National Geographic Portugal #234 (20.09.2020)

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N AT I O N A L G E O G R A P H I C . P T

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SETEMBRO

2020

A ERA DOS

ROBOTS

5

603965 000006

00234

N.º 234 MENSAL €4,95 (CONT.)

Viveremos melhor com máquinas inteligentes?

LEÕES-MARINHOS DA C A L I F Ó R N I A

AV E S T RU Z E S , A S T U TA S SOBREVIVENTES

G DA N S K : L E GA D O D E S O L I DA R I E DA D E




N AT I O N A L G E O G R A P H I C

SETEMBRO 2020

S U M Á R I O

2

32

48

A revolução da robótica está iminente e as máquinas assumem um número cada vez maior de funções há muito desempenhadas por seres humanos, mudando a nossa vida. Tudo indica que ainda não estamos preparados para um mundo muito mais automatizado e impessoal.

A National Geographic Society lançou o projecto Mares Prístinos em 2008 para explorar e preservar os oceanos. A iniciativa já promoveu 30 expedições e contribuiu para a criação de 22 reservas. Agora, identificam-se áreas cruciais que deverão ser salvaguardadas no futuro.

Esqueça o estereótipo da ave limitada: a avestruz é uma sobrevivente astuta num mundo de predadores e um prodígio da evolução. Dotada de força e estratégias de ataque suficientes para dissuadir predadores, a avestruz é também uma das aves mais rápidas do globo.

Os robots já chegaram

A força da protecção

O mundo das avestruzes

T E X T O D E D AV I D B E R R E B Y

T E X T O D E K E N N E D Y WA R N E

T E XTO D E R I C H A R D C O N N I F F

F OTO G R A F I A S D E S P E N C E R L OW E L L

F OTO G RA F I A S D E E N R I C SA L A

F OTO G RA F I A S D E K L AU S N I G G E

SPENCER LOWELL


S E C Ç Õ E S

R E P O R TA G E N S

64

À espera de Gdansk

A Polónia é inspirada pela cidade que, há 40 anos, viu nascer o movimento Solidariedade, mas Gdansk já era um bastião do liberalismo desde os tempos da Liga Hanseática. T E XTO D E V I C TO R I A P O P E

A S UA F OTO VISÕES E D I TO R I A L 3 Q U E STÕ E S Jeff Goldblum N A T E L E V I SÃO P RÓX I M O N ÚM E RO

F OTO G R A F I A S D E J U ST Y N A MIELNIKIEWICZ

76

Futuro menos gelado

A vida cultural e económica da região dos Grandes Lagos é moldada por invernos gelados. À medida que o aquecimento transforma a tradição em lama, a sensação de perda vai aumentando. T E X TO D E A L E JA N D R A B O RU N DA F OTO G R A F I A S D E A MY S AC K A

96

Leão-marinho da Califórnia

Numa área marinha protegida do mar de Cortés, no México, uma colónia residente de leões-marinhos prospera e muda a percepção dos cientistas sobre a predominância do macho alfa nos haréns desta espécie.

Na capa Esta mão robótica, construída com materiais flexíveis para proporcionar um desempenho preênsil mais delicado, foi desenvolvida no Laboratório de Robótica e Biologia da Universidade Técnica de Berlim, na Alemanha. SPENCER LOWELL

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T E XTO E F OTO G RA F I A S D E J OÃO RO D R I G U E S

104

Luz em lugares estranhos

As paisagens impressionantes da Terra podem tirar o fôlego, mas, para Reuben Wu, isso não era suficiente. Este fotógrafo considerou que faltava algo aos majestosos glaciares, montanhas e praias do planeta. T E X TO D E DA N I E L STO N E I M AG E N S D E R E U B E N W U

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GRANDES MULHERES

JÁ NAS BANCAS


V I S Õ E S

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A SUA FOTO

N O R B E R T O E S T E V E S Em Castro Laboreiro, um pequeno grupo de cabras-montesas dirige-se ao seu refúgio, trepando

pelas rochas íngremes. O grupo estranhou o intruso, mas permitiu que o autor as acompanhasse durante algumas horas.

A N T Ó N I O C A I A D O A fotografia de natureza tem destas coisas: o autor ansiava por captar um bico-grossudo e surgiu, no

seu campo de visão, esta alvéola-branca. Com apetite voraz, ingeriu com gulodice todos os tenébrios que conseguiu apanhar.


E D U A R D O S A M PA I O Em Al-Qusair, no Egipto, o autor, que também é biólogo, fazia trabalho de campo. “Sempre que

passava um grupo de lulas, ficava hipnotizado com a panóplia de cores iridescentes que estes animais exibem”, conta.




V I S Õ E S

Portugal

Em Julho, o Centro e Sul de Portugal foram afectados por uma noite épica de descargas furiosas. Lisboa parou durante alguns minutos para sentir a tensão. Junto do Museu de Arte, Arquitectura e Tecnologia, criou-se um anfiteatro natural para presenciar os raios sobre o rio Tejo. CARLOS ANTUNES




Portugal

Seis milhas a sul de Lajes do Pico, nos Açores, um grupo de golfinhos-pintados reunia cerca de quinhentos animais deslocando-se contra a ondulação. Um dos animais saltava mais alto do que os outros. Na natureza como na vida, uns navegam por obrigação; outros fazem-no com uma pitada de aventura. PEDRO MADRUGA



Portugal

O trânsito do cometa Neowise foi avistado em milhares de posições no hemisfério norte. Na serra da Atalhada, perto de Penacova, as pás dos moinhos de vento contracenam com o colorido das luzes das turbinas eólicas observadas atentamente pelo cometa Neowise. A fotografia foi captada numa noite de Lua Nova. PAULO NABAIS CRUZ


«Acreditamos no poder da ciência, da exploração e da divulgação para mudar o mundo.» A National Geographic Society é uma organização global sem fins lucrativos que procura novas fronteiras da exploração, a expansão do conhecimento do planeta e soluções para um futuro mais saudável e sustentável. NATIONAL GEOGRAPHIC MAGAZINE PORTUGAL

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S E T E M B R O

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ROBÓTICA

EDITORIAL

Conheça as máquinas do nosso futuro

POR SUSAN GOLDBERG

um relacionamento complicado com os robots. Por um lado, aprecia a forma como eles podem realizar trabalhos repetitivos e perigosos. Os robots não precisam de férias ou de seguro médico. E em áreas como a agricultura, onde nem sempre é possível encontrar trabalhadores para as colheitas, os robots podem assumir algumas dessas tarefas. Todavia, a maioria das sondagens assegura que a crescente robotização do planeta faz-nos sentir profundamente desconfortáveis e ameaçados. O Centro de Pesquisa Pew apurou que mais de 80% dos norte-americanos acreditavam que, até 2050, os robots executariam grande parte do trabalho que os seres humanos desempenham agora e cerca de 75% acreditava que a desigualdade económica agravar-se-ia. Obviamente, estas sondagens foram realizadas antes da pandemia. Esta crise levou a que a substituição de pessoas por robots ganhasse outro mérito como medida de distanciamento social e superação da facilidade de contágio. Para a reportagem deste mês, David Berreby correu o mundo a examinar as potencialidades dos robots e descobriu uma confiança crescente neles. “Agora, os robots entregam comida em Milton A H U M A N I DA D E T E M

F OTO G R A F I A D E SPENCER LOWELL

Keynes, em Inglaterra, carregam mercadorias num hospital de Dallas, desinfectam os quartos dos doentes na China e na Europa e vagueiam por parques de Singapura, insistindo junto dos peões para respeitarem o distanciamento social”, escreve. O jornalista encontrou robots a abrirem buracos para instalação de turbinas eólicas, a cortarem alface e até a recitarem textos religiosos no Japão. “É um facto inevitável que vamos ter máquinas, criaturas artificiais, que farão parte da nossa vida quotidiana”, acrescenta Manuela Veloso, investigadora portuguesa sediada na Universidade Carnegie Mellon. “Quando começamos a aceitar robots à nossa volta, como uma terceira espécie, juntamente com animais de estimação e seres humanos, vamos querer relacionar-nos com eles.” Uma terceira espécie? É realmente uma ideia inovadora. Mas ainda não chegámos lá. Até agora, os robots não conseguem igualar a capacidade da mente humana para realizar muitas tarefas, especialmente as inesperadas e ainda não dominam o bom senso… afinal, as competências necessárias para dirigir uma revista! Mas dêem-lhes alguns anos. Até lá, muito obrigado por ler a National Geographic. j

Nesta mão robótica semelhante à mão humana, criada numa universidade de Berlim, os dedos são como balões de ar “inteligentes”. Cheios, de acordo com especificações precisas, podem fechar-se em torno de um objecto com um aperto que é ao mesmo tempo hábil e delicado. No futuro, robots com este tipo de “mãos” poderão manipular mercadorias num armazém ou trabalhar como recepcionistas em parques de diversões.


A revolução da robótica está iminente e as máquinas assumem um número cada vez maior de funções há muito desempenhadas por seres humanos, mudando a nossa vida.

O S __ R O B O T S __ J Á __ C H E G A R A M

Texto de D A V I D B E R R E B Y Fotografias de S P E N C E R L O W E L L


Com um movimento preênsil firme, mas delicado, uma mão robótica do Laboratório de Biologia e Robótica da Universidade Técnica de Berlim segura uma flor com os seus dedos pneumáticos. Progressos recentes permitiram que os robots se aproximassem, mais do que nunca, de imitar as capacidades humanas.

3


Alguns investigadores criaram máquinas que imitam os seres humanos em pormenor, como a Harmony (à direita), uma expressiva cabeça falante que se anexa a uma boneca sexual de silicone e aço fabricada pela Abyss Creations. Outros acreditam que as pessoas se sentem mais à vontade com robots parecidos


com o Curi (à esquerda). Se um robot parecer demasiado humano, a aceitação poderá entrar no “vale da estranheza”, o termo cunhado por Masahiro Mori para definir os nossos sentimentos quando um robot se parece menos com uma máquina aperfeiçoada e mais com um ser humano perturbadoramente diminuído.



Novas tecnologias permitem aos robots lidarem com a mudança constante e as formas irregulares que os seres humanos encontram no trabalho. O Foodly, um robot cooperante desenvolvido pela RT Corporation, utiliza a visão avançada, algoritmos e uma mão preênsil para colocar pedaços de galinha numa caixa.


Se o leitor for como a maioria das pessoas, nunca deve ter conhecido um robot.

MAIS VAI CONHECER. de forte ventania do passado mês de Janeiro na fronteira entre os estados do Colorado e do Kansas (EUA), na companhia de Noah Ready-Campbell. Turbinas eólicas estendiam-se até perder de vista, em fileiras irregulares. À minha frente, vi o buraco que serviria de fundação a mais uma. Uma escavadora abria o buraco, com 19 metros de diâmetro, paredes formando um ângulo de 34 graus e a base nivelada a três metros de profundidade. Empilhando a terra removida num local onde esta não estorve, a máquina está programada para construir outra pilha. Cada movimento executado pela máquina de 37 toneladas exige controlo firme e decisões afinadas. Na América do Norte, um operador destas escavadoras ganha 85 mil euros por ano. No entanto, nesta escavadora, o lugar do condutor apresentava-se vazio. O operador estava no tejadilho da cabina e não tinha mãos. Três cabos pretos serpenteantes ligavam-no directamente ao sistema de controlo da escavadora. Também não tinha olhos nem ouvidos, pois utilizava laser, GPS, câmaras de vídeo e sensores semelhantes a giroscópios que calculam a orientação de um objecto no espaço para supervisionar o trabalho. Noah Ready-Campbell, co-fundador de uma empresa de São Francisco chamada Built Robotics, subiu para a escavadora e levantou a tampa para me mostrar o produto da sua empresa: um dispositivo de 90 quilogramas capaz de executar um trabalho que antigamente era realizado por um ser humano. “É aqui que corre a IA”, disse enquanto apontava para a colecção de placas de circuitos, cabos e caixas de metal que compunham a máquina: esses sensores “dizem-lhe” onde está, as câmaras que lhe permitem “ver”, os controlos transmitem “ordens” à escavadora, os dispositivos de comunicação permitem aos seres humanos monitorizá-la e o processador contém a inteligência artificial, ou IA, que toma as decisões que um operador humano tomaria. “Estes sinais de controlo são transmitidos aos computadores que costumam responder aos manípulos e pedais na cabina.” (Continua na pg. 14) C O N H E C I UM N UM D I A

Um exoesqueleto é uma combinação de sensores, computadores e motores que ajudam um ser humano a fazer trabalho pesado. Braços com ganchos, demonstrados pelo engenheiro Fletcher Garrison, da Sarcos Robotics, podem levantar 90 quilogramas e ajudam carregadores de bagagem nos aeroportos. 8

N AT I O N A L G E O G R A P H I C



O manuseamento de objectos é uma competência essencial para robots que trabalham com pessoas. As mãos humanas são mais sensíveis e ágeis do que as que de qualquer robot, mas as máquinas estão a aperfeiçoar-se. Utilizando dedos insuflados com ar comprimido para imitar o toque suave da mão humana, este robot da Universidade Técnica de Berlim pega numa maçã.



1. DETECTAR

2. SEGURAR

A câmara sente o objecto visado e transmite dados para o software do “cérebro” do robot que transmite instruções à mão.

Ar pressurizado de um compressor activa os dedos, permitindo-lhes enrolar-se ou esticar-se conforme necessário. Os dedos moldam-se em torno do objecto para o segurarem com firmeza.

Foles para o polegar

Fluxo de ar

Pontos de contacto Pontos de contacto mão rígida mão flexível Câmara de ar

Foles para a palma

Accionador leve de silicone por força pneumática

Foles para dedos

Borracha

e ad ar

m

Objecto-alvo

Fibras radiais ajudam o dedo a manter a forma quando insuflado.

ar

O robot identifica a posição, orientação e volume do objecto.

Pressão de ar crescente dobra o dedo.

Borracha com tecido

Ar

A MÃO QUE AJUDA Os responsáveis pela concepção da revolucionária RBO Hand 3, uma mão robótica macia fabricada com materiais flexíveis, estão a trabalhar para lhe dar algo semelhante ao sentido do tacto humano. As especificações incluem sensores capazes de medir o esforço através de resistência eléctrica, bem como a acústica incorporada para monitorizar os pontos onde os dedos entram em contacto com os objectos (ou os seres humanos) e a quantidade de força.

Força

Superfície de contacto

DAS GARRAS AOS TENTÁCULOS A mão humana não é perfeitamente adequada a todas as tarefas manuais. Muitas mãos robóticas são concebidas para executar tarefas especializadas e repetitivas. A concepção de algumas foi inspirada pelo mundo animal.

Pega de vácuo A pega, no seu estado macio, envolve o objecto e depois cria vácuo para o segurar.

Tentáculo preênsil A pega inspirada num polvo, com as suas filas de ventosas, envolve o objecto.


3. MANUSEAR A mão flexível e um polegar oponível permitem ao robot mudar a posição do objecto e executar várias tarefas, como segurá-lo com mais firmeza ou entregá-lo.

Sensores (tubos de silicone cheios de metal líquido) alteram a resistência eléctrica para transmitir a posição dos dedos ao computador.

Libertação Sensor acústico (microfone)

Sensores metais líquidos Polegar oponível

Contacto

Um microfone instalado na câmara de ar do dedo permite ao robot “ouvir” qualquer contacto com o seu ambiente.

Manipulação

4. INTERAGIR Polegar centrado

Polegares oponíveis, semelhantes a humanos, podem aplicar força em múltiplas direcções para um manuseamento mais hábil.

Abas flexíveis Abas macias e flexíveis usam forças electrostáticas para pegarem num objecto frágil.

Garra de alta velocidade Esta mão robótica pode segurar um objecto em cinco centésimos de segundo.

Os robots macios são mais seguros do que os robots rígidos com metal, no que diz respeito ao trabalho com seres humanos. Qualquer impacte ou força capaz de lesionar um humano é reduzido pela suavidade dos materiais.

Mão humanóide Este robot tem sensores ultrassensíveis e mexe-se de modo semelhante à mão humana.

Mão biomimética Imita a mão humana com articulações, ligamentos e tendões de borracha.

MONICA SERRANO; KELSEY NOWAKOWSKI. ARTE: INTERVOKE. FONTES: OLIVER BROCK E STEFFEN PUHLMANN, LABORATÓRIO DE ROBÓTICA E BIOLOGIA, UNIVERSIDADE TÉCNICA DE BERLIM; JACEK SZKOPEK, UNIVERSIDADE DE TECNOLOGIA DE GDANSK


No século XX, quando eu era criança e acalentava esperanças de travar conhecimento com um robot quando crescesse, achava que ele teria forma humana e comportar-se-ia como tal, como o C-3PO de “A Guerra das Estrelas”. Porém, os robots então instalados em fábricas eram diferentes. Hoje em dia, milhões destas máquinas industriais aparafusam, soldam, pintam e executam tarefas repetitivas de linha de montagem. Frequentemente isolados por vedações para manter os trabalhadores humanos em segurança, são aquilo a que a especialista Andrea Thomaz, da Universidade do Texas, tem chamado mastodontes “mudos e brutos”. O dispositivo de Noah Ready-Campbell é diferente. É um novo tipo de robot. Nada tem de humano, mas, apesar disso, é inteligente, competente e móvel. Outrora raros, estes dispositivos concebidos para “viver” e trabalhar com pessoas que nunca conheceram um robot estão a migrar para o quotidiano a um ritmo gradual e constante. Em 2020, os robots já tratam da gestão de stocks e limpam pavimentos no Walmart. Fazem a reposição nas prateleiras e vão buscar os artigos aos armazéns. Cortam alface, escolhem maçãs e até framboesas. Ajudam crianças autistas a socializar e vítimas de AVC a recuperar movimentos. Patrulham fronteiras e, no caso do drone israelita Harop, atacam alvos que consideram hostis. Compõem arranjos florais, oficiam cerimónias religiosas, dão espectáculos de comédia em palco e funcionam como parceiros sexuais. E tudo isso existia antes da pandemia da COVID-19. Subitamente, a substituição de pessoas por robots (uma ideia com a qual a maioria das pessoas discorda, segundo a generalidade das sondagens) parece medicamente sensata, senão mesmo essencial. Agora, os robots entregam comida em Milton Keynes, em Inglaterra, carregam mercadorias num hospital de Dallas, desinfectam os quartos dos doentes na China e na Europa e vagueiam por parques de Singapura, insistindo junto dos peões para respeitarem o distanciamento social. A pandemia permitiu que mais pessoas percebessem que a “automação vai fazer parte do trabalho”, disse-me Noah Ready-Campbell em Maio. “De início, o elemento impulsionador foi a eficiência e a produtividade, mas agora há outro nível que é a saúde e a segurança.” 14

N AT I O N A L G E O G R A P H I C

Mesmo antes de a crise da COVID reforçar a sua relevância, as tendências tecnológicas estavam a acelerar a criação de robots com potencial para afectar as nossas vidas. As peças mecânicas tornaram-se mais leves, mais baratas e mais resistentes. Os componentes electrónicos conseguiram integrar mais capacidade de computação em embalagens mais pequenas. Graças a inovações, os

OS ROBOTS GEREM STOCKS e limpam grandes superfícies. Patrulham fronteiras, celebram cerimónias religiosas

E AJUDAM CRIANÇAS AUTISTAS. engenheiros conseguiram instalar poderosas ferramentas de processamento de dados nos corpos dos robots. O aperfeiçoamento da comunicação digital permitiu manter alguns “cérebros” robóticos num computador externo ou ligar um simples robot a centenas de outros, deixando-os partilhar uma inteligência colectiva, como numa colmeia. Num futuro próximo, o local de trabalho “será um ecossistema de seres humanos e robots trabalhando juntos de modo a maximizar a eficiência”, disse Ahti Heinla, co-fundador da plataforma Skype e actual co-fundador e director tecnológico da Starship Technologies, cujos robots de seis rodas com piloto automático circulam em Milton Keynes e noutras cidades da Europa e dos EUA. “Habituámo-nos a ter máquinas inteligentes que podemos transportar connosco”, acrescentou Manuela Veloso, especialista portuguesa em robótica e inteligência artificial da Universidade Carnegie Mellon. A minha interlocutora pegou no seu telefone inteligente. “Agora teremos de nos habituar a uma inteligência que possui um corpo e que se desloca sem nós.”


