço público, bem como à integração do novo cristianismo ao próprio Estado. A partir de então totalmente engajados na conquista do poder, líderes cristãos renascidos passaram a ser cortejados por políticos, aconselhar os detentores do poder e ocupar cargos no governo. A afiliação religiosa também se tornou um critério determinante no recrutamento dentro do aparelho estatal (embora secular), em seus diversos níveis. Essa “pentecostalização da presidência”, para usar a expressão de Obadare, continuou sob os mandatos presidenciais do muçulmano Umaru Musa Yar’Adua (2007-2010) – que, por exemplo, concedeu honras nacionais a pastores famosos – e do cristão Jonathan Goodluck (20102015), uma postura que pretendia responder ao medo de islamização do país. Esse medo, disseminado entre o conjunto dos cristãos nigerianos, decorre do sentimento de terem sido excluídos do poder durante as longas décadas após a independência por militares muçulmanos originários do norte do país e é alimentado pelos debates recorrentes em torno do estabelecimento da xaria em certos estados federados, pela adesão da Nigéria, em 1986, à Organização para a Cooperação Islâmica e pelos frequentes episódios de violência inter-religiosa. Outra razão, histórica, está ligada a um trauma presente na memória coletiva, o do Califado de Sokoto, que, no século XIX, constituiu um Estado próspero baseado na escravidão, em particular das populações do centro da atual Nigéria, que eram então animistas e depois se tornaram cristãs.6 Não se pode falar, porém, em voto cristão, nem mesmo pentecostal. A cada eleição, as elites evangélicas dividem seus apoios, que podem beneficiar inclusive um candidato muçulmano. Durante a eleição de 2011, Muhammadu Buhari, muçulmano, associou-se a pastores famosos, mas a estratégia não trouxe os resultados esperados contra Jonathan Goodluck, ele próprio apoiado por outras figuras evangélicas. Mas, em 2015, Goodluck perdeu para Buhari, apesar do apoio que tinha entre grupos de interesse cristãos e líderes pente-
costais. Para fortalecer sua base política, Buhari nomeou como vice-presidente Yemi Osinbanjo, pastor da Igreja mais poderosa da Nigéria, a Igreja Cristã Redimida de Deus, e amigo do ex-governador (muçulmano) do estado de Lagos, o ainda muito influente Bola Ahmed Adekunle Tinubu. Procurador-geral, advogado de direito empresarial e professor de Direito, formado pela prestigiada London School of Economics, o pedigree universitário do vice-presidente lembra que muitos pastores de igrejas poderosas também vêm do mundo acadêmico.7 Para a Associação Cristã da Nigéria, que reúne as igrejas das diferentes correntes cristãs presentes no país e atua como lobby político, distinguir “cristãos autênticos, verdadeiramente renascidos, preenchidos pelo Espírito Santo”, é um verdadeiro desafio.8 Essa retórica passa pela estigmatização ou, para usar o vocabulário dos renascidos, pela “demonização” dos outros, sejam eles cristãos seculares ou, pior, muçulmanos – sem mencionar aqueles acusados de praticar bruxaria.
nísia). Lá, ele seguiu uma carreira prolífica como escritor, jornalista, tradutor e acadêmico, antes de se estabelecer definitivamente em Istambul, após uma estadia em Paris, onde fez amizade com Victor Hugo.
Pastor libertado Em outubro de 2018, um tribunal turco julgou o pastor norte-americano Andrew Brunson, processado por “espionagem” e “apoio a organizações terroristas” – neste caso, o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) e a rede de Fethullah Gülen. A prisão do pregador da Igreja Evangélica Presbiteriana, ocorrida em 2016 e depois convertida em prisão domiciliar, desencadeou uma grave crise diplomática entre a Turquia e os Estados Unidos, com o governo Trump chegando a impor sanções financeiras às exportações turcas. Embora condenado a três anos e um mês de prisão, Brunson foi imediatamente libertado, considerando-se o tempo que passou atrás das grades e seu comportamento durante o julgamento, no qual declarou: “Sou um homem inocente. Amo Jesus, amo a Turquia”. Recebido alguns dias depois na Casa Branca, ele fez uma oração pelo presidente, dizendo em voz alta, com
Mas, assim como durante as eleições presidenciais, as elites cristãs nigerianas sabem compor alianças amplas, incluindo, se necessário, seus pares muçulmanos. A homossexualidade é frequentemente empunhada como um espantalho pelo poder político, e o reforço de sua criminalização encontra o ruidoso apoio da imprensa e de todas as elites religiosas. Já as acusações levantadas contra pastores por agressão sexual ou tráfico de pessoas9 têm bem menos ressonância. *Anouk Batard é jornalista e pesquisadora. 1 “ Les pasteurs les plus riches du Nigéria” [Os pastores mais ricos da Nigéria], Forbes Afrique, 28 nov. 2015. 2 E benezer Obadare, Pentecostal republic: religion and the struggle for state power in Nigeria [República pentecostal: religião e luta pelo poder estatal na Nigéria], Zed Books, Londres, 2018. 3 Ebenezer Obadare, “White-collar fundamentalism: interrogating youth religiosity on Nigerian university campuses” [Fundamentalismo de colarinho-branco: uma investigação da religiosidade dos jovens nos campi universitários nigerianos], The Journal of Modern African Studies, Cambridge, v.45, n.4, 2007.
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uma mão apoiada no ombro de Donald Trump e cabeça baixa: “Peço ao Senhor que lhe dê sabedoria para conduzir este país rumo ao Bem”.
Missão trágica Novembro de 2018. John Chau, norte-americano de 26 anos, desembarca na Ilha de Andaman, onde a tribo Sentinela vive isolada do mundo. O missionário neopentecostal é saudado com uma revoada de flechas, uma das quais perfura sua Bíblia. Sem desanimar, ele volta alguns dias depois, porém desta vez tem o corpo fatalmente ferido. Diversas igrejas evangélicas dos Estados Unidos prestaram homenagem ao rapaz, que imediatamente passou a ser chamado de “mártir”. Para a organização All Nations, que prepara e treina futuros missionários, “o privilégio de compartilhar o Evangelho muitas vezes tem um preço alto”. A instituição, pela qual passou John Chau, afirma “orar para que o sacrifício de John dê frutos no tempo certo”. Patrick Chau, pai da vítima, embora também de cultura neopentecostal, declarou que seu filho “era uma criança inocente [...] que morreu por uma consequência lógica de sua visão extrema do cristianismo”.
4 C f. Ruth Marshall-Fratani, “Prospérité miraculeuse. Les pasteurs pentecôtistes et l’argent de Dieu au Nigeria” [Prosperidade milagrosa. Os pastores pentecostais e o dinheiro de Deus na Nigéria], Politique Africaine, Paris, v.82, n.2, 2001. 5 C f. J. D. Y. Peel, “The Politicization of Religion in Nigeria: Three Studies” [A politização da religião na Nigéria: três estudos], Africa: Journal of the International African Institute, Cambridge, v.66, n.4, 1996. 6 C f. “Au Nigeria, le fantasme d’un ‘complot peul’ pour islamiser le pays” [Na Nigéria, o fantasma de um “complô fulâni” para islamizar o país], Le Monde, 28 jun. 2019. 7 C f. Afe Adogame, “How God became a Nigerian: Religious impulse and the unfolding of a nation” [Como Deus se tornou nigeriano: impulso religioso e o desdobramento de uma nação], Journal of Contemporary African Studies, Londres, v.28, n.4, 2010. 8 C f. Afe Adogame, “The politicization of religion and the religionization of politics in Nigeria” [A politização da religião e a religiosidade da política na Nigéria]. In: C. J. Korieh e G. U. Nwokeji (orgs.), Religion, history, and politics in Nigeria [Religião, história e política na Nigéria], Lanham, University Press of America, 2005. 9 C f. “Nigeria has #MeToo moment after popular pastor is accused of rape” [Nigéria tem seu momento #MeToo após pastor famoso ser acusado de estupro], Reuters, 1º jul. 2019, e Corentin Cohen e Precious Diagboya, “Le rôle des acteurs religieux dans la traite d’êtres humains entre le Nigéria et l’Europe” [O papel dos atores religiosos no tráfico humano entre a Nigéria e a Europa], Observatório Internacional da Religião, boletim n.18, abr. 2018.
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AS REDES SOCIAIS VÃO SALVAR A DEMOCRACIA
Manipulação digital na África No início de junho, o Facebook fechou 446 páginas, 96 grupos e mais de duzentas contas do Instagram administradas pela companhia franco-tunisiana URéputation. A empresa havia tentado influenciar, por meio da divulgação de informações falsas, eleições da África francófona. Laboratório global das manipulações digitais, o continente reagiu de diferentes maneiras POR ANDRÉ-MICHEL ESSOUNGOU*
serviços da Cambridge Analytica. Recorrendo a especialistas em roubo de informações digitais (hackers), ela divulgou nas redes sociais o prontuário médico do candidato Buhari, então com 72 anos, dando a entender que sua saúde não permitiria que exercesse o poder. Ela também produziu vídeos mostrando assassinatos de civis atribuídos a islamitas, sugerindo que uma vitória do candidato de oposição, muçulmano, provocaria uma escalada de violência. Apesar desses esforços, dessa vez o candidato de oposição venceu.
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or muito tempo colocadas no museu das utopias, as eleições democráticas se disseminaram na África no decorrer das três últimas décadas. Mas, à medida que o continente se conecta à internet, o risco de manipulação digital cresce, principalmente por meio das redes sociais. A ameaça parece ainda mais grave na medida em que passa muitas vezes despercebida. Um detalhe confirma essa ameaça: foi na África, principalmente na Nigéria e no Quênia, que a Cambridge Analytica testou suas técnicas fraudulentas de obtenção de dados utilizadas no referendo sobre o Brexit e na eleição presidencial norte-americana em 2016.1 Os eleitores desses países serviram, sem seu conhecimento, como cobaias de uma estratégia em três etapas. Em primeiro lugar, recolher, principalmente no Facebook, dados pessoais de milhões de cidadãos: idade, sexo, preferências culturais e políticas. Em seguida, analisar essas informações para definir microcategorias. Enfim, orientar as escolhas individuais, com auxílio de algoritmos, por meio de uma propaganda feita sob medida, em plataformas digitais.2 Dois ex-funcionários da Cambridge Analytica, Brittany Kaiser e Christopher Wylie, revelaram que, nas eleições presidenciais de 2013 e 2017 no Quênia, a empresa britânica, que assessorava o chefe de Estado, Uhuru Kenyata, coletou dados pessoais dos eleitores e, considerando esses perfis, desenvolveu uma propaganda baseada em mentiras e exageros.3 Na Nigéria, seis semanas antes da eleição presidencial de 2015, um bilionário local que, segundo as declarações de Wylie, estava “apavorado com a possível vitória do candidato de oposição”, Muhummadu Buhari, ofereceu, pagando US$ 2 milhões, os
O FIM DE UMA LONGA PAIXÃO A plataforma mais popular do continente africano, o Facebook, com mais de 200 milhões de usuários, abriga todo tipo de manipulação. Enquanto criava páginas com identidades falsas, uma empresa chamada Archimedes Group, com base em Tel Aviv (Israel) e que depois desapareceu, apoiou candidatos nas eleições presidenciais no Togo, na República Democrática do Congo (RDC), na Nigéria e na Tunísia em 2019.4 Cerca de 2,8 milhões de usuários foram visados. Na Zâmbia e em Uganda, com a ajuda de funcionários da gigante das telecomunicações chinesa Huawei, os governos organizaram a vigilância eletrônica de personalidades da oposição e da sociedade civil organizada.5 Desse modo, em Uganda, a polícia teve acesso à conta de WhatsApp de Bobi Wine, músico popular e opositor do presidente Yoweri Museveni. Esses roubos permitiram às autoridades barrar a mobilização dos adversários. A sucessão de revelações desse gênero marca o fim de uma longa paixão. De fato, as redes sociais foram por muito tempo percebidas como catalisadores da participação política, vetores da ampliação dos modos de mobilização e locais de expressão
para os sem voz em todo o continente negro.6 Em 2007, Goodluck Jonathan havia anunciado, no Facebook, sua candidatura a um novo mandato presidencial na Nigéria, um ato inédito que marcava a entrada de atores políticos africanos na comunicação política moderna. Durante a crise pós-eleitoral do Quênia em 2008, jovens engenheiros e blogueiros criaram uma plataforma, a Ushahidi, espécie de cartografia colaborativa das violências ocorridas após as eleições.7 O sonho dos profetas da “tecno-utopia” parecia ter se tornado realidade. No entanto, desde a metade da década passada, muitos dirigentes africanos denunciaram manipulações digitais para tentar controlar as redes sociais. Em 2006, o governo etíope bloqueou o acesso a certos sites, inaugurando essa prática liberticida na África subsaariana. A mesma medida seria adotada no Chade, no Burundi, em Uganda, na RDC, em Camarões e no Togo. Entre 2016 e 2019, 22 países africanos interromperam ou diminuíram a velocidade de acesso à internet, geralmente em períodos eleitorais. Paralelamente a esses cortes, os líderes de oposição e militantes da sociedade civil foram presos ou tiveram prisões domiciliares decretadas.8 Mas esse tipo de repressão tem um custo financeiro não negligenciável, visto que setores significativos da vida econômica dependem cada vez mais da internet. Os cortes teriam custado mais de US$ 2,1 bilhões aos países da África subsaariana em 2019.9 A reputação do país que adota essas medidas que atentam contra a liberdade de expressão sofre igualmente. Mais recentemente, os governos africanos decidiram taxar o acesso às redes sociais. Em Uganda, agora é preciso desembolsar 200 xelins ugandenses (R$ 0,30) por dia para ter aces-
so ao Facebook, ao Twitter ou ao WhatsApp. No Benin, o acesso custa 5 francos CFA (R$ 0,05) por megabite.10 Essa taxação agrava as desigualdades de acesso, excluindo ainda mais as classes desfavorecidas. Além disso, é difícil ver como ela pode diminuir as manipulações digitais na medida em que são feitas geralmente por sociedades que dispõem de grandes recursos financeiros e agem do exterior. Por iniciativa de associações e de legisladores nacionais, leis restringem ou dirigem agora a coleta dos dados pessoais em 25 países africanos. Resta o verdadeiro desafio das manipulações on-line. Na África do Sul, a comissão eleitoral emprega centenas de pessoas para rastrear as fraudes e sensibilizar os usuários. Mas ainda é preciso que as instituições nacionais disponham de um poder real de controle e de sanção contra companhias como a Cambridge Analytica ou ainda gigantes, como Facebook e Twitter. Assim como a carência e o custo elevado da telefonia fixa haviam favorecido a penetração do celular na África por volta dos anos 2000, a carência e o custo elevado dos computadores favoreceram a entrada dos smartphones uma década depois. Estes se tornaram o principal meio de acesso à internet e às redes sociais. Foram os engenheiros quenianos os responsáveis pela tecnologia de pagamentos por meio de aplicativos móveis. Por necessidade, o continente abriu caminho a práticas que se tornaram desde então tendências mundiais, como o uso da carteira eletrônica.11 As plataformas on-line transformaram as relações sociais no continente, mais ainda do que a introdução maciça da telefonia móvel. Com o WhatsApp, o tempo e a distância entre os africanos diminuíram consideravelmente. As milhões de trocas
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STC (Arábia Saudita), Vodaphone (Grã-Bretanha), Telecom Egypt e West Indian Ocean Cable Company (Ilhas Maurício) – iniciou a construção de um cabo submarino de 37 mil quilômetros batizado 2Africa, que decuplicará o acesso do continente à internet até 2024.
