Le Monde Diplomatique Brasil #159 (Outubro 2020)

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O DILEMA HABITUAL DOS NACIONALISTAS

Falsas independências

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POR SERGE HALIMI*

© Cesar Habert Paciornik

A SUA CENTRAL DE PODCAST

Conteúdo rico e variado? Debate sério? Vozes marcantes?

PASSA LÁ NA

asa Branca, sexta-feira, 4 de setembro de 2020. A cena dura menos de um minuto.1 Donald Trump está sentado em sua cadeira majestosa atrás de uma enorme escrivaninha, coberta de ornamentos dourados e de telefones, ladeada por duas pequenas mesas vazias que poderiam ser confundidas com extensões da peça principal. Atrás de uma dessas, o presidente sérvio, Aleksandar Vucic; atrás da outra, o primeiro-ministro kosovar, Avdullah Hoti. Trump interpreta o papel de pacificador. Nitidamente encantado, ele acaba de obrigar dois adversários que estavam em guerra a entrar em acordo em uma região na qual a União Europeia tinha até então o controle. Está ainda mais feliz por seu ato – a ponto de estimar merecer o Prêmio Nobel da Paz – pelo fato de que vinte anos antes foi uma administração democrata, a de Bill Clinton, que bombardeou a ex-Iugoslávia. Em seguida, de repente, Trump declara: “A Sérvia se compromete a abrir um escritório comercial em Jerusalém e a transferir para lá sua embaixada em julho do ano que vem”. Atrás de sua pequena mesa, o presidente Vucic parece pego de surpresa por um anúncio sem relação com o assunto da cerimônia (um simples acordo econômico entre Belgrado e Pristina). Ele dá uma olhada no documento que ia assinar e em seguida volta-se para seus conselheiros, com ar inquieto. Já era tarde: Benjamin Netanyahu, aparentemente bem informado, tinha acabado de felicitá-lo... Em troca desse mimo dado a Trump e a seu eleitorado evangélico dedicado à colonização da Palestina, Vucic colheu represálias da União Europeia, pois Belgrado contradisse assim a política oficial no Oriente Médio, e a Sérvia mendiga há anos sua adesão à União Europeia. Um ofi-

cial europeu chegou a ridicularizar publicamente o olhar arregalado do presidente sérvio no momento do anúncio “israelense” de Trump. O embaixador da Palestina em Belgrado declarou sua irritação; o porta-voz do Ministério das Relações Exteriores russo compartilhou outra foto do encontro em Washington, não muito mais gentil com Vucic: sentado dessa vez diante de seu homólogo norte-americano, imperial, o presidente sérvio lembrou um aluno bagunceiro chamado à diretoria da escola. Três dias depois, precisou então “esclarecer” sua posição sobre o Oriente Médio: “Estamos fazendo nosso melhor para nos alinharmos às declarações da União Europeia. Dito isso, levamos nossos interesses em conta”. Mais fácil dizer que fazer. Nacionalista sérvio oriundo da extrema direita, Vucic não tem saudade nenhuma da Iugoslávia. 2 Na época, no entanto, na cena internacional Josip Broz Tito defendia seu papel. Quanto ao Kosovo, se rompeu decididamente suas ligações de subordinação com a Sérvia, foi para se tornar uma colônia dos Estados Unidos. No fundo, o dilema habitual dos nacionalistas é bem esse: quando rompem com povos geográfica e culturalmente próximos, conquistam uma “independência” cujo preço é quase sempre a subordinação a potências longínquas e desdenhosas. Precisam ora agradar a uma, ora à outra. Autocratas em seu pequeno Estado, vassalos assim que saem dele.   *Serge Halimi é diretor do Le Monde Diplomatique.

1   “ Presidente sérvio Vucic perguntou sobre mudar a Embaixada de Israel para Jerusalém”, Euronews, 7 set. 2020 (com imagens da cena). 2   Ler Jean-Arnault Derens e Laurent Geslin, “L’autocrate serbe que Bruxelles dorlote” [O autocrata sérvio que Bruxelas mima], Le Monde Diplomatique, mar. 2020.

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EDITORIAL

O Brasil está queimando POR SILVIO CACCIA BAVA

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© Claudius

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om a conivência do governo federal, o Brasil está queimando. Por meio do desmonte dos órgãos de fiscalização e controle ambientais federais – Ibama e Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) –, somado à conivência do Ministério do Meio Ambiente, da Polícia Federal e do Ministério da Justiça, além do controle sobre o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), que produz mapas que registram o avanço da devastação ambiental, e a Funai, responsável pela preservação das reservas indígenas, o governo Bolsonaro abriu a porteira para passar a boiada. As leis existem, mas não são respeitadas, e a impunidade estimula o crime ambiental. O Fundo Amazônia, criado em 2008, foi suspenso em abril de 2019 pelo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. Com doações bilionárias da Noruega e da Alemanha, ele servia principalmente para financiar os órgãos públicos de controle e fiscalização ambiental. Deixamos de ter viaturas, helicópteros e aviões fiscalizando o desmatamento. Os grandes proprietários rurais ligados à produção da carne e da soja literalmente tocaram fogo nas matas para ampliar suas áreas de pastagens e de plantio. Numa ação de grilagem de terras que passa inicialmente pelo corte ilegal de madeiras nobres na floresta, a que se dá o nome de desmatamento, e posteriormente tocando fogo na floresta remanescente, ainda em pé, abre-se o espaço para dar lugar a pastagens. Os mapas do Inpe e da Nasa identificam que mais da metade dos focos do fogo na Amazônia ocorre em matas que ainda estão em pé, e 80% desses incêndios começam nas grandes propriedades rurais. A Amazônia é uma floresta úmida, ela não pega fogo espontaneamente, é a ação dessas empresas e de grandes proprietários rurais que provoca o fogo, a devastação, a destruição das florestas e da vida silvestre. São milhares de focos de incêndio na Amazônia, no Cerrado e no Pantanal. É um ataque nunca visto em sua dimensão a um ecossistema que já se encontra extremamente vulnerável pelo aumento da temperatura ambiente e a falta de chuvas, fatores também decorrentes de queimadas e desmatamentos anteriores. Mas o desastre não para aí. Quando se destrói criminosamente as flo-

restas para dar lugar a pastagens, o equilíbrio ecológico é afetado e impacta todo o Brasil, de norte a sul. São milhões de hectares devastados, mas, mais do que os números, é preciso saber que mais de 17% da Amazônia foi desmatada e de 20% a 30% das florestas do Pantanal também. Se ultrapassarmos 20% de destruição da floresta amazônica o sistema não se sustentará e terá início a savanização da região. O impacto dessa destruição da cobertura vegetal vai afetar o fornecimento de água em todo o país. É bom que se diga que já tivemos políticas de controle e contenção do desmatamento muito eficazes e que colocaram o Brasil na liderança dos processos mundiais de preservação ambiental. Segundo Mario Astrini (IEA-USP), secretário executivo do Observatório do Clima, de 2004 a 2012 o Brasil reduziu em 80% o desmatamento, passando de 27 mil km 2 em 2004 para 5 mil km 2 em 2012. Isso foi conseguido graças ao esforço conjunto do Ibama, da Polícia Federal e das polícias estaduais. Números nada comparáveis ao desastre ambiental atual, em que apenas em Mato

Grosso foram queimados 1,4 milhão de hectares (Ibama/Prevfogo). Nessa região, o Instituto Centro de Vida (ICV) identifica nove focos de incêndio como a principal causa dessa devastação, todos originados em fronteiras de grandes fazendas. Por que esses incêndios afetam a todos nós? A Amazônia produz o que se denomina de “rios voadores”. De 50% a 70% de suas chuvas provêm das nuvens que vêm do Oceano Atlântico. Essa chuva é reciclada pela floresta, que por sua vez produz nuvens de água limpa que são carregadas pelos ventos e levadas para o Pantanal, para o Centro-Oeste, o Sudeste e o Sul do país. As florestas também estocam carbono, que, se for liberado, tem um impacto muito forte no clima e no aquecimento global. Com a destruição das florestas e a fumaça das queimadas interagindo com as nuvens, as chuvas que vêm do oceano não ocorrem e todo o ciclo de produção dos “rios voadores” se compromete. Por sua vez, o Pantanal funciona como uma grande caixa-d’água que distribui essa água pelos rios que servem a outras regiões. Se o Pantanal não recebe o volume de chuvas

necessário, essa distribuição também fica comprometida. Os ecossistemas são integrados: se uma parte como a Amazônia ou o Pantanal é afetada, todo o sistema sofre. As secas ficam mais longas e o período de chuvas fica menor, mas mais intenso. Não nos esqueçamos da falta de água em São Paulo, em 2014. O modelo de desenvolvimento atual, predatório e voltado para o maior lucro imediato é o responsável por essa situação. Não é por outra razão que grandes fazendas que estão na região do Cerrado aterram milhares de riachos e nascentes de água para ampliar sua área de plantio – água que normalmente alimentaria o Pantanal, a caixa-d’água de muitos rios brasileiros. Uma inusitada aliança de governos estrangeiros, fundos de investimento, empresas multinacionais, entidades da sociedade civil nacionais e internacionais faz pressão para que o governo federal contenha o desmatamento e a degradação ambiental. Mas a necropolítica do governo Bolsonaro continua ignorando apelos e pressões. O que vale é atender aos interesses do agronegócio.


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CAPA

Gênero sob ataque e a erosão da democracia Na censura, na desinformação e no discurso de ódio, o ataque ao gênero converge na atuação de líderes e partidos de extrema direita. Alimentam-se reciprocamente. E esses ataques podem servir para ampliar a adesão popular a líderes cujas agendas são, em outros aspectos, antipopulares. Por isso é tão importante compreender a conexão atual entre a agenda neoliberal e a neoconservadora POR FLÁVIA BIROLI*

reitos fundamentais e a normalização da violência e das desigualdades são elementos de políticas autoritárias que, a olhos nus, desmontam as bases frágeis de nossas democracias. E podem fazê-lo com base popular. Como isso tem se dado? O combate ao gênero é justificado pela ideia de que é preciso proteger a infância e “a família”. A denúncia da educação sexual como uma forma de corromper moralmente as crianças tem sido mobilizada em diversas partes do mundo, como discutimos no livro recém-lançado Gênero, neoconservadorismo e democracia (Boitempo, 2020, com Maria das Dores Campos Machado e Juan Vaggione). Dessa perspectiva, a maneira de educar meninas e meninos seria uma escolha de cada família, negando-se a ideia de que diretrizes comuns podem ser assumidas em uma sociedade de acordo com princípios de justiça, debatidos em ambientes democráticos. É, aliás, o que ganhou volume na América Latina, a partir de 2016, com o movimento “Con mis hijos no te metas”, criado no Peru. A censura e o veto se tornaram recursos comuns para impedir o debate sobre gênero nas escolas. No Paraguai, a Resolução n. 29.664, de 2017, do Ministério da Educação e Ciência, proibiu a “difusão e uso de materiais impressos digitalmente, referentes à teoria e/ou ideologia de gênero, nas instituições de ensino”. No Peru, assim como na Colômbia, ministros da Educação perderam o cargo por pressão de grupos conservadores que reagiram a conteúdos educacionais para combater a homofobia e promover a educação sexual. Saindo de nossa região, o caso da Polônia nos mostra até onde essa dinâmica pode nos levar. Nesse país, em 2020, mais de cem governos locais definiram suas cidades como “LGBT-free”, numa grave limitação da cidadania de uma parte da população.

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s agendas da igualdade de gênero e da diversidade sexual estão sob ataque, em reações de caráter transnacional aos direitos de mulheres e da população LGBTQ. Ao mesmo tempo, processos de desdemocratização têm sido diagnosticados em diferentes partes do mundo, em análises que apontam para o esgarçamento de instituições, práticas e valores democráticos. Mas qual é a relação entre o gênero e a erosão das democracias? Este artigo apresenta alguns caminhos possíveis para responder a essa questão. Desde os anos 1990, o conceito de gênero se tornou parte das estratégias de grupos conservadores contra avanços produzidos pelos movimentos feministas. Na segunda década dos anos 2000, ele passou a circular pelas ruas nos cartazes carregados em protestos contra a chamada “ideologia de gênero”, que ocorreram em diversos países. Nessas campanhas, a agenda de gênero é denunciada por colocar em risco as crianças e as famílias. Já sabemos agora que redes transnacionais as promovem, por isso slogans e estratégias de ação são comuns, assim como a projeção dos feminismos como inimigos “estrangeiros”. Suas consequências variam, dependendo do equilíbrio de forças nos contextos nacionais. Estamos, afinal, falando de países tão distintos como Espanha, França, Polônia, Romênia e, na América Latina, Colômbia, Equador, Paraguai, Peru, México e Costa Rica. O recurso à noção de “ideologia de gênero” tem permitido ampliar as alianças de oposição aos direitos humanos e mobilizar apoio a lideranças e partidos de direita e extrema direita. Seu caráter estratégico não contradiz sua condição de projeto político. Nesse projeto, há mais de conservadorismo. A justificação da censura, a transformação de adversários e de segmentos inteiros da população em inimigos, a recusa a di-

No Brasil, a discussão sobre o Plano Nacional de Educação, na Câmara dos Deputados, em 2014, inaugurou os vetos ao “gênero” nos conteúdos educacionais. Desde então, multiplicaram-se os projetos de lei em nível municipal e estadual para proibir o debate sobre gênero nas escolas. A ativação dessa agenda por parlamentares religiosos e pelo movimento Escola Sem Partido é importante na capilaridade que esse ataque assumiu. Um levantamento realizado por João Vitor Martins, estudante de Ciência Política da UnB, mostrou que os projetos para colocar em prática o Escola Sem Partido nos estados são muito semelhantes, tendo inclusive a mesma estrutura. Na base disso estão estratégias políticas e jurídicas. Ao mesmo tempo, a maioria dos autores dos projetos apresentados para proibir a “ideologia de gênero” e/ou para efetivar o Escola Sem Partido é religiosa e, sobretudo, evangélica. O mesmo ocorre no Congresso Nacional, como mostrou a pesquisa de Raniery Parra Teixeira, também da UnB. Nesse caso, os evangélicos correspondem a 43,5% dos parlamentares envolvidos nas proposições que tratam da “ideologia de gênero”, seguidos por 24,2% que se identificam como católicos. Somados a outros que se apresentam como “cristãos”, 68,2% se definem como religiosos em registros oficiais, sites ou redes sociais. A religião é importante nessas disputas. Os atores políticos conservadores ativam estratégias para impor a moralidade religiosa como moralidade pública. Isso ocorre em uma temporalidade específica, na qual a reação aos avanços produzidos por movimentos feministas e LGBTQ é um fator fundamental. Vale observar que políticos e partidos evangélicos, que são importantes nessa dinâmica, expandiram sua atuação com os processos de democratização na região. São atores desses regimes, isto é, se fizeram justamente em ambientes

políticos mais plurais, mas têm, em alianças com outros setores conservadores, religiosos ou não, operado em detrimento do pluralismo ético, contribuindo para a erosão das democracias. A tentativa de censurar debates e silenciar a crítica vai além das escolas. Os estudos de gênero também têm sido alvos importantes de ataques e de censura ao redor do mundo. Já foram interditados na Hungria e, nos últimos dias, a proibição foi proposta na Romênia. Vêm sofrendo limitações também na Polônia. No Brasil, há razões para acreditar que se busca atingir esses estudos retirando-lhes o financiamento necessário à pesquisa científica. Isso ocorre em meio a um movimento mais amplo de asfixia da ciência no país, que tem sido denunciado desde que Jair Bolsonaro assumiu a Presidência da República, mostrando que a reação abrange, ao mesmo tempo, agendas igualitárias e o potencial crítico da ciência. Mas as investidas antecedem sua eleição. Em novembro de 2017, a chave do ataque ao gênero foi utilizada com o objetivo de impedir a palestra da filósofa Judith Butler em São Paulo, em campanha disparada pelas organizações católicas ultraconser-


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© Rovena Rosa/Agência Brasil

Em 2017, grupos extremistas tentaram impedir uma palestra de Judith Butler vadoras CitizenGo e HazteOir, baseadas na Espanha. O alvo direto era a crítica acadêmica, mas a estigmatização da pesquisadora foi fundamental, mostrando o papel da desinformação nessas campanhas. A demonstração passou longe do conflito de opiniões, com discursos de ódio e ameaças que se expressaram, por exemplo, na queima de um boneco que representava Butler. Na censura, na desinformação e no discurso de ódio, o ataque ao gênero converge na atuação de líderes e partidos de extrema direita. Alimentam-se reciprocamente. E esses ataques podem servir para ampliar a adesão popular a líderes cujas agendas são, em outros aspectos, antipopulares. Por isso é tão importante compreender a conexão atual entre a agenda neoliberal e a neoconservadora. A ascensão da extrema direita se dá em meio a processos econômicos que ampliaram a concentração de renda, restringiram garantias e tornaram amplos setores da população mais vulneráveis. Com a redução de investimentos sociais em nome da austeridade, a responsabilidade estatal e coletiva pelas mazelas humanas se reduz. Resta, assim, o imperativo

de que cabe a cada um lidar com suas próprias mazelas e, a cada família, a “gestão” do bem-estar dos seus. Como discuto em outros textos, ao defenderem “a família” das ameaças da “ideologia de gênero”, atores conservadores e de extrema direita procuram canalizar os afetos em contextos nos quais as inseguranças são reais, mas obviamente ultrapassam os deslocamentos nas práticas e na moral sexual – que, é claro, também existiram de maneira significativa nas décadas recentes. Não são esses que têm ampliado a vulnerabilidade das famílias e dos indivíduos, como sabemos. As restrições de direitos trabalhistas e previdenciários, do acesso à saúde e à educação ampliam as inseguranças e a possibilidade de cuidar das pessoas mais próximas. De maneira muito simples, eu diria que é preciso disputar as narrativas sobre o que torna as famílias mais vulneráveis e as vidas mais precárias. Sem isso, fica difícil conter a potencial adesão popular a políticos autoritários que acenam com a promessa da superação das inseguranças pela reconstrução da “ordem” moral. Jair Bolsonaro expandiu sua imagem e suas alianças com o alinhamento à agenda contrária ao gênero

muito antes de ser candidato à Presidência. Sua oposição estridente ao Programa Brasil Sem Homofobia, após audiência pública na Câmara dos Deputados, em 2010; ao Projeto de Lei Menino Bernardo (PL 7671/2010), que criminaliza castigos físicos impostos às crianças; e à decisão do STF em favor da união entre pessoas do mesmo sexo, de 2011, abriram-lhe um novo ciclo de visibilidade. Ao fazer comentários como o de que seria legítima a agressão física, por parte dos pais, quando percebem que seu filho é gay (na Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, em 1º de dezembro de 2010), seu rechaço dos direitos humanos ganharia mais uma frente. O ataque à igualdade de gênero e à diversidade sexual se somou a suas agendas históricas de imposição da “ordem” em detrimento do Estado de direito – defesa da violência policial e da ampliação do acesso a armas, da ditadura de 1964 e da tortura. E, claro, facilitou sua aproximação a setores políticos religiosos conservadores, realizada com mais afinco a partir de 2016, quando já preparava sua candidatura à Presidência. Seu batismo pelo pastor Everaldo no Rio Jordão, em maio de 2016, é um episódio ilustrativo. O ataque a direitos numa perspectiva de gênero abriu caminho para que Bolsonaro apresentasse ao eleitorado uma proposta de “ordem” feita à base da bala e da Bíblia, da violência direta e do radicalismo moral. Nela, adversários são transformados em inimigos que, no limite, podem ser eliminados. O “outro”, estigmatizado e reduzido em sua humanidade, justifica a violência. A igualdade fundamental é, assim, colocada em xeque na estratégia e no conteúdo dos projetos autoritários que dão materialidade ao governo atual. Já eleito presidente, em seu curto discurso inaugural, em 1º de janeiro de 2019, Bolsonaro alçaria o combate à “ideologia de gênero” e ao “politicamente correto” a prioridades de seu governo. Como foi notado por muita gente, fez isso enquanto deixou de lado o combate à desigualdade, que figurou de um modo ou de outro no discurso de todos os seus antecessores. Acho importante conectar as duas coisas: trata-se de uma ordem social e moral que se efetiva na desigualdade. O ataque ao gênero compõe a recusa mais ampla a políticas pautadas por valores igualitários e pelo respeito à diversidade. Ao mesmo tempo, é importante na recusa da política como alternativa, de um imaginário coletivo e democrático para a superação das inseguranças. O slogan “Con mis hijos no te metas”, já menciona-

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do, corresponde nesse sentido à moralização de um imperativo prático: que as famílias deem conta de si, já que não virá da política e da responsabilidade coletiva a resposta para suas dificuldades. Mas corresponde também ao adensamento da família como realidade que resta, na medida em que o público se torna mais denso, e os laços sociais, mais atravessados pela desconfiança. O esgarçamento do público mostra que duas das agendas fortes na eleição e no governo de Bolsonaro, a neoliberal e a moral, se encontram na aposta na família como unidade sobre a qual recaem as responsabilidades de que o Estado se esquiva e os controles a que se propõem. O espaço público aparece na forma da ameaça. Se não é capturado pelo privado, isto é, monetarizado e transformado em capital, é assunto de polícia. E isso nos conecta a uma terceira agenda, a da militarização. No processo atual de erosão da democracia, ela tem papel fundamental e se faz “de dentro”, tornando desnecessário “o golpe”, enquanto um cotidiano político de rupturas é normalizado. O direito à oposição política, por exemplo, está em risco na mesma medida em que o Estado de polícia se expande. Mas a militarização vai além disso. Das escolas à abordagem da política ambiental, do descaso com a vida da população indígena à resposta trágica à Covid-19, trata-se da instauração, política por política, declaração por declaração, de uma ordem que é, a cada dia, menos democrática. Não teria como desenvolver aqui a relação entre a militarização e a afirmação de uma masculinidade para a reafirmação dos valores patriarcais e heteronormativos, diante de décadas de avanços significativos produzidos pelos movimentos feministas e LGBTQ. Não é à toa que, nesse contexto, esses mesmos movimentos passam a fazer parte do rol de inimigos a serem combatidos. O ataque ao gênero dispara e justifica a censura e a violência contra grupos identificados como desviantes. É estratégico para naturalizar desigualdades e responsabilizar as famílias e, nelas, as mulheres, enquanto se produzem sociedades da precariedade, marcadas pela vulnerabilização de amplos setores da população e pela repressão da contestação. Como esse ataque incide nos valores que circulam cotidianamente em uma sociedade, colabora também para a produção de preferências não democráticas, dando densidade social ao autoritarismo.  *Flávia Biroli  é professora do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília.


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UMA ANÁLISE DA POLÍTICA BRASILEIRA

Democracia e degradação institucional O impeachment de Dilma Rousseff abriu um caminho de degradação institucional muito mais rápido do que seria possível imaginar naquele momento. A partir desse acontecimento e, principalmente, da eleição de Jair Bolsonaro, novos elementos se acrescentam à tendência antidemocrática, tais como o ataque do Poder Judiciário e das instituições de controle do sistema político POR LEONARDO AVRITZER*

ção de Jair Bolsonaro, novos elementos se acrescentam à tendência antidemocrática, tais como o ataque do Poder Judiciário e das instituições de controle do sistema político. Esse ataque permitiu o afastamento, pelo STF, do presidente da Câmara dos Deputados e a tentativa de remoção do presidente do Senado, em 2016. Tais fatos organizaram-se em um crescendo a partir da suspensão de nomeações ministeriais, em especial a nomeação do ex-presidente Lula para a Casa Civil, e da suspensão do indulto natalino, ambas prerrogativas exclusivas do presidente da República. A intervenção no Rio de Janeiro e a tentativa de uso das Forças Armadas na greve dos caminhoneiros em maio de 2018 completaram a equação de violação de direitos e de adesão a uma política de segurança pública anticidadã. O auge desse estado de coisas se evidenciaria com a justificação aberta da violência por candidatos que, não por acaso, acabaria se manifestando explicitamente no atentado contra o próprio Bolsonaro e em ações de seus apoiadores quando indivíduos foram agredidos ou até mesmo assassinados, como no caso do capoeirista Moa do Katendê, esfaqueado em Salvador durante a eleição de 2018. Neste artigo tentarei mostrar, em primeiro lugar, a centralidade do impeachment no processo de degradação institucional no Brasil; em seguida demonstrarei como o Judiciário foi politizado e instrumentalizado por Sérgio Moro, para então mostrar como o bolsonarismo aposta no aprofundamento do processo de degradação institucional.

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m 2016, alguns meses antes do impeachment da presidenta Dilma Rousseff, abri meu novo livro, intitulado Impasses da democracia no Brasil, com as seguintes palavras: “O Brasil se encontra hoje no rol das nações com democracias fortes e consolidadas. Por qualquer medida significativa proposta por teorias que medem o estado da arte da democracia, o Brasil se encontra em uma posição boa. Se tomarmos uma perspectiva histórica, por exemplo, o Brasil tem uma democracia mais forte hoje do que ele teve no período 1946-1964, já que não houve desde 1985 nenhuma tentativa dos militares de intervir na política, tal como ocorreu em 1954, 1956 e 1961. Ao mesmo tempo, se tomarmos como medida o número de transmissões de poder, o Brasil, com a posse recente da presidenta Dilma para um segundo mandato, já teve mais transmissões democráticas do poder, neste período, 1985-2015, do que em qualquer outro período. Quando adotamos a perspectiva comparada, percebemos que a democracia brasileira passou por menos percalços do que as democracias dos países vizinhos, em especial as democracias argentina e chilena. No caso argentino, diversos presidentes não conseguiram completar o seu mandato, casos de Alfonsín e De la Rua. Assim, nenhum presidente não peronista completou o seu mandato no país vizinho. Já no caso do Chile a constituição pinochetista continua vigorando e impondo um regime eleitoral que impede a sua mudança constitucional. Portanto, seja na perspectiva internista, seja na perspectiva comparada a democracia brasileira fez importantes avanços”. Evidentemente essa é uma análise ultrapassada da democracia brasileira. O impeachment de Dilma Rousseff abriu um caminho de degradação institucional muito mais rápido do que seria possível imaginar naquele momento. A partir desse acontecimento e, principalmente, da elei-

IMPEACHMENT: ENTENDENDO O PROCESSO O impeachment da presidenta Dilma representou uma reversão de comportamentos institucionais que tiveram sua origem no início da redemocratização brasileira. A instauração da Nova República, com a retirada dos militares do exercício do poder políti-

co e a extinção de seu poder de veto sobre resultados eleitorais, inaugurou uma mudança de perspectiva em relação ao processo sucessório e à democracia no Brasil. As primeiras eleições do período da Nova República foram marcadas por uma mudança de comportamento no que tange ao reconhecimento de resultados eleitorais. Apesar da demora no processo de apuração eleitoral em 1989, todos os atores envolvidos nele esperaram o resultado antes de se posicionar sobre o segundo turno. O mesmo aconteceu nas eleições de 1994, 1998, 2002, 2006 e 2010. Assim, de alguma maneira, é possível argumentar uma mudança no comportamento das elites políticas que sugeria a transformação das eleições democráticas no único jogo na cidade. No entanto, desde o início da Nova República, elementos antidemocráticos estavam presentes em nossa institucionalidade, ainda que atuassem de modo bastante discreto: o impeachment e a possibilidade de intervenção dos militares nas questões de ordem interna. O impeachment no Brasil não segue o padrão internacional do presidencialismo, de acordo com o qual deve ser um evento muito raro e, para tal, não deve envolver questões administrativas (maladministration) ou de oposição política. Ainda assim, entre os casos de impeachment, o do ex-presidente Collor teve fortes elementos consensuais, envolveu a ideia da remoção de um presidente mal avaliado, mas também incorporou um forte consenso entre as instituições políticas, a ponto de, na votação sobre seu afastamento na comissão especial da Câmara dos Deputados, o presidente ter tido apenas um voto, o do líder do governo. O impeachment da presidenta Dilma Rousseff foi baseado em alegações extremamente frágeis, porque a ideia de pedalada fiscal não constituía um diferencial de comportamento em relação a outros presidentes ou governadores.1 Além disso,

temos várias evidências posteriores ao impeachment de acordos políticos com o intuito de afastar Dilma. A principal consequência do impeachment recente é um relativismo institucional a partir do qual não existem mais interesses gerais na democracia brasileira e na atuação das instituições. O fato de o processo de impeachment do ex-presidente Michel Temer não ter prosperado, a despeito das evidências de um governo completamente envolvido com a corrupção, acentuou a desconfiança dos brasileiros na democracia. Nas pesquisas que realizamos no Instituto da Democracia da UFMG (www.institutodademocracia.org) foi possível perceber uma intensa degradação do apoio dos brasileiros à democracia ao longo de 2018, o que abriu espaço para a vitória eleitoral de Jair Bolsonaro. Assim, é possível dizer que o impeachment da presidenta Dilma foi mais do que um impeachment. Ele foi o destampar de uma panela de pressão que permitiu uma volta ao passado no comportamento das elites não democráticas no Brasil.

CONDENAÇÃO DO EX-PRESIDENTE LULA Tal como no caso da competição política, o Brasil colocou em prática estruturas fortes de autonomia judicial entre 1988 e 2014. O Judiciário assumiu prerrogativas de independência em relação ao Executivo, mas também em relação à ampliação de direitos, com decisões-chave, como Raposa Serra do Sol e implantação de cotas no ensino superior. Ainda assim, vínhamos de um Judiciário oligárquico, tradição que não foi rompida nem mesmo com a instituição do concurso público, uma vez que ele não impediu as famílias de operarem ou pela via do quinto da OAB ou pela via de relações espúrias entre juízes e escritórios de advocacia. Ainda assim, é possível apontar um saldo positivo na maneira como o Poder Judiciário foi adquirindo novas prerrogativas nesse período. A Operação Lava Jato mudou essa equação, relativizando a estrutura de direitos de defesa no combate à corrupção. Porém, ainda mais grave, ela acabou por fornecer prerrogativas absolutas a um juiz de primeira instância que, como ficou comprovado, tinha projetos políticos e estava disposto a perseguir judicialmente um ex-presidente. Sérgio Moro, no caso do ex-presidente Lula, orientou a delação premiada, aceitou a denúncia, legalizou a posse de um apartamento por provas indiretas e alegou ter fórum para todas essas ações, apesar de o STF só ter lhe concedido foro sobre as ações ligadas à Petrobras. Isso depois de ser censurado pelo ex-ministro Teori Zavascki acerca de vaza-


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© Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Ricardo Lewandowisk durante o julgamento do impeachment de Dilma Rousseff

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mentos de gravações que contrariam a lei brasileira sobre o assunto, chegando inclusive a gravar a defesa do ex-presidente. Vale a pena utilizar dados comparados sobre quando um juiz é impedido de continuar presidindo um julgamento nos Estados Unidos. Ali, o fato de o juiz ter conhecimento prévio do caso ou ter atuado de forma ilegal é, em geral, suficiente para ser impedido de atuar. No julgamento do ex-presidente Lula coube ao próprio Sérgio Moro dizer por que ele continuava sendo um juiz neutro. Cito sua sentença do caso: “No entendimento deste julgador, respeitando a parcial censura havida pelo ministro Teori Zavascki, o problema nos diálogos interceptados não foi o levantamento do sigilo, mas sim o seu conteúdo, que revelava tentativas do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva de obstruir investigações e a sua intenção de, quando assumisse o cargo de ministro-chefe da Casa Civil, contra elas atuar com todo o seu poder político”. Analisemos o julgamento proferido pelo então ministro Teori nesse caso para ver se de fato o juiz interpreta a censura que recebeu de forma correta. Afirmou Zavascki no ponto 7 de sua decisão: “Ainda mais grave, procedeu a juízos de valor sobre referências e condutas de ocupantes de cargos previstos nos artigos 102 I, b e c”. Ou seja, estamos diante de um juiz que tergiversou em questões processuais, que contou com o apoio da mídia para fazê-lo e que, assim, degradou a imparcialidade do sistema de justiça no Brasil. A mais grave dessas operações foi a que pautou no STF um caso particular de habeas corpus, o de Lula, antes de uma ação genérica sobre o tema e que determinou a prisão do ex-presidente. São igualmente graves as decisões do ministro Edson Fachin de remeter ações ao plenário, a seu bel-prazer, quando ele está em minoria na segunda turma do STF. Como resultado, coloca-se a questão da ascensão do Judiciário ao papel de força política com poder de veto sobre o sistema político e com elementos muito fortes de privilégio interna corporis. A trajetória anterior do STF de dois pesos e duas medidas e de relativização das regras do estado de direito degradou a democracia ainda antes da posse de Bolsonaro, que aprofundou o processo. Todos esses elementos sugerem que o Judiciário brasileiro é parte de um itinerário de ascensão do poder das instituições contramajoritárias acima do sistema político. Trata-se de um detour jurídico por meio do qual os membros do Poder Judiciário têm a capacidade não apenas de se expressar para além das regras do esta-

do de direito, como também de se associar a outros atores que o fazem abertamente. Essa postura de enfraquecimento do estado de direito foi aproveitada por Jair Bolsonaro, tornando ambos – a democracia e o estado de direito – ainda mais vulneráveis em nosso país.

GOVERNO BOLSONARO, MILITARES E DEGRADAÇÃO INSTITUCIONAL O período que teve início em 2016 envolve dois momentos diferentes. No primeiro, uma democracia praticamente consolidada abriu mão de ser uma democracia plena para se tornar um arranjo entre elites conservadoras capitaneadas pelo PMDB e pelo PSDB e associadas às forças do mercado. Degradou-se ali a democracia de forma que talvez pudesse ser revertida em 2018, mas, por causa das intervenções judiciais e militares, não houve reversão. Com a eleição de Jair Bolsonaro passamos a um segundo momento, no qual se agregou em torno do presidente um conjunto de atores com baixas convicções democráticas – se é que possuem alguma. Penso aqui no atual ministro da Justiça, ou na ministra dos Direitos Humanos, que viola direitos de uma criança de 10 anos, ou no Procurador-Geral da República, que desmonta toda a estrutura de direitos construída pela instituição. Com o capitão reformado na Presidência, a degradação deixa de ser uma consequência e passa a ser um objetivo.