Do lado de fora do seu gabinete, os “cobôs” (ou robots cooperantes) da sua equipa deambulam pelos corredores, conduzindo os visitantes e entregando documentos. Parecem iPads montados em suportes com rodas, mas deslocam-se sozinhos e até apanham elevadores quando precisam (emitem um bip e mostram no ecrã aos seres humanos que se encontrem por perto um pedido bem-educado para carregarem nos botões por eles). “É um facto inevitável que vamos ter máquinas, criaturas artificiais, que farão parte da nossa vida quotidiana”, disse Manuela Veloso. “Quando começamos a aceitar robots à nossa volta, como uma terceira espécie, juntamente com animais de estimação e seres humanos, vamos querer relacionar-nos com eles.” Todos teremos de descobrir como fazê-lo. “As pessoas têm de perceber que isto não é ficção científica. Não é algo que acontecerá daqui a 20 anos”, disse a especialista. “Já começou a acontecer.”

V

do seu novo co-colaborador. Durante sete anos, enquanto trabalhava para a Taylor Farms, este homem de 34 anos servia-se de uma faca com 18 centímetros para cortar alface. Dobrando-se pela cintura, em movimentos repetidos, cortava uma alface, desbastava as folhas imperfeitas e punha-a dentro de um caixote. Desde 2016, porém, é um robot que trata do corte. É um equipamento de colheitas com oito metros e meio parecido com um tractor que se desloca de forma constante pelas filas, envolto numa nuvem de vapor gerada pelo jacto de água de alta pressão usado para cortar uma alface sempre que o sensor detecta uma. As alfaces cortadas caem numa correia de transporte inclinada que as transporta até à plataforma do equipamento, onde uma equipa de cerca de vinte operários as separam em diferentes caixotes. Encontrei-me com Vidal Pérez às primeiras horas de uma manhã de Junho de 2019, enquanto ele fazia uma pausa no trabalho, numa plantação de alfaces com nove hectares destinada aos restaurantes de refeições rápidas e mercearias que são clientes da Taylor. A alguns metros de distância, outra equipa trabalhava à moda pré-robótica. “Assim é melhor porque cansamo-nos muito mais a cortar alface com uma faca do que com esta máquina”, disse o meu interlocutor. Sentado no robot, ele orienta os caixotes, rodando-os sobre a correia de transporte. Nem todos os trabalhadores preferem o novo sistema, disse. “Alguns querem I DA L P É R E Z G O S TA

manter aquilo que já conhecem. E outros aborrecem-se por estarem sentados porque estavam habituados a mexer-se constantemente no campo.” A Taylor Farms é uma das primeiras grandes empresas agrícolas da Califórnia a investir em agricultura robótica. “Estamos a passar por uma mudança geracional… na agricultura”, disse-me Mark Borman, presidente da Taylor Farms California, enquanto circulávamos pelo campo na sua carrinha de caixa aberta. Quando os trabalhadores antigos se vão embora, os mais jovens preferem não fazer trabalho duro. As restrições globais aos movimentos de migração transfronteiriça também não ajudaram. A agricultura está a ser robotizada em todo o mundo, acrescentou Mark Borman. “Estamos a crescer e a nossa força laboral está a diminuir. Por isso, os robots oferecem uma oportunidade positiva para ambos.” Foi um refrão que ouvi frequentemente no ano passado de trabalhadores agrícolas e da construção civil, operários fabris e profissionais de saúde: andamos a atribuir tarefas aos robots porque não conseguimos encontrar pessoas que as façam. No parque eólico do Colorado, executivos da Mortenson Company, uma empresa de construção civil que contrata os robots da Built desde 2018, relataram a falta de trabalhadores qualificados na sua indústria. Os robots de construção escavaram 21 fundações no parque eólico. “Os operadores queixam-se e dizem: ‘Olha, lá vêm os assassinos de postos de trabalho’”, disse Derek Smith, director de inovação simplificada da Mortenson. “Mas depois de verem que o robot elimina muitas tarefas repetitivas e eles ainda ficam com muito que fazer, isso muda rapidamente.” Quando a escavadora robótica terminou de escavar o buraco, um ser humano num bulldozzer finalizou o trabalhou e criou rampas. “Neste local, temos 229 fundações e, no essencial, quase todas obedecem às mesmas especificações”, disse Derek Smith. “Queremos eliminar tarefas repetitivas. Assim os nossos operadores podem concentrar-se nas tarefas que implicam mais arte.” O maremoto da perda de postos de trabalho causado pela pandemia não alterou este cenário, asseguraram os fabricantes e utilizadores de robots. “Mesmo com uma taxa de desemprego altíssima, não podemos simplesmente estalar os dedos e preencher postos de trabalho que precisam de competências especializadas porque não temos pessoas com a devida formação”, disse Ben Wolff, presidente do conselho de administração da Sarcos Robotics. (Continua na pg. 20) O S RO B OT S JÁ C H E GA R A M

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Os projectistas moldam cada robot à medida das suas funções e das necessidades das pessoas que trabalham com eles. Com 182 centímetros e 101 quilogramas, o HRP-5P (à esquerda), desenvolvido pelo Instituto Nacional de Tecnologia e Ciência Industrial Avançada do Japão, tem braços, pernas e cabeça e transporta cargas pesadas


em locais de construções e estaleiros. Em contraste, o SQ-2, um robot de segurança (à direita), não tem membros e é bastante discreto, com 130 centímetros de altura e 65 quilogramas. A sua forma incorpora uma câmara de 360 graus, um sistema cartográfico e um computador que lhe permite fazer patrulhas sozinho.


Na Fluidics Instruments, em Eindhoven (à esquerda), um operário trabalha com sete braços robóticos para montar peças para aquecedores. Tal como os robots fabris tradicionais, estas unidades são eficientes e podem produzir mil bocais por hora. No entanto, ao contrário de máquinas mais antigas, adaptam-se depressa a


mudanças nas especificações ou a novas tarefas. Num hospital de Dallas (à direita), os enfermeiros trabalham com Moxi, um robot concebido para aprender e executar tarefas que afastam os enfermeiros dos doentes, como ir buscar material necessário, entregar amostras no laboratório e remover sacos de roupa de cama suja.


A empresa sediada no estado de Utah fabrica exoesqueletos robóticos que se podem vestir como um fato, dando a força e a precisão de uma máquina aos movimentos de um trabalhador. A Delta Air Lines começara recentemente a testar um dispositivo da Sarcos com mecânica de aeronáutica quando a pandemia dizimou as viagens aéreas. Quando conversei com Ben Wolff na Primavera passada, ele estava animado. “Há um abrandamento de curto prazo, mas estamos à espera de mais volume de negócios a longo prazo”, disse. Ben Wolff disse-me que a Sarcos registou um aumento do número de pedidos desde o início da pandemia, com o qual ele não estava a contar. Um fabricante de equipamento electrónico e outro de medicamentos queriam deslocar mercadorias pesadas com menos pessoas. Uma embaladora de carne estava interessada em aumentar a distância entre os seus colaboradores, que trabalhavam em proximidade excessiva. Num mundo agora receoso do contacto humano, não será fácil preencher postos de trabalho de prestação de cuidados a crianças ou idosos. Maja Matarić, cientista informática e da Universidade do Sul da Califórnia, desenvolve “robots de assistência social”, máquinas que dão apoio social em vez de executarem tarefas físicas. Um dos projectos do seu laboratório é um treinador robótico que orienta um utilizador idoso ao longo do seu programa de exercício e depois encoraja-o a sair e a caminhar. “O robot diz: ‘Eu não posso sair, mas por que não vai dar um passeio para depois me contar como foi?’”, contou Maja. O robot é um tronco, cabeça e braços de plástico branco apoiados num suporte de metal com rodas. Os seus sensores e programas informáticos permitem-lhe fazer algumas das tarefas que um treinador humano faria. Visitámos o laboratório de Maja Matarić, um labirinto cheio de jovens em cubículos, trabalhando nas tecnologias que poderão permitir a um robot manter uma conversa num grupo de apoio ou reagir de forma a que um ser humano sinta empatia por parte da máquina. Perguntei à minha interlocutora se os utilizadores ficavam assustados com a ideia de terem uma máquina a tomar conta do avô. “Não substituímos os cuidadores”, disse ela. “Estamos a preencher uma lacuna. Os filhos adultos não podem acompanhar os pais idosos. E as pessoas que cuidam de outras pessoas neste país são mal pagas e subvalorizadas. Até isso mudar, teremos de utilizar robots.” 20

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de ter visitado o laboratório de Maja Matarić, num mundo diferente a 30 quilómetros da universidade, centenas de estivadores manifestavam-se contra os robots. Foi na zona de San Pedro, em Los Angeles, onde gruas de movimentação de contentores pairavam sobre uma paisagem de armazéns, docas e modestas ruas residenciais. Gerações desta comunidade unida trabalharam como estivadores nas docas. A geração actual não gostou de um plano para trazer operadores de carga robóticos para o maior terminal do porto, apesar de essas máquinas já serem comuns em portos de todo o mundo, incluindo na área de Los Angeles. Os estivadores não estão à espera de que as mudanças acabem, disse Joe Buscaino, que representa San Pedro no Conselho Municipal de Los Angeles. San Pedro já passou por outras convulsões económicas, quando as indústrias da pesca, dos enlatados e da construção naval prosperaram e depois desabaram. O problema dos robots, disse Joe Buscaino, é a velocidade a que os empregadores estão a introduzi-los na vida dos trabalhadores. “Há muitos anos, o meu pai percebeu que a pesca iria acabar e, por isso, começou a trabalhar numa padaria. Ele conseguiu fazer a transição. Mas a automação tem a capacidade de extinguir postos de trabalho da noite para o dia.” Há divergências entre os economistas quanto à medida e à forma como os robots afectarão os empregos no futuro. No entanto, muitos peritos concordam num aspecto: alguns trabalhadores terão mais dificuldade em adaptar-se aos robots. “Há provas claras de que passaram a existir muito menos postos de trabalhos para operários de produção e montagem nas indústrias que optam pelo uso de robots”, disse Daron Acemoglu, economista do MIT que estudou os efeitos da robótica e de outras formas de automação. “Isso não significa que a tecnologia do futuro não possa criar empregos, mas a ideia de que vamos adoptar a automação à esquerda, à direita e ao centro, ao mesmo tempo que criamos numerosos postos de trabalho, é uma fantasia intencionalmente enganadora e incorrecta.” Apesar do optimismo dos investidores, investigadores e accionistas das empresas de tecnologia, muitas pessoas, como Joe Buscaino, preocupam-se com um futuro cheio de robots. Temem que estes não assumam apenas o trabalho pesado, mas todo o trabalho ou, pelo menos, as fases desafiantes, honrosas e bem pagas. Também receiam que os robots tornem o trabalho mais enervante ou até perigoso. IAS DEPOIS


Beth Gutelius, especialista em planeamento urbano e economista da Universidade de Illinois, investigou a indústria do armazenamento e falou-me sobre um armazém que visitou após a introdução de robots. Os engenhos agiam com rapidez na entrega das mercadorias aos seres humanos para empacotamento e isso poupava-lhes muitas deslocações para trás e para a frente. Também os

“ISTO NÃO É FICÇÃO CIENTÍFICA. Não é algo que acontecerá daqui a 20 anos.

JÁ COMEÇOU A A C O N T E C E R .”

— Manuela Veloso, investigadora de IA, Carnegie Mellon

faziam sentir-se apressados, eliminando a oportunidade de conversarem. Os empregadores deveriam pensar que este tipo de pressão exercida sobre os empregados “não é saudável e é real e tem impactes no bem-estar dos trabalhadores”, disse Dawn Castillo, epidemiologista responsável pela investigação de robots ocupacionais no Instituto Nacional de Segurança e Saúde Ocupacional do Centro de Controlo de Doenças. O Centro de Investigação de Robótica Ocupacional espera que as mortes relacionadas com robots “devam aumentar com o tempo”, segundo o seu sítio da Internet. Isso deve-se ao facto de haver mais robots em mais sítios a cada ano que passa, mas também mais robots a trabalhar em novos ambientes, onde conhecem pessoas que não sabem o que esperar e situações que os responsáveis pela sua concepção podem não ter previsto. Em San Pedro, depois de Joe Buscaino vencer a votação para travar o plano de automação, o Sindicato Internacional de Estivadores e Armazéns negociou aquilo a que o presidente do comité local do sindicato chamou um acordo “agridoce” com a Maersk, o conglomerado dinamarquês que gere o terminal de contentores. Os trabalhadores das docas concordaram em pôr fim à luta contra

os robots em troca de formação de “melhoria de qualificações” para 450 mecânicos aprenderem a trabalhar com eles. Outros 450 trabalhadores serão “requalificados”: formados para executar novos trabalhos mais tecnológicos. Quanto à eficácia dessa requalificação, sobretudo para os trabalhadores de meia-idade, é uma questão em aberto, disse Joe Buscaino. Ele tem um amigo que é mecânico e a sua experiência com carros e carrinhas habilita-o a acrescentar a manutenção de robots às suas competências. Por outro lado, “o meu cunhado Dominic, que é estivador, não faz a menor ideia de como trabalhar com estes robots. E tem 56 anos.”

A

faz precisamente 100 anos este ano. Foi cunhada pelo autor Karel Capek, numa peça que definiu o modelo para os sonhos e pesadelos mecânicos do século. Os robots dessa peça, R.U.R., parecem-se e comportam-se como pessoas e fazem todo o trabalho dos seres humanos. Antes de o pano cair, eliminam a raça humana! Desde então, robots imaginários como o Exterminador, o japonês Astro Boy e os andróides de “A Guerra das Estrelas”, exerceram enorme influência nos planos dos fabricantes de robots. Também moldaram as expectativas sobre o que são os robots e o que estes podem fazer. Tensho Goto é um monge da escola Rinzai de budismo zen japonês. Homem rijo e vigoroso de disposição alegre, encontrou-se comigo numa sala simples e elegante do Kodai-ji, o templo seiscentista de Quioto pelo qual é responsável. Tensho parecia a imagem viva da tradição. No entanto, ele sonha com robots há muitos anos. Tudo começou há várias décadas, quando leu sobre mentes artificiais e pensou em reproduzir o Buda com silicone, plástico e metal. Com versões andróides dos sábios, disse, os budistas poderiam “ouvir directamente as suas palavras”. No entanto, quando começou a colaborar com especialistas em robótica da Universidade de Osaka, a realidade robótica atenuou o sonho dos robots. Ele descobriu que “com a IA que hoje existe, é impossível criar inteligência humana, muito menos as personagens que alcançaram a Iluminação”. À semelhança de muitos especialistas em robótica, porém, ele não desistiu, contentando-se com aquilo que é possível fazer actualmente. PAL AVRA “ROB OT ”

O S RO B OT S JÁ C H E GA R A M

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Um robot de colheita, desenvolvido pela Abundant Robotics, usa sucção para colher maçãs num pomar em Grandview, no estado de Washington. Os robots são cada vez mais capazes de executar tarefas agrícolas que, no passado, exigiam a destreza e precisão de mãos humanas. Isso é bom para explorações agrícolas com falta de mão-de-obra humana.



Ei-la no ponto mais distante de uma sala com paredes brancas nas instalações do templo: uma encarnação de metal e silicone de Kannon, a divindade que representa a compaixão e a misericórida do budismo japonês. Durante muitos séculos, os templos e santuários usaram estátuas para atrair pessoas, de modo a que os fiéis se concentrassem nos mandamentos budistas. “Agora, pela primeira vez, temos uma estátua que se mexe”, disse. O robot, chamado Mindar, faz sermões pré-gravados com uma voz feminina vigorosa e não muito humana, gesticulando suavemente com os braços e virando a cabeça de um lado para o outro para examinar o público. Quando os seus olhos incidem sobre alguém, essa pessoa sente algo, mas não é a inteligência de Mindar – ela não tem IA. Tensho Goto espera que isso mude com o tempo e que a sua estátua móvel se torne capaz de conversar com pessoas e responder às suas perguntas sobre religião. Do outro lado do Pacífico, numa casa de aspecto banal, num subúrbio sossegado de San Diego, encontrei-me com um homem que pretende proporcionar um tipo diferente de experiência íntima com robots. O artista Matt McMullen é o director executivo de uma empresa chamada Abyss Creations, que fabrica bonecas sexuais em tamanho real.

CADA VEZ MAIS INTELIGENTES Alguns dos primeiros robots, em meados do século XX, eram dispositivos controlados por seres humanos que se encontravam perto deles ou ferramentas capazes de executar tarefas limitadas. Autonomia robótica

Matt lidera uma equipa de programadores, especialistas em robótica, peritos em efeitos especiais, engenheiros e artistas que criam companheiras robóticas capazes de apelar ao coração, à mente e também aos órgãos sexuais. A empresa fabrica as RealDolls, com pele de silicone e esqueleto de aço, há mais de uma década. O modelo padronizado custa cerca de 3.400 euros. Actualmente, porém, se pagar mais 6.800 euros, o cliente recebe uma cabeça robótica com componentes electrónicos capazes de reproduzir expressões faciais, voz e uma inteligência artificial que pode ser programada através de uma aplicação para smartphone. À semelhança da Siri ou da Alexa, a IA da boneca fica a conhecer o utilizador através das instruções dadas e perguntas que lhe fazem. Abaixo do pescoço, por enquanto, o robot continua a ser uma boneca e os seus braços e pernas só se mexem quando o utilizador os manuseia. “Actualmente, ainda não dispomos de Inteligência Artificial que se assemelhe a uma mente humana”, reconhece Matt McMullen. “Mas acho que vamos tê-la no futuro. É inevitável.” O empresário afirma não ter dúvidas quanto à existência de mercado para estes produtos. “Acredito que há muitas pessoas que podem beneficiar de robots parecidos com pessoas”, explicou.