ALVOS DE DISCURSOS VIOLENTOS A segunda tendência é a migração mais acentuada do debate político africano para plataformas digitais. Além do descrédito que sofre a imprensa tradicional, há a relativa facilidade de acesso às redes sociais. No Mali, a campanha legislativa de 2018 foi lançada nessas redes e nas cidades e vilarejos. Finalmente, a terceira tendência, a mais determinante, é a atitude das companhias proprietárias das plataformas: elas procurarão preservar a integridade de escrutínios eleitorais muitas vezes frágeis ou, ao contrário, aplicarão na África a lógica que lhes assegura confortáveis lucros em outros lugares, isto é, a exploração de dados pessoais dos usuários? O futuro das eleições, às vezes acompanhadas de escaladas de violência, depende muito das respostas a essas questões. “Em um fu-
turo imediato”, adverte um relatório da Fundação Kofi Annan, “as eleições nas democracias dos países do sul serão alvo de discursos violentos, de desinformações, de ingerências exteriores e de manipulações sobre as plataformas digitais.”12 A partir do momento em que uma campanha de manipulação está ao alcance das mãos dos mais ricos e que um mercado negro ad hoc, vendendo “cliques”, “likes” e comentários sob medida, existe, para os candidatos menos fortunados a possibilidade que três décadas de escrutínios multipartidários na África possam terminar em fraudes eleitorais maciças de um novo tipo é muito concreta. *André-Michel Essoungou é ensaísta e funcionário internacional. 1 L er Franck Pasquale, “Mettre fin au trafic des données personnelles”[É preciso acabar com o tráfico de dados], Le Monde Diplomatique, maio 2018. 2 C f. R. Kelly Garret, “Social media’s contribution to political misperceptions in U.S. presidential elections” [A contribuição da mídia social para equívocos políticos nas eleições presidenciais dos EUA], Plos One, São Francisco, 2019. Disponível em: journals.plos.org. 3 C f. “The Cambridge Analytica files” [Os arquivos Cambridge Analytica], dossiê on-line do The Guardian, Londres. Disponível em: guardian.com.
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4 C f. Simona Weinglass, “Who is behind Israel’s Archimede group, banned by Facebook for election fakery?” [Quem está por trás do grupo Archimede, de Israel, banido do Facebook por fraude eleitoral?], The Times of Israel, Jerusalém, 19 maio 2019. 5 Joe Parkinson, Nicholas Bariyo e Josh Chin, “Huawei technicians helped african governments spy on political opponents” [Técnicos da Huawei ajudaram governos africanos a espionar oponentes políticos], The Wall Street Journal, Nova York, 15 ago. 2019. 6 C f. Martin Ndela e Winston Mano (eds.), Social media and elections in Africa, v.1, Palgrave MacMillan, Londres, 2020. 7 André-Michel Essoungou, “Young Africans put new technologies to new uses” [Jovens africanos dão novos usos a novas tecnologias], United Nations Africa Renewal, Nova York, abr. 2010. 8 Collaboration on international ICT Policy in East and Southern Africa (CIPESA), State of Internet freedom in Africa 2019, Kampala, set. 2019. 9 C f. Samuel Woodhams e Simon Migliano, “The Global cost of internet shutdowns in 2019” [O custo global do desligamento da internet em 2019], Top10vpn, Londres, 7 jan. 2020. Disponível em: www.top10vpn.com. 10 Babatunde Okunoye, “In Africa, a new tactic to suppress online speech: taxing social media” [Na África, uma nova tática para suprimir o discurso on-line: taxar as mídias sociais], Council on Foreign Relations, Washington, 2018. Disponível em: www.cfr.org. 11 Ler Sabine Cessou, “Fièvre numérique au Kenya” [Febre digital no Quênia], Le Monde Diplomatique, dez. 2018. 12 “ Protecting electoral integrity in the digital age” [Protegendo a integridade eleitoral na era digital], Kofi Annan Commission on Elections and Democracy in the Digital Age, Genebra, janeiro de 2020.
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cotidianas que passam por essa plataforma, o aplicativo de mensagens mais popular na África e propriedade da companhia Facebook, ritmam todos os domínios da vida local. Por meio de textos, fotos e vídeos, cerca de 200 milhões de africanos se comunicam, se informam e mantêm um contato imediato com seus parentes dispersos pelo território. Contrariamente às outras regiões do mundo onde se utilizam cada vez mais diversos serviços de mensagem on-line, na África o domínio do WhatsApp é absoluto, colocando essa ferramenta em uma situação de quase monopólio. Alguns tipos de interação social entre africanos devem sem dúvida perdurar, a despeito das distâncias e dos movimentos impostos pela necessidade de sobrevivência. Em muitas comunidades do oeste africano, por exemplo, onde a procura por trabalho sazonal e a migração em busca de emprego obrigam homens e mulheres a deixar suas casas, os sermões dos imãs de suas comunidades de origem os seguem em suas peregrinações. Uma cena, há alguns meses, no hall do aeroporto de Lomé, no Togo, ilustra essa dinâmica: uma comerciante maliana a caminho da República Centro-Africana escuta o sermão de seu imã em Bamako. No mesmo aeroporto, uma comerciante congolesa acompanha o sermão de um padre de Kisangani, sua região de origem que ela deixara alguns dias antes para compras em Lomé. Ambas utilizam o WhatsApp e a conexão gratuita do aeroporto. Cenas idênticas, de Johannesburgo a Nairóbi, oferecem o retrato de muitos africanos em deslocamento pelo continente, mas seguindo “a atualidade” local e familiar em todos os detalhes, em contextos em que não existe uma imprensa estabelecida. Há duas décadas, a preservação de tais relações sociais era difícil, cara e reservada aos mais ricos. Três tendências principais desenharão as evoluções políticas ligadas às redes sociais. A primeira é o crescimento do número de africanos conectados à rede. Se apenas 39% da população do continente está on-line, contra ao menos 50% em outras regiões do mundo, esse percentual poderá aumentar rapidamente. Entre 2010 e 2020, o número de pessoas conectadas passou de menos de 5 milhões para mais de 500 milhões, segundo o site Internet World Stats (IWS). Mais determinante ainda, os investimentos em curso sugerem que a aceleração deverá continuar em um ritmo mais rápido. Em 17 de maio de 2020, um consórcio de oito sociedades – Facebook, Orange, China Mobile International, MTN (África do Sul),
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Os eleitores da Nigéria e Quênia serviram, sem seu conhecimento, como cobaias da Cambridge Analytica
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NA LÍBIA, ESBOÇA-SE UMA SITUAÇÃO “SÍRIA”, COM UMA DIVISÃO DO PAÍS EM ZONAS DE INFLUÊNCIA
Líbia, um condomínio russo-turco? Atolado na guerra civil, o conflito líbio internacionaliza-se com a proliferação de mercenários, cujo papel ultrapassa com folga o de simples forças auxiliares. A Rússia e a Turquia parecem estar em polos opostos, cada uma apoiando um campo diferente. Entretanto, atuam em sincronia e sonham em dividir entre elas os espólios de uma Líbia fraturada POR JEAN-MICHEL MOREL*
lidade internacional, apoiando o Governo do Acordo Nacional, o único reconhecido pela ONU. A França se encontra em oposição frontal com a Turquia, que, desde o início deste ano, está muito presente na Líbia. Para Ancara, o interesse por essa região vem desde o século XVI, quando os otomanos ocuparam o Magreb, criando três províncias cujas capitais eram Argel, Túnis e Trípoli. Mesmo não tratando hoje de reconstituir na África do Norte o império despedaçado em 1920, o presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, não hesita em evocar regularmente sua grandiosidade. E multiplica as ocasiões para demonstrar as capacidades de projeção de seu Exército para além de suas fronteiras: invasões no norte da Síria, intervenção no Curdistão iraquiano e na Líbia, projeto de uma base no Iêmen, instalação militar no Catar e ameaça de se dirigir militarmente ao lado do Afeganistão no conflito do Alto Karabakh. Tudo isso manifesta uma vontade de expansão da área de influência turca. Em 2018, Yeni Akit, um jornal pró-governamental, depois de ter enu-
merado dez países onde se encontram soldados turcos, não hesitava em afirmar: “A Turquia retorna às suas terras otomanas”. Esse ardor expansionista se concretiza também pela reativação de uma doutrina marítima imaginada em 2006 por Cem Gurdeniz, um almirante aposentado, e batizada de Mavi Vatam (Pátria Azul). Esta concede a prioridade à segurança, a despeito da diplomacia – o apoio de Ancara ao GAN ilustra isso perfeitamente.
O SUCESSO DO “SULTÃO DE ANCARA” A Líbia, atolada em uma guerra civil que se eterniza, apesar das conferências de cessar-fogo (a última aconteceu em Berlim em janeiro de 2020), parece uma conquista fácil para uma potência regional determinada. Um “troféu” que ajudaria o presidente Erdogan a fortalecer sua autoridade5 diante de uma população cada vez mais crítica – como testemunha a derrota do AKP, partido que o levou ao poder, nas últimas eleições municipais, em março de 2019, quando a oposição ganhou as prefeituras de Is-
tanbul e Ancara. Sinal dessas dificuldades, o AKP conheceu este ano duas cisões que dão prova das importantes dissenções no seio da formação presidencial. Como precisa, no site Daktilo 1984, o jornalista turco Fehim Tatstekin: “As políticas internas e externas da Turquia são misturadas. A política externa serve de combustível para a interna” (21 jun. 2020). Aos olhos de Ancara, a Líbia representa também uma “base de lançamento” para sua extensão econômica e ideológica via a retomada da África subsaariana das redes do pregador Fethullah Gülen, antigo aliado de Erdogan até o golpe de Estado fracassado de 2016. Para se fixar no território líbio, o presidente turco não negligencia nenhum meio: financeiro, a despeito de sua economia vulnerável; humano, essencialmente jihadistas que combateram durante a invasão do Rojava; 6 e militar, como a instalação de sistemas antiaéreos MIM-23Hawk e o uso dos drones Bayraktar TB2, que, segundo observadores, fizeram a diferença nos recentes enfrentamentos com as tropas do ENL. © Esam Omran Al-Fetori/Reuters
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esde o levante popular de fevereiro de 2011 seguido da intervenção aérea das forças da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e da morte do seu chefe de Estado, Muamar Kadafi, a Líbia está entregue ao caos, à fratura e às ingerências externas. As três regiões tradicionais do país se transformaram em agrupamentos fratricidas.1 No leste, a Cirenaica, sede da Câmara dos Representantes em Benghazi, se tornou o feudo do marechal autoproclamado Khalifa Haftar, encabeçando o que ele chama de Exército Nacional Líbio (ENL). No oeste, na Tripolitânia, reina o mal nomeado Governo do Acordo Nacional (GAN), reconhecido pela ONU e cuja coloração política o aproxima do Irmandade Muçulmana. Já na região multiétnica do Fezzan no sul, território de onde se extrai um quarto do petróleo líbio, os milicianos toubous reinam como chefes, dividindo-se em dois campos. O GAN se beneficia do suporte da Turquia e, em um grau moderado, do Catar, sem esquecer o apoio discreto da Itália e da Alemanha. A maior parte de suas forças é composta por milicianos da coalizão Fajr Libya (Aurora da Líbia). No campo adversário, Khalifa Haftar, ex-oficial do Exército de Kadafi antes de sua deserção no fim dos anos 1980, reúne em torno de si milicianos locais, assim como mercenários do Sudão e do Chade. Seus padrinhos estrangeiros são o Egito, os Emirados Árabes, a Arábia Saudita – uma frente anti-Irmandade Muçulmana – e principalmente a Rússia, que deseja ampliar sua inserção mediterrânea. A isso se acrescenta a França, que, sem romper com Trípoli, preferiria ver o campo do marechal Haftar ganhar.2 Em julho de 2019, a descoberta de mísseis franceses perto de Trípoli, abandonados pelas tropas derrotadas do marechal Haftar, já revelavam esse posicionamento ambíguo.3 Um ano depois, a descoberta de valas comuns em Tarhouna, onde milícias pró-Haftar foram culpadas de abusos, tornou o apoio ao marechal cada vez mais problemático.4 Enquanto membro permanente do Conselho de Segurança, Paris deveria obedecer à lega-
A Líbia, em guerra civil, apesar das conferências de cessar-fogo, parece uma conquista fácil para uma potência regional
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A ideia de uma ciência social e sua relação com a filosofia
Nesta obra de referência, o inglês Peter Winch evidencia as relações entre as ciências sociais com a filosofia, por um lado, e com as ciências naturais, por outro.
ciativa só pode acontecer com a concordância tácita da Rússia. Foi por isso que Ancara se contentou em protestar e proferir ameaças sem consequência. A Turquia deve, com efeito, contar com a Rússia, a outra protagonista determinante do conflito. Não tendo tomado partido na expedição devastadora de 2011, Moscou pretende fazer da Líbia um novo ponto de amarração que lhe permite estender sua influência para o Magreb e para a África subsaariana e confortar a influência adquirida no Oriente Médio a favor da crise síria. Os mercenários russos e outros combatentes sírios pró-Assad colocados à disposição por Moscou são a arma principal de Haftar. Quando, por uma razão ou por outra, eles se ausentam do front, o marechal se encontra em grande dificuldade, como em sua derrota às portas de Trípoli.
MOSCOU ACOMODA “CONFLITOS CONGELADOS” No “arquivo líbio”, os russos agem com pragmatismo e cinismo. Eles ajudam seu vassalo, mas, dosando sua intervenção, fazem que ele não possa ganhar completamente. Por exemplo, aviões de caça Mig-29 e Sukhoi-24 pousaram em julho nas pistas de Al-Jufrah, a 800 quilômetros de distância de Trípoli. Essa base está sob o controle das tropas do marechal Haftar, e a chegada de caças russos é uma advertência à Turquia e ao governo de Trípoli. Estes gostariam de possuí-la para avançar em direção do Fezzan, cujo subsolo é rico em petróleo, gás natural e ouro e esconde importantes lençóis freáticos. No entanto, a aviação russa não interveio para impedir a derrota das tropas do ENL em junho, diante de Trípoli. Como na Síria,7 os russos compõem com a Turquia, que apoia o campo adversário, mas, ao mesmo
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Até o momento, tudo parece dar certo para o “sultão de Ancara”. Em 27 de novembro de 2019, em acordo com Fayez al-Sarraj, primeiro-ministro do GAN, ele redesenhou as zonas econômicas exclusivas (ZEE) do planalto continental líbio a fim de que a Turquia tenha acesso a blocos de exploração e prospecção do gás natural no Mediterrâneo oriental, em zonas que, no entanto, são reivindicadas por Chipre e pela Grécia. Instalar-se na Líbia, terceiro maior exportador africano do ouro negro, permitiria a Ancara, que importa 84,4% dos combustíveis fósseis de que necessita, ter acesso às suas riquezas em petróleo e gás natural. No plano militar, o presidente turco marcou um ponto significativo ajudando as quatro grandes milícias que apoiam o GAN a expulsar o ENL, afrouxando o cerco que rodeava Trípoli desde abril de 2019. O fiasco das tropas do marechal Haftar abriria assim a perspectiva da reconquista da cidade costeira de Sirta – onde nasceu o coronel Muamar Kadafi –, perdida para o GAN em janeiro de 2020, e da gigantesca base aérea de Al-Jufra, no deserto. No entanto, isso não quer dizer que os aliados de Erdogan atinjam esses objetivos. Em 5 de julho, um bombardeio aéreo atingiu a base de Al-Watiya, colocada à disposição da Turquia pelo GAN – uma ação não reivindicada, inicialmente atribuída ao Egito, cujos aviões de caça podem operar da base aérea de Sidi Barrani, perto da fronteira líbia, depois à França, que não tinha hesitado, em fevereiro de 2019, em bombardear rebeldes toubous fugindo diante do ENL do marechal Haftar. Finalmente, a hipótese de uma intervenção dos Emirados Árabes ganhou, pois estes dispõem de uma base em Al-Khadim, na Líbia, assim como acesso à base de Sidi Barrani, no Egito. Em todos os casos, essa ini-
A Aliança para o Progresso e o governo João Goulart Felipe Pereira Loureiro apresenta um inédito e acurado mapeamento do auxílio econômico dos Estados Unidos a governadores brasileiros para desestabilizar a administração de Jango.