O bolsonarismo degrada as instituições de duas maneiras: em primeiro lugar, por meio de uma rede impressionante de geração de fake news. Graças a ela, consegue atacar o sistema político, o STF e até mesmo o Carnaval do Rio de Janeiro. Esses ataques reduzem a legitimidade das instituições políticas – que já era baixa desde 2014 e tornou-se baixíssima em 2018. Apenas 1% dos brasileiros confia muito em partidos políticos e um número um pouco superior no Congresso Nacional. Ao reforçar o ataque a essas instituições, o bolsonarismo cria um caldo de cultura para que seu fechamento seja defendido abertamente nas ruas, tal como vimos nos meses de abril, maio e junho de 2020. Em relação ao STF, a situação é ainda pior, porque o bolsonarismo vende a ideia de que a democracia se fortaleceria se não houvesse a atuação da corte na revisão de atos do governo. Mas o que mais preocupa no bolsonarismo é que ele não opera com um padrão de bom governo. Pelo contrário, defende a ideia anti-iluminista e antirrepublicana de que o papel da política não está na melhora do governo ou no exercício virtuoso do poder, e sim em sua utilização para a manutenção de um status quo conservador. Ao mesmo tempo, o bolsonarismo não tem nenhum prurido em rebaixar o nível de atuação de instituições que a princípio entendemos como republicanas. Depois de arra-

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sar as políticas de educação superior e de direitos humanos em 2019, a atenção de Bolsonaro voltou-se para o Ministério da Justiça, a Polícia Federal e o STF. Assim, na medida em que a pauta ideológica de desestruturar as políticas públicas na área de educação superior, direitos humanos e meio ambiente foi alcançada no ano passado, vimos uma nova pauta ainda mais problemática neste ano: a adaptação de instituições do sistema de justiça aos objetivos do clã Bolsonaro. Assim, o objetivo do Ministério da Justiça passou a ser vigiar a oposição, defender o presidente no STF ou tentar indicar diretores da Polícia Federal com o intuito de influenciar processos nos quais os filhos do presidente estão envolvidos. Assim, as instituições políticas cumprem dois papéis no bolsonarismo: deixar o presidente aplicar seu programa político a despeito dos pesos e contrapesos do sistema político brasileiro e ser o lugar da distorção dos objetivos do sistema de justiça. O bolsonarismo constitui um tipo raro de associação entre governo não virtuoso e conservadorismo. O conservadorismo no Brasil tentou historicamente se constituir em uma forma envergonhada de defesa do status quo. Desde o período abolicionista até o final da ditadura militar, essa foi a postura hegemônica: ser conservador e tentar passar uma imagem de progressista. Assim, o regime militar se importou com as críticas na área dos direitos humanos, assim como Collor demarcou reservas indígenas e dialogou com forças na área do meio ambiente. O bolsonarismo representa uma nova forma de conservadorismo, um conservadorismo ideológico e anti-institucional que rompe com os padrões normais da democracia e despreza as instituições democráticas. Ou estas colocam fim no bolsonarismo, ou ele poderá comprometer decisivamente seu funcionamento.  *Leonardo Avritzer é professor do Departamento de Ciência Política da UFMG e autor de diversos livros, dos quais o mais recente é Política e antipolítica: a crise do governo Bolsonaro (Todavia, 2020). 1   A s chamadas “pedaladas fiscais” fazem parte da lei de responsabilidade fiscal que emendou alguns artigos da Lei n. 1.079/1950 sobre o impeachment. Existem dois problemas com essa via de remoção da presidenta. O primeiro é a generalidade do uso da suplementação orçamentária sem autorização pelo Executivo no Brasil. Todos os presidentes desde 1994 utilizaram esse instrumento, e o próprio vice-presidente Michel Temer recorreu a ele no exercício da prerrogativa de presidente. Assim, houve a aplicação de um dispositivo menor da lei do impeachment com a quebra do princípio da igualdade perante a lei.


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NA LINHA DE FRENTE DA DEFESA DAS LIBERDADES

Quem tem medo da sociedade civil? Quem tem poder para escrever uma declaração universal de direitos? Quem sabe mobilizar milhares de pessoas e parar a economia? Quem resiste firmemente ao racismo e à violência por séculos? Não são indivíduos isolados, mas principalmente os grupos, coletivos e movimentos; são organizações da sociedade civil POR DENISE DOURADO DORA*

bal as demandas e histórias de pessoas de todos os cantos do mundo. Podemos imaginar quantas questões foram trazidas pelos representantes de pessoas massacradas na Segunda Guerra Mundial pelo antissemitismo, pelas lutas anticoloniais na África, pelas populações originárias da América Latina? Seria possível pensar em direitos sem uma sociedade civil ativa e solidária? Essa Declaração Universal, escrita por muitas e muitas mãos, fala de algumas liberdades indispensáveis, como a liberdade de opinião e de expressão, de informação e de reunião e associação pacíficas. Assim, o direito de reunir-se e de formar grupos

associativos passa a ser inscrito na gramática de direitos humanos como um exercício de liberdade fundamental. Sabemos que, antes disso, leis nacionais já admitiam e regulavam a prática de associar-se; muitas vezes não para todo mundo, já que leis respondem – em regra geral – a interesses dominantes. Trabalhadores/as criarem sindicatos, povos negros registrarem terreiros, mulheres votarem e formarem partidos são exemplos de interdições do século XX ao direito de organizar-se, algumas presentes até hoje. Por isso, talvez, as mobilizações e organizações da sociedade civil pro-

© Marcelo Camargo/Agência Brasil

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m 10 de dezembro de 1948, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou a Declaração Universal dos Direitos Humanos. No plenário da ONU apareceram os grandes personagens que ajudaram a produzir esse documento, como Eleanor Roosevelt, Rene Cassin e outros. Entretanto, quando se recorre aos arquivos de memória desse período, às atas das reuniões, às propostas apresentadas, vemos que havia grandes personagens nos bastidores do processo, personagens coletivos que representavam milhares, centenas de milhares de indivíduos e vozes. Eram as organizações da sociedade civil, que traziam a esses fóruns de debate glo-

Indígenas, quilombolas, negros e mulheres são os que mais sofrem violações de direitos

voquem medo em alguns governantes. Afinal, quem tem poder para escrever uma declaração universal de direitos? Quem sabe mobilizar milhares de pessoas e parar a economia? Quem resiste firmemente ao racismo e à violência por séculos? Não são indivíduos isolados, mas principalmente os grupos, coletivos e movimentos; são organizações da sociedade civil. Não por acaso, em seu discurso no dia 22 de setembro, o presidente Jair Bolsonaro converteu a 75ª Assembleia Geral das Nações Unidas em plataforma de desinformação: nesse espaço institucional, e como autoridade representando uma nação, disparou notícias falsas e jargões sem evidências sobre o vazamento de petróleo na costa brasileira, as queimadas na Amazônia, Cerrado e Pantanal, o valor do auxílio financeiro aprovado pelo Congresso Federal na pandemia e a gestão catastrófica da emergência de saúde pública no Brasil. A isso somou ataques à liberdade de imprensa e aos direitos de associação e participação social, ao insistir em hostilizar comunicadores e organizações da sociedade civil. Ao contrário do que tentou, o discurso de Jair Bolsonaro só deixou ainda mais evidente a importância e a urgência da existência e do fortalecimento de povos tradicionais, de comunidades indígenas e quilombolas, da liberdade de imprensa, de organizações da sociedade civil, de defensores de direitos humanos e ambientais no Brasil. Como uma rede tecida por muitos fios, são as instâncias coletivas que produzem a teia e os vínculos entre pessoas e os projetos de uma nação, trazendo as experiências e demandas de gente muito diversa, enriquecendo o debate público, saindo da caixa das formas tradicionais de representação. Entretanto, o discurso – embora falacioso – não é vazio. O governo federal tem, desde janeiro de 2019, investido contra a liberdade e a autonomia da sociedade civil e as expressões de liberdade de opinião. Para não deixar dúvidas sobre suas intenções de erodir o espaço público não governamental brasileiro – se alguém ainda as tinha –, em 1º de janeiro de 2019 o governo publicou a MP n. 870/2019, que em seu artigo 5º, ao tratar das competências da Secretaria de Governo da Presidência da República, indica que esta tem o papel de “II – supervisionar, coordenar, monitorar e acompanhar as atividades e as ações dos organismos internacionais e das organizações não governamentais no território nacional”. Primeiro dia de governo! A intenção precisa de comprometer a autonomia das ONGs aparece nos verbos “supervisionar, coorde-


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ATAQUES SISTEMÁTICOS Assiste-se, desde então, a um ataque semanal às liberdades de opinião e expressão cívicas. E este não é um ataque menor, ou individual, como às vezes se pensa ao ver um ou uma jornalista sofrer ameaças e perseguições. As liberdades de falar e organizar-se não são secundárias – seja porque são necessárias para a conquista ou defesa de outros direitos humanos, seja porque sua restrição é justamente um dos principais mecanismos de sufocamento democrático. Muitas vezes se toma a liberdade de expressão e associação como um direito clássico, sem compreender que a agenda de expressão vai além da perspectiva liberal de um direito individual. Hoje, no Brasil, ela se materializa como uma defesa de pluralidade de vozes e de garantias a grupos discriminados que sofrem violações sistemáticas e que são justamente os que mais se levantam contra injustiças e para defender direitos humanos e ambientais. Os ataques a ONGs, movimentos sociais, povos tradicionais, imprensa, artistas e escolas são parte da restrição à liberdade de expressão no Brasil que está em curso. Exemplos disso foram o processo de intimidação e criminalização contra a organização Saúde e Alegria e as prisões de quatro integrantes da Brigada de Incêndios de Alter do Chão, que demonstram a tentativa de impedir que as organizações da sociedade civil participem livremente de assuntos de evidente interesse público. De acordo com o documento enviado para ONU e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos por organizações brasileiras, “desde as eleições presidenciais de 2018, as organizações da sociedade civil brasileira vêm sofrendo sistemáticos ataques, em um processo de desmoralização e criminalização que coloca em risco os direitos fundamentais de associação, de liberdade de expressão e de presunção de inocência”. Esse caso é emblemático de uma combinação entre o ataque à liberdade de construir grupos e coletivos para o ativismo ambiental com o desmonte do sistema de informações ambientais, já existente no Brasil, e a

propagação de notícias falsas por autoridades públicas, quando estas tentam imputar a organizações da sociedade civil responsabilidade por violações que elas buscam combater – como as queimadas. Parece uma fórmula óbvia: desmonta as informações públicas, destrói o laço social e vende uma floresta. Passa a boiada. Portanto, a diminuição da transparência pública se combina com a destruição de espaços de participação social e da produção e divulgação de dados e evidências que embasem políticas públicas. As queimadas na Amazônia e o ataque aos direitos dos povos indígenas e populações tradicionais são expressões desse processo de erosão do ambiente público e, neste ano de Covid-19, o impacto da ausência de informação e de debate cívico amplo mostra seu efeito perverso e letal. Com 140 mil pessoas mortas como consequência do coronavírus, o presidente Bolsonaro e seus apoiadores fazem uso dessa combinação perversa de desmonte de políticas públicas e de sistemas de transparência, com ataques às organizações para provocar insegurança e recuo.

LIBERDADE DE IMPRENSA

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nar, monitorar”, como se o espaço de debate e engajamento cívico pudesse, ou devesse, ser coordenado pelos governos. A reação forte desta sociedade e o apoio de parlamentares permitiram a alteração da lei naquele momento, mas não impediram que se nomeassem agentes e oficiais de governo inadequados para a função e desrespeitosos com o diálogo com as organizações.

Desde que foram confirmados os primeiros casos de Covid-19 no Brasil, ao menos 82 ataques a jornalistas e comunicadores que realizavam coberturas relacionadas à pandemia e às recomendações de prevenção da Organização Mundial da Saúde foram registrados. Os dados mostram ainda que 72% desses ataques foram realizados diretamente por membros do governo federal, pelo presidente da República e por políticos associados, revelando um cenário em que o descrédito da informação e do trabalho da imprensa e as agressões contra jornalistas são abertamente incentivados por membros do atual mandato. Quase 10% dos ataques ocorreram durante coberturas em hospitais e comércios que permaneceram abertos, contrariando decretos municipais e estaduais, e políticas de prevenção contra o vírus no período. As coberturas nesses casos foram interrompidas, por vezes contando com agressões físicas e verbais, colocando em risco a segurança dos jornalistas ali presentes e prejudicando o direito da população à informação – ainda mais necessário no contexto de uma grave pandemia. São informações que poderiam orientar decisões individuais e coletivas de prevenção à Covid-19. Além desses ataques específicos, 449 violações contra jornalistas e comunicadores foram cometidas pela expressão, opinião e associação do presidente da República, seus ministros, familiares que exercem manda-

tos e políticos relacionados, entre janeiro de 2019 e setembro de 2020. Esses ataques reiterados geram um ambiente de deterioração do trabalho da imprensa – de forma mais evidente por meio de insultos, ameaças e intimidações, ataques verbais, virtuais e impedimento de cobertura em determinadas situações –, mas também, de maneira indireta, deterioração da liberdade de imprensa e mobilização da máquina pública para promover – e não coibir – a desinformação. Em 42% dos casos (189) se fez uso de um discurso estigmatizante, no qual comunicadores e veículos de mídia foram acusados de manipular o conteúdo jornalístico produzido para tentar desestabilizar o governo ou o país ou deteriorar a imagem do atual mandato, produzindo notícias falsas. Essa acusação é feita sem nenhuma evidência que a prove. Além do discurso estigmatizante, houve a deslegitimação do trabalho da imprensa em 38% dos casos (170), em que se verificou uma associação do trabalho jornalístico a termos pejorativos, colocando em xeque o papel e a importância da imprensa. O principal efeito dessa violação foi o crescente descrédito da população nos meios de comunicação e informação, que seguem padrões profissionais e são passíveis de checagem. Esse descrédito, entretanto, se desdobra em diversos outros efeitos, ampliando a desinformação da população. O discurso estigmatizante e a deslegitimação do trabalho da imprensa acentuam o contexto de desinformação crescente, uma vez que as informações trazidas ao público pela imprensa acabam associadas a uma estratégia política. Além disso, esse discurso contribui para o aumento da hostilidade social ao trabalho de jornalistas e comunicadores, criando um ambiente que propicia a ocorrência de violações mais graves, como episódios recentes de agressões físicas e verbais, ataques virtuais em massa e interrupção de cobertura – mesmo em situações extremas, como a emergência de saúde pública. Esses são, muitas vezes, casos emblemáticos, mas com efeitos profundos na sociedade brasileira, já marcada por um forte padrão de desigualdades e discriminações. Do ponto de vista simbólico, essa retórica opera para tentar retirar legitimidade de vozes plurais – de novos coletivos de comunicação falando de racismo na vida do povo brasileiro, novas blogueiras, negras, feministas, de espaços cívicos de projeção de experiências. O ataque à comunicadora Bianca Santana, integrante da Coalizão Negra por Direitos, em pronunciamento público do próprio presidente, repete a fórmula: acusada de

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produzir notícias falsas, Bianca entra na justiça e o porta-voz se retrata. Mas aí a máquina de produzir ataques racistas e misóginos já começou a funcionar. Além de acionar o poder judicial nacional, a jornalista apresenta seu depoimento na reunião do Conselho de Direitos Humanos da ONU, em Genebra.

AGENDA DE DIREITOS As violações às liberdades de expressão, opinião e associação são agravadas em relação aos direitos das populações indígenas, negra e quilombola e das mulheres – em que as ações do governo federal incluem não só um apagão de dados e informações epidemiológicas, como também a não execução de orçamento e de políticas públicas que poderiam assegurar direitos no cenário de emergência. Incluem ainda ataques diretos e violações. Há a perda de eficácia de políticas públicas que agrava as crises, e a população vai paulatinamente perdendo a capacidade de fiscalizar a ação do Estado, incluindo sérios casos de corrupção. Com estímulo à desinformação e à polarização, cresce a parcela da sociedade que é conivente com violações de direitos e retrocedemos em relação ao enfrentamento de desigualdades e discriminações estruturais, em especial o racismo e as violências de gênero. Mais do que defender-se, a sociedade civil brasileira se coloca na linha de frente da defesa das liberdades e, ao fazer isso, aponta para uma agenda de debates sobre a intersecção entre direitos que possam garantir condições de existência digna com pilares de reconstrução do tecido social, que está sendo corroído por mentiras, fraudes, captura do espaço público e desmonte de saber. O Estado não é um governo; o Estado brasileiro não é este governo e, de qualquer forma, para nós, brasileiros/as, esta nação é a que temos por enquanto. Repensar nossas estratégias de defesa do tecido social, reativar nossas redes de colaboração, trabalhar em conjunto, em comunidades, estar juntos e juntas parece ser, neste momento, nossa maior potência. Temos muito a fazer para garantir que esta sociedade civil, que escreveu a Declaração Universal dos Direitos Humanos, siga viva e forte para defender a sobrevivência do planeta e de nosso dia seguinte. Estamos aprendendo algo com este ano, e talvez a grande lição seja ver que há horizonte.  *Denise Dourado Dora  é diretora executiva da Artigo 19 – organização internacional de defesa da liberdade de expressão e informação.


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DEMOCRACIA PARA POUCOS

A desigualdade no Brasil é um projeto O eterno Darcy Ribeiro nos ensinou: “A crise da educação no Brasil não é uma crise, é um projeto”. Da mesma forma, a manutenção da desigualdade no Brasil não é uma crise, é um projeto desumano engendrado pelas elites. Enquanto a Constituição Federal de 1988 só funcionar para onerar pobres e aliviar as elites, permaneceremos em crise POR CHARLES ALCANTARA*

rão pagar as contas básicas e colocar comida na mesa, os super-ricos aumentam suas contas bancárias. Dados da Oxfam apontam que, apenas nos cinco primeiros meses da pandemia (março a julho de 2020), o patrimônio líquido de 42 bilionários brasileiros cresceu US$ 34 bilhões (cerca de R$ 187 bilhões pela cotação atual do dólar). Esse valor equivale a seis anos do Bolsa-Família. Enquanto isso, assistimos à população desamparada em filas a perder de vista nas agências bancárias de todo o país em busca do auxílio emergencial para saciar a fome, que, aliás, cresceu drasticamente de acordo com a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) do IBGE, divulgada em 17 de setembro. A pesquisa mostra que, depois de uma década de recuo contínuo, a fome voltou à cena como uma das protagonistas da tragédia brasileira. Mais de 10 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar grave e mais de 74 milhões em situação de insegurança alimentar leve ou moderada, somando quase 85 milhões de pessoas atingidas ou ameaçadas pela fome no Brasil. Mas não é só de tragédia que vive o Brasil. Há também muita opulência, fartura. Falei dos 42 bilionários brasileiros que faturaram, em cinco meses, o que o Brasil gasta com 14 milhões de famílias em seis anos. Se há 85 milhões de pessoas atingidas ou ameaçadas pela fome, ao menos há 238 pessoas que, juntas, têm uma fortuna de R$ 1,6 trilhão. Esse é o número de bilionários brasileiros que consta da lista da Forbes, versão 2020. Dá para imaginar uma fortuna de R$ 1,6 trilhão nas mãos de 238 pessoas, num país com mais de 10 milhões de pessoas passando fome agora, ontem, hoje, amanhã? Dá para entender por que a primeira palavra deste texto é o adjetivo “desigual”? É urgente e necessário redistribuir renda para minimizar a brutal desigualdade que está aí, visível, gri-

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esigual, esse é o retrato do Brasil, que há 520 anos cultiva um sistema de penalização das classes mais pobres. A crise causada pela pandemia do novo coronavírus escancarou a realidade que muitos tentam abafar há anos. Os mais necessitados são os que carregam o país nas costas, a custos altíssimos e sem apoio do Estado. Fomos criados por uma colonização que deixa fortes marcas até hoje, viramos uma república, enfrentamos golpes e uma ditadura militar. Em 1985, o fim de um ciclo de 21 anos de regime autoritário. Em 1988, a nova Carta Constitucional instauradora do Estado democrático de direito (a Constituição Cidadã), que estabeleceu bases, direitos, deveres e garantias para toda a sociedade. A expectativa de um Estado justo e democrático ainda não se concretizou em pleno 2020. Com cerca de 210 milhões de habitantes, mais de 40 milhões estão desempregados porque não conseguiram trabalho ou porque desistiram de procurar uma vaga. Mais 27,98 milhões gostariam de trabalhar, mas não procuraram emprego e outros 12,23 milhões estão desocupados. Sim, mais de 80 milhões de pessoas estão sem trabalhar num país que se diz democrático. Os dados foram divulgados em agosto de 2020 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). São brasileiros que vivem na informalidade, sem emprego com direitos estabelecidos, sem a certeza de quanto terão de renda ao fim do mês para pagar despesas básicas, sem segurança alimentar. A pandemia escancara mais uma triste realidade: mais de 67,2 milhões de brasileiros dependem do auxílio emergencial de R$ 600 para conseguir colocar comida dentro de casa e ter o mínimo de dignidade. A desigualdade brasileira se estabeleceu em níveis elevados; o Índice de Gini é de 0,543, valor considerado alto. À medida que os mais pobres sofrem sem a certeza de que consegui-

tante, às escâncaras por toda parte, nos rincões e nas grandes cidades, ignorada pela maioria dos governantes. Para os brasileiros forjados nas dificuldades e durezas da vida, é preciso garantir o mínimo previsto num Estado que se proclama democrático e de direitos. Como fazer 67 milhões de pessoas, que hoje recebem um auxílio emergencial, terem uma renda básica financiada por um país no auge de uma crise econômica, social e sanitária? Há meses governo e parlamentares buscam a resposta; porém, nos lugares errados. Diversas possibilidades que só aumentam o abismo que separa ricos e pobres foram aventadas, como a criação de um novo imposto sobre transações digitais (uma espécie de CPMF, que agrava a regressividade do sistema tributário), a redução do investimento básico nas áreas de saúde e educação, a extinção de programas assistenciais, o congelamento do reajuste anual do salário mínimo, o congelamento salarial do funcionalismo público.

Se há 85 milhões de pessoas atingidas ou ameaçadas pela fome, ao menos há 238 pessoas que, juntas, têm uma fortuna de R$ 1,6 trilhão A nata política brasileira só não pensou na possibilidade mais óbvia: cumprir a Constituição Federal de 1988 e cobrar impostos de forma progressiva. Diz o parágrafo 1º do artigo 145: “Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte [...]”. Esse é o chamado princípio constitucional da capacidade contributiva, que se pode resumir no mais genuíno e singelo primado de justiça: quem tem mais paga mais.

Um grupo de economistas, especialistas e entidades, sob a coordenação técnica do professor Eduardo Fagnani, olhou para onde muitos se recusam a olhar: a subtributação dos super-ricos brasileiros. Curioso notar que esse pequeno punhado de pessoas se ajusta bem ao prefixo “super” quando se refere à fortuna que acumularam, mas, quando se trata de pagar impostos, o prefixo que lhes cabe é o extremo oposto: “sub”. O documento “Tributar os Super-Ricos para Reconstruir o País”, lançado no dia 6 de agosto deste ano, propõe oito medidas que têm o potencial de arrecadar cerca de R$ 292 bilhões por ano, tirando o fardo dos mais pobres e transferindo para a elite, que historicamente sempre se recusou a contribuir com a redução da desigualdade no Brasil. Nas várias vezes em que o mundo atravessou momentos de crise, as elites tiveram de dar sua parte, assim como todos, mas isso nunca se aplicou no Brasil. O país é uma espécie de oásis para milionários. Aqui é possível aumentar a fortuna e, ao mesmo tempo, pagar menos impostos. Se observamos a tabela das alíquotas de Imposto sobre a Renda da Pessoa Física (IRPF) é possível notar uma enorme discrepância. Quem recebe R$ 4.770 paga o mesmo percentual de quem recebe R$ 100 mil: 27,5%. Uma nova tabela do IRPF, com a introdução de quatro novas alíquotas (30%, 35%, 40% e 45%), combinada com a revogação do privilégio tributário concedido às rendas do capital (isenção da distribuição de lucros e dividendos e dedução dos juros sobre capital próprio), é a principal medida proposta no documento, com um potencial de incremento na arrecadação do imposto na ordem de R$ 158 bilhões por ano na arrecadação. O documento propõe ainda a isenção do imposto para quem recebe até R$ 2.862, cerca de 34% dos contribuintes. Em momentos de crise, é comum os países aumentarem a arrecadação com impostos progressivos, seguindo o princípio da capacidade contributiva. Nos Estados Unidos, as alíquotas máximas de imposto de renda ficaram acima de 75% da metade da década de 1930 até meados dos anos 1970. No Reino Unido, a alíquota máxima ficou acima de 90% entre as décadas de 1940 e 1970. Atualmente, a alíquota máxima nos Estados Unidos é de 37% e, no Reino Unido, de 45%. Ou seja, no pós-guerra, toda a sociedade ajudou na reconstrução econômica dos países. No Brasil, a renda e o patrimônio são pouco tributados; seguem um caminho inverso da tendência mundial, respondendo por apenas 23% da ar-


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Há medidas simples e emergenciais que podem ser tomadas. O documento que convoca os super-ricos ao pagamento de tributos também prescreve a criação da Contribuição Social sobre as Altas Rendas (CSAR), com uma alíquota de 10% sobre os rendimentos totais que excederem o valor anual de R$ 720 mil, uma medida que alcança cerca de 208 mil contribuintes, o que representa 0,098% da população. O potencial arrecadatório é de R$ 35 bilhões. Outro flanco que contribui para o aumento da desigualdade são as heranças, que, no Brasil, gozam de alíquotas muito baixas na comparação internacional: alíquota máxima de 8%. Nossos vizinhos Chile e Equador cobram 35%; Estados Unidos, 40%; Alemanha, 50%; Espanha, 64%; Bélgica, 80%. O Estado brasileiro incentiva a manutenção dos super-ricos, da concentração renda e do patrimônio. Uma adequação das alíquotas do imposto sobre heranças, de até 8% para até 30%, percentual abaixo de todos os países citados, possibilita a arrecadação de cerca de R$ 14 bilhões. O documento de tributação dos super-ricos também olha para setores econômicos que produzem externalidades negativas, como o setor extrativo de recursos minerais, que geram demandas de políticas públicas, principalmente assistenciais, de saúde e ambientais. É justificável que maior parcela das atividades do setor seja onerada por uma elevação da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL). O aumento da alíquota para 20%, no caso das pessoas jurídicas que atuem no setor extrativo de recursos minerais, pode gerar acréscimo estimado de R$ 3 bilhões. A alíquota de 10%, no caso das demais pessoas jurídicas, poupando as empresas do Simples Nacional, pode gerar mais R$ 8,5 bilhões. A situação de urgência econômica também permite a elevação tempo-

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recadação. Nos Estados Unidos, renda e patrimônio representam 60% da arrecadação. A média dos países da OCDE é de 40%. Por outro lado, a tributação sobre o consumo representa quase 50% de tudo o que se arrecada no Brasil. Nos Estados Unidos, esse percentual é de 17%, enquanto a média dos países da OCDE é de 32,4%. Os milhões de brasileiros que têm dificuldade para colocar comida na mesa precisam lidar com uma altíssima carga tributária para comer e se manter no dia a dia. Os que têm jatinhos, lanchas, iates, mansões, não. Injusto, desigual e estarrecedor. A instituição do imposto sobre grandes fortunas (IGF), prevista no artigo 153, inciso VII, da Constituição, pode adicionar mais R$ 40 bilhões aos cofres da União. Pela proposta de tributação dos super-ricos, o valor seria obtido de forma gradual, com alíquota inicial de 0,5% sobre patrimônios acima de R$ 10 milhões; 1% sobre patrimônios acima de R$ 40 milhões e até R$ 80 milhões; e 1,5% sobre patrimônios acima de R$ 80 milhões. Com apenas duas medidas (IRPF e IGF) já teríamos um acréscimo de R$ 200 bilhões na arrecadação do país, mais que suficiente, por exemplo, para ampliar o Programa Bolsa-Família, tanto em relação ao número de famílias atendidas quanto ao valor médio do benefício. Com o passar do tempo, fica mais claro que as reformas chamadas de “estruturantes”, iniciadas em 2017 com a reforma trabalhista no governo de Michel Temer, seguida pela da Previdência de Jair Bolsonaro em 2019, prestaram-se somente a concentrar mais renda e riqueza no topo e a aprofundar a desigualdade. Para os mais pobres, o que vemos é o aumento do desemprego, do desalento e da fome. É fundamental encarar as mazelas e não deixar, mais uma vez, que os pobres paguem essa conta.

rária da alíquota da CSLL para o setor financeiro. Pode-se aumentar, entre 2021 e 2024, a alíquota dos bancos para 40%, distribuidoras de valores mobiliários, corretoras de câmbio e de valores mobiliários, sociedades de crédito, financiamento e investimentos, sociedades de crédito imobiliário, administradoras de cartões de crédito e sociedades de arrendamento mercantil. Há várias possibilidades de aumento da arrecadação que podem promover uma redução da desigualdade social no Brasil, incrementando as receitas e ajudando o país a sair do rombo fiscal em que se encontra. Os pobres não precisam arcar mais uma vez com o ônus.

O país é uma espécie de oásis para milionários. Aqui é possível aumentar a fortuna e, ao mesmo tempo, pagar menos impostos Precisamos fortalecer as micro e pequenas empresas, optantes pelo Simples Nacional, com a isenção do Imposto sobre a Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ) e da CSLL para as empresas com faturamento bruto abaixo de R$ 360 mil anuais. A isenção pode reduzir em quase 60% o peso dos impostos; mais de 900 mil empresas seriam beneficiadas, cerca de 75% das optantes pelo Simples. São quase 12 milhões de trabalhadores empregados pelas micro e pequenas empresas, que podem expandir os negócios e aumentar a quantidade de trabalhadores. Todos os pontos citados até aqui contribuem para a redução da desigualdade e para a efetivação da progressividade de acordo com a capacidade contributiva.

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Com o incremento de receitas também é possível propor um novo modelo de repartição do imposto de renda e do imposto sobre grandes fortunas com estados e municípios. O documento de tributação dos super-ricos propõe que 8% da arrecadação do imposto de renda e 10% da arrecadação do IGF sejam repartidos com os estados e o Distrito Federal, e que 2% do IR e 10% do IGF sejam repartidos com os municípios. Os recursos serão distribuídos de forma direta, 50% proporcionalmente à população e 50% na proporção inversa do PIB per capita. Por esse modelo de repartição do imposto de renda e do imposto sobre grandes fortunas, os estados teriam um reforço estimado em R$ 83 bilhões, e os municípios, em R$ 54 bilhões. O eterno Darcy Ribeiro nos ensinou: “A crise da educação no Brasil não é uma crise, é um projeto”. Da mesma forma, a manutenção da desigualdade no Brasil não é uma crise, é um projeto desumano engendrado pelas elites. Enquanto a Constituição Federal de 1988 só funcionar para onerar pobres e aliviar as elites, permaneceremos em crise. O Brasil só se tornará uma nação digna quando garantir assistência, saúde, educação, cultura, trabalho, moradia e comida todos os dias na mesa de 210 milhões de brasileiros e brasileiras. É pedir demais? É sonhar demais? Não cumpriremos esse dever-ser sem que os super-ricos sejam justa e devidamente tributados. Poupando 99,7% dos brasileiros e cobrando apenas do 0,3%, os super-ricos, já seremos um país menos desigual. Eis aí um primeiro grande passo de uma longa caminhada.  *Charles Alcantara é presidente da Federação Nacional do Fisco Estadual e Distrital (Fenafisco).


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A “DERROTA” DE MORALES, UMA FAKE NEWS EM ESCALA PLANETÁRIA

Bolívia, crônica de um fiasco midiático Os bolivianos vão escolher um novo presidente em 18 de outubro. As eleições são organizadas por um governo formado há um ano após a derrubada de Evo Morales. Desde então, a mídia privada e uma parte da esquerda tentam esconder a natureza dessa ruptura da ordem constitucional. Até a publicação de um artigo do New York Times, em junho... POR ANNE-DOMINIQUE CORREA*

UM EXÉRCITO “TRANQUILIZADOR” Antes mesmo da divulgação dos resultados definitivos, Anthony Bellan-

ger ironizou na rádio France Inter: a reeleição do “caudilho aprendiz” contou com um “milagre!” (23 out.). Nas colunas da Charlie Hebdo, Fabrice Nicolino não se preocupou em usar o modo verbal condicional: “É certeza que o Estado boliviano escolheu manipular os resultados” (29 out.). Tal raciocínio colocou essa revista em sintonia com o Washington Post, jornal corporativo para a elite meritocrática, segundo o qual o presidente boliviano “decidiu falsificar os resultados [...] a fim de se presentear com uma vitória no primeiro turno” (11 nov.). Em 9 de dezembro, o New York Times também qualificou o escrutínio de “fraudulento” após ter sugerido que Morales teria “recorrido à mentira, à manipulação e à falsificação para garantir sua vitória” (5 dez.). Já o Le Monde optou por um silogismo apoiando-se em dois dados que não pareceram ser dignos de nenhuma comprovação. Dado 1: Morales possui um viés autoritário. Dado 2: os dirigentes autoritários corrompem as autoridades eleitorais em seus países. Conclusão: se Morales foi declarado vencedor, é porque trapaceou. Nas colunas do periódico, a frase “Morales levou a eleição presidencial” se tornou “Morales se autoproclamou vitorioso” (14 nov.). Brandido pela oposição – em especial pela extrema direita de Santa Cruz 3 – e validado pela imprensa, o relatório da OEA agravou a contestação do poder nas ruas: a violência explodiu, a polícia se amotinou. Logo convencida de que Morales havia orquestrado uma fraude de grande amplitude, a principal confederação sindical do país, a Central Operária Boliviana (COB), abandonou o presidente antes de o general Williams Kaliman, chefe do Exército, organizar uma coletiva para a imprensa televisiva na qual anunciou: “Pedimos ao presidente que renuncie ao seu mandato presidencial, o que permitirá restabelecer a paz e manter a estabilidade para o bem da Bolívia”. Jeanine

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grande mídia não gosta de mea culpa. Em 7 de junho, o New York Times causou então surpresa ao publicar um artigo autocrítico que associa implicitamente a imprensa à instauração, em novembro de 2019, de uma ditadura na Bolívia... Relembrando os fatos. Em 20 de outubro, noite da eleição presidencial boliviana, as contagens preliminares creditavam ao presidente então em exercício, Evo Morales, 45,7% dos votos, contra 37,8% para seu adversário, Carlos Mesa, com base na coleta de 83,8% dos boletins de urna. A diferença, inferior a 10%, indicava a ocorrência de um segundo turno (a Constituição boliviana prevê dois turnos, salvo quando um candidato obtém mais de 50% dos votos no primeiro ou mais de 40% com diferença de no mínimo 10% sobre o segundo colocado). Quatro dias depois, o anúncio dos resultados oficiais provocou o incêndio: Morales foi declarado vencedor com 47,08% dos votos, contra 36,51% de Mesa. Braço armado de Washington na região,1 a Organização dos Estados Americanos (OEA) exprimiu suas preocupações: algumas “irregularidades” demonstrariam que o poder orquestrara uma fraude eleitoral em grande escala. Rapidamente, diversos estudos criticaram severamente as acusações da organização afiliada a Washington.2 A progressão de Morales entre os resultados preliminares e definitivos não tinha nada de extraordinário: explicava-se pela chegada tardia dos boletins vindos do longínquo Altiplano, amplamente favoráveis ao presidente em exercício. A OEA manteve, todavia, sua queixa, sem chegar a apresentar provas... Revoltada, a oposição foi às ruas. A imprensa internacional denunciou uma tentativa de fraude, a qual sabemos agora que nunca ocorreu.