NUCLEAR A eu impulso ao desenvolvimento dos robots. Foram usados braços telecomandados para trabalhar com materiais nucleares perigosos.

MÓVEL A l conduziu à ascensão da inteligência artificial. A NASA introduziu os robots móveis, capazes de explorar planetas.

1960

1950

Waldo Braços robóticos controlados por seres humanos para manipular material nuclear.

1970

Unimate Primeiro robot industrial.

Shakey Primeiro robot com IA capaz de detectar objectos e contorná-los.

Firebee Continua a ser o drone-alvo mais utilizado por militares.

Lightning Bug Equipado com sensores para vigilância durante a guerra do Vietname.

Operado remotamente Automatizada Inteligência Artificial O ano assinala a data de comercialização ou uso extensivo. As ilustrações não estão à escala. 24

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J

a alguns que não se parecem minimamente connosco. Algumas unidades militares celebraram exéquias fúnebres por robots desmanteladores de bombas que explodiram em serviço. Enfermeiros provocam os seus colegas robots nos hospitais. Participantes em experiências recusaram-se a denunciar os seus colegas de equipa robóticos. À medida que os robots se tornam mais realistas, os seres humanos deverão começar a depositar mais afecto e confiança neles. A influência de robots oriundos do universo da fantasia leva muitos a pensar que as máquinas reais de hoje são mais competentes do que o são na verdade. Os robots podem ser programados ou treinados para executarem uma tarefa bem definida com mais eficiência ou, pelo menos, de forma mais constante, do que os seres humanos. Mas nenhum consegue igualar a capacidade da mente humana para executar várias tarefas diferentes, sobretudo se forem inesperadas. Até ao momento, nenhum conseguiu ainda perceber com mestria o que é senso comum. Os robots actuais também não conseguem fazer o trabalho das mãos humanas, disse Chico Marks, director de engenharia de produção na fábrica de automóveis da Subaru, em Lafayette (EUA). A fábrica, à semelhança de todas as marcas de automóveis, utiliza robots de classe industrial há décadas. Agora, está gradualmenÁ E S TA M O S A A F E I Ç O A R - N O S

INDUSTRIAL O riais automatizaram linhas de montagem com robots programados para acelerar tarefas repetitivas e facilitar a produção em massa.

1980

SCARA Braço robótico para montagem comercial.

1990

te a introduzir novos tipos para executar tarefas como carros sem condutor que transportam as peças pela fábrica. O meu interlocutor mostrou-me uma combinação de fios que iriam serpentear por uma secção curva junto da futura porta traseira de um automóvel. “O direccionamento de um feixe de cabos num veículo não se presta à automação”, disse Chico Marks. “Requer um cérebro humano e feedback táctil para saber que está no sítio certo e bem ligado.” As pernas robóticas não são muito melhores. Em 1996, a portuguesa Manuela Veloso participou num desafio para criar robots capazes de jogar futebol melhor do que os seres humanos até 2050. Ela era um dos membros de um grupo de investigação que, naquele ano, criou o torneio RoboCup para estimular o progresso. O RoboCup é hoje uma tradição muito apreciada por engenheiros de vários continentes, mas nenhum, incluindo Manuela Veloso, espera que os robots joguem futebol melhor do que os seres humanos num futuro próximo. “A sofisticação dos nossos corpos enquanto máquinas é uma loucura”, disse. “Bons a gerir a gravidade e a lidar com as forças enquanto caminhamos, quando somos empurrados e ao mantermos o equilíbrio. Vão ser precisos muitos anos para um robot bípede conseguir caminhar tão bem como um ser humano.” (Continua na pg. 30)

DRONES O não tripulados foram utilizados pela primeira vez na Segunda Guerra Mundial, como alvos móveis para treino. Hoje, têm aplicações militares, comerciais e recreativas.

2000

Mars rover Sojourner, o primeiro rover que explorou Marte, em Setembro de 1997.

Predator Aeronave com piloto automático com transmissão de vídeo ao vivo, transformada em arma na Guerra do Iraque.

2010

Roomba O primeiro robot com IA comercializado: um aspirador.

2020 Amazon Robotics A empresa começou a fabricar robots para trabalho em armazéns.

Quadcopters Drones baratos para fins de consumo, segurança pública e industriais.

MONICA SERRANO; KELSEY NOWAKOWSKI. ARTE: MATTHEW TWOMBLY. FONTE: ROBIN MURPHY, TEXAS A&M


ANYmal é um robot capaz de subir degraus, pisar delicadamente detritos ou rastejar em espaços estreitos. Aqui, passeia numa rua junto das instalações do seu fabricante, a ANYbotics, em Zurique (Suíça). Ao contrário dos robots com rodas, os dispositivos com pernas como o ANYmal são capazes de aceder a quase todos os sítios que os humanos conseguem e a outros que estes não conseguem, como áreas contaminadas por resíduos radioactivos ou químicos.




Mindar, encarnação robótica de Kannon, a divindade da Misericórdia e da compaixão do budismo japonês, encara Tensho Goto, um monge do templo Kodai-ji, em Quioto (Japão). Criado por uma equipa liderada por Hiroshi Ishiguro, da Universidade de Osaka, Mindar consegue recitar ensinamentos budistas.


Os robots não vão ser pessoas artificiais. Como disse Manuela Veloso, teremos de nos adaptar a eles como se fossem uma espécie diferente e a maioria dos fabricantes estão a trabalhar arduamente para conceber robots capazes de fazerem cedências aos nossos sentimentos humanos. No parque eólico, aprendi que, quando o balde denteado de uma escavadora de grandes dimensões “ressalta” no solo, isso é sinal de inexperiência num operador humano. O safanão daí resultante pode até ferir a pessoa que se encontra na cabina. Para um operador robótico, o ressalto faz pouca diferença. No entanto, a Built Robotics alterou o algoritmo do seu robot para evitar esse ressalto, pois é mal-visto pelos profissionais humanos e a Mortenson quer que os trabalhadores de todas as espécies se dêem bem. Não são só as pessoas a mudar à medida que os robots vão entrando em cena. Mark Borman disse-me que a Taylor Farms está a trabalhar numa nova alface em forma de lâmpada com um caule mais comprido. Esse formato será simplesmente mais fácil de cortar para o robot. A Bossa Nova Robotics fabrica um robot que deambula por milhares de lojas na América do Norte, examinando as prateleiras para gerir os stocks. Os engenheiros da empresa perguntaram-se a si próprios quão amigáveis e acessíveis os seus robots deveriam ser. O resultado final parece um equipamento de ar condicionado portátil com um periscópio de dois metros de altura. Não tem rosto nem olhos. “É uma ferramenta”, explicou Sarjoun Skaff, co-fundador e director tecnológico da Bossa Nova. Ele e os outros engenheiros queriam que os clientes e os colaboradores gostassem da máquina, mas não demasiado. Se fosse demasiado industrial ou demasiado estranha, os clientes fugiriam. Se fosse demasiado amigável, as pessoas iriam querer falar e brincar com ela, abrandando o seu ritmo de trabalho. A longo prazo, os robots e as pessoas vão aceitar “um conjunto comum de normas de interacção entre seres humanos e robots”. Por enquanto, os fabricantes de robots e as pessoas normais estão a apalpar terreno neste domínio. Nos arredores de Tóquio, nas instalações da Glory, que fabrica máquinas de contagem de dinheiro, parei num posto de trabalho onde uma equipa constituída por nove membros estava a montar uma máquina de trocos. Uma folha de 30

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papel revestida com plástico mostrava as fotografias e os nomes de três mulheres, dois homens e quatro robots. Os robots de dois braços cintilantes, levemente parecidos com os descendentes de um frigorífico e do robot WALL·E, receberam o nome de moedas. Enquanto eu observava a equipa a montar velozmente as peças de uma máquina

OS ROBOTS PODEM EXECUTAR TAREFAS BEM DEFINIDAS, mas nenhum tem capacidade para tarefas em simultâneo nem de fazer

USO DO SENSO COMUM. de trocos, um robot chamado Dollar precisou de ajuda algumas vezes – uma delas por não conseguir retirar a película da parte de trás de um autocolante. Uma luz vermelha junto do seu posto brilhou e um ser humano saiu rapidamente do seu lugar na linha de montagem para corrigir o problema. Dollar tem câmaras nos “pulsos”, mas também tem uma cabeça com duas câmaras como olhos. “Em termos conceptuais, pretende ser um robot com forma humana”, explicou o administrador Toshifumi Kobayashi. “É por isso que tem uma cabeça.” Essa pequena cedência não convenceu imediatamente os seres humanos de carne e osso, disse Shota Akasaka, de 32 anos, um gestor de equipa de aspecto juvenil e sorridente. “Eu não tinha a certeza se ele conseguiria fazer trabalho humano, se conseguiria apertar um parafuso”, disse. “Quando vi o parafuso entrar na perfeição, apercebi-me de que estávamos a assistir ao nascimento de uma nova era.”


N

a nordeste de Tóquio, descobri como é trabalhar com um robot da forma mais próxima possível: vestindo-o em mim. O exoesqueleto, fabricado por uma empresa japonesa chamada Cyberdyne, era constituído por dois tubos brancos interligados que se curvavam nas minhas costas, um cinto na minha cintura e duas correias nas minhas coxas. Curvei-me ao nível da cintura para levantar um recipiente de água com 18 quilogramas, o que deveria ter magoado a minha zona lombar. Em vez disso, um computador alojado nos tubos usou a mudança de posição para deduzir que eu iria levantar um objecto e os motores entraram em acção para me ajudar. O robot fora concebido para dar assistência apenas aos músculos das minhas costas. Quando eu me agachava e o esforço era transferido para as pernas, como deve acontecer, o dispositivo não me dava grande ajuda. Apesar disso, quando funcionava, parecia um truque de magia. Primeiro, sentia o peso e depois deixava de o sentir. Segundo a Cyberdyne, existe um grande mercado na área da reabilitação clínica. A empresa fabrica um exoesqueleto para os membros inferiores que está a ser utilizado para ajudar as pessoas a recuperarem o uso das suas próprias pernas. Para muitos dos seus produtos, “outro mercado será o dos trabalhadores, para conseguirem trabalhar mais tempo e com menor risco de lesões”, afirmou Yudai Katami, porta-voz da Cyberdyne. A Sarcos Robotics, outro fabricante de exoesqueletos, está a pensar de forma semelhante. Um dos objectivos dos seus dispositivos, segundo Ben Wolff, era “tornar os seres humanos mais produtivos para poderem acompanhar as máquinas que possibilitam a automação”. Os especialistas sonham com máquinas que tornem a vida melhor, mas por vezes as empresas têm incentivos para instalar robots que não o fazem. Afinal, os robots não precisam de férias pagas nem de seguro de saúde. Além disso, muitos países obtêm vastas receitas fiscais com trabalho, ao mesmo tempo que encorajam a automação com isenções fiscais e outros incentivos. As empresas podem, por isso, poupar dinheiro reduzindo o número de funcionários e acrescentando robots. “Recebem-se muitos subsídios por instalar equipamento, sobretudo equipamento digital e robots”, disse Daron Acemoglu. “Isso incentiva as empresas a preferirem as máquinas aos seres humanos, mesmo quando as máquinas não são meUM A SA L A D E C O N F E R Ê N C I A S

lhores.” Além disso, os robots são mais excitantes do que os meros seres humanos. Existe um “zeitgeist específico entre tecnológicos e gestores, que acham que os seres humanos são problemáticos”, resumiu Daron Acemoglu. “É um sentimento do género que sugere que os humanos cometem erros e fazem exigências, o que justifica uma aposta na automação.”

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ter decidido investir nos robots de construção, o seu pai Scott Campbell perguntou-lhe delicadamente se ele achava que aquilo era mesmo boa ideia. O Campbell mais velho, ele próprio antigo trabalhador no sector da construção, representa actualmente a cidade de Saint Johnsbury na assembleia geral do estado de Vermont. Rapidamente se convenceu da validade do trabalho do filho, mas os seus eleitores estão preocupados com os robots e não apenas por motivos económicos. Talvez um dia seja possível entregarmos todo o nosso trabalho aos robots. No entanto, os eleitores de Campbell querem reservar algo para a humanidade: o trabalho que faz os seres humanos sentirem-se valorizados. “O aspecto mais importante no trabalho não é aquilo que obtemos em troca dele, mas aquilo em que nos transformamos, ao fazê-lo”, disse Scott Campbell. “Acho que isto é uma verdade profunda. É o aspecto mais importante de ter um trabalho.” Um século depois de terem sido, pela primeira vez, imaginados, os robots reais estão a tornar a vida mais fácil e segura para algumas pessoas. Também estão a torná-la um pouco mais robótica. Para muitas empresas, isso faz parte do encanto. “Actualmente, todos os locais de construção são diferentes e todos os operadores são artistas”, disse Gaurav Kikani, vice-presidente da Built Robotics. Os operadores gostam da variedade, mas os empregadores nem por isso. Poupam tempo e dinheiro quando sabem que uma tarefa é sempre executada da mesma maneira e que não dependem das decisões de um indivíduo. Embora os locais de construção precisem sempre da adaptabilidade e do engenho humano para algumas tarefas, “com os robots, temos uma oportunidade de uniformizar as práticas e criar eficiências para tarefas adequadas a eles”, disse. Quando uma sociedade tem de escolher as preferências que devem prevalecer, a tecnologia não consegue dar respostas. Por mais avançados que sejam, há algo em que os robots não podem ajudar-nos: decidir como, quando e onde utilizá-los. j E P O I S D E N O A H R E A D Y- C A M P B E L L

O S RO B OT S JÁ C H E GA R A M

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Abaixo da superfície de um mar tempestuoso, ao largo de Palau, localiza-se uma grande diversidade de corais pujantes. Este minúsculo país insular transformou 80% das suas águas em áreas protegidas, interditando a pesca ali. É a maior percentagem de território marinho protegido no mundo. Nos restantes 20%, só os habitantes de Palau podem pescar.


O P R O J E C T O C O N C E B I D O P A R A S A LVA R O S O C E A N O S F O I A M P L I A D O PA R A I N C E N T I VA R O C R E S C I M E N T O D E R E S E R VA S E M I T I G A R O S E F E I T O S D A S A LT E R AÇ Õ E S C L I M ÁT I C A S N O M A R .

A FORÇA DA PROTECÇÃO T E X T O D E K E N N E D Y WA R N E FOTOGRAFIAS DE ENRIC SALA


Quando Enric Sala deixou o seu emprego como professor no Instituto Scripps de Oceanografia, em 2007, fê-lo por se sentir cansado de escrever notícias sobre morte. “Dei por mim a escrever o obituário do oceano com uma precisão cada vez maior”, conta.

Perto do Gabão, um cardume de Carangidae refugia-se entre os tentáculos de uma medusa. A Rede de Áreas Marinhas Protegidas do Gabão abrange 28% das águas territoriais gabonesas, dando abrigo a duas dezenas de espécies de baleias, golfinhos e tartarugas. 34

N AT I O N A L G E O G R A P H I C

Em vez de passar mais tempo da sua vida a documentar os moribundos, o biólogo decidiu proteger os seres vivos nos poucos pedaços de oceano onde a Grande Ceifeira ainda não passara. Esses últimos bastiões da biodiversidade são os derradeiros lugares selvagens do mar, o equivalente marinho às mais isoladas extensões de floresta virgem sobreviventes na Amazónia. Ainda não foram destruídos pelo excesso de capturas, pela poluição ou pelas alterações climáticas. “Foi preciso visitar os lugares que ainda se assemelham ao oceano tal como este existia há 500 anos”, diz Sala. “Foi um regresso às referências passadas para percebermos como seria antigamente um oceano saudável. Estes lugares são a matriz, o manual de instruções. Talvez não consigamos devolver todo o oceano ao seu estado original, mas estes lugares mostram-nos o potencial que existe e dão-nos esperança.” Para proteger estes lugares, Enric Sala e a National Geographic Society lançaram o projecto Mares Prístinos em 2008. Nos últimos 12 anos, o projecto contribuiu para a criação de 22 reservas marinhas. As reservas representam agora dois terços das áreas marinhas totalmente protegidas do planeta, abrangendo mais de 5,5 milhões de quilómetros quadrados.



Sala e a sua equipa fixaram uma meta ainda mais ambiciosa: querem assegurar a conservação de mais de um terço da extensão total do oceano, não apenas para sustentar a biodiversidade, mas também para recuperar as populações de peixes e sequestrar o carbono. PA R A E N R I C S A L A , um

dos aspectos mais gratificantes do seu trabalho é a colaboração com as comunidades locais nos territórios que ele e a sua equipa se esforçam por preservar. Na ilha Pitcairn, um território ultramarino britânico do Pacífico Sul, a equipa do projecto desenvolveu uma colaboração estreita com os cerca de cinquenta habitantes da ilha, muitos dos quais descendentes dos amotinados do HMS Bounty, o navio da Marinha de Guerra sequestrado pelos membros da tripulação em 1789. “Viemos mostrar-lhes um mundo subaquático que eles nunca tinham visto”, recorda o biólogo. “Cardumes de barracudas, aglomerados de bivalves gigantes, tubarões-dos-recifes nadando em algumas das mais límpidas águas alguma vez estudadas no Pacífico. Dissemos-lhes que este é um dos lugares mais intactos do planeta e que lhes pertence, embora se encontre em risco por vários factores. Dissemos-lhes assim que ainda existiam oportunidades para corrigir a situação.” Os ilhéus de Pitcairn começaram a ver-se como heróis da sua própria narrativa e, em 2015, a pedido da população local, o governo britânico criou uma reserva marinha com 834 mil quilómetros quadrados em redor de Pitcairn e das ilhas vizinhas desabitadas: Ducie, Oeno e Henderson. Bem longe de Pitcairn, para oeste, na Micronésia, o projecto Mares Prístinos desenvolveu também colaboração com os indígenas de Palau no sentido de apurar, recorrendo a métodos modernos, uma antiga prática de conservação. Durante muitos séculos, os habitantes de Palau utilizaram períodos de defeso temporários para repor as populações de peixes dos recifes. Ao longo dos anos, criaram 35 reservas que protegiam os animais marinhos em torno das suas ilhas e interditavam a captura de algumas espécies. O presidente de Palau, Tommy Remengesau, pediu à equipa de Enric Sala que comparasse a abundância de peixe dentro e fora das reservas integrais. A equipa descobriu que as espécies procuradas pelos pescadores eram quase duas vezes mais abundantes nas zonas de captura interdita. A equipa filmou os mergulhos e mostrou os vídeos em todo o arquipélago. “Quisemos que os habitantes de Palau vissem como funciona a sua 36

N AT I O N A L G E O G R A P H I C

Os mangues das águas baixas e turvas da orla costeira da ilha Isabela são berçários para os tubarões-de-pontas-negras. Algumas espécies de tubarões põem os ovos, mas as fêmeas de tubarão-de-pontas-negras dão à luz, em cada ninhada, quatro a dez crias que já nadam.


gestão tradicional e que, além de proteger os recifes, também é benéfica para o turismo”, comenta o biólogo. Em 2015, o parlamento local criou um santuário marinho com pesca interdita que abrange 80% da Zona Económica Exclusiva do país. universalmente reconhecida. Na maior parte do mundo, a conservação marinha é travada pela oposição movida por interesses pesqueiros, petrolíferos e mineiros. Escassos 7% do oceano mundial beneficiam de algum tipo de protecção e só 2,5% contam com protecção real contra a exploração dos recursos. Fora destas zonas, a hisE S S A V E R DA D E N ÃO É

A National Geographic Society, organização sem fins lucrativos que desenvolve esforços para conservar os recursos da Terra, ajudou a financiar esta reportagem.

tória do oceano é de dilapidação constante. Cada geração humana cresce, adaptando-se a uma nova normalidade, uma referência de base cada vez mais baixa de diversidade e abundância marinha. A maior parte das pessoas nem sabe o que se perdeu. Muito do que se perde desta biomassa resulta das perturbações e destruição dos habitats, do excesso de capturas e das alterações climáticas que aquecem o oceano e agravam a sua acidez. O projecto Mares Prístinos está actualmente a redefinir a sua missão, de modo a enfrentar estas três ameaças. Se existir uma rede global de áreas marinhas protegidas (AMP) sem qualquer actividade extractiva, Enric Sala acredita que será possível beneficiar, simultaneamente, a biodiversidade, a segurança alimentar (Continua na pg. 46) e o clima. A FO RÇ A DA P ROT EC Ç ÃO

37


Duas mantas gigantes alimentam-se de plâncton oceânico trazido pela maré cheia num recife de Palau. As áreas protegidas deste país, comparativamente com as áreas protegidas das redondezas, asseguram o sustento de duas vezes mais peixes e cinco vezes mais predadores.

