National Geographic Portugal #235 (Outubro 2020)

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N AT I O N A L G E O G R A P H I C . P T

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OUTUBRO

2020

UM NOVO OLHAR SOBRE OS A CIÊNCIA RECONSTITUI A HISTÓRIA E O

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N.º 235 MENSAL €4,95 (CONT.)

ASPECTO DESTES ANIMAIS PRÉ-HISTÓRICOS

Á F R I C A : UM F U T U RO C OM N OM E S E APELIDOS

E S LOV É N I A , R E F L E XO S D E UM PA S SA D O ROM A N O

A A M E AÇ A DA HARPIA DO BRASIL



N AT I O N A L G E O G R A P H I C

OUTUBRO 2020

S U M Á R I O

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Vive-se uma nova era de descobertas sobre os dinossauros. Técnicas científicas inovadoras e uma avalancha de fósseis recém-descobertos permitem aos paleontólogos reescrever o que se sabia sobre estas criaturas.

África, o continente onde nascem mais crianças no planeta, está a mudar: os avanços na educação e direitos das mulheres e a emergência da tecnologia estão a transformar um território castigado pela pobreza, pela guerra e pelo terrorismo.

Um novo olhar sobre os dinossauros

T E X TO D E M I C H A E L G R E S H KO

África: um futuro com nomes e apelidos

F O T O G R A F I A S D E PA O L O V E R Z O N E

T E X T O D E X AV I E R A L D E K O A

I L U S T R A Ç Õ E S D E D AV I D E B O N A -

F OTO G RA F I A S D E A L F O N S

D O N N A E GA B R I E L U G U E TO

RODRÍGUEZ

Na capa Um macho do género Deinonychus vigia enquanto eclodem os ovos que incubou. Estudos recentes trazem novas pistas sobre a morfologia e comportamento dos dinossauros. ILUSTRAÇÃO DE DAVIDE BONADONNA

DAVIDE BONADONNA


R E P O R TA G E N S

S E C Ç Õ E S

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FORUM A S UA F OTO

Reflexos de um passado romano Escavações arqueológicas num cemitério paleocristão do centro histórico de Ljubliana, capital da Eslovénia, pretendem revelar um mistério: quem seria a mulher influente ali sepultada? Por que razão se construiu em torno do seu túmulo uma necrópole com mais de 350 sepultamentos? T E XTO D E M A R JA N Ž I B E R N A

VISÕES EXPLORE O forno solar do Padre Himalaya GRANDE ANGULAR O fogo e a arqueologia E D I TO R I A L

F OTO G R A F I A S D E A R N E H O DA L I Č

N A T E L E V I SÃO

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P RÓX I M O N ÚM E RO

É preciso salvar a harpia da Amazónia!

Cientistas, produtores de castanha, proprietários agrários e agentes turísticos estão a juntar forças para conservar uma das maiores águias do mundo. A harpia está a perder habitat, mas as notícias mais recentes são animadoras. T E X TO D E R AC H E L N U W E R F OTO G RA F I A S D E K A R I N E A I G N E R

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O filho de todas as mães Mães negras posam para a fotografia com os filhos que temem perder devido à violência nas cidades. Reproduzem imagens icónicas da arte cristã para alertar para os danos provocados pela violência. O projecto fotográfico chama-se “Stranger Fruit”. T E XTO D E LO N N A E O ’ N E A L F OTO G R A F I A S D E J O N H E N RY

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DE CIMA PARA BAIXO: ARNE HODALIČ; KARINE AIGNER; JOHN HENRY



F O R U M

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BUSSACO, 1810

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Aprender com o passado

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O mapa-suplemento dedicado à Terceira Invasão Francesa na Região Centro [Agosto] é um instrumento pedagógico importante para as escolas. À medida que os anos passam e desaparecem os testemunhos directos de um evento tão traumático como aquele, cabe aos historiadores e aos comunicadores relembrar o horror que se viveu em Portugal na primeira década do século XIX e a forma como aquele evento moldou até a cultura. A história sobre a possível influência das Invasões Francesas na gastronomia local é particularmente saborosa. — A R L E T E G O N Ç AV E S , C O I M B R A

Imagens de ontem e de hoje

Avestruzes como modelo

Foi preciso ler a vossa revista [Agosto] para perceber que o território que conheço bem tem afinal muito em contacto com o que era há mais de duzentos anos. Achei particularmente fascinante a comparação entre a gravura da travessia do rio Mondego e o local onde os pescadores, ainda hoje, capturam peixe. Parece que nada mudou na paisagem. Julgo que há ainda um forte papel das autarquias e autoridades locais para contextualização da paisagem. Por comparação com o que se faz na Grã-Bretanha, com o British Heritage, Portugal tem muito a ganhar se estimular roteiros de visita de locais históricos, de sítios de batalha e outros marcos monumentais. Mas, como sempre, estamos atrasados e sem grande vontade de acelerar o passo.

Já tinha saudades dos artigos de história natural! A reportagem sobre as avestruzes [Setembro] tinha um tom oscilante entre a sátira e a descrição de comportamentos ecológicos. Confesso que modifiquei a minha percepção destas aves. Tal como o autor da reportagem, tomava-as como ícones de menor inteligência, mas descobri uma ave de cuidados extremosos e carinhosos para com a sua prole. — J OA N A R I B E I R O, L I S B OA

—J Ú L I O RA MO S , LO N D R E S

Ilustração minuciosa Que delícia o Lado B do vosso mapa [Agosto]! Debrucei-me sobre cada situação representada, cada ponto de combate e cada acção de saque. Parabéns pelo notável trabalho de documentação e representação dos acontecimentos de 1810 na minha região. Em ano de pandemia, decidi visitar a região do Bussaco depois de ler a cobertura jornalística que a National Geographic lhe dedicou. Bem hajam! —A N A B E L A F O RT E S , B R AG A N Ç A

Robótica: boa ou má Percebo a vossa intenção de debater as vantagens e vícios da introdução da robótica [Setembro] no nosso quotidiano, mas é um mundo perigoso. Temo o dia (que porventura está próximo ou até já presente) em que os robots serão sistematicante preferidos para executar os trabalhos humanos. Que mundo desumano será esse em que o trabalhador não conseguirá encontrar no trabalho uma das suas fontes de satisfação e salário? — M I G U E L G O U V E I A , P O RTO

Robótica A robótica não é um tema do futuro. Já está entre nós. Gostei muito da reportagem precisamente pela diversidade de mundos que a robótica vai abrindo e que, como é óbvio, pouco têm que ver com as perspectivas sombrias da ficção científica. — R U T E S I M A S , L I S B OA

Correcções

Por lapso, a lombada da edição de Agosto repetiu a de Julho. Na reportagem “No Rasto das Invasões”, não está representado na fotografia o major Graça, mas sim o sargento-chefe Lopes. Na mesma reportagem, a travessia do Mondego, perceptível na gravura, não se refere às tropas francesas nem ao seu momento de retirada. Só as tropas anglo-lusas atravessaram o vale do Mondego naquele vau. No mapa-suplemento, refere-se por erro que o desembarque das tropas na Figueira da Foz ocorreu em 1908 quando deveria estar 1808. Assinala-se por fim como “Capela Riscas” a “Capela de Nossa Senhiora da Conceição” e “Igreja Largo do Pelourinho” como “Igreja Matriz e Jardim do Visconde”, em Mira.



V I S Õ E S

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A SUA FOTO

J O Ã O P E D R O M A R T I N S Não é a primeira vez que as Buracas do Casmilo, uma formação geológica de Condeixa-a-Nova,

figuram nesta rubrica, mas o uso da luz, da escala e do contraste com o céu nocturno desta imagem são absolutamente originais.

M A R C O S R I B E I R O O “Project Dance” consiste em captar imagens de bailarinos em locais icónicos de Lisboa. A fotografia con-

gela um instante no Cais das Colunas, a velha porta de entrada da cidade, onde desembarcavam chefes de Estado e dignitários.


M A R C O S R I B E I R O HorseShoe Bend, no Arizona (EUA), é uma “ferradura”, uma curva acentuada em forma de cotovelo do rio Colorado. O desnível neste local é de cerca de quatrocentos metros e a fotografia implicou uma proximidade considerável do precipício.

G O N Ç A L O C A L A D O Nas piscinas das Aguncheiras, perto do cabo Espichel, um peixe-porco nadava numa poça. “Quando ten-

távamos molhar os pés, ele mordiscava. Não arriscámos”, diz o autor. O peixe-porco teve de esperar que a maré subisse para sair.


O INESTIMÁVEL

VALOR SOCIAL DA FLORESTA Cerca de 300 milhões de pessoas em todo o mundo vivem nas florestas e mais de mil milhões dependem destas para a sua subsistência, o que, segundo o World Wide Fund for Nature (WWF), releva o papel deste ecossistema e destaca o setor como um dos poucos em que as comunidades locais estão na primeira linha da cadeia de valor. É neste contexto que as florestas plantadas, quando instaladas em locais adequados e bem geridos, contribuem para a preservação de valores ambientais e socioculturais, como a regulação ecológica (do clima, ar, água e solo), a conservação da biodiversidade, a recreação ou o sequestro de carbono. São ainda fonte de múltiplos produtos de origem florestal que servem o bem-estar das pessoas. Com cerca de 80% da população portuguesa concentrada na faixa litoral urbana, a qual tem apenas uma perceção lúdica do valor da floresta, é precisamente no mundo rural, desertificado e despovoado, que as pessoas reconhecem a importância da floresta produtiva sustentável, que lhes permite retirar alguma rentabilidade dos seus terrenos. Num interior caracterizado pela pequena propriedade privada e escassas alternativas de exploração com valor económico, a floresta de alta rentabilidade associada às fileiras do eucalipto, sobro e pinheiro, combate o abandono e a ausência de gestão do espaço rural, potenciando oportunidades de negócio e a criação de emprego local e regional. As fileiras que trabalham nesta floresta incluem milhares de pequenas empresas que se dedicam à gestão florestal, ao corte e transporte de madeira ou à certificação, que estão na base de um importante cluster para a economia nacional.

As florestas sustentáveis da The Navigator Company apoiam a National Geographic Portugal a diminuir a sua pegada ecológica. Fontes: WWF (2017). “International forests day - why forests matter” | Natural Capital Coalition (2018). “Natural Capital Protocol – Forest Products Sector Guide”. WBCSD | The Newsletter. “A floresta que sustenta e protege uma comunidade rural”. The Navigator Company. Dez. 2019


publirreportagem

A FLORESTA QUE SUSTENTA UMA COMUNIDADE RURAL O Plano de Gestão Florestal implementado no baldio da freguesia de Linhares, no Minho, transformou a vida daquela comunidade rural. Depois de dois incêndios que devastaram parte da floresta que circunda a aldeia, a população insistiu na exploração florestal dos seus baldios e, em 2012, arrendou uma parcela de terreno para produção florestal da indústria da pasta e papel, ao mesmo tempo que eram criadas zonas de proteção ao redor da freguesia. Plantada com eucalipto, a floresta de produção de Linhares gera uma renda anual por 24 anos, que reverte para o desenvolvimento da agricultura e da pecuária da comunidade local, tendo já comparticipado também na educação e na saúde dos seus habitantes. A renda do eucaliptal assegura 75% do orçamento da Assembleia de Compartes de Linhares, grande parte do qual é aplicado na limpeza e conservação da floresta autóctone (pinheiro-bravo e carvalho) que ocupa mais de metade da área do baldio. O mais recente investimento aconteceu no final de 2019, com a plantação de 1 800 árvores, entre castanheiros, nogueiras, aveleiras, pinheiros-mansos e medronheiros – mais dois hectares de floresta autóctone que serão herança para as gerações futuras de Linhares.


V I S Õ E S


Irlanda

Newgrange é um dos sítios pré-históricos mais famosos do mundo e Kerbstone 67 é uma parede decorada com espirais e losangos. Noventa e sete destas lajes gigantes foram depositadas em redor de um monte antes da colocação de um muro de quartzito. KEN WILLIAMS


Portugal

Em meados de Agosto, a ribeira de Seda, junto de Portalegre, forma largas poças que resistem à seca e servem de território para o guarda-rios. Esta ave aproveita o peixe “aprisionado” nestas manchas de água e caça facilmente as suas presas em mergulhos que podem atingir 40 km/h. RICARDO LOURENÇO




Espanha

Entre o azul do mar e o verde da vegetação típica de estuário, um longo areal raiado define a paisagem que se prolonga por quilómetros em redor de Cádis. As dunas majestosas e os extensos areais fazem da Costa da Luz gaditana um dos paraísos ibéricos de Verão. RICARDO LOURENÇO


E X P L O R E OS MISTÉRIOS E MARAVILHAS QUE NOS RODEIAM N AT I O N A L G E O G R A P H I C

O FORNO SOLAR DO PADRE HIMALAYA EM 1904, NA EXPOSIÇÃO UNIVERSAL DE SAINT-LOUIS, um inventor

português arrecadou o grande-prémio, duas medalhas de ouro e uma de prata e espantou cientistas, curiosos e até o presidente norte-americano Theodore Roosevelt. Chamava-se Manuel António Gomes, mas em Cendufe (Arcos de Valdevez) a população já se habituara a chamar-lhe Padre Himalaya, alcunha motivada pela sua enorme altura e utilizada até nas publicações científicas. Esquecida durante décadas, a história deste inventor português foi redescoberta por Jacinto Rodrigues, da Universidade do Porto, que recuperou desenhos, patentes e cartas. O município de Arcos de Valdevez homenageará o famoso Pyrheliophoro (à letra, “o que traz fogo do Sol”) e o seu criador no âmbito das Oficinas de Criatividade Himalaya, um espaço interpretativo em funcionamento no próximo ano, que inclui áreas de ciência e uma cúpula de projecção de 360º de alta definição. O objectivo do Pyrheliophoro era o aproveitamento industrial e agrícola do calor do Sol, uma visão revolucionária das energias renováveis no início do século XX. Nos modelos anteriores, os movimentos do concentrador eram manuais. Em Saint Louis, o Pyrheliophoro orientava-se automaticamente em função do astro-rei e era guiado por um relógio que calculava a posição do Sol. Um desvio causaria um desastre.

São Francisco

EUA

Nova Iorque

A distância entre o espelho e o foco era de 10 metros.

ST. LOUIS

Carismático, mas também ingénuo, o padre Himalaya captou a atenção de todos, mas aceitou, depois da Exposição, um convite para visitar os Estados Unidos. Quando regressou, o seu engenho tinha sido vandalizado.


UMA VIDA AQUÉM DO GÉNIO APROVEITAR O SOL Desde a Antiguidade que o homem sonha captar a tremenda energia do Sol. A temperatura do astro varia muito, mas, o núcleo deverá estar a 15 milhões de graus Celsius.

ARCOS DE VALDEVEZ

Manuel António Gomes nasceu em 1868, em Cendufe, freguesia de Arcos de Valdevez.

Os espelhos eram de bronze martelado e o cadinho de chumbo. “A estrutura à distância tem a silhueta parecida à de uma concha”, escreveu o “The New York Herald”. 80 m2 de reflexão.

Aos 14 anos, os pais enviaram-no para o seminário de Braga, onde viria a ser ordenado padre. Ali ganhou também a alcunha “Himalaya”, pela sua altura desmesurada.

O princípio operativo, já integrado na patente apresentada em 1899, era um sistema óptico que conduz os raios solares a um único ponto: o cadinho para fusão dos materiais. «Constatei que a intensidade calorífica nesta zona aumentava quase proporcionalmente ao número de feixes de raios que eu fazia exactamente sobrepor», explicou Himalaya.

Apaixonado por ciência, dedicou-se a partir de 1897 ao estudo e fabrico de engenhos capazes de concentrarem a energia solar. Partiu em 1899 para Paris para aprofundar os estudos. Testou dois sistemas diferentes: a refracção por lentes e a reflexão através de sistemas de espelhos. Insatisfeito, orientou a investigação para as lentes metálicas.

Himalaya conseguiu em Saint Louis um ponto de focagem do feixe de 15 centímetros.

Metais fundidos pelo padre Himalaya em 1904: Graus Celsius

Manganês 2850,0

3000 2500 2000

Ferro 1538,0 Ouro 1064,0 Prata 961,8 Alumínio 660,3

1500

Em 1900, em Neuilly (França), fez o primeiro protótipo. Entre 1900 e 1901, publicou várias patentes, obcecado com a vontade de atingir temperaturas superiores a 1.0000C.

1000 500 0

Em 1902, apesar de um fracasso inicial, conseguiu finalmente provocar a oxidação de nitrogénio a altas temperaturas Obteve a consagração em Saint Louis, atingindo temperaturas de quase três mil graus Celsius.

Himalaya desenvolve para Saint Louis um novo concentrador. A fornaça permanece na horizontal e, ao centro desta, estava o foco que concentra todos os raios. O objectivo portanto passou a ser obter um feixe de calor reflectido num plano horizontal. E o cadinho é montado num carril, de forma a poder acompanhar variações da posição do Sol ao longo do dia.

Tornou-se membro da Academia das Ciências em 1908 e continuou a investigar energias renováveis até 1920. Desiludido e esquecido, viajou para os Estados Unidos e para a Argentina, onde viveu entre 1927 e 1931. Morreu em Viana do Castelo em 1933 e está sepultado em Cendufe.