Áñez, uma senadora de segundo escalão, autoproclamou-se presidente, sem quórum na Assembleia. Uma foto imortalizou-a colocando a faixa presidencial com a ajuda de um alto funcionário. Na mídia, o uniforme cáqui do general Kaliman suscitou aparentemente menos temor que o do ex-presidente bolivariano Hugo Chávez (1999-2013). Na França, a imprensa explicou então que Morales havia “pedido demissão” após “três semanas de protestos” (Le Monde, 10 nov.), sob a “pressão das ruas” (Médiapart, 12 nov.) ou de “uma insurreição popular” (France Inter, 13 nov.). Segundo a rádio France Info, a queda do presidente havia sido acolhida “por todos os lados nas ruas de La Paz”, com “cenas de alegria, cantos, lágrimas de felicidade...”. A homogeneidade do relato midiático francês talvez tenha relação com o fato de que os correspondentes dos veículos Radio France International (RFI), Médiapart, Le Figaro, France 24 e France Culture sejam uma única e mesma pessoa: Alice Campaignolle, que estendeu o entusiasmo dos bairros nobres a toda a capital administrativa. Enquanto a América conhecia sua primeira “ditadora” da história, Fabienne Sintes entrevistava na France Inter seus convidados: Christine Delfour, professora especialista em civilização espanhola e latino-americana, e Hugo José Suárez, sociólogo (13 nov.). “Jeanine Áñez é legítima?” “Sim, sim, sim!”, respondeu Suárez. E o Exército “está desempenhando seu papel?”. “Vemos claramente que se trata de um Exército constitucional”, completou Suárez. Para Delfour, os militares se contentaram em formular uma “sugestão” ao presidente. A pesquisadora julgou “tranquilizador e positivo” que o Exército tenha “seguido os passos da oposição”: “Em todo caso, não é um golpe de Estado!”, concluiu. Já que “não era um golpe de Estado”, então a crise política que o país

atravessava tinha outras raízes. “Como se explica que Evo Morales tenha capotado? Ele foi um presidente extremamente popular. Possui uma longevidade bastante superior à de seus predecessores. E aí, capotou [...] ele trapaceou, as coisas estão muito claras [...]. Por quê?”, perguntou Sintes. “Ele capotou por sua soberba, por seu orgulho e seu autoritarismo. Ele está completamente deslocado, a situação lhe escapa. E, como a única gestão da política que conhece é a relação de força, ele usa a relação de força”, analisou Delfour. Conclusão de Sintes: “Então, ele não sabe ler seu país”. O homem que “não sabia ler” seu país tinha acabado de ganhar uma eleição presidencial no primeiro turno. No dia seguinte ao golpe de Estado, uma avalanche de editoriais atribuiu também a responsabilidade da “crise” a Morales. Segundo o editorial do The Observer (um semanário britânico de esquerda), “o ex-presidente foi [...] vítima de sua recusa em ceder as rédeas do poder”, e seu “reino” apresentava “sinais” de “culto à personalidade pouco atraentes, quase castristas” (17 nov.). O mesmo discurso nas páginas do New York Times: “O que derrubou Morales não foi sua ideologia ou qualquer ingerência estrangeira, como ele insinuou, mas sua arrogância, um traço próprio dos populistas: [...] a pretensão de ser a última instância arbitral da vontade do povo e de ser autorizado a esmagar qualquer instituição que se coloque em seu caminho” (11 nov. 2019). Durante um programa de 28 minutos no canal Arte, Xavier Maudit “se lembrou” de Mariano Melgarejo, um ex-presidente boliviano indígena, megalomaníaco e alcoólatra, que foi deposto em 1871 após ter endividado o país e acumulado derrotas em conflitos territoriais (12 nov. 2019). Quando Morales anunciou, de seu exílio, que desejava concorrer à próxima eleição presidencial (então prevista para 3 de maio, em seguida adiada para 18 de outubro por causa


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um exercício de equilibrista. O documento justapunha, sem analisá-los, os posicionamentos. O leitor é quem deveria decidir? Não totalmente, pois o site apresentou também uma exegese da situação publicada no blog do intelectual argentino Pablo Stefanoni.6 De pronto, outros autores rejeitaram as duas teses, que se confrontavam: “Golpe de Estado militar contra um governo popular? Rebelião da sociedade contra um regime tentado pelo autoritarismo? A queda de Evo Morales [...] merece mais que clichês ideológicos desgovernados”. A essas hipóteses muito decididas os autores opuseram “uma lógica muito mais complexa e aleatória ligada à dinâmica cumulativa dos eventos”. O exposto era de um refinamento notável, mas a preocupação de expor a “complexidade do mundo” logo se esvaiu diante da questão do relatório da OEA, cujos resultados não foram objeto de nenhuma avaliação crítica. Ângulo similar nas palavras de Denis Sieffert, do Politis, em 27 de novembro de 2019: “Pouco importa que as provas (de fraude) sejam parcas”, proclamou. Para compreender a crise, seria preciso “voltar a 2011 [...] quando as comunidades e associações ecologistas se mobilizaram contra um projeto de rodovia numa zona protegida e sob controle indígena”. Em outros termos, quando um dirigente político acaba de ser cassado do poder pelo Exército, a urgência consistiria em responder à questão: Morales foi um bom presidente cerca de dez anos atrás? Não teria cabido ao

povo boliviano se pronunciar sobre essa questão um mês antes? Foi nesse contexto que, em 7 de junho de 2020, o New York Times revelou as conclusões de um novo estudo que dinamitou os resultados do relatório da OEA.7 Após terem contestado os cálculos estatísticos da organização, os pesquisadores detectaram diversos “problemas” e “erros metodológicos”. Descobriram que a OEA “utilizou um método estatístico inapropriado que causou a ilusão de uma ruptura de tendência no voto”. Contatado pelos pesquisadores por diversas vezes para obter seus dados, o consultor contratado pela OEA, o professor Irfan Nooruddin, recusou-se a responder-lhes. Uma vez corrigidos seus erros, não havia mais “traço estatístico de fraude”, decidiram os autores. O New York Times precisou admitir que o relatório da OEA era “errôneo”. Dito de outra forma, a Bolívia tinha acabado de passar por uma ruptura de ordem constitucional apoiada pelo Exército: um golpe de Estado. Tremor de terra? Não para o Le Monde, que estimou apenas que o artigo do jornal norte-americano “retomou os debates sobre as pressuposições de fraude” (12 jun.). No Libération, descobrimos que as estatísticas dão dor de cabeça: “Passei um dia me interessando por esse estudo”, explicou-nos Francisco Gomez, jornalista encarregado da cobertura da América Latina para o periódico. “E depois eu disse a mim mesmo: não posso avaliar o valor desse trabalho, pois não tenho competências em matemática e estatísti-

© Marcos Corrêa/PR

da pandemia de Covid-19), um editorial do Le Monde o alertou: “Seria um novo erro. Se realmente carrega o interesse de seus concidadãos no coração, Morales seria mais prudente se ficasse de fora, para que a violência possa acabar na Bolívia e um resultado constitucional consiga emergir” (14 nov.). A recomendação se revelou inútil: o novo poder boliviano processou Morales por “terrorismo e sedição”, uma acusação passível de trinta anos de prisão, que o impede de se candidatar. Embora a “queda” do presidente boliviano encantasse a imprensa, ela incomodava uma parte da esquerda. No site da Attac, o tema foi tratado com rodeios. Morales foi cassado do poder? Um “dossiê”4 publicado on-line em 20 de dezembro de 2019 escolheu não tomar posição: “Desde a eleição presidencial de 20 de outubro de 2019, a Bolívia passa por uma crise política enorme que resultou na demissão do presidente Evo Morales em 10 de novembro”. Segue-se uma série de artigos: alguns defendendo a tese do golpe de Estado; outros se opondo a ela, tais como a “Carta aberta do movimento altermundialista sobre a situação na Bolívia”, redigida por Pablo Solón. “O presidente Evo Morales declarou [...] que um golpe de Estado estaria em curso na Bolívia”, escreveu o ex-embaixador do país nas Nações Unidas. “Sinto muito em lhes dizer que essa afirmação de Evo Morales é completamente falsa.”5 Em 14 de dezembro, “a redação” do site Médiapart retomou um artigo do Devoir de Montreal na forma de

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ca”. Uma prudência que Gomez não se impôs quando compartilhou as conclusões do relatório da OEA – que confessou “não ter lido”. Contatados, os jornalistas do Figaro, do Libération e do Le Monde mobilizaram o mesmo tipo de argumento. “Não foi um golpe de Estado, foi uma lacuna constitucional”, estimou Patrick Bèle, do Figaro. “Um golpe de Estado é quando vão buscar o presidente em seu palácio, colocam-no na prisão ou o depõem para colocar alguém em seu lugar imediatamente, o que quer dizer que há um plano preestabelecido.” “Não houve tomada de poder pelos militares”, acrescentou Gomez. “Foi mais um golpe de Estado civil por uma parte da população: não é porque as pessoas são de direita que não têm o direito de se mobilizar.” “Eu não utilizei a expressão ‘golpe de Estado’ porque possui conotações muito fortes”, justificou-se Campaignolle (Le Figaro, Médiapart, France Info, RFI etc.). “Só quem é muito de esquerda utiliza essa expressão. Tentei ficar de fora da confusão.” “Utilizar a expressão ‘golpe de Estado’ bloqueia a reflexão sobre muitas coisas”, analisou por fim Chaparro (Le Monde). Mas não possibilita esclarecer a natureza do regime em curso em La Paz desde novembro de 2019? Em 13 de novembro de 2019, na France Inter, Sintes terminou seu programa dedicado à Bolívia com estas palavras: “Muito obrigada, teremos muitas oportunidades de retomar esse assunto”. Dez meses depois, não tinham retomado o assunto.  *Anne-Dominique Correa  é jornalista.

A imprensa internacional acusou Evo Morales de fraude nas eleições de 2019, mesmo sem provas

1   L er Guillaume Long, Le ministère des colonies américaines [O ministério das colônias americanas], Le Monde Diplomatique, maio 2020. 2   C f. Guillaume Long, David Rosnick, Cavan Kharrazian e Kevin Cashman, What Happened in Bolivia’s 2019 Vote Count? [O que aconteceu na contagem de votos na Bolívia em 2019?], Centro de Pesquisa Política e Econômica (CEPR), Washington, 8 nov. 2019; e Jake Johnston e David Rosnick, Observing the observers: The OAS in the 2019 Bolivian elections [Observando os observadores: a OEA nas eleições da Bolívia de 2019], CEPR, 10 mar. 2020. 3   Ler Maëlle Mariette, “En Bolivie, sur la route avec l’élite de Santa Cruz” [Na Bolívia, na estrada com a elite de Santa Cruz], Le Monde Diplomatique, jul. 2020. 4   L a crise politique en Bolivie [A crise política na Bolívia], Attac, Paris, 20 dez. 2019. Disponível em: https://france.attac.org. 5   P ablo Solón, Lettre ouverte au mouvement altermondialiste sur la situation en Bolivie [Carta aberta ao movimento altermundialista sobre a situação na Bolívia], 24 out. 2019. Disponível em: https://france.attac.org. 6   Pablo Stefanoni e Fernando Molina, Bolivie: comment Evo est tombé? [Bolívia: como Evo caiu?], 14 nov. 2019. Disponível em: www. mediapart.fr. 7   Anatoly Kurmanaev e Maria Silvia Trigo, A bitter Election. Accusations of Fraud. And Now Second Thoughts [Uma eleição amarga. Acusações de fraude. E agora, mudança de ideia], The New York Times, 7 jun. 2020.


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A LUTA DO MEDO CONTRA O ÓDIO

Os Estados Unidos tomados pela loucura A nomeação pelo presidente Donald Trump de uma nova juíza para a Suprema Corte dividiu os Estados Unidos, especialmente porque ela pode desempenhar um papel decisivo em caso de contestação dos resultados das eleições de 3 de novembro. E, por enquanto, nenhum dos dois campos parece disposto a aceitar uma derrota POR THOMAS FRANK*

cliente que cobrisse a boca e o nariz, tal como estipulava o regulamento, este levantou a camiseta para mostrar ao garçom que estava armado. – A manchete de capa dedicada à “propagação descontrolada do coronavírus” no estado do Kansas, uma notícia que o jornal se abstinha de corroborar por meio de suas próprias fontes de informação locais, contentando-se com um mapa epidemiológico encontrado na internet. Aparentemente, a longínqua autoridade que controlava esse mapa tinha feito o Kansas mudar de vermelho-sangue (ruim) para vermelho-escuro (muito, muito ruim). E era isso. Os 2 milhões de habitantes da cidade de Kansas City que se virassem com essa informação chocante: alguém em algum lugar tinha atualizado um site de aparência oficial. Alimentar a atualidade com tuítes ou mapas da internet evidencia com certeza um jornalismo preguiçoso, mas que ilustra bem os Estados Unidos de hoje. Os jornais regionais não conseguem mais reunir informações coletadas nos quatro cantos do estado onde estão situados pela simples razão de que não dispõem mais de um número suficiente de jornalistas para efetuar tal trabalho. Como a maior parte de seus confrades, o Kansas City Star foi vendido e revendido diversas vezes ao longo dos últimos anos, acelerando a hemorragia de sua redação. O jornal se desfez de seus imóveis históricos em 2017, e seu proprietário abriu falência em fevereiro daquele ano. Em julho, foi recomprado por um hedge fund baseado em Nova Jersey. Cá estamos na América de 2020: ninguém mais pode ter certeza de nada, e a agonia da imprensa é só o menor aspecto do problema. Graças ao confinamento sem precedentes vivido no país, as interações pessoais com outros humanos se tornaram problemáticas; os prédios públicos fecharam suas portas ou limitaram o acesso de visitantes; o número de homicídios disparou; as pessoas têm

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urante este ano terrível, foi possível curtir um maravilhoso verão. Voltar, por exemplo, para casa na pacata Kansas City, em um bairro onde proliferam os gramados verdes bem aparados e os casarões que se poderia jurar terem sido construídos por barões. Passar tranquilamente o mês de agosto lendo romances, fazendo bricolagem, assistindo a filmes antigos, bebendo vinho do Missouri. Assim era possível esquecer que uma epidemia mortal continuava se espalhando e que um colapso econômico rondava esse pequeno mundo próspero e pacífico, pois de manhã o céu continuava a brilhar e as flores, a exalar seu perfume; o trânsito permanecia fluido. Tudo convidava a montar na bicicleta, percorrer as ciclovias silenciosas em uma das mais belas cidades dos Estados Unidos. Porém, após o término desse exercício, bastava se conectar ao Twitter e ir buscar o jornal que o entregador tinha acabado de arremessar na porta e então... Bum! Tudo estava lá, como no dia anterior: pânico, confusão, acusações, denúncias. Vídeos de indivíduos se insultando em público, pessoas loiras em trajes militares brandindo armas de guerra, carros se lançando sobre grupos de manifestantes, personagens histéricos recitando os textos fundadores da nação tentando se agarrar à sua saúde mental. A cada dia, novos sintomas de degeneração e, além disso, a impressão crescente de que ninguém mais entendia de verdade o que estava se passando. Duas informações retiradas ao acaso do jornal Kansas City Star de 13 de julho de 2020: – Em um restaurante de grelhados próximo ao meu domicílio entrou um cliente com um grande chapéu vermelho no qual estava escrito “Make America Great Again” [Torne a América Grande de Novo]. Ele não usava máscara de proteção. Quando o garçom (que ganha US$ 8,50 por hora, como detalhou o jornal) pediu ao

medo de andar de avião; muitas escolas só estão funcionando por ensino remoto; a Fox News despeja nos telespectadores mais velhos imagens de violência e caos; e a única pessoa que ainda liga para o celular velho deles é uma voz pré-gravada que os ameaça de prisão se não depositarem alguns milhares de dólares na conta de algum estabelecimento de crédito.

UM FURACÃO DE TERROR Enquanto isso, furacões parecem fazer fila para devastar a Louisiana um após o outro, e a Califórnia tem tantos incêndios que o céu se tornou cor de laranja. O mundo está desmoronando e não há ninguém capaz de consertá-lo. Há não muito tempo, durante períodos complicados, os dirigentes deste país empregavam suas competências em tentar tranquilizar a opinião pública, mas o atual ocupante da Casa Branca não se preocupa nem com isso – tudo o que lhe interessa é livrar-se de suas responsabilidades. Egomaníaco incapaz de proferir qualquer palavra sincera, Donald Trump reage ao sofrimento de seu povo como um fraco de espírito que divaga ao redor de uma vítima de acidente de carro que testemunhou. Um dos melhores resumos desse colapso epistemológico nos foi entregue pelo prefeito de Kansas City, quando o Star lhe pediu que comentasse o rumor segundo o qual uma comissão de agentes federais teria sido enviada à sua cidade: “É impossível verificar se isso é verdade, pois nada mais pode ser verificado”. Quando nada mais é verificável, a imaginação entra em cena. E não é preciso muito, em tempos de Covid, para exacerbar nossos medos e fazê-los atingir níveis inéditos. Os norte-americanos enfrentam o fim do mundo, acreditamos nós, ou o fim de nosso modo de vida, ou o fim de qualquer coisa grande e importante que não conseguimos definir, mas que nos preocupa no mais alto grau. Cá estamos, presas de uma dúzia de medos crescentes. Medo de que a

Suprema Corte se torne conservadora por muito tempo. Medo de policiais racistas que agridem e matam com impunidade. Medo dos tumultos que inflamam as ruas. Medo de que as pessoas percam o emprego. Medo de vizinhos que se recusam a usar máscara. Medo da máscara em si, vista como uma focinheira que tenta lhe impor algum poder misterioso do qual você jamais havia ouvido falar. Mas, neste ano eleitoral, o principal medo que nos submerge é de natureza política: que a democracia se torne moribunda ou esteja a ponto de ser derrubada por uma ditadura. Esse receio com certeza não é novo: o assunto exalta os ânimos entre amigos de esquerda de forma episódica há muitos anos.1 A era Trump fez soar esse alarme desde seu início.2 Há muito tempo é um ato de fé democrata considerar Trump como nada além de um agente russo; os democratas até tentaram destituí-lo em janeiro por ter conduzido uma política externa concebida na verdade com o único objetivo de prejudicar seu adversário político, Joe Biden. Esse presidente, como ressalta a aterrorizante história que contam, não respeita nem as normas nem as tradições, e menos ainda a mídia; também não respeita em especial a elite da diplomacia norte-americana; quanto às eleições, ele não está nem aí. Os democratas quase não evocam mais o Russiagate,3 mas na verdade nem precisam dele. O reino cultural da Covid-19 – impondo que tudo esteja sob o sinal de pânico e de urgência – cristalizou esses medos ambientes em um artigo que foi compartilhado por todos os meus amigos de esquerda, intitulado “Não sabemos como alertá-lo mais, a América está morrendo”.4 Seu autor, Umhair Haque, que reivindica um conhecimento aprofundado do assunto na qualidade de refugiado que escapou do regime ditatorial paquistanês, afirma que nossa sociedade “está apenas a um pequeno passo do desmoronamento da democracia, nas mãos de um verdadeiro déspota e de seus fanáticos”. Alertas semelhantes anunciando amanhãs políticos crepusculares inundam as redes sociais em um ritmo quase diário. O mais fascinante é que os apoiadores trumpistas alegam sentir o mesmo. De fato, a versão conservadora desse pesadelo de massa se revela ainda mais interessante que a de seu lado progressista, pois ela interpreta o temor dos democratas quanto a um ataque trumpista contra a democracia como uma prova de sua própria intenção de abater a mesma democracia, e o único meio de fazer esse plano falhar seria levar Trump ao poder. Nessa visão particular de mundo, os democratas semeariam de modo


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“COVARDE-CHEFE” A epidemia forçou democratas e republicanos a suprimir o caráter público de suas respectivas convenções, que constituiriam, como regra, o apogeu desse ano de campanha eleitoral, substituindo-o por um show televisivo difícil de aguentar – quatro noites de monólogos produzidos de forma medíocre, executados por celebridades de cada partido. Tudo parecia opor dois espetáculos: os republicanos vociferando e rugindo, ao passo que os democratas se concentravam na diversidade étnica e nas supostas virtudes morais de seus líderes. De maneira mais geral, no entanto, essas duas demonstrações de força verbal em tempos de Covid apresentaram muitas semelhanças. Nos dois casos, tratou-se de suscitar um reflexo de pânico, incentivando o espectador a pensar o pior do campo adversário e a esperar que um semblante de normalidade só poderia voltar se seu próprio candidato vencesse em novembro. Para os democratas, o componente “pânico” do programa jorrava que nem água. Bastou-lhes repetir o que as mídias dominantes – fora a Fox News – vêm ecoando há quatro anos: que Trump é uma ameaça para nossas instituições; que ele aviva o fanatismo de sua base; que falhou de modo lamentável em sua resposta à epidemia; que é de uma incompetência flagrante; que usa de diferentes meios para desacreditar todo o processo eleitoral etc. Esses atos de acusação ocorrem

com cada vez mais facilidade, visto que estão, em sua maioria, em conformidade com a realidade.

Para onde tinham ido os democratas que outrora denunciavam com fervor as desigualdades? Tammy Duckworth, senadora de Illinois, qualificou Trump como um “covarde-chefe” por ter traído os soldados norte-americanos por meio de seus acordos com o Kremlin. A cantora pop Billie Eilish anunciou que o presidente estava “destruindo nosso país e tudo o que amamos”. O governador do estado de Nova York, Andrew Cuomo, vestindo seu habitual terno de competência administrativa,6 sugeriu que o próprio trumpismo era uma espécie de vírus. Porém, o mais eficaz nesse exercício, e de longe, foi, sem dúvida, o ex-presidente Barack Obama, que sintetizou os perigos do trumpismo de maneira ao mesmo tempo sóbria e professoral. Afirmando ter esperado que o magnata do setor imobiliário se elevaria à altura de sua função uma vez no posto, precisou: “Mas ele nunca fez nada disso. [...] Ele não mostrou nenhum interesse por seu trabalho, nenhum interesse em encontrar um terreno de entendimento, nenhum interesse em utilizar o imenso poder de seu gabinete para ajudar a quem quer que seja além de si próprio e de seus amigos, nenhum interesse em tratar a presidência como algo diferente de um reality show entre outros, que ele explora para atrair a atenção de que precisa”. Imputou em seguida a seu sucessor a responsabilidade completa pelas mortes por Covid, bem como pela destruição de “nossa orgulhosa reputação ao redor do mundo”, seja lá qual esta possa ser. Reagindo aos receios de fraude eleitoral expressos pelos republicanos, o ex-presidente se arriscou em um duplo salto de costas ao declarar: “É assim que periclita a democracia. Até não ser mais democracia nenhuma”. Outro tema importante da convenção democrata: por que Biden é nosso melhor amigo. É “um irmão”, assegurou Obama, um ser “dotado de empatia”, “honesto” e “decente”, certificou Bernie Sanders. Não percamos tempo debatendo a interminável carreira política de Biden, em parte porque seu histórico em matéria de comércio e de polícia chocaria seus eleitores, em parte porque, em tempos de Covid, todo conflito deve se resumir a um confronto entre o bem e o mal – ou, parafraseando Biden, a uma busca de luz

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deliberado traços de sua conspiração, “a fim de que, quando o dia chegar, ninguém pense que se trata de uma conspiração”,5 um engenhoso exercício de acrobacia intelectual realizado sem rede de proteção por Michael Anton, um antigo alto membro da administração Trump, conhecido em especial por ter, em 2016, comparado a eleição de seu amigo bilionário a uma rebelião de passageiros em um avião desviado por terroristas. A história do “conluio” com Vladimir Putin seguiu uma trajetória análoga. De 2017 a 2019, a hipótese de uma lealdade de Trump ao regime russo era tão aceita que não deixava, por assim dizer, nenhum espaço para qualquer outro pensamento político. Infelizmente, as provas finalmente entregues para embasar essa teoria não se revelaram tão substanciais quanto o esperado, o que permitiu à base eleitoral do presidente norte-americano construir sua própria realidade, na qual o inquérito do procurador Robert Muller a propósito das ligações entre Trump e a Rússia se transformou em tentativa de golpe de Estado, perpetrado, é claro, pela mídia e pelo “Estado profundo”.

para “encerrar a temporada de obscuridade nos Estados Unidos”. “Todas as eleições são importantes”, lembrou-nos Biden, nesse tom desajeitado que, conforme alguns dizem, tem seu charme. “Mas sabemos em nosso coração que esta é ainda mais carregada de consequências.” Ela “determinará com o que a América se parecerá por muito tempo. Nossa identidade está em jogo, a compaixão está em jogo, a decência, a ciência, a democracia, tudo isso está em jogo”. Em seguida, o ex-vice-presidente consentiu brevemente em trabalhar com fatos – diante da epidemia, os Estados Unidos registraram os “piores resultados de todas as nações neste planeta” – antes de voltar ao mundo espiritual, onde os inimigos abstratos se enfrentam em batalhas memoráveis: “Que a história possa decidir que o fim do capítulo da obscuridade norte-americana tenha começado esta noite, com o amor, a esperança e a luz se aliando na batalha pela alma da nação”. Há décadas, as convenções democratas tinham o costume de se reunir em torno de um grande tema que contribuía para a federação: o partido da classe popular, aquele que zelava por seus interesses e garantia que as regras impostas aos reles mortais também valessem para os poderosos. Embora essa mensagem tenha correspondido cada vez menos à realidade ao longo do tempo, a imagem histórica do partido impunha utilizá-la de novo e de novo.

Os republicanos são os virtuosos do medo, os grandes mestres do mundo transformado em pesadelo Mas não desta vez. Evocaram alguns sofrimentos infligidos ao povo pela crise econômica, decorrente da “pandemia de Trump”, mas sem insistir muito nisso. Para onde tinham ido os democratas que outrora denunciavam com fervor as desigualdades? Onde a ideia de justiça social fora se esconder nos tempos de Covid? Bem, em parte, na Convenção Republicana, que ocorreu uma semana depois. O tema predileto dos democratas fez uma surpreendente aparição ali desde a primeira noite. Dando seguimento à profissão de fé dos conservadores, chamaram ao palco o jovem Robert Kirk, fundador de um grupo de estudantes em guerra contra os ensinamentos “esquerdistas”, que convocou o público a nada menos que a luta de classes. “Durante décadas”, exclamou ele, “as classes dirigentes dos dois

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partidos venderam nosso futuro. À China. A multinacionais sem rosto. A lobistas ávidos. Fizeram-no com a intenção de preservar seu próprio poder. E para enriquecer. Manipulando o sistema de modo a destruir os bravos patriotas da classe popular que se esforçam para construir uma família e levar uma vida decente.” O orador seguinte tomou por alvo os sindicatos dos professores. O pânico se tornou a grande questão cultural de 2020, uma moda barulhenta e sexy que cada um reivindicou para seu lado. Mas, enquanto os democratas se colocaram sobriamente em guarda em relação ao racismo sistêmico e aos perigos aos quais Trump expôs as instituições democráticas, eles acabaram sendo superados de longe no que se refere ao terror. Os republicanos são os virtuosos do medo, os grandes mestres do mundo transformado em pesadelo. Recoloquem os democratas no comando, dizem eles, e verão não apenas o fim da democracia, mas a morte da civilização propriamente dita. Tumultos se espalharão por todos os lados, piores do que aqueles aplicados nos protestos contra a violência policial durante o verão. As propriedades privadas serão incendiadas, as estátuas derrubadas, os subúrbios residenciais brancos aniquilados. E a grande mídia não dirá nada, é claro, pois está hipnotizada pelas sereias do esquerdismo e da anarquia... Bem como James Jordan, o representante de Ohio no Congresso: “Vejam o que está acontecendo nas cidades norte-americanas: crime, violência, lei da loucura. [...] Os democratas não vão deixá-los ir ao trabalho, mas permitirão que vocês façam protestos”. Bem como Mark e Patricia McCloskey, um casal abastado de St. Louis, no Missouri, que ficou famoso por ter apontado armas de fogo aos manifestantes pacíficos do Black Lives Matter: “Eles querem abolir completamente os subúrbios”; “sua família não estará segura na América dos democratas radicais”; “a loucura, incitada por seus aliados nas mídias, vai tentar destruí-los”.

UMA LUTA DE CLASSES SINGULAR Bem como Kimberly Guifoyle, ex-apresentadora da Fox News recrutada pela Trump Organization, que literalmente urrou seu discurso como se estivesse sem microfone para um estádio com 50 mil apoiadores, enquanto falava de um cômodo vazio de um escritório em Washington: “Esta eleição é um combate para a alma da América”; “eles querem destruir este país e tudo aquilo pelo qual lutamos e que apreciamos”; “América! É ela quem está na balança”.


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Bem como, por fim, Donald Trump Junior, substituto de seu pai no seio da Trump Organization: “No passado, os dois partidos acreditavam na bondade da América. [...] Desta vez, o outro partido ataca até os princípios sobre os quais nossa nação foi fundada. Liberdade de pensamento. Liberdade de expressão. Liberdade religiosa. O estado de direito”. Lembrando que tudo isso se concentrou apenas no primeiro dia da Convenção Republicana. Os três dias seguintes foram dedicados a construir uma visão alternativa da realidade, na qual Trump era tão inocente quanto um recém-nascido. Ele fez tudo o que pôde contra a epidemia, cuja culpa, aliás, cabe exclusivamente à China, e a retomada econômica está aí, bem diante de nós. A tarefa de explicar que Trump não era racista parecia delicada, tiveram então a ideia de confiá-la a um leque de atletas negros que viriam certificar que o presidente amava os afro-americanos. Para entender de verdade a eleição crucial que nos aguarda, convém em primeiro lugar levar em consideração a maneira como as grandes mídias de informação deste país se atiraram contra Trump durante quatro anos. O Washington Post, para citar apenas esse, publicou três ou quatro colunas por dia inteiramente dedicadas, ou quase isso, a retratar o presidente sob o aspecto mais aviltante possível. Destinados, com toda evidência, a fazer sua cota de popularidade cair, esses ataques permanentes foram, no entanto, um tanto benéficos a Trump, pois fizeram as expectativas descerem a um nível muito baixo. Eis um homem apresentado dia e noite aos norte-americanos como um monstro repugnante, um homem sem virtudes, uma criatura desprezível no último grau, talvez até um traidor. E se os republicanos conseguissem demonstrar que na verdade é um sujeito corajoso, com um coração e até com um cérebro? É o que explica esse momento de puro triunfo na convenção republicana: a solenidade de encerramento, quando a ladainha das palavras tediosas pronunciadas pelos oradores sem convicção em uma sala vazia deu lugar a Ivanka Trump, filha do presidente, saindo da Casa Branca entre fileiras de bandeiras americanas e sob a ovação de uma multidão louca e vibrante, em carne e osso e desprovida de máscara – uma atitude de desafio perfeitamente chocante em meio a uma epidemia que havia, até aquela data, eliminado mais de 150 mil pessoas no país. Com os cabelos balançando sob o efeito de uma leve brisa, Ivanka avançou em direção ao microfone coloca-

do no Gramado Sul da Casa Branca e nos levou a um país das maravilhas onde Trump – o “presidente do povo”, o “campeão dos trabalhadores norte-americanos”, a “voz dos homens e mulheres esquecidos deste país” – interpreta o papel de gentil e onde são as mídias e os políticos “de esquerda” que assumem os papéis de mentirosos e maldosos. O presidente, nos diz ela, é amado por seus netos. É amado pelos “mecânicos estoicos e pelos trabalhadores do aço” que caem em lágrimas quando o encontram. É movido por uma “profunda compaixão por aqueles que foram tratados com injustiça”, em particular os detentos. Imagine como foi duro para ele sacrificar “a economia mais forte e a mais inclusiva jamais vista na memória do homem” colocando-a “em pausa para salvar vidas norte-americanas”. Então foi a vez de Trump em pessoa subir ao pódio. Disse aceitar a nomeação de seu partido, garantiu ao público que é perfeitamente capaz de sentir emoções humanas normais, em seguida aplicou-se em desfazer o imaginário maniqueísta de Biden: “A América não é um país mergulhado na obscuridade; a América é a tocha que ilumina o mundo”. Seu rival democrata possui todos os defeitos dos quais ele próprio é acusado, prosseguiu ele, em especial aquele de ter lesado a classe operária. Ele “embolsou as doações dos trabalhadores, abraçou-os e até os beijou” – uma alusão ao hábito bem conhecido do ex-vice-presidente de infligir a seu público feminino marcas de afeto não desejadas –, “disse-lhes que compartilhava de sua dor, então retornou a Washington para votar a favor do deslocamento de nossos empregos para a China ou para qualquer outro país distante. Tudo o que você acha que sabia é falso”. Quanto à classe política de seu país, é um bando de criminosos, do primeiro ao último. “Pessoas experientes em Washington me pediram que deixasse a China continuar roubando nossos empregos e saqueando nosso país, mas eu mantive a promessa que fiz ao povo.” São seres demoníacos e insultantes, traidores que só pensam no poder; se você permitir, eles aplicarão um programa demente que consiste em derrubar as fronteiras do país (“em meio a uma pandemia planetária!”), fornecer aos imigrantes ilegais os serviços de advogados pagos pelo contribuinte, suprimir o orçamento da polícia, encorajar as revoltas e soltar “400 mil criminosos nas ruas de seus bairros”. Segundo o presidente, essas pessoas de esquerda “querem proibi-los de escolher a escola de seus filhos, enquanto inscrevem os deles nos melhores estabelecimentos privados do país. Querem abrir as fronteiras, en-

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quanto eles próprios vivem atrás de grades protegidas nos melhores bairros do mundo. Querem anular o financiamento da polícia, enquanto eles próprios se beneficiam de seguranças armados. Em novembro, devemos virar para sempre a página dessa classe política que falhou em todos os sentidos”.