38

N AT I O N A L G E O G R A P H I C


A FO RÇ A DA P ROT EC Ç ÃO

39


AMÉRICA

ÁSIA

OC

DO NORT E

PACÍF ICO NORT E EA NO Hawai

MON. NACIONAL MARINHO PAPAHANAUMOKUAKEA

ha

Il MON. NACIONAL MARINHO DAS ILHAS REMOTAS DO PACÍFICO 286 50 25

PARQ. MAR. REVILLAGIGEDO 120 35 20

RESERVA MARINHA

I

B

A T

I DAS ILHAS DE LINHA 325

ÁREA PROTEGIDA DAS ILHAS PHOENIX

SANTUÁRIO NACIONAL MARINHO DE PALAU 109 76 196

112

44

89

OCE A NO PACÍ F ICO SUL

NI

A

P.N. DO MAR DE CORAL 325 115 62

182

Rapa Iti

RES. MATR. ILHA PITCAIRN 203 64 70

Ilha da Páscoa

PARQUE MARINHO MOTU MOTIRO HIVA 62 40 20

OC

PARQUE MARINHO DAS ILHAS DIEGO RAMÍREZ E PASSAGEM DE DRAKE 25 122

Península Antárctica 26

165

32

A N TÁ R C T I D A

A National Geographic Society lançou o projecto Mares Prístinos em 2008 para explorar e preservar o oceano. A iniciativa já promoveu 30 expedições e contribuiu para a criação de 22 reservas marinhas. A sua mais recente investigação identifica áreas cruciais que deverão ser salvaguardadas no futuro. Designação da área protegida

10

ICA ÉR L AM O SU D

Fiordes da Patagónia

E A SEGUIR?

SANTUÁRIO DE FAUNA E FLORA MALPELO 145 175 9

PARQUE MAR. NAZCA-DESVENTURADAS 96 49 25 PARQUE MAR. JUAN FERNÁNDEZ 120 47 58

ÁREA MARINHA PROTEGIDA DA REGIÃO DO MAR DE ROSS

30

ÁREA DE GESTÃO DOS MONTES SUBMARINOS 95

19

Expedição

185

I. Galápagos

ÁREA MARINHA PROTEGIDA NIUE MOANA MAHU 295 59 121

Nova Caledónia

223

SANTUÁRIO MARINHO DARWIN E WOLF 71 122

a

R

inh aL sd

M I C R K I O N É S I A

Península Osa

ÁREA MARINHA PROTEGIDA DA ILHA CLIPPERTON 105 10 20

EQUADOR

137

Terra do Fogo Ilha dos Estados

RES. MAR. NAMUNCURÁBURDWOOD BANK II P.N. MARINHO YAGANES 35 132

Z O N A S P R I O R I TÁ R I A S Se houvesse protecção de 35% do oceano (zonas verdes), isso seria vantajoso para a biodiversidade, a abundância alimentar e o sequestro de carbono. As zonas a verde-escuro identificam as principais prioridades de conservação.

Baixa

Alta

2005

2008

Uma expedição desencadeou o projecto

2009

Primeira expedição oficial

2010

2011

ue am biq

Su

ld

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Te rra d

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bã o Ga 2012

Descoberta da planta que vive na maior profundidade

I. D

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Sa la da s e G Pá óm Mo scoa ez e nte ilh a ss ub ma rin os

Mo t Hiv u Mo a tiro

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Oceano não-prioritário

2013

Censo da floresta de laminárias mais setentrional


ÁREA MAR: PROTEGIDA TUVAIJUITTUQ

ÉR A M NO DO

RT

IC

E

Número de mergulhos

113.305

A

Quilómetros percorridos

137

OC AT E A N O LÂ N N O T ICO RT E

M.N.M. DOS MONTES SUBMARINOS E DESFILADEIROS NORDESTE

95

5.633

PARQUE NACIONAL DO ÁRCTICO RUSSO 216 16 113

120

Mergulhos em submersível

E U R O PA

I ÁS

Açores

A

104

Ilhas Selvagens 51

31

69

NO EA O C O DIC ÍN

ÁFRICA AMÉ

EQUA DO

RICA DO S UL

ÁREA MARINHA PROTEGIDA DA ILHA ASCENSÃO 28

ÁREA MARINHA PROTEGIDA DE CHAGOS

R

P.N. MARINHO DO GRUPO ALDABRA 360 35 165

REDE DE ÁREAS MARINHAS PROTEG. DO GABÃO 41 40

OC E A NO A T L Â N T IC O SU L

43

Sul de Moçambique 358

58

50

48

Tristão da Cunha 42

7

2

A N TÁ RC T I DA CENSOS DE ESPÉCIES A equipa realizou medições do tamanho, abundância e biomassa de mais de sete mil espécies até ao presente.

C O N S E RVA Ç Ã O M A R I N H A Embora 7% do oceano beneficie de algum tipo de protecção, só 2,5% está seguramente protegido das indústrias extractivas.

CHRISTINE FELLENZ, TAYLOR MAGGIACOMO E IRENE BERMAN-VAPORIS FONTES: MARES PRÍSTINOS, NATIONAL GEOGRAPHIC SOCIETY; ENVIRONMENTAL MARKET SOLUTIONS LAB, UC SANTA BÁ RBARA; TRISHA ATWOOD, UNIVERSIDADE ESTADUAL DO UTAH

Peixes 3.812 espécies Invertebrados 1.828 Algas 1.089 Corais 756

Pa la I. R u em o

tas

do

Outro local de expedição do projecto

2014

Expansão do Mon. Nac. das Ilhas Remotas

2015

2016

Palau prote- Descoberta da maior ge 80% das biomassa de tubarões suas águas

2017

A maior rede de AMP de África

2018

5.855.210 quilómetros quadrados protegidos

Fio rde Niu s da P Ma e Mo atag ón hu ana ia

Pa cíf ico Se ,R ych ap Ilh elle a It as s i , da Últ Lin im ha a Á rea de Ge I. S lo Pa elvag lau e ns I. G alá pa go s I. C lip Da pe rw rto in e Wn, I. R olf evi Na llag zca ige Ár do cti -Des I. P co R ven itc t a uss urad I. C irn, N o as lip iue pe r Tri stã ton od aC I. J un ua ha nF , ca I. A ern bo sce á n Ga Ho d n ez bã são rn o I. M alp elo I. R ev I. D illag i i Ya ego gedo ga Ra ne mí , ma I. M s, G rez r d e e ru alp elo po A Pass Ross Aç lda ag. ore bra Dra s ke Ma , I. rd Jua eC nF ora ern Na l án mu de Na nc z u m Pe un rá-B nín cu u sul rá-B rdw a A ur oo Pe nín nta dw d B o a sul a O rctic od B nk II a an sa k II , Ya ga ne s I. A sce nsã o

Área marinha com protecção elevada associada aos Mares Prístinos Outro tipo de AMP bem protegida

2019

Descoberta de um novo campo hidrotermal

2020

A maior AMP do Atlântico


PRIMEIRA FILA

Caranguejo, ilha dos Estados, Argentina; góbio sobre coral mole, Palau; bodião, ilha da Páscoa, Chile; polvo, San Ambrosio, ilhas Desventuradas, Chile SEGUNDA FILA

Tartaruga-verde, ilha Cocos, Costa Rica; sargo dourado, Palau; lagosta, Ilha dos Estados; peixe-porco, ilha da Páscoa TERCEIRA FILA

Peixe-palhaço-rosa, Nova Caledónia; pargo-vermelho-de-pintas, Palau; medusa, Jellyfish Lake, Palau; moreia sobre leito de corais, Gabão Q UA RTA F I L A

Coral gigante, provavelmente com vários séculos de idade, ilha da Páscoa; tubarão-martelo, ilha Cocos; peixe-falcão, ilha Henderson, arquipélago de Pitcairn; leão-marinho-sul-americano, ilha dos Estados 42

N AT I O N A L G E O G R A P H I C


A FO RÇ A DA P ROT EC Ç ÃO

43


44

N AT I O N A L G E O G R A P H I C


Golfinhos-roazes nadam no Parque Nacional de Revillagigedo, a sul da Baixa Califórnia. Com cerca de 148 mil quilómetros quadrados, é a maior reserva marinha integralmente protegida da América do Norte, habitada por tubarões-sedosos, tubarões-martelo, tubarões-baleia, mantas-gigantes, atuns e baleias-de-bossa.

A FO RÇ A DA P ROT EC Ç ÃO

45


O benefício para a biodiversidade é óbvio, tal como acontece em solo firme, onde os parques e reservas protegem milhares de espécies ameaçadas. A forma como as AMP beneficiarão as pescas é menos óbvia. Segundo o entendimento geral, a criação de áreas fechadas será prejudicial aos interesses das pescas, mas esse pressuposto está errado, argumenta Sala. “A indústria da pesca alega que não podemos criar mais zonas de captura interdita porque temos de alimentar quase dez mil milhões de pessoas”, a população mundial prevista para 2050. “Mas o pior inimigo da pesca é o excesso de capturas.” O total mundial de capturas de peixe estabilizou desde meados da década de 1990, na melhor das hipóteses apesar dos esforços desenvolvidos pela indústria das pescas no sentido de continuar a capturar peixe. A razão é óbvia: muitas populações de peixe estão enfraquecidas e precisam de uma oportunidade para recuperarem. “As áreas protegidas não são inimigas das pescas”, diz Sala. “De acordo com a nossa análise, a protecção do oceano pode trazer benefícios líquidos às pescas.” Pode parecer contra-intuitivo, mas quanto mais integralmente protegida se encontra uma área marinha, maiores as vantagens para os pescadores que exercem a sua actividade em redor dos seus limites. Esse resultado já foi documentado em espécies que vão do atum à lagosta e aos bivalves. Segundo Enric Sala, as reservas marinhas integralmente protegidas assemelham-se a uma conta-poupança com um capital no qual não se toca: permitem obter rendimentos todos os anos, sob a forma de peixes, adultos e em estado larvar, e invertebrados que se propagam para fora das reservas e fazem crescer as populações de espécies procuradas pelos pescadores. Ainda assim, as AMP só são seguras na medida em que existir vontade política para mantê-las. Nos Estados Unidos, Donald Trump já declarou a sua intenção de abrir à pesca comercial o único monumento marinho do país situado no oceano Atlântico. As vantagens climáticas das AMP decorrem do facto de o dióxido de carbono ser o principal gás com efeito de estufa presente na atmosfera e de os sedimentos marinhos serem um dos principais reservatórios de carbono da Terra, armazenando mais carbono do que os solos terrestres. Se não forem perturbados, os sedimentos conseguem sequestrar o carbono durante milhares de anos. Quando os sedimentos são perturbados, devido à pesca de arrasto pelo fun46

N AT I O N A L G E O G R A P H I C

Morsas alimentam-se e descansam sobre um baixio na ilha Northbrook, na Terra de Francisco José. Este arquipélago foi acrescentado ao Parque Nacional do Árctico Russo em 2016 para proteger espécies como o urso-polar, a baleia da Gronelândia, a gaivota-marfim e a morsa do Atlântico. As morsas encontravam-se à beira da extinção no século XX devido à caça. Agora, existem mais de dez mil.


do ou à mineração do leito marinho, o carbono armazenado entra de novo em circulação. Da mesma maneira que existe mais do que uma razão para salvar uma floresta, também há mais do que uma vantagem em proteger o oceano, o que torna essa protecção ainda mais relevante. “Deixou de ser possível pensarmos na biodiversidade de forma isolada”, afirma Sala. “Não podemos pensar no clima isoladamente. Será impossível cumprir os objectivos do acordo climático de Paris [impedir que o aquecimento global ultrapasse o limiar catastrófico de 2ºC] se não mantivermos uma percentagem significativa do planeta em estado natural.” Que tamanho deve ter essa percentagem? Segundo cálculos de Enric Sala e da sua equipa, se a superfície totalmente protegida do planeta

aumentar 14 vezes (de 2,5% para 35%), resultaria num incremento de 64% dos benefícios associados à biodiversidade e uma protecção suplementar de 28% do carbono instável, ao mesmo tempo que o total de capturas a nível mundial crescerá aproximadamente dez milhões de toneladas. Se em vez de se focarem nas suas prioridades estritamente nacionais, os países cooperarem e reservarem áreas estratégicas do oceano, conseguirão obter os mesmos resultados protegendo menos de metade desta área. Até isso pode parecer impossível, mas a alternativa é calamitosa. Será que queremos mesmo continuar a escrever e a ler obituários marinhos ou preferimos que os nossos filhos herdem um oceano abundante e produtivo? Por enquanto, ainda temos a oportunidade de escolher. j A FO RÇ A DA P ROT EC Ç ÃO

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TEXTODE RICHARD CONNIFF FOTOGRAFIAS DE KLAUS NIGGE

Ninguém as engana

ESQUEÇA O ESTEREÓTIPO DA AV E L I M I TA D A : A AV E S T R U Z É U M A S O B R E V I V E N T E A S T U TA NUM MUNDO DE PREDADORES

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Na extremidade meridional de África, um macho examina a costa junto do cabo da Boa Esperança, erguendo a cabeça. Podendo atingir três metros de altura e 135 quilogramas, a maior ave da Terra não tem falta de atractivos cómicos e desengonçados, mas não é presa fácil para os que a tentam incluir no seu menu.


Três avestruzes fêmeas (penas castanhas), três machos (penas pretas) e 42 pintos mantêm-se atentos a chacais e a outros predadores no Parque Nacional de Tarangire, na Tanzânia. As crias que eclodem em ninhos comunitários mantêm-se, por vezes, juntas durante um ou dois anos.



A maioria das pessoas acredita numa única forma de ver as avestruzes, herdada dos desenhos animados: são aquelas aves grandes que enfiam a cabeça na areia em momentos de crise, pensando que se não conseguem ver o perigo, o perigo não conseguirá vê-las. Na nossa colecção de estereótipos, as avestruzes tornaram-se assim o arquétipo do animal limitado. Até a Bíblia assegura que elas são tontas, além de más progenitoras. A ideia da cabeça na areia já é antiga. Tem cerca de dois mil anos e foi inventada pelo naturalista romano Plínio, que por vezes escrevia crónicas falsas. As avestruzes têm pernas compridas e ossudas e um tronco suspenso no ar, semelhante a um grande casco flutuante de carne e penas. O pescoço é parecido com um periscópio, encimado por uma cabeça em forma de cunha com olhos maiores do que os de um elefante, a três metros de altura. É uma anatomia improvável para resolver problemas enfiando a cabeça na areia. No entanto, as avestruzes baixam mesmo a cabeça até ao nível do solo (e não abaixo deste) para se alimentarem de plantas ou tratarem dos ninhos. Os seus pescoços são leves e flexíveis, com 17 vértebras cervicais, enquanto nós temos sete. 52

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A avestruz é o animal bípede mais rápido do planeta. Já foi cronometrada a correr a quase 70 quilómetros por hora e pode percorrer longas distâncias a cerca de 50 quilómetros por hora. O segredo da sua velocidade? Enormes músculos nas coxas, patas compridas e magras, tendões elásticos e uma enorme garra em cada pata para garantir boa tracção.



As avestruzes são no fundo galinhas sobredimensionadas em zonas povoadas por leões, leopardos, hienas e chitas. Mas cada pontapé seu pode quebrar ossos e elas conseguem correr a quase 70 quilómetros por hora.