G R A N D E

A N G U L A R

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IDADE DO BRONZE

O FOGO E A ARQUEOLOGIA N E M T U D O É M A U N U M I N C Ê N D I O F L O R E S TA L . N A Z O N A C E N T R O, U M M U N D O R E V E L A - S E . T E X T O : P E D R O S O B R A L D E C A R VA L H O ILUSTRAÇÕES: ANYFORMS

Estávamos em 1991 quando, após um violento incêndio no alto do “Monte Branco”, na serra da Muna, mesmo ao lado do aeródromo de Viseu, deparámos com um achado invulgar. À nossa frente, encontravam-se dois pequenos montículos de quartzo branco que contrastavam com o negro resultante do fogo. Era a ponta do icebergue de um mundo que mal se conhece: os túmulos dos meados e finais da Idade do Bronze. A partir de então, a comunidade arqueológica tem observado centenas destes túmulos espalhados pelos ambientes montanhosos do interior e até nas serranias mais ocidentais. Curiosamente, os arqueólogos têm tido um aliado insólito para a descoberta de grande parte destes monumentos: os incêndios florestais despem de vegetação as serras, colocando a descoberto um imenso mundo usualmente imerso na natureza. O recente e violento incêndio de Outubro de 2017, que fustigou a região centro de Portugal, teve também este lado positivo, apesar da imensa e trágica destruição e desolação que provocou nas populações da região. Só no concelho de Vouzela foram identificados cerca de cem novos monumentos deste género. Ciente do valor que o património arqueológico pode assumir no desenvolvimento territorial, a autarquia local tem vindo a promover um intenso e profícuo projeto de investigação desenvolvido pela Universidade Nova de Lisboa e pela Universidade do Algarve. António Faustino Carvalho, professor e investigador da Universidade do Algarve, com ampla investigação na área da Pré-história, tem N AT I O N A L G E O G R A P H I C

O incêndio que deflagrou na serra do Caramulo em Outubro de 2017 foi particularmente trágico. Queimou povoações e floresta e vitimou cerca de três dezenas de pessoas. As cinzas, porém, revelaram um mundo pré-histórico intenso e desconhecido.

promovido trabalhos de prospecção arqueológica que permitiram a identificação de 133 monumentos pré-históricos, entre os quais 101 túmulos da Idade do Bronze. O seu estudo, ainda em curso, vem confirmar a extrema complexidade do mundo funerário e de rituais associados à morte que se desenrolaram num período entre os séculos XV e IX antes de Cristo, na transição da Idade do Bronze Médio para o Bronze Final. Este é um período em que se afirmaram as práticas de incineração dos corpos que implicaram não apenas alterações de rituais, mas, sobretudo, parafraseando Raquel Vilaça, uma das mais eminentes especialistas desta temática, alteraram o entendimento da materialidade do corpo humano que perdeu importância, pois passou a ser total ou parcialmente destruído e não necessariamente depositado no seu todo ou em parte num túmulo.


VOUZELA

MANCHA DE POVOAMENTO Nos limites do concelho de Vouzela, têm sido identificadas centenas de monumentos pré-históricos nas últimas três décadas.

Mamoa do Monte Cavalo

Afloramento monumentalizado da Malhada de Cambarinho

Mamoa 1 da Gândara da Seixa Necrópole de Levides

A25

Mamoa 1 de Rebordinho Mamoa de Rebordinho

Mamoa da Malhada do Tojal Grande Necrópole de Vale d’Anta

Necrópole de Campia Necrópole do Marco da Mata

Casa da Orca da Malhada do Cambarinho A25

Necrópole da Malhada do Cambarinho Mamoa 1 do Picoto

Necrópole de Vale de Espinho

Necrópole das Almas do Capitão

Mamoa da Seixosa

Necrópole da Penoita

Dólmen da Lapa da Meruje

Necrópole do Tapadinho

Necrópole do Salgueiral Bicão dos Conqueiros

Monumento 1 da Morraloba

Mamoa 1 da Abelheira

Mamoa do Outeiro do Cântaro

IP5

VOUZELA

Necrópole de Valampra

Necrópole da Lousa Mamoa de Adside

Necrópole de Albitelhe

Necrópole de S. Barnabé

Mamoa do Cabo das Moutas

Mamoa do Caselho

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FOTOGRAFIA: JOÃO COSME. MAPA: ANYFORMS. FONTE: PEDRO SOBRAL DE CARVALHO

1 km

Mamoas do Neolítico Mamoas da Idade do Bronze Afloramento monumentalizado


G R A N D E

A N G U L A R

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IDADE DO BRONZE

À direita, a fotografia aérea representa o afloramento monumentalizado da Malhada do Cambarinho, desconhecido até à data e identificado no concelho de Vouzela após os grandes incêndios de Outubro de 2017 na região Centro. À esquerda, a reconstituição hipotética de um ritual no período de transição entre a Idade do Bronze Médio e a Idade do Bronze Final.

Algumas das comunidades humanas desta época reutilizavam velhos monumentos megalíticos para depositarem as cinzas dos corpos cremados, como aconteceu no monumento do Rapadouro 1 (Pendilhe, Vila Nova de Paiva) ou no Monumento 2 da Fonte da Malga (Viseu). A grande maioria, porém, construiu pequenos túmulos que se distribuem pelas cumeadas e plataformas sobranceiras a vales férteis. São pequenos montículos circulares, a maioria de quatro ou cinco metros de diâmetro, baixos, com cerca de meio metro de altura. No centro, geralmente, podem estar cistas (pequenas caixas de pedra) com urnas ou apenas cinzas, fossas com carvões ou blocos de pedra a definirem um espaço central. Um dos aspectos mais curiosos destes túmulos é a utilização do quartzo leitoso (branco) e do xisto luzente para se destacarem na paisagem, através do contraste cromático. Muitos destes monumentos são encontrados na órbita de monumentos megalíticos, recriando cenários em lugares com uma forte carga simbólica construída ao longo de milhares de anos numa verdadeira “temporalidade de sequência”, nas palavras de Gavin Lucas. Exemplos deste fenómeno, foram encontrados em Castro Daire, na necrópole da Senhora da Ouvida, com mais de três dezenas de monumentos, ou nas necrópoles de Caramêlo-Mazugueira, em Tondela, e da Fonte da Malga, em Viseu, entre tantas outras. N AT I O N A L G E O G R A P H I C

Contudo, a grande maioria destes monumentos forma grandes necrópoles com várias dezenas de monumentos, como é o caso da recém-descoberta necrópole das Almas do Capitão, em Vouzela, ou na conhecida necrópole da Casinha Derribada, em Viseu. O mapa da página anterior, aliás, representa bem o volumoso corpo de conhecimento agora disponível e inacessível aos investigadores enquanto o manto florestal se manteve, pujante e denso, sobre a superfície rochosa. assumem-se como lugares sagrados, onde convivem túmulos com outro tipo de estruturas que começam agora a ser identificadas. Essa variabilidade indicia complexos rituais que se repartem entre construções com funções distintas, umas funerárias e outras relacionadas com rituais ou práticas associadas à morte. Existe um número cada vez maior de monumentos não estritamente funerários cujo estudo se encontra ainda no início. É o caso do monumento de Vale de Mós 1, em Oleiros, que mais não é do que um espaço empedrado delimitado por um anel pétreo, como que uma plataforma a céu aberto onde se desenrolariam cenários performativos relacionados com a morte. Seria uma plataforma para uma pira? Outro exemplo é um novo tipo de monumento que emergiu em Vouzela após os incêndios, designado por “afloramento monumentalizado”. E STAS NECRÓP OLE S

FOTOGRAFIA: VOUZELAR


Reconstituição de um ritual funerário, com a deposição de uma urna com cinzas no interior de uma cista, ao centro de um espaço ritual circular. Vários destes monumentos concentram-se nas imediações de templos megalíticos já conhecidos. Com os trabalhos em curso nas últimas décadas, identificaram-se centenas de estruturas desta natureza na região Centro.

São penedos graníticos ou xistosos, destacados na paisagem, alguns gravados, envolvidos por um volume de terras e pedras (tumuli), por vezes circundados por um anel de pedras. Parece, de facto, haver uma tendência para se demarcarem os espaços da morte desta época com anéis de pedra. É neste contexto que começam, igualmente, a ser identificados os recintos circulares marcados com pedras fincadas, desprovidos de tumuli (mamoa). Estão nessa situação o monumento da Lameira da Travessa de Lobos, em Castro Daire, reconstituído no Museu Arqueológico do Alto Paiva, em Vila Nova de Paiva, um recinto com cerca de cinco metros de diâmetro demarcado com pedras fincadas, muitas das quais decoradas com símbolos reticulares e semicirculares, ou do recém-descoberto

monumento da Morra Loba, em Vouzela, um recinto também com cinco metros de diâmetro ainda por estudar. as serras do interior foram tomadas pela construção de pequenos túmulos, mas também de misteriosos espaços cerimoniais relacionados com a morte. Para já, apenas levantámos a ponta do véu, identificando a densidade dessas estruturas, mas ainda se pondera a sua função ritual. Vamos ter de aguardar por projectos de investigação que nos mostrem a verdadeira complexidade deste mundo e das comunidades a ele associadas. Estas comunidades viviam no alto dos montes num período de apogeu económico suscitado pela exploração do estanho abundante na região, mas essa é outra história... HÁ CERCA DE TRÊS MIL ANOS,

OUTUBRO 2020


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O U T U B R O

ÁFRICA

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EDITORIAL

Desafios e conquistas de um continente de jovens

são uma parte essencial da National Geographic desde a fundação da revista, na medida em que a melhor forma de explicar uma realidade é contar uma história, ajudar a percebê-la e transmitir uma mensagem de forma eficaz. As grandes histórias ajudam-nos a compreender o mundo e a compreender-nos uns aos outros. É por isso que são tão necessárias. Na reportagem deste mês sobre África, procuramos explicar os desafios e as conquistas de um continente que, com 60% da população com idade inferior a 25 anos, é o mais jovem do nosso planeta. E a melhor forma é fazê-lo através das histórias de dez meninas e meninos. Os dez jovens que entrevistámos, apesar das circunstâncias frequentemente dramáticas, são protagonistas das mudanças em África e não meras vítimas passivas. O autor, Xavier Aldekoa, conhece este continente como poucos. Desde a sua primeira viagem há quase 20 anos, visitou 50 dos 55 países africanos. As fotografias são de Alfons Rodríguez, outro globetrotter que, armado com a sua câmara, visitou mais de uma centena de países no mundo. Ficamos assim a conhecer histórias que reflectem a luta dos jovens para sobreviver e a sua determinação em construir um A S H I S TÓ R I A S

futuro melhor. Histórias como a de Giovana Delgado, cabo-verdiana de 12 anos que sonha ser cantora depois de alguns painéis solares terem trazido a electricidade para a sua aldeia, permitindo-lhe ouvir música no rádio do tio. Ou de Margaret Ayo, do Uganda, um dos milhões de casos de casamento infantil que acontecem todos os anos em África. Casada aos 13 anos de idade, Margaret fala sem amargura, mas a sua rebeldia face a um sistema machista anuncia uma revolução. A decrescente, mas ainda assim a elevada, mortalidade infantil está presente na história da recém-nascida Jamila Wova, da Etiópia. Também as crianças-soldado têm voz na reportagem, assim como um jovem que conseguiu fugir do grupo jihadista Boko Haram por não querer transformar-se num assassino. E a luta diária de uma estudante que sonha em ser professora. E muito mais… Este cocktail de histórias reflecte a complexa realidade e as aspirações dos jovens do continente africano. Outra protagonista, Hawa Faye, é estudante de fotografia na Gâmbia e sonha ser fotojornalista. Quem sabe se, daqui a alguns anos, o seu trabalho nos permitirá descobrir grandes histórias em revistas como a National Geographic?

As ruas de Monte Trigo, em Santo Antão, a ilha mais ocidental do arquipélago de Cabo Verde, iluminam-se pela primeira vez graças à energia solar. É uma revolução em marcha em todo o continente: nos últimos cinco anos, 23 milhões de africanos tiveram acesso à energia solar e, em 2030, serão 250 milhões. Nesta povoação piscatória cabo-verdiana, a luz mudou a vida de todos: os pescadores congelam agora as suas capturas e muitos descobrem o mundo através da televisão e da rádio.

ALFONS RODRÍGUEZ


R E I M AG I N A N DO O S

DINOSSAUROS Recorrendo a técnicas inovadoras e a um acervo de fósseis recém-descobertos, os paleontólogos estão a reescrever aquilo que sabemos sobre estas criaturas antigas — desde a cor da pele e das penas à forma como viviam, como se reproduziam e como evoluíram.

TEXTO DE MICHAEL GRE SHKO F OTO G R A FI A S D E PAO LO V E R ZO N E P I N T U R A S D E D AV I D E B O N A D O N N A E I L U S T R A Ç Õ E S G R Á F I C A S D E G A B R I E L U G U E T O

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Há cerca de 166 milhões de anos, num lugar que hoje fica na comarca de Oxfordshire, em Inglaterra, o solo tremeu com os passos do primeiro dinossauro cientificamente descrito: o Megalosaurus. Quando o animal foi esculpido para o Crystal Palace Park, de Londres, na década de 1850, o artista inspirou-se nos crocodilos modernos. Hoje, os cientistas sabem que este dinossauro era bípede.


As pás raspam e as picaretas voam no Saara marroquino, onde uma equipa constituída por paleontólogos, alunos e hábeis escavadores procuram fósseis do dinossauro Spinosaurus aegyptiacus. Os ossos encontrados neste local revelam que o Spinosaurus possuía uma cauda adequada para a propulsão aquática, a primeira alguma vez descoberta num dinossauro predador de grande porte.



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N AT I O N A L G E O G R A P H I C


Durante mais de duas décadas, um longo desfile de carcaças congeladas passou pela TAC do Hospital O’Bleness, no Ohio, incluindo este crocodilo da Tailândia. O paleontólogo Lawrence Witmer, da Universidade de Ohio, recorre a imagens de TAC de animais modernos para reconstituir e interpretar a anatomia interna de dinossauros extintos.

REIMAGINAND O OS DINOS SAUROS

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Este Mantellisaurus, escavado em 1914 e exposto no Museu de História Natural do Reino Unido, foi identificado como um Iguanodon antes de os cientistas o reconhecerem como género autónomo, em 2007. Com cerca de 125 milhões de anos, o esqueleto é um dos mais completos alguma vez encontrados no Reino Unido.

tarde fria de Janeiro, Susannah Maidment contempla um bando de dinossauros, a partir das margens de um lago de Londres. Curadora no Museu de História Natural do Reino Unido, Susannah veio comigo num passeio pelo Crystal Palace Park, onde, em 1854, foi apresentada ao público a primeira exposição mundial de dinossauros. As esculturas expostas foram então um êxito retumbante e desencadearam a dinomania que existe desde então. Mais de um século antes de Steven Spielberg espantar o mundo com “Parque Jurássico”, os dinossauros de Crystal Palace atraíram dois milhões de visitantes por ano durante três décadas consecutivas e Charles Dickens referiu-se a um deles no seu romance “A Casa Sombria”. Para nos proporcionarem uma observação pormenorizada destes monumentos com 166 anos, Ellinor Michel e Sarah Jayne Slaughter, administradoras da organização sem fins lucrativos Liga dos Amigos dos Dinossauros de Crystal Palace, guiam-nos através de um portão metálico até às margens do lago, onde vestimos 8

N AT I O N A L G E O G R A P H I C

calças impermeáveis e galochas para empreendermos a travessia. Calculo mal o meu primeiro passo, caio dentro de água e trepo de gatas até à margem da ilha, encharcado e cheirando a água estagnada. “Bem-vindo à Ilha dos Dinossauros!”, exclama Sarah, com um sorriso de orelha a orelha. Aninhadas entre os fetos e as camas de musgo esponjosas, as esculturas verde-pálidas são imponentes, quase imperiais. Os dois exemplares de Iguanodon, um herbívoro do Cretácico, existentes no parque assemelham-se a iguanas gigantes com protuberâncias no focinho: hoje, os cientistas sabem que eram espigões que os animais possuíam nos polegares. Sentimo-nos tentados a desvalorizar a exposição, como algo ultrapassado ou saído de um filme de segunda qualidade. Mas Susannah Maidment aprecia os dinossauros do Crystal Palace por aquilo que verdadeiramente são: a vanguarda do conhecimento científico da época, com base em comparações entre animais vivos e os poucos fósseis que então se encontravam ao dispor dos investigadores.



Os cientistas ainda recorrem a esta técnica para reconstituir as criaturas fantásticas, imaginando como preencher as lacunas relativas aos tecidos moles nos fósseis gastos pelo tempo. Os ossos não conservam vestígios das bochechas dos rostos antigos, explica a investigadora, quando fazemos uma pausa. “Mas nós reconstituímo-las como se existissem, porque resulta: hoje os animais possuem bochechas.” Os escultores do parque no século XIX seguiram o mesmo processo. “Foram perfeitamente razoáveis quando os reconstituíram assim, baseando-se naquilo que conheciam.” Nos quase dois séculos entretanto decorridos, os cientistas aprenderam muito mais sobre os 10

N AT I O N A L G E O G R A P H I C

dinossauros do que os construtores do Crystal Palace Park alguma vez poderiam ter sonhado. Agora, o nosso conhecimento está a passar por outra revolução, repensando as versões popularmente divulgadas destes animais antigos. Durante vários anos, os cientistas revelaram, em média, 50 novas espécies de dinossauros por ano, um ritmo inimaginável há algumas décadas. Esta lista actualizada de animais tanto abrange voadores do tamanho de canecas de cerveja, com asas de morcego, como os herbívoros de pescoço comprido que foram os maiores animais terrestres alguma vez existentes na Terra. Dispositivos médicos de imagiologia digital,


aceleradores de partículas e análises químicas permitem agora aos investigadores destrinçar o osso da rocha e descobrir as mais diminutas características ocultas dos fósseis. No que diz respeito à descoberta de dinossauros, “creio firmemente que a sua época áurea está a acontecer neste preciso instante”, afirma Steve Brusatte, paleontólogo da Universidade de Edimburgo.

S

Além de organizarem exposições, os museus estudam um amplo leque de fósseis. No Museu de História Natural do Reino Unido, conservam-se os únicos ossos conhecidos do Adratiklit, o mais antigo estegossauro alguma vez descoberto. Em 2019, uma equipa dirigida por Susannah Maidment, curadora residente do museu, classificou o Adratiklit como um novo género, em parte devido ao osso do braço que segura nesta imagem.