A animosidade que Trump atrai constitui praticamente o único trunfo que lhe resta As vociferações de Trump não se resumem apenas a bufadas delirantes que podemos desprezar ou das quais podemos zombar. Por trás de seus devaneios se esconde um fundo de verdade. Ninguém ignora que alguns políticos progressistas são oriundos sobretudo de classes privilegiadas; a radicalização ao longo dos anos das mídias de prestígio, das universidades de primeira linha e das instituições culturais frequentadas pelas elites ilustra esse estado. Um exemplo entre outros: no fim de agosto, a NPR, uma rádio para executivos abastados, recebeu o autor de uma obra chamada Em defesa dos saques. Outro exemplo: a camiseta de preço exorbitante, criada por um estilista da moda, na qual está estampado o slogan “Todos nós deveríamos ser feministas”. “Eles me atacam porque eu luto por vocês”, disse Trump durante seu discurso. Não, Trump não luta por nós, mas é inegável que eles o atacam. E se “eles” o detestam, para um número de eleitores é uma razão suficiente para apoiá-lo. Ele é o inimigo de seus inimigos. Para toda uma parte da América, esse conflito está no centro das preocupações, não o Russiagate. Nem seu desdém pelas normas, nem seu uso abusivo da força militar, nem mesmo sua colossal nulidade diante da epidemia, cujas consequências se medem em dezenas de milhares de mortos, pesam tanto quando essa luta de classes singular: Trump contra as categorias esclarecidas da alta-América. Estas últimas se uniram contra ele em um laço tão estreito que a maior parte de nós jamais havia visto. O ódio que elas lhe dedicam não faz de Trump um bom presidente – ele é objetivamente execrável nesse posto –, mas lhe possibilita alinhar atrás de si milhões de pessoas que, sem isso, manteriam distância de um palhaço dessa espécie. A animosidade que Trump atrai constitui praticamente o único trunfo que lhe resta. Sua balança econômica estrondosa se tornou apenas destroços soltando fumaça

ao redor de uma árvore; os bravos cidadãos empresários que ele amava celebrar agora assistem à televisão em seus porões, esperando que se evapore uma doença mortal que quase todos os outros países do planeta controlaram melhor. A rejeição aos progressistas, cheios de lições de moral, representa sua última chance às vésperas da eleição de 3 de novembro. Por que os norte-americanos desprezam os progressistas? A resposta está sob nossos olhos. Seus líderes desistiram de falar das classes populares, mas muitos desses se fecham naquilo que podemos chamar de a política da admoestação. Esta última está onipresente em tempos de Covid. Neste momento, circula um vídeo no qual manifestantes do Black Lives Matter cercam uma mulher que estava comendo no terraço de um restaurante; a massa a exorta gritando para que levante o punho em apoio ao movimento.7 Episódios similares, nos quais acusações e denúncias atingem seu paroxismo, surgem a cada dia nas redes sociais. Esse sentimento de que o progressismo se tornou uma política elitista de assédio e difamação ganha mais espaço a cada dia. Não é exagero dizer que as pessoas veem essa forma de política com uma mistura de medo e ódio. Pânico, confusão, difamação, acusação feroz: é assim que o mundo está se deteriorando, e muitos norte-americanos não culpam Trump por isso. Culpam os ricos, culpam os progressistas.  *Thomas Frank  é jornalista. Autor, recentemente, de The People, No. A Brief History of Anti-Populism [O povo, não. Uma breve história do antipopulismo], Metropolitan Books, 2020. 1   V er, por exemplo, Bob Fitrakis e Harvey Wasserman, “Will Bush cancel the 2008 election?” [Bush cancelará a eleição de 2008?], 31 jul. 2007. Disponível em: www.commondreams.com. 2   Elizabeth Drew, “Is this Watergate?” [Isso é Watergate?], 6 fev. 2017. Disponível em: www.politico.com. 3   Ler “‘Russiagate’, la débâcle” [“Russiagate”, o colapso], La Valise Diplomatique, 26 mar. 2020. 4   Umhair Haque, “We don’t know how to warn you any harder. America is dying” [Não sabemos como alertá-lo mais, a América está morrendo], no site Eudaimonia (www.eand.co), 30 ago. 2020. 5   Michael Anton, “The coming coup?” [O golpe futuro?], 9 abr. 2020. Disponível em: www. americanmind.org. 6   Terno tão mal cortado que seu proprietário só fez milagres contra a epidemia. Em março, por exemplo, deu ordens aos asilos do Estado de Nova York para abrigar pacientes de Covid, sem pensar em testá-los antes para verificar se ainda estavam na fase contagiosa... 7   C f. Lauren Victor, “I was the woman surrounded by BLM protesters at D.C. restaurant. Here’s why I didn’t raise my fist” [Eu era a mulher cercada por manifestantes do BLM no restaurante em Washington. Eis por que não levantei meu punho], 4 set. 2020. Disponível em: www.washingtonpost.com.


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PERIFERIAS DE SÃO PAULO

Uma geração emergente de cientistas sociais e produtores culturais Está se formando uma nova geração de jovens das periferias que usam seu tempo na escola secundária e na universidade para formar novas redes, criar espaços alternativos para produção intelectual e cultural e formar coletivos onde elaboram novas subjetividades POR TERESA CALDEIRA*

apenas um membro da equipe formada por Artur Santoro, Danielle Regina de Oliveira, Katia Ramalho Gomes, Luiz Paulo Ferreira Santiago, Mayara Amaral dos Santos e Renata Adriana de Sousa não tinha esse perfil. São cientistas sociais, comunicadores, educadores e produtores culturais oriundos das periferias. A ampliação do acesso à universidade foi possível graças a uma série de programas adotados especialmente durante os governos federais do PT (Enem, ProUni, Sisu, Fies), expansão de universidades federais e adoção de políticas de ação afirmativa e cotas por várias universidades. Mas é claro que o aumento do acesso à educação formal não se traduz diretamente nem em integração social nem em mobilidade social. O que essa e outras pesquisas demonstram é que a questão da inclusão é muito mais complexa do que a do acesso e que a presença na universidade de jovens das periferias é muito desafiadora. Isso fica evidente no texto de Mayara Amaral dos Santos, que analisa vários dos desafios enfrentados por jovens das periferias não só para entrar na universidade, como também para permanecer em espaços que lhes são hostis. De fato, as tensões e conflitos gerados pelas iniciativas de democratização e equalização do ensino são bastante conhecidos em vários contextos internacionais, como o processo de desmonte da segregação racial nas escolas e a adoção de cotas nas universidades nos Estados Unidos durante e após o movimento de direitos civis dos anos 1960; a abertura de todas as instituições de ensino na Índia, que desestruturou o sistema de acesso baseado em castas com a adoção de cotas ainda na década de 1930; e a luta pela descolonização do curriculum universitário na África do

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A

s periferias de São Paulo têm passado por processos de transformação intensa, sobretudo a partir dos anos 1990. Esses processos mudaram sua paisagem urbana e aspectos significativos da vida de seus moradores, e as transformaram em espaços muito mais heterogêneos do que foram no passado. A pesquisa “Periferias de São Paulo: heterogeneidade e novas formas de vida coletiva”,1 que coordenei em 2018, tanto estudou essas transformações como tentou fazer parte delas. Provavelmente, uma das mudanças mais radicais acontecendo nas periferias de São Paulo hoje em dia seja a da configuração educacional das novas gerações. Os jovens que nasceram nas periferias nas últimas três décadas têm um nível educacional muito mais elevado do que o de seus pais, e muitos deles estão chegando à universidade. Embora um acesso equitativo à educação para jovens de diferentes classes sociais ainda esteja longe de ser realidade no Brasil e a qualidade do ensino público seja em geral baixa, é claro que houve mudanças significativas. A porcentagem de jovens dos dois quintis de renda mais baixa chegando ao ensino superior no Brasil subiu de 2% em 1995 para 12% em 2014.2 Num bairro da periferia leste de São Paulo, onde realizo pesquisas desde o final dos anos 1970, a porcentagem de jovens com educação secundária subiu de 0,77% em 1980 para 26% em 2013. A porcentagem daqueles que chegaram à universidade subiu de zero em 1980 para 5,73% em 2013. A formação da equipe dessa pesquisa foi determinada pela decisão de que a maioria dos pesquisadores fosse das periferias e fizesse parte da primeira geração em suas famílias a concluir o curso superior. De fato,

Sul pós-apartheid. Não há democratização de ensino sem conflitos e tensões. Mas o que o caso da Índia parece indicar é não apenas uma significativa expansão do acesso à educação a todas as camadas sociais após quase um século de cotas, mas também a diminuição dos conflitos intercastas nos espaços educacionais após a normatização da inclusão no decorrer dessas décadas de acesso amplo à educação. Alguns dos efeitos da presença ampliada de jovens das periferias em espaços educacionais são sua politização, a organização em diversos tipos de coletivos e associações e seu engajamento em variadas formas de produção cultural. Está se formando uma nova geração de jovens das periferias que usam seu tempo na escola secundária e na universidade para formar novas redes, criar espaços alternativos para a produção intelectual e cultural e formar coletivos onde elaboram novas subjetividades. Esses jovens são protagonistas de novos grupos feministas, grupos de afrodescendentes, de LGBTQs. São produtores culturais dos mais variados gêneros, responsáveis pela criação de vibrante cena cultural por todas as periferias. A maioria deles opta por permanecer nas periferias, discute o que é ser um sujeito periférico e o que é produzir atividades culturais nesses espaços. Katia Ramalho Gomes aprofunda a análise desses aspectos. Artur Santoro analisa os trânsitos de LGBTQs entre a periferia e o centro e ressalta o caráter performático da identidade de gênero. Luiz Paulo Ferreira Santiago analisa o baile funk, concebido como um espaço de contradições e uma prática contra-hegemônica. Em outro texto que faz parte deste dossiê, Renata Adriana de Sousa analisa a crescente complexidade e diversificação no proces-

so de autoconstrução. Ela mostra que o habitar nas periferias atualmente envolve transitar por diversas possibilidades de moradia, passando-se frequentemente pelas condições de inquilino, proprietário e ocupante de terra, sempre num estado de significativa incerteza. Outra dimensão da presença de jovens das periferias na universidade, nos coletivos e nessa pesquisa é a problematização da produção de conhecimento. Essa geração de intelectuais e acadêmicos das periferias tem o potencial de transformar os modos pelos quais se produz conhecimento sobre esses espaços, desequilibrando hierarquias há muito estabelecidas e abrindo novas perspectivas de crítica, análise e conceptualização. Esse processo emergente e em formação é sem dúvida tenso e está longe de estar totalmente delineado, mas, a meu ver, é um dos aspectos mais significativos dessa pesquisa. Questões sobre o significado da produção de conhecimento sobre as periferias feitas por seus próprios moradores, indagações sobre a relação dessa produção com outras formas de conhecimento sobre as periferias e problematização da relação dos pesquisadores com a coordenadora do projeto foram constantes nas reuniões semanais de pesquisa. Questionamentos sobre a posicionalidade dos pesquisadores em relação, de um lado, a pessoas das periferias que se disponibilizaram a participar da pesquisa ou se recusaram a fazê-lo e, de outro, em relação à coordenadora foram recorrentes e nem sempre de fácil solução. Foi no contexto dessas discussões que decidimos conjuntamente que a pesquisa seria um espaço para os pesquisadores desenvolverem sua própria voz e autoria e que seus primeiros produtos seriam, de um lado, textos de autoria individual sobre os temas que estavam trabalhando e, de outro, podcasts para a divulgação dos resultados entre as redes de coletivos e moradores das periferias.  *Teresa Caldeira  é professora da Universidade da Califórnia em Berkeley. Leia mais sobre a pesquisa e artigos de seus autores no especial “Periferias de São Paulo”, disponível em: diplomatique.org.br/especial/ periferiasp. 1   A pesquisa contou com o apoio da Fundação Tide Setubal e foi realizada durante minha filiação como pesquisadora visitante Fapesp junto à Fundação Getulio Vargas (Cepesp) e ao NEV-USP. 2   Elizabeth Balbachevsky, Helena Sampaio e Cibele Yahn de Andrade, “Expanding access to higher education and its (limited) consequences for social inclusion : the Brazilian Experience” [Expandindo o acesso ao ensino superior e suas (limitadas) consequências para a inclusão social: a experiência brasileira], Social Inclusion, v.7, n.1, p.7-17, 2019.


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A CONTESTADA REELEIÇÃO DO PRESIDENTE LUKASHENKO

Na Bielorrússia, a juventude urbana na linha de frente Pressionado pelas ruas a deixar o poder, o presidente bielorrusso, Alexander Lukashenko, dobrou-se às exigências de Moscou, que quer uma reforma constitucional. Algumas semanas antes, os manifestantes, prevenidos pelo precedente ucraniano, recusaram qualquer ingerência, esperando que seu grande número fosse suficiente para depor o presidente POR LOÏC RAMIREZ*, ENVIADO ESPECIAL

O ESPANTALHO UCRANIANO Após a votação, confrontos entre jovens manifestantes e as forças da or-

dem deram o ritmo das noites na capital. Por três dias, a internet foi cortada. Milhares de prisões e inúmeros depoimentos sobre espancamentos perpetrados em delegacias reforçaram a rejeição do presidente, que nunca havia usado métodos de intimidação em tamanha escala. Após a eleição presidencial de 2010, foram centenas de prisões, e a oposição foi discretamente decapitada em tribunais nos meses seguintes. Mesmo aqui, nesta pequena cidade, é possível sentir o calor das autoridades. Ao cair da noite, um punhado de policiais começa a patrulhar a praça principal da vila enquanto um de seus carros se posiciona na avenida para observação. Um destacamento desproporcional para esta cidade de 3 mil habitantes. Isso se deve à proximidade da fronteira com a Ucrânia? Ou ao medo de que as manifestações, que também estão ocorrendo em Gomel, capital da região localizada a 100 quilômetros de distância, cheguem aqui? Trabalhando como operário no setor rodoviário, Stas conheceu apenas um presidente até hoje: Lukashenko. “Votei em Tikhanovskaya, mas não vou protestar! Para nós, bielorrussos, o mais importante é a paz, ninguém quer um ‘Maidan’”, disse. O jovem refere-se à revolta ucraniana que, durante o inverno de 2013-2014, conseguiu derrubar o presidente Viktor Yanukovych, antes de levar o país a uma guerra civil.1 O espantalho agitado pelo poder se alimenta de um medo real presente na população. Por sua vez, os amigos de Stas revelam sua escolha nas eleições. Muitos dizem que optaram por Tikhanovskaya; outros, pelo voto em bran-

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M

eados de agosto de 2020. Na televisão, as imagens das manifestações se repetem. “Isso vai acabar logo”, lança Stas L., sem nem mesmo olhar para a tela. De costas para as notícias, sentado em um bar em Braguin, no sul da Bielorrússia, ele e seus amigos, todos na casa dos 30 anos, conversam enquanto tomam uma garrafa de vodca. Já se passavam cinco dias desde que uma onda de protestos sem precedentes varria o país. A sequência de eventos provaria que Stas L. estava errado: em meados de setembro, os protestos prosseguiam, em particular nas universidades da capital bielorrussa e nas marchas que ainda reúnem centenas de milhares de pessoas, em Minsk e outras grandes cidades do país. A reeleição de Alexander Lukashenko em 9 de agosto de 2020 e os protestos que se seguiram colocaram a Bielorrússia no centro das atenções da mídia internacional. O presidente entra em seu sexto mandato consecutivo desde 1994, depois de obter 80,23% dos votos em uma eleição permeada por fraudes. Assim, derrotou sua principal rival, Svetlana Tikhanovskaya, que substituiu seu marido de última hora, preso em maio por “perturbar a ordem pública”, e junto da qual se alinhavam as equipes de dois outros candidatos, Valery Tsepkalo e Viktor Babariko, representados por, respectivamente, sua esposa, Veronika, e sua gerente de campanha, Maria Kolesnikova, após a fuga para Moscou do primeiro e a prisão do segundo.

co. “Votei em Lukashenko”, respondeu um dos presentes – revelação que surpreendeu o resto do grupo. “É mesmo? Você votou nele?” “Sim, claro.” Sem maiores explicações ou debates, os copos se esvaziam e as conversas fúteis recomeçam. Ampliados por fraudes eleitorais ou reduzidos a quase nada, como às vezes argumentam alguns adversários de forma caricatural (defenderam, durante a campanha, a tese de um Lukashenko com 3% de intenção), os votos a favor do líder são dados complicados de analisar. “Os estudos sociológicos estimam que sejam 60%, provavelmente muito menos na capital, onde a oposição sempre se beneficiou de um núcleo duro”, explica Bruno Drweski, historiador e professor do Instituto Nacional de Línguas e Civilizações Orientais (Inalco). Para os pesquisadores Stephen White e Elena Korosteleva, o perfil típico dos eleitores de Lukashenko seria “predominantemente acima de 60 anos, com um nível de escolaridade bastante baixo, em média”, e, sobretudo, rural.2 Por outro lado, seus oponentes seriam “jovens”, “trabalhadores do setor privado”, “com alto nível de escolaridade” e “residentes nas grandes cidades”. Uma oposição geracional, portanto, associada ao corte geográfico. Para Aleksei Dzermant, um cientista político próximo ao governo, “o eleitorado do presidente se encontra entre os servidores públicos, aqueles que trabalham para o Estado, e entre a classe trabalhadora”.

Os protestos não são, por enquanto, acompanhados de um programa político e econômico preciso “O PAÍS MUDOU. ELE, NÃO” No entanto, parece haver ocorrido uma erosão do apoio a Lukashenko, inclusive entre estratos que tradicionalmente o apoiavam. Um estudo sobre a contagem manual dos resultados exibidos nos frontões de novecentas assembleias de voto (um quarto dos eleitores), corrigidos para uma participação e taxas de votação por correspondência anormalmente elevadas, sugere uma pontuação de 45% para Tikhanovskaya, contra 43% para Lukashenko.3 Outras estimativas foram feitas, mas todas coincidem com um resultado muito mais apertado do que o anunciado pela comissão eleitoral central. “Sim, votei nele no passado, mas isso não é mais possível”, explica Viktor, na casa dos 50 anos e professor de francês em uma escola em Gomel.

“Não se pode falar nada contra o governo, sob pena de ter problemas no local de trabalho. É sufocante. Não que eu negue tudo o que ele fez, mas o país mudou e ele continua o mesmo.” “Pai chicote”, que, durante visitas surpresa a fábricas ou fazendas, despede e substitui um diretor incompetente ou um ministro considerado frouxo com um estalar de dedos, Lukashenko cultivou uma imagem paternalista que há muito atrai a sociedade bielorrussa. Essa retórica, porém, passou a incomodar. Durante a campanha, suas declarações sobre a incapacidade de uma mulher de governar o país e seus insultos e ameaças contra os oponentes saíram pela culatra e foram ridicularizados durante os protestos.

DO VERMELHO E VERDE AO VERMELHO E BRANCO A degradação econômica dos últimos anos tem relação com o aumento do descontentamento. Eleito generosamente em 1994 com 80% dos votos, Lukashenko pôs fim às impopulares privatizações em massa. O retorno do Estado na direção da economia impulsionado por ele teve algum sucesso. Enquanto as indústrias em outras ex-repúblicas soviéticas estavam fechando e as desigualdades disparavam, a Bielorrússia voltava a crescer em 1996 e mantinha certos setores de ponta, como a produção de tratores e máquinas operatrizes. O país também salvou sua agricultura, graças a importantes investimentos públicos em fazendas coletivas, responsáveis por cerca de 80% da produção, 90% exportada para a Rússia.4 Na década de 2000, o país aproveitou os altos preços dos hidrocarbonetos, quando Moscou autorizou Minsk a refinar e reexportar o petróleo, antes vendido a baixo custo, a preços de mercado mundial, ao mesmo tempo que fornecia gás a preços amigáveis. No entanto, a crise de 2008 e a queda dos preços, que reduziram automaticamente o nível de subsídios, corroeram esse maná. Na década de 2000 o país registrou taxas de crescimento anual de 7,2% em média, mas seu PIB cresceu apenas 1,6% ao ano desde a quebra do mercado de ações. As manifestações de 2017 contra a multa aos desempregados – cerca de 460 rublos (R$ 975) para pessoas sem emprego declarado por mais de seis meses – aparecem em retrospecto como um prenúncio da crise atual. A prisão de candidatos durante a campanha, a escalada de fraudes e a proliferação de imagens de feridos nas redes sociais, após a reativação da internet no país, aumentaram a lista de indignação. Os protestos não são, por enquanto, acompanhados de um programa


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político e econômico preciso. Os manifestantes, em geral, reúnem-se em torno de algumas demandas simples – como a libertação de presos políticos e a organização de novas eleições. Mas a principal delas é a saída de Lukashenko. O nome da oponente exilada, Svetlana Tikhanovskaya, é raro nas placas. Da Lituânia, esta última criou, em meados de agosto, um conselho de coordenação com o objetivo de dialogar com Minsk com vista à transferência de poder para organizar novas eleições, mas não desempenha um papel importante na organização dos protestos. Entre os sete membros de seu exílio, que reúne um líder destacado e o copresidente de um pequeno partido tradicional cristão a favor do abandono do russo como língua oficial, apenas Svetlana Aleksievitch, ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura, não havia se preocupado com as autoridades em meados de setembro. Os outros fugiram do país ou estão atrás das grades. Nos cortejos, apenas a bandeira branca, vermelha e branca – a da primeira República Popular da Bielorrússia em 1918, assumida quando o país se tornou independente em 1991 – é hasteada como símbolo unânime da rejeição do líder. Qualquer outra faixa ou mensagem é vista com suspeita, porque pode provocar cisões: as poucas bandeiras europeias foram rapidamente reembaladas e nenhum slogan hostil à Rússia sai das fileiras dos manifestantes. Para desacreditar o movimento e instar Moscou a ajudá-lo, Lukashenko repete continuamente que a bandeira vermelha e branca serviu de padrão para os nacionalistas bielorrussos que colaboraram com os nazistas a partir de 1941. Em realidade, eram apenas um punhado e não deixaram tradição política. Um contraste importante em relação a outros confins do antigo Império Czarista – como os países bálticos, Ucrânia, Polônia –, onde desde o início do século XIX os movimentos nacionalistas foram baseados em partidos políticos, escolas, universidades e centros culturais, e alimentaram a luta armada antirrussa e depois antissoviética, às vezes em colaboração com os nazistas.5 Não é assim na Bielorrússia, mais conhecida por seu movimento de guerrilheiros soviéticos situados atrás da frente alemã do Leste.6 Nesse contexto, o vermelho e o branco significam menos um renascimento nacionalista do que a rejeição ao presidente que restaurou, por referendo, os tons de vermelho e verde da bandeira soviética, em 1996. Quando, por volta de 11 de agosto, eclodiram greves nas joias da indústria bielorrussa – MAZ, fábrica de automóveis; Belaz, uma empresa de en-

Os manifestantes pedem a saída de Lukashenko e a libertação de presos políticos genharia e produção de equipamentos industriais; MZKT, fabricante de caminhões pesados de propriedade do Estado –, Lukashenko sentiu seu poder vacilar. O desafio, no entanto, é controlar o protesto no local de trabalho. Na manhã de 17 de agosto, a tentativa de esvaziar da fábrica Atlant, em Minsk, foi infrutífera. “Quem trabalha aqui?”, pergunta uma senhora idosa que veio se juntar às cerca de trinta pessoas reunidas na entrada do prédio principal para apoiar a mobilização. Apenas uma levanta a mão. Os demais são estudantes, aposentados e outras pessoas que vieram em solidariedade. “Provavelmente sou o único”, explica o trabalhador, “os outros colegas estão com medo e ninguém está nos ajudando.”

FIDELIDADE DO EXÉRCITO E DA POLÍCIA Desde o Decreto Presidencial n. 29, ratificado em 1999, a maioria das contratações é feita por contratos de prazo determinado, de um a cinco anos, uma reforma liberal que fragilizou os poucos sindicatos em luta no país. Em 2018, um estudo da Federação dos Sindicatos da Bielorrússia sobre 1,6 milhão de contratos desco-

briu que 30% dos funcionários do país trabalhavam com contrato de prazo fixo de um ano.7 Ao medo da demissão, soma-se a prisão de alguns dirigentes em greve e, por fim, o temor, entre os trabalhadores do Estado, de privatizações maciças que implicariam o desaparecimento de empregos ou fábricas, como faz questão de relembrar Lukashenko caso a oposição tome o poder. Durante a campanha, seus concorrentes, o ex-banqueiro Viktor Babariko e o ex-embaixador e diretor de um parque tecnológico Valery Tsepkalo, não fizeram segredo de suas intenções de “modernizar” o país.8 O setor público – o funcionalismo mais as empresas estatais majoritárias – reúne cerca de 40% dos empregados do país. As empresas em que a participação do Estado ultrapassa 50% representam cerca de 30% da produção anual e do emprego.9 No entanto, um setor parece estar na vanguarda da disputa: o de altas tecnologias. Surgiu nos anos 2000 e “recebia vantagens fiscais significativas, algo em contradição com o modelo dominante de socialismo de mercado”, lembra a pesquisadora Ioulia Shoukan em sua página no Fa-

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cebook. Ela sublinha que “esse desvio do modelo dominante, que permitiu ao regime se proteger durante muitos anos contra qualquer empresa contestatária iniciada ou financiada pelo setor privado, parece ter-lhe pregado uma peça”. Ludmila V., que trabalha para uma empresa de criação de aplicativos em Minsk, atesta esse compromisso desde o início do movimento, inclusive até a direção: “Desde as manifestações, os funcionários têm o direito de se ausentar ou trabalhar remotamente depois de uma reunião; além disso, nossa empresa se comprometeu extraoficialmente a pagar multas a seus funcionários se eles forem pegos em protestos não declarados”. Ao contrário, a laboriosa mobilização de apoiadores do governo existe em grande parte apenas por meio da aplicação de recursos do Estado (ônibus para trazer pessoas, helicópteros para hastear a bandeira). Nunca tendo reivindicado uma ideologia clara, o regime – hiperpresidencialista – pode contar pouco com uma base militante para defendê-lo. Lukashenko ainda desfruta da lealdade do Exército e da polícia, e assim mantém as rédeas do poder; no entanto, enfrenta uma grande crise de legitimidade. O convite para uma reforma constitucional que fortaleça as prerrogativas do governo e do Parlamento em detrimento das da presidência, habilmente proposto por Lukashenko como um pré-requisito para a realização de novas eleições em 2022, divide a oposição e permite ganhar tempo. Manobra para se manter no poder ou porta de saída anunciando uma profunda reconfiguração política? A saída para a crise está em grande parte em Moscou e na capacidade dos protestos de superar a repressão, a usura e as divisões.  *Loïc Ramirez  é jornalista. 1   L er Laurent Geslin e Sébastien Gobert, “Veillée d’armes au Donbass” [Vigília de armas no Donbass], Le Monde Diplomatique, dez. 2014. 2   C f. Stephen White e Elena Korosteleva, Postcommunist Belarus [Bielorrússia pós-comunista], Rowman & Littlefield Publishers, Lanham, 2005. 3   “ Um presidente de papel” (em russo), Novaïa Gazeta , Moscou, 13 ago. 2020, com base nos resultados fornecidos pela plataforma on-line Zubr. 4   Ronan Hervouet, Le goût des tyrans. Une ethnographie politique du quotidien en Biélorussie [O gosto dos tiranos. Uma etnografia política da vida cotidiana na Bielorrússia], Le Bord de l’eau, Lormont, 2020. 5   C f. Martin Dean, Collaboration in the Holocaust: Crimes of the Local Police in Bielorussia and Ukraine [Colaboração no Holocausto: crimes da polícia local na Bielorrússia e na Ucrânia], St Martin’s Press, Nova York, 2000. 6   C f. Masha Cerovic, Les enfants de Staline [Os filhos de Stalin], Seuil, Paris, 2018. 7   Tyt.by (site de informação), Minsk, 6 jul. 2018. 8   Belrynok.by, Minsk, 29 jul. 2020. 9   Fonte Belstat, 2020.


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O KREMLIN DIANTE DA FRAGILIZAÇÃO DE LUKASHENKO

Geopolítica dos protestos bielorrussos Os manifestantes bielorrussos têm por objetivo prioritário livrar-se de um dirigente, e não recompor suas alianças geopolíticas. Também evitam qualquer propaganda junto aos europeus para não desagradar a Moscou POR HÉLÈNE RICHARD*

ele assumir como primeiro-ministro.1 Nikol Pachinian, embora houvesse no passado criticado a União Econômica Eurasiática na qualidade de deputado da oposição, estava naquele momento empenhado em tranquilizar Moscou sobre seu desejo de manter os principais acordos econômicos e militares que ligavam os dois países. A revolta bielorrussa atual lembra em diversos aspectos aquela que abalou a Armênia há dois anos. Como seus predecessores armênios, os manifestantes bielorrussos têm por objetivo prioritário livrar-se de um dirigente, e não recompor suas alianças geopolíticas. Proporcionalmente menos numerosos que na Armênia e ao mesmo tempo tendo levado a mobilização a um nível inédito na história, os manifestantes mantiveram o cunho pacifista, apesar da repressão brutal. Também evitam qualquer propaganda junto aos europeus. O Conselho de Coordenação, formado por Tikhanovskaya, recusou desse modo, em 19 de agosto, a ajuda financeira da Comissão Europeia: esta propunha destinar-lhe uma parte dos fundos de apoio atribuídos à Bielorrússia, para vir em socorro às “vítimas da repressão”, às “mídias independentes e à sociedade civil”.

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“É

uma revolução democrática, não geopolítica.” Ao pronunciar tais palavras durante uma videoconferência com os eurodeputados em 25 de agosto, Svetlana Tikhanovskaya, que reivindica a vitória na última eleição presidencial bielorrussa contra o presidente Alexander Lukashenko – oficialmente reeleito com 80% dos votos –, pretendia mandar um recado tanto a Bruxelas como a Moscou. Para entender: a Bielorrússia não é a Ucrânia, país vizinho onde um coquetel de protestos, repressão brutal e ingerências estrangeiras, russas e ocidentais, desembocou em 2014 em uma guerra civil e na anexação da Crimeia pela Rússia. A região tem memória. Em 2018, uma revolução pacífica pressionou o chefe do governo armênio à demissão. Isso desenhou outra via possível para Moscou: antes observador prudente do maremoto popular originado por Serge Sarkissian – quase um habitante a cada cinco morava na rua, enquanto o país experimentava um bloqueio quase completo de sua economia –, o governo russo tinha enviado em seguida uma delegação de deputados à Armênia para sondar o opositor principal sobre suas intenções, antes de

As reações das duas principais potências europeias, França e Alemanha, impressionaram por sua timidez, comparadas àquelas expressas durante outras crises recentes. Emmanuel Macron, engajado em um “diálogo construtivo” com Moscou desde a segunda metade de 2019,2 não reconheceu Tikhanovskaya como presidente legítima em exílio, o que fez no caso do opositor venezuelano Juan Guaidó. Berlim e Paris reconhecem Moscou como mediadora. Os ministros de Relações Exteriores europeus concordaram com uma base mínima de sanções no encontro das personalidades responsáveis pela repressão, bem longe do arsenal empregado após as eleições contestadas em 2010. O envenenamento do opositor russo Alexei Navalny, transferido para Berlim, onde se detectou um neurotóxico de origem militar, poderia, no entanto, forçar a chancelaria alemã e, na esteira dela, Paris a se reaproximar da postura mais combativa da Polônia e dos países bálticos, que proibiram cerca de trinta personalidades, incluindo Lukashenko, de entrar em seu território e reconhecem a vitória de Tikhanovskaya. Por enquanto, a Rússia não demonstra apego desmedido a Luka-

shenko. Ao mesmo tempo que excluiu a participação da Organização de Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) da supervisão de uma nova eleição (uma proposta francesa), Moscou pressionou o dirigente bielorrusso a organizar uma reforma constitucional, na esperança de favorecer o surgimento de um sucessor compatível com seus interesses antes da ocorrência de novas eleições. Moscou se contenta em guardar as vantagens de curto prazo que pode extrair do enfraquecimento de Lukashenko. Após um deslocamento do primeiro-ministro russo a Minsk, o presidente bielorrusso foi para Sochi em 14 de setembro. As discussões são delicadas: desde a crise ucraniana de 2014, Minsk discretamente fez evoluir sua doutrina militar para prevenir uma potencial desestabilização russa que tomaria por modelo a região do Donbass, multiplicando os gestos de abertura em direção ao Ocidente. Dessa forma, a União Europeia levantou a quase totalidade de suas sanções contra a Bielorrússia em 2016 e relançou seu programa de auxílio.3 Melhor ainda: em fevereiro, Lukashenko recebeu o secretário de Estado norte-americano, Mike Pompeo, pela primeira vez desde sua chegada ao poder em 1994. Tais infidelidades acabaram irritando Moscou. A Rússia quer de agora em diante obter “mais pelo mesmo preço”, até porque sua economia sofre ao mesmo tempo com as sanções ocidentais e com a derrocada dos preços do barril de petróleo. As subvenções russas à economia bielorrussa caíram de 17% em 2013 para 10% do PIB hoje.4 Em 2019, pela primeira vez, Moscou se recusou a refinanciar a dívida bielorrussa. Nesse mesmo ano, uma modificação da tributação russa sobre os hidrocarbonetos privou Minsk de um preço preferencial sobre o petróleo, uma perda avaliada entre US$ 300 milhões e


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US$ 400 milhões por ano. Em paralelo ao Fórum Internacional de São Petersburgo, em outubro de 2019, o Ministério das Finanças russo se recusou a compensá-la sem “um conjunto de medidas sobre nossa futura integração no âmbito do Tratado da União Europeia”. Também pela primeira vez, Moscou condicionou sua ajuda a avanços concretos sobre o projeto de criação de uma confederação com tributação, moeda e instituições políticas comuns, que engatinha desde 1999. Os dirigentes russos e bielorrussos destilam a conta-gotas o conteúdo e o resultado das discussões que mantêm no contexto atual. Por ocasião do encontro de 14 de setembro, o presidente russo prometeu à Bielorrússia um crédito de US$ 1,5 bilhão a Minsk, negando exigir contrapartidas políticas, o que é difícil de acreditar... Diversos parâmetros, porém, poderiam prejudicar o cenário de uma saída gradual do presidente. Em primeiro lugar, a questão de segurança que a Bielorrússia representa para Moscou: o país se encontra na linha de frente diante da Otan e se torna, por isso, um elemento essencial da estratégia de defesa russa. Signatário do Tratado de Segurança Coletiva (OTSC) em 1992, Moscou concluiu vários acordos militares com Minsk, após a entrada da Polônia, seguida dos países bálticos, na Otan e o posicionamento do escudo antimíssil norte-americano na Polônia e na Romênia. Rússia e Bielorrússia, que estabeleceram uma cooperação militar forçada, organizam exercícios comuns de grande amplitude; o último, Zapad, ocorreu em 2017. Além disso, a Bielorrússia abriga duas bases militares russas, e uma delas, situada em Gantsevitchi, está integrada ao sistema de alerta antimíssil russo.5 O reforço da presença norte-americana na Polônia – que deve receber mil soldados transferidos da Alemanha –, somado ao contingente de 4.500 homens instalados em rodízio, fortalece ainda o papel de tampão de Minsk, tendo em mente que a fronteira bielorrussa fica situada a 500 quilômetros da capital russa. Em 27 de agosto, durante uma entrevista cedida ao canal público Rossia 24, Vladimir Putin afirmou, nesse sentido, que suas tropas interviriam “se a situação estiver fora de controle e se elementos extremistas [...] ultrapassem certos limites: incêndios de carros, de casas, de bancos, ocupações de edifícios administrativos”, valendo-se de uma série de acordos, entre eles o Tratado de Segurança Coletiva. A menção de uma ação combinada em caso de ameaça à “estabilidade” foi acrescida ao texto em 2010. Esse termo vago concede uma considerá-

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vel margem de interpretação a Moscou, que tem, em todo caso, mostrado na Ucrânia que não hesita, como outras potências, em transgredir o direito internacional quando julga que seus interesses fundamentais estão ameaçados. Outro fator de incerteza: as dificuldades da oposição. Enquanto Pachinian dava uma cara à revolução armênia – e tinha um interlocutor em Moscou –, os protestos bielorrussos não reivindicam um líder. Moscou desconfia, além disso, do Conselho de Coordenação, o qual não se sabe se sobreviverá à prova de resistência com o poder. Perseguidos na Bielorrússia, seis de seus sete membros estão atrás das grades ou conseguiram refúgio na Lituânia, Ucrânia e Polônia, três países hostis a Moscou. Além disso, durante a campanha presidencial, surgiram contradições entre os opositores acerca das questões de segurança. Viktor Babariko, diretor de um banco comandado majoritariamente pela gigante russa Gazprombank e apresentado como o candidato mais próximo do Kremlin, declarou “[querer] ver um dia a Bie-

lorrússia tornar-se um país neutro”. Tal perspectiva desagradaria muito a Moscou, que deseja dispor de um escudo entre a Rússia e a Otan, e não de uma Suíça. Quanto a essa opção estratégica, Tikhanovskaya e outros opositores permanecem incertos. Encurralada, a oposição poderia sobretudo se aproximar mais ainda dos europeus. Após o desbloqueio da ajuda russa, o ex-ministro Pavel Latuchko, hoje membro da Junta Governativa do Conselho de Coordenação, clamou por um engajamento da União Europeia em um plano de ajuda “de US$ 3 bilhões a US$ 4 bilhões” – ou seja, pelo menos o dobro da ajuda russa –, condicionado à transferência do poder à oposição. No mesmo dia, a comissão havia oficialmente se recusado a reconhecer Lukashenko como presidente legítimo. Entre se apoiar em um regime fragilizado ou apostar em uma oposição dividida e de lealdade incerta, o Kremlin não está em uma situação tão confortável como alguns afirmam. Putin avalia esses dois cenários, que diferem tanto dos precedentes ucranianos como do armênio.