tempo, constitui um parceiro econômico e um aliado de fato. Isso cria problemas para a Otan e para a União Europeia e explica por que esse antagonismo não se traduz nunca em um enfrentamento brutal. Uma espécie de aliança contraditória liga Putin a Erdogan. Nos terrenos sírio e líbio, seus interesses nem sempre coincidem, mas eles dão a impressão de saber até onde um e outro podem ir sem ultrapassar um conflito tolerável. A Rússia se acomoda perfeitamente com os “conflitos congelados”. Ela já deu demonstrações disso na Ucrânia, na Geórgia e na Moldávia. Esse dispositivo pouco custoso lhe concede uma influência desestabilizadora e, para esses três países, bloqueia qualquer perspectiva de adesão à União Europeia e à Otan. Para Moscou ter mais um desses conflitos com a Líbia, durante o tempo necessário para conquistar um certo número de bases militares – como foi o caso na Síria –, é uma perspectiva realista. A continuidade de uma guerra latente, sem vencedor nem vencido, a despeito das declarações conciliadoras de Serguei Lavrov, ministro das Relações Exteriores russo, é a opção escolhida pelo Kremlin. Desde então, na Líbia se esboça uma situação “síria”, com uma divisão do país em zonas de influência, uma espécie de condomínio turco-russo determinado a proceder à partilha dos despojos – sem dúvida de maneira desigual. E não foram os pedidos recentes da França, da Itália e da Alemanha de “cessar imediatamente e sem condição os combates e suspender o reforço em curso dos meios militares no país”8 que vão modificar a situação em um contexto em que o presidente norte-americano, Donald Trump, manifesta pouco interesse pelo caso. Já as declarações do presidente egípcio, Abdel Fattah al-Sissi, que propôs em 6 de junho uma
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trégua prevendo a partida dos “mercenários estrangeiros” e o desmantelamento das milícias, e depois, em 20 de junho, ameaçou intervir com tropas de solo, não modificam a situação. A incapacidade de seu Exército de encerrar a revolta no Sinai torna essas ameaças pouco críveis. Inclusive, o Parlamento egípcio só autorizou em julho um grupo militar transfronteiriço no “front ocidental” – uma referência à Líbia – para se opor às “milícias armadas criminosas e aos elementos terroristas estrangeiros”. Qualquer que seja a evolução da relação de forças entre turcos e russos, o futuro da Líbia vai ser decidido fora dos agentes nacionais do conflito, reduzidos aos papéis de figurantes: na Conferência de Berlim, nem Fayez al-Sarraj nem Khalifa Haftar foram convidados. A opinião do povo líbio, contudo, jamais foi solicitada. *Jean-Michel Morel é escritor e membro do comitê de redação do Orient XXI. Último romance publicado: Retour à Kobané, A-Eurysthée, Jongny (Suíça), 2018. 1 L er Patrick Haimzadeh, “La Libye aux mains des milices” [A Líbia na mão das milícias], Le Monde Diplomatique, out. 2012. 2 C f. Ariane Bonzon, “Le désastreux casting de la France en Libye” [O desastroso casting da França na Líbia], Slate, Paris, 25 jun. 2020. Disponível em: www.slate.fr. 3 C f. “L’embarras de Paris après la découverte de missiles sur une base d’Haftar en Libye” [O embaraço de Paris após a descoberta de mísseis em uma base de Haftar na Líbia], Le Monde, 10 jul. 2019. 4 “ UN chief expresses shock at discovery of mass graves in Libya” [Líder da ONU expressa choque com a descoberta de valas comuns na Líbia], The Guardian, 13 jun. 2020. 5 Ler Jean Marcou, “La quête obsessionnelle d’un pouvoir fort” [A busca obsessiva por um poder forte], Le Monde Diplomatique, abr. 2017. 6 Ler Mireille Court e Chris Den Hond, “L’avenir suspendu du Rojava” [O futuro suspenso do Rojava], Le Monde Diplomatique, fev. 2020. 7 L er Akram Belkaïd, “Ancara et Moscou, jeu de dupes en Syrie” [Ancara e Moscou, um jogo perdido na Síria], Le Monde Diplomatique, nov. 2019. 8 C omunicado comum de 25 de junho.
Facticidade e validade Jürgen Habermas propõe novos desafios para a democracia ao defender que “não é possível haver e nem preservar Estado de direito sem democracia radical”.
Produzir conteúdo Compartilhar conhecimento. Desde 1987. www.editoraunesp.com.br
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HÁ CINQUENTA ANOS, AS AUTORIDADES DA JORDÂNIA REPRIMIAM A UTOPIA REVOLUCIONÁRIA PALESTINA
Memória de um Setembro Negro Após a derrota para Israel em 1967, o mundo árabe viveu importantes transformações políticas. As diferentes facções palestinas aproveitaram-se dessas mudanças para fortalecer a luta armada contra o Estado hebreu. A Jordânia tornou-se a retaguarda desse movimento e os combatentes vislumbraram até a possibilidade de derrubar a monarquia. Com forte apoio ocidental, o rei Hussein enterrou a ameaça em sangue POR ALAIN GRESH*
pena morrer em terra estrangeira e, da mesma forma que me senti argelina quando os Aurès foram tomados, hoje me sinto palestina”.2 Esse tornado atingiu um mundo árabe traumatizado pela derrota para Israel, em junho de 1967. Uma marretada que desencadeou uma silenciosa raiva popular contra os poderes locais. O Egito de Gamal Abdel Nasser e seu aliado baathista sírio – líderes do nacionalismo árabe anti-imperialista revolucionário – perdem parte de sua aura. Nasser e seu regime são contestados não pelos movimentos islâmicos enfraquecidos pela repressão das décadas de 1950 e 1960, mas pela extrema esquerda, que orquestra protestos de estudantes e trabalhadores contra a clemência demonstrada pelos tribunais egípcios para com os responsáveis pela derrota, contra “a nova classe” e todos os aproveitadores, ao mesmo tempo que reclama o aprofundamento da opção socialista. No Iraque e na Líbia, golpes de Estado levam a mudanças de regime.
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mã, setembro de 1970. “Revolução até a vitória!”, “Todo o poder para a Resistência!”, “A estrada para Jerusalém passa por Amã!”. Esses slogans, pintados nas paredes da capital da Jordânia, estão ao lado de cartazes do “guerrilheiro heroico” Che Guevara, assassinado em 9 de outubro de 1967 na Bolívia por ordem da CIA. Militantes armados, com a cabeça coberta por um kufiyyah, fiscalizam os principais cruzamentos, enquanto pick-ups com metralhadoras apontadas para o céu circulam pelos labirintos da cidade. O congresso da União Geral de Estudantes Palestinos (Gups) dá boas-vindas a centenas de ativistas de esquerda estrangeiros, alguns deles judeus, que entraram na Jordânia mais ou menos ilegalmente. Citam Fidel Castro e Mao Tsé-tung, devoram Frantz Fanon e Ho Chi Minh, comentam os escritos de Vo Nguyen Giap sobre a Guerra Popular no Vietnã. No fim do verão, paira sobre a cidade das sete colinas um perfume que, para alguns, lembra o de Petrogrado em 1917 e o slogan “Todo poder aos sovietes!”. Para o líder de uma das organizações palestinas de esquerda, Nayef Hawatmeh, vive-se na Jordânia uma situação de “duplo poder” e o rei Hussein deve se afastar diante da resistência palestina, como o governo de Alexander Kerensky foi apagado pelos bolcheviques. Em Amã, assim como em Havana, Argel ou Hanói, o Terceiro Mundo se insurge e sonha com uma realidade alicerçada em outras bases. Os jovens estudantes e trabalhadores do Ocidente, em revolta desde a primavera de 1968, reconhecem-se nessa utopia. O diretor Jean-Luc Godard filma in loco “a guerra prolongada até a vitória do povo palestino”, enquanto o escritor Jean Genet canta seu amor pelos combatentes palestinos: “Da Ásia à América, a atmosfera é de revolução! Quero apenas grandiosidades, como um buquê de fogos de artifício, incêndios que saltam de banco em banco, de ópera em ópera, da prisão ao tribunal”.1 A escritora Ania Francos, cujos avós foram mortos nos campos de Hitler, proclama: “Vale a
DESVIO ISRAELENSE É nessa brecha imprevista que irrompem as organizações de fedayin. Elas aproveitam o enfraquecimento da monarquia para se estabelecer em território jordaniano, onde metade da população é palestina, e oferecem a luta armada como instrumento de vingança contra Israel e seu aliado norte-americano. Elas fazem parte da dinâmica da Conferência Tricontinental, realizada em janeiro de 1966 em Havana, com o objetivo de unir os povos da África, Ásia e América Latina contra o “imperialismo ianque”.3 Quais são essas organizações?4 A principal, liderada por um homem ainda pouco conhecido, Yasser Arafat, é o Fatah, que lançou suas primeiras ações armadas contra Israel em 1º de janeiro de 1965, defendendo a libertação de toda a Palestina pelos próprios palestinos. A Frente Popular para a Libertação da Palestina (FPLP) e sua divisão de esquerda, a Frente Democrática e Popular para a Libertação da Palestina (FDPLP), surgiram do Movimento dos Nacionalistas
Árabes, criado em Beirute depois de 1948 por George Habache, um cristão palestino. Por muito tempo, ele defendeu a unidade árabe como condição para a libertação da Palestina, reconhecendo-se no discurso de Nasser, antes de se converter ao marxismo-leninismo e criticar tanto o líder egípcio quanto o Fatah, por ser “pequeno-burguês”, mesmo que uma ala deste último se autoproclamasse maoista. A esse cenário, soma-se uma miríade de pequenos grupos, muitas vezes financiados por capitais árabes, como o Saika, subserviente a Damasco, e a Frente de Libertação Árabe, vassala de Bagdá. A Organização para a Libertação da Palestina (OLP), criada pela Liga Árabe em 1964, está desacreditada e estagnada por seu caráter burocrático. Em fevereiro de 1969, ela passou ao controle do Fatah e de Arafat, que se tornou presidente de seu comitê executivo, reunindo as várias organizações fedayin, mas permaneceu como uma estrutura unitária frágil, com cada organização desempenhando seu papel. Para além de suas diferenças, essas organizações rejeitam a ideia de um simples retorno à situação de antes de 5 de junho de 1967 – conforme preconizado na Resolução n. 242 do Conselho de Segurança da ONU de 22 de novembro de 1967, cuja filosofia pode se resumir em troca de territórios ocupados pela paz – e advogam pela “libertação de toda a Palestina” por um único instrumento: a luta armada. Essa perspectiva revolucionária coloca essas organizações em oposição a regimes árabes como o da Jordânia ou mesmo de Nasser – que, no entanto, apoia essas organizações. A intensificação das ações de guerrilha na Cisjordânia ocupada parecem confirmar a estratégia da Resistência: de 97 em 1967, passam para 916 em 1968, 2.432 em 1969 e 1.887 até setembro de 1970 (quando então caem para 45 em 1971).5 A Batalha de Karameh, em 20 de março de 1968, marca o auge do poder dos fedayin. Os combatentes do Fatah resistem por um dia inteiro a uma incursão blindada israelense na Jordânia, com o objetivo de destruir
uma de suas bases. Os israelenses perdem dezenas de soldados e muitos tanques. As autoridades israelenses tentam minimizar a dimensão da derrota, que o jornal Haaretz qualificou em 29 de março de 1968 como “uma das páginas mais sombrias da história militar de Israel”. Contudo, os números pesam menos do que seu caráter simbólico: pela primeira vez, os guerrilheiros árabes tinham enfrentado o Exército israelense. Milhares de voluntários, homens e mulheres, sem distinção, em geral muito jovens, vindos dos campos palestinos, do mundo árabe, às vezes do Ocidente, alistam-se nas fileiras da Resistência, cuja popularidade está no auge. Uma vertigem de sucesso acomete as organizações palestinas, e o Fatah promete criar “zonas liberadas” na Cisjordânia. No entanto, o Oriente Médio não é o Sudeste Asiático, a Palestina não é o Vietnã do Sul, a Jordânia não é o Vietnã do Norte e não corre o risco de vir a ser. O rei Hussein mantém canais de comunicação com os líderes israelenses, é um sólido aliado dos Estados Unidos – e até membro da CIA6 – e não tem intenção de permitir que um poder rival tome conta. Já os palestinos não têm aliados estratégicos, nem mesmo no Egito, principal país do “campo de batalha”. Em junho de 1970, um plano de negociações baseado na Resolução n. 242 do Conselho de Segurança é proposto pelos Estados Unidos. É aceito pela Jordânia, Egito e, após uma primeira recusa, por Israel. As organizações fedayin não querem endossar um projeto que ignore os direitos dos palestinos, exceto como “refugiados”. A mídia palestina não hesita em culpar o próprio Nasser. Para evitar a ruptura, uma delegação liderada por Arafat encontra-se com o presidente egípcio, em Alexandria. Este último explica a eles, em essência, que não acredita no plano Rogers (em homenagem ao então secretário de Estado dos Estados Unidos) – que Israel denunciará algumas semanas depois –, mas que precisa ganhar tempo para reconstruir seu Exército. Ele garante que não os abandonará diante do rei
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A resistência palestina ainda não obteve resultados mais tangíveis para os palestinos que vivem sob ocupação Hussein, mas pede que sejam realistas. Também menciona a ideia de um Estado na Cisjordânia e Gaza, questionando a possibilidade de “libertar toda a Palestina”. Se por um lado a delegação volta satisfeita com os esclarecimentos, de outro uma engrenagem que ninguém poderá deter é colocada em marcha na Jordânia. A partir de julho de 1968, a FPLP lança uma série de ações contra aviões ocidentais, com o objetivo de libertar prisioneiros palestinos em Israel. Em agosto de 1969, uma dessas ações é liderada por uma jovem ativista de 25 anos, Leila Khaled, cujo herói é Che Guevara. Em 6 de setembro de 1970, a organização dá um passo mais ousado e sequestra simultaneamente quatro aeronaves, três das quais são forçadas a pousar em uma pista na Jordânia batizada de “Aeroporto da Revolução”. Os fedayin explodem aviões, incluindo um Boeing 747, e as imagens desses “fogos de artifício” circulam pelo mundo. Mesmo sem o derramamento de uma gota de sangue e com a libertação dos quinhentos reféns, essas ações dão às autoridades jordanianas o pretexto para uma ofensiva destinada a “restaurar a ordem”. Confiante no apoio norte-americano e israelense, Hussein nomeia um governo militar em 15 de setembro de 1970 e lança veículos blinda-
dos para atacar os alojamentos dos fedayin, que são bombardeados dia e noite pelo Exército. Ao contrário do que pensavam os fedayin, o Exército tem um número muito limitado de deserções, embora muitos de seus soldados sejam palestinos. Como conta o jornalista Éric Rouleau, correspondente especial do Le Monde: “O rei confiou a maior parte dos cargos aos transjordanianos. Ele havia organizado uma campanha de informação com o objetivo de desacreditar os comandos, acusados de serem ateus, inimigos de Deus, aliados de judeus de extrema esquerda [...]. Jovens israelenses, judeus europeus e norte-americanos não tinham participado do Congresso da União de Estudantes Palestinos?”.7 O rei, que colabora com Israel, no entanto, usa essa “presença judaica” como argumento contra a Resistência. Apesar das promessas de Bagdá, o contingente iraquiano presente na Jordânia desde 1967 não demonstra intenções de combate. A Síria está de fato tentando uma incursão blindada, mas precisa recuar diante das ameaças de intervenção israelense e norte-americana e da recusa de Hafez al-Assad, então ministro da Defesa da Síria, em fornecer cobertura aérea. Embora os combates já somem mais de 3 mil mortos, de acordo com um relatório não oficial da Jordânia
(o triplo, segundo os palestinos), é finalmente a mediação de Nasser que salva os fedayin, com a assinatura de um cessar-fogo em 27 de setembro, e um acordo cujo caráter favorável à Resistência entra em contradição com as derrotas militares desta. Mas Nasser morre em 28 de setembro de um ataque cardíaco: já não há empecilhos para o rei completar a “limpeza” da Jordânia no verão de 1971.