ABEMOS QUE OS DINOS SAUROS,

são seres persistentemente cativantes. Durante 150 milhões de anos, dominaram as paisagens da Terra, habitando os territórios correspondentes aos sete continentes da actualidade. Os dinossauros foram extraordinariamente bem-sucedidos no seu tempo, adaptando-se a um grande número de formas e tamanhos. Segundo estimativas apresentadas por Steve Brusatte e outros autores, os cientistas já catalogaram mais de 1.100 espécies de dinossauros extintos e este é apenas uma parte das espécies que outrora existiram, uma vez que a fossilização só ocorreu num número reduzido de ambientes. A sua história continua até hoje. Quando um asteróide colidiu com a península de Iucatão, no México, há 66 milhões de anos, e eliminou três quartos das espécies que então viviam na Terra, um grupo de dinossauros sobreviveu: as criaturas cobertas de penas a que hoje chamamos aves. A ciência ocidental só começou a estudar os dinossauros na década de 1820, mas aquilo que aprendemos é altamente revelador da maneira como os animais terrestres são afectados pelo nosso planeta em constante mudança. À medida que os continentes se afastavam uns dos outros e se recombinavam, as temperaturas e o nível do mar subiam e desciam, mas os dinossauros foram persistindo. Que lições podemos retirar das suas reacções e resiliência? Para conseguirmos contar uma epopeia desta dimensão, há que acompanhar as expedições paleontológicas em curso em todo o mundo. E os paleontólogos estão a descobrir mais novidades do que nunca. Uma das regiões mais ricas para achados de novos fósseis é o Norte de África. Um ser humano pode quase sufocar a 41ºC no Saara marroquino e terá dificuldade em imaginar que esta foi, noutros tempos, uma paisagem luxuriante (Continua na pg. 16) com rios profundos. REIMAGINAND O OS DINOS SAUROS

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01 Dois Spinosaurus aegyptiacus perseguem o peixe-serra num sistema fluvial que cobria o actual território de Marrocos há mais de 95 milhões de anos. FONTE: NIZAR IBRAHIM, EXPLORADOR DA NATIONAL GEOGRAPHIC

NOVIDADE S

Uma descoberta inovadora fornece provas de que o Spinosaurus era essencialmente aquático. Possuía uma cauda desenvolvida para propulsão na água, um centro de gravidade projectado para a frente que favorecia a deslocação e garras curvadas mais adequadas para capturar presas do que para caminhar sobre terra.


CO M O

SE MOVIAM


COMO SE MOVIAM

NADADORES E VOADORES ALONGAMENTO Músculo Pele Vértebra

As vértebras tornavam-se mais longas e finas junto da ponta da cauda, conferindo ao apêndice maior comprimento e altura e garantindo-lhe mais flexibilidade e propulsão. Corte transversal Vértebra 15

Corte transversal Vértebra 4

Vértebra

Fósseis da cauda de Spinosaurus anteriores a 2015 Fosséis da escavação de 2015 Fósseis da escavação de 2018

TESTE DE VOO

Será que os dinossauros levantavam voo a partir do solo ou planavam a partir do topo das árvores? Os cientistas fizeram múltiplas experiências para testar as hipóteses, recorrendo a simulações de computador, modelos robóticos e até a animais modernos.

Descolar do solo Para estudarem as origens do voo, os investigadores utilizaram uma avestruz para imitar o Caudipteryx e perceberem como ele se servia das asas para se equilibrar enquanto corria. Equiparam a ave com asas mecânicas e sensores de força para medirem o movimento destas e a sustentação.

Caudipteryx

Avestruz com asas artificiais

JASON TREAT; MESA SCHUMACHER. FONTES: NIZAR IBRAHIM, EXPLORADOR DA NATIONAL GEOGRAPHIC; MICHAEL HABIB, MUSEU DE HISTÓRIA NATURAL DA COMARCA DE LOS ANGELES; YASER TALORI E OUTROS, COMPUTATIONAL BIOLOGY, MAIO DE 2019; GARETH DYKE E OUTROS, NATURE COMMUNICATIONS, SETEMBRO DE 2013


1936

COMO MUDOU A N O S S A P E R S P E C T I VA

Antes de 2014, os paleontólogos possuíam apenas fragmentos da cauda do Spinosaurus e supuseram que fosse rígida, semelhante à de outros terópodes. À medida que novos fósseis foram surgindo, o conhecimento da forma como o dinossauro se movimentava “transformou-o” num nadador exímio.

2014 2020

FLEXIBILIDADE LATERAL

Contrariamente a outros terópodes, as saliências ósseas presentes nas vértebras, denominadas zigapófises, são pequenas e mal se sobrepõem. Isto permite que a cauda se dobre lateralmente, funcionando mais como uma cadeia flexível do que como um eixo reforçado. Corte transversal Vértebra 31

CAUDA SEMELHANTE A REMO

Extensões ósseas alongadas, por cima e por baixo da cauda (as espinhas neuronais e os arcos hemais), conferem-lhe uma abundante área superficial. Isto favorece a propulsão e a orientação, permitindo que a cauda funcione como leme.

Espinhas neuronais Zigapófises

Arcos hemais

Desempenho de voo para modelo de Microraptor por configuração de corpo 90cm de altura

Voo a partir das árvores

Microraptor

Os investigadores conceberam um robot com base no Microraptor, um dinossauro com penas não-aviano, para testarem a maneira como voava. Seria capaz de planar, mas as penas salientes das patas não contribuíam muito para o voo, o que sugere que talvez servissem para outros fins.

Patas contraídas 0

90cm de distância

60

90

120

90cm de altura Patas distendidas 0

90cm de distância

60

90

120

REIMAGINAND O OS DINOS SAUROS

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No entanto, há muitos anos que Nizar Ibrahim, explorador da National Geographic, e a sua equipa regressam repetidamente a esta região, em busca do mais estranho de todos os dinossauros alguma vez encontrados: um monstro que habitava os rios chamado Spinosaurus aegyptiacus. Os primeiros fósseis de Spinosaurus foram descobertos no Egipto na década de 1910, mas foram destruídos por um bombardeamento aéreo na Alemanha, durante a Segunda Guerra Mundial. Ainda assim, as notas de campo, os esboços e as fotografias sobreviventes dos fósseis originais, juntamente com alguns ossos e dentes encontrados mais tarde, ainda no século XX, sugeriram que 16

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esta misteriosa criatura com uma “vela” no dorso viveria num meio aquático. O Spinosaurus possuía dentes cónicos bem adaptados para capturar peixes, por exemplo, e os paleontólogos presumiram que ele navegasse pelos baixios e puxasse os peixes para fora de água. Por conseguinte, Nazir e os seus colegas causaram sensação em 2014 ao descreverem um novo esqueleto parcial deste animal, descoberto em Marrocos. Basearam-se nele para proporem que o Spinosaurus passava grande parte do seu tempo a nadar e a alimentar-se dentro de água. Para reforçar as suas afirmações, a equipa regressou àquele local árido em 2018, com o apoio da National Geographic Society, na esperança


de encontrar mais fragmentos da criatura. A escavação foi dificílima. Vários membros da equipa foram hospitalizados por exaustão depois de regressarem a casa. Alimentados com Nutella e com as promessas do achado, porém, começaram a descobrir vértebra após vértebra da cauda do Spinosaurus, por vezes com poucos minutos e centímetros de intervalo. Os escavadores sentiram-se tão eufóricos com a abundância de fósseis que inventaram ritmos de percussão com os seus martelos e desataram a cantar. Com o formato de um remo com cerca de cinco metros de comprimento, o apêndice desenterrado, publicado este ano na revista “Nature”, é a mais revolucionária adaptação aquática alguma vez encontrada num dinossauro predador de grande porte. “Este achado vai tornar-se um símbolo, um ícone, da paleontologia africana”, resume Nazir Ibrahim. com as suas paisagens desérticas e o seu enredo histórico, parece extraída de um guião cinematográfico. Porém, a análise posterior da cauda do fóssil tem demonstrado como o estudo actual dos dinossauros é agora marcadamente diferente. No âmbito do seu trabalho, Nazir viajou de Casablanca a Cambridge (EUA), para visitar o laboratório do biólogo George Lauder na Universidade de Harvard. George gosta sempre de dizer que não é paleontólogo. Especializou-se em estudar a forma como os animais aquáticos se deslocam dentro de água, utilizando câmaras de alta velocidade e robots para descobrir como nadam. Para testar o Spinosaurus, monta uma reprodução da cauda do dinossauro em plástico cor de laranja, com 20 centímetros de comprimento, numa vareta metálica anexada a um transdutor de força, parte de uma “asa” robótica pendurada no tecto. “Parece um mecanismo de tortura medieval”, graceja Stephanie Pierce, a paleontóloga de Harvard responsável pela concepção e execução das experiências, enquanto George Lauder baixa o robot e o encaixa numa calha. Uma vez submersa, a cauda montada ganha vida, abanando para trás e para a frente e transmitindo os dados do aparelho aos computadores. Os resultados demonstram que, dentro de água, a cauda do Spinosaurus teria uma força propulsionadora oito vezes superior às caudas dos dinossauros terrestres afins. (Continua na pg. 30)

A

Num laboratório da Universidade Hassan II, em Marrocos, Nizar Ibrahim (ao centro) debruça-se sobre os recém-achados ossos de Spinosaurus, juntamente com os paleontólogos Simone Maganuco (à esquerda) e Cristiano Dal Sasso. “O estudo de um fóssil é, para mim, uma espécie de criação”, diz Dal Sasso. “É preciso ressuscitar um animal a partir de fragmentos.”

H I S TÓ R I A D O S P I N O SAU RU S ,

REIMAGINAND O OS DINOS SAUROS

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À medida que se acumulam descobertas de dinossauros, torna-se necessário rever os modelos das criaturas. Em Fossalta di Piave, o artesão Guzun Ion, da empresa DI.MA. Dino Makers, fabricante de esculturas para museus, molda uma nova cauda para uma reconstituição em tamanho real de um Spinosaurus com 10,5 metros de comprimento. REIMAGINAND O OS DINOS SAUROS

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02 Uma cria recém-nascida de Deinonychus apresenta-se rodeada de coloridos ovos azuis num ninho acima do nível do solo, sob a vigilância de um progenitor zeloso. FONTE: JASMINA WIEMANN, UNIVERSIDADE DE YALE

NOVIDADE S

Segundo parece, os ovos do Deinonychus seriam azulados, semelhantes aos de algumas aves modernas, sugerindo que este dinossauro nidificava ao ar livre. A cor e os padrões do ovo talvez servissem de camuflagem num espaço aberto. A existência de ninhos nestas condições pode significar que o Deinonychus cuidava dos seus descendentes.


CO M O

CHOCAVAM


COMO MUDOU A N O S S A P E R S P E C T I VA

As teorias anteriores sobre a reprodução dos dinossauros apoiavam-se substancialmente em ovos de répteis. Entretanto, os cientistas comprovaram uma forte ligação evolutiva entre os dinossauros e as aves, ligação essa que proporciona melhores pistas sobre a maneira como os dinossauros punham os ovos e cuidavam dos juvenis.

C O M O C H O C AVA M

OVOS COLORIDOS CROCODYLIA

Alligator mississippiensis ORNITHISCHIA

ARCHOSAURIA DINOSAURIA

Protoceratops

Primeiros ovos moles conhecidos. Há 232 milhões de SAUROPODOMORPHA anos (MA) SAURISCHIA

Titanossaurídeo francês

Ninho enterrado

Mussaurus Massospondylus

Oviraptorosauria

Heyuannia huangi Microtroodontídeo mongol

Troodontidae

Microtroodontídeo mongol Troodontídeo americano

EUMANIRAPTORA Primeiros ovos coloridos 157 MA

Ovo de Deinonychus

Troodontídeo chinês

PARAVES

Dromaeosauridae

Protoporfirina

Deinonychus antirrhopus Psammornis rothschildi argelino

Biliverdina

Rhea

Criadores de pigmentos Quando atingidas por radiação laser, as cascas de ovos dos terópodes do grupo dos Eumaniraptora revelam a presença de duas substâncias químicas que contribuem para a formação da cor e das pintas nos ovos das aves modernas.

Aves

Nidificação

Ninhos enterrados

As aves modernas que põem ovos de casca dura nidificam ao ar livre. Este comportamento pode ter sido desenvolvido ao mesmo tempo que a coloração dos ovos, há 157 milhões de anos.

Alguns dinossauros punham ovos de casca mole, com textura espessa. Para protegê-los, os dinossauros enterrá-los-iam, à semelhança das tartarugas marinhas modernas.

ESPREITANDO O INTERIOR

Ninho no solo

Troodontídeo mongol

Emu Aves modernas

COORDENAÇÃO CROMÁTICA

Os cientistas descobriram que muitos ovos de dinossauros possuíam os matizes coloridos e as pintas mosqueadas dos ovos das aves modernas. A cor tende a condizer com o enquadramento ambiental do ninho.

Crânio (embrião)

Tamanho aproximado do ovo

Já não há necessidade de abrir os ovos de dinossauro. Com TAC, os investigadores podem olhar para o interior. Os dentes embriónicos possuem depósitos que podem ser contados, ajudando os investigadores a calcular o tempo de incubação. Descobriu-se assim que a incubação dos dinossauros era mais lenta do que a das aves, com uma duração próxima da dos répteis. JASON TREAT; MESA SCHUMACHER FONTES: KIMI CHAPELLE E VINCENT FERNANDEZ, UNIVERSIDADE WITS; JASMINA WIEMANN E OUTROS, NATURE, OUTUBRO DE 2018

Ninho em árvore

Crânio adulto

Digitalização de embrião de Massospondylus

Crânios reconstituídos As TAC geram uma pilha de imagens radiológicas. Os modelos 3D reconstituídos dos embriões de Massospondylus revelaram a existência de dentes adicionais que caíam mais tarde (como acontece hoje às osgas).


Os ovos das aves, como estes, de Tinamus, vão buscar as cores a pigmentos como a protoporfirina e a biliverdina. Alguns ovos de dinossauro fossilizados preservam estas duas componentes, o que fornece pistas sobre a sua coloração. FOTOGRAFIA CAPTADA NO MUSEU PEABODY DE HISTÓRIA NATURAL, UNIVERSIDADE DE YALE


Este ovo de ave fossilizado, proveniente do que hoje é o estado do Nebraska, foi posto dezenas de milhões de anos após a extinção dos dinossauros não-avianos. Mesmo assim, os seus restos ajudam Jasmina Wiemann, doutoranda em Yale, a analisar a composição química de cascas de ovos mais antigos. “Todas as aves são dinossauros e, por isso, este também é um ovo de dinossauro aviano”, afirma. FOTOGRAFIA CAPTADA NO MUSEU PEABODY DE HISTÓRIA NATURAL, UNIVERSIDADE DE YALE

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03 Um Mussaurus observa dois rincossauros sob o olhar de um adulto. No início da sua vida, o animal caminhava sobre as quatro patas, mas tornar-se-ia bípede na idade adulta. FONTES: JOHN R. HUTCHINSON, THE ROYAL VETERINARY COLLEGE; ALEJANDRO OTERO, CONICET – MUSEU DE LA PLATA

NOVIDADE S

Os investigadores conhecem agora melhor os ciclos de vida completos de certos dinossauros. Novos achados contribuem para perceber, de forma global, como os dinossauros se desenvolviam, amadureciam e, por vezes, atingiam um tamanho colossal.


CO M O

CRESCIAM


COMO CRESCIAM

CORPO QUENTE, CABECA FRIA MAIS PEQUENOS E MAIS FRESCOS

MAIORES E MAIS QUENTES

DINOSSAUROS DE PEQUENO PORTE

MÉDIO PORTE

Distribuição equilibrada do fluxo sanguíneo

Regulação do calor na cavidade nasal

Os dinossauros pequenos possuíam um elevado rácio entre a sua área de superfície e o volume, que maximizava a sua capacidade de dissipar o calor sem necessidade de adaptações especiais. A maioria dos dinossauros aumentava de tamanho com o passar do tempo, mas os terópodes do grupo das paraves (grupo que inclui as mais próximas das aves) iam ficando mais pequenos, o que acabava por ser útil para o voo.

Stegoceras Pequeno, este dinossauro terá modificado o comportamento para manter a frescura do corpo. Não precisou de adaptações para manter o cérebro fresco: o fluxo sanguíneo na cabeça era equilibrado.

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Os saurópodes gigantes, os maiores animais que caminharam sobre a Terra, podiam pesar 50 toneladas. Como conseguiam gerir um corpo tão grande? Crescendo lentamente ao longo de muitos anos de vida, como fazem os crocodilos, ou crescendo rapidamente, como faziam estes dinossauros. Alcançado o seu tamanho definitivo aos 20 anos, o baixo rácio entre a área de superfície e o volume dos saurópodes sustentava um metabolismo rápido, mas exigia adaptações especiais para dissipação do calor.

Seios

Veias Artérias

N AT I O N A L G E O G R A P H I C

Euoplocephalus Pesando 2,5 toneladas, este dinossauro couraçado possuía vias nasais especializadas em forma de anel, através das quais os vasos sanguíneos alargados podiam dissipar o excesso de calor.


COMO MUDOU A N O S S A P E R S P E C T I VA

Antigamente, pensava-se que os dinossauros eram animais de sangue frio, tal como os répteis modernos. No entanto, os novos indícios de ritmos de crescimento rápido mostram que alguns talvez possuíssem metabolismos mais rápidos do que se suspeitava, assemelhando-se possivelmente aos mamíferos e aves de sangue quente. Alguns dinossauros corriam mesmo risco de sobreaquecimento.

ABORDAGEM INOVADORA

Os terópodes não-avianos tinham uma maneira especial de se manterem frescos. Ao abrirem a boca, os músculos mandibulares recorriam a um par especial de seios nasais semelhantes a balões, expandindo-os como foles para conter o ar. Os vasos sanguíneos que rodeavam estes seios aqueciam o ar e o calor era forçado a sair pelo nariz e pela boca quando a mandíbula se fechava.