Embora a integração dos dois Estados continue a ser o objetivo a longo prazo, não respeitar as regras com Lukashenko hoje seria correr o risco de perder a população bielorrussa... e suscitar sentimentos antirrussos, que estão, por enquanto, inexistentes nas revoltas. Nesse caso, essa “revolução” correria o risco de não ser mais apenas democrática, mas também geopolítica. *Hélène Richard  é jornalista do Le Monde Diplomatique. 1   L e Monde, 7 maio 2018. 2   Ler “Un tournant dans la diplomatie française?” [Um tornado na diplomacia francesa?], Le Monde Diplomatique, dez. 2019. 3   Ler “Minsk se rebiffe contre le grand frère russe” [Minsk se revolta contra o grande irmão russo], Le Monde Diplomatique, jun. 2017. 4   “ Using Good Times to Build Resilience” [Usando bons tempos para construir resiliência], apresentação de Jacques Miniane, chefe de missão para a Bielorrússia do FMI, 6 nov. 2018. Disponível em: www.imf.org. 5   Cf. Ioulia Shukan, “La Biélorussie après la crise ukrainienne: une prudente neutralité entre la Russie et l’Union européenne?” [A Bielorrússia após a crise ucraniana: uma prudente neutralidade entre a Rússia e a União Europeia?], Estudos do Instituto de Pesquisa Estratégica da Escola Militar (Inserm), n.50, 2017.


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UMA LONGA QUERELA INTELECTUAL

O homem pré-histórico também era uma mulher E se nossas ancestrais tivessem feito pinturas rupestres em Lascaux, caçado bisões, talhado ferramentas... Ao centrarem em seu objeto de estudo o modelo patriarcal do século XIX e sua ordem divina, os primeiros pré-historiadores construíram mitos que inferiorizavam as mulheres. A abordagem científica nos distancia dessas pressuposições para reconsiderar o papel do “segundo sexo” na evolução humana POR MARYLÈNE PATOU-MATHIS*

pré-históricas, em debate há mais de um século e meio, ainda é discutida com fervor. Para muitos autores, “o matriarcado original” seria apenas um mito; para outros, teria existido até a aparição do patriarcado durante o Neolítico. 3

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N

enhum argumento arqueológico reforça a hipótese de que no Paleolítico as mulheres tinham um status social inferior ao dos homens. Baseados na abundância de representações femininas, arqueólogos sugerem até mesmo que, estando no centro das crenças, elas tinham uma posição elevada nessas sociedades.1 Outros pesquisadores sustentam que, nesses tempos remotos, as sociedades eram matrilineares, ou até mesmo matriarcais. Com frequência, há uma confusão entre sociedade matriarcal – na qual as mulheres detêm a autoridade social e jurídica – e sociedade matrilinear – sistema de parentesco baseado na filiação pela mãe. O termo “matriarcado” subentende uma dominação feminina, como indica sua etimologia (do grego ἄρχειν, “dirigir”, “comandar”). Se uma hierarquia baseada na fêmea dominante e sua descendência foi observada em diversas espécies animais, em particular em nossos primos próximos, os bonobos, e embora os Na, povo de origem tibetana de valores longínquos de Yunnan, na China, ainda fossem uma sociedade matriarcal nos anos 1990,2 o matriarcado hoje desapareceu. Por outro lado, diversas sociedades, em todos os continentes, foram matrilineares, e algumas ainda o são. Constatando que, desde a Antiguidade, os homens tiveram, na maioria das civilizações, um poder econômico e social superior ao das mulheres, muitos autores afirmam que isso ocorreu também desde as origens da humanidade. Recusam a tese, defendida por muitos estudiosos do século XIX, da existência de um matriarcado anterior ao patriarcado. Sua presença nas sociedades

O MATRIARCADO ORIGINAL Na promiscuidade do clã, que impedia ter certeza de quem era o pai de uma criança, a transmissão do parentesco só podia se fazer por meio da mãe. Para o antropólogo polonês Bronisław Malinowski (1884-1942) e o jurista suíço Johann Bachofen (1815-1887), essa filiação matrilinear esteve presente nas primeiras sociedades humanas. Desde 1861, Bachofen, baseando-se em mitos antigos e em relatos de viagem, em particular nos do padre jesuíta Joseph François Lafitau (1681-1746), missionário na Nova França (Canadá), sugere que “a época primitiva” é a era da “ginecocracia” pelo direito maternal. O jurista sustenta que as mulheres teriam utilizado o “mistério” da maternidade para organizar a tribo, ao redor do culto da “Grande Deusa” e da transmissão do poder de mãe para filha. A existência de um matriarcado primitivo, ou ao menos de uma igualdade social homens-mulheres, foi sustentada por diversos antropólogos e filósofos do fim do século XIX. Para eles, foi no momento da passagem da economia de predação (caçadores-coletores) à da produção (agricultores e pastores) que os homens teriam tomado o poder e instaurado a patrilinearidade, seguida do patriarcado. Essa tese, que perdurou no começo do século XX em alguns antropólogos, foi retomada nos anos 1930. As estruturas sociais das sociedades

pré-históricas teriam se modificado ao longo do tempo. Teriam sido no início clânicas, em seguida matriarcais e sedentárias e, por fim, familiares (em casais) e nômades. Baseando-se em muitas inexatidões, esse esquema evolutivo linear proposto pelo arqueólogo russo Piotr Efimenko hoje está totalmente abandonado. Quase trinta anos mais tarde, Marija Gimbutas, especialista na Era do Bronze (–2.200 a –800), descreveu as sociedades pré-indo-europeias como “matrísticas”4 (matrilineares). Estas teriam perdurado durante em média 27 mil anos antes de serem progressivamente suplantadas pela chegada, a partir de 3 mil anos antes de nossa era, de tribos nômades vindas das estepes da Ásia central. As civilizações mediterrâneas ditas “hipogeias” – caracterizadas pelo sepultamento dos defuntos em grutas artificiais cavadas na rocha – dependeriam também desse tipo de organização matrilinear e teriam passado pela mesma sorte em torno de 3.500 anos antes de nossa era. As tribos de cavaleiros teriam imposto às populações indígenas matrilineares um sistema patriarcal e guerreiro. Essa tese também é contestada, em especial por-

que armas e traços de fortificações datam de bem antes da chegada desses grupos, e sua expansão teria sido quase sempre pacífica. Nos anos 1980-1990, várias historiadoras norte-americanas sustentaram, por sua vez, que as culturas pré-históricas eram matrilineares, mas também mais igualitárias, mais pacíficas e menos hierarquizadas que as sociedades patriarcais, o que é refutado por vários pesquisadores. Para muitos destes, as descrições das sociedades matriarcais seriam apenas “construções mitológicas sábias” dependentes do romantismo de uma “era de ouro” desaparecida, na qual a dominação de um sexo sobre o outro não existia.5 A “ginecocracia” de Bachofen dependeria da “fantasia”, segundo Emmanuel Todd, para quem “o status da mulher é na verdade mais elevado nos sistemas de parentesco indiferenciados que nas sociedades matrilineares”.6 O matriarcado original seria apenas um mito! Seus defensores se apoiam em argumentos etnográficos, como o fazem seus opositores, que citam diversos exemplos de sociedades tradicionais que, igualitaristas de um ponto de vista econômico e social, não o seriam nas


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seus filhos. A apropriação e o controle dos filhos, percebidos pela generalização do direito paternal, teriam aparecido no seio de sociedades socialmente organizadas, segundo a tese de Claude Lévi-Strauss em Les structures élémentaires de la parenté (As estruturas elementares do parentesco, 1949). Essa substituição de filiação teria conduzido, em um prazo mais longo ou mais curto, à aparição do sistema patriarcal. É, portanto, bem provável que as mudanças econômicas e sociais observadas no Neolítico tenham modificado de modo profundo as relações entre homens e mulheres. Teriam marcado, sem dúvida, o início da era patriarcal, como escreveu a filósofa Olivia Gazalé: “O primeiro a ter revertido a ordem sexual não foi a mulher, e sim o homem, quando colocou fim ao mundo misto – no qual os direitos e as liberdades das mulheres eram bem mais estendidos e em que o feminino era respeitado e divinizado – para construir um mundo novo, o mundo viriarcal (baseado na virilidade), no qual a mulher viria a ser inferiorizada, presa e desprovida de todos os seus poderes. No alvorecer dessa nova civilização, começou o grande relato da superioridade viril, que viria a ser consolidada, século após século, pela mitologia (pela imagem e pelo símbolo), pela metafísica (pelo conceito), pela religião (pela lei divina) e pela ciência (pela fisiologia)”.7

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EMERGÊNCIA DA ELITE GUERREIRA relações homens-mulheres. No entanto, embora fossem claramente menos numerosas, não podemos negar a evidência de que existiam sociedades nas quais as relações entre os sexos eram equilibradas (entre os San, da África do Sul, por exemplo). “O matriarcado nunca existiu!” Lida na edição de novembro de 1992 da revista L’Histoire, essa fórmula lapidar nos interroga sobre as razões da recusa de muitos pesquisadores em cogitar a hipótese de que a dominação masculina, o sistema patriarcal, não seja original, mas tenha se instaurado de modo progressivo após mudanças, talvez de ordem econômica, que modificaram a estrutura social das comunidades de caçadores-coletores nômades. A acumulação de bens – quase inexistente nas sociedades paleolíticas –, favorecida pelo sedentarismo e pela domesticação de plantas e animais, teria ocasionado o surgimento de uma nova atividade, a de protegê-los, função que teria sido atribuída aos homens, que, supõe-se, seriam mais fortes em termos físicos. Tornados aos poucos detentores de colheitas e de gado, os homens teriam instituído a filiação patrilinear a fim de assegurar a transmissão dos bens a

A partir de 1884, Friedrich Engels identificou a substituição progressiva da filiação materna pela filiação paterna como uma das causas da sujeição das mulheres; para ele, a inversão do direito materno foi “a grande derrota histórica do sexo feminino”.8 Mais de 120 anos depois, Emmanuel Todd sublinhou também que, embora o princípio patrilinear tenha favorecido o desenvolvimento das formas familiares complexas que teriam se propagado, por conseguinte, por quase toda a Eurásia (o que subentende que teria existido antes outro princípio), ele teve por contrapartida um rebaixamento do status da mulher e, como consequência, um menor papel das mães na transmissão cultural. Desse modo, a raridade dos regimes matriarcais – ao mesmo tempo matrilineares e matrilocais (no qual o “marido” vem morar com a família de sua “mulher”) – se explicaria pela dominação masculina universal. A subordinação das mulheres, que é uma forma de violência, seria consequência da divisão sexual do trabalho. Nas sociedades paleolíticas, ao procriar e criar seus filhos pequenos, as mulheres tinham uma função primordial na perenidade do clã. Como era impossível saber com certeza o

verdadeiro pai do recém-nascido, a filiação matrilinear parecia mais que provável. Participando de muitas atividades, elas tinham um real papel econômico e um status social provavelmente equivalente ao dos homens, talvez até mais elevado no seio da esfera doméstica e simbólica, tendo em vista o lugar central que ocupam as representações femininas na arte paleolítica. Embora possamos de maneira razoável pensar que nessas sociedades as relações entre os sexos eram equilibradas, não temos na atualidade nenhum indício que permita concluir sobre a existência de sociedades matriarcais, subentendidas como dominadas pelas mulheres... ou patriarcais. É possível que a substituição progressiva da filiação maternal pela filiação paternal tenha ocorrido durante o Neolítico, mas não em todo lugar, pois ainda existem sociedades matrilineares em algumas regiões do mundo. Bem no início do Neolítico, a organização socioeconômica das primeiras sociedades agrícolas parecia se elaborar com as mulheres.9 Agricultoras, elas estariam na origem da domesticação de plantas e de ferramentas agrícolas, como a enxada e as mós para triturar os grãos. Uma mudança na organização social apareceu em torno de 6 mil anos antes de nossa era, período marcado por uma explosão demográfica local ligada a uma abundância de comida (atestada pela presença de numerosos silos de grãos) e a uma expansão da sedentarização (aparição dos primeiros vilarejos). Com o desenvolvimento da criação de gado e o domínio de novas técnicas agrárias, os homens teriam de maneira progressiva substituído as mulheres nos trabalhos ligados à agricultura. A exploração dos animais para a lã ou o leite teria desencadeado uma delimitação maior das mulheres ao espaço doméstico. Com o crescimento das riquezas (campo ou pastagem, gado, reservas alimentares), eles teriam ganho um lugar cada vez mais importante no seio das comunidades. Tais mudanças teriam remodelado as relações sociais, fazendo aparecer elites e castas, como a dos guerreiros, e gerado uma divisão sexual das tarefas mais marcada, bem como uma generalização da residência patrilocal (a mulher vive com a família de seu “cônjuge”) e da filiação patrilinear. Essas transformações, que revolucionaram o lugar das mulheres na sociedade, são perceptíveis a partir de 5 mil anos antes de nossa era na composição do mobiliário funerário (mais sexuado e menos diversificado nas tumbas femininas) e no estado de saúde dos esqueletos femininos revelado. Nota-se um aumento não

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apenas de doenças ligadas a trabalhos duros, ao porte de cargas pesadas e a gestações repetidas, mas também a carências, em razão de uma alimentação subproteica (à base em sua maior parte de féculas e vegetais, algo atestado por um número mais significativo de cáries) e de traumatismos causados por violências. Mas não é o caso de todas as mulheres. Em muitas tumbas, as defuntas estão ricamente ornadas e apresentam poucas patologias e traumatismos.10 A situação das mulheres desse período parece, portanto, variar em função de sua posição social. Durante mais de um século e meio, as interpretações feitas dos vestígios arqueológicos contribuíram fortemente para tornar as mulheres pré-históricas invisíveis, em especial diminuindo sua importância na economia. As novas descobertas trazem um olhar novo sobre elas, cujo papel na evolução se revela tão importante quanto o dos homens.  *Marylène Patou-Mathis é diretora de pesquisa no Centro Nacional de Pesquisa Científica e do Departamento do Homem e do Meio Ambiente do Museu Nacional de História Natural. Autora de L’homme préhistorique est aussi une femme. Une histoire de l’invisibilité des femmes (O homem pré-histórico também é uma mulher. Uma história da invisibilidade das mulheres), a ser lançado pela editora Allary em 1º de outubro de 2020, do qual este texto foi extraído. 1   P iotr Efimenko, “La société primitive” [A sociedade primitiva] (1953). In: Claudine Cohen, La moitié “invisible” de l’humanité préhistorique [A metade “invisível” da humanidade pré-histórica], Metacolloque Mnemosyne, Lyon, IUFM, 2005. 2   Cai Hua, Une société sans père ni mari. Les Na de Chine [Uma sociedade sem pai nem marido. Os Na da China], PUF, Paris, 1997. 3   Ernest Borneman, Le Patriarcat (Perspectives critiques) [O patriarcado (perspectivas críticas)], PUF, 1979. 4   M arijas Gimbutas, Bronze Age Cultures of Central and Eastern Europe [Culturas da Era do Bronze da Europa central e oriental], Mouton & Co., Haia/Londres, 1965. 5   C ynthia Eller, The Myth of Matriarchal Prehistory. Why an Invented Past Will Not Give Women a Future [O mito da pré-história matriarcal. Por que um passado inventado não dará um futuro às mulheres], Beacon Press, Boston, 2000. 6   Emmanuel Todd, L’origine des systèmes familiaux, tome I: L’Eurasie [A origem dos sistemas familiares, tomo I: A Eurásia], Gallimard, Paris, 2011. 7   Olivia Gazalé, Le Mythe de la virilité [O mito da virilidade], Robert Laffont, Paris, 2017. 8   Friedrich Engels, L’origine de la famille, de la propriété privée et de l’État [A origem da família, da propriedade privada e do Estado], 1884. 9   J acques Cauvin, Naissance des divinités, naissance de l’agriculture: la révolution des symboles au néolithique [Nascimento das divindades, nascimento da agricultura: a revolução dos símbolos no Neolítico], Flammarion, Paris, 1998. 10   Anne Augereau, La condition des femmes aux néolithiques. Pour une approche du genre dans le Néolithique européen [A condição das mulheres no Neolítico. Por uma abordagem do gênero no Neolítico europeu], defesa de tese de habilitação, Instituto Nacional de História da Arte, 28 jan. 2019.


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QUEM CONTROLARÁ AS TECNOLOGIAS DA INTERNET

A batalha geopolítica do 5G Às vésperas de sua efetivação, a telefonia móvel de quinta geração – o 5G – suscita um fluxo de questões ligadas ao seu impacto ecológico e sanitário e, fundamentalmente, ao desenvolvimento tecnológico sem controle. Mas a grande disputa do 5G é travada no campo geopolítico, com o enfrentamento sempre duro entre Estados Unidos e China POR EVGENY MOROZOV*

alemão investiu cerca de US$ 30 bilhões em P&D em 2018. Para além dessas cifras, a Huawei é um ícone para a sociedade chinesa: o raro exemplo de uma empresa que, saindo da base da cadeia com produtos rudimentares e ultrapadronizados, hoje fala de igual para igual com a Apple e a Samsung. Sua trajetória ilustra as elevadas aspirações do governo para o setor de tecnologia. Faz um longo tempo que a China está confinada ao papel de fábrica de montagem de produtos estrangeiros, como relembra a humilhante etiqueta colocada na parte de trás de todos os dispositivos da Apple: “Projetado na Califórnia, montado na China”. O destino da Huawei mostra que uma nova era pode se iniciar, com a frase: “Projetado na China, montado no Vietnã”. Se outras empresas chinesas seguirem esse exemplo, o domínio dos Estados Unidos na economia mundial poderá ser seriamente atingido. Embora, no passado, países firmemente ancorados na esfera de influência norte-americana já tenham passado por uma fulgurante decolagem econômica – Alemanha, Japão, Tigres Asiáticos –, o processo era mais ou menos dirigido pelos Estados Unidos. No início do século XXI, os Estados Unidos começaram a se incomodar em ver a China alçar-se ao topo por seus próprios meios, com seus próprios objetivos geopolíticos, enquanto eles pareciam cochilar no volante. O que está em jogo no atual debate sobre o 5G vai muito além da questão do domínio chinês sobre esse padrão de telefonia. O 5G é a tecnologia que deverá permitir uma conexão mais rápida a um maior número de dispositivos, conectados e interconectados, aproximando as operações de processamento de dados de sua origem, ou seja, o usuário final. Mas a publicidade em torno do assunto obscurece os muitos obstáculos que existem para sua aplicação industrial. Para a maioria dos usuários, o impacto do 5G estará restrito ao aumento da velocidade de download e, talvez, ao advento da internet das coisas, há muito anunciado.

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m 1994, quando a Huawei não passava de uma pequena vendedora de comutadores telefônicos, seu fundador, Ren Zhengfei, foi conversar com o então presidente chinês, Jiang Zemin. O ex-engenheiro do Exército convertido para o setor dos produtos eletrônicos de massa lançou então a carta patriótica: “As telecomunicações são uma questão de segurança nacional. Para uma nação, não ter seus próprios equipamentos nessa área é como não ter Exército”.1 Esse sábio preceito foi adotado por outros países, principalmente pelos Estados Unidos. Ironicamente, hoje são os Estados Unidos que encaram a Huawei e seu domínio da tecnologia 5G como uma ameaça à segurança nacional. Propriedade de seus empregados, a empresa é caracterizada pelo atípico sistema de gestão rotativa, pelo desprezo em relação aos contratos públicos – considerados “gananciosos” por Zhengfei –, pelo culto aos valores maoistas e pelo apego à ideia de inovação nacional para romper a dependência da China em relação às empresas estrangeiras “imperialistas”. O grupo gerencia redes em 170 países e emprega mais de 194 mil pessoas. Desde 2009, ele está entre os principais players envolvidos no desenvolvimento da tecnologia 5G, tanto no setor industrial quanto em vários organismos internacionais de padronização. No verão de 2020, a Huawei destronou a Samsung como líder mundial na venda de smartphones. Considerada uma das empresas chinesas mais inovadoras, sua filial HiSilicon projetou o chip Kirin, com alguns dos aplicativos de inteligência artificial mais avançados do mercado. Parte desse notável sucesso explica-se pelo inabalável compromisso da empresa com a área de pesquisa e desenvolvimento (P&D), à qual dedica mais de 10% de seus lucros anuais, o equivalente a mais de US$ 15 bilhões de dólares em 2019 – para 2020, esperam-se US$ 20 bilhões –, à frente da Apple e da Microsoft. A título de comparação, todo o setor automotivo

O EXÉRCITO DAS TORRADEIRAS CONECTADAS Claro que o avanço tecnológico das redes e dos dispositivos exige investimentos colossais, e a batalha para conquistar o mercado é feroz. Mas a Huawei e o 5G são apenas a ponta do iceberg. Por trás deles desenvolve-se um confronto econômico e geopolítico muito maior, no qual a China tenta ganhar vantagem sobre os Estados Unidos. Se o 5G está irritando tanto o Tio Sam, é porque ele não tem um peso-pesado para colocar no ringue. A Europa está mais tranquila porque é a casa de duas companhias bem estabelecidas, a Nokia e a Ericsson. A ofensiva dos Estados Unidos contra a alta tecnologia chinesa atinge um amplo leque de empresas, da ZTE (estatal muito ativa no terreno do 5G) à WeChat, passando pelo TikTok e muitas outras menos conhecidas. A Huawei, porém, é indiscutivelmente o alvo principal, pois aos olhos da Casa Branca ela representa a quintessência de uma China sem escrúpulos, cujos crimes os Estados Unidos não se cansam de condenar e punir, em Hong Kong, em Xinjiang, no Mar da China Meridional 2 etc., a tal ponto que Donald Trump se refere à empresa por meio de um daqueles apelidos de que ele tanto gosta: “A espiã”. Para o Salão Oval, a Huawei simboliza o golpe baixo que o mundo vê erroneamente como sucessos comerciais merecidos. Ela viola direitos de propriedade intelectual, tiraniza parceiros, aproveita a generosa ajuda estatal para derrubar preços e arrasar a concorrência. Construindo redes de telecomunicações nos países do Sul, a companhia os prende em uma relação de profunda dependência, participando assim da “diplomacia do endividamento” exercida pela China, que se difunde por meio do programa “Novas Rotas da Seda”. Mais grave, a Huawei estaria equipando seus produtos com backdoors, que ajudariam o regime chinês a expandir suas atividades de vigilância. Segundo os detratores mais criativos, a empresa logo poderá virar contra nós as geladeiras e torradeiras conectadas à rede 5G.

Essas críticas vêm muitas vezes apoiadas pela menção à Lei Nacional de Inteligência promulgada pela China em 2017, a qual exige que empresas (e cidadãos) cooperem com as autoridades, fornecendo informações sempre que solicitado. Outro motivo de preocupação: a aceleração da “fusão civil-militar”, um esforço para tornar mais fluidas as relações entre o setor de tecnologia e o Exército – inspirado no exemplo dos Estados Unidos. 3 A Huawei, por sua vez, nega categoricamente as acusações de espionagem, destacando que o governo chinês não correria o risco de arruinar sua reputação e confiança internacional. Como de costume, as alegações do governo Trump baseiam-se em evidências muito frágeis, ou até inexistentes, o que não o impediu de tentar juntar à sua cruzada vários países amigos, com destaque para o Reino Unido, a França, a Itália e muitas nações do Leste Europeu, “encorajando-os” a banir a Huawei de suas redes 5G – o que é um eufemismo, dada a intensidade das pressões econômicas e diplomáticas exercidas pelo Departamento de Estado por meio de suas embaixadas. A mesma coisa se passa em todos os continentes. Após um intenso lobby do secretário de Estado norte-americano, Mike Pompeo, o governo chileno decidiu excluir a Huawei de seu projeto de cabo submarino transpacífico. Na Índia, onde a Huawei está muito presente, o primeiro-ministro Narendra Modi joga com a escolha ou não da companhia chinesa como instrumento de represália contra a China, após violentos confrontos de fronteira. Embora nenhuma proibição oficial tenha sido anunciada, Nova Délhi estaria considerando recorrer a uma empresa nacional, a Reliance Industries. O Reino Unido, embora um tanto entorpecido nestes tempos de Brexit, desferiu em julho um golpe contra a companhia chinesa, exigindo que as operadoras de telefonia móvel do país removessem todos os equipamentos Huawei de sua rede até 2027. A decisão causou surpresa, pois o país é um ponto central na estratégia europeia do grupo chinês, cuja sede regional está instalada em Londres. Também foi no Reino Unido que a Huawei inaugurou, em 2010, em parceria com os serviços de inteligência britânicos, o Centro de Avaliação de Segurança Cibernética Huawei (Huawei Cyber Security Evaluation Centre, HCSEC), responsável por analisar e corrigir falhas de segurança identificadas em suas redes. Mas essas boas relações não pesaram muito diante das intimidações dos Estados Unidos e das críticas do Partido Conservador, em cujas fileiras se formou


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tas em comparação com outros mercados, mas sua instalação nessas regiões, em parte impulsionada pelo espírito de “internacionalismo terceiro-mundista” caro a Mao, fez que ela precisasse treinar no local muitos engenheiros e técnicos qualificados. Os Estados Unidos sempre foram uma área de alto risco para a Huawei, muito antes da presidência de Trump e mesmo da administração de Barack Obama. Em 2003, a companhia chinesa foi atacada por sua principal concorrente nos Estados Unidos, a Cisco, por violação de patente. Essa foi a primeira de muitas derrotas. Após ser proibida de assumir qualquer participação ou controle em empresas norte-americanas, a Huawei poderia ser impedida de atender seus próprios clientes e lançar novos produtos nos Estados Unidos. Desde o início, uma acusação martelou como um refrão: a de que a Huawei trabalha de mãos dadas com o Exército chinês. Em 2011, uma revelação feita pelo jornal The Wall Street Journal (27 out.) de que a empresa teria negociado com o Irã, ignorando as sanções dos Estados Unidos vigentes contra esse país, veio somar-se ao dossiê contra a companhia. Em 2013, a Huawei anunciou sua retirada dos Estados Unidos, e hoje sua presença em Washington resume-se a um exército de lobistas.

A DIPLOMACIA DO ENDIVIDAMENTO

O que está em jogo no atual debate sobre o 5G vai muito além da questão do domínio chinês sobre esse padrão de telefonia

Na lenda criada por Trump, a empresa de Shenzhen é a própria encarnação do “comunismo de conivência” chinês, mas o fenômeno Huawei pede outras leituras. Uma das mais convincentes é aquela proposta pelo economista Yun Wen. O atual presidente da companhia, Ren Zhengfei, parece ser, por trás da fanfarronice, do gosto por aforismos maoistas e dos pendores nacionalistas, um fino conhecedor das sutilezas da geopolítica. Sob sua liderança, a Huawei se estabeleceu em regiões difíceis – o interior da China, na década de 1990, e depois alguns países do Sul onde as perspectivas de lucro eram pequenas – e os transformou em frentes para atacar mercados mais promissores. À medida que a China estendia seus tentáculos na África e na América Latina, a Huawei e sua compatriota ZTE agarravam-se a esse movimento para construir suas redes, obras indiretamente beneficiadas pelos empréstimos concedidos pela China aos governos locais para ajudá-los a financiar grandes projetos de infraestrutura. Segundo Yun Wen,4 no caso da Huawei, essa diplomacia do endividamento não teria tido apenas efeitos negativos. Não apenas as receitas geradas pela empresa nos países do Sul são relativamente modes-

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um grupo parlamentar hostil à China – a grande moda do momento. A União Europeia não conseguiu definir uma política comum a respeito do 5G, principalmente porque a questão foi tratada em termos de segurança nacional, área na qual os Estados membros são soberanos. Teria sido mais judicioso abordá-la pelo ângulo da política industrial e das relações internacionais. Assim, poderia nascer um gigante europeu único de 5G, filho da Nokia e da Ericsson, generosamente subsidiado para assumir a missão de igualar os esforços da Huawei em termos de P&D. Parece improvável que as coisas caminhem nessa direção, embora a Comissão Europeia, sob pressão da França e da Alemanha, tenha mostrado recentemente alguma inclinação para abandonar sua obsessão – a competitividade – e levar em consideração o contexto geoeconômico. A Alemanha, o único grande país europeu que ainda não revelou seu plano para o 5G, prometeu chegar a uma decisão no outono de 2020. A classe política está dividida sobre a questão, e até o partido de Angela Merkel está rachado. Os diplomatas norte-americanos lotados em Berlim não perdem nenhuma oportunidade de lembrar a seus interlocutores quanto poderia lhes custar sua indulgência para com a Huawei.

É razoável perguntar por que a campanha dos Estados Unidos contra a Huawei só se intensificou recentemente, uma vez que os primeiros tiros foram disparados há dezessete anos. No final de 2018, o governo dos Estados Unidos ordenou a prisão da filha de Zhengfei, Meng Wanzhou, diretora financeira da Huawei, durante uma escala no Canadá. Desde então, o país vem se dedicando a demolir o grupo, com sanções cada vez mais severas. Trump pediu ao fundo de pensão oficial do governo que não investisse em empresas chinesas. Os contratados do governo federal precisam provar que não têm nenhuma conexão comercial com a Huawei, e as empresas chinesas listadas em Bolsa nos Estados Unidos são obrigadas a publicar suas contas e a declarar qualquer contato com o governo da China. Diversos fatores econômicos e geopolíticos se combinam para explicar a ofensiva dos Estados Unidos.

No plano geopolítico, as revelações de Edward Snowden em 2013 sobre as atividades da Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos (NSA) dão uma pista interessante, como lembra Yun Wen. Em 2010, com o codinome Operação Shotgiant, a NSA invadiu os servidores da Huawei com dois objetivos: encontrar vestígios das possíveis ligações da empresa com o Exército chinês – a busca não deve ter dado em nada, pois nenhum documento vazou para a mídia – e identificar falhas de segurança em seus equipamentos, o que permitiria aos serviços de inteligência dos Estados Unidos espionar alguns de seus Estados clientes, como Irã e Paquistão. Nos documentos vazados por Snowden, a NSA não escondia suas intenções: “A maioria de nossos alvos se comunica por meio de dispositivos fabricados pela Huawei. Queremos ter certeza de que conhecemos bem esses produtos, para poder operá-los e ter acesso a essas linhas”. Guo Ping, presidente da Huawei por rotação, fez um comentário bastante lógico: “[A Huawei] é um espinho no pé do governo norte-americano, pois o impede de espionar quem ele quiser”. Na verdade, se a Huawei vencesse a corrida 5G, a supremacia norte-americana no campo da inteligência estaria seriamente comprometida, no mínimo pelo fato de que a companhia chinesa provavelmente estaria menos disposta a cooperar de maneira informal com as agências dos Estados Unidos do que, por exemplo, suas concorrentes europeias. No plano econômico, para além da infraestrutura material exigida pelo 5G, é preciso pensar na malha de direitos de propriedade intelectual que essa tecnologia implica. Antes de mais nada, o 5G é um padrão. Cada rede ou aparelho que pretenda operá-lo precisa respeitar suas especificações técnicas, o que passa necessariamente pela utilização de tecnologias patenteadas. Um smartphone moderno com Wi-Fi, touchscreen, processador etc. está protegido no mínimo por 250 mil patentes (esse número, de 2015, deve ser ainda maior hoje). Segundo uma estimativa de 2013, 130 mil dessas patentes seriam “patentes essenciais” (Standard-Essential Patents, SEP), como são classificadas aquelas que permitem a conformidade com uma norma técnica como o 5G. No campo das tecnologias móveis, o número e a distribuição geográfica dos titulares de patentes essenciais evoluíram à custa da América e da Europa ocidental e em benefício dos países asiáticos.5 E patentes significam royalties. A norte-americana Qualcomm, grande vencedora do 2G e de vários outros padrões importantes, tira dois terços de seu

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faturamento da China, principalmente da Huawei. Sozinha, a Huawei gastou desde 2001 mais de US$ 6 bilhões em royalties, 80% dos quais foram para empresas norte-americanas. Esses valores desproporcionais acabaram fazendo o governo chinês reagir. Após multar a Qualcomm em US$ 975 milhões por abuso de posição dominante em 2015, ele conseguiu, três anos depois, bloquear a tentativa da companhia de adquirir a holandesa NXP, argumentando que a operação reduziria ainda mais a margem de manobra de suas empresas.