Deslocam-se facilmente para cima e para baixo, de um lado para o outro e da frente para trás. Os seus olhos gigantes ajudam-nas a vigiar atentamente o mundo em redor. E têm boas razões para se manterem alerta. Para começar, são basicamente galinhas sobredimensionadas em habitats povoados por leões, leopardos, hienas, mabecos e chitas esfomeados. As avestruzes adultas são demasiado impressionantes para constituírem uma caçada fácil: um único pontapé pode partir ossos. No entanto, elas são melhores a fugir do que a lutar, pois atingem uma velocidade de ponta de 70 quilómetros por hora. Outro factor que as mantém alerta é o perigo enfrentado pelas crias. As avestruzes constroem os ninhos em simples clareiras no solo, em espaços abertos, onde os ovos podem ser desfeitos em mil pedaços por um elefante desastrado ou por qualquer predador esfomeado. O sucesso requer uma sorte improvável. A maior ave do planeta precisa de impedir que o seu ninho seja detectado durante mais de dois meses, desde o momento em que que põe os primeiros ovos até à sua eclosão. O fracasso é frequente e é essa a força motriz para o engenhoso comportamento comunitário de nidificação. Estamos no Parque Nacional de Tarangire, no Norte da Tanzânia. São 2.850 quilómetros quadrados de colinas secas e planícies cobertas de capim ao longo do rio Tarangire. Muitos elefantes vivem aqui em grandes manadas, juntamente com zebras e milhares de gnus. As avestruzes também são comuns, mas difíceis. Junto-me a Flora John Magige, ecologista especializada no comportamento das avestruzes, da Universidade de Dar-es-Salam, enquanto ela procura ninhos. A nossa primeira descoberta é um fracasso. Há nove ovos dispersos no mato, numa zona com cerca de 25 metros de perímetro. Flora examina a área como um detective numa cena de homicídio. A dispersão foi, mais provavelmente, obra de um predador esfomeado, mas não grande, porque todos os ovos estão intactos. Talvez um chacal? Seja como for, o macho e a fêmea mudaram de sítio, como frequentemente fazem quando um ninho é perturbado. É possível que voltem a nidificar juntos. 54

N AT I O N A L G E O G R A P H I C

As avestruzes são incorrigivelmente promíscuas, pois os machos e as fêmeas estabelecem relações com múltiplos parceiros. Da perspectiva evolutiva, a multiplicação de parceiros é uma forma de conseguir DNA diversificado e de compensar o facto de a maioria dos ninhos fracassarem. É assim que às 10h30 de uma manhã encontramos um par a acasalar a cerca de quinhentos metros da estrada principal do parque. Quando se separam, o macho começa a andar, seguido da sua consorte mais recente e de mais duas fêmeas. Uma delas não tarda a pedir a sua atenção, afastando as asas do corpo e abanando-as como se fossem pompons. Na época de acasalamento, as fêmeas podem gerar um ovo a cada dois dias. Contudo, a escassez de machos é frequente, talvez porque cada um defende ciosamente o seu território, o que obriga os outros a migrar. O macho ignora-a. A sua caminhada leva-os ao longo de um caminho serpenteante, junto de acácias dispersas e embondeiros atarracados. Junto da estrada, a fêmea volta a tentar, com as asas a oscilar. Um veículo de safari passa velozmente pela estrada, lançando uma nuvem de poeira sobre esta demonstração romântica. O macho continua a andar. Sem se deixar esmorecer, ela arranja uma desculpa para se atravessar à frente dele, de asas baixas e a tremer. “Mas ele não está convencido”, explica Flora. O processo de sedução dura mais de uma hora. Descem até uma praia de areia no rio Tarangire. Quando ela se afasta, ele deixa-se cair no solo, finalmente apaixonado. De seguida, ele executa todo o ritual pré-copulatório, parecendo um guitarrista a abanar a cabeça: as asas a espiralar, o corpo a abanar loucamente de um lado para o outro, a cabeça tão projectada para trás que bate nas costelas. Catapum de um lado, catapum do outro. Ela continua a andar, mostrando-se agora indiferente. Por fim, juntam-se no leito seco do rio. Ele contorce-se sobre ela durante um ou dois minutos, enquanto ela se senta como uma esfinge, digna, com a cabeça bem erguida no ar. No momento de maior êxtase do macho, ela vislumbra qualquer coisa saborosa na areia e estica-se para comer.


MAURITÂNIA

ARGÉLIA

S

A

MALI

S

SENEGAL

A

A

EGIPTO

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A

NÍGER

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BURKINA FASO

CHADE

PENÍNSULA ARÁBICA ERITREIA

SUDÃO

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TERRAS ALTAS

NIGÉRIA

REPÚBLICA CENTRO-AFRICANA

DA ETIÓPIA ETIÓPIA

SUDÃO DO SUL

CAMARÕES As avestruzes encontram-se sobretudo em áreas UGANDA protegidas. As do Norte de

Avestruz-comum até 2,75m

DJIBUTI CORNO DE ÁFRICA

QUÉNIA SOMÁLIA

África, agora raras na sua área geográfica, tiveram uma diminuição acentuada.

RESERVA NACIONAL MASAI MARA PARQUE NACIONAL TARANGIRE

Á F R I C A

TANZÂNIA

ANGOLA

Avestruz-comum (Struthio camelus) Avestruz-norte-africana (S.c. camelus) Avestruz de Masai (S.c. massaicus) Avestruz-sul-africana (S.c. australis) Avestruz da Somália (Struthio molybdophanes)

Depois, todos comem e bebem durante algum tempo junto do rio, numa espécie de piquenique de avestruzes. Viramos as costas para irmos também almoçar e, quando fazemos uma pausa para as observar pela última vez, as três fêmeas estão de novo a aproximar-se do macho, de asas abertas e a tremer suavemente. de avestruzes na esperança de elas nos conduzirem a um ninho, mas um ninho de avestruz pode ser difícil de ver, mesmo que saibamos exactamente onde está. Por norma, o macho cuida dele durante a noite, sentando-se de cabeça erguida. A fêmea assume o posto de dia. Quando deita as penas da cauda para trás e o seu longo pescoço para a frente, pode parecer um simples monte de térmitas ou um toco de árvore. Por vezes, a forma mais fácil de encontrarmos um ninho é sentarmo-nos e esperar que apareça outra avestruz de visita, o que acontece com frequência surpreendente. Certa tarde, optamos por posicionar-nos numa planície aberta e não tardamos a descobrir um S E G U I MO S E ST E G RU P O

IA NA M ÍB

A extensão do território das avestruzes é difícil de definir, devido ao decréscimo das populações. Na década de 1960, uma subespécie extinguiu-se devido à caça e à perda de habitat. Segundo alguns peritos, o território da avestruz da Somália encolheu, ocupando agora apenas o Corno de África.

BOTSWANA DE SE R TO D O KA LA HAR I

MOÇAMBIQUE

SC

ZIMBABWE

NAMÍBIA

AGÁ

Ovo

MAD

Fêmea

A S. D DE

Macho

AR

ZÂMBIA

ESWATINI (SUAZILÂNDIA)

ÁFRICA DO SUL

Oudtshoorn

500 km

RESERVA NATURAL DO CABO DA BOA ESPERANÇA

spero território de avestruzes. Algures à nossa nte, encontra-se uma fêmea sentada no ninho. n macho nidificante está a pastar a algumas cenm nas de metros à esquerda e não parece muito tento. No entanto, quando outro macho aparece a 750 metros de distância, ele começa a andar na sua direcção com uma atitude determinada e, depois, a correr. Tal como acontece entre os seres humanos, a promiscuidade e a possessividade podem coexistir: o macho nidificante pretende monopolizar os acasalamentos da parceira e isso implica afugentar os machos rivais. O mais surpreendente é a forma como o casal nidificante reage às fêmeas que o visitam. Outras espécies desenvolveram mecanismos de defesa sofisticados para dissuadir “parasitas da ninhada”, aves que tentam fugir ao entediante trabalho da parentalidade colocando os seus ovos nos ninhos de outras aves. As avestruzes são diferentes. Quando outra fêmea se aproxima, é frequente a fêmea nidificante levantar-se e afastar-se, permitindo à visitante pôr os ovos ao lado dos seus.

CHRISTINA SHINTANI E TAYLOR MAGGIACOMO. FONTES: UICN; BRIAN BERTRAM; FLORA JOHN MAGIGE, UNIVERSIDADE DE DAR-ES-SALAM


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N AT I O N A L G E O G R A P H I C


DA ESQUERDA PA R A A D I R E I TA , A PA RT I R D O T O P O

Chegou a época de acasalamento das avestruzes no Parque Nacional de Tarangire. O pescoço e as patas vermelhos e inchados anunciam que ele está à procura de parceiras. Após uma dança de cortejamento, durante a qual abana as asas e ostenta a sua elegância emplumada, o macho monta uma fêmea. Ao contrário da maioria das aves, os machos possuem um pénis e inseminam internamente as fêmeas. A fêmea põe os ovos no solo. Outras fêmeas podem pôr ovos ao lado dos seus (uma estratégia de nidificação comunitária), mas só a fêmea principal e o seu parceiro guardam e chocam os ovos. Os ovos eclodem após 42 dias de incubação, mas apenas cerca de 10% dos ninhos são bem-sucedidos. Os pintos que sobrevivem tornam-se independentes após um ou dois anos. AV E S T R U Z E S

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Segundo alguns estudos, tipicamente, a fêmea nidificante só é a progenitora biológica de cerca de metade dos 19 ou 20 ovos que pode incubar com sucesso. Outras fêmeas, de estatuto inferior, contribuem assim para a ninhada. Trata-se de nidificação comunitária e, à semelhança da promiscuidade, é uma forma de as avestruzes alcançarem sucesso reprodutivo num mundo adverso. Isto não significa que o mundo destas aves seja de amor perfeito. A fêmea nidificante pode não ter grande escolha, explica Brian Bertram, o biólogo que apresentou a primeira descrição pormenorizada da nidificação comunitária em 1979. A resistência a uma fêmea visitante pode conduzir a conflitos e atrair leões e outros predadores. Também pode quebrar os ovos, so58

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bretudo os da fêmea nidificante, e o seu cheiro atrair hienas ou chacais. A nidificação comunitária confere algumas vantagens egoístas ao casal nidificante, acrescenta Brian. Para o macho, as suas voltas pelo “bairro” significam que ele poderá ter produzido cerca de um terço dos ovos acrescentados pelas vizinhas. Quanto à fêmea nidificante, a existência de ovos adicionais no ninho dilui o risco. Ninguém sabe como consegue distingui-los, mas ela costuma manter os seus próprios ovos no meio do ninho, relegando os das outras fêmeas para aquilo a que Brian Bertram chama “o condenado anel exterior”. Ter mais pintos juntos após a eclosão também diminui as probabilidades de os seus serem mortos por um predador.


Hienas-malhadas na Reserva Nacional de Masai Mara, no Quénia, banqueteiam-se com um ovo de avestruz. A maior ave do mundo põe os maiores ovos do planeta. Têm o tamanho de uma meloa madura e equivalem ao volume de duas dúzias de ovos de galinha. Para abrirem as cascas resistentes, os predadores têm de ser engenhosos. Por vezes, os chacais arremessam um ovo contra outro. Os abutres do Egipto atiram-lhes pedras. CHRISTINE E MICHEL DENIS-HUOT, NATURE PICTURE LIBRARY

que mais me impressionou nas avestruzes, além do seu tamanho, foi a sensação de estarem sempre em movimento, mesmo quando paradas. Isto aplica-se à fêmea, em particular, porque a sua coloração acastanhada torna os tremores das penas mais visíveis. Em ambos os sexos, as penas são invulgarmente compridas e entufadas, sobretudo nas asas e na cauda. Além disso, ao contrário da maioria das aves, as suas penas não têm as barbicelas, minúsculos ganchos que mantêm as penas unidas e ordenadas. É isto que lhes dá a tendência cativante para enfunarem ao vento. A avestruz pode afrouxar as penas para ajudar a dissipar o calor corporal ou apertá-las para conservá-lo. Foi esse aspecto que fez a moda humana apaixonar-se pelas penas de avestruz vezes sem conta. UM D O S A S P E C TO S

O caminho para o centro do comércio de avestruzes conduz-nos a uma passagem estreita de rocha vermelha nas montanhas de Swartberg, na província sul-africana do Cabo Ocidental. Debaixo daquela fenda natural, campos agrícolas semelhantes a mantas de retalhos estendem-se sobre um planalto semiárido circundado de montanhas irregulares. Little Karoo é a fonte, estranhamente distante e isolada, dos excessos emplumados das senhoras que frequentam as corridas de Ascot e das bailarinas de Las Vegas. No entanto, a zona em redor da cidade de Oudtshoorn é o centro do comércio mundial de avestruzes há mais de 150 anos. A partir da década de 1860, quando o comércio de penas já empurrava as avestruzes para a extinção em algumas regiões, os criadores locais foram pioneiros da reprodução em cativeiro. A natureza comunitária das avestruzes poderá ter tornado estes animais mais receptivos à vida em cativeiro. A sua incapacidade para voar ou saltar também ajudou. Nos campos (ou “acampamentos”) delimitados por vedações de arame pela altura do peito, existem actualmente milhares de avestruzes, por vezes espalhadas como peças de xadrez emplumadas. Durante a época de acasalamento, os trabalhadores recolhem ovos e transferem-nos para unidades de incubação artificial: 112 ovos por prateleira, 1.008 ovos por unidade, rodando lentamente, a 36 graus. “No dia 42, o pinto irrompe por uma bolsa de ar no ovo, inspira e reúne forças para partir a casca”, diz Saag Jonker, um proeminente criador local. Poderá viver um ano, se for criado pela sua carne e pele, ou até 15 anos, se for para penas, sendo estas arrancadas em intervalos de cerca de nove meses. O comércio de avestruzes sempre foi um negócio imprevisível, pois os preços flutuam loucamente ao sabor dos caprichos da moda internacional. Neste momento, está num ciclo de baixa, e Saag Jonker e a mulher, Hazel, falam com esperança sobre o gosto de Kate Middleton por chapéus com penas de avestruz e sobre a possibilidade de a Louis Vuitton voltar a usar pele de avestruz nas suas malas. A época áurea do comércio de avestruzes e de Oudtshoorn começou aproximadamente em 1870, estimulada pela procura de penas de avestruz para os chapéus das senhoras elegantes. As “mansões de penas” daquela época ainda alegram as ruas de Oudtshoorn com torres, alpendres e frisos requintados. AV E S T R U Z E S

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As avestruzes são os únicos animais do mundo com rótulas duplas, excentricidade que talvez as ajude a correr mais depressa. Contudo, a velocidade não é a única qualidade que permite a aves tão grandes escaparem aos perigos. Encontram-se também equipadas com os maiores olhos de qualquer animal terrestre e possuem uma visão tão aguçada que conseguem detectar ameaças a quase três quilómetros de distância em campo aberto. RICHARD DU TOIT, NATURE PICTURE LIBRARY

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A carga mais valiosa do Titanic não era diamantes nem ouro, mas 12 caixas de plumas de avestruz, avaliadas em 1,97 milhões de euros a preços actuais, bem demonstrativo de como o comércio era próspero em 1912. Tudo isso acabou, porém, em 1914, quando a guerra e os automóveis descapotáveis tornaram desactualizados os chapéus grandes e emplumados. Certo dia de manhã encontrei-me na cidade com Maurice “Mickey” Fisch, criador de avestruzes reformado e um dos últimos membros da comunidade judaica que, em tempos, dominou o comércio mundial de avestruzes de Oudtshoorn. Os imigrantes judeus, forçados a deixar a Europa devido à opressão política e económica, começaram a chegar em finais do século XIX. 62

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“E os afrikaners receberam-nos de braços abertos”, lembra Maurice. Os primeiros imigrantes tornaram-se vendedores ambulantes, mas aqueles que se seguiram trabalharam frequentemente no comércio de mercadorias ou vestuário, e a diáspora permitiu o estabelecimento de ligações com comunidades de imigrantes nesses ramos em Londres, Nova Iorque e noutras grandes cidades. O comércio de penas de Oudtshoorn cresceu, em grande parte, devido a essas ligações, formando uma rede do comprador de penas, de língua yiddish, que viajava de quinta em quinta, aos artesãos que fabricavam produtos com penas de avestruz e aos vendedores a retalho que as vendiam. Na fase áurea do negócio, várias centenas de famílias judaicas viviam em Oudtshoorn.


Numa unidade de criação de avestruzes na Alemanha, uma ave pequena aninha-se sob as patas do progenitor. No século XVIII, as penas de avestruz tornaram-se uma moda tão famosa na Europa que a caça provocou um declínio das aves. Domesticadas na África do Sul na década de 1860, são criadas em todo o mundo devido às suas penas, carne e pele macia.

Maurice Fisch abre um livro de história local e mostra-nos uma fotografia do seu avô e homónimo, Maurice Lipschitz. “Foi o maior criador de avestruzes do mundo”, diz. “Quando morreu, em 1936, tinha 35 quintas.” Montague House, a mansão de penas que construiu, tinha um salão de baile, uma adega e uma banheira com 1.500 litros de capacidade revestida a mármore de Carrara. A casa ainda existe, encontrando-se actualmente subdividida num restaurante, numa loja, numa residência e num consultório médico. O comércio de avestruzes está nas mãos de uma cooperativa laica e o número de famílias judaicas diminuiu tanto que a sinagoga remanescente tem de chamar crentes dos arredores para conseguir reunir minyan, o quórum, para os servi-

ços dos dias sagrados. Após 50 anos de criação, também Maurice Fisch abandonou o negócio das avestruzes e não sente saudades. A sua opinião das avestruzes ecoa a de Job em 39:16-17, que lhes chama “privadas” de sabedoria e indiferentes até ao bem-estar da sua própria descendência. As avestruzes, diz Fisch, são “aves estúpidas que se limitam a ter penas bonitas”. Não lhe faço perguntas sobre as competências parentais das avestruzes, mas tenho a oportunidade de chegar à minha própria conclusão pouco depois. Numa manhã, na Reserva Natural de De Hoop, na extremidade meridional de África, vejo um macho e uma fêmea a alimentarem-se. Eles também me observam, mas passado algum tempo, descontraem-se e, como se recebessem um sinal, nove crias de avestruz saem dos esconderijos. São criaturas pequenas e redondinhas com uma ou duas semanas de idade, parecidas com dodós, de pescoços castanhos e sarapintados e penugem curta e eriçada no corpo. Começam a comer e os progenitores, seguindo-as de perto, fazem o mesmo. Pouco depois, um trio assassino de babuínos atravessa o campo, aproximando-se. O macho fica furioso e corre em frente, afugentando-os. Os babuínos voltam, uma e outra vez, mas o macho bloqueia-os sempre. De seguida, um batalhão inteiro de babuínos aparece na clareira. Os pintos juntam-se, nervosos, enquanto as duas avestruzes adultas fitam os intrusos. Os babuínos passam por elas cautelosamente, desviando o olhar, como se uma sanduíche de avestruz fosse a última coisa que lhes passasse pela cabeça. Mal os babuínos desaparecem de cena, desata a chover: uma chuvada costeira forte e súbita, batida a vento. O macho e a fêmea sentam-se imediatamente e levantam as asas enquanto as crias se aproximam a correr para se abrigarem. Há tantas enfiadas sob a asa esquerda do progenitor que parecem leitões a mamar. Depois as asas descem e elas desaparecem, completamente protegidas da chuva fria. Quando a chuva pára, a cabeça de uma das crias espreita entre as penas da asa e olha em redor, usando literalmente o progenitor como gabardina. É basicamente o oposto de enfiar a cabeça na areia. Como as condições atmosféricas já parecem aceitáveis, ela emerge, ainda quente e seca, regressando ao mundo. Talvez não possamos chamar-lhe inteligência, mas sugere um certo génio para a sobrevivência. E eu afasto-me a pensar se não devíamos todos ser tão bons pais como elas. j AV E S T R U Z E S

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Dominik Lubecki treina saltos mortais sobre um banco em Nowy Port, um bairro de classe operária onde, em 1946, os estivadores lançaram uma das primeiras greves da era comunista, exigindo melhores condições de trabalho. Quando não está a praticar skate, nem a compor hip-hop, “Lulek” faz voluntariado com jovens de Gdansk.

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A POLÓNIA É INSPIRADA PELA CIDADE QUE, HÁ 40 ANOS, VIU NASCER O MOVIMENTO SOLIDARIEDADE .

À ESPERA DE GDANSK TEXTO DE VICTORIA POPE

FOTOGRAFIAS DE JUSTYNA MIELNIKIEWICZ



Durante a era comunista, os estaleiros de Gdansk chegaram a empregar 20 mil trabalhadores e neles nasceu o Solidariedade, o primeiro sindicato independente do paĂ­s. Hoje em dia, estaleiros mais pequenos fabricam iates de luxo e torres para turbinas eĂłlicas.