GR ANDE PORTE

I N O VA Ç Ã O N O S T E R Ó P O D E S

Regulação do calor na cavidade nasal e na boca

Arrefecimento forçado pela mandíbula

Camarasaurus

Majungasaurus

A envergadura e o metabolismo destes animais mantinham as temperaturas internas do corpo. Libertavam o excesso de calor através de zonas de transferência térmica nas vias nasais e na boca.

Mexendo a mandíbula, este terópode de médio porte empurrava o ar para os seios nasais, que funcionavam como unidades de ar condicionado, arrefecendo o sangue que se dirigia ao cérebro.

JASON TREAT; MESA SCHUMACHER VERSÕES 3D: SINELAB. FONTES: RUGER PORTER E LAWRENCE WITMER, UNIVERSIDADE DE OHIO

REIMAGINAND O OS DINOS SAUROS

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Esta criatura, mais comprida do que o Tyrannosaurus rex, parece ter nadado pelos rios como um crocodilo. “Chegámos aqui porque um paleontólogo de dinossauros contactou outro paleontólogo que, por sua vez, contactou um perito em biorrobótica de peixes”, conta Stephanie. São estes tipos de experiências laboratoriais interdisciplinares que actualmente definem a investigação sobre os dinossauros. Os computadores modernos permitem aos cientistas o processamento de enormes conjuntos de dados sobre características dos esqueletos e a construção de árvores genealógicas de dinossauros. Os exames aprofundados de lâminas de osso mais finas do 30

N AT I O N A L G E O G R A P H I C

que folhas de papel revelam, em pormenor, a duração e cronologia dos surtos de crescimento dos dinossauros. E, recorrendo aos mesmos modelos utilizados para prever as alterações climáticas, os paleontólogos conseguem, na prática, projectar um asteróide contra a Terra, como sucedeu há 66 milhões de anos, para assistirem ao recuo dos habitats dos dinossauros durante o Inverno apocalíptico resultante desse impacte. Poucas tecnologias alteraram de maneira tão profunda a visão que hoje temos dos dinossauros como a TAC, que faz agora parte do pacote de ferramentas comuns dos paleontólogos. “Conseguimos introduzir todos estes dados sobre ossos extintos


Lawrence Witmer contempla o molde de um crânio de Tyrannosaurus rex. Os contornos da caixa craniana do T. rex mostram aos paleontólogos que este animal dependia fortemente do sentido de olfacto. Um estudo realizado em 2019 inferiu que o T. rex possuía 1,5 vezes mais genes para os receptores do olfacto do que os seres humanos, com base na dimensão relativa da região cerebral responsável pelo processamento dos odores.

num computador e somos capazes de trabalhar com eles”, afirma Lawrence Witmer, paleontólogo da Universidade de Ohio. “Podemos reconstituir pedaços inexistentes… e fazer testes de impacte virtuais e simulações para compreender melhor como estes animais funcionavam na realidade.” A imagiologia digital também pôs fim a uma cedência do passado: anteriormente, era preciso sacrificar as marcas dos tecidos moles de um fóssil para chegar ao osso. Agora, os investigadores separam virtualmente o osso da rocha. “Isto leva-nos a pensar quanta informação ignorámos ou destruímos”, comenta o ilustrador Mark Witton, da Universidade de Portsmouth. Recentemente, também em Portugal investigadores do CI2Paleo da Sociedade de História Natural (Torres Vedras) e da Universidade de Ultrecht recorreram a tecnologia de nano CTScan para preparar virtualmente um fóssil de um crocodilomorfo do Jurássico Superior. O recurso a esta tecnologia permitiu reconstruir em 3D os ossos invisíveis dentro do sedimento e detectar a forma do sistema trabecular e câmara internas nas vértebras. Lawrence Witmer utilizou recentemente exames de TAC para mostrar que os principais grupos de dinossauros desenvolveram sistemas especiais de ar condicionado craniano para impedir o sobreaquecimento dos cérebros. Dinossauros couraçados utilizavam as fossas nasais, que evoluíram até se transformarem em condutas para dissipar o calor quando o animal respirava, arrefecendo o sangue destinado ao cérebro. Em contrapartida, grandes predadores como o T. rex ventilavam o excesso de calor através de enormes seios nasais. À semelhança dos foles dos ferreiros, os dinossauros flectiam as mandíbulas para forçarem o ar a entrar e sair das câmaras, levando a humidade a evaporar, eliminando o calor. Os exames TAC também dão uma ideia de como os dinossauros se movimentavam e a forma como mudavam ao longo do seu crescimento. Recorrendo a vídeos de raios X e animações computorizadas de crocodilos e aves, Ryan Carney, da Universidade do Sul da Florida, construiu modelos 3D que revelaram, em 2016, que o dinossauro emplumado Archaeopteryx terá sido capaz de bater as asas de forma a viabilizar um voo autopropulsionado. Quanto mais aprofundadamente são capazes de observar cada pedacinho de osso, mais pormenores preciosos são descobertos. E isso significa que várias ferramentas foram notavelmen(Continua na pg. 38) te aperfeiçoadas. REIMAGINAND O OS DINOS SAUROS

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04 Um Yi qi plana no ar enquanto dois Tianyulong tomam banho. A análise dos tecidos moles mostra que o Yi qi possuía asas membranosas entre os dedos da pata. FONTES: MICHAEL HABIB, MUSEU DE HISTÓRIA NATURAL DA COMARCA DE LOS ANGELES; MICHAEL PITTMAN, UNIVERSIDADE DE HONG KONG

NOVIDADE S

O nosso conhecimento sobre o aspecto dos dinossauros continua a evoluir. Os investigadores sabem agora que muitos possuíam algum tipo de penas e que estas existiam num leque variado de cores, com base nos pigmentos fossilizados. Outras espécies possuíam coloração da pele, para efeitos de exibição ou de camuflagem.


CO M O

ERAM


COMO ERAM

RESSUSCI DESENVOLVIMENTO DAS PENAS

Segundo os fósseis, as primeiras penas fechadas (em baixo) desenvolveram-se no grupo dos terópodes Maniraptora, juntamente com os primeiros padrões cromáticos numa pena única. A explosão de possibilidades visuais para exibição sexual poderá ter conduzido a uma evolução mais rápida, através da selecção sexual.

Centro fundido

Filamentos individuais

Filamentos não ramificados

As estruturas mais simples podem derivar dos dinossauros.

Tufos do mesmo folículo

Formas complexas. Desconhece-se quais as primeiras.

Penas fechadas

Penas agregadas

Haste central. Bárbulas curtas não se sobrepõem

Haste central. Bárbulas complexas e sobrepostas

Filamentos ramificados

Aves

Pena em Filamentos forma de fita como escovas

PARAVES

Formas desconhecidas em aves modernas, mas comuns nos dinossauros.

Caihong juji Troodontidae Dromaeosauridae Yi qi

MANIRAPTORA

COELUROSAURIA

THEROPODA SAURISCHIA

Ceratosauria Macronaria Diplodocoidea

SAUROPODOMORPHA

DINOSAURIA

CERAPODA

ORNITHISCHIA

Scelidosaurus harrisonii Há 230 milhões de anos T R I Á S I C O

PENUGEM EMPLUMADA

210

Muitas espécies possuíam penas de fibra única. A descoberta de penas complexas em espécies como o Kulindadromeus implica que as penas tiveram origem e diversificaram-se numa fase inicial, talvez para isolamento térmico e exibição e não tanto para voo. 34

Allosauridae Sciurumimus albersdoerferi

N AT I O N A L G E O G R A P

200

190

Kulindadromeus Ankylosauria Stegosauria Tianyulong confuciusi 160 180 170 J U R Á S S I C O

Kulindadromeus Este pequeno herbívoro possuía, no mínimo, três tipos de penas, representando provavelmente várias experiências evolutivas sob a forma emplumada.

JASON TREAT; MESA SCHUMACHER. FONTES: MICHAEL J. BENTON, UNIVERSIDADE DE BRISTOL; MICHAEL HABIB, MUSEU DE HISTÓRIA NATURAL DA COMARCA DE LOS ANGELES; MICHAEL PITTMAN, UNIVERSIDADE DE HONG KONG

150


COMO MUDOU A N O S S A P E R S P E C T I VA

Na maior parte das reconstituições antigas, os dinossauros assemelhavam-se a répteis, mas os cientistas têm descoberto que os genes formadores dos dentes, das escamas e das penas estão estreitamente relacionados entre si, facilitando a mudança destas características ao longo do tempo. Resultado: uma grande variedade de padrões de penas e escamas à medida que os dinossauros evoluíam.

Caihong juji Este habitante da floresta com o peito colorido talvez utilizasse penas para voar e um conjunto de penas iridescentes para exibição.

PARENTES MODERNOS

Os melanossomas (as estruturas celulares que contêm o pigmento melanina) contribuem para a coloração das penas. Comparando o formato e disposição em fósseis com os das aves modernas, os peritos conseguem reconstituir a cor de um dinossauro e até verificar se era iridescente. Penas da coroa Hemiprocne mystacea

Penas do pescoço Calypte anna

Penas do pescoço Lesbia victoriae

Penas do dorso Coeligena phalerata

Oviraptorosauria Therizinosauria Alvarezsauridae

Ornithomimosauria Sinosauropteryx Tyrannosauridea Carcharodontosauria

Sinosauropteryx O primeiro dinossauro reconstituído a cores utilizando melanossomas fossilizados tinha cara de mau e uma cauda anelada, usada provavelmente para exibição.

Neoceratopsia Psittacosaurus

Saurolophinae Lambeosaurinae

Iguanodontidae

140

130

120

110 C R E T Á C I C O

Psittacosaurus Este foi o primeiro exemplo descoberto num dinossauro de contra-sombra, uma camuflagem em que a barriga é mais clara do que o dorso.

Nota: Os pontos no cladograma assinalam a origem do grupo ou da espécie.

100

90

80

70

PADRÕES PRÉ-HISTÓRICOS

Os padrões fornecem pistas sobre o ambiente e o comportamento. Os investigadores fotografaram um modelo de tamanho real do Psittacosaurus e determinaram que este viveu provavelmente num ambiente com iluminação variada, como uma floresta. OSSAUROS

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36

N AT I O N A L G E O G R A P H I C


A Hesperornis (em cima), uma proto-ave do Cretácico, é uma parente distante do primitivo terópode Coelophysis, cujo crânio repousa nas mãos do paleontólogo Bhart-Anjan Bhullar. À medida que as aves evoluíram, os seus crânios adultos preservaram características que os dinossauros extintos só possuíam enquanto juvenis, abrindo caminho ao bico aviano. FOTOGRAFIA CAPTADA NO MUSEU PEABODY DE HISTÓRIA NATURAL, UNIVERSIDADE DE YALE

REIMAGINAND O OS DINOS SAUROS

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Ferramentas avançadas para exame de ossos fósseis permitem definir pormenores com menos de um centésimo da largura de um glóbulo vermelho de sangue humano. noroeste de Grenoble, em França, sobre um pontão de terra triangular na confluência de dois rios, um anel cinzento com quase 850 metros ergue-se entre o nevoeiro. A estrutura fantasmagórica chama-se Laboratório Europeu de Radiação de Sincrotrão (ESRF), a instituição que, nos últimos anos, se tornou uma verdadeira meca para os paleontólogos, graças ao investigador residente Paul Tafforeau. O ESRF é um acelerador de partículas que dispara electrões em todas as direcções quase à velocidade da luz. Enquanto o feixe de electrões realiza os seus trajectos, ímanes posicionados ao longo da pista circular condicionam o fluxo de partículas. Esta perturbação obriga as partículas a libertarem alguns dos raios X mais intensos do mundo, frequentemente utilizados pelos investigadores para estudarem novos materiais e medicamentos. Paul Tafforeau especializou-se em utilizar esses raios X para examinar fósseis que escapam ao alcance dos dispositivos normais de TAC, com resoluções inatingíveis por esses dispositivos. A intensidade do ESRF proporcionou resultados maravilhosos a Dennis Voeten, da Universidade de Uppsala, que o utilizou para fatiar virtualmente fósseis de Archaeopteryx e observar os cortes transversais dos seus ossos de maneira incrivelmente pormenorizada. Como os ossos suportam o esforço do voo, a sua estrutura geométrica pode revelar os estilos de voo dos animais. Embora a anatomia do Archaeopteryx não lhe permitisse um batimento de asa totalmente idêntico ao de uma ave, os cortes transversais dos ossos das suas asas assemelham-se aos dos faisões da actualidade, que irrompem em voos curtos. É uma pista extraordinária sobre a forma como esta criatura com 150 milhões de anos (um fotograma icónico da evolução dos dinossauros até se tornarem aves) se deslocou pelas cadeias de ilhas do Jurássico que, um dia, terão sido a sua casa. Kimi Chapelle, da Universidade de Witwatersrand, utilizou o laboratório para espreitar o inte-

N

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O R E C A N TO

N AT I O N A L G E O G R A P H I C

rior de alguns dos mais antigos ovos de dinossauro conhecidos, pertencentes ao herbívoro sul-africano Massospondylus. Os raios X permitiram-lhe reconstituir os crânios embriónicos do interior dos ovos, incluindo os minúsculos dentes que o dinossauro teria perdido, ou reabsorvido, antes de eclodir. Os embriões das osgas modernas também possuem estes protodentes, embora os últimos antepassados comuns às osgas e aos dinossauros tenham vivido há mais de 250 milhões de anos. Graças, em parte, às osgas, Kimi conseguiu descobrir que estes embriões de Massospondylus completaram três quintos do seu processo de incubação antes de morrerem, um vislumbre íntimo de vidas interrompidas há mais de duzentos milhões de anos. “Isso torna-os muito mais reais”, diz.

T

O DA S A S P R I M AV E R A S , o Instituto

de Paleontologia dos Vertebrados e de Paleoantropologia (IVPP) de Pequim celebra o seu próprio símbolo da natureza efémera da vida, quando um manto de flores de cerejeira e de ameixoeira se estende sobre a capital chinesa. Contudo, o IVPP é mais uma máquina do tempo do que um parque temático. Desde a década de 1990 que agricultores, investigadores e negociantes de fósseis da província de Liaoning, no Nordeste da China, trazem para o instituto centenas de fósseis que aumentaram o nosso conhecimento sobre a aparência e comportamento dos dinossauros. Muitos conservam vestígios de penas, confirmando que a plumagem se desenvolveu antes de os dinossauros sequer voarem. Alguns fósseis revelam igualmente, de forma dramática, que alguns dinossauros também tentaram desafiar a gravidade. Poucos dinossauros reflectem melhor este panorama do que os Scansoriopterygidae, um grupo pouco conhecido de dinossauros do Jurássico. Antigamente, alguns cientistas pensavam que esses animais utilizavam dedos de dez centímetros de comprimento para agarrar insectos. Em 2015, porém, investigadores do IVPP revelaram a existência de um membro bizarro deste grupo que os conduziu a um beco sem saída no debate sobre as origens do voo. Ao contrário de outros dinossauros descobertos até à data, o Yi qi possuía asas membranosas, semelhantes às dos morcegos, sustentadas por longos dedos exteriores e esporões ósseos do pulso. “A história é a seguinte: um espécime muito importante … virou de pernas para o ar tudo aquilo que pensávamos saber”, resume Jingmai.


Natural da América do Sul, o hoatzin fornece pistas sobre a maneira como os braços dos dinossauros evoluíram até se transformarem em asas. Únicas entre as aves vivas, as crias de hoatzin têm garras semelhantes às dos dinossauros nas asas, que usam para treparem de regresso às árvores depois de se deixarem cair na água para fugir aos predadores. FOTOGRAFIA CAPTADA NO MUSEU PEABODY DE HISTÓRIA NATURAL, UNIVERSIDADE DE YALE


Os fósseis da China, bem como outros provenientes de sítios igualmente importantes em todo o mundo, conservam vestígios de todos os tipos de tecidos. Em 2014, os investigadores anunciaram a descoberta de um espécime de Edmontosaurus regalis, uma espécie da família dos hadrossauros, na região ocidental do Canadá, com uma crista de carne mumificada, como a que se vê num galo. Trata-se de uma estrutura que não se sabia existir num dinossauro, embora a espécie seja conhecida há quase um século. Os fósseis revelaram que estas criaturas utilizavam partes do corpo exageradamente desenvolvidas para atraírem companheiras e disputarem um estatuto social superior, 40

N AT I O N A L G E O G R A P H I C

tal como os mamíferos modernos, ou para identificarem indivíduos da sua espécie. Graças ao Edmontosaurus e outros dinossauros com tecidos moles visíveis, os paleontólogos identificam pistas sobre o esplendor destas manifestações. Em alguns casos, os investigadores conseguem até inferir algumas componentes químicas originais dos animais. Em 2008, cientistas chefiados pelo paleontólogo Jakob Vinther, actualmente na Universidade de Bristol, descobriu que os melanossomas, minúsculos grânulos subcelulares pigmentados por melanina, tinham capacidade para fossilizar. Este achado abriu a porta para um domínio outrora considerado impossível: a des-


Um embrião de galinha colorido no laboratório de Bhullar aguarda a oportunidade de ser examinado ao microscópio. Ao rastrear a maneira como os genes orquestram os padrões dos corpos dos animais em crescimento, Bhullar consegue aperceber-se das componentes essenciais do desenvolvimento, aperfeiçoando o conhecimento que possuímos sobre os dinossauros e os seus descendentes modernos.

coberta das cores da pele e penas de dinossauros extintos, com base no formato, dimensão e disposição dos seus melanossomas. Estas reconstituições requerem algumas cautelas: os animais vivos utilizam outros pigmentos além da melanina e é provável que o mesmo acontecesse com alguns dinossauros extintos. Mesmo assim, as descobertas mais recentes têm sido espantosas. O dinossauro emplumado Anchiornis, que outrora habitou no território da actual China, possuía uma crista avermelhada; o primitivo ceratopsiano Psittacosaurus possuía uma pele castanho-avermelhada que contribuía para uma espécie de camuflagem incipiente. Em 2018, uma equipa internacional revelou que as penas do Caihong, um dinossauro que habitou a mesma região do Yi qi, refulgiram outrora com todas as cores do arco-íris. Ainda há mais moléculas da vida capazes de sobreviver à longa passagem do tempo. Na década de 2000, Mary Schweitzer, paleontóloga da Universidade Estadual da Carolina do Norte, causou sensação ao descobrir que alguns fósseis de dinossauros, incluindo espécimes de T. rex, continham células e vasos sanguíneos preservados e talvez até vestígios de proteínas. Desde então, Mary e um grupo crescente de cientistas têm-se interrogado sobre como foi possível essas substâncias sobreviverem e o que podemos aprender com elas. No seu laboratório, Jasmina Wiemann, doutoranda em Yale, mostra-me como tritura um pedacinho de osso de Allosaurus para análise. Transfere o pó para um tubo e convida-me a adicionar uma solução ácida, que borbulha e muda de cor. “Faz-me sempre lembrar Coca-Cola”, diz. Ao microscópio, a lama remanescente inclui pedaços esponjosos cor de mogno, pontilhados por rabiscos negros. Não acredito no que vejo. Aquele muco castanho foi outrora um tecido rico em proteínas. E os rabiscos? São os contornos de células ósseas que viveram há mais de 145 milhões de anos num predador de dentes afiados, com dez metros de comprimento, do Jurássico. Passados milhões de anos, o calor e a pressão transformam, frequentemente, estes tipos de vestígios microscópicos através de reacções químicas. Apesar do seu estado alterado, os materiais contêm pistas preciosas sobre o comportamento dos dinossauros. Num estudo realizado em 2018, Jasmina demonstrou que, quando certas cascas de ovo são bombardeadas com radiação laser, a luz reflectida revela protoporfirina e biliverdina degradadas, compostos que conferem a cor e as pintas aos ovos das aves modernas. REIMAGINAND O OS DINOS SAUROS

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05 Dois machos de Edmontosaurus combatem por uma fêmea. Os hadrossauros tinham possivelmente uma vida social complexa, comunicando entre si através de roncos graves. FONTES: DAVID C. EVANS, MUSEU REAL DE ONTÁRIO; PHIL BELL, UNIVERSIDADE DE NOVA INGLATERRA

NOVIDADE S

Avanços na tecnologia 3D permitem aos investigadores reconstituir em pormenor a anatomia dos dinossauros, incluindo o ouvido interno, certas regiões do cérebro e outras estruturas de tecidos moles. Isto lança luz sobre as capacidades mentais e sensoriais dos dinossauros e as suas competências sociais.