“ESTAMOS EM GUERRA” Mas as coisas mudaram. A Huawei está agora entre as maiores detentoras de patentes essenciais relacionadas ao 5G. Isso não a impede de continuar criticando fortemente o sistema mundial de propriedade intelectual – Ping pediu uma revisão das regras desse “clube internacional” em um sentido mais igualitário e benéfico para todos, comparando os royalties a “pedágios impostos por bandidos de estradas”. É verdade que a natureza “essencial” das patentes detidas pela empresa é discutível. Como apontou um analista, se o smartphone fosse um avião, as patentes da Nokia e da Ericsson cobririam o motor e o sistema de navegação, enquanto as da Huawei protegeriam os assentos e os carrinhos de refeição... Porém, seja qual for o poder de suas patentes, a Huawei conseguiu se livrar de sua situação de dependência. Para a China, tentar tornar-se credora (em vez de tomadora) de patentes faz sentido do ponto de vista econômico. Foi assim que ela conseguiu preencher o fosso que a separava dos Estados Unidos em termos de direitos líquidos arrecadados: enquanto em 1998 as empresas norte-americanas recebiam 26,8 vezes mais royalties do que as chinesas, em 2019 essa proporção era de apenas 1,7.6 Logicamente, a China também começou a pesar mais nos organismos internacionais de órgãos de padronização.7 A Comissão Eletrotécnica Internacional (International Electrotechnical Commission) e a União Internacional de Telecomunicações (International Telecommunications Union) são dirigidas por chineses, e o mandato de três anos do primeiro presidente chinês da Organização Internacional de Padronização (International Organization for Standardization, ISO) terminou em 2018. Na ONU, a China tem se mostrado muito ativa no estabelecimento de padrões para tecnologias de reconhecimento facial. Na ISO, esteve particularmente interessada nas cidades conectadas, terreno favorito da Alibaba, o que deixou o Japão preo-


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cupado.8 E, por meio de seu ambicioso programa China Standards 2035, lançado com grande pompa em 2020, o país pretende melhorar a cooperação entre empresas de tecnologia e agências governamentais a fim de estimular o desenvolvimento de padrões internacionais favoráveis aos seus interesses. E agora, o que farão os Estados Unidos? Alguns observadores estabelecem um paralelo entre a atual campanha antichinesa e os anos 1980, quando Washington tentava domar os gigantes industriais japoneses. Em 1986, muitos membros do governo Reagan e da indústria pensaram que seriam estrangulados quando a Fujitsu anunciou sua intenção de adquirir a Fairchild Computing, lendária fabricante norte-americana de semicondutores. Um executivo do setor resumiu o sentimento geral: “Estamos em guerra com o Japão – não é uma batalha com armas e balas, mas uma guerra econômica na qual a munição é a tecnologia, a produtividade e a qualidade.” (Los Angeles Times, 30 nov. 1987). Alguns anos antes, as sanções comerciais incentivadas pela Casa Branca conseguiram impedir a Toshiba, outro mastodonte japonês, de vender seus computadores no mercado norte-americano. “Estamos em guerra”: o lema não mudou. A disputa comercial entre Estados Unidos e Japão teve um desfecho pacífico; muitos na China quiseram acreditar que com eles seria a mesma coisa e que um acordo duradouro acabaria surgindo após algumas concessões. Mas esse resultado parece cada vez mais improvável. A esse respeito, a administração Trump está dividida em três campos. O primeiro é o do próprio presidente. Tudo sugere que seus ataques à Huawei e similares são parte de uma estratégia maior para garantir vantagem comercial sobre a China. Na verdade, se o objetivo fosse realmente impedir a hegemonia da China sobre o 5G, a estatal ZTE seria um saco de pancadas muito melhor do que a Huawei – mas ela não sofreu mais danos do que uma multa de US$ 1 bilhão. Para Trump, a Huawei é uma moeda de troca nas negociações comerciais – e um slogan de campanha. O segundo campo é o dos falcões, liderado por Peter Navarro, conselheiro do presidente para o Comércio, e Robert Lighthizer, representante do Comércio dos Estados Unidos. A seus olhos, conter a ascensão da China é um imperativo vital, e eles não hesitariam em atacar a Huawei com ainda mais força. Eles estão por trás de todas as propostas que buscam ampliar o leque das empresas chinesas afetadas pelas sanções. Por fim, há o terceiro campo, o do complexo mili-

tar-industrial, que prefere fazer o papel de “pombos”. E por um bom motivo: para esse campo, a China representava um mercado lucrativo. Em 2019, a Huawei sozinha comprou US$ 19 bilhões em material eletrônico de fabricantes dos Estados Unidos. Impedir que fabricantes nacionais negociem com a China significa favorecer seus concorrentes estrangeiros. Enquanto havia esperança de uma efetivação completa do acordo comercial entre a China e os Estados Unidos assinado em janeiro, o campo dos “pombos”, no qual se destaca o secretário do Tesouro, Steven Mnuchin, conseguiu moderar o ardor antichinês de Navarro e Lighthizer. Com a deterioração da situação geopolítica e a crise da Covid-19 – cuja responsabilidade Trump imputa à China –, essa perspectiva está se enfraquecendo. Assim, a Huawei corre o risco de permanecer como uma moeda de troca, para trocas que jamais ocorrerão. Nesse ínterim, as medidas de retaliação se multiplicam. No início de agosto, Pompeo anunciou o fortalecimento do programa Rede Limpa (Clean Network), cujo objetivo é limpar a internet da “influência nefasta” do Partido Comunista Chinês. Poucos dias depois, a Casa Branca privou a Huawei de qualquer possibilidade de uso de tecnologias que envolvam direta ou indiretamente empresas norte-americanas, o que promete ser um grande quebra-cabeça para continuar fabricando seus produtos. Isso porque, a despeito das somas colossais investidas em pesquisa, dos batalhões de engenheiros e da apologia da inovação “interna”, há componentes que a Huawei não consegue produzir por conta própria nem comprar na China. É o caso dos chips ultramodernos Kirin, projetados na China, porém gravados no exterior, que são cruciais para as funcionalidades baseadas em inteligência artificial. Há quinze anos empenhada em competir com o Vale do Silício, a China fez progressos consideráveis nessa área, a ponto de dominar claramente algumas tecnologias, como o reconhecimento facial. No entanto, seu principal trunfo até hoje era sua capacidade de coletar massas gigantescas de dados para alimentar e treinar seus algoritmos de aprendizagem automática – uma coleta realizada por seus gigantes digitais, mas também possibilitada pela exploração de uma mão de obra estudantil barata. Esse modelo, no entanto, foi criado para o mundo de antes, um mundo no qual a China podia contar com entregas ininterruptas de equipamentos de alto desempenho feitos em Taiwan ou nos Estados Unidos. Hoje, a ruptura dessas cadeias de suprimentos coloca em risco a inteligência artificial chi-

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nesa como um todo.9 Ao declarar guerra à Huawei, os norte-americanos talvez estejam tentando tanto impedir que ela tenha seus próprios semicondutores, por meio da subsidiária HiSilicon, quanto conter seu avanço no 5G. Também na política industrial chegou a hora da ofensiva norte-americana. Os parlamentares decidiram reservar fundos para a construção de redes em arquitetura aberta que possam vir a substituir as da Huawei e suas concorrentes. Paralelamente, o orçamento alocado aos fabricantes locais de semicondutores, de acordo com a lei “CHIPS for America”, atualmente em discussão no Congresso, foi elevado para US$ 10 bilhões. Os Estados Unidos parecem ter entendido que este período de tensão geopolítica não é o momento ideal para enfraquecer seus arautos digitais. O Vale do Silício aproveita: foi a conselho do dono do Facebook que Trump decidiu atacar o aplicativo TikTok. De modo geral, a reação chinesa foi menos agressiva. É preciso dizer que a China não esperou o ataque dos Estados Unidos para fortalecer sua soberania tecnológica à base de bilhões de dólares de dinheiro público, ainda que, nesse ínterim, a crise sanitária tenha dominado parte desses fundos (a instalação do 5G, em particular, atrasou). Em maio, logo após o governo Trump anunciar novas restrições à Huawei e seus fornecedores, Xi Jinping anunciou um plano de US$ 1,4 trilhão para garantir a liderança chinesa em várias tecnologias-chave até 2025. As duas expressões mais faladas na China hoje são “desestadunização” – da cadeia de suprimentos e da infraestrutura tecnológica – e “economia de dupla circulação” – uma nova direção política que consiste em articular a reorientação do mercado doméstico e o desenvolvimento de tecnologias de ponta adequadas à exportação. Enquanto vão de vento em popa as discussões em torno da venda pela TikTok de suas atividades norte-americanas, o governo chinês aumentou a lista de tecnologias cuja exportação pretende controlar, incluindo algoritmos de recomendação de conteúdo, reconhecimento de voz e muitas outras aplicações de inteligência artificial. Em reação ao programa norte-americano Clean Network, a China também acaba de anunciar o lançamento de sua própria rede internacional, a Global Data Security Initiative, que visa combater a vigilância e a espionagem dos Estados Unidos. Por enquanto, a Huawei vai bem. Desde a prisão de Wanzhou, antecipando sanções mais duras, a empresa começou a acumular estoques, que podem durar de dez meses a dois

anos – mas algumas peças estarão obsoletas até lá. Ela também tem na sacola uma pilha de contratos de redes 5G. Por fim, ciente de que seus aparelhos logo não terão mais acesso às atualizações do Android, ela decidiu desenvolver seu próprio sistema operacional: o Harmony OS. Seja qual for o destino da Huawei no futuro próximo, a mensagem chegou alto e claro à China, à Rússia e a outros países: soberania tecnológica é um imperativo. A China entendeu isso muito antes da declaração de guerra de Trump, o que aumentou ainda mais seu senso de urgência. Paradoxalmente, portanto, foram os Estados Unidos que pressionaram a China a colocar em prática uma das muitas máximas de Zhengfei: “Sem independência [tecnológica], não há independência nacional”. Seria irônico que a batalha dos Estados Unidos contra a Huawei fizesse nascer uma China muito mais avançada e autônoma no plano tecnológico, sem nenhum fornecedor norte-americano em suas cadeias de abastecimento.  *Evgeny Morozov  é fundador e editor do portal The Syllabus (the-syllabus.com). Autor de Pour tout résoudre cliquez ici. L’aberration du solutionnisme technologique [Para resolver qualquer coisa, clique aqui. A aberração do solucionismo tecnológico], FYP Éditions, Limoges, 2014. 1   C itado em Yun Wen, The Huawei Model. The Rise of China’s Technology Giant [O modelo Huawei. A ascensão da gigante tecnológica chinesa], University of Illinois Press, Champaign, Illinois, publicação prevista para novembro de 2020. As citações de executivos da Huawei foram retiradas dessa obra. 2   Ler Philipp S. Golub, “Entre les États-Unis et la Chine, une guerre moins commerciale que géopolitique” [Estados Unidos × China: uma guerra menos comercial do que geopolítica], Le Monde Diplomatique, out. 2019. 3   Cf. Linda Weiss, America Inc.? Innovation and Enterprise in the National Security State [America Inc.? Inovação e empresa na segurança nacional], Cornell University Press, Ithaca, 2014. 4   Yun Wen, op. cit. 5   Dieter Ernst, “China’s Standard-Essential Patents Challenge: From Latecomer to (Almost) Equal Player?” [A mudança das patentes essenciais da China: de retardatária a competidora (quase) de igual para igual?], Center for International Governance Innovation, jul. 2017, Waterloo (Canadá). Disponível em: www.cigionline.org. 6   Citado em Gregory Shaffer e Henry Gao, “A new Chinese economic order?” [Uma nova ordem econômica chinesa?], Journal of International Economic Law, Oxford, no prelo. 7   J ohn Seaman, China and the New Geopolitics of Technical Standardization [China e a nova geopolítica dos padrões técnicos], IFRI, Paris, jan. 2020. 8   “Japan grows wary of China’s smart-city global standards” [Japão se preocupa com os padrões globais para cidades inteligentes da China], Nikkei Asian Review, 11 ago. 2020. 9   C f. Paul Triolo e Kevin Allison, “The Geopolitics of Semiconductors” [A geopolítica dos semicondutores], Eurasia Group, Nova York, set. 2020; e Dieter Ernst, “Competing in Artificial Intelligence Chips: China’s Challenge amid Technology War” [A corrida dos chips de inteligência artificial: o desafio chinês na guerra tecnológica], Center for International Governance Innovation, mar. 2020, Waterloo (Canadá). Disponível em: www.cigionline.org.


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UM SISTEMA DE PENSÕES DESCONECTADO DAS CARREIRAS SERIA POSSÍVEL?

Por uma aposentadoria realmente universal Contra a opinião das organizações de trabalhadores e empregadores, o presidente Emmanuel Macron está obstinado em reformar a Previdência. A uniformização, o modelo proposto, implica a elevação da idade da aposentadoria integral e arrisca levar empobrecimento para a maioria. A reflexão sobre um verdadeiro modelo universal passa por um caminho bem diferente POR ANNE DEBREGEAS*

nar os aposentados a um empobrecimento progressivo ao estipular um teto das aposentadorias em 14% do PIB, como considerava fazer o governo antes da crise sanitária.

DIREITO AO REPOUSO Não existe um risco de incitar os “ricos” a capitalizar durante sua vida ativa para compensar a alta diminuição de sua renda na aposentadoria? Não podemos ser ingênuos; os mais privilegiados já capitalizam de diversas maneiras: aplicações na Bolsa, planos de aposentadoria privada, imóveis etc. Nivelar as rendas entre o período de atividade e o período de aposentadoria não é ilegítimo nem problemático, a partir do momento em que os fundos de pensão são proibidos. A poupança poderia assim ser orientada para um financiamento com baixas taxas de investimentos públicos – para a transição ecológica, por exemplo –, em vez de se dirigir a produtos especulativos altamente re-

*Anne Debregeas  é engenheira de pesquisa da Électricité de France e porta-voz da federação Sud-énergie. 1   Fonte: Ministério das Solidariedades e da Saúde, Direção de Pesquisa, Estudos, Avaliação e Estatísticas (Drees), jul. 2019.

© Jeanne Menjoulet

as quais as ligadas ao patrimônio, às rendas de capital ou à responsabilidade financeira sobre crianças, desigualdades essas que deveriam ser reguladas pelo imposto, garantia de serviços públicos de qualidade. A partir de que idade? Esticar o fim da atividade para além dos 60 anos priva as pessoas dos melhores anos da aposentadoria, já que a esperança de vida com boa saúde é de 64 anos. O mundo do trabalho, inclusive, rejeita boa parte dos idosos, que têm dificuldades em encontrar empregos em seus últimos anos de atividade. Além disso, elevar a idade priva mecanicamente os mais jovens do acesso ao trabalho: mais de 1 milhão de empregos são ocupados por pessoas com mais de 60 anos, um número que deve aumentar. Para responder ao desemprego em massa é necessária uma partilha do trabalho, já que o crescimento perpétuo não é possível nem desejável de um ponto de vista ecológico. Quanto custaria essa aposentadoria e como financiá-la? Uma aposentadoria de 2 mil euros líquidos para todos a partir da idade legal atual de 62 anos criaria a necessidade de um financiamento suplementar de cerca de 80 bilhões de euros, ou seja, 3,4% do PIB. Esse número aumentaria para 110 bilhões de euros, ou seja, 4,7% do PIB, no caso de uma aposentadoria de 2 mil euros líquidos a partir dos 60 anos. O esforço necessário para essa revolução social representa um aumento de cerca de 10% em média das deduções obrigatórias, o que poderia ser feito nos salários mais elevados, introduzindo, por exemplo, uma progressão nas cotizações e cobrando mais das rendas de capital. Lembremos que a introdução do “desconto único” em 2018 estipulou um teto para o imposto de renda do capital em 12,8% (fora taxas sociais), muito abaixo da última fatia de imposto de renda, fixada em 45%. Esse esforço financeiro estabeleceria uma partilha da riqueza produzida, o que parece mais legítimo do que conde-

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a ampla mobilização do início de 2020 contra o projeto de reforma da Previdência na França, as reivindicações se pautaram majoritariamente no sistema existente. Visando à manutenção do nível de vida dos aposentados, a demanda era de que o valor das pensões fosse melhor ou ao menos igual que último salário recebido. Dessa forma, valida-se a reprodução das desigualdades do mundo do trabalho para aqueles e aquelas que o deixam. No momento em que nosso modelo de sociedade é balançado pela crise da Covid-19, diversas iniciativas nos chamam a redefinir os contornos de um mundo sustentável. Não é o momento de considerar substituir a lógica contributiva atual da aposentadoria por um novo direito universal, independentemente do nível e da duração da cotização? Todo ser humano poderia dispor de uma pensão idêntica a partir de certa idade. Esse princípio estaria de acordo com o do sistema de saúde público ou dos serviços que oferecem a cada um os mesmos serviços, qualquer que seja o nível da cotização associado a seu salário. Para cogitar a viabilidade e o interesse de uma verdadeira aposentadoria universal, convém encontrar as melhores respostas para as questões legítimas que surgem. Qual poderia ser o valor dessa aposentadoria única? Ele deveria depender evidentemente de escolhas democráticas. Podemos imaginar, por exemplo, que ele seja fixado em 2 mil euros líquidos por mês, ou seja, ligeiramente menos do que a renda média por adulto da França (2,2 mil euros líquidos hoje, fora rendas de capital). Esse valor, claramente acima da aposentadoria média atual (1.444 euros líquidos por mês), significaria um aumento das pensões para mais de 80% dos 17,2 milhões de aposentados atuais (após deduções das cotizações sociais, mas antes dos impostos).1 Uma aposentadoria única não resolveria todas as desigualdades, entre

muneradores, que não respondem a uma necessidade real e infelizmente são frequentemente não taxados. Essa orientação da poupança poderia ser feita por uma via regulamentar, por exemplo, ao impor uma porcentagem mínima de aplicações financeiras no financiamento de investimentos públicos e ecológicos. Tal proposta poderia ser aceita? Ela deve encontrar retorno positivo junto a 80% dos futuros aposentados que veriam sua pensão aumentar em relação ao sistema atual. Mesmo para os outros, essa aposentadoria, associada a um serviço público de qualidade, ofereceria direito ao repouso garantido, quaisquer que fossem as dificuldades da vida, sem medo de envelhecer na precariedade financeira e sem medo por seus filhos, parentes e próximos. Em troca de qual renúncia? A capacidade de consumir mais em um planeta com recursos limitados? Hoje, muitos, em particular entre os mais jovens, têm uma consciência aguda da necessidade de compartilhar para enfrentar a crise social e ambiental que surge diante de nós. Além do mais, a instabilidade do sistema os leva a considerar a aposentadoria como uma miragem. A legibilidade e a simplicidade de uma aposentadoria única para todos favoreceriam a recuperação de uma adesão e de uma confiança em nosso destino coletivo.

Franceses foram às ruas contra o projeto de reforma da Previdência


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NO PAÍS DO CEDRO, DO COMUNITARISMO, DO CLIENTELISMO, DO NEGÓCIO SEM LIMITES E DA DESIGUALDADE

O Líbano, há dois séculos em busca de uma nação Ao instar fortemente a classe política libanesa a providenciar um novo governo capaz de realizar reformas, o presidente francês, Emmanuel Macron, perpetua a tradição de ingerência das grandes potências nos assuntos internos do Líbano. Mas nem assim as elites políticas locais conseguem construir um Estado sólido, capaz de responder aos desafios econômicos e sociais do país POR GEORGE CORM*

Macron e militares que trabalham na reconstrução do porto de Beirute reinou sobre o Emirado da Montanha de 1590 a 1635. Tentando emancipar-se da tutela otomana, sobretudo por meio do estabelecimento de relações com a Toscana italiana, o emir teve de enfrentar várias campanhas militares lideradas pelas tropas da Sublime Porta. Capturado pelos otomanos, foi executado por decapitação em Constantinopla (atual Istambul). Em 1860, agravaram-se os confrontos entre drusos, mais ou menos apoiados pelo Exército otomano, e cristãos, espalhando-se pela planície de Bekaa. A França, então sob o reinado de Napoleão III, decidiu intervir, e suas tropas desembarcaram na costa libanesa. As cinco potências europeias e o Império Otomano concordaram em reduzir a área do Líbano. Foi em oposição a esse “Pequeno Líbano” que as autoridades mandatárias francesas proclamariam, em 1º de setembro de 1920, o “Grande Líbano”. Com uma área de 10.452 quilômetros quadrados, o país nunca deixou de ver seu destino ligado às rivalidades imperialistas europeias e até “ocidentais”, se incluirmos os Estados Unidos, país que após a Segunda Guerra Mundial se tornou a potência dominante do “mundo livre”, mobilizando efetivamente as três religiões monoteístas para enfrentar o poder da União Soviética. Cabe lembrar, de passagem, que foi durante o período do mandato francês (1920-1943) que um decreto de 1936 do Alto Comissário fundou o comunitarismo institucional. Ele estabeleceu na ordem pública libanesa

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esde o século XIX, o Líbano segue enfrentando o intervencionismo de grandes potências, que lhe conferem o trágico estatuto de “espaço-tampão”, em vez da soberania formal. Em 1833, o país foi ocupado pelas tropas de Ibrahim Pasha, filho do poderoso Mohammed Ali (ou Mehmet Ali), vice-rei do Egito, adversário declarado do sultão otomano, após ter sido seu vassalo. Mas os britânicos não entenderam dessa forma e acabaram obrigando a França, da qual o soberano egípcio era admirador e aliado, a pressioná-lo para que seu filho retirasse suas tropas das montanhas libanesas em 1840. O acordo das cinco potências coloniais (França, Itália, Prússia, Áustria, Inglaterra) considerava então que as ambições de Mohammed Ali de derrubar a monarquia otomana e substituí-la não eram aceitáveis. Foi nesse contexto de luta entre as grandes potências europeias pela influência sobre o futuro do Império Otomano, descrito como “doente” pela diplomacia russa, que, pela primeira vez na história das montanhas do Líbano, eclodiram distúrbios sangrentos entre camponeses maronitas e drusos. Esses confrontos eram consequência direta da rivalidade imperialista franco-britânica centrada nesse território, que destruiu, com suas manobras e manipulações, a grande simbiose plurissecular existente na região de Shouf entre a comunidade drusa e a maronita. Dessa coexistência emergira no passado a grande figura de Fakhreddine II, que

as comunidades religiosas, enumerando-as e acrescentando uma comunidade de direito comum que seria criada para os libaneses não identificados com as demais. Esse estatuto de natureza civil nunca foi estabelecido, o que hoje obriga muitos libaneses e libanesas a se dirigirem ao Chipre, à Turquia ou à França para se casar fora de sua comunidade. Estado-tampão, exposto a influências frequentemente antagônicas, o Líbano sempre teve dificuldade em assumir sua autodeterminação e superar suas próprias contradições. Em 1949, Georges Naccache (1904-1972), um dos maiores jornalistas libaneses e fundador, em 1925, do jornal L’Orient (atualmente L’Orient-le jour), publicou um contundente artigo que o levou à prisão. “‘Nem Ocidente nem arabização’: foi com uma dupla recusa que o cristianismo e o islã concluíram sua aliança [para adotar o pacto nacional de novembro de 1943, que serviu como um compromisso não escrito entre as comunidades]. Que tipo de unidade pode sair de uma tal fórmula?”, ele se perguntava. “O que metade dos libaneses não quer, enxergamos muito bem. O que a outra metade não quer, enxergamos muito bem. Mas o que as duas metades querem em comum, isso não conseguimos enxergar. [...] Um Estado não é a soma de duas impotências – e duas negações jamais farão uma nação.”1

GENOCÍDIO ARQUITETÔNICO Mais tarde, Georges Naccache se tornaria um grande admirador do gene-

ral Fuad Chehab (1902-1973), comandante em chefe do Exército libanês, depois presidente da República Libanesa, entre 1958 e 1964. Ele foi o verdadeiro fundador do Estado libanês, empreendendo uma impressionante quantidade de reformas com os lúcidos conselhos de Louis-Joseph Lebret (1897-1966), padre dominicano, economista e fundador do Instituto Internacional de Pesquisa, Educação e Desenvolvimento (Institut International de Recherche et de Formation Éducation et Développement, Irfed), a quem pediu que conduzisse, entre 1960 e 1964, um estudo socioeconômico sobre os padrões de vida das diferentes regiões do Líbano. O resultado foi um levantamento muito exaustivo, que revelava um grande nível de desigualdade social e uma maciça concentração de riquezas nas mãos de uma pequena minoria de libaneses, que contrastava com a existência de bolsões de grande pobreza nas regiões rurais periféricas do país. Em uma conferência intitulada “O Líbano em transformação”,2 proferida em 1962, o economista alertou os libaneses contra a persistência dessas desigualdades, que poderiam fraturar o país. Fratura efetivada em 1975, com a conflagração generalizada de violência entre os partidos políticos “cristãos”, sobretudo o partido falangista criado por Pierre Gemayel, e o Movimento Nacional Libanês, um agrupamento de partidos não comunitários sob a condução de Kamal Joumblatt (1917-1977), líder da comunidade drusa, que exigia maior igual-


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dade entre cristãos e muçulmanos, estes últimos apoiados com circunspecção pelos movimentos armados palestinos no Líbano. Fuad Chehab falava com frequência sobre aqueles a que chamava de “parasitas”, os políticos inescrupulosos empenhados em extrair do Estado tudo o que podiam. No plano internacional, o presidente construiu sua política externa tecendo boas relações com o presidente egípcio Gamal Abdel Nasser. Isso só poderia exacerbar a ira da burguesia empresarial cristã, que via no rais, pan-arabista e socialista, o diabo em pessoa. Diante do ímpeto reformista e do desejo presidencial de construir um Estado forte, a palavra de ordem dos círculos cristãos conservadores resumia-se em uma frase nada sutil: “A força do Líbano está em sua fraqueza”. A burguesia muçulmana, por sua vez, exigia mais direitos na nova república independente, apoiando, via de regra, os movimentos armados palestinos, a fim de pressionar a burguesia cristã intransigente. Tais movimentos se desenvolveram no Líbano graças a essa fraqueza, mas também ao fato de que uma parte importante desses fedayin fora expulsa da Jordânia em setembro de 1970.3 Um contemporâneo de Fuad Chehab merece ser mencionado, pelo acerto de suas opiniões. Trata-se de Michel Chiha (1891-1954), que, embora banqueiro e apologista do liberalismo econômico, foi um ardente defensor da diversidade comunitária e desde cedo alertou sobre os riscos

que o Líbano corria em decorrência da política israelense concernente a seu país e aos palestinos. Sua coleção de artigos sobre a Palestina continua sendo uma obra-prima de lucidez e clarividência.4 Chiha percebeu muito bem o conflito existencial entre Israel, edificado sobre o exclusivismo comunitário, e o Líbano, construído, ao contrário, sobre a gestão do pluralismo pacífico.5 No entanto, em alguns círculos maronitas, bastante marginais, surgiu a ideia de que, se os judeus na Palestina tinham seu Estado, por que os cristãos não deveriam ter o deles? Já que cristãos e judeus eram minoritários, por que não se unir contra a maioria muçulmana? Esse ponto de vista ressoava, sem sequer o saber, toda uma literatura israelense que preconizava a desestabilização do Líbano e a necessidade de dividi-lo entre cristãos e muçulmanos. O resultado disso sabemos qual foi: primeiro a tomada de Israel sobre parte do sul do Líbano em 1978, depois a invasão, no verão de 1982, que levou o Exército israelense a Beirute, onde foram perpetrados os massacres de civis palestinos nos campos de Sabra e Chatila por milicianos falangistas, sob o olhar cúmplice dos soldados israelenses. Bashir Gemayel, filho do líder do partido falangista Pierre Gemayel, foi eleito presidente do Parlamento libanês cercado por tanques israelenses, em seguida assassinado, alguns dias depois, na explosão misteriosa que destruiu a sede de seu partido. Seu irmão, Amin Gemayel, o sucedeu, comandando o bombardeio dos subúrbios ao sul de Beirute, de maioria xiita. Foi nesse contexto caótico que se efetuou a evacuação dos combatentes palestinos sob o controle de uma Força Multinacional – que depois foi vítima de vários ataques terroristas. O fim do ciclo de guerras intercomunitárias em 1990 não curou o Líbano de suas fragilidades originais e de sua incapacidade de construir um Estado que seja digno desse nome. Pior, a chegada ao poder, em 1992, do primeiro-ministro Rafiq Hariri – empresário protegido pelo rei da Arábia Saudita que ficou no cargo até poucos meses antes de morrer em um atentado, em 2005 – introduziu o país em um regime econômico rentista, como se ele dispusesse de grandes recursos. Foram assinados acordos de livre-comércio com muitos países, com repercussões negativas para a capacidade produtiva do país, tanto industrial como agrícola. Um regime de câmbio fixo atrelando a libra libanesa ao dólar, bem como níveis anormalmente elevados das taxas de juros sobre os títulos do tesouro em moeda local logo resultaram em um danoso acúmulo de dívida nessa

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© Stephane Lemouton/Pool via REUTERS

moeda. Isso facilitou o rápido enriquecimento da classe rica do país, que se endividou em dólares, aproveitando as baixas taxas de juros para fazer aplicações de altíssimos rendimentos em libras libanesas. Nesse período, os moradores das mais belas áreas da capital foram desapropriados em benefício da construtora Solidere, que transformou o icônico centro da cidade em uma cópia vulgar das cidades de vidro e aço do Golfo. Em quinze anos, Beirute, já devastada por tantos anos de guerra, sofreu um verdadeiro genocídio arquitetônico, como evidencia a construção de uma enorme mesquita em estilo turco rompendo a beleza arquitetônica da antiga Praça dos Mártires, também conhecida como Praça dos Canhões.

A BOLHA DA ELITE A gestão de Hariri sobre a economia libanesa foi diretamente responsável por seu enfraquecimento. Embora tenha uma média de 6%-7%, o crescimento nunca chegou a níveis compatíveis com um período de reconstrução de pós-guerra. E o governo não teve nenhuma preocupação com a justiça tributária, estabelecendo taxas de imposto de renda escandalosamente sujeitas a um teto de apenas 10%, quando a situação exigia um imposto especial sobre as grandes fortunas reunidas durante a guerra. Apesar da prosperidade do setor fundiário, ele logo passou a enfrentar dificuldades financeiras, pois a poupança libanesa era drenada pelas altas taxas de juros sobre depósitos bancários ou títulos da dívida pública. Foi durante o período Hariri que muitos jovens talentos deixaram o país, enquanto outros puderam concluir seus estudos superiores na Europa e nos Estados Unidos graças a um programa que ofereceu milhares de bolsas estudantis – um maná que explica por que Rafiq Hariri e seu filho, Saad, continuam populares junto a uma parte da população. Hoje, porém, a economia libanesa corre o risco de se dilacerar. O congelamento de facto dos depósitos bancários, medida totalmente inconstitucional, atesta a existência de um regime de “bancocracia” único no mundo e totalmente contrário aos direitos humanos. É o resultado de uma gestão lamentável do setor bancário e do banco central libanês, conduzida pelo mesmo dirigente por quase trinta anos – Riad Salamé foi nomeado em 1º de agosto de 1993, por decisão de Rafiq Hariri, cuja fortuna ele administrava no banco de investimentos Merrill Lynch. Hoje, a desvalorização da libra libanesa e a multiplicação das taxas de câmbio arruinaram grande parte da classe

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média, com mais de 50% da população abaixo da linha de pobreza. Há grandes riscos de redução da expectativa de vida no Líbano. Já a casta política que administra o país está sempre envolvida em manobras comunitaristas, vivendo em uma bolha, como se a economia continuasse funcionando normalmente, esquecendo que há um povo que sofre. E certamente não são as exigências de reforma do FMI que serão capazes de sanear e dinamizar a atividade econômica. Já está prevista, aliás, uma série de privatizações de empresas públicas e propriedades fundiárias. A todos esses infortúnios veio se somar a gigantesca explosão do dia 4 de agosto, que assolou a área leste da capital. O Líbano jamais havia sofrido um desastre de tal magnitude. Nesse contexto, o país precisa de reformas, sendo as mais urgentes aquelas ligadas à necessidade de racionalizar as despesas orçamentárias, artificialmente infladas por numerosos subsídios de natureza clientelista, de melhor gerir o patrimônio fundiário do Estado e das coletividades locais, de instituir um imposto de renda unificado em vez de vários impostos por categoria, além de um imposto sobre grandes fortunas, e de preservar o poder de compra das aposentadorias. Mas também, e principalmente, o país precisa apoiar os setores produtivos da economia, dar um fim à inflação galopante e apoiar as classes mais pobres da população com o aumento da assistência social. Para concluir, uma medida de notável economia seria fechar vários fundos independentes de indenização que não têm mais nenhuma razão de ser, como o fundo destinado aos deslocados da guerra de 1975-1990 ou aquele dedicado aos deslocados do sul do Líbano após a invasão israelense de 1982.  *George Corm é professor universitário, ex-ministro das Finanças do Líbano e autor de Le Liban contemporain. Histoire et société [O Líbano contemporâneo. História e sociedade], La Découverte, Paris, 2012. 1   L ’Orient, Beirute, 10 mar. 1949. 2   Jean-Marc Fevret, 1948-1972: Le Liban au tournant. L’anémone pourprée [1948-1972: o Líbano em transformação. A anêmona púrpura], Geuthner, Paris, 2011. E cf. Stéphane Malsagne, Louis-Joseph Lebret, chronique de la construction d’un État. Journal au Liban et au Moyen-Orient (1959-1964) [Louis-Joseph Lebret, crônica da construção de um Estado. Diário no Líbano e Oriente Médio (19591964)], Geuthner, 2014. 3   Ler Alain Gresh, “Mémoire d’un septembre noir” [Memórias de um setembro negro], Le Monde Diplomatique, set. 2020. 4   Michel Chiha, Palestine, Éditions du Trident, Beirute, 1947. 5   Ler Yaacov Sharett, “L’État juif et l’intégrité du Liban” [O Estado judeu e a integridade do Líbano], Le Monde Diplomatique, dez. 1983.


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KARL KRAUS, ROSA LUXEMBURGO E O DESASTRE DA “GRANDE GUERRA”

O que significa tratar os animais com humanidade? À margem dos combates contra a covardia jornalística, as capitulações da social-democracia e a militarização, o satírico vienense Karl Kraus (1874-1936) desenvolveu uma reflexão sobre o tratamento dos animais na Primeira Guerra Mundial. Um século depois, seu eco ressoa na voz daqueles que denunciam os maus-tratos animais, elevados, em tempos de paz, a uma escala industrial POR JACQUES BOUVERESSE*

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“N

o dia 1º de agosto de 1914”, escreve o satírico vienense Karl Kraus em sua revista Die Fackel [A Tocha], “ouvi um grito: ‘Sempre em frente, rumo à glória, marchamos!’. Eu me envergonhava da minha rabugice, pois já naquele momento sabia de maneira muito precisa que chegaria o tempo do: ‘Precisamos sair dessa!’. Mas eu era simultaneamente tão otimista que fixei uma data para a expressão desse desejo, que não poderia deixar de ser sentido já em 1º de agosto de 1915, ou em 1º de agosto de 1916, e não em 1º de agosto de 1917. No entanto, em tais casos não é possível trabalhar com exatidão matemática, apenas com exatidão apocalíptica.”1 Kraus expressa aqui sua convicção de que apenas um esforço imaginativo excepcional, como aquele exemplificado pelo pensamento apocalíptico, seria capaz de compensar a total ausência de imaginação que tornou possível o desastre e de permitir compreender, já que não pudemos impedir, o acontecido e suas decorrências. É a linguagem do apocalipse e às vezes até o próprio texto do Apocalipse que Kraus adota naturalmente para falar não apenas da perda de vidas humanas e do sofrimento inimaginável causado pela guerra, mas também da destruição que a combinação entre o progresso da técnica e o poder desmedido do dinheiro, a busca da rentabilidade e do lucro a qualquer custo começou a infligir ao meio ambiente e à natureza. As duas coisas, a onipotência assassina da técnica e a tirania do dinheiro-rei, estavam, aliás, a seu ver, mais do que nunca ligadas uma à outra, visto que, como ele diz, em um primeiro momento os mercados foram transformados em campos de batalha, e depois os campos de batalha foram transformados em mercados a serem conquistados e explorados por industriais e vendedores de armas. Um vínculo desse tipo pode parecer pouco evidente à primeira vista, mas Kraus não tem nenhuma dúvida a respeito da “existên-

© Flávia Pereira

cia de um nexo causal entre sangue e lucro”, cuja consequência foi o fato de milhares de seres humanos terem sido condenados a morrer essencialmente em nome do benefício e da prosperidade de uns poucos. Os atentados à dignidade, aos direitos e à vida humana, cujo valor e preço a guerra conseguiu rebaixar de maneira formidável, não podem, em nenhum caso, ser realmente separados do desprezo com que a humanidade atual se habituou a tratar o meio ambiente em geral e os animais em particular. Dois aspectos diferentes do mesmo processo de desumanização, portanto de autodestruição, no qual a humanidade embarcou.