DURANTE MUITO TEMPO, ASSOCIEI A CIDADE DE GDANSK À MINHA DETENÇÃO PELA POLÍCIA. FOI NO DIA 16 DE DEZEMBRO DE 1982 E, UM ANO ANTES, AS AUTORIDADES COMUNISTAS TINHAM IMPOSTO A LEI MARCIAL. Quiseram dar sinais de um abrandamento das restrições, ao libertarem o líder do Solidariedade, o sindicalista Lech Walesa, após onze meses de prisão. Com ar arrogante, um porta-voz do governo descreveu-o como “o antigo chefe de um antigo sindicato”. Uma vez que estava previsto Walesa fazer um discurso nesse dia, cerca de quarenta pessoas do nosso grupo (correspondentes estrangeiros, fotógrafos e os nossos assistentes polacos) amontoámo-nos à porta do seu prédio, na expectativa de entrarmos para uma entrevista. Em vez disso, a polícia impediu a nossa entrada. Como o Solidariedade se encontrava interdito, o discurso de Walesa e a nossa tentativa para falar com ele foram considerados ilegais. A princípio, o confronto causou alarme. Sabíamos que muitos 68

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Uma manifestação de mulheres percorreu as ruas da Cidade Velha na passada Primavera, dando voz a preocupações feministas e ambientais e proferindo palavras de ordem como “As Mulheres e a Terra têm de suportar demasiadas agruras”. Com a sua história multicultural, há muito que Gdansk promove os movimentos sociais progressistas.

Para o mar Báltico

Ilha Ostrow

Gdansk

E S TA L E I RO S HISTÓRICOS DE GDANSK (LENINE)

Centro Europeu de Solidariedade

Monumento aos Operários Mortos nos Estaleiros

Ma

rtw

Porta 2

POLÓNIA

EUROPA

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Museu da Segunda Guerra Mundial

G D A N S K

Złota Brama (Ponte Dourada)

Ulica Długa

CIDADE VELHA

Ilha Granary 500 m

SOREN WALLJASPER E SCOTT ZILLMER FONTE: ANNA MYDLARSKA, CENTRO DE SOLIDARIEDADE EUROPEIA


polacos tinham sido encarcerados. Porém, a tensão deu lugar a um alívio cómico. Eu estava grávida de quatro meses e os polacos do nosso grupo mostraram-se indignados pelo facto de a polícia me sujeitar a stress. Pouco depois, parecia que metade dos moradores do prédio sabiam que eu estava à espera de bebé. As mulheres paravam para gritar contra a polícia, que aceitou a descompostura com um embaraço silencioso. Nessa época, poucos polacos contestavam as autoridades e foi com certeza catárctico dar uma lição àqueles representantes do poder. Mesmo assim, levaram-nos para a esquadra. Uma vez ali chegados, limitaram-se a fazer-nos um aviso e a instruir-nos que nos mantivéssemos longe de Walesa, libertando-nos em seguida.

Agora, estou de volta a Gdansk. Passaram 40 anos desde as greves de Agosto nos estaleiros que deram origem ao movimento do Solidariedade, conduzindo a Polónia para a rota da democracia. Essas greves atraíram jornalistas como eu ao país, para a cobertura da revolução pacífica. Vivendo em Varsóvia durante três anos, fiz reportagens sobre a ascensão do sindicato com dez milhões de membros. Em 1989, escrevi crónicas sobre o compromisso alcançado entre a oposição e o Partido Comunista que permitiu eleições e uma vitória esmagadora do Solidariedade. Desde então, o país aprovou uma nova Constituição, protegendo a independência do poder judicial e de outras instituições, embora muitos considerem que o actual governo está a minar esses alicerces democráticos. À E SPERA DE GDANSK

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Jerzy Bohdan Szumczyk criou a sua escultura móvel “SOS” como forma de protesto contra a destruição de gruas e edifícios dos estaleiros históricos, numa zona marcada para demolição.


Lech Walesa, electricista dos estaleiros navais, tornou-se líder do Solidariedade em 1980, conquistou o Prémio Nobel da Paz em 1983 e

foi eleito presidente da Polónia em 1990. Com 76 anos, continua empenhado na vida política, exigindo ao governo que respeite a Constituição.

Neste porto marítimo do Báltico, com uma história de intercâmbio de mercadorias, pessoas e ideias que remonta à Idade Média, a rebelião mantém-se activa. A cidade tem desafiado o partido Lei e Justiça. Quando a Polónia se recusou a receber refugiados, no âmbito da iniciativa de abertura da União Europeia, Gdansk anunciou que estes seriam bem-vindos. E quando o chefe do partido no poder, Jaroslav Kaczynski, classificou a ideologia LGBT como ameaça à identidade polaca, as autoridades municipais prometeram proteger as minorias sexuais. o Centro Europeu para a Solidariedade encontra-se no seu coração. Trata-se de um monumento vivo ao sindicato e ao legado das greves, que começaram ali perto, no Portão n.º 2 dos Estaleiros de Gdansk, também conhecidos como Estaleiros Lenine. Walesa tem um gabinete no segundo piso. Quando me encontro com ele, usa uma camisa cinzenta decorada com a palavra KONSTYTUCJA. O significado da mensagem: o partido no poder espezinhou os direitos constitucionais fundamentais. Os órgãos de comunicação social controlados pelo Estado também têm as suas palavras preferidas para referir-se a Walesa, chamando-lhe traidor e ultrapassado. Após alguns cumprimentos cordiais, Walesa muda para um tom de voz mais grave e diz bruscamente “Pierwsze pytanie” [primeira pergunta] como se estivesse a cronometrar o início de uma corrida. Depois, responde pacientemente quando S E G DA N S K É A C I DA D E DA O P O S I Ç ÃO,

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lhe peço que fale sobre o momento em que entrou nos estaleiros, no dia 14 de Agosto de 1980. Ele recorda-o como “uma certa etapa, um certo momento”, acrescentando: “Esperava que não fosse a última etapa da minha luta.” Durante as negociações, conta, “eu sabia que não tinha muito a ganhar, pelo que tentei agir de forma a não perder muito”. A dado momento da nossa conversa, lanço uma graçola amigável: “Sei que não esteve a bordo de um barco a motor”. Refiro-me às alegações de que, quando a greve já estava a decorrer, ele apareceu a bordo de um navio militar. A acusação, feita por alguns dos seus críticos, procura provar a colaboração da polícia. Walesa limita o seu desmentido a um revirar de olhos. Regressamos ao significado da camisa. Segundo o meu interlocutor, a Polónia encaixa-se num movimento mundial para enfraquecimento dos valores democráticos. Ele destaca as leis que o governo fez aprovar no Parlamento para vergar a independência dos tribunais. “Também para mim, o sistema judicial e outras acções representaram um obstáculo”, reconhece, lembrando os desafios enfrentados quando foi presidente entre 1990 e 1995. Mas, segundo afirma, não se esforçou por “liquidar” a independência do poder judicial. “Assim que se elimina um obstáculo, é preciso eliminar o obstáculo seguinte. É desta maneira que as ditaduras emergem.” resistência e elegância. Em redor da zona industrial portuária, a linha do horizonte é um emaranhado de gruas, guindastes e chaminés de fábricas. Aqui e ali, ainda se vêem nas fachadas marcas de balas disparadas na Segunda Guerra Mundial. No centro da cidade, contudo, o horizonte é um panorama intacto de pináculos de igrejas, torres e telhados com telhas vermelhas. A paisagem das ruas também é característica do Velho Mundo, graças a um árduo esforço de reconstrução desenvolvido após a guerra. Ulica Dluga, a principal via pedonal, encontra-se ladeada de edifícios de estilo flamengo dos séculos XVI e XVII reconstruídos, com fachadas ornamentadas por esculturas, vasos e remates. São suficientemente grandiosas para os príncipes mercadores holandeses e outros que fizeram fortuna no transporte marítimo de cereais. Ao longo de vários séculos, Gdansk (ou Danzig, como foi conhecida durante a maior parte da sua história) foi uma cidade cosmopolita e próspera. Ali perto fica a famosa Zlota Brama, a Ponte Dourada, construída no início do século XVII e G DA N S K E M A N A S I M U LTA N E A M E N T E

MARK HENLEY, PANOS PICTURES


reconstruída após a sua destruição durante a Segunda Guerra Mundial. Com enormes janelas de dois andares e colunas clássicas, não há como não reparar nela, mas eu ando à procura de uma simples placa de mármore negro, incrustada no passeio. Diz o seguinte: “Gdansk é generosa. Gdansk partilha o seu bem. Gdansk quer ser uma cidade de solidariedade.” Foram as palavras proferidas pelo presidente da câmara Pawel Adamowicz, instantes antes de ser selvaticamente apunhalado nesta zona, perante centenas de pessoas, em Janeiro de 2019, num ataque que o matou. O agressor tinha um historial de criminalidade violenta, mas, para muitos em Gdansk, o assassínio reflectiu o febril ambiente político que opunha a sua visão aberta da cidade ao nacionalismo rancoroso e vitriólico do partido do poder. “A nossa situação está muito complicada”, afirma Julia Borzeszkowska, de 20 anos, estudante do primeiro ano de Direito na Universidade de Gdansk. “A violência e o ódio são tão fortes que levaram alguém a matar outra pessoa.” No último ano da escola secundária, Julia organizou uma manifestação de protesto intitulada Marcha Além das Divisões, que atraiu 1.500 jovens às ruas. Espreitando sobre as armações sobredimensionadas dos seus óculos, as palavras directas e duras de Julia abafam o tremor da sua voz. “A minha geração foi educada a acreditar na liberdade, na solidariedade e no combate pela democracia. Aprendemos isto com os nossos pais e avós. Estes temas eram importantes para eles e, agora, são importantes para nós.” Ela exprime-se com convicção resoluta e faz-me lembrar a frontalidade dos primeiros activistas do Solidariedade. Posso citar o seu nome? – costumava eu perguntar. E a resposta costumava ser afirmativa, apesar do perigo. Mais do que uma vez ouvi dizer: quero que os meus filhos saibam aquilo por que combati. Julia promete que retomará o activismo e eu acredito nela. O assassínio do presidente da câmara trouxe milhares de pessoas às ruas de Gdansk e Varsóvia. Aleksandra Zurowska, uma destacada médica de Gdansk, que, na companhia da sua filha Joanna Lisiecka-Zurowska, me apresentou a pessoas da cidade, recorda as manifestações de dor. Amigos de toda a Polónia telefonaram-lhe a exprimir pesar. “Diziam-me que estavam a assistir ao que acontece em Gdansk e que estavam, uma vez mais, à espera. É sempre Gdansk que nos guia nestes momentos.”

PERCURSO DA POLÓNIA NO PÓS-GUERRA

De satélite soviético comunista a nova democracia, este país do Leste Europeu teve uma história tumultuosa após a guerra.

JANEIRO DE 1947

No rescaldo da guerra e da ocupação soviética, o Partido Comunista conquista o poder após eleições fraudulentas.

JULHO DE 1983

Lei marcial revogada.

FEVEREIRO DE 1989

Conversações entre o governo e o Solidariedade conduzem à legalização do sindicato, à formação de um Senado e à criação do cargo de presidente.

JUNHO DE 1989

O Solidariedade conquista todos os lugares parlamentares nas eleições legislativas, excepto um.

DEZEMBRO DE 1970

Manifestações contra a subida dos preços irrompem em Gdansk, alastrando a outras cidades do Báltico. Pelo menos 40 pessoas são mortas, registando-se mais de mil feridos.

OUTUBRO DE 1978

MARÇO DE 1990

Mikhail Gorbachov é eleito presidente da União Soviética. Promove reformas que se repercutem na Polónia.

DEZEMBRO DE 1990

Walesa vence as eleições para o recém-criado lugar de presidente da Polónia.

NOVEMBRO DE 1995

Numa eleição renhida, Walesa perde a presidência para um antigo comunista.

SETEMBRO DE 2005 Karol Józef Wojtyla, arcebispo de Cracóvia, é eleito papa, com o nome de João Paulo II. A sua visita de 1979 à Polónia mobiliza milhões de pessoas descontentes.

O partido Lei e Justiça, socialmente conservador, vence as eleições gerais.

OUTUBRO DE 2007

O maior partido da oposição, o liberal Plataforma Cívica, vence as eleições gerais antecipadas.

MAIO DE 2015

O Lei e Justiça conquista a maioria nas eleições parlamentares.

JULHO DE 2017 AGOSTO DE 1980

Liderados por Lech Walesa, os trabalhadores dos estaleiros de Gdansk entram em greve. No final do mês, as autoridades reconhecem o Solidariedade como sindicato.

Grandes manifestações de protesto opõem-se a propostas legislativas que são consideradas um perigo para a independência do poder judicial.

DEZEMBRO DE 1981

Com o apoio da União Soviética, o líder da Polónia impõe a lei marcial. Walesa e outros dissidentes são detidos.

OUTUBRO DE 1982

Interdição do Solidariedade.

JANEIRO DE 2019

Pawel Adamowicz é assassinado. A sua morte resulta da crescente intolerância incentivada pelo partido Lei e Justiça.

FOTOGRAFIAS (A PARTIR DO TOPO): EDMUND PEPLINSKI, FORUM, ALAMY STOCK PHOTO; WOJCIECH KRYNSKI, FORUM, ALAMY STOCK PHOTO; PETER MARLOW, MAGNUM PHOTOS; WOJCIECH STROZYK


Nesta imagem da “Ilha dos Celeiros”, edifícios remodelados misturam-se com edifícios modernos nas margens do rio Motlawa. A ilha foi um entreposto naval deste porto do Báltico, onde os cereais eram guardados em centenas de armazéns. Grande parte dos edifícios foram destruídos durante a Segunda Guerra Mundial, mas algumas ruínas estão a ser recuperadas, à medida que a ilha vai sendo reurbanizada.

Embora o assassínio tivesse ocorrido 14 meses antes da minha visita, o tema é abordado com frequência, mesmo em conversas informais. É considerado um momento de ponderação para a cidade e os seus ideais. “No meu dia-a-dia, não penso naquele domingo horrível”, afirma a actual presidente da câmara, Aleksandra Dulkiewicz, igualmente apoiante de causas progressistas e do acolhimento de não-polacos. Agora, muitas vilas e cidades da Polónia adoptaram o chamado modelo de integração de estrangeiros de Gdansk. Estas boas-vindas aos recém-chegados (dos 460 mil habitantes da cidade, 25 mil são imigrantes da antiga União Soviética, Ruanda e Síria) são coerentes com o passado da cidade, como observa o historiador Aleksander Hall, natural de Gdansk. 74

N AT I O N A L G E O G R A P H I C

“Uma característica única de Gdansk é ter sido sempre uma cidade multicultural”, explica. Como porto, era um entreposto comercial sem entraves, que acolhia comerciantes e outros estrangeiros de muitos países, em especial alemães, mas também escoceses, holandeses e ingleses. Durante a Reforma de Gdansk, no século XVII, a cidade acolheu grupos religiosos perseguidos – menonitas holandeses, bem como huguenotes e judeus. Devido à crescente miscigenação étnica da cidade, esse legado está a renascer, afirma Hall. num romance de William Faulkner que ouvi pela primeira vez na Polónia quando um amigo jornalista, Jacek Kalabinski, a citou para explicar por que razão os polacos H Á UM A FA MO SA T I R A DA


parecem fixados nos capítulos dolorosos da sua história. “O passado nunca está morto. Nem sequer é passado.” Essas frases vêm-me à memória quando me contam os esforços desenvolvidos pelo Estado para controlar a narrativa histórica em Gdansk. O Ministério da Cultura afastou o director e curadores do museu da cidade dedicado à Segunda Guerra Mundial, com o argumento de que as exposições “não eram suficientemente polacas”. Converso com Joanna Lisiecka-Zurowska sobre a guerra, durante a viagem de comboio até Gdansk. Foi ali que ela cresceu e a sua história familiar exemplifica as complexidades do conflito, da forma como se desenrolou na sua cidade natal. Em vésperas da guerra, Gdansk era uma cidade de expressão predominantemente ale-

mã, existindo, porém, uma comunidade polaca implantada. Fora-lhe concedido um estatuto especial de cidade livre após a Grande Guerra: os polacos ficaram com o controlo dos caminhos-de-ferro e do acesso ao porto. No dia 1 de Setembro de 1939, um navio alemão bombardeou uma guarnição militar polaca, mas esta conseguiu resistir durante sete dias, apesar do seu poder de fogo inferior. O marido da bisavó de Joanna e os seus três irmãos, membros da elite culta, foram detidos e internados em campos de concentração, onde morreram. No final da guerra, a maior parte da cidade jazia em ruínas. Os sobreviventes da comunidade alemã fugiram ou foram expulsos. Os polacos foram retirados à força de regiões como a Ucrânia e reinstalados por toda a Polónia. As pessoas à procura de emprego acorreram a Gdansk para trabalharem nos estaleiros e noutras indústrias. A mulher de Walesa, Danuta, lembra-se de se ter virado para a mãe, antes de subir para o autocarro que a levava para longe da aldeia, e dizer com brusquidão: “Nunca mais cá volto.” Essa determinação ríspida ainda é característica de Danuta Walesa, apesar dos anos infelizes que viveu enquanto o marido enfrentava as autoridades. Depois de um amigo de um amigo ter combinado uma reunião, sentamo-nos à mesa da sua sala de jantar. Recordo-lhe que já nos tínhamos encontrado antes, naquele tempo em que o apartamento estava atravancado com visitantes ansiando por uma entrevista com Lech. Refiro que sempre tentei cumprimentá-la, mas ela parecia frequentemente abatida ou mesmo zangada. Ela mostra-se abalada pelo meu comentário, ficando com os olhos marejados de lágrimas. Tinha seis filhos na época das greves nos estaleiros e sentia-se isolada e sozinha. “Não sei como tive forças para sobreviver a tudo”, comenta. Danuta acredita que o país amadureceu e está pronto para a mudança, mas teme que não exista um líder para reunir a oposição. “O país precisa de um segundo Walesa”, afirma. E não apenas de um segundo Walesa, sublinha, mas de um núcleo forte de apoiantes e conselheiros como aquele de que o seu marido dispunha quando combateu o regime comunista. E lança um aviso quanto aos perigos que se perfilam: “Precisamos de nos erguer como antigamente ou então algo terrível irá acontecer.” Mesmo assim, mostra-se confiante de que, quando a mudança chegar, será a sua cidade que assumirá a liderança: “Não há lugar mais corajoso na Polónia do que Gdansk.” j À E SPERA DE GDANSK

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T E X TO D E A L E JA N D RA B O RU N DA F O T O G R A F I A S D E A MY S AC K A

FUTURO MENOS GELADO A V I D A C U LT U R A L E E C O N Ó M I C A D A R E G I Ã O D O S G R A N D E S L A G O S É M O L D A D A P O R I N V E R N O S G E L A D O S. À M E D I DA Q U E O AQ U EC I M E N TO T RA N S FO R M A A T R A D I Ç Ã O E M L A M A , A S E N S A Ç Ã O D E P E R D A VA I A U M E N TA N D O .