CO M O

SOCIALIZAVAM


COMO MUDOU A N O S S A P E R S P E C T I VA

Durante muito tempo, os cientistas interrogaram-se sobre a função das bizarras cristas ósseas dos lambeossauros. Antigamente, pensava-se que as complexas vias nasais aumentavam o sentido do olfacto. Agora acha-se que eram um instrumento de vocalização semelhante à traqueia alongada do cisne-trombeteiro moderno.

C O M O S O C I A L I Z AVA M

DINO-C REBROS CRISTAS CONSTRUTIVAS

Estudos sobre o ouvido interno dos lambeossauros concluíram que este tinha a dimensão perfeita para ouvir as frequências geradas pelas cavidades nasais das cristas dos membros do grupo. Esta conclusão fortalece a hipótese segundo a qual as cristas produziam sons, contrariamente a outras teorias desacreditadas. Anteriormente, pensava-se que serviam de tubos de respiração para mergulhos subaquáticos. Hypacrosaurus

Reconstituindo um cérebro A modelação por computador mostra como os tubos nasais tinham capacidade para aumentar os sons graves. Exames ao ouvido interno e à anatomia do cérebro dizem-nos que os Lambeosaurus seriam capazes de ouvir estes sons e as suas regiões cerebrais altamente funcionais conseguiriam interpretar comportamentos complexos.

Bolbo olfactivo Cheiro

Hemisfério cerebral Pensamento complexo

Câmara naval ressonante

Cérebro

Ouvido interior

Como ouviam

Bons em comportamentos complexos

Nas aves, o comprimento da papila basilar (que faz parte da cóclea) relaciona-se com o espectro das frequências que conseguem ouvir melhor. Munidos dessa pista, os especialistas pensam que os dinossauros ouviam melhor as frequências graves.

Tomografias ao cérebro descobriram que os hemisférios cerebrais responsáveis por tarefas de processamento avançadas, como a interpretação de pistas sociais, ocupavam mais de 40% do cérebro do lambeossauro, mais do que em quase todos os outros dinossauros.

Cóclea

Capacidade auditiva (escala logarítmica) ALCANCE DO LAMBEOSAURUS EL EFA NT E

0

20

1.000

5.000

10.000

JASON TREAT; MESA SCHUMACHER. VERSÕES 3D: SINELAB. FONTES: LAWRENCE WITMER E RYAN RIDGELY, UNIVERSIDADE DE OHIO; DAVID C. EVANS, MUSEU REAL DE ONTÁRIO

H UMA NO

20.000 Hz

C ÃO

50.000 MHz


Com base nessa análise, os ovos calcificados do Deinonychus, um parente do Velociraptor, tinham um matiz azul, sugerindo que, à semelhança das aves modernas com ovos similarmente coloridos, estes dinossauros tinham ninhos ao ar livre e criavam os seus filhos. Por outro lado, os embriões fossilizados de Protoceratops descobertos na Mongólia e os embriões de Mussaurus provenientes da Patagónia encontram-se rodeados por aquilo que foi outrora uma casca de ovo com textura de cabedal. Este achado sugere que estes dinossauros não só enterravam os seus ninhos à imagem das modernas tartarugas marinhas, como os ovos dos mais antigos dinossauros eram igualmente moles. Isto modifica a história da evolução dos dinossauros, pois implica que as cascas de ovo duras (presentes em todo o grupo dos Dinosauria) não têm necessariamente uma origem comum. Em vez disso, esta característica evoluiu pelo menos três vezes. os avanços científicos mostram-nos que os dinossauros não eram as ameaças monótonas que, por vezes, são representadas na cultura popular. Os seus dias eram tão ricos e diversificados, passados num frenesi e agitação constantes, como os das aves que vemos através das nossas janelas. E até os maiores e mais malvados T. rex dormiam uma sesta de vez em quando. Tomo subitamente consciência disso ao deambular pelo laboratório de Bhart-Anjan Bhullar, professor auxiliar em Yale, cujo gabinete atravancado fica no mesmo corredor do de Jasmina Wiemann. Bhart-Anjan poderia trabalhar no departamento de geologia, mas só assistiu a três aulas de geologia em toda a sua vida. Estuda fósseis e embriões de animais vivos para desvendar como os antigos dinossauros se transformaram em aves. Num estudo de 2012, ele descobriu que, em termos de desenvolvimento, os crânios de aves são variantes, com pequenas alterações, dos crânios dos antigos juvenis de dinossauros: os crânios dos jovens dinossauros tinham ossos mais finos e maior flexibilidade, características aproveitadas pelas aves para desenvolverem bicos. Parte da velha caixa de ferramentas sobreviveu. Bhart-Anjan demonstrou igualmente que, se as principais vias moleculares do bico fossem bloqueadas, os embriões dos pintos poderiam desenvolver bicos semelhantes ao do Archaeopteryx.

A

C I M A D E T U D O,

Uma imagem microscópica do membro anterior de um embrião de codorniz é exactamente igual ao braço de um raptor, incluindo o músculo e a cartilagem. Bhart-Anjan encontrou mais exemplos flagrantes da forma como os embriões das aves resumem o essencial da sua própria história evolutiva ao longo de todo o plano corporal. Mostra-me uma imagem microscópica do membro anterior de um embrião de codorniz, que parece exactamente o braço de um raptor, incluindo a sua minúscula pata. “É o Deinonychus! Olhe para isto!”, exclama, enquanto aponta para o computador portátil. Só muito perto do momento da eclosão é que esta forma ancestral é substituída, transformando-se na bem conhecida asa de uma ave. Muito depois de partir de Yale, essa pequena pata de codorniz continua na minha cabeça. Passados muitos anos a escrever reportagens sobre dinossauros extintos, habituei-me perigosamente a pensar neles no pretérito perfeito. No entanto, eles ainda estão entre nós, como fantasmas, no interior dos ovos das aves que deles descendem. Os laços entre passado e presente tornam-se mais nítidos em Londres, quando a nossa visita à Ilha dos Dinossauros se aproxima do fim. Embora o mundo dos dinossauros não-avianos tenha chegado ao fim num piscar de olhos, os dinossauros de Crystal Palace enfrentam uma ameaça mais lenta e gradual. As esculturas foram classificadas como património em risco pelo Reino Unido, mas a falta de manutenção abriu fendas em boa parte do seu revestimento exterior descolorado. Em Maio, parte do rosto do Megalosaurus da ilha soltou-se – um dano causado pela degradação ou por vândalos. Estão a ser planeadas medidas de conservação, dirigidas pela Liga de Amigos dos Dinossauros de Crystal Palace. Perante a evidente necessidade de renovação que nos rodeia, pergunto a Susannah Maidment de que maneira os cientistas de hoje construiriam a sua versão de Crystal Palace Park. Susannah dá-me uma resposta elegante: ela enchê-lo-ia de aves. “Os dinossauros são os vertebrados terrestres mais diversificados que existem actualmente, sabe?” diz. Nesse preciso instante, um bando de gaivotas esvoaça sobre nós e mergulha nas águas mais adiante. “Eles nunca pararam.” j REIMAGINAND O OS DINOS SAUROS

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UM FUTURO COM NOMES E APELIDOS

ÁFRICA

D E Z H I STÓ R I A S D E R A PA Z E S E R A PA R I GA S D E D E Z PA Í S E S A F R I C A N O S A J U DA M A EXAMINAR OS DESAFIOS E SUCESSOS DO CONTINENTE COM P OPULAÇÃO MAIS JOVEM .

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Marceline Razanantsoa (a terceira da fila) e as suas irmãs dirigem-se para a horta da família nas terras altas de Madagáscar. Actualmente, as raparigas demoram quase duas horas a chegar à escola, em Betafo, porque as alterações climáticas e a desflorestação erodiram os caminhos e têm de seguir trilhos novos e mais demorados.



Rodrigue e Gloire tornaram-se crianças-soldado depois de os pais terem sido mortos por homens armados, há três anos. Actualmente, são guardas pessoais do general Mbura, líder do grupo rebelde Movimento de Acção para a Mudança (MAC). Na imagem, Gloire, de 12 anos, cruza-se com alunos da escola de Ngenge.


GIOVANA DELGADO DURÃO CA B O V E R D E

Quando ouço as notas é como se estas me entrassem pelos ouvidos e percorressem todo o corpo. É um som tão bonito!

EM CIMA , À ESQUERDA

Em 2012, painéis solares levaram a electricidade à aldeia piscatória cabo-verdiana de Monte Trigo. Giovana, de 12 anos, mudou de sonho desde que o seu tio ouve música na rádio: quer ser cantora. E M B A I X O, À E S Q U E R D A

A chegada da electricidade mudou o quotidiano da aldeia, que já é pioneira: é a primeira aldeia de Cabo Verde a obter toda a sua energia de fonte renovável. E M C I M A , À D I R E I TA

O general Mbura insiste que tanto Gloire como Rodrigue, ambos de 12 anos, se alistaram voluntariamente no seu grupo rebelde da República Democrática do Congo. “Agora, sou o seu pai.” E M B A I X O, À D I R E I TA

Heritier Jackson, de 17 anos, passou três anos num grupo rebelde congolês. Quando os pesadelos não o deixam dormir, procura a calma na margem do lago Kivu, na cidade de Goma.


RODRIGUE MASUDI E GLOIRE MISHIKI R E PÚ B LI CA D E M O C R ÁTI CA D O CO N G O Um dia, vou encontrar as pessoas que assassinaram o meu pai e vou vingar-me. Vou matá-los. —Rodrigue Masudi


T E X T O D E X AV I E R A L D E K O A FOTOGRAFIAS DE ALFONS RODRÍGUEZ

é ténue. O eco da felicidade ainda ressoa na sala de partos do hospital rural da cidade, 240 quilómetros a sul da capital da Etiópia, Adis Abeba, quando tudo corre mal. As batas brancas dos médicos voam pelo corredor e Hawi Merga, de 28 anos, chora porque já antecipa a dor: a sua filha Jamila, nascida uma hora antes, tem uma infecção pulmonar e está a morrer. Depois de reanimar o coração, um médico leva a bebé ao colo para a sala de cuidados intensivos. A angústia torna a atmosfera do quarto peganhenta e cada apito da incubadora, cada lufada de oxigénio insuflada pelo fole nos pulmões macios de Jamila, parece ser a última oportunidade. Subitamente, acontece uma desgraça: a electricidade vai abaixo. O gerador é activado, mas o hospital só dispõe de recursos para o manter ligado até à meia-noite. Depois disso, as incubadoras ficarão desligadas até à manhã seguinte. Kedir Ogato, um dos médicos que assistiu ao parto, morde o lábio. “Se a luz não voltar, não tem praticamente possibilidade de sobreviver”, diz. O facto de as hipóteses de sobrevivência de Jamila serem uma moeda atirada ao ar não é extraordinário. Embora a mortalidade neonatal tenha diminuído em África (baixou 38% em 15 anos, segundo a Organização Mundial da Saúde), todos os anos 300 mil bebés morrem durante o parto e 1,16 milhões no primeiro mês de vida. E M G A M B O , A F R O N T E I R A E N T R E A V I DA E A M O RT E

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N AT I O N A L G E O G R A P H I C

A forma como deixei de ser criança, tão depressa, não está certa… Não é justo que seja assim. Uma criança deveria ser uma criança.


MARGARET AYO U GA N DA

Margaret Ayo, de 13 anos, foi viver para uma cabana (em cima) na aldeia de Bad Munu, no Norte do Uganda, depois de casar com Joseph Okot, que tem o dobro da sua idade. As suas famílias negociaram o casamento em troca de dinheiro e algumas vacas. Margaret diz que, se um dia tiver filhas, lutará para que ninguém as obrigue a casarem-se. ÁFRICA

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PAULO NENQUE G U I N É- B I S SAU

Gosto de coser. Faz-me sentir bem porque, enquanto coso, sinto-me tranquilo, como se conseguisse esquecer-me de tudo.

EM CIMA , À ESQUERDA

Paulo tem 14 anos. A sua mãe morreu durante o parto e, como o pai não quis saber dele, viveu sempre num orfanato da capital da Guiné-Bissau. Quer ser costureiro. E M B A I X O, À E S Q U E R D A

O orfanato Casa Emmanuel acolhe crianças órfãs, abandonadas, maltratadas, com deficiências físicas ou com VIH/Sida. Na África subsaariana, vivem 52 milhões dos 140 milhões de órfãos do mundo. E M C I M A , À D I R E I TA

Hawi Merga segura nos braços a filha Jamila, ainda ligada à incubadora da sala de cuidados intensivos do hospital de Gambo. Atrás delas, está Hamde Wova, o pai da recém-nascida. E M B A I X O, À D I R E I TA

Madina Hussein dá à luz o seu nono filho e o primeiro a nascer num hospital. Hussein dirigira-se ao hospital para uma consulta de rotina, mas a bolsa de águas rompeu-se. Preferia ter parido em casa.


JAMILA WOVA ETI Ó P I A

Serei feliz quando tiver a minha filha nos braços. Até lá, tudo é dor. — Hawi Merga, mãe de Jamila


A desigualdade começa nesse minuto zero: em África, um bebé tem dez vezes mais possibilidade de morrer nas primeiras 24 horas de vida do que num país ocidental. Isto poderia evitar-se. Dois terços dessas mortes ocorrem devido a infecções ou cuidados deficientes de saúde. A Etiópia, com 109 milhões de habitantes, é o segundo país mais povoado de África, e resiste a esse destino escrito. Apesar de ainda ser um país inseguro para a na-

a infância no continente permite-nos apreciar os desafios e proezas de um continente complexo, diversificado e em constante evolução.