A Resistência é jovem, mal treinada e formada por recrutas entusiasmados, mas inexperientes As razões para a derrota palestina são muitas. A Resistência é jovem, mal treinada e formada por recrutas entusiasmados, mas inexperientes; seu comportamento indisciplinado alimenta a rejeição de parte da população, incluindo os de origem palestina. Ela superestima seus próprios pontos fortes e permanece presa à tutela de organizações como a FPLP. Sua fraca experiência diplomática e política leva-a a negligenciar as lutas pelo poder regional e internacional e a superestimar a mobilização dos povos árabes. Acima de tudo, para além dos slogans, a Resistência encontra
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dificuldades para definir uma estratégia política e militar em um contexto fundamentalmente diferente do Vietnã ou da Argélia. Das consequências desse fracasso, que poderia ter resultado no desaparecimento da resistência do cenário regional, ressalta-se a criação da organização Setembro Negro, que assassina o primeiro-ministro jordaniano, Wasfi al-Tal, em 28 de novembro de 1971. Também pega de surpresa os Jogos Olímpicos de Munique em setembro de 1972, em uma ação que causa a morte de onze membros da delegação israelense. A resistência palestina, enquanto isso, enraíza-se no Líbano, para onde transfere suas capacidades militares e se alia ao movimento nacional. Ganha influência política decisiva na Cisjordânia, em detrimento do rei Hussein e, pouco a pouco, a OLP será reconhecida como “a única representante do povo palestino”. Com a ampliação de suas alianças diplomáticas, tanto na Europa ocidental como no “campo socialista”, ela abandona o discurso utópico dos anos 1960, que tanto entusiasmava o mundo, renuncia aos ataques contra civis e adota uma estratégia mais moderada ao reivindicar, após a guerra de outubro de 1973, a criação de uma autoridade e depois de um Estado na Cisjordânia e Gaza. Até o momento, contudo, essa via “realista” não trouxe aos palestinos que vivem sob ocupação ou no exílio resultados mais tangíveis do que a utopia revolucionária que fazia o coração da juventude mundial bater mais rápido em 1970. *Alain Gresh é diretor do jornal on-line Orient XXI. 1 “ De l’Asie à l’Amérique, l’air est à la révolution! Je n’en veux qu’une grandiose, en guise de bouquet d’artifice, un incendie sautant de banque en banque, d’opéra en opéra, de prison en palais de justice”. Citado por Hélène Aldeguer e Alain Gresh, Un chant d’amour. Israël-Palestine, une histoire française [Um canto de amor. Israel-Palestina, uma história francesa]. La Découverte, Paris, 2017. 2 “Cela vaut la peine de mourir sur une terre étrangère, et, comme je me sentais algérienne lorsque l’on rasait les Aurès, je me sens aujourd’hui palestinienne.” Ania Francos, Les Palestiniens [Os palestinos], Julliard, Paris, 1968. 3 Ler Edouard Bailby, “L’Amérique latine a choisi l’escalade révolutionnaire localisée” [A América Latina escolheu a escalada revolucionária localizada], Le Monde Diplomatique, fev. 1966. 4 Sobre a história dos palestinos, cf. John K. Cooley e Green March, Black September [Setembro Negro], Frank Cass, Londres, 1973; e Nadine Picaudou, Les Palestiniens, un siècle d’histoire [Os palestinos, um século de história], Complexe, Bruxelas, 2003. 5 C f. Alain Gresh, OLP, Histoire et stratégies [OLP: história e estratégias], Spag-Papyrus, 1983. 6 “CIA Paid Millions to Jordan’s King Hussein” [CIA pagou milhões ao rei Hussein da Jordânia], The Washington Post, 18 fev. 1977. 7 Eric Rouleau, Dans les coulisses du Proche-Orient. Mémoires d’un journaliste-diplomate (1952-2012) [Nos bastidores do Oriente Médio. Memórias de um diplomata-jornalista, 1952-2012], Fayard, Paris, 2012.
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UMA PATOLOGIA GRAVE QUE ACOMETE SOBRETUDO JOVENS MULHERES DE MEIOS MAIS ABASTADOS
A anorexia, uma doença social As desigualdades sociais em relação à saúde se estabelecem em geral em detrimento dos homens pobres. A anorexia constitui uma das raras exceções: esse gravíssimo problema atinge mais garotas de meios abastados. Expostas a normas de magreza mais estritas, elas são também mais propensas a achar que podem controlar seu destino social e, portanto, seu peso POR CLAIRE SCODELLARO*
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rias, empregados com carteira) têm 1,3 vez mais chances.1 Por fim, o perfil por idade difere de outros transtornos mentais: a anorexia raramente se inicia após os 25 anos, e a probabilidade de surgir novamente diminui com o avanço da idade, ao passo que a depressão permanece frequente na idade adulta. Apresentada em 2010 pela Alta Autoridade de Saúde da França como “um risco de saúde pública importante, porém pouco levado em conta em nosso país” – culpa dos meios dedicados à sua prevenção –, a anorexia mental estaria em plena progressão. Em vigor desde 2017, uma lei teve a ambição de atacar as causas sociais dessa calamidade que, segundo o último estudo disponível, publicado em 2008, atingia quase 5% das jovens francesas de 17 anos (ler o boxe). A proposta mira
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aramente uma doença escolhe vítimas de modo tão pouco aleatório: entre 90% e 95% das pessoas que sofrem de anorexia mental – distúrbio do comportamento alimentar que se manifesta por uma privação estrita e voluntária da alimentação por um período de vários meses, ou até vários anos – são mulheres. Tal desequilíbrio entre os dois sexos só se registra no câncer de mama (1% dos pacientes são homens) ou... nas afecções dos órgãos genitais. Outra singularidade: a composição social da população envolvida. Enquanto a distribuição dos riscos em matéria de saúde se estabelece em geral em detrimento dos meios populares, observamos o inverso no caso da anorexia. Desse modo, as meninas das classes superiores (cujos pais ocupam cargos de chefia, exercem uma profissão liberal ou são donos de empresas) têm 1,6 vez mais probabilidade de serem afetadas que as filhas de operários; as meninas de classe média (profissões ditas intermediá-
principalmente a moda e a publicidade, e visa, entre outros objetivos, proteger a saúde das modelos. Mas combater os setores que propagam representações dos corpos femininos patogênicos faria a anorexia recuar? Sem dúvida não tanto quanto o esperado. As causas sociais dessa doença se situam aquém do alcance das páginas de revistas: enquanto a população em seu total está exposta às mesmas imagens de corpos magros, a probabilidade de adoecer varia de modo considerável de um indivíduo a outro, de acordo, em especial, com seu meio social. Os fatores na origem da anorexia são múltiplos e interagem com o per-
curso individual: disfunções do sistema nervoso, configurações familiares e psicológicas, eventos estressantes. O retrato sociodemográfico que podemos traçar dela, revelador de uma verdadeira doença de classe, não se mostra menos surpreendente. Sobre tal ponto, raramente comentado pelos profissionais de saúde, a Sociologia e a História da Medicina trazem um esclarecimento útil.
PESQUISA DE EXCELÊNCIA Nos tratados de medicina, o diagnóstico de “anorexia mental” apareceu e se tornou preciso durante a segunda metade do século XIX. As restrições alimentares duradouras (que podem ir até o jejum total e não se explicam por problemas de digestão) constituíam antes o principal sintoma. O médico francês Ernest-Charles Lasègue2 e seu colega britânico William Gull3 notaram que a inanição se acompanha paradoxalmente de uma energia transbordante. “Longe de acabar com as forças musculares, a diminuição da ingestão de alimentos tende a aumentar a aptidão para o movimento”, observa Lasègue. “A doente continua a se sentir mais ativa, mais leve, ela monta a cavalo, rea-
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essa apreciação. De outro modo, as representações do corpo perfeito distinguem socialmente as meninas, mas não os meninos. É também o caso das corpulências reais, que variam pouco entre os meninos segundo sua origem social, mas muito entre as meninas. Tais disparidades ilustram quanto, para as meninas, a magreza tem um valor social, que as situa em uma dupla hierarquia. Para esquematizar, ela aparece ao mesmo tempo como um sinal de inferioridade das mulheres perante os homens e de superioridade das mulheres abastadas sobre aquelas oriundas de meios populares. As adolescentes se preocupam em particular em exibir um corpo (muito) magro, em uma idade na qual não podem se aproveitar do prestígio social de propriedades que classificam habitualmente os adultos (rendas, profissões etc.). Isso poderia explicar o surgimento muito frequente da anorexia em uma idade jovem e o fato de que seja sempre associada a outros comportamentos. Como mostram os trabalhos da socióloga Muriel Darmon, magreza e desempenho escolar fazem parte de uma mesma busca por excelência social, da qual as meninas participam mais que os meninos, em especial nas classes superiores.8 Não é, por conseguinte, muito surpreendente que as turmas preparatórias das grandes escolas contem com frequência com alunas sofrendo de anorexia. Marca de sucesso social, a magreza raramente é percebida como um presente da genética, mas como um bem que se adquire controlando a alimentação e, de maneira mais específica, os impulsos de fome. Por extensão, a magreza simboliza o controle de si. Isso é descrito como típico das práticas anoréxicas, e em primeiro lugar pelas pessoas atingidas. “Ela se sentia cada vez mais, mais leve, mais pura também”, escreve a romancista Delphine de Vigan em Jours sans faim [Dias sem fome], relato autobiográfico em terceira pessoa. “Ela se tornava mais forte que a fome, mais forte que a necessidade. Quanto mais emagrecia, mais buscava essa sensação para dominá-la.”9
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DOIS POR CENTO DAS MULHERES AFETADAS Como os médicos traçam uma fronteira entre comportamentos normais e patológicos em matéria de magreza? Os manuais de medicina, tal como o Manual Diagnóstico e Estatístico de Distúrbios Mentais (DSM), da Associação Norte-Americana de Psiquiatria, acrescentam às manifestações subjetivas da anorexia mental um critério de peso. Desse modo, uma mulher adulta medindo 1,64 metro e pesando 49 quilos é considerada abaixo do peso, pois seu índice de massa corpórea (IMC), que relaciona o peso à altura ao quadrado, é inferior a 18,5 kg/m2. Se essa mulher se percebe, no entanto, como muito gorda, é possível que apresente uma anorexia mental dita subsindrômica. A anorexia será sem dúvida caracterizada se ela perder 4 quilos (chegando a um IMC inferior a 17 kg/m2) e se recusar a recuperar o peso. Na Europa e na América do Norte, quase 2% das mulheres são afetadas
ao longo da vida, em comparação a menos de 0,1% dos homens. Na França, em 2008, 1,4% das meninas de 17 anos já havia apresentado os sintomas de uma anorexia caracterizada, e 3,3%, os sintomas menos graves de uma anorexia dita subsindrômica. As frequências foram respectivamente 0% e 0,1% entre os rapazes da mesma idade.1 Nenhum estudo pôde concluir de maneira formal quanto a uma multiplicação de casos no curso dos últimos vinte anos.2 [C. S.] 1 Nathalie Godart et al., “Epidemiology of anorexia nervosa in French community-based sample of 39,542 adolescents” [Epidemiologia da anorexia nervosa baseada na amostragem da comunidade francesa de 39.542 adolescentes], Open Journal of Epidemiology, Wuhan (China), jan. 2013. 2 Hélène Roux et al., “Épidémiologie de l’anorexie mentale: revue de la littérature” [Epidemiologia da anorexia mental: revisão da literatura], L’Encéphale, v.39, n.2, Paris, abr. 2013.
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liza longas caminhadas a pé, recebe e faz visitas, e leva, se necessário, uma vida mundana exaustiva, sem demonstrar o cansaço de que ela reclamaria outrora.” As primeiras descrições clínicas de Lasègue também evidenciam a predominância de garotas entre as pessoas atingidas, e as ocupações de suas pacientes evocam os passatempos da burguesia, à qual pertenciam sem dúvida. Alguns anos depois, o neurologista Jean-Martin Charcot (1883) e outros médicos europeus começaram a mencionar sintomas que se tornariam centrais no diagnóstico da anorexia mental: o medo de ganhar peso e a convicção de estar muito gorda.4 Deve-se concluir que essa doença nasceu no fim do século XIX? Ou só se trata de um rótulo médico aplicado a práticas mais antigas? Não há dúvidas de que as práticas de jejum prolongado não datam de ontem. A freira dominicana Catarina de Siena (1347-1380), canonizada no século XV, se privava de alimentar-se até o esgotamento. Tais restrições alimentares, porém, se inscreviam em uma empreitada mística, o que não era mais o caso no fim do século XIX. O jejum passou então a ser motivado por uma busca de distinção social: a silhueta da mulher burguesa devia ser magra, transformando a corpulência em um atributo das classes populares, à medida que a fome recuava.5 A psiquiatria, nessa época em plena ascensão, forjou um novo vocabulário médico com base nos casos mais extremos. Embora seja verdade que as práticas de privação de alimentação já existissem antes do aparecimento do diagnóstico de anorexia mental, o nascimento e o destino dessa doença permanecem indissociáveis da afirmação da cultura burguesa. Um século e meio depois, a valorização da magreza na sociedade francesa guarda o traço desse desenvolvimento histórico.6 Segundo um estudo francês de 2008 englobando quase 40 mil adolescentes de 17 anos, as jovens aspiram a uma corpulência menor que os limites médicos da magreza:7 uma menina que mede 1,70 metro julga seu peso bom quando está em torno de 52 quilos, ao passo que ela seria considerada normal se pesasse entre 1 e 20 quilos a mais. O peso ideal se situa em um nível ainda mais baixo entre as jovens de classes superiores, aumentando a diferença com as das classes populares. O contraste com os meninos é duplo: não apenas eles julgam adequadas as corpulências mais elevadas (seu peso ideal médio para 1,70 metro é de 62 quilos, ou seja, 10 quilos a mais que para as meninas), mas sua origem social quase não faz variar
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EXIGÊNCIAS TIRÂNICAS O que se apresenta como uma vontade patológica de controle próprio a um indivíduo poderia na verdade se enraizar em uma relação com o mundo socialmente moldado. Ensina-se de fato às jovens a “se portar bem”, a “se cuidar”, a “não se deixar levar”, ao passo que aos homens recairia o privilégio de controlar os outros. Tantos imperativos que observamos em particular no seio das classes médias e
superiores, mais propensas que as classes populares a acreditar na possibilidade de controlar seu destino social. Essa injunção ao controle poderia causar predisposição aos distúrbios de comportamento alimentar, constituindo um reservatório de práticas às quais se poderia recorrer para enfrentar situações de estresse ou de eventos dolorosos – como o consumo de álcool ou de outros produtos psicoativos. Ao longo da vida, as mulheres experimentam injunções dificilmente conciliáveis: ter “formas femininas”, mas sem celulite; ser vigilante quanto à aparência, mas sem ser “superficial”; controlar a fome enquanto prepara a refeição da família; ter liberdade para seu corpo, mas preservá-lo da gordura; amamentar o quanto for necessário, mas continuar trabalhando etc. Tais exigências tirânicas, que variam segundo a idade e o meio social, constituem o pano de fundo diante do qual prospera a anorexia mental. À medida que a doença ganha terreno, o controle se torna paradoxalmente incontrolável. O sentimento de domínio com o qual se alegram as jovens ao verem baixar o ponteiro da balança torna-se tão indispensável que não conseguem mais atingir um peso normal. Veem então seu risco de morte prematura aumentar muito mais que o do resto da população, em razão de suicídios ou de complicações decorrentes de episódios de jejum severo. E as nor-
mas sociais se tornam, assim, um problema de saúde pública. *Claire Scodellaro é professora de demografia da Universidade Paris 1 Panthéon-Sorbonne e pesquisadora associada ao Instituto Nacional de Estudos Demográficos da França. 1 E nquête sur la santé et les consommations lors de l’appel de préparation à la défense (Escapad ) [Investigação sobre a saúde e o consumo durante o preparatório para o exame de admissão das Forças Armadas], Observatório Francês de Drogas e Toxicomanias, Paris, 2008; Claire Scodellaro, Jean-Louis Pan Ké Shon e Stéphane Legleye, Troubles dans les rapports sociaux: le cas de l’anorexie et de la boulimie [Distúrbios nas relações sociais: o caso da anorexia e da bulimia], Revue française de sociologie, v.58, n.1, Paris, jan.-mar. 2017. 2 C f. Ernest-Charles Lasègue, De l’anorexie hystérique [Da anorexia histérica], Archives générales de médecine, série VI, tomo 21, v.1, Paris, 1873. 3 Cf. William Gull, Anorexia nervosa (apepsia hysterica, anorexia hysterica) [Anorexia nervosa (apepsia histérica, anorexia histérica)], Transactions of the Clinical Society of London, 7, 1874. 4 Tilmann Habermas, History of anorexia nervosa [História da anorexia nervosa]. In: Linda Smolak e Michael P. Levine (orgs.), The Wiley Handbook of Eating Disorders [O livro Wiley de distúrbios alimentares], John Wiley & Sons, Hoboken (Nova Jersey), 2015. 5 G eorges Vigarello, Les Métamorphoses du gras. Histoire de l’obésité [A metamorfose da gordura. História da obesidade], Seuil, Paris, 2010. 6 Claire Scodellaro, Jean-Louis Pan Ké Shon e Stéphane Legleye, op. cit. 7 E scapad, op.cit. 8 Murielle Darmon, Des jeunesses singulières. Sociologie de l’ascétisme juvénile [Juventudes singulares. Sociologia do ascetismo juvenil], Agora débats/jeunesses, n.56, Paris, 2010. 9 Delphine de Vigan (sob o pseudônimo de Lou Delvig), Jours sans faim [Dias sem fome], Grasset, Paris, 2001.t.