8 DE JANEIRO DE 2020, LAGO ERIE Com a água livre de gelo estendendo-se até ao horizonte num dia de Janeiro, o Parque Estadual de Presque Isle, no lago Erie, exemplifica o aquecimento dos invernos na região. 77


No Inverno passado, o gelo cobria apenas 19,5% das superfícies dos Grandes Lagos, um valor próximo do recorde mínimo.

8 DE FEVEREIRO DE 2020, LAGO HURON Em Oscoda, Elena Mackenzie examina o lago Huron a partir de uma das suas cabanas para arrendamento. As lajes espessas de gelo do lago costumam proteger a costa de tempestades, mas o Inverno passado foi quente e as ondas erodiram a propriedade situada junto da margem, causando prejuízos de milhares de euros. DIAS COM TEMPERATURA ABAIXO DO PONTO DE CONGELAÇÃO

93 64 DIAS

Média 1973-2019

DIAS

Inverno 2019-2020

PARA HAVER FORMAÇÃO DE GELO, A TEMPERATURA DA ÁGUA DO LAGO TEM DE DESCER ABAIXO DE 0°C E A ATMOSFERA TEM DE ESTAR AINDA MAIS FRIA. O AR ABSORVE CALOR DA ÁGUA, ARREFECENDO-A ATÉ A CONGELAR. É NECESSSÁRIA UMA ACUMULAÇÃO DE DIAS COM TEMPERATURAS NEGATIVAS (DTN) PARA ISSO ACONTECER.

78




As épocas de gelo dos Grandes Lagos estão a encurtar, em média, meio dia por ano.

26 DE JANEIRO DE 2020 LAGO ONTÁRIO Alex Whitlock vai surfar no lago Ontário. Por norma, nesta altura, cerca de 13% do lago está coberto de gelo. Este ano, porém, apenas 2% da superfície congelou. O Ontário está a perder o gelo de forma consistente junto da margem e a temperatura da sua água durante o Verão vem aumentando. DIAS COM TEMPERATURA ABAIXO DO PONTO DE CONGELAÇÃO

75 61 DIAS Média 1973-2019

DIAS

Inverno 2019-2020

81


A

inda há escuridão e a temperatura está muito abaixo de zero quando Kristie Leavitt pára o carro e desliga o motor barulhento do ATV. Por breves instantes, não se ouve qualquer som, com excepção do ténue sussurro do vento soprando sobre o gelo. O céu azul-marinho começa a aclarar. Kristie sente o ar frio a queimar-lhe os pulmões. Bem agasalhada num casaco rosa-choque, que condiz com a sua barraca e equipamento de pesca, ela sai do veículo para o gelo com meio metro de espessura que cobre este recanto do lago Munuscong, na região da península Superior, no estado de Michigan. As suas botas esmagam ruidosamente uma camada fina de neve enquanto ela começa o ritual de preparar uma das suas actividades preferidas: a pesca no gelo. Kristie é um dos quase dois milhões de pescadores no gelo dos Estados Unidos que passam o ano inteiro a ansiar pelo frio do Inverno. À semelhança de tantas outras pessoas da região dos Grandes Lagos, ela também depende do frio para subsistir. Ajuda a gerir as cabanas turísticas e a loja de iscos da família, situadas na margem do lago, e o grosso da facturação do negócio faz-se durante a época de pesca no gelo e dos passeios em moto de neve. Mas aquilo que Kristie fazia naquele dia de Fevereiro foi algo raro no último Inverno nos Grandes Lagos. A média da cobertura de gelo a longo prazo nos cinco lagos (Superior, Michigan, Erie, Huron e Ontário) é de 54%. No último Inverno, o gelo cobriu apenas 19,5% da superfície dos lagos, um valor mínimo quase recorde.

Alguns lagos da região nem sequer congelaram. Outros tiveram meros vestígios de gelo junto das margens ou congelaram durante pouco tempo. No fim-de-semana antes da incursão de Kristie, as temperaturas na região subiram para 4,5ºC e os pescadores no gelo arrastaram-se pela lama vestindo T-shirts. Uma estação demasiado quente não anuncia necessariamente uma nova tendência climática, mas os cientistas conseguem, cada vez mais, detectar padrões em registos dispersos de alterações na região dos Grandes Lagos e esses padrões apontam para uma conclusão arrepiante: o Inverno de 2019-2020, com os seus ténues vestígios de gelo, foi, provavelmente, uma amostra do que acontecerá no futuro.

História definida pelas condições climáticas dos Estados Unidos e do Canadá epresentam cerca de 20% da água doce existente à superfície da Terra. A pegada geográfica dos lagos também é difícil de conceber: as suas superfícies combinadas abrangem mais de 243 mil quilómetros quadrados, o tamanho aproximado do Reino Unido. A soma das margens dos cinco lagos é milhares de quilómetros superior à orla costeira do Pacífico ou do Atlântico dos Estados Unidos. A presença da água foi moldada por alterações naturais do clima da Terra. Agora, porém, os lagos enfrentam alterações sem precedentes e, desta vez, os seres humanos têm responsabilida(Continua na pg. 88) des no assunto. O S G RA N D E S L AG O S

28 DE DEZEMBRO DE 2019, LAGO SUPERIOR Parte da península Superior teve mais dias com temperaturas negativas do que o habitual em 2019-2020. Apesar disso, continua a não haver gelo no lago. Algumas zonas podem ter invernos normais, mesmo que tal não ocorra em redor. DIAS COM TEMPERATURA ABAIXO DO PONTO DE CONGELAÇÃO

106 130 DIAS

Média 1973-2019

DIAS

Inverno 2019-2020


6 DE JANEIRO DE 2020, LAGO ERIE Em Cleveland, Gracie Ezell, de 13 anos, caminha nas margens do lago Erie, vestindo calções. Diz que ainda não está frio para vestir calças. É provável que, ao longo da sua vida, os invernos mais quentes se tornem comuns. Os cientistas prevêem que, até 2050, se registem 21 a 25 dias adicionais com temperatura mínima acima de zero por ano na bacia dos Grandes Lagos. DIAS COM TEMPERATURA ABAIXO DO PONTO DE CONGELAÇÃO

58 18 DIAS

Média 1973-2019

DIAS

Inverno 2019-2020


CANADÁ

ÁREA EM DESTAQUE

OCEANO

EUA ATLÂNTICO

OCEANO PACÍFICO

Thunder Bay gelo

ale Roy a Ilh

Wawa

nuvens

gelo

Duluth Baía Whitefish

Cobertura de gelo (%)

Marquette 60 40 20 0

Cobertura média diária de gelo 1973-2019

Cob. máx. de gelo, 2020 23%

Nov.

e. M S a ult St

a ri

gelo

Jan. Fev. 17

Maio

Cobertura máxima de gelo diária, 2020

Linha costeira

Lago Superior

gelo

Profundidade: média 149m; máxima 406m Cobertura máxima de gelo na estação passada: 23% Máxima cobertura de gelo (em média), 1973-2019: 62% Ano da máxima cobertura de gelo: 1996 (100%) Ano da mínima cobertura de gelo: 2012 (8%)

en

B

a

G

re

Green Bay

Lago Michigan 85m; 281m Máx. 2020: 17% Média: 40% Alta: 1977, 2014 (93%) Baixa: 2002 (12%)

Milwaukee 17%

Lansing

Fev. 21

South Haven

Chicago MARTIN GAMACHE FONTES: JAMES KESSLER E LACEY MASON, NOAA, LABORATÓRIO DE PESQUISA AMBIENTAL DOS GRANDES LAGOS

Gary

e


Perda maciça

243.609 quilómetros quadrados

As alterações climáticas encurtaram consideravelmente a época do gelo nos Grandes Lagos. Uma conjunção complexa de factores (como o fenómeno El Niño, por exemplo) influenciam o clima todos os anos. Por isso, alguns invernos ainda são frios e gelados, mas as estações mais quentes e curtas estão a tornar-se mais comuns a longo prazo. Nesta rara imagem de satélite, com um céu quase sem nuvens, captada no dia 23 de Fevereiro, os cinco lagos apresentam-se quase sem gelo. Até no menos profundo de todos, o Erie, o gelo mal se vê.

Grandes Lagos R.U.

200 km

Comparação da área do Reino Unido com a dos Grandes Lagos.

1979 94,7%

100

Cobertura de gelo (percentagem)

244.106 quilómetros quadrados

80 60

1973-2019 Média 54%

40

Tendência

20

2020 19,5%

2002 11,8%

0 1973 1975

1980

1985

1990

1995

2000

2005

2010

2015

2020

GELO AO LONGO DO TEMPO A cobertura média de gelo a longo prazo dos lagos é de 54%. No Inverno passado, o gelo na sua extensão máxima cobria apenas 19,5% das superfícies dos lagos.

Canal do Norte

nuvens

Lago Ontário

Baí a G e o rgi ana

86m; 244m Máx. 2020: 11% Média: 30% Alta: 1979 (86%) Baixa: 2012 (2%)

Lago Huron 59m; 229m Máx. 2020: 32% Média: 65% Alta: 1996 (98%) Baixa: 2012 (23%)

Oscoda gelo Baía Saginaw

Caseville

32%

Cobourg

nuvens

Toronto

Rochester Niá g

Hamilton

a

ra

Cataratas Niágara

Buffalo

Lago Erie

Port Dover nuvens 16%

Detroit

PARQUE ESTADUAL DA ILHA PRESQUE

Windsor

Geneva Toledo

Fev. 29

Erie

Amherstburg

Cleveland

Kingston

Fev. 11

Mar. 1

Sarnia

11%

19m; 64m Máx. 2020: 16% Média: 83% Alta: 1978, ’79, ’96 (100%) Baixa: 2012 (14%)



O nível de água dos lagos atingiu recordes este ano, devido ao aumento da precipitação.

9 DE JANEIRO DE 2020 LAGO ERIE Calvin Knechtel, de Port Dover, posa em frente do restaurante da família junto do lago Erie. Os sacos de areia protegem o edifício das cheias. Depois de esta fotografia ser captada, o lago quebrou o seu recorde de altura máxima das águas de Fevereiro, estabelecido em 1987. DIAS COM TEMPERATURA ABAIXO DO PONTO DE CONGELAÇÃO

70 58 DIAS

Média 1973-2019

DIAS

Inverno 2019-2020

87


O planeta aqueceu, em média, quase 1ºC desde a década de 1880. A região dos Grandes Lagos acompanha essa tendência global: na bacia hidrográfica, as temperaturas atmosféricas aumentaram, em média, 0,9ºC em comparação com os primeiros 60 anos do século XX. E muito desse aquecimento tem-se concentrado nos meses de Inverno, empurrando o gelo rumo ao ponto de viragem. “O gelo lacustre é um fantástico indicador do clima”, afirma Sapna Sharma, especialista em ecologia lacustre da Universidade de York. Fornece uma “indicação clara das alterações climáticas e muitas comunidades já o registam, em alguns casos, há séculos”. No Japão, os sacerdotes de um templo xintoísta mantêm um registo com quase seiscentos anos de quando o seu lago congela na totalidade. Os ciclos climáticos naturais emergem desse registo, perdendo importância, nas últimas décadas, perante o aquecimento de origem humana que assolou o planeta. Mercadores que utilizam o rio Tornio, na Finlândia, para a sua actividade comercial têm registos das datas em que o gelo quebra, em cada ano, a partir de 1693. No lago Superior, as companhias de navegação mantêm registos da formação e decomposição do gelo desde 1857. Os registos mostram os anos frios com grandes extensões de gelo no início da estação e os anos quentes com menos. Em geral, contudo, são um sinal evidente do aquecimento induzido pelo ser humano desde a Revolução Industrial. “O que está a acontecer na região dos Grandes Lagos é uma pequena página de uma grande história”, diz Lesley Knoll. Especialista em lagos da Estação Biológica de Itasca da Universidade de Minnesota, ela estuda as relações culturais entre os seres humanos e os lagos congelados.

Ameaça aos rituais idílicos de Inverno o gelo foi sempre o lugar onde a vida ganhava sentido. Quando a sua família vinha, de automóvel, do Sul do estado de Michigan para visitar os avós, que na altura eram proprietários do acampamento à beira do lago, Kristie vestia camadas de roupa quente, ia buscar uma geleira com vairões à loja de isco e caminhava o mais longe possível sobre o gelo. Pegava na broca manual, cortava um canal no gelo espesso e abria um portal para o silencioso mundo subaquático.

PA R A K R I S T I E L E AV I T T, D E 3 8 A N O S ,

88

N AT I O N A L G E O G R A P H I C

Naquele tempo, quando Kristie era uma criança, tudo parecia simples. Ela levava o pouco equipamento que tinha para o gelo, empoleirava-se num balde de 20 litros virado ao contrário e permanecia sentada horas a fio, fazendo subir e descer a cana. Não apanhava muito, mas as sensações ficaram-lhe gravadas no cérebro, como a essência do Inverno. Kristie Leavitt não é a única. O gelo oferece benefícios para aqueles que se aventuram nele: descanso para alguns, diversão preciosa a outros, alimento e muito mais. A neve e o gelo também são componentes essenciais das economias locais desta região. A prática de esqui no gelo e de moto de neve valem quase três mil milhões de euros. Um único torneio de pesca no gelo pode injectar centenas de milhares de euros nas comunidades. Em algumas regiões do lago Superior, contudo, a época do gelo tem vindo a encurtar, em média, quase um dia por ano. Isto significa que, no ano em que Kristie nasceu, um Inverno no lago Superior teria mais um mês de cobertura de gelo do que hoje. O lago também está a aquecer mais depressa do que quase todos os outros grandes lagos da Terra. (Continua na pg. 94)


À E S Q U E R D A E E M B A I XO

10 DE JANEIRO DE 2020 LAGO ERIE A partir da esquerda: Kirk Williams, Cole Williams, Lee Spitzke e Mel Lyall caçam patos junto de Amherstburg, no Ontário. Esperavam fazer a transição sazonal da caça para a moto de neve, mas não fez frio suficiente. “Costumávamos todos andar de moto de neve aqui”, diz Kirk Williams. “Tínhamos imensa neve. Agora dura pouco tempo. Já não há Inverno.” DIAS COM TEMPERATURA ABAIXO DO PONTO DE CONGELAÇÃO

68 47 DIAS

Média 1973-2019

DIAS

Inverno 2019-2020

FUTURO MENOS GELADO

89



Nos cenários catastróficos, mais de 200 mil lagos do hemisfério norte poderão ter mais anos sem gelo.

29 DE JANEIRO DE 2020 LAGO ONTÁRIO A pesca no gelo era a regra de Inverno, mas agora estes pescadores precisam de embarcações no rio Niágara. As águas estão a aquecer mais depressa do que a atmosfera e as temperaturas atmosféricas subiram, no mínimo, 0,90C desde 1900. DIAS COM TEMPERATURA ABAIXO DO PONTO DE CONGELAÇÃO

70 58 DIAS

Média 1973-2019

DIAS

Inverno 2019-2020

91



As diversões de Inverno injectam milhões de euros nas economias locais junto das margens dos lagos.

DAYS

15 DE FEVEREIRO DE 2020, LAGO HURON Em Caseville, esta participante no concurso de mergulho do urso-polar prepara-se para enfrentar as águas geladas do lago Huron durante a 28.ª edição do Shanty Days, a festa da cidade. No passado, o evento era realizado no gelo. Agora a maioria das actividades decorre na costa porque o gelo do lago não tem uma espessura fiável. DIAS COM TEMPERATURA ABAIXO DO PONTO DE CONGELAÇÃO

93 64 DIAS

Média 1973-2019

DIAS

Inverno 2019-2020


1 DE MARÇO DE 2020 LAGO MICHIGAN Uma mulher e o seu cão passeiam pela praia lamacenta junto do descongelado lago Michigan, onde a cobertura de gelo no Inverno de 2019/2020 nunca superou os 20%. DIAS COM TEMPERATURA ABAIXO DO PONTO DE CONGELAÇÃO

80 53 DIAS

Média 1973-2019

DIAS

Inverno 2019-2020

Nos outros Grandes Lagos, as épocas de gelo também estão a encurtar cerca de meio dia por ano, em média. Isto pode parecer pouco, mas mascara alterações muito mais importantes num local onde a fronteira entre a existência de gelo, a ausência de gelo, a neve e a chuva pode ser extremamente ténue. Em alguns casos, é difícil perceber as alterações com clareza porque há uma enorme variação de ano para ano, diz Jia Wang, um climatologista da Agência Nacional para a Atmosfera e os Oceanos que estuda a cobertura de gelo na região dos Grandes Lagos. Embora situados a centenas de quilómetros dos oceanos, os lagos sentem as influências climáticas do Pacífico e do Atlântico e incorporam esses padrões climáticos nos seus. Por conseguinte, embora um ano possa ser mais quente do que o anterior, alguns invernos 94

N AT I O N A L G E O G R A P H I C

recentes foram gelados. Em 2013-14, o vórtice polar trouxe ar gelado do Árctico para a região continental dos EUA e o frio propagou-se muito para sul dos Grandes Lagos. A cobertura total de gelo nos Grandes Lagos foi superior a 90%, sendo tão espessa em alguns sítios que as brocas usadas pelos pescadores no gelo não alcançavam a água. A parte mais problemática é que a presença e crescimento de gelo nos lagos a cada Inverno pode desencadear uma sequência de eventos complexa. Talvez faça frio suficiente para o gelo se formar no início do Inverno, mas se o vento forte mantiver a superfície da água agitada, o gelo formar-se-á mais tarde. Talvez o Verão anterior tenha sido excessivamente quente, introduzindo calor adicional suficiente na água, que demora mais tempo a arrefecer e a chegar ao ponto em que con-


segue começar a congelar. Talvez caia um nevão no princípio da estação, isolando o gelo existente no topo, impedindo-o, contra-intuitivamente, de crescer depressa com as temperaturas frias. Há outros factores menos complexos. A atmosfera está a ficar mais quente. A água também, em alguns locais até mais depressa do que a atmosfera. No hemisfério norte, quase 15 mil lagos que congelavam repetidamente, congelam agora intermitentemente e alguns não chegam mesmo a congelar.