Na selva do Leste da República Democrática do Congo, Gloire Mishiki e Rodrigue Masudi, de 12 anos, materializam uma das cicatrizes mais profundas do continente. São protagonistas de um dos 16 conflitos armados de África. Em todo o planeta, há 34 em curso. Gloire e Rodrigue são crianças-soldado A L U TA P E L A S O B R E V I V Ê N C I A D E JA M I L A que, há três anos, trocaram a infância por É A D E TO D O UM C O N T I N E N T E . A R EG I ÃO uma Kalashnikov. É meio-dia, o sol D O P L A N E TA O N D E N A S C E M M A I S B E B É S encharca as têmporas e um grito quebra a É TA M B É M A M A I S J OV E M . calma: “A eles, agora!” Atiram-se ao ar áfrica é o futuro: como uma árvore que irrompe sobre a erva O S AVA N Ç O S N A E D U C A Ç Ã O , S A Ú D E alta, fixam o olhar num riacho ao fundo de E D I R E I TO S DA MU L H E R JÁ C OM EÇ A RA M uma planície e seguram a arma com as A TRANSFORMAR A REALIDADE AFRICANA . mãos. À sua volta, ouvem-se gritos de adultos: “Avancem! Sem medo! Disparem!” Os dois rapazes progridem, agachados, mas talidade, reduziu as mortes neonatais para meta- com a expressão tranquila de quem sabe que hoje de em 15 anos. A sua estratégia consistiu em criar não vão morrer nem matar: é um treino militar. Um uma rede de cuidados de saúde com diferentes exercício militar do Movimento de Acção para a níveis de assistência, um plano de sensibilização Mudança (MAC), um dos mais de setenta grupos contra os partos em casa e a formação de 38 mil rebeldes activos no país. A seu lado, milicianos vesnovos profissionais de saúde. tidos com camisolas rotas e chinelos, homens Se a vida de Jamila ainda está por um fio perto esquálidos que de noite se embriagam e aterrorida meia-noite, isso deve-se ao reforço lento, mas zam os civis, disparam contra um inimigo imagináconstante, do sistema de saúde etíope. Se tivesse rio, num gesto que condensa a tolice de uma guerra nascido em casa, como os seus dois irmãos, já es- suspensa desde a assinatura de um acordo de paz taria morta. Às 23h50, os médicos iniciam, resig- oco há 18 anos: levantam as armas, apontam e iminados, os preparativos para retirar a bebé da sua tam o som das balas com a boca. Não há dinheiro carapaça protectora e Hawi leva as mãos à cara. para desperdiçá-las. Bum, bum, bum. Rá-tá-tá-tá. Suspira. Então, acontece um milagre. Ouve-se um Rodrigue e Gloire são crianças-soldado e devem estalido e a electricidade regressa. Jamila perma- dar a vida pelo líder. Não têm alternativa. Fazem nece na incubadora, lutando. parte da guarda pessoal do general Mbura, líder A luta pela sobrevivência de Jamila é a de todo do MAC, desde que homens armados das FDLR um continente. A região do planeta onde nascem (Forças Democráticas para a Libertação do Ruanmais bebés é também a que tem a população mais da), em cujas fileiras militam autores do genocídio jovem, com idade média de 18 anos, em compara- do Ruanda que fugiram para o Congo, assaltaram ção com os 42 anos da Europa. África é o futuro: os a sua aldeia e lhes mataram os pais. Mbura, de 34 avanços na educação, na saúde e nos direitos da anos, insiste que o seu grupo é defensivo e que as mulher e a irrupção da tecnologia já começaram suas crianças-soldado alistaram-se devido à sua a transformar a realidade africana. O resultado generosidade. O recrutamento de menores de 15 é uma explosão de vida. A partir de 1960, com a anos é considerado um crime de guerra. “Tornavaga de independências que sacudiu o continen- ram-se voluntários porque eu trato deles.” te, a esperança de vida passou de 40 para 61 anos Segundo um relatório da ONU, existem no e a população, de 283 milhões para 1.340 milhões. mundo mais de 12 mil crianças-soldado, metaNo entanto, também há sombras em África. de das quais em África, embora a organização Ainda hoje, milhões de pessoas sofrem com os admita que o seu estudo refere apenas os cadanos causados pela guerra, o jihadismo, a po- sos verificados e que o número real deverá ser breza e as alterações climáticas. Um olhar sobre muito superior. (Continua na pg. 62) 56

N AT I O N A L G E O G R A P H I C

I N FÂ N C I A S R O U B A DA S .


África: desafios e conquistas de um continente indestrutível

EM NÚMEROS

O mapa representa a localização das dez histórias narradas na reportagem, com uma breve anotação sobre cada um dos jovens protagonistas. Os gráficos (à direita) oferecem dados comparativos de África e outras regiões do mundo sobre mortalidade infantil, idade média e esperança de vida.

Número de recém-nascidos que morrem antes dos 28 dias de idade por cada 1.000 bebés vivos.

Taxa de mortalidade neonatal por regiões do mundo (1990-2018)

1990

2018

África Ocidental e Central 48,33 31,20 África Subsaariana 45,51 27,73

CABO VERDE

Á

MALI 4

1

58,79

CHADE

25,81

5

GÂMBIA 2

ETIÓPIA

3 GUINÉ-BISSAU

1

África Oriental e Meridional 42,90 24,010

7

GIOVANA DELGADO

8 UGANDA

Quer ser cantora

Próximo Oriente e Norte de África 28,12 12,10

6 R. D. CONGO

Acesso à electricidade Nos últimos cinco anos, 23 milhões de africanos acederam à energia solar. O desenvolvimento de energias renováveis e a generalização de telemóveis melhora com frequência os indicadores de educação e igualdade.

América Latina e Caraíbas 22,51 9,05 MOÇAMBIQUE 9 10 MADAGÁSCAR

Ásia Oriental e Pacífico 27,45 7,51 Europa de Leste e Ásia Central 20,61 6,45

2

5

DJIBRINE MBODOU

HAWA FAYE

Sequestrado pelo Boko Haram, mas fugiu

Estudante de fotografia

Desenvolvimento tecnológico e educação O desenvolvimento tecnológico, a educação e o avanço dos direitos da mulher em África abrem novas oportunidades para muitas mulheres.

Jihadismo O grupo jihadista Boko Haram aproveita a miséria da região e converteu o lago Chade num ninho de víboras. 6

DRIGUE MASUDI E GLOIRE MISHIKI

3

ULO NENQUE

Quer ser costureiro

Órfãos que procuram uma saída Dos 140 milhões de órfãos do mundo, 52 milhões vivem na África Subsaariana.

8

Neto de feiticeiro

O peso das tradições A medicina tradicional e a bruxaria marcam a vida de muitos africanos e muitas vezes ameaçam-na.

Noiva infantil

Matrimónio infantil 41 % das mulheres da África Ocidental e Central casam-se antes dos 18 anos. Na África Subsaariana, 115 mihões de mulheres casaram-se antes dos 18 anos. 9

SÉ ALBINO

Crianças-soldado

Conflitos armados Os grupos rebeldes utilizam a guerra como desculpa para a exploração infantil. Actualmente há mais de 12 mil crianças-soldado em todo mundo e metade combate em África.

4

NDJI DIALLO

ARGARET AYO

MILA WOVA

Recém-nascida

Mortalidade neonatal Segundo a OMS, morrem em África todos os anos 300 mil bebés durante o parto e 1,16 milhões no primeiro mês de vida.

Europa Ocidental 5,56 2,26

Evolução da idade média da população (1950-2020) Europa América do Norte Oceânia

Ásia América Latina e Caraíbas África

Idade 40

42,5 8,6

Menino de rua

O drama dos meninos de rua Milhões de crianças (o número exacto é incerto) fogem dos maus tratos, do abandono paterno, da pobreza e da guerra.

30

3,4 2 1

20

9,7

1950

2020

Evolução da esperança de vida (1950-2020) 1950-1955

10

7

América do Norte 5,63 3,50

ARCELINE RAZANANTSOA

Quer ser professora

Alterações climáticas As alterações climáticas e a desflorestação dificultam o acesso às escolas rurais.

INFOGRAFIA: DAVID MARTINEZ. FONTES: UNICEF (MORTALIDADE NEONATAL); ONU, WORLD POPULATION PROSPECTS, 2019 (MÉDIA DE IDADES); ONU (ESPERANÇA DE VIDA). MAPA: NGM–E

68,

2015-2020

79,2 63,7

América do Norte 51,4

5,2

78,3

Europa 7,5 África

América Latina e Caraíbas

2,3

73,3

Ásia

,4

Oceânia


JOSÉ ALBINO M O ÇA M B I Q U E

Tinha medo e estava sozinho. No primeiro dia, dormi na estação. Quando me levantei, quis conhecer a cidade, mas continuava com medo.

EM CIMA , À ESQUERDA

José Albino chegou sozinho, aos 11 anos à Beira, cidade portuária de Moçambique, para fugir às sovas da sua madrasta, consentidas pelo pai. Há quatro anos que vive na rua. E M B A I X O, À E S Q U E R D A

José e vários meninos de rua dormem em frente da estação central da Beira. Depois de conciliarem o sono durante alguns minutos, acordaram por causa dos mosquitos. E M C I M A , À D I R E I TA

Kandji (o primeiro da esquerda), de 6 anos, acompanha todos os dias o pai e o irmão à horta da família. Os restantes adultos da família foram para uma mina no Norte do Mali e não há mãos suficientes para arar a terra. A fome disparou em flecha. E M B A I X O, À D I R E I TA

Quando Kandji ficou doente devido a subnutrição, há três anos, o seu avô Djan Diallo, o feiticeiro da aldeia e um dos curandeiros mais respeitados da região, negou que o motivo fosse fome.


KANDJI DIALLO M A LI

Kandji foi apanhado pelo pássaro maléfico, adoeceu por isso e não por subnutrição. As pessoas inventam mentiras. —Djan Diallo, feiticeiro e avô de Kandji


A aldeia piscatória de Monte Trigo, cujas ruas se iluminam pela primeira vez graças à energia solar, fica em Santo Antão, a ilha mais ocidental do arquipélago de Cabo Verde e o último pedaço de terra africana no Atlântico Ocidental.



Uma análise realizada por uma coligação de organizações internacionais em 2003 denunciou que, só em África, havia mais de um milhão de crianças-soldado. Além do Congo, existem agora conflitos no Sudão do Sul, Somália, Líbia, República Centro-Africana, Sael e lago Chade. Inconscientes, manipuláveis e substituíveis, as crianças são soldados perfeitos em guerras de baixa intensidade, nas quais se luta para manter uma economia militarizada, de rapina, que se alimenta do sangue e do medo do outro para controlar o mercado negro de armas, minerais ou seres humanos. Gloire e Rodrigue são o último elo dessa cadeia. No início, Rodrigue é desconfiado e esquiva-se a todas as perguntas. Até que, certa manhã, numa saída de reconhecimento, cruza-se com um grupo 62

N AT I O N A L G E O G R A P H I C

de estudantes e cospe palavras afiadas como facas: “Porque me alistei no MAC? Quero voltar para a escola, mas não tenho ninguém que ma possa pagar. A pessoa que ma pagava está morta.” Embora real, o desespero das crianças-soldado não nos fornece uma imagem completa. Heritier Jackson, de 17 anos, é outra faceta desta realidade. Entre 2015 e 2018, foram libertados 17.141 menores como ele dos grupos armados congoleses. Desde então, só o som da água correndo entre as rochas acalma os demónios de Heritier. Quando o passado o atormenta e não o deixa dormir, aproxima-se da margem do lago Kivu e observa o horizonte em silêncio. Combateu sob as ordens do general Mbura no MAC entre os 11 e os 15 anos. Roubou dez cartuchos de munições, ordenou a


“A fotografia dá-nos poder. Às vezes tenho vergonha quando peço para tirar uma foto e recusam, mas a máquina faz-me sentir forte.”

HAWA FAYE GA M B I A

Hawa Faye, de 19 anos, e sua amiga Catherine Bassen são as alunas mais novas do primeiro curso de fotografia do centro de formação para mulheres de Fandema. A sua intenção de abrir caminho numa profissão historicamente masculina simboliza os avanços dos direitos da mulher em África. O sonho de Hawa é ser jornalista. Em cima, vemo-la durante um treino na praia de Tanji.

três soldados de 11 anos a seu cargo que o seguissem e entregou-se com eles numa base de capacetes azuis da ONU. As dez balas eram a prova de que não mentia e os três rapazes uma tentativa íntima de absolvição. “Nessa época, detinha o cargo de capitão com várias crianças-soldado a meu cargo. Peguei naqueles três porque tinham 11 anos, como eu, quando comecei. Tinha medo que me denunciassem, mas quis salvá-los. Não sei porquê.” A atenção mediática em África costuma incidir sobre o guerrilheiro, o assassino ou o carrasco. No entanto, quando a guerra e o ódio corroem os alicerces de um país, há milhões de africanos que se arriscam a ajudar os outros. A agir como seres humanos. Djibrine Mbodou, de 17 anos, é um deles. Esteve sequestrado durante um ano e meio no lago Chade, uma região fronteiriça entre a Nigéria, os Camarões, o Níger e o território chadiano, onde se refugia o grupo jihadista Boko Haram, cujo nome, em língua haúça, se traduz por “a educação ocidental é pecado”. Nos últimos 11 anos, o grupo fundamentalista, do Norte do país que pretende impor uma interpretação radical da sharia provocou uma carnificina de 37.500 mortos, 2,5 milhões de deslocados e milhares de sequestros. Djibrine treme ao recordar a noite em que os viu pela primeira vez. Quando os barbudos entraram na ilha de Galoa, gravaram a sua mensagem com sangue: reuniram todos no centro da aldeia, cortaram o pescoço ao chefe e sequestraram os setecentos habitantes. As semanas posteriores foram uma mistura de fome e execuções sumárias, motivadas por pretextos futéis. Depois, fizeram uma oferta irrecusável aos jovens como Djibrine. Se pegassem numa arma e se alistassem, o seu sofrimento acabaria porque participariam nas pilhagens e até poderiam escolher uma esposa entre as reféns. Como a alternativa era uma morte provável, muitos juntaram-se ao grupo. Djibrine não. “Sou apenas um pescador e não um assassino. Pescava para eles, mas sabia que a minha única saída era fugir.” Suportou o terror das chicotadas sempre que regressava sem peixe suficiente na rede, até que um dia se afastou com a canoa e, quando pisou terra firme, desatou a correr. Se o apanhassem, sabia porque já o vira, cortar-lhe-iam o pescoço. ÁFRICA

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DJIBRINE MBODOU CHADE

Batiam-me se não trouxesse peixe suficiente, mas eu preferia isso a pegar numa arma. Não queria matar.

EM CIMA , À ESQUERDA

Djibrine Mbodou, de 17 anos, esteve sequestrado por mais de um ano pelo grupo Boko Haram. Propuseram-lhe que se juntasse a eles, mas ele conseguiu fugir. E M B A I X O, À E S Q U E R D A

Mulheres e crianças na aldeia de Melea, na margem do lago Chade, onde centenas de pessoas se refugiaram depois de os jihadistas incendiarem as suas aldeias na ilha. E M C I M A , À D I R E I TA

Marceline, de 15 anos, trabalha com a mãe e a irmã na horta da família Antanifotsy. Só depois de ir buscar água e lenha, de alimentar os animais e preparar o jantar é que pode dedicar-se aos trabalhos da escola. E M B A I X O, À D I R E I TA

Marceline numa aula, na sua escola de Betafo, gerida pelos salesianos. Nem as tarefas domésticas nem as quase duas horas que demora, todos os dias, a chegar à escola a fazem desistir do seu sonho: quer estudar para ser professora.


MARCELINE RAZANANTSOA M A DAGÁ S CA R

Se as alterações climáticas continuarem, teremos dificuldades e não poderei ser o que quero na vida.


Agora, Djibrine vê a vida passar na aldeia chadiana de Melea, um monte de barracas de palha em terra firme, com refugiados como ele, onde as organizações humanitárias quase não chegam e o sol transforma a brisa numa bola de algodão quente que entope a garganta. Para Djibrine, a vida sob este sol é uma vitória. “Estou orgulhoso de ter chegado aqui assim.” Assim: sem matar.

milhões de contas). Também emerge de conceitos de base como a educação e a igualdade. Embora as mulheres africanas ainda tenham menos direitos do que os homens e a disparidade salarial seja grande porque elas ganham, em média, menos um terço pelo mesmo trabalho e apenas 15% é proprietária da terra que cultiva, o acesso das raparigas à educação tem aumentado. Nenhum outro lugar do mundo assistiu a um crescimento tão explosivo do acesso feminino à educação primária. Em 1970, O FUTURO DIFÍCIL DE MILHÕES DE uma em cada duas africanas com menos AFRICANOS TEM UM DENOMINADOR COMUM: de 24 anos não sabia ler nem escrever. A C A R Ê N C I A E S TÁ E M B U T I DA N O T U TA N O Hoje, o número é uma em cada cinco. DE MILHÕE S DE VIDAS. Os cliques das máquinas fotográficas Séculos de exploração retratam essa tendência. Hawa Faye e E D É C A DA S D E M Á G OV E R N AÇ ÃO, C OM Í N D I C E S Catherine Bassen, de 19 e 18 anos, resD E C O R R U P Ç Ã O I N S U S T E N TÁV E I S , D E I X A R A M pectivamente, fundem-se no meio da MILHÕE S DE PE S SOAS SEM LAR. confusão do crepúsculo na praia de Tanji, no Sul da Gâmbia, no instante em que os pescadores regressam para vender as suas capturas depois de terem passado PA S S E M O S À M U L H E R A F R I C A N A . Há outras Áfricas onde o valor se conjuga no feminino e na paz, todo o dia no mar. Elas observam, enquadram inspirado pelos avanços sociais. Giovana Delgado e fotografam cada pormenor. Clic, clic. Quando Durão, uma rapariga cabo-verdiana de 12 anos, as descobrem, os rapazes das embarcações e os dedica-se a mudar o seu destino inevitável como vendedores das bancas de praia não lhes ligam. dona de casa na sua aldeia pesqueira de Monte Elas enchem o peito e sorriem. Clic. “A fotografia dá-nos poder”, afirma Hawa. “Às Trigo, com 270 habitantes. Ambiciona ser cantora no futuro. O motivo? Há sete anos, uma empresa vezes, tenho vergonha quando peço para tirar local instalou painéis solares na escola e levou, uma fotografia e recusam o pedido, mas a mápela primeira vez, electricidade até às casas. quina faz-me sentir forte.” Ambas são as alunas mais novas do primeiro É uma revolução continental em marcha: nos últimos cinco anos, 23 milhões de africanos curso de fotografia do centro de formação para ganharam acesso à energia solar e esse número mulheres de Fandema, na vizinha cidade de Tudeverá crescer para 250 milhões em 2030. Em jereng, e esperam preencher uma lacuna numa Monte Trigo, a luz mudou a vida de todos, a dos profissão historicamente masculina. Não são inpescadores, que congelam as suas capturas em génuas. “Sei que há poucas mulheres fotógrafas vez de as venderem por maus preços, e as de e que é um trabalho difícil”, sublinha Catherine. quem descobre o mundo através de um televisor “Antes, isso metia-me medo, mas agora já não.” A coragem de Hawa e Catherine percorre um aceso. Também mudou a vida de Giovana. Como agora o seu tio liga o rádio (anteriormente o caminho que foi aberto por outras. Nos últimos escasso poder de compra da família não permitia anos, a representação política das mulheres afria aquisição de pilhas), a música inunda a sala e canas duplicou e elas já ocupam 24,4% dos lualimenta os sonhos da rapariga de ser como Cesá- gares parlamentares, comparados com cerca de ria Évora. “Gostaria de ser artista profissional e 11% em 2002. O número é inferior ao da Europa (29,9 %), mas está acima dos da Ásia, Próximo cantar, viajar e conhecer o mundo.” A capacidade de imaginar outra vida não deri- Oriente e Pacífico. A maior presença feminina va apenas do desenvolvimento tecnológico, que nos cargos de decisão é visível. Segundo o Banco implicou a irrupção das energias renováveis, a Mundial, na última década, África empreendeu implantação do telemóvel – África é a região do mais reformas para promover a igualdade de gémundo onde o uso desta tecnologia mais cresce nero do que qualquer outra região do mundo. A viragem feminista no continente não chega (600 milhões de utilizadores) – ou a generalização dos pagamentos através da banca digital (450 a tempo para muitas. Na aldeia de Bad Munu, 66