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MÉDICOS E ENFERMEIROS DENUNCIAM “A DITADURA DA ECONOMIA”
Na Alemanha, hospitais bem rentáveis Durante o pico epidêmico do coronavírus, o sistema de saúde alemão serviu de modelo graças a seus leitos de UTI mais bem equipados. Porém, por lá, os cuidadores e os hospitais denunciam há alguns anos uma falta estrutural de recursos e de pessoal. Por causa, entre outros fatores, de um sistema de financiamento bastante similar à tarifação por atividade, existente na França POR RACHEL KNAEBEL*, ENVIADA ESPECIAL
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xel Hopfmann foi enfermeiro em um hospital por muito tempo. Em 2004, o estabelecimento em que trabalhava, em Hamburgo, foi privatizado. Ele preferiu então continuar na administração pública a se tornar empregado de um grande grupo voltado para o lucro. “Trabalho hoje em um escritório”, especifica. Constanze Weichert, enfermeira há dez anos, deixou outro hospital hamburguês para exercer sua profissão em um ambulatório para pessoas idosas. “Hospital nunca mais”, assegura ela. “Eu adoraria voltar para lá, mas só se as condições de trabalho mudassem.” Para Steffen Hagemann, a experiência hospitalar foi tão difícil que ele não ficou mais de sete anos na profissão de enfermeiro. “É pela imagem do ofício que é preciso se sacrificar; os diretores jogam com isso para calar as reivindicações”, lamenta. Cada vez mais, os profissionais da saúde alemães denunciam as condições de trabalho “maciçamente degradadas”, como testemunha Anja Voigt, enfermeira de UTI em Berlim. “Eu me lembro da época em que podíamos tirar folga e eu tinha tempo para os pacientes. Hoje, eu tiro uma folga por mês, às vezes.” Longe da imagem idílica transmitida durante a crise do coronavírus pela mídia francesa, o sistema hospitalar alemão também sofre de falta de recursos e de pessoal. Sejam os sindicatos dos enfermeiros ou dos médicos, todos lamentam a falta gritante de profissionais da saúde nos hospitais. Um estudo da fundação Hans-Böckler estima em 100 mil o número de vagas de enfermeiros em regime integral que deveriam ser criadas.1 Tendo em vista a dureza da atividade, os cargos de enfermeiros oferecidos nem encontram mais ocupantes. É certo que a Alemanha contabiliza muito mais leitos de UTI que seus vizinhos europeus: 34 para cada 100 mil habitantes, contra 16,3 na França e 8,6 na Itália.2 “Mas, se houvesse tantos doentes graves de Covid-19 como
O sistema hospitalar alemão sofre de falta de recursos, diferente da imagem transmitida na crise do coronavírus no norte da Itália, teríamos tido os leitos, de fato, mas não o pessoal para cuidar dos pacientes”, ironiza Nadja Rakowitz, diretora da Associação de Médicos Democratas (Verein demokratischer Ärztinnen und Ärzte, VdÄÄ). Alguns meses antes da epidemia, a Alemanha discutia até a pertinência de manter tantos lugares de hospitalização: um estudo da Fundação Bertelsmann preconizava fechar mais da metade dos hospitais do país.3 “Em seguida chegou o coronavírus, e todo mundo viu que era bom, na verdade, ter muitos hospitais e leitos...”, destaca ainda Nadja Rakowitz.
ACENTUAR A CONCORRÊNCIA Para compreender tais paradoxos, deve-se voltar às decisões políticas tomadas na Alemanha sobre hospitais no curso das últimas décadas.
Em 1985, uma lei abriu amplamente o mercado de cuidados hospitalares às empresas privadas com fins lucrativos. A partir daí, criaram-se e fortaleceram-se os grandes grupos alemães de clínicas: Sana, Asklepios, Röhn e Helios (comprado pela multinacional de materiais médicos Frenesius). Não existe diferença de tratamento financeiro entre os estabelecimentos públicos, privados sem fins lucrativos e privados com fins lucrativos. Todos estão inscritos nos planos regionais de oferta de saúde; a distinção não foi feita nem mesmo na terminologia utilizada. Depois, em 2004, no mesmo momento em que a França estabeleceu a Tarifação por Atividade (tarification à l’activité, T2A), a Alemanha adotou um sistema similar, o da “taxa fixa por caso”. Não eram mais os cuidados efetivos que eram financiados,
e sim as taxas fixas segundo um catálogo de patologias, qualquer que fosse o número de dias de hospitalização necessário. Como na França, os procedimentos técnicos – por exemplo, as operações de prótese de quadril, de joelho, as cirurgias em geral – são remunerados de maneira bem melhor que um parto normal ou a pediatria. A T2A francesa e a “taxa fixa por caso” alemã têm no fim a mesma origem: o sistema de “grupos relacionados aos diagnósticos” (ou DRG, diagnosis related groups) importado dos Estados Unidos, onde foi introduzido no começo dos anos 1980.4 “O objetivo do novo sistema de fundos era claramente visar a mais rentabilidade – nada havendo a se objetar em relação a isso. Mas tratava-se também de acentuar a concorrência entre os estabelecimentos e chegar a
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Krankenhausgesellschaft). “Por isso, o orçamento destinado aos custos de funcionamento é em parte utilizado para financiar os investimentos, e as economias recaem sobre a folha de pagamento”, acrescenta o político.
Uma vez privatizados, os estabelecimentos se concentram quase sempre nas doenças mais lucrativas Com a passagem a uma tarifação por procedimento, no quadro de um orçamento restrito, a gestão se tornou comandante de bordo. Um novo setor de cargos surgiu: os “gerentes de DRG”, os controladores e outros programadores encarregados de zelar pelo correto registro dos procedimentos, respeitando as mais de mil categorias que contêm hoje o catálogo alemão de tarifação. “Codificar no computador ocupa pelo menos 20% do meu tempo de trabalho. Para os médicos é ainda pior”, relata a enfermeira berlinense Anja Voigt. Cansados do domínio crescente da lógica econômica, os funcionários dos hospitais alemães rejeitam cada vez mais esse sistema. No fim de 2019, a revista Stern publicou um apelo de dezenas de médicos e grupos de profissionais pedindo para “salvar a medicina”.6 “Os pacientes que têm dúvidas, medo da dor ou da morte não são levados em consideração em nossos hospitais”, escrevem também eles. No front dos paramédicos, as greves por melhores condições de trabalho se multiplicam desde 2015. O movimento começou no Hospital Berlinense da Caridade. Desde então, acordos de “descarga” de trabalho foram obtidos em quase vinte hospitais públicos pelo país. Estes últimos preveem uma proporção de pessoal necessária para o número de pacientes, diferente para cada serviço, e determinada com base na experiência dos profissionais da saúde. Os dias trabalhados com efetivo reduzido dão aos enfermeiros o direito à reposição de descanso. “O objetivo desses acordos é obrigar os diretores a contratar mais pessoal, e isso funciona”, assegura Michel Quetting, que conduziu as negociações para a federação sindical Verdi. “As greves dos profissionais da saúde recebem em geral um grande apoio da opinião pública, ao contrário de movimentos de motoristas de ônibus, por exemplo. Hoje, os trabalhadores do setor da saúde têm a possibilidade de infligir uma derrota ao neoliberalismo. Seria a primeira vez, e isso se mostraria significativo
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uma queda no número de hospitais”, estima Uwe Lübking, da Associação de Municípios da Alemanha. Com exceção dos Centros Hospitalares Universitários (CHU), que dependem dos estados-região, os hospitais públicos na Alemanha são uma competência dos municípios e dos distritos intermunicipais, os Landkreis. Desse modo, são essas coletividades que devem compensar os déficits, que vendem às vezes seus hospitais a grupos privados ou que veem esses mesmos grupos fechá-los quando não são mais tão lucrativos. Mais de trezentos hospitais e clínicas desapareceram na Alemanha desde os anos 2000, e cerca de 50 mil leitos de hospitalização foram suprimidos, ao passo que o número de casos acompanhados aumentou em vários milhões. Ao mesmo tempo, o setor privado com fins lucrativos expandiu sua participação: representava 15% do total de estabelecimentos em 1992, depois 37%, ou seja, mais de um terço, em 2018.5 Muitos hospitais públicos foram de fato privatizados, às vezes em condições contestadas. Em 2004, por exemplo, a venda de sete estabelecimentos de Hamburgo ao grupo Asklepios foi realizada contra a vontade dos habitantes da cidade-estado: três quartos dos votantes se opuseram à ação em um referendo local. Uma vez privatizados, os estabelecimentos se concentram quase sempre nas doenças mais lucrativas. Custeados exatamente da mesma maneira, os hospitais públicos entraram, por sua vez, em uma corrida pela rentabilidade. “Desse modo, postos em concorrência uns contra os outros, os estabelecimentos olharam para o que era o melhor em termos de remuneração em um sistema de taxa fixa por caso – por exemplo, a cardiologia, a ortopedia – e se equiparam em função disso. Em minha opinião, é por essa razão que temos tantos leitos de UTI”, explica Nadja Rakowitz. Outra especificidade do sistema hospitalar alemão é seu custeio dual. Os custos ditos de funcionamento – portanto, de pessoal – são assumidos pelo seguro-saúde; os de investimentos – prédio, equipamentos... – devem normalmente ser abonados pelos estados-região (Länder), tanto nos estabelecimentos públicos como nos privados. Ou seja, “todos os estados-região, nesse contexto da política de ‘freio à dívida pública’ e tendo em vista sua situação orçamentária, alocam muito pouco dinheiro”, analisa Harald Weinberg, deputado do Partido Die Linke (A Esquerda) no Bundestag. Faltariam também aos hospitais quase 4 bilhões de euros por ano de recursos públicos, segundo os cálculos da Associação Alemã de Hospitais (Deutsche
para todos os outros setores da economia”, pensa o sindicalista. Além do envolvimento de agentes hospitalares, alianças de cidadãos por “mais empregados nos hospitais” se constituíram em uma dúzia de municípios da Alemanha. Em quatro cidades e regiões (Baviera, Bremen, Berlim e Hamburgo), reuniram milhões de assinaturas necessárias para exigir um referendo local de iniciativa popular sobre o tema. Em toda parte, as autoridades rejeitaram a demanda, sob a justificativa de que a questão não seria de competência dos estados federais. São, no entanto, eles que definem os programas de cuidados hospitalares. Nos municípios, a privatização começou a diminuir o ritmo. Nesses últimos anos, alguns hospitais foram até “remunicipalizados”. No começo de junho, no distrito cantonal de Ludwigslust-Parchim, em Meclemburgo-Pomerânia Ocidental, a assembleia do Landkreis decidiu, por exemplo, pela recompra por meio da coletividade de um pequeno hospital de 74 leitos que havia sido privatizado em 1997. A moção foi votada “por unanimidade”, precisa o representante distrital Stefan Sternberg. Pouco antes do Natal passado, a empresa que possuía o estabelecimento, uma filial do grupo Asklepios, havia anunciado sem consultas que queria fechar a maternidade. “Houve uma forte mobilização dos habitantes, e a notícia provocou um debate sobre a organização da oferta de serviços de saúde nas regiões rurais, em particular nas zonas com baixa densidade demográfica, como a nossa”, explica o social-democrata de 37 anos. Para ele, “a municipalização não é a panaceia, mas, quando se trata de acesso à saúde, creio que se deva tomar esse caminho, com um parceiro privado que entenda de gestão”. Seu projeto, nesse caso, é preservar o controle de 51% do hospital e vender o restante das cotas a um ator privado, mantendo-se em ligação com outros estabelecimentos hospitalares do território já cogeridos pela coletividade. “Não temos influência no sistema de tarifação”, explica, “mas, se gerirmos diversos estabelecimentos especializados em diferentes setores, podemos realizar economias em escala.” Em 2016, em Hesse, um político de direita, Michael Koch, também iniciou a “remunicipalização” de uma clínica em seu cantão. Para o conservador, “os hospitais alemães são subfinanciados. Seus custos de manutenção e os gastos para dispor da oferta de cuidados em caso de necessidade deveriam também ser cobertos, em particular nas zonas rurais. Ele compara os hospitais aos bombeiros ou à polícia: “Eles não são pagos unicamente
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tendo por base o número de suas intervenções”, argumenta.
AMEAÇA AOS PROFISSIONAIS DA SAÚDE O descontentamento relativo ao subfinanciamento finalmente mudou as coisas no governo. Desde o começo de 2020, os hospitais recebem um orçamento específico para o pessoal de cuidados não médicos, doravante mantidos independentemente do faturamento da atividade. E, durante a crise sanitária, os estabelecimentos hospitalares receberam dinheiro para os leitos mantidos vazios, a fim de acolher eventuais pacientes contaminados pela Covid-19. Ou seja, o exato inverso da tarifação por procedimento, na qual um leito sem paciente não gera nada. Contudo, nesse caso também, a epidemia pesou nos caixas dos seguros-saúde e nas contas dos estabelecimentos de saúde, que realizaram poucas cirurgias durante alguns meses. Há quem tema que a discussão sobre o fechamento dos hospitais volte rapidamente à mesa. A ameaça das consequências pesa até sobre os profissionais da saúde. No cerne da epidemia, o governo regional da Renânia do Norte-Vestfália – comandado pelo conservador Armin Laschet, candidato à sucessão de Angela Merkel – quis adotar uma medida para forçar as pessoas formadas na área da saúde a trabalhar no hospital, mesmo contra sua vontade. A proposta suscitou grande oposição e foi finalmente abandonada. Os ex-enfermeiros Axel Hopfmann e Steffen Hagemann não precisarão, por enquanto, voltar a usar uniformes brancos à força. *Rachel Knaebel é jornalista. 1 Michael Simon, Von der Unterbesetzung in der Krankenhauspflege zur bedarfsgerechten Personalausstattung [De falta de pessoal em cuidados hospitalares a pessoal baseado em necessidades], Hans-Böckler-Stiftung, out. 2018. 2 “ Beyond Containment: Health systems responses to COVID-19 in the OECD” [Além da contenção: respostas dos sistemas de saúde à Codiv-19], Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), Paris, 16 abr. 2020. 3 Zukunftsfähige Krankenhausversorgung [Cuidados hospitalares sustentáveis], Fundação Bertelsmann, Gütersloh, 2019. 4 Ler Philippe Froguel e Catherine Smadja, La peau de chagrin du système public après six ans de reaganisme [A pele de onagro do sistema público após seis anos de reaganismo], Le Monde Diplomatique, jun. 1987. Cf. também Reinhard Busse, Alexander Geissler, Wilm Quentin e Miriam Wiley (dirs.), Diagnosis-Related Groups in Europe [Grupos Relacionados aos Diagnósticos na Europa], Open University Press, Maidenhead, 2011. 5 Fontes: Escritório Federal de Estatística Alemão e Institut Arbeit und Qualifikation da Universidade de Duisburg-Essen. 6 “ Der Ärzte-Appell: Rettet die Medizin!” [O apelo dos médicos: salvem a medicina!], Stern, Hamburgo, 1º out. 2019. Disponível em: www.stern.de.
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A POBREZA RECICLADA PELO CONSUMO
Migalhas suecas Lutar contra o desperdício alimentar oferecendo às populações pobres preços vantajosos ou até um trabalho: os supermercados “sociais e solidários” Matmissionen, na periferia de Estocolmo, apresentam-se como virtuosos. Testemunham, contudo, uma mudança da Suécia, onde o recuo do Estado social conduziu a uma sociedade desigual POR YACINE BOUKHRIS-FERRÉ*
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entregas imprevistas de produtos que não teriam meios de comprar em um supermercado comum. Para tornar-se cliente-membro e aproveitar os descontos de pelo menos 70% em relação ao preço do supermercado mais barato, é preciso estar inscrito em um programa social ou ganhar menos de 9.972 coroas suecas (R$ 6.351) por mês. Exceções são abertas de acordo com o tamanho do lar ou diante de situações de endividamento. A estrutura concentra assim sua ação sobre as unidades familiares que vivem na linha da pobreza (11.830 coroas suecas, ou seja, R$ 7.535 por pessoa), às vezes bem abaixo disso. Metade do quadro de funcionários é composto de assalariados contratados, sendo a outra metade formada por estagiários, que recebem uma contribuição a cargo da agência local para o emprego e condicionada ao cumprimento do estágio. As compras são levadas bastante a sério, e a maioria dos clientes aplaude essa iniciativa, que lhes permite eco-
A maioria dos clientes aprova a iniciativa, que lhes permite economizar
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eio-dia de uma terça-feira normal, em Hägersten, na periferia sul de Estocolmo. Dezenas de clientes aguardam diante dos portões do supermercado “social e solidário” Matmissionen (cujo significado é “missão alimentar”). Os primeiros chegaram duas horas antes, a fim de obter uma senha melhor na fila de espera. Podem, enfim, entrar na loja, mas a conta-gotas, não mais de dez por vez. Tal procedimento estabelecido bem antes da pandemia de Covid-19 visa evitar tumultos. As portas só ficam abertas do meio-dia às 17 horas, de segunda a sábado. Todavia, muitos clientes passam boa parte de seu dia deslocando-se para chegar às lojas Matmissionen, montadas, desde 2015, pela associação Stockholms Stadsmission na periferia da capital (a mais recente, em Jakobsgerg, foi aberta em abril). Muitos não hesitam em aguardar bastante tempo na esperança de eventuais
nomizar em alimentos em um contexto social cada vez mais difícil. Isso possibilita a John T.,1 por exemplo, convidar suas duas filhas para jantar e preparar-lhes belos pedaços de salmão, algo que não poderia servir em outras circunstâncias. Também consegue se dar pequenos prazeres graças às economias realizadas: uma caixa de snus (pó de tabaco), café ou ainda um bilhete de loteria. Nesrin G., por sua vez, consegue alimentar seus cinco filhos e até cozinhar um prato vegetariano para três deles: “Eles fazem muito exercício físico e evitam comer carne... Aqui é perfeito. Hoje peguei verduras e ingredientes para fazer lasanhas vegetarianas: uma caixa por 60 coroas suecas (R$ 38)! [...] A qualidade é importante para nós”. Para o Natal, um generoso doador anônimo ofereceu ajuda nas compras dando 150 coroas suecas (R$ 96) a cada membro, gerando um frenesi entre a clientela e uma explosão de vendas.