“Parece que algo está errado” para a região dos Grandes Lagos. O futuro trará mais e menos. Há mais calor no ar, retido nos gases com efeito de estufa que os seres humanos continuam a emitir para a atmosfera. Os especialistas em clima prevêem que as O I N V E R N O É V I TA L

temperaturas atmosféricas da bacia dos Grandes Lagos aumentem mais meio grau até 2045 e aproximadamente 3 a 5,5ºC até 2100. Também há mais calor na água, introduzido à força durante os verões longos e quentes. Contudo, alguns cientistas prevêem que se registem 15 a 16 dias com temperaturas abaixo de zero na bacia dos Grandes Lagos até ao final da década de 2030 e que esse número aumente um pouco na década de 2050. No final do século, dependendo da duração e da agressividade das medidas climáticas aplicadas, poderá haver menos 27 a 42 dias por ano com temperaturas abaixo de zero, na opinião dos cientistas. Em 2015, no acordo climático de Paris, 195 países signatários concordaram em tentar impedir que o aquecimento planetário ultrapassasse 2ºC para lá dos níveis pré-industriais. Sharma estima que, mesmo que esses objectivos sejam cumpridos, mais de 35 mil lagos no hemisfério norte poderão perder o seu gelo permanente no Inverno. Nos cenários mais catastróficos, mais de duzentos mil lagos poderão ter mais anos sem gelo. “O gelo e a água têm uma memória longa”, diz Richard Rood, que estuda a forma como as alterações climáticas evoluem na região dos Grandes Lagos. “Estamos a assistir a aumentos sistemáticos da temperatura a longo prazo, aproximando-nos mais do ciclo da água congelação-degelo. E os invernos ficam mais quentes e mais curtos. Por isso, já não há o tempo que havia para a termodinâmica fazer o seu trabalho.” Se a água não arrefecer o suficiente durante o Inverno, aquecerá mais e mais depressa na Primavera e Verão. Com o tempo, sobretudo à medida que o clima continuar o seu aquecimento inexorável, o sistema poderá alimentar-se cada vez mais num ciclo fechado que se reforça a si próprio. “A certa altura, estas zonas que talvez desenvolvam gelo em certos períodos e noutros não, vão mudar e nunca mais desenvolvem gelo”, assegura Knoll. “Como irão as pessoas interagir com essas massas de água quando elas não desenvolverem gelo nenhum? Como irão ajustar-se?” Kristie Leavitt hesita quando começa a falar no futuro. Aos seus olhos, o mundo continua coberto de gelo. Cada ano traz mais uma oportunidade de frio. De vez em quando, porém, a preocupação surge. “Às vezes, simplesmente não sei”, diz enquanto se prepara para pescar, com fios de cabelo soltos em redor do seu rosto empenhado. “Será que tudo isto ainda vai existir quando eu tiver 70 anos?” j FUTURO MENOS GELADO

95



ENQUANTO ALGUNS LEÕES-MARINHOS ROÍAM O MEU EQUIPAMENTO DE MERGULHO, OUTROS INVESTIAM EM BAILADOS VELOZES À QUEIMA-ROUPA. DE REPENTE, A SILHUETA DE UM MACHO ALFA IMPÔS-SE À MINHA FRENTE. T E X TO E F OTO G R A F I A S D E J OÃO R O D R I G U E S

Através de latidos incessantes, colisões de peito com peito, técnicas de luta livre e poderosas dentadas, o macho alfa (de tons

mais escuros) defende agressivamente o seu território. Os duelos provocam ferimentos, mas raramente são fatais. LEÕES-MARINHOS

97


NO “AQUÁRIO DO MUNDO”,

expressão que Jacques-Yves Costeau usou para qualificar o mar de Cortés, uma massa de água estreita que se estende entre o México continental e a península da Baixa Califórnia, existe um ilhéu encantado com segredos por revelar. Los Islotes, um conjunto de dois afloramentos de rochas sedimentares vulcanogénicas despidas de vegetação, é o epicentro de uma Área Marinha Protegida com 610 mil metros quadrados. Sob a superfície das águas azul-turquesa, um sortido de habitats constituído por pináculos, recifes, cavernas e cristas rochosas dá origem ao território mais austral do leão-marinho da Califórnia (Zalophus californianus). Neste santuário, uma colónia reprodutora com cerca de seiscentos indivíduos prospera. Embora muito semelhante às focas, mas dotado de um par de orelhas externas em vez de fendas auditivas, este mamífero marinho carnívoro da mesma família a que pertencem os nossos cães e gatos domésticos, diferencia-se ainda pela sua capacidade de rotação pélvica, que lhe permite caminhar ou mesmo correr em terra. No universo subaquático, as suas velozes e poderosas acrobacias são conferidas por amplas barbatanas peitorais que varrem a água como vassouras. De jubas majestosas, os machos alfa são seres poligâmicos com estatuto soberano, que lhes confere o direito exclusivo de acasalar com todas as fêmeas do seu reino ou, pelo menos, era nisso que acreditava a ciência até há pouco tempo. Durante a época reprodutiva em Los Islotes, enquanto as crias e juvenis brincam, as suas progenitoras tomam banhos de sol nas rochas, durante longas sestas revitalizadoras. Atentos a cada movimento, encontram-se os machos alfa que patrulham os vinte territórios deste ecossistema. Completamente focados na sua tarefa, privados de sono e alimento, chegam a perder muito do seu peso corporal (cerca de quatrocentos quilogramas) em apenas algumas semanas. É um sacrifício penoso, mas recompensador, tendo em conta que é o seu harém e a sobrevivência dos seus genes que estão em jogo. Um estudo genético realizado entre 1990 e 2018, por Claudia J. Hernández-Camacho, investigadora do Centro Interdisciplinar de Ciências Marinhas de La Paz, concluiu que apenas 15% dos machos alfa de Los Islotes são progenitores dos recém-nascidos da época reprodutiva seguinte. Isto não se deve apenas ao facto de as fêmeas se envolverem com machos oportunistas que aproveitam a ausência dos dominantes. Frequentemente, são os próprios alfa que decidem não copular as suas fêmeas. Qual será então a lógica por detrás de tamanho empenho e dedicação? Como se trata de animais filopátricos, ou seja, que permanecem ou regressam habitualmente à sua área de nascimento para se alimentarem e procriarem, muitos leões-marinhos da Califórnia de Los Islotes são, por definição, parentes. De acordo com a bióloga, os dados da análise comportamental, combinados com os resultados da leitura genética desta população ao longo de quase três décadas, revelaram que os machos dominantes estão dispostos a enormes gastos de energia, não só pelos seus filhos, mas também para protegerem as famílias extensas. Já no que diz respeito à escolha selectiva das suas parceiras, o objectivo revelou-se claro: evitar a consanguinidade. Uma abordagem à vida colectiva que até aqui era associada apenas a mamíferos com inteligência superior como os primatas, elefantes e golfinhos. Os leões-marinhos da Califórnia são a prova viva de que as aparências iludem ou não tivessem sido eles tomados por sultões durante séculos, quando na realidade se trata de verdadeiros guerreiros altruístas. Será este um sinal de que chegou o momento de reconsiderar a forma como olhamos para a capacidade cognitiva no reino animal? j 98

N AT I O N A L G E O G R A P H I C

AMÉRICA DO NORTE UNIDOS MA AR DE CO ORTÉS RTÉS

MÉXIC XICO CO

Após suster a respiração durante cerca de cinco minutos no ritual de acasalamento poligâmico, uma fêmea regressa à superfície para recuperar o fôlego.


LEÕES-MARINHOS

99


RETALHOS DA VIDA DE UMA

COLÓNIA DE LEÕES-MARINHOS

EM CIMA , À ESQUERDA

Ladrando nervosamente, uma fêmea que descansava profundamente na zona intertidal tenta chamar a sua cria que nadava longe do seu alcance. E M C I M A , À D I R E I TA

Durante a azáfama hormonal que se faz sentir na época reprodutiva, uma cria que se encontrava escondida numa pequena caverna, sai para espreitar timidamente a lente do fotógrafo. E M B A I X O, À E S Q U E R D A

Essencialmente rochoso e de aspecto desértico, o fundo marinho de Los Islotes, constituído por inúmeros habitats, reúne as condições ideais de protecção, maternidade e alimentação para a colónia residente de leões-marinhos. E M B A I X O, À D I R E I TA

Indiferente ao seu potencial almoço, um macho alfa atravessa um cardume de peixes durante uma acção de vigilância apertada, nos limites do seu território. 100

N AT I O N A L G E O G R A P H I C


os leões-marinhos da colónia do mar de Cortés nem sempre se predispõem a suportar os humores dos fotógrafos subaquáticos. Esta reportagem de João Rodrigues resulta de diversos mergulhos nesta área marinha protegida da costa mexicana e respeitou integralmente os regulamentos de contacto e proximidade com os animais selvagens ali protegidos.

C I O S O S D O S E U T E R R I T Ó R I O E P O N T U A L M E N T E AG R E S S I VO S ,

LEÕES-MARINHOS

101


102

N AT I O N A L G E O G R A P H I C


Como se estivessem a dormir acordadas, um grupo de fêmeas em fase de cio flutua à superfície, murmurando, enquanto os juvenis se aventuram em brincadeiras mais independentes.

LEÕES-MARINHOS

103


N OTAS |

DIÁRIO DE UM FOTÓGRAFO

LUZ EM LUGARES ESTRANHOS T E X TO D E DANIEL STONE ILUSTRAÇÕES FOTOGRÁFICAS DE REUBEN WU

Reuben Wu criou esta imagem usando projectores montados em drones para iluminar de forma dramática o glaciar Pastoruri na cordiheira Branca do Peru. 104

N AT I O N A L G E O G R A P H I C


LUZ EM LUGARES ESTRANHOS

105


O artista programou drones com iluminação para sobrevoarem em círculos as formações de arenito de Yant Flat, no Utah. Em seguida, juntou várias longas exposições nesta composição. 106

N AT I O N A L G E O G R A P H I C


LUZ EM LUGARES ESTRANHOS

107


108

N AT I O N A L G E O G R A P H I C


A iluminação da pedreira de Moel Tryfan, no Norte de Gales, exigiu uma espécie de pintura metódica com a luz dos drones, de modo a enfatizar os contornos das vertentes rochosas. LUZ EM LUGARES ESTRANHOS

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N OTAS |

DIÁRIO DE UM FOTÓGRAFO

A L U Z A RT I F I C I A L AC R E S C E N TA FA S C Í N I O AO A M B I E N T E N AT U R A L .

da Terra podem tirar o fôlego, mas, para Reuben Wu, isso não era suficiente. Este fotógrafo, artista visual e produtor musical, achou que faltava algo aos majestosos glaciares, montanhas e praias do planeta. Mais especificamente: faltava luz não-natural. A ideia nasceu de um erro. Certa noite, junto do vale da Morte, na Califórnia, Reuben montou uma máquina fotográfica para captar uma sequência em timelapse do cenário escuro que tinha diante de si. Uma carrinha de caixa aberta passou por perto e banhou a cena com a luz dos faróis. Inicialmente, “fiquei aborrecido”, conta Reuben. “Quando vi as imagens, porém, fiquei fascinado. Eis a luz artificial num ambiente natural.” A justaposição deu origem ao seu desejo de tentar acrescentar luz a outras cenas nas quais ela não penetra: lagos, desfiladeiros ou altos pilares rochosos do deserto. Comandou drones equiA S PA I S AG E N S I M P R E S S I O N A N T E S

pados com projectores, fazendo-os voar à frente das máquinas fotográficas e captando exposições longas de 30 segundos. Criou também composições com as imagens e, em algumas, retocou a versão final para remover o drone, deixando apenas a luz que este projectava. O resultado foram paisagens sobrenaturais, enigmas visuais que desafiam o observador a descobrir como tais cenas foram criadas. Reuben Wu fotografa sobretudo nos Estados Unidos, onde vive. No entanto, com espírito de exploração, qualquer paisagem da Terra é candidata a este tipo de registo. Qualquer cena, em qualquer lugar, pode ser captada de uma forma artificial. Reuben Wu pretende que a sua série intrigue o leitor, levando-o a debater as fronteiras da arte fotográfica. Segundo ele, a desorientação abre a mente a outras formas de análise. j

Reuben Wu projectou um tipo de luz diferente sobre formações rochosas junto de Árbol de Piedra, na Reserva Nacional de Fauna Andina Eduardo Avaroa na província de Sur Lípez, na Bolívia.

110

N AT I O N A L G E O G R A P H I C


3 QUESTÕES

|

E X P L O R E

Em busca de surpresas do quotidiano

JEFF GOLDBLUM

científico e algo da nossa própria história, desencadeada por esses assuntos.

O programa “O Mundo segundo Jeff Goldblum” é transmitido na Disney+ a partir de 15 de Setembro. Para uma versão alargada desta entrevista, visite www.nationalgeographic. co.uk/jeffgoldblum

parece ter sempre a postura alerta e os olhos arregalados. Gesticula com a expectativa. É uma qualidade que imprimiu a uma série de personagens em filmes como “Jurassic Park” e “Dia da Independência”. Agora, o actor e músico de 67 anos nascido na Pensilvânia revela a sua curiosidade excêntrica num novo programa para a National Geographic e Disney +. Não quer explorar temas de política, doença ou crime, mas vai falar de bicicletas, piscinas e tatuagens. É “O Mundo segundo Jeff Goldblum”. JEFF GOLDBLUM

Os seus temas parecem bastante díspares, mas universais. Porque escolheu estes? Porque são eclécticos, uma mistura, uma caldeirada, uma amálgama com muitas surpresas. Recentemente, apresentei três episódios de um programa da National Geographic chamado “Explorer” e adorei. Foi assim que surgiu o programa. Pensámos em abordar temas familiares, nos quais fosse possível encontrar algo inesperado, histórico, FOTOGRAFIA E ENTREVISTA: SIMON INGRAM

Tem curiosidade em saber de onde vem a sua curiosidade? Como tenho dois filhos, estou num ciclo de curiosidade apetitosa. Os meus filhos olham à volta e perguntam de onde vem cada objecto. Talvez seja algo que transmitimos. Ou talvez a nossa espécie tenha de ser curiosa para se ligar ao mundo em redor. Enquanto fazia este programa, li alguns livros de Yuval Harari como “Sapiens”, “Homo Deus” ou “21 Lições para o Século XXI”. Questões de fundo como as alterações climáticas, os perigos da proliferação nuclear ou as perturbações tecnológicas só podem ser resolvidas através da cooperação global. Na verdade, a única razão pela qual a espécie humana prosperou foi por termos cooperado em grupos e, portanto, termos ficado curiosos uns sobre os outros. Se pudesse viajar no tempo, quem gostaria de conhecer? Comecei a ler um livro sobre o naturalista Alexander von Humboldt. Dizem que o nome dele foi mais usado do que qualquer outro para nomear objectos ou teorias. Ele previu os desafios das alterações climáticas, as consequências não-intencionais da civilização, a revolução industrial. Acho que o cérebro dele seria um bom candidato. O meu programa revelará o que sou, sem fingir que sei mais do que sei, mas interessado, a conversar com pessoas interessantes de sítios inesperados. E a deixar a minha mente, tal como ela é – a vaguear livremente. j


N AT I O N A L

G E O G R A P H I C

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NA TELEVISÃO

Gordon Ramsay: Uncharted 2 E S T R E I A : 4 D E S E T E M B R O, À S 2 2 H 1 0 TO DA S A S S E X TA S - F E I R A S

MayDay Desastres Aéreos E S T R E I A : 1 0 D E S E T E M B R O, À S 2 2 H 1 0

Sempre que um avião se despenha, o mundo sabe. E começa o trabalho de uma casta especial de investigadores, cuja missão é descobrir as causas da catástrofe. Cada episódio da série “MayDay” conta com testemunhas oculares, encenações realistas, animações e entrevistas com investigadores.

Controlo Mental, Aliens e Área 51 5 D E S E T E M B R O, À S 1 7 H

Em Setembro, estreia no canal National Geographic a segunda temporada da série “Gordon Ramsay: Uncharted”. Carismático, duro e directo, o chef britânico é proprietário de centenas de restaurantes em todo o mundo e oito deles foram reconhecidos com estrelas Michelin. Em “Gordon Ramsay: Uncharted”, dá continuidade à sua volta ao mundo em busca de culturas e receitas locais menos conhecidas. Nesta temporada, visita a África do Sul, a Noruega, a Tasmânia, Samatra, entre outros territórios. Numa floresta esquecida ou nas margens de um lago pouco conhecido, pode estar uma receita que mudará a gastronomia.

Durante décadas, criaram-se mitos e teorias da conspiração sobre projectos ocultos dos Estados Unidos. Terão mesmo existido? Como seria possível manter em segredo projectos como a famosa Área 51? Que fundo de verdade existe nesse mundo oculto? NATIONAL GEOGRAPHIC (NO TOPO); CINEFLIX 2018 (AO CENTRO) E NATIONAL GEOGRAPHIC CHANNELS (EM BAIXO)


Europe’s New Wild E ST R E I A : 5 D E S E T E M B RO, À S 1 7 H

Secrets of the Zoo 2.5 E S T R E I A : 7 D E S E T E M B R O, À S 1 7 H

Regressamos aos bastidores de um dos maiores zoológicos dos Estados Unidos: o Columbus Zoo and Aquarium. “Secrets of the Zoo” conta as histórias mais dramáticas e hilariantes da vida selvagem ali exibida e da equipa que torna possível a existência de um ambiente saudável e calmo para os animais e para os visitantes.

Wild Experts Q U A RTA S - F E I R A S , ÀS 17 HORAS NATIONAL GEOGRAPHIC (NO TOPO, AO CENTRO E EM BAIXO)

No Velho Continente, a vida selvagem ressurge graças a inovadores projectos de conservação. A série “Europe’s New Wild” parte em busca das histórias mais inspiradoras sobre as espécies selvagens da Europa: do Círculo Polar Árctico aos rios e zonas húmidas mais inóspitos, das florestas densas às montanhas escarpadas, espécies resilientes de fauna e flora renascem e prosperam se lhes forem dadas condições de recuperação. O primeiro documentário da série acompanha precisamente o projecto de reintrodução do lince-ibérico na Península Ibérica. Filmado em Portugal e em Espanha, dá conta dos esforços de reprodução em cativeiro, mas também das iniciativas de recuperação de habitats e reabilitação das cadeias alimentares. A nova fauna europeia recupera.

Nas quartas-feiras de Setembro, regressam os documentários de vida selvagem. “Secrets of the Zoo: The Wild Side”, “Fish My City Comp”, “Dog: Impossible Compilation” e “Wild Men: Simon Keyes” reúnem histórias sobre a convivência de seres humanos com espécies animais em ambientes urbanos.


P R Ó X I M O

N Ú M E R O

À redescoberta dos dinossauros

Novos métodos de investigação e uma vaga de fósseis recém-descobertos estão a transformar tudo o que sabemos sobre estas criaturas.

N AT I O N A L G E O G R A P H I C

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OUTUBRO 2020

Um continente indestrutível

Melhorias dos índices de saúde, educação e direitos das mulheres começam a transformar a realidade de um continente que luta contra a adversidade.

Reflexos do passado romano

Quem era a mulher sepultada há dois mil anos na antiga cidade de Emona? Por que razão o seu túmulo serviu de referência para muitos outros enterramentos?

Uma das maiores águias do planeta

Cientistas, agricultores, proprietários e agentes turísticos formaram uma coligação improvável no Brasil para salvar uma das maiores águias do planeta.

ILUSTRAÇÃO: DAVIDE BONADONNA


História

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