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no Norte do Uganda, os pais de Margaret Ayo, de 13 anos, acabam de negociar o seu casamento com Joseph Okot, um rapaz com o dobro da sua idade, em troca de um dote em dinheiro e vacas. No espaço de poucos dias, Margaret deixou de brincar com as amigas e passou a governar uma casa e a servir o seu marido, que aliás só viu duas vezes antes da cerimónia. “Esta é a minha vida agora”, diz. Todos os anos, três milhões de raparigas são obrigadas a casarem-se com homens adultos na África subsaariana. Margaret tem as pestanas compridas, o olhar cândido e o físico de adolescente. Parece frágil, mas não é. Passada uma semana, afasta a prudência e arma um vendaval. Até protesta à frente do marido. “Isto está mal, não está? Uma rapariga deveria ser uma rapariga, deveria poder chegar ao fim da sua infância, isso seria o correcto. Se, no futuro, Deus me der a felicidade de ter filhas, gostaria de estar com elas e que não se casassem muito cedo.” Sentado na outra ponta da cabana, Joseph olha para ela e baixa a cabeça. Faz riscos na areia com os dedos e acena com a cabeça. Mais do que a sua probabilidade de sucesso, a rebeldia de Margaret anuncia mudanças. Embora saiba que é difícil escapar aos costumes num contexto rural, como o seu, urdiu um plano: quer que as suas filhas vão à escola. Esta é a chave. Cada ano adicional de educação secundária reduz, em média, 7,5% o risco de matrimónio prematuro para uma rapariga. E também de dar à luz antes dos 18 anos. Arma de construção maciça, a educação definirá o futuro de toda a África. Há duas pedras no caminho: a pobreza e o sol. O continente que menos CO2 gera é o que mais vai sofrer as consequências do aquecimento global. Segundo o Banco Mundial, 60% dos 143 milhões de habitantes do mundo que em 2050 abandonarão as suas casas devido à seca, ao avanço da desertificação ou à multiplicação de fenómenos meteorológicos extremos serão africanos. Para Marceline Razanantsoa, de 15 anos, as repercussões das alterações climáticas não acontecerão amanhã. Estão a acontecer agora. Ela estuda em Betafo, aldeia das terras altas de Madagáscar, e quer ser professora, mas o aumento de tufões e cheias, juntamente com a erosão das estradas, causado pelo abate ilegal de árvores, cujas raízes deixaram de suster o terreno, afasta-a mais da escola a cada dia que passa. Literalmente. A P E R S E V E R A N Ç A P E R A N T E O S O B S TÁC U LO S .

“Antes, o caminho era fácil porque viajava por outro vale, mas agora está cheio de buracos e não se consegue passar. O caminho novo é mais longo e desmorona-se quando chove.” O futuro espinhoso de milhões de africanos tem um denominador comum. Desde o rugir das tripas de Kandji Diallo, neto do feiticeiro de uma aldeia no Oeste do Mali, à determinação inquebrantável de ser costureiro na Guiné-Bissau de Paulo Nenque, um dos 52 milhões de órfãos africanos, ou o desamparo de José Albino, um rapaz que vive nas ruas da cidade moçambicana da Beira, a carência económica está embutida no tutano de milhões de vidas sofridas. Séculos de exploração internacional e décadas de má governança, com índices de corrupção insustentáveis, deixaram milhões de pessoas sem lar. Embora a pobreza tenha diminuído percentualmente em África (de 54,7% em 1990 para 41% actualmente), se avaliarmos a situação usando os padrões dos países ocidentais, onde quem ganha menos de cinco euros por dia é considerado pobre, 85% dos africanos têm rendimentos inferiores a esse valor. Uma das consequências tem sido um êxodo significativo. Embora os motivos para migrar não sejam compartimentos estanques e diversos factores se misturem frequentemente, como a falta de oportunidades, de segurança ou de liberdade nos países de origem, o número de africanos que emigraram para países do hemisfério norte duplicou nas últimas três décadas. O crescimento tem sido particularmente pronunciado na Europa, onde no ano passado residiam quase 11 milhões de migrantes nascidos em África. Enquanto avança por um desfiladeiro escorregadio até à sua escola malgaxe, Marceline recusa ser definida pelos seus bolsos vazios. Agora demora duas horas a chegar à escola e outras duas a regressar e só pode fazer os trabalhos de casa ao fim da tarde, quando acaba de tratar das tarefas domésticas e dos animais. À falta de secretária, escreve as suas redacções sobre os joelhos no chão, à luz de uma lanterna, enquanto os outros dormem. Mas ela, como o resto do continente, resiste a ser reduzida à ferida, ao trauma ou à dificuldade. De manhã, Marceline evita um buraco no caminho, saltando entre duas pedras, e quando lhe pergunto que alternativas contempla se não conseguir ser professora, engole em seco. “Serei professora, vais ver. Sei que é difícil, mas sempre foi assim por aqui.” j ÁFRICA

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Floresta nos arredores do hospital rural de Gambo, uma antiga leprosaria fundada em 1922 a sul de Adis Abeba, capital da Etiópia. Embora a mortalidade neonatal tenha diminuído cerca de 38% em África nos últimos 15 anos, segundo a Organização Mundial da Saúde, os níveis de mortalidade materna são quase 50 vezes mais altos entre as mulheres da África subsaariana.


REFLEXOS DE UM PASSADO ROMANO O S A R Q U E Ó L O G O S T E N TA M R E S O LV E R U M M I S T É R I O N U M A N E C R Ó P O L E D A É P O C A P R I M I T I VA C R I S TÃ : A IDENTIDADE DE UMA MULHER E O MOTIVO PELO QUAL MUITOS DOS QUE A SEGUIRAM NA MORTE D E S E J AVA M E S TA R P E R T O D E L A N O A L É M .

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“Bebe para viveres para sempre” é o significado da inscrição grega num recipiente de vidro descoberto no sarcófago de uma mulher de estatuto elevado sepultada numa necrópole de Ljubliana, na Eslovénia. ARNE HODALIČ E KATJA BIDOVEC


“O trabalho de campo foi bastante difícil”, diz o arqueólogo Martin Horvat. “Não é agradável quando um autocarro gigantesco passa a poucos metros de nós.”

As ruínas de Emona, uma cidade romana fundada em 14-15 d.C., situam-se sob o centro de Ljubliana. Durante as escavações realizadas na Rua Gosposvetska (à direita), os arqueólogos descobriram vestígios de uma necrópole do século IV com mais de 350 esqueletos sepultados e mais de 40 sarcófagos. MATIJA LUKIĆ

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N AT I O N A L G E O G R A P H I C


NECRÓPOLE ROMANA

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T E X TO D E MARJAN ŽIBERNA F OTO G R A F I A S D E ARNE HODALIČ

Quando um grande projecto de construção teve início na baixa de Ljubliana, os arqueólogos eslovenos previram grandes descobertas. No entanto, não estavam à espera de obter um invulgar vislumbre de uma comunidade primitiva cristã, nem de encontrar uma mulher importante – e ainda desconhecida – sepultada numa necrópole que os seus conterrâneos desejaram seguir rumo à eternidade. A capital deste pequeno país da Europa Central foi fundada há cerca de dois mil anos. Era então a cidade romana de Emona, povoada por milhares de colonos vindos do Norte de Itália, devido à falta de terras, e por veteranos de guerra que ajudaram a consolidar o Império Romano. A comunidade cristã local floresceu após o final da Grande Perseguição empreendida pelos imperadores romanos do início do século IV e desvaneceu-se com a destruição de Emona pelos hunos no século V d.C. Graças a escavações prévias, os arqueólogos já tinham conhecimento da probabilidade de existir parte de uma necrópole romana sob a Rua Gosposvetska. Antecipavam por isso a possibilidade de descobrirem mais túmulos antigos. As escavações começaram em Agosto de 2017 e revelaram uma necrópole tardo-romana contendo mais de 350 sepulturas – desde simples covas a sarcófagos e mausoléus de família. Estavam dispostas em redor da grande sepultura de uma mulher que, segundo o arqueólogo esloveno Andrej Gaspari, parece ter sido muito influente. 74

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“O estudo de sepulturas é um dos trabalhos de campo mais difíceis da arqueologia”, diz Martin Horvat, que dirigiu as escavações. “A concentração de sarcófagos e de sepulturas comuns com esqueletos era extremamente elevada. Os gigantescos sarcófagos de pedra tornaram a parte logística do trabalho particularmente difícil, pois tiveram de ser cuidadosamente levantados e transportados para salas de armazenamento em museus.” Os arqueólogos estão interessados em saber como a sepultura da mulher evoluiu ao longo do tempo. Tudo indica que, uma década após o seu sepultamento, um edifício quadrangular terá sido demolido para dar lugar à construção de uma estrutura maior, com 10 por 13 metros, sobre o seu túmulo. Em redor da nova estrutura e no interior, a comunidade cristã de Emona começou a praticar uma tradição funerária conhecida como ad sanctos, ao abrigo da qual os mortos eram enterrados junto dos túmulos de mártires e de outras pessoas considera(Continua na pg. 81) das sagradas.

Uma moeda (em cima) do século IV representa a loba com Rómulo e Remo, os fundadores lendários de Roma. Os restos mortais (à direita) de uma mulher com 30 a 40 anos foram descobertos numa sepultura elaborada na área mais antiga da necrópole. A maioria das sepulturas subsequentes estavam alinhadas com esta. Outro sinal do seu estatuto é uma taça azul brilhante colocada no seu sarcófago.



As sepulturas da época tardo-romana costumam ter pouco ou nenhum espólio funéreo, mas há excepções. Uma mulher sepultada numa simples cova tinha este colar de ouro com contas de vidro ao pescoço e pulseiras de bronze nos braços. ARNE HODALIČ E KATJA BIDOVEC



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Os sepultamentos não eram permitidos no interior das cidades romanas. Eram preferencialmente realizados junto das estradas que lhes davam acesso. O sepultamento de esqueletos substituiu gradualmente a prática romana de enterrar urnas com restos cremados.

Os esqueletos de alguns sarcófagos estavam bem preservados e são fontes de informação vital. Através da análise de ossos, os cientistas podem determinar como viveram e, por vezes, como morreram estas pessoas. NECRÓPOLE ROMANA

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Sarcófago de mulher de estatuto elevado LJUBLIANA

Sepultura Sarcófago Fronteira do sítio Parede do túmulo vimento de mosaico Os habitantes de Emona enterravam os mortos em diferentes tipos de sepultura, desde simples covas e caixões de madeira a sarcófagos e mausoléus. A necrópole descoberta sob a Rua Gosposvetska (em cima) é típica das fases primitivas do cristianismo. Žiga Šmit (à esquerda) analisa o recipiente descoberto no sítio arqueológico.

Mais tarde, foi construído um mausoléu junto da estrutura existente sobre o seu túmulo. Quem era a mulher homenageada neste monumento funerário? Se os arqueólogos estiverem certos e ela tiver sido a primeira pessoa sepultada na necrópole, na medida em que a sua sepultura ocupou a posição original nessa estrutura, é provável que ela tenha sido uma pessoa muito estimada na Emona romana. O seu estatuto social, filiação religiosa e local de nascimento, porém, ainda pertencem ao reino da especulação. A análise dos restos mortais está em curso e talvez possa produzir algumas respostas no futuro. “Na secção setentrional da necrópole, descobrimos alguns vestígios de frescos e de pavimentos de mosaico que, provavelmente, revestiam todo o local”, diz Andrej Gaspari. “Fragmentos de frescos isolados junto dos enormes alicerces do edifício sugerem a existência de nichos abobadados, cuja finalidade ainda não se conhece.” Fragmentos dispersos de cerâmica e vidro descobertos em sedimentos da antiga superfície sugerem que a necrópole também foi usada para banquetes funerários nos aniversários ARNE HODALIČ E KATJA BIDOVEC. MAPA: RENE MASARYK E GREGOR BABIČ

da morte dos indivíduos sepultados. Relatos literários também descrevem estes banquetes. A comunidade cristã interpretava a morte como dies natalis, o dia em que os crentes renasciam para a nova vida. O artefacto mais espectacular é uma taça de vidro azul transparente, descoberta junto do corpo da mulher. O recipiente com 1.700 anos tem o exterior decorado com uvas, folhas de videira e gavinhas. O significado da inscrição grega gravada no interior da taça é: “Bebe para viveres para sempre!” Esta requintada taça poderá ter sido usada na vida quotidiana e em cerimónias fúnebres. A análise da sua composição química sugere que o artefacto proveio do Mediterrâneo Oriental, comprovando um circuito de trocas comerciais na Antiguidade. O motivo da vinha está ligado à eucaristia cristã e à comunhão, mas teve origem na Grécia, com Dioniso, deus pagão do vinho e do êxtase. A maioria dos artefactos preciosos encontrados na Rua Gosposvetska estão em exibição na Sala do Tesouro do Museu Municipal de Ljubliana. j NECRÓPOLE ROMANA

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“Ricos e pobres foram enterrados nesta necrópole. A única diferença era que os mais ricos tinham o privilégio de serem enterrados em sarcófagos ou túmulos com paredes”, diz a arqueóloga Mojca Fras.

Os sarcófagos foram esculpidos com cinzel a partir de blocos de calcário. Arqueólogos e estudantes (à direita) deslocaram as caixas de pedra para a sala de armazenamento de um museu. As evidências mostraram que alguns tinham sido abertos e novamente selados. Os restos mortais foram colocados no interior e depois removidos. Alguns sarcófagos poderão ter sido vendidos ou oferecidos a outra pessoa. 82

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NECRÓPOLE ROMANA

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O sarcรณfago de uma menina de 6 anos continha alguns dos tesouros funerรกrios mais preciosos alguma vez descobertos em Emona. Ela usava pulseiras de ouro e vidro preto, um colar de ouro com contas de vidro e um anel de ouro e apatite. ARNE HODALIฤ E KATJA BIDOVEC



É PRECISO SALVAR

ADA AMAZÓNIA HARPIA Cientistas, produtores de castanha, proprietários agrários e agentes turísticos estão a juntar forças para conservar uma das maiores águias do mundo. T E XTO D E RACHEL NUWER

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FOTOGRAFIAS DE KARINE AIGNER


Uma harpia protege a sua cria num ninho da Amazónia brasileira. As fêmeas são maiores do que os machos e podem pesar 11 quilogramas, com garras frequentemente maiores do que as de um urso-pardo. A sua área de distribuição na América Central e do Sul diminuiu mais de 40% desde o século XIX.

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As harpias encontram-se agora principalmente na floresta tropical da Amazónia, onde o abate de árvores para criação de gado está a destruir o seu habitat. Os conservacionistas esperam que os criadores de gado reduzam a desflorestação se ganharem dinheiro suficiente com os turistas que pagam para ver a espécie nos ninhos a partir de torres como esta.

HARPIAS

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Em teoria, deveria ser um atalho. Agora, com água pela cintura, dou por mim a tropeçar em troncos submersos. Agacho-me sob arbustos espinhosos cheios de formigas e avanço entre cortinas peganhentas de teias de aranha, seguindo por um trilho aberto pelo ecologista brasileiro Everton Miranda. Já perdemos uma máquina fotográfica, quando o assistente de campo Edson Oliveira caiu de frente, enfiando a cara numa grande poça. A fotógrafa Karine Aigner foi picada no antebraço por uma vespa, desenvolvendo uma baba. Contudo, se alguém estiver a pensar em voltar para trás, não o diz em voz alta. A nossa missão é demasiado importante. Estamos aqui em busca da esquiva harpia que, segundo os boatos, se encontra a um quilómetro e meio, no interior desta floresta húmida amazónica em Mato Grosso. Com os seus elegantes corpos monocromáticos, olhos ferozes e penas faciais exuberantes, as harpias são frequentemente mencionadas quando se fala nas aves mais espectaculares do planeta. Capazes de capturar uma preguiça adulta numa árvore, as suas garras podem ser maiores do que as de um urso-pardo, e as fêmeas chegam a pesar 11 quilogramas. “Parecem um animal saído de um livro de fantasia”, diz Everton Miranda. 90

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Tendo em conta o seu peso, estas aves de rapina têm uma envergadura de asas pequena, o que lhes permite navegar na floresta densa. Podem capturar uma preguiça adulta ou um pequeno veado. Esta harpia está a regressar ao ninho com os restos de um porco-espinho.

Esta reportagem foi realizada em parceria com a National Geographic Society e a Wyss Campaign for Nature, que pretendem inspirar os leitores a protegerem 30% do planeta até 2030.


Enquanto predadores de topo, as harpias desempenham um papel essencial, ajudando a manter as populações de predadores sob controlo. “Se conseguirmos conservar a harpia, conseguiremos conservar quase toda a biodiversidade do ecossistema que eles habitam”, diz Richard Watson, presidente e director executivo do Peregrine Fund, uma organização sem fins lucrativos que lidera um programa de conservação de harpias no Panamá. Ninguém sabe quantas restam em ambiente selvagem, mas os cientistas sabem que estão a desaparecer. Estas poderosas aves de rapina existiram, outrora, desde o Sul do México ao Norte da Argentina, mas a sua área de distribuição diminuiu mais de 40% desde o século XIX e está agora praticamente limitada à Amazónia, diz o biólogo.