“NINGUÉM TEM PIEDADE DE NÓS” Assim, não é por acaso que o último monólogo do Rabugento (Os últimos

dias da humanidade, ato V, cena 54) traz uma questão que poderíamos ser tentados a considerar secundária, mas que, para Kraus, pelo contrário, era de crucial importância: a da destruição causada às florestas pelas quantidades cada vez mais consideráveis de papel necessário para a fabricação de jornais. Essa conjunção, de significado sinistro, entre o aumento desproporcional da imprensa, que nada parecia capaz de conter, e a redução da floresta sempre teve para ele um caráter simbólico, altamente representativo do que estava prestes a acontecer, com seu consentimento e até por sua própria culpa, à humanidade. O episódio evocado no monólogo do Rabugento pertence mais uma vez à categoria do inconcebível, cuja enormidade não impediu, no entanto,

de se realizar: “Desejando estabelecer o tempo exato necessário para que uma árvore da floresta se transformasse em jornal, um produtor de papel do Harz teve a ideia de realizar um experimento muito interessante. Às 7h35, mandou cortar três árvores no bosque vizinho e, após serem descascadas, mandou que fossem transportadas para a fábrica de celulose” (Os últimos dias da humanidade). A resposta à sua pergunta foi a seguinte: a sequência de operações necessárias para passar da árvore ao jornal impresso podia realizar-se tão rapidamente que às 11 horas da manhã o jornal já estava à venda na rua. “Foram necessárias, portanto”, conclui o anúncio lido pelo Rabugento, “apenas 3 horas e 25 minutos para que o público pudesse ler as últimas notícias em um material proveniente das árvores


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comportamentos que descreve, no pátio de uma prisão, foi simplesmente a própria face da guerra: “Nesse ínterim, os presos azafamavam-se ao redor da charrete, descarregando os fardos pesados a fim de levá-los para dentro; quanto ao soldado, ele andava de um lado para o outro no pátio, com as duas mãos nos bolsos, sorrindo e assobiando uma música da moda. Nessa ocasião, revi toda a magnífica guerra desfilar diante de mim”. O que a carta evoca de maneira intensa é a espécie de solidariedade espontânea que se estabelece entre a prisioneira, que é também, em certo sentido, uma vítima da guerra – já que ela fora encarcerada em parte graças à sua oposição declarada, radical e militante a esta –, e a vítima representada pelo animal martirizado. Há algo de verdadeiramente comovente na descrição que lhe é dada, de forma que ele se torna, por assim dizer, humano, transformando-se em uma espécie de irmão no sofrimento e na desgraça: “Aquele [em referência aos animais] que sangrava tinha o olhar fixo, com uma tal expressão no rosto – e olhos negros e doces como os de uma criança que acaba de chorar. Era verdadeiramente a expressão de uma criança que foi severamente castigada e não sabe por que, não sabe como escapar desse tormento e dessa violência brutal. [...] Eu estava ali parada e o animal olhou para mim, e senti lágrimas escorrerem pelo meu rosto – eram suas lágrimas, e eu não poderia estar mais dolorosamente compadecida por esse irmão querido do que por minha incapacidade de aliviar seu mudo tormento”. Edward Timms, em sua biografia de Kraus, destaca com pertinência que “os paralelos entre Kraus e Luxemburgo são notáveis. Ambos os autores invocam uma visão de harmonia original para contestar a ideia de uma natureza com os dentes e as garras sujos de sangue, frequentemente explorada para justificar o conflito militar e a dominação racial. Kraus reforçou ainda mais sua posição quando recebeu uma carta de uma megera da aristocracia que zombava de Luxemburgo como uma dessas ‘mulheres histéricas’ fadadas a ter um triste fim caso persistam em semear confusão”. 3 A “megera” em questão era uma aristocrata húngara que se apresentou como ex-assinante do Die Fackel e declarava ter tropeçado no número em que Kraus reproduziu e comentou a carta de Rosa Luxemburgo. No número 462-471 dessa revista, Kraus questiona-se sobre como os cães vivenciaram “sua” guerra e conseguiram suportar a quase total falta de comida e cuidados imposta pela escassez generalizada e pela indife-

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em cujos galhos, na mesma manhã, os pássaros ainda cantavam.” Quando abordamos a questão da estreita relação que, aos olhos do satírico, existe entre a desumanização do ser humano e a redução da natureza ao estatuto de simples instrumento que o homem tem o direito de usar como bem entende, é quase impossível não mencionar também as notáveis afinidades que existiram, sobre esse ponto, entre sua atitude e a de Rosa Luxemburgo. Kraus havia, como ele explica, tropeçado enquanto lia o Arbeiter-Zeitung, em uma das cartas que ela escreveu em 1917 de Breslau, onde estava presa, a Sonia Liebknecht, publicadas três anos depois. Claro que o que ele apreciou e admirou em particular nessa carta não foi apenas a excepcional qualidade literária que ali se revela e cuja importância para ele não tinha nada de surpreendente, mas também o profundo amor pela natureza ali expresso, bem como a compaixão diante do sofrimento que o ser humano é capaz de infligir em sã consciência a alguns dos outros habitantes que nela vivem, em particular aos animais que são obrigados a servi-lo, às vezes reduzidos pura e simplesmente à escravidão. Para Rosa Luxemburgo, como para Kraus, a ligação entre o que ela descreve em sua carta e o que a guerra engendrou – ou talvez simplesmente revelou – é mais ou menos óbvia. Quando a indignada observadora pergunta ao soldado, que brutaliza ferozmente um animal exausto obrigado a arrastar uma carga claramente pesada demais para suas forças, se ele não tem nenhuma piedade dos animais, a resposta fala por si: “Ninguém tem piedade de nós, humanos”, respondeu ele com um sorriso mau, e começou a bater mais forte.2 O que se expressa aqui é a propensão que facilmente as vítimas podem ter a exercer uma forma de vingança contra outras vítimas ainda mais frágeis do que elas e mais incapazes de se defender. Sobre os animais tratados dessa forma (búfalos trazidos da Romênia), Rosa Luxemburgo diz em sua carta: “Eles são espancados de forma terrível antes que o ditado ‘Vae victis’ também lhes possa ser aplicado. [...] Só em Breslau há uma centena desses animais; além disso, acostumados com os ricos prados romenos, eles passam a receber uma parca e miserável ração. São explorados descaradamente, puxam cargas sem limite e muitas vezes sucumbem a esse trabalho”. Estamos falando aqui dos vencidos da guerra, muito facilmente esquecidos e que certamente receberam, acreditamos, muito menos piedade do seu destino do que outros. O que Rosa Luxemburgo conseguiu enxergar por trás dos acontecimentos e

rença por parte da espécie supostamente “superior” que os condenou à servidão e os privou de todos os tipos de direitos, por assim dizer: “Atualmente, os cães são atacados de diversas formas, especialmente nos jornais de domingo, por ‘roubar’ comida dos homens. Essas críticas são infundadas. Abstraindo completamente o fato de que eu daria com muito mais boa vontade um pouco de comida a um cachorro do que o faria a qualquer jornalista, uma coisa que sei é que a maioria dos homens sempre tem mais comida do que a maioria dos cães, os quais nem por isso guerreiam entre si nem são responsáveis pelo estado de coisas, cuja culpa incumbe aos homens. Pois, embora possa haver casos isolados em que um cachorro roube comida de um homem, há muitos casos em que um homem se vinga devorando o cachorro. O inverso jamais ocorreu. [...] Talvez pelo fato de que a carne de uma espécie cujos membros lutam entre si com gases venenosos seja repulsiva para a espécie melhor”. Kraus era da opinião de que “o testemunho único em seu gênero de humanidade e de poesia” que constitui a carta de Rosa Luxemburgo deveria aparecer em todos os livros escolares, entre Goethe e Claudius, e os jovens leitores deveriam ser informados de que “o corpo que envolveu uma alma de tamanha magnitude foi abatido a coronhadas de fuzil”.4 Seria possível dizer, parece-me, que certas passagens da resposta de Kraus à carta da “Sra. Von X-Y”, como a que segue, também mereceriam ser incluídas nos livros escolares: “A humanidade que considera o animal um ser amado tem mais valor do que a bestialidade que zomba disso e brinca com a ideia de que um búfalo não fica ‘particularmente’ espantado por ter de puxar uma carroça em Breslau e levar pancadas com o cabo de um chicote. É esse tipo de espírito repugnante que faz esses senhores da Criação e suas damas dizerem, ‘desde a mais tenra idade’, que o animal não sente nada, tão desprovido de sensações quanto seu proprietário, pela simples razão de que ele não foi dotado com a mesma porção de arrogância e não é capaz de expressar seus sofrimentos na mesma linguagem de que este último dispõe”.5 Os protestos de Rosa Luxemburgo e Kraus se opõem diretamente a uma visão do mundo animal que, no que lhe concerne, pouco sabe além de incitar a espécie humana a se inspirar em seu exemplo para reaprender a dureza, a falta de misericórdia e a crueldade que são supostamente as leis básicas da vida. Trata-se de aceitar mais facilmente a ideia de que a natureza impõe a todos os viventes a

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luta permanente, a subjugação dos inferiores e a eliminação dos inaptos. Como diria Hitler, o mundo animal não tem, como o dos homens, a possibilidade e os meios de tentar impedir a ação das leis da natureza, que de toda forma acabam sempre vencendo, mais cedo ou mais tarde: “Na natureza, o que não tem força vital perece por si mesmo; somente o homem cultiva aquilo que porta fraqueza vital”.6 É, pois, imperativo e urgente, para nossa espécie, concordar finalmente em substituir a humanidade pusilânime e sentimental que se exerce essencialmente na proteção e na promoção artificiais dos fracos por outra forma de humanidade, mais viril e mais conforme à maneira como as coisas se passam no mundo dos seres vivos em geral, que é chamado em Mein Kampf de “a humanidade da natureza”: “O homem pode desafiar por algum tempo as leis eternas da vontade de conservação contínua; porém a vingança chega, mais cedo ou mais tarde. Uma espécie mais forte expulsará as fracas, pois o impulso de vida em sua forma última sempre quebrará os laços ridículos de uma dita humanidade das formas singulares, para substituí-la pela humanidade da natureza, que aniquila a fraqueza para dar lugar à força”.7 Assim se expressa uma transposição para o mundo animal de algumas das características mais detestáveis, porém frequentemente também das mais específicas, do mundo humano em si. Tentar pelo menos não ser mais bestial ou mais celerado do que os animais poderia muito bem, nessas condições, constituir um progresso considerável para o homem. Há talvez algo mais a aprender com eles além de insensibilidade e crueldade. Uma humanidade capaz de se comportar de maneira humana para com os animais e de tratá-los como iguais presta mais serviços a si mesma do que aquela que os trata quase como um material do qual ela se serve. A questão aqui formulada era, aos olhos de Kraus, suficientemente importante para que ele a retomasse muitas vezes com insistência. Em Hunde, Menschen, Journalisten [Cães, humanos, jornalistas], ele reproduz muitos trechos de diversos autores que se expressaram de maneira positiva e amigável ou, ao contrário, abertamente hostil ou negativa sobre a questão dos direitos dos animais e do dever de humanidade que temos em relação a eles. Como era de esperar, coube a Schopenhauer, a quem deu um lugar bastante privilegiado, a honra de ter dado o exemplo que deveríamos tentar seguir nesse assunto. E é a Spinoza, cuja posição Schopenhauer já havia contestado radicalmente, que cabe o papel de vilão da história.


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A concepção defendida pelo autor da Ética é, de fato, que o estatuto dos animais não é de modo algum o de congêneres e mesmo eventualmente de companheiros com os quais possamos eventualmente manter relações de natureza social, e sim de instrumentos que temos o direito de utilizar mais ou menos como quisermos, em função de nossas necessidades e de nossos interesses: “À parte os homens, nada conhecemos de particular na natureza que possa nos conferir algum prazer espiritual ou com o qual possamos ter laços de amizade ou algum tipo de relacionamento social. Logo, o que se encontra na natureza, à parte os homens, a norma de nossa utilidade não exige que o conservemos, mas nos aconselha a conservá-lo para usos diversos, a destruí-lo ou a adaptá-lo por todos os meios ao nosso uso”.8 Não pode haver para nós, portanto, nenhuma obrigação real de garantir o bem-estar e a conservação dos animais e dos seres vivos em geral, na medida em que eles dependem de nós, direta ou indiretamente, para sua existência, pois a questão de saber se devemos ou não tentar conservá-los depende na verdade apenas do uso, vantajoso ou não, que podemos fazer deles se escolhermos mantê-los vivos. Schopenhauer atribui a concepção que Spinoza defende a esse respeito, a seus olhos incompreensível e aberrante, à persistência da influência da Bíblia em seu espírito, em particular do relato do Gênesis – “Deus disse: ‘Faça-se o homem à nossa imagem e semelhança, e que ele governe os peixes do mar, os pássaros do céu, os animais, todas as feras e todos os insetos que rastejam sobre a terra’” (Gênesis, 1:26) – e da tradição judaica ou judaico-cristã. É precisamente essa a questão sobre a qual se debruçam as últimas páginas de O mundo como vontade e como representação: “Spinoza não podia se afastar do judeu: quo semel est imbuta recens servabit odorem [a argila conservará por muito tempo o perfume de que tenha sido um dia impregnada] (Horácio, Epístolas, I, 2, v. 69). O que há de decisivamente judeu nele e que, junto com o panteísmo, é o mais absurdo e simultaneamente horrível é seu desprezo pelos animais, nos quais vê apenas coisas destinadas ao nosso uso e às quais recusa qualquer direito”.9

QUANDO A “ESCÓRIA” SE AGITA DE DESPUDOR Em um complemento posteriormente adicionado ao que havia escrito em Parerga und Paralipomena sobre o mundo animal e sobre a relação que mantemos com ele, Schopenhauer retornou a essa questão e enfatizou o ponto: “O animal, no essencial e no ponto principal, é o mesmo que nós

somos: a diferença reside apenas no acidente, o intelecto, e não na substância, que é a vontade. O mundo não é uma obra de má qualidade e os animais não são um produto fabricado para nosso uso. [...] Não é apenas a verdade, mas igualmente a moral que está do nosso lado. [...] O maior benefício das ferrovias é que elas poupam a milhões de cavalos de trabalho sua lamentável existência”.10 A última frase relaciona o advento do reino universal da máquina à condição miserável à qual um número considerável de animais se viu reduzido por culpa do homem, mas para apontar precisamente um dos raros aspectos do primeiro que pode ser considerado positivo. Esse também é um ponto sobre o qual Kraus poderia sentir-se relativamente próximo de Schopenhauer, pois ele também está convencido de que a maneira como o ser humano se transformou em adorador e escravo da máquina tem algo a ver com a pouca consideração que passou a nutrir pelas outras espécies e pela vida em geral, e com o tipo de tirania impiedosa que faz reinar sobre uma parte do mundo animal. Pode parecer um pouco estranho que, no verão de 1916, momento em que a guerra, arrastando-se havia quase dois anos, atingira um grau extremo na intensidade dos combates e na perda desproporcional de vidas humanas, Kraus retorne com tanta insistência sobre a questão do respeito que é devido aos animais e da violência e atrocidades que a guerra os obriga também a suportar. Mas ele empenhava-se em convencer seus leitores de que a humanidade estaria totalmente errada em imaginar que poderia tratar esse problema como quase insignificante. Quando investigamos o que tornou possível uma catástrofe como a da Primeira Guerra Mundial, não se pode esquecer de considerar certo número de características constitutivas e de fatores essenciais, contra os quais a social-democracia não encontra muito mais razões para se insurgir do que seus oponentes da burguesia e que inclusive ela não considera realmente dignos de preocupação. Kraus pensa em coisas com as quais seria melhor, justamente, tentar acabar, em vez de se propor a retomá-las, ampliando-as e acelerando-as: tudo aquilo que tenha a ver com o produtivismo e o consumismo desenfreado, a exploração indiscriminada e desmedida dos recursos naturais, a indiferença em relação ao meio ambiente e à degradação que as atividades humanas, sua vontade de poder e sua avidez aparentemente ilimitada impõem-lhe cada vez mais, a falta de consideração pelos animais e a ignorância deliberada e obstinada do risco

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de que, sob o pretexto de melhorar continuamente as condições de vida de nossa espécie, acabemos por tornar problemática e acabar impossibilitando a preservação da vida das outras e da vida em geral etc. Kraus argumenta que é sobre questões desse tipo que um partido que se diz revolucionário deveria mostrar-se muito mais revolucionário do que a social-democracia. Mas o que o impede de sê-lo é também, infelizmente, em grande parte, o interesse que as próprias pessoas que ela defende têm, compreensivelmente, na continuação do processo que deveria tentar, se possível, reduzir e até interromper. Não é preciso procurar alhures a razão pela qual mesmo aqueles que em princípio estão mais bem posicionados para desejar a mudança possam ser impedidos simultaneamente de realmente desejá-la e até mesmo determinados a lutar contra aqueles que podem ser tentados a buscar impor tal mudança. Quando refletimos, como já havia feito Kraus, sobre esse tipo de situação, não podemos nos surpreender que, em uma questão como a do aquecimento global, por exemplo, cuja urgência se torna realmente extrema, a humanidade atual esteja provavelmente condenada até o fim, se houver um fim, a tentar fazer coexistir a proclamação de que a catástrofe é quase certa e que mudanças radicais são absolutamente indispensáveis com a busca por todos os meios possíveis e imagináveis de evitá-las e contentar-se com medidas que permanecem, em sua maior parte, quase simbólicas e às vezes francamente irrisórias. Isso não pode, é claro, ser motivo para considerar que, em comparação com um problema como esse, as questões de justiça social e igualdade não sejam primordiais ou estejam até se tornando mais ou menos secundárias. Obviamente, não é o que Kraus pensava; e o que ele teria desejado e esperado em vão da social-democracia era que ela se mostrasse, a respeito dos dois tipos de questão – que não podem ser tratadas de forma completamente independente uma da outra –, menos conciliadora e muito mais revolucionária. A ameaça bem real que representa para a humanidade o preocupante aprofundamento da injustiça e da desigualdade é mais um assunto de grande atualidade sobre o qual Kraus enxergou muito mais longe do que a maioria de seus contemporâneos. Em sua resposta à Sra. Von X-Y, Kraus estabelece uma conexão direta entre a maneira como ela se expressa a respeito de Rosa Luxemburgo e a aprovação fundamental que pessoas como ela deram à guerra. Seria preciso que ao lado da carta de Rosa Luxemburgo fosse publicada também,

nos livros didáticos, “a carta dessa megera, a fim de inculcar na juventude não só o respeito pela grandeza da natureza humana, mas também o repúdio diante de sua baixeza”. Essa é uma das razões pelas quais Kraus expressa abertamente o desejo de que o comunismo ainda tenha uma vida suficientemente longa, para ao menos impedir a corja de que ele fala de desfrutar serenamente dos benefícios conquistados e dormir tranquilamente: “Que Deus o conserve como uma ameaça constante acima daqueles que possuem bens e que, para protegê-los, gostariam de enviar todos os outros para o front da fome e da honra patriótica, embalados pelo consolo de que os bens materiais não são os bens supremos. Que Deus o guarde para que essa escória já agitada de despudor não se torne ainda mais despudorada, para que aqueles que são os únicos a ter acesso ao prazer e pensam que a humanidade que lhes serve já teve bastante amor após a terem infectado com sífilis tenham pelo menos seu sono perturbado por um bom pesadelo”.11 A “escória” de que ele fala tem hoje motivos melhores do que nunca para acreditar que ganhou a guerra contra os pobres, e realmente o fez quase por W.O. Ela pode, como ele disse, agitar-se mais uma vez de despudor e manifestar a mesma propensão a pregar sermões a suas vítimas, dar-lhes lições de serenidade e sabedoria e explicar-lhes que elas não têm nenhuma razão para sentir ódio ou revoltar-se contra os supostos responsáveis por seu infortúnio.  *Jacques Bouveresse  é filósofo. 1   Verwandlungen”, Die Fackel, Viena, n.462471, out. 1917, p.171. 2   “ Lettre de Rosa Luxemburg à Sonia Liebknecht” [Carta de Rosa Luxemburgo a Sonia Liebknecht]. In: “Les Guerres de Karl Kraus” [As guerras de Karl Kraus], Agone, n.35/36, 2006, p.258. 3   Edward Timms, Karl Kraus Apocalyptic Satirist, Culture and Catastrophe in Habsburg Vienna [A sátira apocalíptica de Karl Kraus, cultura e catástrofe na Viena dos Habsburgos], Yale University Press, New Haven e Londres, 1986. 4   “Vorlesungen (mit dem Brief Rosa Luxemburgs)” [Leituras (com a carta de Rosa Luxemburgo)], Die Fackel, n.546-550, jul. 1920, p.5. 5   “As guerras de Karl Kraus”, op. cit. 6   Adolf Hitler, Monologe im Führerhauptquartier 1941-1942, notas de Heinrich Heim, editado por Werner Jochmann. 7   Adolf Hitler, Mein Kampf, publicado por Christian Hartmann, Thomas Vordermayer, Othmar Plöckinger, Roman Töppel, Instituto de História Contemporânea, Munique-Berlim, 2016. 8   Ética, Parte IV, apêndice, cap. XXVI. In: Spinoza, Œuvres complètes [Obras completas], Paris, Gallimard, 1954. 9   Arthur Schopenhauer, Le Monde comme volonté et comme représentation [O mundo como vontade e como representação], Presses Universitaires de France, Paris, 1966. 10  Arthur Schopenhauer, Senilia, Gedanken im Alter [Senilia, pensamentos de um homem idoso], editado por Franco Volpi e Ernst Ziegler, Darmstadt, Wissenschaftliche Buchgesellschaft, Darmstadt, 2011. 11  “As guerras de Karl Kraus”, op. cit.


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WALTER BENJAMIN 80 ANOS DEPOIS

Um intelectual antifascista A atualidade da reflexão benjaminiana parece inegável hoje, quando o mundo passa por uma nova rodada de ascensão da extrema direita POR FABIO MASCARO QUERIDO*

fascismo ao poder. Na visão benjaminiana, o modo como a esquerda hegemonicamente interpretou a ameaça fascista, em nome do progresso contra a barbárie, deixou uma avenida aberta para o avanço da extrema direita. Afinal, tal representação “progressista” da história deitava suas raízes e fundamentos filosóficos na burguesia iluminista. A mesma classe que, no entreguerras, não hesitou em chancelar o governo totalitário da vida, a “exceção” inevitável à preservação da “norma” (burguesa). Daí a conhecida provocação de Max Horkheimer aos democratas de ocasião, segundo a qual se não for para falar de capitalismo é melhor nem falar do fascismo. Nesse sentido, enfrentar o fascismo em nome do progresso seria algo como, mutatis mutandis, lutar contra o capitalismo em nome do liberalismo. O fascismo é expressão moderna do progresso, forma de “revolução passiva” adequada ao avanço do capitalismo contra a ameaça comunista. Longe de ser o resultado de uma mera regressão irracionalista, embora também o seja, o fascismo é a razão burguesa em sua dimensão mais violenta, reacionária, “mitológica”. É por isso que, para Benjamin, como escreveu na 11ª das “teses” de 1940, “não há nada que tenha corrompido tanto o operariado alemão quanto a crença de que ele nadava com a correnteza”. É essa crença que explica, depois de consumada a derrota, o “assombro”, a perplexidade paralisante típica dos que, seguros de sua superioridade moral, se desesperam ante o desmentido da História em que tanto confiavam. É o “assombro com o fato de que os acontecimentos que vivemos no século XX ‘ainda’ sejam possíveis”, como se eles não fossem possíveis senão no século XX, quando o progresso deu vazão a seus impulsos mais destrutivos.

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a noite do dia 26 de setembro de 1940, Walter Benjamin fez seu derradeiro gesto político e intelectual: sob ameaça da perseguição nazista, da qual buscava escapar, o filósofo ingeriu uma dose fatal de morfina, em Port-Bou (Catalunha). Para Benjamin, num momento em que o beco parecia sem saída, o suicídio apresentou-se como o último ato de resistência à apropriação fascista. Marginal e outsider, Benjamin tornou-se, depois de morto, um ícone, um “monumento de cultura”, para utilizar um de seus termos consagrados, não sem lembrar que, como ele havia escrito nas “teses sobre o conceito de história”, poucos meses antes do suicídio, todo “monumento de cultura” carrega também um “monumento de barbárie”. Pois bem: é nessa intersecção entre cultura e barbárie que o pensamento de Benjamin pode ser compreendido hoje, se quisermos livrá-lo do “conformismo” que busca se apoderar de seu legado. Pois, se há um Benjamin que ainda nos fala, este é o Benjamin que nos advertira que o “progresso”, longe de aplacar a fúria da barbárie, proporciona a ela novas possibilidades, mesmo quando a história parece estar a nosso favor. O fascismo estava – e está – aí para mostrar. Foi o fascismo, portanto, o principal adversário político de Benjamin, o que salienta o caráter algo espantoso, ainda que compreensível, de sua ausência no rol das principais referências utilizadas pela esquerda para a apreensão crítica do atual avanço mundial da extrema direita. Compreensível porque, quando pensa no fascismo, Benjamin pensa sobretudo na melhor forma de combatê-lo, razão pela qual sua ênfase recai na problematização das tomadas de posições antifascistas da própria esquerda (social-democrata ou stalinista), esquerda cujo otimismo histórico a deixou em maus lençóis no momento de enfrentar a ameaça da catástrofe. Para Benjamin, é a dinâmica da luta de classes que, sob condições determinadas, define a história. Assim, se não é a principal responsável, os caminhos tomados pela esquerda e pelo movimento das classes subalternas também explicam, para o bem ou para o mal, o processo que levou o

BENJAMIN E O ANTIFASCISMO HOJE A atualidade da reflexão benjaminiana parece inegável hoje, quando o mundo passa por uma nova rodada de ascensão da extrema direita. Tanto mais porque, de novo, a reação de parcela expressiva das esquerdas vem se resumindo à invocação da “norma”: da razão, do progresso e, na

atual pandemia global, da ciência e dos especialistas. No Brasil, em particular, em função do período lulista, essa reivindicação da norma ganha ares de nostalgia em relação a um passado recente em que a história parecia enfim estar caminhando no bom sentido. Assim, é como se o bolsonarismo, essa reação protofascista ao avanço lulista, não fosse senão o retorno do recalque reacionário e irracionalista que, latente na sociedade brasileira, reagiu ao salto progressista. Não por acaso, depois do golpe de 2016 e da catástrofe de 2018, muito se falou em “volta do atraso”, como se o único horizonte possível, e desejável, fosse a defesa das instituições e dos especialistas contra a ameaça autoritária, enquanto esta, por sua vez, não hesita em reivindicar a soberania popular como caução de legitimidade para o atropelo das regras democráticas. O ponto é que são os limites dessa institucionalidade, seu déficit democrático, que explicam, ao menos em parte, o tipo de reação social e política que vem se produzindo desde 2013 e que não precisaria ter tomado o rumo que tomou. Defender as “instituições” (o “direito” do “Estado democrático”) contra as investidas autoritárias é uma coisa. Tornar essa defesa o horizonte de expectativa das forças sociais e políticas transformadoras é outra. Para dizer como Benjamin, não há nenhuma norma do progresso a ser reconquistada, em contraposição à exceção fascista, já que esta é produto bastardo daquela. Daí a necessidade de os dominados desconfiarem das garantias do progresso. Do ponto de vista dos oprimidos, a “exceção” e a “norma” não são dois polos inconciliáveis: elas se encruzam conforme as possibilidades da dominação em cada presente determinado. É preciso, portanto, escreveu Benjamin, “chegar a um conceito de história que corresponda a essa verdade. Nesse momento, perceberemos que nossa tarefa é instaurar um verdadeiro estado de exceção; com isso, nossa posição na luta contra o fascismo ficará mais forte. Este se beneficia da circunstância de que seus adversários o afrontem em nome do progresso, considerado como uma norma histórica”.

Num país como o Brasil, em que “o progresso é uma desgraça, e o atraso, uma vergonha”, como escreveu certa vez Roberto Schwarz, o alerta benjaminiano parece ainda mais certeiro. Quando nos colocamos do lado do progresso, relegando aos adversários ou inimigos o papel de retardatários que, inconformados com a marcha da história, reagem de modo agressivo e autoritário, deixamos de bandeja ao fascismo o manejo do passado. Se não passa é porque esse passado se atualiza no presente, tornando-se a aparente exceção da norma. “Instaurar um verdadeiro estado de exceção”, nesse sentido, implica a elaboração de um projeto hegemônico em torno dos interesses e valores dos oprimidos, em oposição à “norma” (o capitalismo) da qual se originou a “exceção” fascista. Para Benjamin, a chave para isso estava na política, lócus por meio do qual se torna possível construir coletivamente um novo horizonte de expectativas, para além da defesa mais necessária dos escombros da institucionalidade. Muitas vezes, a lei pode até estar ao nosso lado, mas é do conjunto das relações sociais que depende seu funcionamento hegemônico. É na sociedade, portanto, notadamente na capacidade das classes subalternas de se projetarem politicamente como um novo poder instituinte, que se joga o destino do país e do mundo. Deixada a si mesmo, a “correnteza” do progresso nos levará à barbárie, sob a norma ou a exceção. Não por acaso, disse Benjamin, “antes que a centelha chegue à dinamite, é preciso que o pavio que queima seja cortado”. E ele só será cortado se lograrmos, desde já, avançar na construção de uma nova exceção, quer dizer, de outro mundo tão aparentemente improvável quanto necessário, antes que o poço se revele um abismo. É nessa frágil mas resiliente esperança que nosso presente se encontra com aquele de Benjamin, exatamente oitenta anos depois de seu suicídio.

*Fabio Mascaro Querido  é professor do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Unicamp.


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E OS JORNAIS VENDERAM O PÚBLICO AOS ANUNCIANTES

Da loja à revista Em dois séculos, a economia de mercado produziu um novo tipo de humano: o consumidor. Mas como a família autossuficiente do século XVIII, que possuía alguns objetos úteis, transformou-se em um depósito onde milhares de coisas são empilhadas? Foi necessário forjar um imaginário do zero e, nisso, a imprensa desempenhou um papel decisivo POR ANTHONY GALLUZZO*

tiam. Essas visões novas afetaram profundamente as populações, que podiam a partir daquele momento projetar-se em experiências desconhecidas e alimentar sonhos despertos. O que as pessoas compartilhavam então não era mais apenas a terra que habitavam e as palavras que trocavam cara a cara, mas também o que liam e o que viam. Assistimos, assim, a uma nacionalização dos temas de conversa. A atualidade, os folhetins, as amenidades, os catálogos e os livros escolares “sincronizaram” as representações e deram forma a uma consciência e a uma memória coletivas.

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A

história da sociedade de consumo pode ser compreendida como a da multiplicação das imagens de mercadorias. Desenvolvendo-se sem parar desde o século XIX, a imagética de massa aniquilou a autossuficiência psicológica das anteriores. Ela permitiu à mercadoria conquistar os imaginários por meio de sua presença virtual cotidiana. Jornais, catálogos, revistas, litografias, cinema: as novas mídias colocaram progressivamente os ocidentais numa atitude de espectadores. Ensinaram às populações o prazer de ver e a vontade de consumir. Educaram as pessoas para a mercadoria, fazendo desta um símbolo universal, uma linguagem comum, um fato natural que parece sempre ter existido. Ao longo de todo o século XIX, os comerciantes fizeram circular massas crescentes de “papéis”: cartas, litografias, catálogos, que possibilitaram familiarizar as populações com suas marcas e produtos. Mas, além dessa disseminação de imagens, foi a aliança com o mundo da imprensa que proporcionou aos comerciantes um poderoso meio de se instalar nas consciências. Os jornalistas se revelaram formidáveis profissionais da fabricação de públicos, capazes de criar o comum, de impor de modo cotidiano às massas seus assuntos de conversa. Quando os proprietários dos jornais compreenderam que sua prosperidade provinha menos do fato de vender papel aos leitores, e sim público aos anunciantes, a imprensa começou a trocar sua capacidade de mobilizar a sociedade por dinheiro; encontrou seu modelo econômico, a base de sua massificação. Os melhores periódicos do começo do século XIX sobreviveram graças a alguns milhares de assinaturas; os grandes títulos dos anos 1890 e 1900 venderam milhões de exemplares. O jornal ilustrado aboliu as distâncias por meio da justaposição das imagens do mundo. O presente não era mais somente o aqui e o agora: oferecia a possibilidade de pensar no que os homens de longe viviam e sen-

“Um historiador que só confiasse nesses recortes sociais poderia acreditar que todos os norte-americanos de então eram ricos e distintos” UM PASSEIO INVERTIDO Ao mesmo tempo, o impresso retirou os comerciantes das limitações das vitrines para fazê-los penetrar nos lares. Podemos também considerar os catálogos, jornais e coleções de litografias como lojas de papel, suportes de uma captação virtual. Em suas páginas, os catálogos materializam os produtos com ilustrações detalhadas, equivalentes a réplicas das prateleiras do comércio; fazemos compras a todo momento, ficando em casa, e sem gastar nada. É um passeio invertido: não são mais as pessoas que vão à mercadoria, é a imagem da mercadoria que desfila sob seus olhos. Se a imagem possibilita aos produtos ocupar os olhares e se instalar nos imaginários, é por ser, em si, ao mesmo tempo uma mercadoria e o veículo de outras mercadorias. Essa dupla natureza da imagem teve seu arremate com o surgimento, no fim do século XIX, do magazine (“revista”, em francês), termo derivado de

magasin (“loja”), e que significava em sua origem o entreposto de mercadorias. Sua denominação não deixava dúvidas: le magazine, c’est le magasin chez soi [a revista é a loja dentro de casa]. À mobilidade física das mercadorias no entreposto – a loja – correspondia a mobilidade visual e mental das mercadorias e de suas imagens na revista. Essa foi a primeira mídia de massa inteiramente dedicada ao consumo. Esse tipo de periódico surgiu e se massificou primeiro nos Estados Unidos, no fim do século XIX. Entre 1890 e 1905, as publicações mensais passaram de 18 milhões para 64 milhões de exemplares por edição.1 A Ladies’ Home Journal, título pioneiro e campeão de todas as categorias, passou de uma tiragem de 100 mil exemplares em 1884 para 1 milhão em 1904. Na esteira dos Estados Unidos, diversos países ocidentais adotaram a fórmula da revista feminina com mais ou menos velocidade. Na França, os primeiros periódicos do gênero – Votre Beauté e Marie-Claire – apareceram nos anos 1930. Como em uma grande loja, os leitores das revistas passeavam pelas seções. Edward Bok, redator-chefe da Ladies’ Home Journal, também trabalhou a analogia: “Uma revista [magazine] de sucesso é bastante similar a uma loja [magasin] de sucesso: deve entreter com o frescor e a variedade de suas mercadorias, para atrair o olhar e aproveitar o patrocínio de seus consumidores”.2 Regularmente preenchidas, as seções da revista, bem como as prateleiras das lojas, celebravam a abundância e a variedade dos produtos; atraíam a circulação com uma capa colorida e sedutora – como uma vitrine. Tratava-se de um fluxo: cada nova edição tornava a anterior obsoleta, divulgando novas modas e novos objetos. Lia-se em 1954 na Marie-Claire: “Nossa atualidade é a de sempre, a incansável atualidade da vida que muda a cada mês. Que muda seu chapéu, seu buquê de flores e sua tigela de frutas”.3 O consumidor/leitor acostuma o olhar, faz que este se torne sensível às mu-

danças de forma, de cores e de disposição. Ele acaba por lamentar a obsolescência de suas compras passadas e desenvolve uma necessidade imperiosa de renovação. A partir do fim do século XIX, as receitas publicitárias se tornaram essenciais: a imprensa vendeu seus leitores a seus anunciantes. Inscreveu-se de fato em uma relação de subordinação e dependência em relação aos comerciantes. A revista precisava criar em suas páginas uma atmosfera editorial favorável, ou seja, um conteúdo temática e filosoficamente compatível com as mercadorias promovidas pela publicidade. Foi assim que, nas revistas femininas, os artigos passaram a se dedicar sobretudo à alimentação, à moda e aos cosméticos. Encontrávamos, próximo a um artigo ressaltando a importância de uma boa higiene corporal, uma propaganda de sabonete; ao lado de uma reportagem sobre um desfile de moda, o anúncio de uma grande marca de roupas. O conteúdo editorial da revista era um ambiente ideal no qual o anúncio se encaixava para multiplicar o poder persuasivo e simbólico. A rentabilidade e a perenidade da revista dependiam em grande parte dessa “capacidade de acolhimento”. Esta se degradava se a revista desenvolvia uma proposta contrária às preocupações comerciais. Projetada para o longo prazo, essa submissão da redação ao comercial tomou formas às vezes muito explícitas: a militante feminista Gloria Steinem revelou em 1990, por exemplo, que a fabricante de sabonetes e detergentes Procter & Gamble proibiu as revistas norte-americanas de colocar suas propagandas em todas as edições que falassem mal das religiões ou tratassem de temas como sexualidade, drogas, controle de armas de fogo ou aborto.4 Ao contrário da publicidade televisiva, que interrompe os programas, a das revistas se insere na continuidade visual da mídia. Conteúdos editoriais e propagandas escrevem juntos um discurso que entrega aos leitores um ideal no qual se projetar, de modo a criar ilusões, um sonho desperto. O que chamamos hoje de “publieditorial” apareceu há quase um século e meio: nos anos 1880, a loja Le Bon Marché mandou publicar na L’Illustration artigos laudatórios com esse propósito.5 Outra prática – mais insidiosa – que reforça a confusão editorial/publicidade era o compartilhamento de estilos visuais graças aos artistas que, dos anos 1890 aos 1930, produziam ilustrações ao mesmo tempo para a imprensa e para os anunciantes. Os personagens que povoavam então as capas das


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bres, os guetos, o trabalho, a imigração, os afro-americanos, os sindicatos, as greves ou ainda “as ideias socialistas e anarquistas, e as ideias do livre mercado propriamente ditas, na qualidade de sistema articulado”.7 O mundo das revistas era um espaço sem fratura, nem material nem ideal. Como constatou com ironia o historiador Roland Marchand: “Um historiador que só confiasse nesses recortes sociais poderia acreditar que todos os norte-americanos de então eram ricos e distintos”. Quando as classes populares apareciam nos “recortes sociais” vendidos pelas revistas, só eram retratadas em um papel secundário e funcional: “Os recortes ilustravam um mundo onde motoristas, empregadas e comerciantes serviam a seus patrões com deferência e felicidade”.8 Os recortes sociais não exibiam a vulgaridade dos novos ricos, mas ofereciam à admiração uma classe superior que tinha tudo da aristocracia: limpeza, bons modos e distinção. Os serviçais eram onipresentes nas imagens publicitárias norte-americanas dos anos 1920 e 1930, em uma época em que a mão de obra doméstica se tornava, no entanto, cada vez mais rara, mesmo nos lares abastados. Em sua análise das propagandas da época, Marchand revela que 85% das domésticas representadas eram “jovens, brancas, magras e com características similares às de suas patroas”. Na verdade, a maioria dos serviçais nos Estados Unidos na época eram mulheres negras, predominantemente mais velhas. A última função da revista consistia em vencer as resistências à sociedade mercantil. Desse modo, as ficções publicadas nas revistas do fim do século XIX valorizavam compor-

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grandes revistas eram reaproveitados nas propagandas, de tal modo que, quando a Ladies’ Home Journal perguntou a suas leitoras, em 1902, qual tinha sido em sua opinião a melhor ilustração editorial daquele ano, elas elegeram um desenho que era na verdade uma propaganda.6 Porém, o meio mais seguro de um anunciante converter as massas a seus produtos passou a ser editar ele mesmo as publicações que se encarregariam deles. Uma das primeiras revistas femininas francesas, Votre Beauté, foi criada por Eugène Schueller, fundador e dirigente da L’Oréal, a fim de desenvolver a demanda por seus produtos cosméticos. Nos anos 1920, essa revista, que ainda era apenas um suplemento de uma publicação dedicada aos cabeleireiros, divulgou diversos artigos sobre cabelos brancos, descritos como um sinal desagradável de velhice. Esses textos acompanhavam então propagandas para as tinturas capilares. Por meio de ilustrações, reportagens e artigos, a revista preenchia uma função fundamental de figuração: fazia existir práticas, objetos e corpos que, sem ela, permaneceriam desconhecidos por estarem longe e, portanto, invisíveis. Foi por meio das revistas que as mulheres do campo e das cidades pequenas do fim do século XIX puderam se imaginar fazendo compras, observando as múltiplas gravuras que ilustravam as mulheres da burguesia em suas escapadas urbanas. Esse tipo de representação normalizou a prática das compras antes mesmo que ela se tornasse material e economicamente possível para a maioria das leitoras. De modo similar, as revistas deram vida, pela imagem, a objetos que eram muito caros e muito novos para existir no cotidiano. Ao aprendizado das formas somava-se a inculcação de um vocabulário específico, vetor de novas normas e preocupações. Por exemplo, nas revistas do começo do século XX, artigos e propagandas começaram a difundir termos oriundos da biologia e da farmacologia, como “antisséptico”, “bactericida”, “microrganismo” e “epiderme”, a fim de melhor convencer ao uso de produtos de higiene e cosméticos.