IDEOLOGIA DO “GANHA-GANHA” Nessas lojas, podemos encontrar produtos de marcas mais básicas, mas também de boa qualidade, orgânicos etc. Tudo depende do que as marcas parceiras decidem ceder naquele momento. Os Matmissionen se abastecem junto às redes alimentares clássicas, que se livram assim de seu excedente quando a data de validade se aproxima, a embalagem foi danificada ou quando compraram mercadorias em excesso. Adquirindo com desconto e no último estágio da cadeia alimentar, esses clientes conseguem em definitivo fazer economias nos custos ligados à triagem, à gestão das reservas e à destruição dos produtos perecíveis. Com tantas despesas evitadas para as empresas que estão por trás do projeto, o grupo agroalimentar Axfood, um dos gigantes nacionais, obteve até um salto no princípio da “responsabilidade social da empresa” (RSE) e pôde em seguida comunicar seu engajamento em favor de uma sociedade mais igualitária. Vistos em muitos aspectos como um “excesso” do sistema de proteção social, esses clientes também são inte-
grados ao circuito econômico de produção de mais-valia. O Matmissionen aplica uma lógica empresarial na gestão da insegurança alimentar: trata-se de fazer os núcleos familiares de baixa renda consumirem produtos retirados do circuito mercantil tradicional nos supermercados clássicos. Tal lógica se acompanha de um discurso que retoma a ideologia do “ganha-ganha”. A comunicação da Stadsmissionen é bem clara: o objetivo é levar ajuda pontual aos lares em dificuldade, reforçando seu egen makt, ou seja, sua capacidade de recuperar o curso da própria vida. A irrupção desse tipo de solução na Suécia se explica pela evolução ocorrida no país desde os anos 1990, marcada pelo retorno dos partidos burgueses ao poder, seguido de um desvio liberal dos sociais-democratas, que aprovaram o recuo do Estado-providência e a privatização dos serviços públicos.2 A redistribuição de renda não é mais tão igualitária como já foi, conforme mostra o aumento do coeficiente de Gini – medida estatística que determina o nível de distribuição de riquezas em uma população. Ainda bem inferior à média europeia, passou de 0,21 a 0,28 entre 1985 e 2017, enquanto o da França passou de 0,30 a 0,31, e o do Brasil, de 0,60 a 0,533 (quanto mais esse indicador se aproxima de zero, menores são as discrepâncias de renda). Outrora conhecida por suas políticas sociais, a Suécia não faz mais parte da exceção ao aumento da “precariedade”, com um endurecimento das condições de acesso às prestações sociais e a um emprego estável. Essa consolidação liberal do projeto explica que a ajuda concedida se concentre na figura do consumidor. Participando da iniciativa, o setor de associações de caridade tem por objetivo um tipo de inclusão das populações vulneráveis por meio do consumo. Tal maneira de reciclar a pobreza “alivia” o Estado social, minimizando as falhas estruturais do sistema de produção (desperdício, desemprego, desigualdades), que não proporciona a todos uma alimentação decente. *Yacine Boukhris-Ferré é doutorando em Ciência Política no Centro Émile Durkheim, Universidade de Bordeaux, França, e ex-voluntário em uma unidade do supermercado Matmissionen. 1 A s pessoas entrevistadas pediram anonimato, e seus nomes foram modificados. 2 Ler Violette Goarant, “En Suède, au nom de la ‘liberté de choix’” [Na Suécia, em nome da “liberdade de escolha”], Le Monde Diplomatique, set. 2018. 3 Fontes: Desigualdade de renda, base de dados da OCDE, 2020; Fabrice Perrin, “Des inégalités croissantes en Suède...” [Desigualdades crescentes na Suécia...], Regards, n.45, mar. 2014; e IBGE.
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A EXCELÊNCIA JÁ NÃO É MAIS A MESMA
Os medos dos brancos nos Estados Unidos A chegada de famílias asiáticas aos bairros abastados está provocando uma fuga dos brancos nos Estados Unidos. Fenômeno semelhante ao ocorrido após o fim da Segunda Guerra Mundial, quando afro-americanos migraram dos estados do sul rumo ao norte. Abandonar bairros cobiçados por sua segurança, prestígio e escolas de alto nível não é a estratégia mais inteligente a seguir, mas os brancos querem preservar o lugar de seus filhos no topo da hierarquia meritocrática POR RICHARD KEISER*
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partir da Segunda Guerra Mundial, a “grande migração” de afro-americanos do sul dos Estados Unidos para as cidades industriais do norte e do meio-oeste do país causou uma “fuga” dos brancos. Estes preferiram ceder às pressas seu patrimônio imobiliário, preocupados em ficar entre aqueles que estavam chegando e com medo de que uma vizinhança negra tornasse seu bairro menos seguro, ou menos atraente, ou ainda que o padrão das escolas caísse.1 Hoje, uma nova “fuga branca” pode ser observada entre as classes média e alta, agora em reação às famílias de ascendência asiática que se instalam em suas abastadas áreas residenciais. De um ponto de vista puramente financeiro, abandonar bairros cobiçados por sua segurança, seu prestígio e suas escolas de alto nível não é a estratégia mais inteligente a seguir, mas os brancos querem preservar o lugar de seus filhos no topo da hierarquia meritocrática. O fenômeno foi identificado pela primeira vez em 2005 em um artigo do Wall Street Journal sobre a cidade de Cupertino, sede da Apple e de várias outras empresas do Vale do Silício. Dinâmicas semelhantes foram observadas em outros subúrbios que abrigam uma proporção substancial de famílias asiático-americanas, na Califórnia, em Maryland, Nova Jersey e Nova York. Todos esses bairros têm em comum o fato de serem povoados por classes médias ou altas brancas, com alto valor imobiliário e escolas de renome. Neles, os residentes asiático-americanos de segunda geração (essencialmente de origem chinesa e indiana) dobraram em dez anos, representando de 15% a 40% da população. Em 1984, os alunos brancos representavam 84% do total de alunos da Mission High School do Vale do Silício, classificada como a melhor escola de ensino médio da Califórnia; em
Bairros de classe média e alta passam por uma “fuga branca” 2010, sua participação havia despencado para 10%, enquanto a dos asiático-americanos havia saltado para 83%.2 Os brancos fugiram de seus santuários, normalmente para bairros próximos com menos alunos de origem asiática nas escolas públicas. Muitos deles expressam um sentimento paradoxal: ao mesmo tempo em que afirmam estar preocupados com o futuro dos filhos, reclamam que as escolas primárias que deveriam servir de trampolim para as escolas secundárias mais visadas tornaram-se muito competitivas, sob a influência dos recém-chegados asiático-americanos e sua obsessão com desempenho. Eles tiraram seus filhos das principais escolas de ensino mé-
dio da Califórnia, acusadas de dar importância excessiva às avaliações dos alunos e às taxas de admissão nas faculdades de elite – critérios nos quais os filhos das famílias asiático-americanas se destacam. Aqueles que se consideravam a elite do país agora se sentem discriminados, pois, enquanto seus filhos jogam futebol ou vão à praia, seus colegas asiático-americanos sacrificam seu tempo livre em programas de preparação para exames. Em 2013, dois professores de escolas do norte da Califórnia concluíram: “A ‘asiaticidade’ está intimamente ligada aos valores de perfeccionismo, trabalho árduo e sucesso escolar e universitário. Em contraste, a ‘branquicidade’
remete às noções de imperfeição, preguiça e mediocridade acadêmica”.3 Prova disso é o aumento da tendência dos pais brancos a matricular seus filhos em escolas públicas menos competitivas. Essa reorientação estratégica das classes médias e altas brancas é uma reação à sua precariedade identitária. Ela responde ao medo de que estejam em risco seus privilégios de nascimento, que há séculos estão associados à cor de sua pele. Na Mission High School, a maioria dos alunos de ensino médio matriculados nos cursos de “Advanced Placement” – programa de introdução à educação universitária – pertence à minoria asiático-americana, enquanto os que não o frequentam são predominantemente brancos. Ocorre que esse programa altamente seletivo constitui uma via de acesso garantido às melhores universidades do país. É indiscutível que os brancos, especialmente os homens, continuam dominando o topo do capitalismo norte-americano. Na Google, por exemplo, eles ainda ocupam dois de cada três cargos de direção. No entanto, em 2019, a gigante da tecnologia recrutou mais mulheres asiático-americanas do que brancas, e este ano o mesmo se deu em relação aos homens.4 A estrada para o sucesso já não é mais pavimentada somente de branco: há uma recomposição da hierarquia dos diplomas. Rebaixadas, as famílias brancas tentam reconquistar terreno apresentando suas fraquezas como pontos fortes. Sua definição de excelência não se limita mais aos resultados, passando a valorizar a diversidade de interesses, o espírito aberto e a busca por certa “normalidade”, em oposição ao excesso de ambição e carreirismo. Historicamente, a branquicidade masculina sempre foi definida como norma. A cada vez que um grupo dominado desafiou seu poder, ele foi empurrado para o limbo da anormalidade. Quando as mulheres reivindicaram direitos iguais, foram chamadas de irracionais ou emocionalmente instáveis. Da mesma forma, a luta por igualdade racial e pelos direitos dos imigrantes choca-se constantemente com uma retórica de inferiorização intelectual (“são menos inteligentes”) ou psicologizante (“são inaptos para a democracia”). É, portanto, bastante lógico que o excepcional sucesso dos alunos de origem asiática seja visto não como um coroamento do “sonho americano”, mas como o produto de uma educação rígida que impede suas vítimas de ter uma vida normal, com lazer, esportes e milkshake com os amigos. A admitir a derrota, os pais
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OS ESGOTOS, SENTINELAS SANITÁRIAS
o número de judeus dotados de uma personalidade ou de modos questionáveis”,5 destaca um desses documentos. Segundo o Comitê de Admissão de Harvard na década de 1950, a lista de indesejáveis incluía “neuróticos desalinhados com a comunidade”, “instáveis” e suspeitos de “tendências homossexuais ou problemas psiquiátricos graves”. Sem falar, é claro, da exigência de “lealdade” patriótica, que, durante o período do macarthismo, permitia afastar elementos suspeitos de simpatia pelo Partido Comunista (então proibido). Como destaca Karabel, “a definição de mérito é fluida e tende a refletir os valores e interesses daqueles que têm o poder de impor suas visões culturais particulares”. A atual “fuga branca” das escolas frequentadas por asiático-americanos faz parte dessa redefinição de mérito que visa preservar o poder daqueles que o exercem. *Richard Keiser é professor de Estudos Americanos e Ciência Política do Carleton College (Northfield, Estados Unidos). 1 L er Serge Halimi, “L’Université de Chicago, un petit coin de paradis bien protégé” [Universidade de Chicago, um pedacinho do paraíso muito bem protegido], Le Monde Diplomatique, abr. 1994. 2 Willow Lung-Amam, Trespassers? Asian Americans and the battle for suburbia [Invasores? Os norte-americanos de origem asiática e a batalha pelos subúrbios], University of California Press, Berkeley, 2017. 3 Tomas R. Jimenez e Adam L. Horowitz, “When white is just alright: how immigrants redefine achievement and reconfigure the ethnoracial hierarchy” [Quando branco é apenas razoável: como os imigrantes redefinem as conquistas e reconfiguram a hierarquia etnorracial], American Sociological Review, Washington, DC, 30 ago. 2013. 4 Cf. Allison Levitsky, “For the first time, White men weren’t the largest group of U.S. hires at Google this year” [Pela primeira vez, os homens brancos não foram os mais contratados do ano no Google dos Estados Unidos], Silicon Valley Business Journal, San Jose, 5 maio 2020. 5 Esta citação e as seguintes foram extraídas de Jerome Karabel, The chosen [Os escolhidos], Houghton Mifflin Harcourt, Boston, 2005.
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brancos preferem queimar seus ídolos e buscar refúgio em instituições onde o mérito é medido em termos de desempenho escolar e de crescimento pessoal. Essa mudança não deixa de ser irônica, se lembrarmos que durante a segunda metade do século XX os asiático-americanos eram celebrados como uma “minoria modelo”, em oposição aos negros e aos latinos. Fingindo cantar os méritos de uma minoria, o que se fazia era culpar as outras pela discriminação estrutural que sofriam. Se tudo parecia dar certo para os asiático-americanos, isso não era prova de que os outros não brancos, ao contrário do que afirmavam e por menos motivados que fossem, tinham plena igualdade de oportunidades? A América racista podia, assim, disfarçar-se de “terra das oportunidades” e culpar os negros e os latinos por sua falta de engajamento para subir na escala social. Mas, agora, as características antes admiradas – culto ao trabalho, senso de disciplina, valores familiares – subitamente perderam o valor. O aluno brilhante que ganhava os louros tornou-se um antissocial de quem é melhor se afastar. Essa tática de preservação da supremacia branca na ordem social e econômica não é nova: ela se localiza na continuidade do tratamento administrado aos judeus pela elite Wasp (sigla para White Anglo-Saxon Protestant, protestante anglo-saxão branco), como mostrou o sociólogo Jerome Karabel. Suas pesquisas baseadas em documentos de admissão em Harvard, Yale e Princeton revelaram a existência de um plano organizado para limitar estritamente a matrícula de estudantes judeus, por meio de critérios nebulosos como “masculinidade”, “personalidade” ou “liderança”. Uma política que mesclasse ao mérito acadêmico julgamentos morais fundados em entrevistas “inevitavelmente reduziria
Bombas biológicas nos aeroportos Se “seguir o dinheiro” é um método comprovado para investigar a corrupção ou o abuso de poder, “seguir as águas” é um procedimento eficaz em matéria sanitária. Já reveladoras em matéria de consumo de opiáceos ou de antibióticos, as efluências informam preciosamente sobre a circulação do Sars-CoV-2, o vírus da Covid-19 POR MOHAMED LARBI BOUGUERRA*
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creditávamos conhecer o cenário da chegada do novo coronavírus à Europa com os primeiros casos graves detectados no fim de janeiro e as primeiras mortes no fim de fevereiro. Na Itália, o Instituto Superior de Saúde descobriu outra história, tornada pública em 18 de junho: “Os resultados, confirmados em dois laboratórios por dois métodos diferentes, mostraram a presença de RNA de Sars-Cov-2 em amostras [de esgoto] recolhidas em Milão e Turim em 18 de dezembro de 2019”, explica Giuseppina La Rosa, do Departamento de Qualidade da Água e da Saúde. “Já as amostras de outubro e novembro de 2019, bem como todas as amostras de controle, apresentaram resultados negativos.”1 Essa descoberta, preciosa para compreender os mecanismos de difusão da pandemia vinda da China, foi recuperada por um estudo retrospectivo de amostras respiratórias do fim de dezembro de 2019 na
França e nas águas de Barcelona, positivas quarenta dias antes do primeiro caso confirmado oficialmente. As redes de saneamento transportam resíduos químicos do metabolismo humano ricos em informações sobre a alimentação, os medicamentos e até mesmo substâncias ilegais ingeridas, mas também sobre doenças das quais a população sofre. “Uma estação de tratamento pode captar as águas residuais de mais de 1 milhão de pessoas”, explica o professor Gertjan Medema (Universidade de Tecnologia de Delft, Instituto Holandês de Pesquisas sobre a Água), que estuda a transmissão de doenças infecciosas no meio aquático.2 O estudo e o acompanhamento dos fluxos fornecem melhores estimativas do progresso do coronavírus que os exames médicos, pois essa supervisão levaria em conta, segundo ele, os indivíduos que só apresentam sintomas leves ou não apresentam ne-
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nhum sintoma. Na França, o estudo do Observatório Epidemiológico das Águas Residuais (Obépine) evidenciou uma correlação entre a quantidade de vírus encontrada entre 5 e 23 de abril em três estações de tratamento na região de Île-de-France e o número de casos de Covid-19.3 A análise das águas antes de seu tratamento sanitário já prestou preciosos serviços aos Estados Unidos diante do drama provocado pela dependência de opiáceos e dos milhares de mortes ocorridas por conta disso no país.4 Entre 2006 e 2014, a indústria farmacêutica norte-americana vendeu 60 bilhões de pílulas potencialmente viciantes. Ela acaba de ser condenada a direcionar US$ 19,2 bilhões a trinta estados.5 Jovens formados pelo Massachusetts Institute of Technology (MIT) analisaram as águas residuais da cidade de Cary, na Carolina do Norte, um estado bastante afetado por esses medicamentos utilizados como entorpecentes. Durante o verão de 2018 e sem invadir a vida privada de ninguém, eles puderam desenhar o mapa da distribuição desses analgésicos potentes nas águas residuais da cidade. Armada dessa geolocalização, a prefeitura montou uma campanha com público-alvo determinado de sensibilização sobre os perigos e obteve uma queda considerável no número de overdoses.6 Hoje, a aceleração da mobilidade dos seres humanos facilita muito a difusão no mundo inteiro de genes e bactérias resistentes aos antibióticos (BRA) surgidas após a utilização maciça de medicamentos anti-infecciosos nos humanos e nas criações de animais. A fim de identificar os pontos críticos e as vias de difusão das cepas resistentes, uma equipe internacional de pesquisadores se dedicou há pouco tempo à análise dos esgotos de cinco aeroportos, bem como dos aviões comerciais cujas instalações sanitárias são compartilhadas por um público internacional.7 Descobriram “uma fonte extraordinária de BRA e de genes resistentes aos antibióticos em termos de diversidade e de quantidade”, graças em especial aos novos métodos de sequenciamento do conteúdo genético das amostras oriundas de ambientes complexos (metagenômica). A título de comparação, esses cientistas quantificaram esses tipos de genes e bactérias nas efluências das estações de tratamento municipais com e sem conexão com aeroportos. Conforme esperado, as águas residuais das aeronaves continham um conjunto extraordinariamente rico em genes móveis e desenvolvido em relação àquelas extraídas das redes municipais. Fato intrigante: certas cepas de bactérias Escherichia coli encontra-
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A análise das águas antes de seu tratamento sanitário já prestou preciosos serviços aos Estados Unidos das nas águas residuais de aviões apresentaram uma resistência combinada bem mais elevada que o normal a diversas classes de moléculas antibióticas, entre elas as cefalosporinas, muito úteis na luta contra certos bacilos. A equipe de pesquisadores internacionais chegou à conclusão de que os esgotos dos aeroportos constituem uma ameaça potencial, na medida em que contribuem com a disseminação de genes de resistência aos antibióticos no ambiente aquático, genes esses que não são encontrados no ambiente local. No momento em que o desconfinamento se organiza ao redor do mundo, um acompanhamento de rotina das efluências urbanas poderia servir de ferramenta de alerta para as autoridades. Pesquisadores do Instituto Nacional Holandês de Saúde Pública e do Ambiente detectaram traços do Sars-Cov-2 nas águas residuais do Aeroporto de Schiphol apenas quatro dias após a confirmação pelas autoridades de um primeiro caso de Covid-19, detectado por um teste clínico. A equipe de microbiologia do professor Medema encontrou RNA viral nas águas residuais da cidade de
Amersfoort antes de as infecções serem relatadas no seio da população. Na Itália, o Instituto Superior de Saúde propôs lançar uma rede de acompanhamento do coronavírus nas águas residuais e se prepara para garantir um monitoramento em todo o país durante os períodos potencialmente mais críticos do outono. Em Paris, os autores do estudo consideram que as águas residuais podem fornecer uma “ferramenta alternativa e talvez precoce para detectar os agentes patogênicos nas populações, ao passo que as pesquisas em humanos são difíceis de conduzir por razões logísticas, éticas ou econômicas, em especial em países pobres”.8 No fim de junho, constataram uma leve recuperação do vírus. “Os únicos e verdadeiros adversários da humanidade na dominação do planeta são os vírus”, afirma Joshua Lederberg, Prêmio Nobel de Medicina em 1989. A pandemia atual nos lembra que essa é a entidade mais abundante nos sistemas aquático e terrestre. *Mohamed Larbi Bouguerra é membro da Academia Tunisiana de Ciências, Letras e Artes Bait al Hikma (Cartago) e ex-diretor
de pesquisa associado do Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS), da França. 1 C omunicado do Instituto Superior de Saúde n.39/2020, 18 jun. 2020. 2 Citado por Smriti Mallapaty, “How sewage could reveal true scale of coronavirus outbreak” [Como o esgoto poderia revelar a verdadeira escala do surto de coronavírus], Nature, Londres, 3 abr. 2020. Disponível em: www.nature.com. 3 C f. Sébastien Wurtzer (col.), Evaluation of lockdown impact on SARS-CoV-2 dynamics through viral genome quantification in Paris wastewaters [Avaliação do impacto do confinamento na dinâmica do Sars-Cov-2 por meio da quantificação do genoma viral nas águas residuais de Paris], 6 maio 2020. Disponível em: www.medRxiv.org. 4 Ler Maxime Robin, “Overdoses sur ordonnance” [Overdoses sob receita], Le Monde Diplomatique, fev. 2018. 5 C f. Jan Hoffman, “Opioid settlement offer provokes clash between state and cities” [Acordo sobre opiáceos provoca racha entre cidades e estados], The New York Times, 13 mar. 2020. 6 C f. Celia Henry Arnaud, “Mariana Matus means to combat the opioid epidemic with chemical data” [Mariana Matus quer combater a epidemia dos opiáceos com dados químicos], Chemical & Engineering News, Washington, n. 98-9, 8 mar. 2020. 7 C f. Stefanie Hess et al., “Sewage from airplanes exhibits high abundance and diversity of antibiotic resistance genes” [Esgoto de aviões exibe grande abundância e diversidade de genes resistentes a antibióticos], Environmental Science & Technology, Washington, v.53, n.23, 12 nov. 2019. 8 Ibidem.
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CINEMA
Renascimento das pioneiras Esquecidas pelos historiadores, as diretoras e roteiristas mulheres contavam-se às dezenas no início do século XX, participando da idade de ouro do cinema mudo. Entre elas, Lois Weber, que retratava a vida cotidiana das norte-americanas e questões sociais, mas cuja obra foi quase toda perdida pelo fogo POR PHILIPPE PERSON*
vinte anos, na França e nos Estados Unidos, onde, com seu marido, Herbert Blaché, criou sua própria empresa de produção perto de Nova York. Ela dirigiu centenas de curtas e alguns longas-metragens antes de desistir, arruinada, por não ter visto a tempo que o futuro se situaria em Hollywood. Por muito tempo negli-
genciada de todas as formas, esquecida, até desapropriada de sua obra, como vemos na pesquisa do historiador do cinema Georges Sadoul, que nem a cita. Após ter enfim reencontrado na França alguma audiência – desde 2017, um prêmio com seu nome vem recompensando diretoras para amenizar a falta de visibilidade destas
nas cerimônias –, hoje nos Estados Unidos ela é objeto de um documentário de Pamela R. Green, Be Natural, com subtítulo A vida escondida de Alice Guy-Blaché, com direito a comentários entusiasmados de atrizes feministas como Jodie Foster.1 No entanto, esse reconhecimento não modifica em nada a ideia que continua a
© Juliana Russo
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E
m 1896, um ano após o nascimento do cinematógrafo, a francesa Alice Guy, de 23 anos, dirigiu A fada do repolho. Esse filme de 51 segundos a tornou a autora da primeira ficção fantástica da história do cinema e também a primeira mulher cineasta. Ela prosseguiu sua atividade de diretora durante cerca de
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a única, com Dorothy Arzner (18971979), a dirigir ao mesmo tempo filmes mudos e falados. Ao contrário de suas colegas, que desapareceriam irremediavelmente nos anos 1920 após terem dirigido apenas alguns filmes, Lois Weber construiu uma obra colossal entre 1911 e 1938, compreendendo pelo menos duzentos curtas e cerca de trinta longas-metragens. Teria sido sobretudo “o” diretor mais bem pago de Hollywood antes da guerra, pois, embora trabalhasse com seu marido, não há dúvidas sobre sua proeminência na responsabilidade das obras – ela escreveu os roteiros, as legendas, interpretou, dirigiu, concebeu os cenários e os figurinos. E, em 1915, foi considerada, segundo sua biógrafa Shelley Stamp,3 equiparada a David Ward Griffith e Cecil B. DeMille. Porém, enquanto o primeiro se destacou com O nascimento de uma nação, para a glória da Ku Klux Klan, e o segundo alimentou clichês racistas com Enganar e perdoar, no qual descreve um japonês refinado marcando com ferro quente uma infeliz branca, Lois Weber tratou da vida cotidiana dos norte-americanos e abordou temas sociais. Ela usou do poder singular, do qual entendeu que o cinema era dotado, para sensibilizar sobre grandes assuntos bastante incômodos, como o controle de natalidade e o planejamento familiar (Where are my children?, 1916), o que ocasionou reações bem marcantes, a pobreza que leva à prostituição (Shoes, 1916), a pena de morte (The People vs John Doe, 1916)... Abordou também sem tabu, embora seu feminismo fosse às vezes um pouco moralista, os problemas das mulheres em uma sociedade dominada pelos homens. Em Hypocrites (1915), permitiu-se até algo inédito que fez barulho e garantiu o triunfo do filme: em superposição, uma mulher aparece totalmente nua representando a verdade. Considerada uma hábil e inventiva técnica, trabalhando tanto sua forma como sua mensagem, como prova seu curta-metragem Suspense (1913), no qual inova separando a tela em três ações, Lois Weber transformou em cada trabalho suas atrizes em vedetes, como Mildred Harris e Claire Windsor, e contribuiu para criar o star system. Quando Carl Laemmle, fundador da Universal, onde ela trabalhou, conseguiu convencer a preço de ouro a famosa dançarina russa Anna Pavlova a aparecer em The dumb girl of Portucci (1916), foi a Lois Weber a quem confiou o projeto. Apesar de sua grande notoriedade, a realizadora foi perdendo pouco a pouco essa posição invejável. O cinema, antes quase artesanal, tornou-se uma indústria capitalista como as
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se propagar no mundo do cinema: um universo de homens, onde Alice Guy só pôde interferir graças a suas qualidades excepcionais. Todavia, essa visão é contestável: entre 1908 e 1920, houve bem mais que apenas uma pioneira entre os desbravadores da sétima arte, e mais que as oito listadas em uma simples nota de rodapé em La Parade est passée,2 principal obra do diretor e historiador Kevin Brownlow sobre o cinema mudo hollywoodiano. No atual estado das pesquisas, contabilizam-se diversas dezenas, a quem podemos atribuir quase duzentos filmes ou serials, folhetins muito populares nos quais se acompanhava a cada semana um novo episódio das aventuras de um personagem cativante. Em 1918, entre a pequena centena de filmes produzidos pelo estúdio Universal, cerca de vinte teriam sido dirigidos por mulheres. Também entraram maciçamente na escrita de roteiros e adquiriram um conhecimento que lhes serviu quando o longa-metragem se tornou a norma. Puderam então participar da era de ouro do cinema mudo, e alguns nomes se tornaram lendários a partir daí: June Mathis, com Os quatro cavaleiros do apocalipse, dirigido por Rex Ingram (1921), e Ben-Hur, de Fred Niblo (1925); Anita Loos, com Intolerância, de David Ward Griffith (1916), e Os homens preferem as loiras, de Malcolm St. Clair (1928), a primeira adaptação de seu romance (1925), retomado depois pela Broadway e a partir do qual Howard Hawks faria em 1953 uma versão que ficou famosa; Frances Marion, com O filho do sheik (1926), de George Fitzmaurice, interpretado por Rudolph Valentino, e Vento e areia (1928), do grande Victor Sjöström. Mesmo o retrógrado Cecil B. DeMille, que se queixava dessa feminização, teve ao seu lado uma roteirista muito eficiente, Jeanie MacPherson (Enganar e perdoar, Macho e fêmea...), que contribuiu bastante para seu renome. Quase sempre, aquelas que passaram para a direção vieram do roteiro. É o caso de Frances Marion (1888-1973), que dirigiu três filmes. Foram tantas contribuições importantes, muito inferiorizadas pelos historiadores, com cada vez mais facilidade, que os anos 1920 afastariam com força as mulheres da direção. Foi o que testemunhou a carreira e a posterioridade da memorável Lois Weber (1879-1939). Marcada por ideias evangélicas e pelo espírito missionário da Church Army Worker (equivalente ao Exército da Salvação), a primeira mulher a dirigir um longa-metragem (O Mercador de Veneza, 1914) exerceu durante mais de 25 anos o trabalho de cineasta e seria
outras. Ao longo dos anos 1920, os principais estúdios se reagruparam, fazendo nascer os sete majors que controlam Hollywood. Ligados ao big business, seus dirigentes pertenciam, daquele momento em diante, à sociedade sofisticada e adotaram posições bem conservadoras. Apelaram, desde 1922, a William Hays, um republicano próximo ao presidente Warren Harding, para estabelecer regras de censura que buscavam combater tanto as ideias progressistas como os atentados aos bons costumes. Foi o nascimento, em 1922, da Motion Picture Producers and Distributors of America (MPPDA), que estabeleceu em 1934 o Código Hays, garantindo por muito tempo a moralidade hollywoodiana (proibição de beijos “lascivos”, de união de indivíduos de “raças” diferentes, de representação negativa da religião etc.).
Alguns acreditavam que a mensagem destilada em seus filmes era “feminista” por natureza, obstinada a provar que não havia “sexo frágil” Como o custo dos filmes viria a aumentar, os estúdios também foram “racionalizados”, acabando com o tempo no qual, para retomar uma expressão de Lois Weber, “cada um fazia um pouco de tudo”. O departamento de roteiros passou a ficar sob o comando do departamento de produção. Os autores-diretores, incluindo D. W. Griffith, desapareceram um após o outro, ao passo que Irving Thalberg, um dos novos barões da produção da Universal, impôs ali sua lei, eliminando o incontrolável Eric von Stroheim de seu filme Esposas ingênuas (1922) e instalando alguns diretores mais dóceis. Para resumir, foi o fim dos “autores”. As mulheres eram alvo de críticas específicas. Alguns acreditavam que a mensagem destilada em seus filmes era “feminista” por natureza, obstinada a provar que não havia “sexo frágil”. De fato, quando, no começo dos anos 1910, estavam no comando dos serials, atrizes e diretoras colocavam em cena heroínas intrépidas e bondosas, modernas e anticonformistas, como Pearl White em Os perigos de Paulina (1914). Esta última possuía, aliás, o físico de uma jovem garota bem simples, em oposição a uma criatura glamour concebida para fazer os homens sonharem e estimular suas acompanhantes a comprar roupas e cosméticos vistos na tela. Na era da prosperidade dos anos 1920, a indústria cinematográfica precisava ser a
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vitrine de um luxo que se democratizava – e não uma incitação à liberação das mulheres ou o eco dos problemas cotidianos da mãe de família, temas estimados por Lois Weber. No entanto, ela iria dirigir ainda mais filmes, conservar seu estatuto e um salário elevado. Porém, ela constatou, impotente, sua marginalização. No contexto do star system, que, contudo, ajudou a construir, seus filmes de assunto social não faziam sonhar. Queixava-se de estar sujeita a um sistema hierarquizado que a obrigava a discutir sem parar tudo aquilo que fazia antes sem embaraços: os cineastas eram agora empregados; não se tratava mais de popularizar os debates, e sim de produzir divertimento. Nos anos 1930, Lois Weber só conseguiu dirigir um filme falado. Refletiu então com a administração Roosevelt sobre o desenvolvimento da educação por meio do cinema, arte que estimava ser a única capaz de reduzir no futuro as desigualdades culturais e sociais. Em 1939, sua morte súbita aos 60 anos a impediu de concretizar seus projetos. Algum tempo após sua partida, os arquivos da Universal pegaram fogo. Sabemos que o nitrato de celulose era terrivelmente inflamável e podia até explodir. Por isso, 75% dos filmes produzidos na era do mudo foram perdidos de modo irremediável.4 Quase toda a obra de Lois Weber virou fumaça. No momento atual, só conseguimos ver alguns de seus curtas-metragens, como o famoso Suspense, e três de seus longas-metragens (Shoes, The Dumb Girl of Portucci, The Blot): 5 os restauros priorizaram os diretores cujo nome foi destacado pelos historiadores do cinema. *Philippe Person é escritor. 1 B e Natural [Seja natural] (2018) estreou no cinema em 24 de junho. Uma autobiografia foi publicada pela editora Denoël-Gonthier (1976). 2 Kevin Brownlow, La parade est passée [A parada passou], Actes Sud, 2011. 3 Shelley Stamp, Lois Weber in early Hollywood [Lois Weber no começo de Hollywood], University of California Press, 2015. Ver também “Weber, Lois, A Dream in Realization, Interview with Arthur Denison” [Weber, Lois, um sonho em realização, entrevista com Arthur Denison] Moving Picture World (21 jul. 1917) em Richard Koszarski (org.), Hollywood Directors 1914-1940, Oxford University Press, Oxford, 1976. Também Antonia Lant (org.), Red Velvet Seat: Women’s Writing on the First Fifty Years of Cinema [Assentos de veludo vermelho: escrita das mulheres dos primeiros cinquenta anos do cinema], Verso, Londres-Nova York, 2006, e Martin F. Norden (org.), Lois: Interviews [Entrevistas de Lois Weber], University Press of Mississippi, 2019. 4 C f. Dawson City: le temps suspendu [Dawson City: tempo suspenso], documentário de Bill Morrison, 2016. 5 U ma caixa de quatro DVDs, Les Pionnières du cinéma [As pioneiras do cinema] (2018), reúne, entre outros, filmes de Alice Guy, Lois Weber ( The Blot ), Mabel Normand, Dorothy Arzner e Dorothy Reid Davenport. Lobster, 480 minutos.