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O folhear semanal das páginas nutriu também um imaginário social completamente distante do nível de vida real da população. Analisando o conteúdo das quatro maiores revistas norte-americanas do período – Munsey, Ladies’ Home Journal, Cosmopolitan e McClure –, o professor de Literatura Richard Ohmann destacou uma série de assuntos que jamais foram abordados nelas: os operários, os po-

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A BICICLETA DO DIABO

tamentos compatíveis com o mercado e contestavam as normas sociais hostis ao consumo. Por exemplo, nos anos 1890, a bicicleta suscitava reticências quando era proposta às mulheres: segundo os conservadores, ela incitaria a masturbação e comprometeria o equilíbrio familiar. A propaganda sozinha não bastava para conter o pânico moral. Ao longo de toda a década de 1890, as revistas empreenderam um trabalho de normalização, multiplicando as belas histórias sobre duas rodas.9 Nesses textos, a bicicleta possibilitava às jovens de boa família escapadas para encontros, para finalmente se casarem e fundarem uma família. Propagandas vendendo os méritos de marcas específicas acompanhavam as ficções, as quais contribuíram para neutralizar seu caráter transgressivo e tecer no imaginário coletivo uma série de associações positivas. A narrativa acabou quando o objeto encontrou legitimidade. Desse modo, a partir dos anos 1900, as histórias de bicicletas se tornaram mais raras nas revistas.  *Anthony Galluzzo é professor de Ciência de Gestão na Universidade de Saint-Étienne, França. Autor de La Fabrique du consommateur. Une histoire de la société marchande [A fábrica do consumidor. Uma história da sociedade mercantil], La Découverte, Paris, 2020. 1   M ary Ellen Waller-Zuckerman, “‘Old Homes, in a City of Perpetual Change’: Women’s Magazines, 1890-1916” [“Velhos lares, em uma cidade em perpétua mudança”: revistas femininas, 1890-1916], The Business History Review,

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v.63, n.4, Cambridge University Press, 1989; e “Marketing the Women’s Journals, 1873-1900” [Marketing nos diários femininos, 1873-1900], Business and Economic History, v.18, Cambridge University Press, 1989. E dward Bok, The Americanization of Edward Bok. The Autobiography of a Dutch Boy Fifty Years After [A americanização de Edward Bok. A autobiografia de um garoto holandês cinquenta anos depois], Charles Scribner’s Sons, Nova York, 1920. M arie-Claire, n.1, 1954, p.40-41. Citado por Alexie Geers, Le Sourire et le tablier. La construction médiatique du féminin dans “Marie-Claire” de 1937 à nos jours [O sorriso e o avental. A construção midiática do feminino na Marie-Claire de 1937 aos dias de hoje], Éditions de l’EHESS, Paris, 2016. G loria Steinem, Sex, lies and advertising [Sexo, mentiras e publicidade], Ms. Magazine, Arlington (Virgínia), jul.-ago. 1990. Michael B. Miller, Au Bon Marché, 1869-1920. Le consommateur apprivoisé [No Bon Marché, 1869-1920. O consumidor domesticado], Armand Colin, Paris, 1987. Carolyn L. Kitsch, The Girl on the Magazine Cover. The Origins of Visual Stereotypes in American Mass Media [A garota na capa da revista. As origens dos estereótipos visuais na mídia de massa norte-americana], The University of North Carolina Press, Chapel Hill, 2001. R ichard Ohmann, Selling Culture. Magazines, Markets and Class at the Turn of the Century [Vendendo cultura. Revistas, mercados e classe na virada do século], Verso, Londres/ Nova York, 1996. R oland Marchand, Advertising the American Dream. Making Way for Modernity, 19201940 [Propaganda do sonho norte-americano. Abrindo caminho para a modernidade, 1920-1940], University of California Press, Berkeley, 1985. Ellen Gruber Garvey, The Adman in the Parlor. Magazines and the Gendering of Consumer Culture, 1880s to 1910s [O publicitário na saleta. Revistas e a criação da cultura consumidora, dos anos 1880 aos 1910], Palgrave Macmillan, Nova York, 1996.


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CINEMA

A geopolítica de acordo com James Bond Impecável modelo de homem branco ocidental em sua máxima performance, defensor indestrutível do mundo livre: é isso que o agente 007 parece simbolizar sem falhas. Ao longo de sessenta anos e 25 filmes, no entanto, o espião “britânico” por vezes escapa de clichês e cruza fronteiras inesperadas... POR ALIOCHA WALD LASOWSKI*

la rede de rádio e televisão CBS, com o ator Barry Nelson; depois, em 1967, para o cinema, em uma paródia assinada por John Huston com a dupla David Niven/Peter Sellers; e, enfim, para o 21º filme da saga, em 2006, com Daniel Craig, último ator que desempenhou o papel principal. O romance Casino Royale coloca em cena o personagem 007, agente secreto do MI6, serviço de inteligência britânico – poucos anos depois, o escritor John Le Carré também pôs seus espiões em ação, mas com um estilo totalmente diferente... Para criar seus heróis, Fleming se inspirou em dois gêneros tradicionais: por um lado, a investigação policial norte-americana do período entre-

guerras, a narrativa hard-boiled de detetive particular “duro na queda”, da qual O falcão maltês (1930), de Dashiell Hammett, é o principal modelo; por outro lado, o romance inglês de aventuras geopolíticas, que, como Os 39 degraus (1915), de John Buchan, se dedica a evocar a ameaça exercida no país pelos complôs de perigosas sociedades secretas. Em doze romances e duas coletâneas de novelas, Fleming impôs seu (super-) herói, aventureiro destemido e sedutor irresistível. James Bond tinha tudo para ser o símbolo perfeito da Grande Albion [Grã-Bretanha], do ponto de vista da upper class (classe alta). Ex-aluno do Eton College, escola da elite fundada

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cone pop e glamour da cultura moderna, o personagem de James Bond foi criado por Ian Fleming em 1953, em Goldeneye, sua residência jamaicana. Jornalista da agência de notícias Reuters, posteriormente agente de câmbio de um banco de investimentos, Fleming nasceu em 1908 e foi recrutado pelo serviço de inteligência britânico durante a Segunda Guerra Mundial. Inspirando-se em sua própria experiência como agente secreto, começou a escrever um romance de espionagem. Escrito em dois meses e publicado por um editor londrino, Casino Royale, primeiro episódio literário da saga, foi adaptado em 1954 para a televisão norte-americana pe-

Sean Connery durante as filmagens de “Os diamantes são eternos” em Amsterdam

pelo rei Henrique VI, foi condecorado com os títulos de Comendador da Marinha e Cavaleiro da ordem militar de Saint-Michel e Saint-Georges. O filme A serviço secreto de Sua Majestade revela suas insígnias: ele descende do baronete de Peckham, sir Thomas Bond, morto em 1734, e sua divisa familiar em latim é Orbis non sufficit (“O mundo não basta”). Seu nome é uma junção de Bond Street, rua da alta costura e das galerias de arte em Londres, e St James’s Street, que sai da Rua Piccadilly, onde se encontra o mais antigo clube de gentlemen [clubes privados, que datam do século XVIII, frequentados pela classe alta] da capital. A primeira cena em que ele aparece na tela, em 007 contra o satânico Dr. No, acontece no Cercle des Ambassadeurs, um cassino em Londres. Chique e desenvolto, circulando entre estratagemas e efeitos especiais, com um smoking em geral impecável, Bond parece um clichê inabalável, mundano e jogador. No entanto, cada um de seus intérpretes dá seu toque pessoal, ligado a seu próprio percurso: assim, com o escocês Sean Connery, que veio da classe operária, inicialmente marinheiro, entregador ou fazendo trabalhos de construção, 007 representa o sucesso e o êxito. Ao contrário, o inglês Roger Moore adota o estilo aristocrata. Seu humor excêntrico desdenha seu espírito de sério, ele ri de si mesmo e das convenções. O galês Timothy Dalton americaniza o personagem. Seu 007 corresponde aos códigos do liberalismo econômico e à globalização dos anos 1980... O último intérprete, Daniel Craig, conjuga as proezas físicas e a melancolia inédita para um herói sombrio e frágil... Mas, em todas as suas variantes, Bond permanece a personificação da integridade do sujeito britânico e da lealdade à Coroa. Em suas missões, ele desfralda várias vezes a bandeira do Reino Unido, em um paraquedas em 007 – O espião que me amava, em um minijato em 007 contra Octopussy ou num submarino em 007 – Na mira dos assassinos. Ele leva com bravura pelo mundo inteiro as cores da Grã-Bretanha, durante ações inscritas na situação geopolítica da época. No momento em que estreou o primeiro filme, em 5 de outubro de 1962, o Kremlin deu início à operação militar Kama, com o envio de submarinos soviéticos em direção a Cuba, nas proximidades imediatas da Flórida. O navio norte-americano Yerkon detectou essa atividade e logo advertiu o Pentágono. Enquanto o filme conta que os serviços secretos britânicos protegem o Cabo Canaveral de uma ameaça nuclear proveniente da ilha caribenha do Dr. No, a realida-


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o MI6. Mas ele acompanha o espírito da época. Desde 1967, entre a Guerra do Vietnã e o movimento hippie, ele muda muito pouco. Sua identidade se abre ao que vai se chamar mais tarde de alteridade em Com 007 só se vive duas vezes, cujo roteiro foi escrito por Roald Dahl, autor em especial do romance A fantástica fábrica de chocolate: levado pelo movimento do mundo e a aceitação da multiplicidade de culturas, ele entra em uma poética de hibridização e autotransformação. Longe do Big Ben e do Tâmisa, ele se metamorfoseia em cidadão pós-colonial, sensível à cultura japonesa. Revelando-se titular de um diploma de línguas orientais da Universidade de Cambridge, James Bond parte para Tóquio. Hábil conhecedor das artes asiáticas, ele impressiona o chefe dos serviços secretos japonês, Tigre Tanaka, por seu conhecimento do saquê quente daiginjo, sua familiaridade com os provérbios nipônicos, sua naturalidade no novo ambiente. Sua metamorfose se dá em três tempos: em um palácio enfeitado de flores, sua transformação é, em primeiro lugar, física. Estirado sobre uma mesa de operação, antes de vestir um quimono dourado, com o corpo, os cabelos e as sobrancelhas modificados, ele abandona seu ser britânico e “torna-se” japonês. A segunda etapa é atlética e mental: o herói abandona a sofisticação ocidental dos estratagemas de alta tecnologia de Q – o responsável pela seção de pesquisa e desenvolvimento do MI6 – e aprende a manejar armas tradicionais, sansatukan shureido e shuriken. Enfim, a última etapa é cultural e amorosa. Bond se casa em um templo seguindo estritamente seus costumes: ele se une a Kissy Suzuki, após a leitura da prece, o canto e o ritual de purificação. Vestido com roupas de pescador, ele se instala com sua esposa na ilhota de Matsu, no centro de um arquipélago

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de se aproxima dele: a crise dos mísseis se dá em Cuba entre Nikita Kruchev e John Fitzgerald Kennedy. Com uma pequena variação, a ficção dá o principal papel à diplomacia britânica e contrabalança, na tela, o declínio de Londres no cenário internacional. De fato, o cenário em que opera Bond é um universo em que a Grã-Bretanha tenta conservar seu prestígio, apesar de sua perda de poder e até mesmo do fim de seu império, e de ter sido relegada ao plano secundário pelos Estados Unidos, do qual se torna auxiliar. Bond realça a imagem da política da Grã-Bretanha diante de um mundo que se transforma: em 1962, ano do primeiro filme, a conferência das Bahamas e os acordos de Nassau selam a “atlantização” e a filiação da Grã-Bretanha aos Estados Unidos. Novo duro golpe, sete anos depois da demissão de Winston Churchill: a dissolução da jovem Federação das Índias Ocidentais, que reunia a maior parte das colônias nas Antilhas, a Jamaica, as Ilhas Cayman e Trindade e Tobago. Nos filmes, o engajamento de Bond a serviço da Inglaterra durante a Guerra Fria e tendo como pano de fundo a independência de suas colônias é uma resposta à dúvida que dominava o coração dos britânicos, próxima do julgamento do ex-secretário de Estado norte-americano Dean Acheson: “A Grã-Bretanha perdeu um império e ainda não encontrou um papel”. Bond, um homem distinto e irônico, consolou o Reino Unido por ter perdido sua influência... Se em 60 anos e 25 filmes ele representa o modelo fantasioso do sucesso das normas ocidentais de 1960 a 2020, ele continua a evoluir assim. Certamente, permanece um emblema “britânico”, o que mostra essencialmente seu chapéu, que ele usa desde o início, desde sua entrada na Universal Exports Ldt., empresa comercial que serve de cobertura para

vulcânico. Em 007 – O espião que me amava (1977), ele se transforma em beduíno e se lança em uma silenciosa travessia do deserto. Em 007 – Marcado para a morte (1987), ele anda a cavalo, usando um turbante dos mujahidin, nas montanhas afegãs, e muda o próprio nome. Usando uma carteira de identidade falsa, ele se torna soviético e passa a se chamar Jerzy Bondov. Fleming se inspirou na imagem de espiões famosos, como o elegante Sidney Reilly, que nasceu na Ucrânia e foi um eficaz agente anticomunista, o aviador canadense William Stephenson, o muito chique Wilfred Dunderdale, amante de belas jovens e membro da alta sociedade, e ainda o oficial naval Patrick Dalzel-Job, conhecido por um ato, de grande repercussão, de desobediência humanista durante a guerra e de quem Fleming parece ter se tornado próximo. Mas é possível que seu verdadeiro inspirador não tenha sido inglês, e sim sérvio: o enigmático dândi Dusko Popov, que nasceu em 1912 na província de Voivodina, amante das bebidas e de cassinos, de hotéis luxuosos e de carros esporte. O playboy Popov foi um agente duplo iugoslavo, que usava o codinome Tricycle. Durante a guerra, ele informou os ingleses sobre as manobras dos alemães e inclusive tentou avisar John Edgar Hoover sobre o ataque iminente a Pearl Harbor, mas o chefe do FBI não acreditou. Fleming o encontrou em 1941, no cassino Estoril, em Portugal, e ficou extremamente impressionado com seu sangue-frio ao blefar durante uma partida de bacará, o que pode tê-lo levado a fazer de Popov o modelo de seu Bond. Em sua autobiografia, Popov considera isso um “insulto à sua inteligência”... Como salientava Umberto Eco, é difícil negar que Fleming “professe um anticomunismo visceral”1 em seus romances. No entanto, os fil-

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mes são surpreendentes desse ponto de vista. Na realidade, Bond é levado a se aproximar mais dos serviços secretos soviéticos que dos norte-americanos. Ao longo do tempo, a cumplicidade geopolítica entre Londres e Moscou torna-se clara. Bond prefere trabalhar com os soviéticos e ir além do antagonismo clássico da Guerra Fria: ele se associa à major Anya Amasova, da KGB, em 007 – O espião que me amava, à espiã Pola Ivanova, em 007 – Na mira dos assassinos (1985) e ao general Gogol, em 007 contra Octopussy (1983). A KGB e o MI6 são aliados, enquanto o aliado “natural”, a CIA, foi muitas vezes ridicularizada, com as características do grosseiro, indiscreto e meio estúpido Félix Leiter. A oposição entre realidade e ficção às vezes é flagrante: em 1984, sob o pretexto de defender os interesses de seu país, Ronald Reagan deflagrou uma guerra sanguinária na Nicarágua contra o governo socialista sandinista. No mesmo período, nas telas, em 007 – Na mira dos assassinos, James Bond era condecorado com a ordem de Lenin pelas mãos do general Gogol, o chefe da KGB. Essa nova amizade anglo-soviética permitiu lutar contra o inimigo de todos os povos, a organização criminosa internacional Spectre. Ao deixar de lado as disputas estratégicas de seu campo para se aliar com o inimigo do mundo livre a fim de enfrentar um perigo global e comum, Bond fixa a eficácia de seu soft power: a grandeza britânica sabe ir além da defesa de seus próprios interesses para se erguer em defesa da humanidade...  *Aliocha Wald Lasowski  é autor de Les Cinq Secrets de James Bond [Os cinco segredos de James Bond], Max Milo, Paris, 2020. 1   U mberto Eco, “James Bond, une combinatoire narrative”, Communications, n.8, Paris, 1966.

C OLEÇÃ O

CLÁSSICOS DA LITERATURA UNESP Cinco volumes chegam para integrar sua biblioteca com os principais cânones da literatura nacional e universal, para seu deleite e passeio pelos grandes textos que marcaram a humanidade. Confira também os títulos já publicados: Quincas Borba, de Machado de Assis; Histórias extraordinárias, de Edgar Allan Poe; A relíquia, de Eça de Queirós; Contos, de Guy de Maupassant; Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto.

Urupês Eugénie Grandet Honoré de Balzac

Monteiro Lobato

O falecido Mattia Pascal Luigi Pirandello

Macunaíma Mário de Andrade

Oliver Twist Charles Dickens

www.editoraunesp.com.br


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MISCELÂNEA

livros

internet

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s ataques nucleares a Hiroshima e a Nagasaki, acontecimentos únicos até hoje na história, já foram registrados e contados tantas vezes e, ainda assim, não parecem existir narrativas ou retratos suficientes que deem conta de sua violência. Jean-Paul Alègre, dramaturgo francês publicado pela primeira vez no Brasil pela Temporal Editora, decidiu somar aos demais seu olhar sobre o acontecimento, mas o fez por um caminho pouco usual. Após uma visita a Hiroshima, em 2012, Alègre encantou-se com as paisagens que encontrou lá, em especial com o rio que corta a cidade, o Otagawa. De volta à França, trabalhou em uma peça cujos temas seriam a produção da bomba nuclear, bem como as particularidades de vidas que foram interrompidas com o bombardeio, e escolheu fazer isso colocando o rio, chamado apenas de “Ota”, como personagem central. A centralidade de Ota está justamente em seu ponto de conexão entre as tramas desenhadas.

O VÍRUS COMO FILOSOFIA/A FILOSOFIA COMO VÍRUS: REFLEXÕES DE EMERGÊNCIA SOBRE A COVID-19 Andityas Soares de Moura Costa Matos e Francis García Collado, GLAC Edições

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ara além da biopolítica, no livro a pandemia é captada de modo a demonstrar a urgência de uma filosofia que enfrente as narrativas vinculadas ao fundamento bioárztquico de nossas sociedades, em que se escancaram as portas do fascismo biotecnológico. A bioarztquia , segundo os autores, é aquele poder microfísico que controla vida e morte por meio da razão médico-farmacêutica neoliberal. Entre inúmeros textos que abordam a pandemia hoje, os autores são originais porque desenvolvem um pensamento crítico que não se limita a compreender esse evento apenas enquanto crise sanitário-econômica alheia às políticas e epistemologias que se sustentam na produção de cadáveres. Assim, confrontam as

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EU, OTA, RIO DE HIROSHIMA Jean-Paul Alègre, Temporal Editora

As cenas se alternam entre o núcleo político norte-americano, que começa a construção da bomba após uma carta enviada por Albert Einstein divulgando a possibilidade, e o núcleo japonês, focado em especial na troca de cartas entre dois irmãos: ela, em Hiroshima; ele, em Tóquio. Entre esses dois grupos está Ota, personificado. Numa estrutura dramática que aproxima as tragédias clássicas do teatro moderno, o rio tem papel ora de coro, ora de narrador: comenta os acontecimentos da cena anterior e nos prepara para as cenas que virão. Mas sua função dramática não é apenas conexão. Ota vive a vida da cidade, conhece seus moradores e, por isso, sabe que é alvo. Ainda assim, reconhece-se eterno, mesmo diante do colapso. Suas águas sempre seguem para o mar. Em dado momento, a vida dos irmãos e do rio é unida à explosão nuclear calculada com desconcertante frieza. E já não há muito mais o que contar, senão os relatos daqueles que, por estarem longe do marco zero, sobreviveram, ainda que vítimas de amputações ou radioatividade. No final, a peça atinge seu ápice dramático e os atores dão voz às vítimas, criando testemunhos em retalhos que apontam para a violência desmedida que ainda deve ser muito contada – e encenada. [Raquel Toledo] Professora, pesquisadora e produtora de conteúdo sobre literatura.

leituras filosóficas da pandemia de pensadores como Agamben, Butler e Preciado, demonstrando que as transformações causadas pelo vírus Sars-CoV-2 deslocam as estruturas tradicionais, apontando para a necessidade de experimentar filosofias que não são emolduráveis em leituras que abandonaram a arte de viver em nome de imperativos médico-políticos assentados em modelos matemáticos e epidemiológicos a serviço do mercado. Isso não significa que a morte não seja um fato objetivo, mas que a atual pandemia está produzindo subjetividades que, seja no modelo europeu (soberano), asiático (algorítmico) ou latino-americano (necropolítico), se comprometem com o abandono da vida em nome da mera existência (re)produtiva. Ao retomarem a afirmação de Spinoza segundo a qual ainda não sabemos o que pode um corpo, Matos e Collado devolvem ao centro do debate filosófico o que foi retirado do uso comum humano e se perguntam como realizar uma filosofia da vida em vez de uma filosofia sobre a vida. [Joyce Karine de Sá Souza] Doutora em Direito & Justiça pela UFMG e professora universitária.

NOVAS NARRATIVAS DA WEB Sites e projetos que merecem seu tempo EVOLUÇÃO DA TERRA Onde estava localizada sua cidade no planeta Terra há 200 milhões de anos, quando África e América ainda eram um só continente? Nesse site interativo você digita o nome de seu município e escolhe o período em que quer voltar no tempo. Ou simplesmente vai observando como os continentes atuais se formaram e quais animais existiam no globo nesse período. Ótimo para crianças aprenderem sobre movimentos tectônicos terrestres. E quem sabe uma demonstração visual para conversar com terraplanistas... dinosaurpictures.org/ancient-earth#0 RURALÔMETRO Um termômetro feito pela equipe de reportagem da ONG Repórter Brasil mede como cada deputado federal atuou em leis importantes para o meio ambiente, indígenas e trabalhadores rurais. Quanto pior o impacto dos projetos que o parlamentar votou ou propôs, mais alta é sua temperatura. A “febre ruralista” indica comportamento negativo nessas áreas. Além da temperatura, os filtros permitem descobrir quais deputados têm multa no Ibama, violaram a lei trabalhista e deixaram de recolher o INSS. Os filtros revelam ainda quais receberam financiamento de empresas autuadas por infrações ambientais ou flagradas por trabalho escravo. Alguns deputados foram à justiça para impedir que seu nome estivesse no Ruralômetro, veja só. Todos os dados usados pela Repórter Brasil são públicos. ruralometro.reporterbrasil.org.br VEIAS DA CIDADE Sensores baratos, embutidos nos carros, fazem parte de uma experiência do MIT para monitorar o meio ambiente nas cidades. O Senseable City Lab criou o projeto City Veins, que analisa a qualidade do ar, por exemplo, com base em automóveis que circulam pelas ruas. A proposta é organizar de várias formas uma rede de sensores de baixo custo que possam ser espalhados em larga escala pelas cidades, gerando dados abertos e colaborativos, com custos muito menores do que um sistema centralizado teria, seja de desenvolvimento ou manutenção. No site, é possível ver uma animação dos dados gerados em algumas cidades, como Amsterdã, Curitiba e Nova York. senseable.mit.edu/city-veins/

[Andre Deak] Sócio do Liquid Media Lab, professor de Jornalismo e Cinema da ESPM, mestre em Teoria da Comunicação pela ECA-USP e doutorando em Design na FAU-USP.


By_Lu☆Ch@Ki OUTUBRO 2020

CANAL DIRETO

Le Monde Diplomatique Brasil

SUMÁRIO LE MONDE

diplomatique

Capa

“Capa e matéria de capa maravilhosas e muito necessárias neste momento! Parabéns!” Lucianne Vasconcelos, via Instagram

02

O dilema habitual dos nacionalistas

03

Editorial

04

A “República Pentecostal” da Nigéria

“O Conto da Aia africano.” Janilson Correia, via Facebook

Uma Internacional reacionária “Fundamentalismo misturado com interesses próprios, ignorância e hipocrisia. Eis a fórmula macabra destes tempos.” Andrea Versiani, via Instagram “Na mesma esteira dos velhos cristãos ‘católicos’, os protestantes ‘fundamentalistas pentecostais’ vêm aperfeiçoando e universalizando a exploração da fé como instrumento econômico bastante rentável.” Lyon Chagas, via Instagram

Na Alemanha, hospitais bem rentáveis “Enquanto o sistema for capitalista, o mundo será assim. Teremos problemas de investimentos em saúde em todos os países, pois o lucro vem primeiro que a vida.” Fabiana da Mata, via Instagram

Falsas independências Por Serge Halimi O Brasil está queimando Por Silvio Caccia Bava Capa

Estagiária Gabriela Bonin

Quem tem medo da sociedade civil? Por Denise Dourado Dora

Revisão Lara Milani e Maitê Ribeiro

A desigualdade no Brasil é um projeto Por Charles Alcantara

Gestão Administrativa e Financeira Arlete Martins

14

A luta do medo contra o ódio

17

Periferias de São Paulo

18

A contestada reeleição do presidente Lukashenko

Bolívia, crônica de um fiasco midiático Por Anne-Dominique Correa Os Estados Unidos tomados pela loucura Por Thomas Frank Uma geração emergente de cientistas sociais e produtores culturais Por Teresa Caldeira Na Bielorrússia, a juventude urbana na linha de frente Por Loïc Ramirez, enviado especial Geopolítica dos protestos bielorrussos Por Hélène Richard Uma longa querela intelectual

O homem pré-histórico também era uma mulher Por Marylène Patou-Mathis Quem controlará as tecnologias da internet

A batalha geopolítica do 5G Por Evgeny Morozov

27

Um sistema de pensões desconectado das carreiras

28

No país do cedro

Participe de Le Monde Diplomatique Brasil: envie suas críticas e sugestões para diplomatique@diplomatique.org.br As cartas são publicadas por ordem de recebimento e, se necessário, resumidas para a publicação.

30

Desastre da “Grande Guerra”

Os artigos assinados refletem o ponto de vista de seus autores. E não, necessariamente, a opinião da coordenação do periódico.

34

E os jornais venderam o público aos anunciantes

36

Cinema

Capa: © Renato Caetano

33

38

Editora-web Bianca Pyl

Democracia e degradação institucional Por Leonardo Avritzer

12

24

Editor Luís Brasilino

Editor de Arte Cesar Habert Paciornik

Uma fake news em escala planetária

22

DIRETORIA Diretor da edição brasileira e editor-chefe Silvio Caccia Bava Diretores Anna Luiza Salles Souto, Maria Elizabeth Grimberg e Rubens Naves

Gênero sob ataque e a erosão da democracia Por Flávia Biroli

.

“Eu não fazia ideia desse fenômeno. Vivemos em um país onde o neopentecostal já está bem difundido, mas é interessante ver como ainda há lugares em que o movimento está ascendendo. Bem curioso isso.” Wesley Ribeiro, via Instagram

BRASIL

Ano 14 – Número 159 – Outubro 2020 www.diplomatique.org.br

“Que capa fantástica! Tirei um tempo para me atentar a todos os detalhes. Estão de parabéns!” Juan Munhão, via Instagram “Professores de história, artes e literatura têm um material ótimo para uma aula incrível. Que capa incrível!” Noemi de Souza, via Instagram

39

Por uma aposentadoria realmente universal Por Anne Debregeas O Líbano, há dois séculos em busca de uma nação Por George Corm O que significa tratar os animais com humanidade? Por Jacques Bouveresse Walter Benjamin, 80 anos depois

Um intelectual antifascista Por Fabio Mascaro Querido Da loja à revista Por Anthony Galluzzo A geopolítica de acordo com James Bond Por Aliocha Wald Lasowski Miscelânea

Assinaturas assinaturas@diplomatique.org.br Tradutores desta edição Carolina M. de Paula, Frank de Oliveira, Lívia Chede Almendary, Rita Grillo e Wanda Brant Conselho Editorial Adauto Novaes, Amâncio Friaça, Anna Luiza Salles Souto, Ariovaldo Ramos, Betty Mindlin, Claudius Ceccon, Eduardo Fagnani, Heródoto Barbeiro, Igor Fuser, Ivan Giannini, Jacques Pena, Jorge Eduardo S. Durão, Jorge Romano, José Luis Goldfarb, Ladislau Dowbor, Maria Elizabeth Grimberg, Nabil Bonduki, Raquel Rolnik, Ricardo Musse, Rubens Naves, Sebastião Salgado, Tania Bacelar de Araújo e Vera da Silva Telles. Assessoria Jurídica Rubens Naves, Santos Jr. Advogados Escritório Comercial Brasília Marketing 10:José Hevaldo Rabello Mendes Junior Tel.: 61. 3326-0110 / 3964-2110 jh@marketing10.com.br Le Monde Diplomatique Brasil é uma publicação da associação Palavra Livre, em parceria com o Instituto Pólis. Rua Araújo, 124 2º andar – Vila Buarque São Paulo/SP – 01220-020 – Brasil Tel.: 55 11 2174-2005 diplomatique@diplomatique.org.br www.diplomatique.org.br Assinaturas: Leila Alves assinaturas@diplomatique.org.br Tel.: 55 11 2174-2015 Impressão D’ARTHY Editora e Gráfica Ltda. CNPJ: 01.692.620/0001-00, Parque Empresarial Anhanguera - Rod. Anhanguera Km 33 - Rua Osasco, 1086, Cep: 07753-040 - Cajamar - SP

LE MONDE DIPLOMATIQUE (FRANÇA) Fundador Hubert BEUVE-MÉRY Presidente, Diretor da Publicação Serge HALIMI Redator-Chefe Philippe DESCAMPS Diretora de Relações e das Edições Internacionais Anne-Cécile ROBERT Le Monde diplomatique 1 avenue Stephen-Pichon, 75013 Paris, France secretariat@monde-diplomatique.fr www.monde-diplomatique.fr Em julho de 2015, o Le Monde diplomatique contava com 37 edições internacionais em 20 línguas: 32 edições impressas e 5 eletrônicas. ISSN: 1981-7525


By_Lu☆Ch@Ki

Debates

na TV

LE MONDE

diplomatique

BRASIL

Apresentação  Silvio Caccia Bava

21h45 .

toda Terça-feira

canal 44.1 Grande São Paulo

Assista a todos os debates em:

youtube/diplobrasil


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