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MISCELÂNEA
livros
internet
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s cenas não poderiam passar despercebidas – e não passam. Em meio ao crescimento vertiginoso das mortes por Covid-19 no Brasil, o comportamento de Jair Bolsonaro parece descolado da realidade. Ora o presidente sai para passear de jet ski, ora esbanja felicidade junto aos seus apoiadores em suas saídas por Brasília; quando questionado por repórteres a respeito de temas sensíveis ao governo, ri sardonicamente, meio de lado, um riso sarcástico e doentio. É difícil relacionar as cenas com as quais Bolsonaro nos bombardeia diariamente no cargo que ele ocupa, governando um dos países com pior desempenho no combate à pandemia de Covid-19. Suponho que sejam essas as atitudes de “escárnio presidencial pela vida” às quais Marcos Nobre se refere no último parágrafo de seu ensaio Ponto-final. As atitudes do presidente causam, ainda nas palavras do filósofo, “raiva desmesurada”. É essa raiva, capaz de cegar a ponto de reafirmar a cultura bolsonarista da morte, que Nobre nos convida a deixar de lado em seu
PANDEMIA E AGRONEGÓCIO: DOENÇAS INFECCIOSAS, CAPITALISMO E CIÊNCIA Rob Wallace, Elefante & Igrá Kniga
A
pecuária industrial hoje, além de atuar sobre o melhoramento genético de espécies de porcos, bois e galinhas, cultiva suas próprias cepas de vírus e bactérias no coração de suas práticas de criação e abate intensivo. De acordo com Rob Wallace, já estaríamos vivendo sob a égide de uma epidemiologia inscrita no sistema capitalista de produção de doenças. Há mais de duas décadas, o biólogo evolutivo vem construindo um esforço interpretativo complexo e interdisciplinar para investigar as origens dos patógenos de potencial pandêmico na forma como a sociedade organiza suas atividades produtivas. Com base no estudo de diversas epidemias – como a gripe suína (H1N1) em 2009 no México e a gripe aviária (H1N1) em 2003 na China –, Wallace varre a geografia econômica mundial a contrapelo, registrando cuidadosamente um conjunto robusto das causas que as pro-
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PONTO-FINAL: A GUERRA DE BOLSONARO CONTRA A DEMOCRACIA Marcos Nobre, Todavia: São Paulo, 2020
livro. Chamar Bolsonaro de burro e louco é “desobrigar a pensar”, defende Nobre. É também conceder uma vitória ao projeto político de Bolsonaro: as atitudes do presidente são, de certa forma, despolitizadas, quando consideradas provenientes de um comportamento desvairado. Afinal, “Bolsonaro conquistou essa hegemonia no debate”, escreve Nobre, “não porque ganhou a eleição, simplesmente. Conseguiu porque passamos a aceitar debater e pensar nos termos dele”. Ponto-final é, antes de mais nada, uma tentativa de escape, de recusar os termos que Bolsonaro nos impõe. Assim, o que há de mais fascinante nessa empreitada é a existência de um caráter de experimento no livro. Rejeitar a maneira pela qual Bolsonaro organiza o real, resistir à imposição das categorias bolsonaristas de pensamento é por si só um exercício vertiginoso; uma aposta na necessidade de compreender esse nebuloso projeto autoritário enquanto ele toma forma. Ponto-final, o livro, é um ensaio, um esforço vertiginoso de compreender eventos avassaladores em meio ao seu transcorrer. Dessa forma, ao pretender escapar da máquina de captura bolsonarista, a pontuação que melhor o descreve são as reticências, a continuidade do debate, no lugar do abrupto encerramento de uma frase. Similarmente ao canhão de luz de um navio à deriva, Ponto-final não propõe exatamente um rumo a ser seguido, e sim situar o lugar em que nos encontramos em meio ao nevoeiro, com a esperança de, um dia, dele podermos sair. [Fabio Zuker] Jornalista.
duziram na interface entre a pecuária intensiva e os sistemas agroecológicos locais e regionais. Nos celeiros de abate de aves e porcos, na calada da noite e por baixo de toda a proteção em biossegurança, a peste não dorme. Passando às costas de cientistas e gestores industriais, todos os anos, cepas de vírus recém-emergentes decifram a biologia de animais criados por meio de monocultivo genético, levando à morte celeiros inteiros. Visto do ponto de vista da pandemia, a forma como o mundo produz alimentos manifesta sua inscrição em um projeto autodestrutivo, que cultiva epidemias no coração de suas práticas ecológicas e econômicas. A produção de doenças em escala põe em movimento uma epidemiologia própria ao capitalismo, considerada em sua geografia relacional de causas múltiplas interconectadas. Tal perspectiva nos afasta das concepções da medicina colonial, tributárias de uma geografia absoluta que identifica patógenos em práticas isoladas, por vezes consideradas exóticas, seja na produção e consumo de alimentos, seja nas práticas de funeral e sepultamento de mortos dos povos colonizados. Enfim, resta-nos saber se a epidemiologia capitalista, sob a égide do obscurantismo bolsonarista, será também capaz de cultivar sua própria cepa de vírus no coração de sua catastrófica ecologia. [Allan Rodrigo de Campos Silva] Mestre e doutor em Geografia Humana pela USP.
NOVAS NARRATIVAS DA WEB Sites e projetos que merecem seu tempo OCEANO DE LIVROS O Google lançou um site em seu laboratório de experiências culturais que é um mapa literário por afinidades. Cada ilha representa um autor, e cada cidade é um livro. A distância ou proximidade entre autores foi calculada por um algoritmo que analisa a web e as complexas relações de links, por meio de um método matemático de machine learning de aproximação e projeção de pontos. Isso explica por que a maior ilha perto de Freud, por exemplo, é Marx, ou por que, no arquipélago dos clássicos, Shakespeare está perto de Robert Louis Stevenson, Dostoievsky e Charles Dickens. Navegue. <https://artsexperiments.withgoogle. com/ocean-of-books> FÁBRICA DE TROLLS Já pensou como são feitas, na prática, as campanhas de desinformação e fake news? Troll Factory foi desenvolvido por um time de especialistas da empresa finlandesa de comunicações Yle. A equipe usa métodos combinados de jornalismo, storytelling, games e interatividade para contar melhor uma história. O jogo usa conteúdo real de fake news, encontrado em materiais que circularam na Europa. A produção de ódio e a discriminação contra imigrantes são o foco da reportagem. <trollfactory.yle.fi> TODOS OS VOOS DO MUNDO Em tempo real, nesse site você pode ver onde está cada avião no mundo, seus horários de chegada previstos, de onde vieram e para onde estão indo. Flightradar24 começou em 2006 como um hobby de dois programadores suíços, que construíram uma rede que captava informações do sistema aéreo. Em 2009 abriram a rede para colaborações e desde então captam dados do mundo inteiro. Alguns lugares ainda não estão bem cobertos, mas é possível ter uma boa ideia da quantidade de voos – e imaginar a poluição gerada pelo sistema aéreo a cada minuto. <https://www.flightradar24.com/> [Andre Deak] Diretor do Liquid Media Lab, professor de Jornalismo e Cinema na ESPM, mestre em Teoria da Comunicação pela ECA-USP e doutorando em Design na FAU-USP.
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CANAL DIRETO
Le Monde Diplomatique Brasil
SUMÁRIO LE MONDE
diplomatique
Capa/edição
“Minha próxima leitura. Necessária neste momento de trevas, com um governo lunático.” Téo Júnior, via Facebook
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Eleições presidenciais
Restauração em Washington? Por Serge Halimi
DIRETORIA Diretor da edição brasileira e editor-chefe Silvio Caccia Bava Diretores Anna Luiza Salles Souto, Maria Elizabeth Grimberg e Rubens Naves
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Editorial
Editor Luís Brasilino
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“Quarenta anos de neoliberalismo que só serviram para precarização da vida, destruição do emprego e da economia nacional, concentração de renda e fortalecimento de um capitalismo improdutivo.” Inácio Pereira, via Facebook
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Estagiária Gabriela Bonin Revisão Lara Milani e Maitê Ribeiro Gestão Administrativa e Financeira Arlete Martins
Privatização ameaça território sagrado Por Vítor Queiroz
Tradutores desta edição Carolina M. de Paula, Frank de Oliveira, Lívia Chede Almendary, Rita Grillo e Wanda Brant
A expansão do evangelismo
Conselho Editorial Adauto Novaes, Amâncio Friaça, Anna Luiza Salles Souto, Ariovaldo Ramos, Betty Mindlin, Claudius Ceccon, Eduardo Fagnani, Heródoto Barbeiro, Igor Fuser, Ivan Giannini, Jacques Pena, Jorge Eduardo S. Durão, Jorge Romano, José Luis Goldfarb, Ladislau Dowbor, Maria Elizabeth Grimberg, Nabil Bonduki, Raquel Rolnik, Ricardo Musse, Rubens Naves, Sebastião Salgado, Tania Bacelar de Araújo e Vera da Silva Telles.
Uma Internacional reacionária Por Akram Belkaïd e Lamia Oualalou
Assessoria Jurídica Rubens Naves, Santos Jr. Advogados
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As redes sociais vão salvar a democracia?
Manipulação digital na África Por André-Michel Essoungou
Escritório Comercial Brasília Marketing 10:José Hevaldo Rabello Mendes Junior Tel.: 61. 3326-0110 / 3964-2110 jh@marketing10.com.br
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Rivalidades e convergências geopolíticas num país em caos
Le Monde Diplomatique Brasil é uma publicação da associação Palavra Livre, em parceria com o Instituto Pólis.
Líbia, um condomínio russo-turco? Por Jean-Michel Morel
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“Extraordinário! Postem mais vídeos nesse formato; vídeos muito grandes são chatos.” Ivan Salt
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Capa: © Vitor Flynn
Editor de Arte Cesar Habert Paciornik
Assinaturas assinaturas@diplomatique.org.br
A “República Pentecostal” da Nigéria Por Anouk Batard
“Por essa qualidade é que tenho orgulho de ser um assinante da revista.” Joantan Araujo
Os artigos assinados refletem o ponto de vista de seus autores. E não, necessariamente, a opinião da coordenação do periódico.
Editora-web Bianca Pyl
O cinema em tempos de cólera Por Thiago B. Mendonça e outros
O amém à segunda maior TV brasileira Por Anne Vigna, enviada especial
Vídeo: Pandemia e neoliberalismo: a conta chegou
Participe de Le Monde Diplomatique Brasil : envie suas críticas e sugestões para diplomatique@diplomatique.org.br As cartas são publicadas por ordem de recebimento e, se necessário, resumidas para a publicação.
Arte e cultura da ponte pra cá Helena Silvestre
Os evangélicos sul-coreanos na arena política Por Kang In-Cheol
“E segue projeto neoliberal: azeitar as engrenagens do moinho de moer gente. Que horror!” André Rod, via Instagram
“Eu não sabia sobre isso. Agora, compreendo muitas coisas no sistema. Simples, os impostos que o povo paga são usados contra nós! No final, pagaremos altos juros, mora e honorários advocatícios. Como se pode dizer que somos uma democracia? Existe, sim, a plutocracia. Muito grata por esclarecer e trazer sempre a verdade!” Chris
Capa
Canto do povo de um lugar Por Bruno M. Morais e Victor Alcantara e Silva
Bolsonaro, a pandemia e a explosão das demandas sociais
“Depois que a classe média copiou os ricos de verdade e migrou para planos de saúde e escolas particulares, o governo se sentiu muito à vontade para escangalhar esses setores.” Clarisse, via Instagram
Políticas públicas e estratégia eleitoral Por Silvio Caccia Bava
A guerra para viver de cultura no Brasil Por Melina Hickson
Editorial: O colapso de um modelo de gestão
“Os serviços não melhoram, só visam ao lucro. Quem paga por isso é a população, como sempre. Se acontecesse uma melhora, eu seria a favor, mas não existe esse movimento, infelizmente.” Everaldo Lopes, via Instagram
BRASIL
Ano 14 – Número 158 – Setembro 2020 www.diplomatique.org.br
“Adoro as ilustrações sempre. Mesmo às vezes sendo dolorosas, são importantes. Saudades de comprar a edição fresquinha na banca.” Alessandra, via Instagram “A capa lembra Vidas secas, de Graciliano Ramos... e todo o contexto em que a obra foi escrita, durante a década de 1930, período de grande turbulência política no Brasil e no mundo.” Roberto Moacir, via Instagram
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A repressão à utopia revolucionária palestina
Memória de um Setembro Negro Por Alain Gresh Patologia acomete jovens mulheres de meios mais abastados
A anorexia, uma doença social Por Claire Scodellaro
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“A ditadura da economia”
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A pobreza reciclada pelo consumo
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Assinaturas: Leila Alves assinaturas@diplomatique.org.br Tel.: 55 11 2174-2015 Impressão D’ARTHY Editora e Gráfica Ltda. CNPJ: 01.692.620/0001-00, Parque Empresarial Anhanguera - Rod. Anhanguera Km 33 - Rua Osasco, 1086, Cep: 07753-040 - Cajamar - SP
Na Alemanha, hospitais bem rentáveis Por Rachel Knaebel, enviada especial Migalhas suecas Por Yacine Boukhris-Ferré A excelência já não é mais a mesma
Os medos dos brancos nos Estados Unidos Por Richard Keiser
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Os esgotos, sentinelas sanitárias
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Cinema
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Rua Araújo, 124 2º andar – Vila Buarque São Paulo/SP – 01220-020 – Brasil Tel.: 55 11 2174-2005 diplomatique@diplomatique.org.br www.diplomatique.org.br
Bombas biológicas nos aeroportos Por Mohamed Larbi Bouguerra Renascimento das pioneiras Por Philippe Person Miscelânea
LE MONDE DIPLOMATIQUE (FRANÇA) Fundador Hubert BEUVE-MÉRY Presidente, Diretor da Publicação Serge HALIMI Redator-Chefe Philippe DESCAMPS Diretora de Relações e das Edições Internacionais Anne-Cécile ROBERT Le Monde diplomatique 1 avenue Stephen-Pichon, 75013 Paris, France secretariat@monde-diplomatique.fr www.monde-diplomatique.fr Em julho de 2015, o Le Monde diplomatique contava com 37 edições internacionais em 20 línguas: 32 edições impressas e 5 eletrônicas. ISSN: 1981-7525
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