A desflorestação causada pela exploração agrícola, extracção mineira e construção não parece abrandar. Everton Miranda estima que tenham sido arrasados 55 hectares de floresta amazónica brasileira por hora no início de 2020. Lutador de artes marciais mistas e cientista, Everton está na linha da frente dos esforços para salvar as harpias do Brasil. Ele acredita que, sem acções eficazes de conservação, as aves de rapina não tardarão a desaparecer de uma parcela significativa do seu bastião brasileiro, o chamado arco de desflorestação, uma paisagem fragmentada com o tamanho aproximado de Espanha, contornando o Sudeste da Amazónia. Everton acredita que essa perda de habitat poderá ser combatida se for demonstrado aos brasileiros que as florestas são mais lucrativas em pé do que derrubadas. HARPIAS

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Um tatu recém-caçado servirá de refeição a uma cria esfomeada. Os cientistas estão a monitorizar o ninho no âmbito de um esforço para proteger as harpias nas zonas mais vulneráveis à desflorestação.

HARPIAS

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Com essa ideia em mente, ajudou recentemente a lançar um inovador projecto de ecoturismo para incentivar os proprietários de terras a protegerem as harpias e os seus habitats. Se encontrarmos o ninho, acrescentaremos mais um ponto de dados fundamental para identificar o tipo de habitat onde as harpias ainda vivem para que seja possível protegê-lo. Everton Miranda olha de relance para um marcador de GPS que assinala o local onde ele acredita que o ninho se encontra. Um ribeiro de águas rápidas bloqueia a nossa passagem. Não se deixando demover, ele detecta um tronco caído semiapodrecido, que suporta o nosso peso enquanto nos revezamos a atravessar lentamente para o outro lado. Trepamos pela margem lamacenta com a ajuda das mãos, percorremos o último quilómetro até vermos o enorme e imponente tronco de um castanheiro do Maranhão. Os ramos da copa altíssima desta espécie protegida são o local de nidificação preferido das harpias da área de estudo de Everton Miranda. Espreitamos para a

urgência das ameaças no local. Entre 2004 e 2012, o Brasil reduziu a sua taxa de desflorestação em 83%, para 4.400 quilómetros quadrados anuais. Contudo, a floresta voltou a ser abatida quando os barões do gado e da soja começaram a influenciar os políticos. Jair Bolsonaro, que se tornou presidente em 2019, impediu os esforços desenvolvidos para travar o abate ilegal de árvores, contribuindo para novo aumento de 30% do ritmo da desflorestação. Segundo algumas estimativas, 95% da crescente desflorestação actual é ilegal. Quando Everton Miranda chegou à região, as pessoas disseram-lhe que as harpias já tinham desaparecido. Ele instalou-se num posto de investigação francês cerca de 250 quilómetros a oeste de Alta Floresta, uma cidade com quase 52 mil habitantes e mais de 790 mil cabeças de gado. Para começar a sua investigação, Everton Miranda precisava de encontrar ninhos. Depois de escrutinar 50 quilómetros de floresta, conseguiu finalmente descobrir um. Felicitou-se a si próprio e calculou que, àquele ritmo, poderia

As harpias nidificam na copa dos castanheiros do Maranhão. Os recolectores de castanhas são essenciais para a descoberta dos ninhos. folhagem espessa do alto. A cerca de 30 metros de altura, um buraco revela uma massa gigante de galhos. É o ninho! No entanto, além de uma elegante pena branca descoberta pelo biólogo, não encontramos mais indícios de ocupação do ninho. A reprodução de vocalizações previamente gravadas de harpia também não obtém respostas. Everton Miranda acha que a cria que ocupava este ninho a tempo inteiro deve ser agora um juvenil, prestes a sair do domínio dos progenitores, depois de três anos sob a sua tutela. Caso não sejam incomodadas, as harpias podem usar um único ninho durante décadas e Everton Miranda pensa que este deverá ter um novo pinto residente no final de 2020. Se tudo correr bem, como espera, os turistas serão conduzidos ao local para o admirarem e contribuírem para a sua protecção. as harpias na Amazónia prístina, Everton Miranda preferiu concentrar as suas atenções no arco de desflorestação devido à E M V E Z D E E ST U DA R

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descobrir um punhado de ninhos por mês. Três meses e 400 quilómetros mais tarde, Miranda não descobrira mais ninhos. Precisava de ajuda. Começou a afixar cartazes, oferecendo uma recompensa de 85 euros a quem encontrasse um. A sua busca conduziu-o aos apanhadores de castanha do Maranhão, que vagueiam pela floresta em busca de frutos caídos – a base de uma indústria sustentável e lucrativa. “Percebi que havia pessoas a fazerem constantemente transectos na floresta”, diz. Começou, então, a contactar associações de produtores de castanha do Maranhão. “Lembro-me de ouvir falar num tipo maluco que andava à procura de harpias na Amazónia”, recorda Veridiana Vieira, presidente da Associação de Apanhadores de Castanha do Maranhão da Aldeia de Vale Verde. Antes de conhecer Everton, Veridiana achava que as harpias eram meros assassinos de galinhas, embora nunca tivesse visto um. Ela gostava particularmente da ideia de contribuir para a ciência, por isso decidiu participar no projecto com a associação.


MÉX.

HOND. VENEZ. NICAR. GUAT. GUIANA C.R. SURINAME PAN. COL. GUIANA FR. (FR.) EQUA.

Perspectiva do topo

Disco

BELIZE

Som

BRASIL

PERU

As penas do disco facial abrem-se em redor das orelhas para melhorar a audição.

GIGANTES

FURTIVOS As harpias são as águias mais pesadas. Estes predadores de topo do dossel florestal podem voar velozmente entre a folhagem densa e capturam presas do tamanho de preguiças e macacos com as suas enormes garras.

AMÉRICA DO SUL

BOL. ARG.

Áreas florestais habitadas pela harpia (Harpia harpyja)

Joelho Asas curtas e largas ajudam-nas a navegar em espaços apertados.

Preguiça

Tornozelo

(6,4kg máx.)

Tendão

A cauda comprida funciona como leme, garantindo a manobrabilidade.

Tendão

A caça de presas de grande porte pode ser arriscada. Por vezes, as preguiças e os macacos lutam com as harpias e podem matá-las.

As pernas funcionam como aríetes durante os ataques. Os tendões das patas retesam-se, contraindo as garras à volta das presas antes de levantar voo.

Urso-cinzento Macho, 360kg

Garra

2m Fêmea, 11kg máx., duas vezes maiores do que as do macho.

A garra de uma fêmea de harpia pode ser maior do que a garra de um urso-pardo. (Ambas mostradas em tamanho real.) FERNANDO G. BAPTISTA E CHRISTINA SHINTANI; MESA SCHUMACHER FONTES: EVERTON MIRANDA; UICN


O ecoturismo já está a exercer um efeito positivo nas harpias, diz o biólogo Everton Miranda, mostrando aos proprietários que “a floresta não é um local economicamente estéril”. Ele acredita que a região da Amazónia onde trabalha poderá, um dia, atrair centenas de turistas por ano para visitar os ninhos de harpia. Isto seria uma bênção para as aves de rapina e inúmeras outras espécies da floresta, bem como para as comunidades que ali vivem.

Everton Miranda ensinou os apanhadores de castanha a reproduzir vocalizações de harpia com o telefone e a detectar vestígios de ninhos no solo da floresta. “Agora, trocamos informações sobre a harpia no WhatsApp”, diz Veridiana Vieira. Até à data, a sua associação e outros grupos de apanhadores de castanha ajudaram Everton a encontrar 34 ninhos no estado. É um conjunto de dados “notável e incrivelmente valioso e invulgar”, diz Richard Watson, cuja organização compilou o único outro registo comparável existente, no Panamá. Everton também lançou uma campanha de relações públicas para dar formação sobre as harpias e tentar reduzir o número de aves mortas propositadamente. Viu imagens de pessoas a segurar harpias mortas, ou partes do seu corpo, durante 96

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as entrevistas que fez a 180 proprietários de terras e calculou que estes deverão ter abatido pelo menos 180 aves em dois anos. Mais de 80% disseram nunca ter visto uma ave tão grande e só queriam vê-la mais de perto. O biólogo ficou comovido quando muitos proprietários mostraram arrependimento por ter abatido uma harpia, sobretudo depois de aprenderem mais sobre estas aves ameaçadas. “Hoje, todos sabem que as harpias são positivas para a região, e, por isso, já não os matam”, diz Roberto Stofel, antigo madeireiro e caçador que trabalha com Everton Miranda como escalador de árvores. que as harpias sejam abatidas, mas o verdadeiro desafio, segundo Everton Miranda, é É ÚTIL IMPEDIR


encontrar formas de ganhar dinheiro com a floresta que não impliquem a desflorestação de enormes áreas. “Estamos a queimar a floresta com maior biodiversidade do mundo para criar meia dúzia de vacas magras”, diz. “Para travar a desflorestação, precisamos de descobrir uma maneira inteligente de integrar a Amazónia na economia global.” As boas notícias, acrescenta, residem no facto de os brasileiros poderem de facto ganhar dinheiro sem derrubar árvores. Segundo vários estudos científicos, a apanha de castanha do Maranhão e a aquicultura são mais lucrativas e sustentáveis do que a criação de gado. O turismo poderá ser outra alternativa viável. Em Dezembro de 2016, Everton entrou em contacto com Charles Munn, co-fundador e proprietário da SouthWild, uma empresa de eco-

turismo sediada em Cuiabá, no Brasil. Passado um mês, tinham um contrato assinado. “Existe um grande número de cientistas interessados em investigação fundamental, sem quererem aplicar as suas conclusões em soluções de sustentabilidade”, diz Charles. “O Everton é invulgar porque também se preocupa genuinamente em criar postos de trabalho ecológicos e proteger a natureza.” Charles Munn organiza safaris fotográficos de luxo na América do Sul e tem um historial de acções lucrativas associadas à conservação. Foi o primeiro a trazer turistas para ver os famosos jaguares na região brasileira do Pantanal, a maior zona húmida tropical do mundo. Um estudo mostrou que o turismo dos jaguares gerou cerca de 5,9 milhões de euros anuais em receitas em sete unidades hoteleiras do Pantanal. Os criadores de gado que beneficiam do turismo já não matam jaguares, mesmo que estes matem as suas vacas de vez em quando. “É uma espécie de capital de risco, mas com animais selvagens”, resume Charles. “Tentamos perceber o que poderá funcionar para levarmos estes animais a protegerem o seu habitat de nós.” Em Julho de 2020, Everton já recrutara 35 proprietários com ninhos de harpia nas suas terras para se juntarem ao programa. Quando os ninhos geram uma cria, a empresa de Charles Munn contrata membros das populações locais para construírem torres de vigia com quase trinta metros de altura para uso turístico. Os proprietários recebem 17 euros por visitante, por dia, e outros membros da comunidade ganham dinheiro como carregadores, motoristas e cozinheiros. Charles Munn garante aos clientes o avistamento de uma harpia no horizonte… ou o reembolso do seu dinheiro. Everton Miranda acredita que Mato Grosso poderá, um dia, atrair cerca de setecentas pessoas por ano para verem ninhos de harpia. Isso seria lucrativo para a empresa de Charles Munn e uma vantagem inesperada para as harpias. Everton está determinado em garantir o futuro das harpias e a biodiversidade que representam. Planeia fundar um instituto de predadores em Alta Floresta no próximo ano, dedicado a fomentar os trabalhos de investigação de base e o desenvolvimento de soluções práticas. “A conservação na Amazónia só será eficaz se quem lá vive se envolver e acreditar no processo”, diz. “Mais cedo ou mais tarde, vamos perceber que a Amazónia é o maior bem do Brasil.” j HARPIAS

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N OTAS |

DIÁRIO DE UM FOTÓGRAFO

O FILHO DE TODAS AS MÃES Mães negras posam para a fotografia com os filhos que temem perder devido à violência. O projecto chama-se “Stranger Fruit”.

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N AT I O N A L G E O G R A P H I C

M AG N I F I C E N T M I L E , C H I C AG O, I L L I N O I S


TEXTO DE

LONNAE O’NEAL

F O T O G R A F I A S D E J O N H E N RY

H O U STO N , T E X A S

STRANGER FRUIT

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N OTAS |

DIÁRIO DE UM FOTÓGRAFO

“S

quer exercer pressão sobre si, leitor. Sobre isso não há dúvida. As fotografias de mães e filhos, de corpos negros inteiros e sem ferimentos, mas semelhantes a Cristo na morte, não pretendem ser delicadas na sua interpelação dos espectadores, tal como as pessoas que se manifestam na rua não se limitam a pedir à polícia que mude. São mães negras, sentadas, em pé, ajoelhadas, com os filhos sem vida nos braços, olhando directamente para a lente, directamente para o espectador, directamente para o país, exigindo atenção. E custa-nos muito vê-las. Mas custa mais desviar o olhar. “Aquilo por que passamos agora revive os traumas da comunidade afro-americana”, diz Jon Henry, um artista sediado em Brooklyn. A sua exposição “Stranger Fruit” tem como ponto de partida os homicídios de pessoas negras pela polícia. Inspira-se na música “Strange Fruit”, a interpretação de Nina Simone do requiem de Billie Holiday em homenagem aos corpos linchados, “abanando ao sabor da brisa do Sul, os frutos estranhos pendurados em choupos”. Obriga-nos a pensar no sofrimento das famílias e comunidades que foram abandonadas e estão a tentar recuperar. “É difícil continuar a reviver estes momentos, mas os homicídios continuam a acontecer”, diz Henry. As imagens de mães reais com os filhos reais não retratam a morte real, mas captam a omnipresença desse medo que as mães negras nunca deixam de sentir. Implicam a admissão de que a polícia pode matar pela ofensa mais insignificante ou, como diz Henry, “por absolutamente nada”. Vemos as mães com os filhos, de várias idades, na pose clássica da pietà, de Maria em sofrimento segurando o corpo morto de Cristo. As imagens foram captadas em cidades onde é possível ver um corpo negro inerte, sem traumas visíveis, criando a ilusão de que o indivíduo fotografado está morto. Henry, que foi sacristão em Queens durante 15 anos, conta que este projecto foi inspirado na iconografia cristã e nas memórias da preocupação constante da sua mãe enquanto ele crescia. Sempre que ele saía, ela exortava o seu único filho para ter cuidado, para se manter seguro, para voltar para casa. Henry começou a fotografar para este projecto em 2014. As suas origens remontam a 2006, quando agentes da polícia de Nova Iorque alvejaram e mataram Sean Bell no dia do seu casamento. No rescaldo da morte de George Floyd, as imagens de Henry parecem premonitórias. Mas é assim sempre que viajamos ao passado e rasgamos as gigantescas cicatrizes da América, que parece resignar-se à convicção de que os corpos negros são descartáveis e que as vidas negras só são importantes para as mães. Henry enviou as imagens às mães por correio electrónico, juntamente com um questionário sobre o que pensavam antes e depois de as fotografias serem captadas e como abordam o tema da morte com os seus filhos. Algumas respostas anónimas integraram o projecto: TRANGER FRUIT”

Olho para os meus filhos e fico agradada com os adultos em que se tornaram. Percebo o amor que lhes tenho e como me sinto entusiasmada com o seu futuro. Mas sinto-me preocupada com o futuro que temos diante de nós, em geral. São as mães negras que conhecem os Estados Unidos através dos corpos dos filhos que seguram nos braços. Aqui fica o olhar da mãe negra que envolve a nação e que lhe exige que mude. j 100

N AT I O N A L G E O G R A P H I C

Esta reportagem foi produzida em parceria com “The Undefeated”, uma página de Internet da ESPN que explora as intersecções entre etnia, cultura e desporto.


Jon Henry pediu às mães que fotografou que reflectissem sobre estas cenas e os seus filhos.

“Sinto-me triste, tão triste por as mães terem de passar por isto… O meu filho conseguiu levantar-se e voltar a vestir-se. Há outros que não conseguem.”

L I T T L E RO C K , A R K A N SA S

STRANGER FRUIT

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N OTAS |

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DIÁRIO DE UM FOTÓGRAFO

N AT I O N A L G E O G R A P H I C

J E R S E Y C I T Y, N O VA J E R S E Y


“À medida que era gradualmente incorporada no cenário e me falavam sobre a pose, vieram-me à cabeça os pensamentos diários que tenho em relação ao meu filho. Tenho pensamentos de amor, mudança, determinação, crescimento e incentivo. Também me preocupo com a sua saúde e segurança... As pessoas precisam de prestar atenção para travar a morte de homens negros e o sofrimento das suas mães.”

OA K L A N D, C A L I F Ó R N I A

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NA TELEVISÃO

Drenar os Oceanos, Série 3 E S T R E I A : 1 8 D E O U T U B R O, À S 2 2 H 3 0 TO D O S O S D O M I N G O S

Segurança Aeroportuária E S T R E I A : 6 D E O U T U B R O, À S 2 2 H 1 0

Acompanhe a segunda parte desta série dedicada a dois dos maiores aeroportos da América Latina: o Aeroporto Internacional Jorge Chávez, em Lima (Peru) e o Aeroporto São Paulo-Guarulhos (Brasil). Dentro de um aeroporto, nada é o que parece e o crime está à espreita.

Resgate Abaixo de Zero, Série 5 E STRE I A 2 3 D E OU TUB RO, À S 2 2H 1 0. TO DA S A S SEXTA S -FE I RA S

A terceira temporada desta série estreia em Outubro e revela segredos escondidos e mundos perdidos na vastidão dos oceanos. Recorrendo a tecnologia de ponta, a fotografia de grande resolução e à colaboração de equipas conceituadas de arqueólogos subaquáticos, a série permite mergulhar em locais que participaram na história da humanidade e do próprio planeta. Nesta temporada, não perca os mergulhos em cidades submersas (“A Cidade Submersa do Egipto”, dia 25 de Outubro) e num cemitério de navios afundados durante a guerra fria (“A Frota Atómica Fantasma”, 18 de Outubro).

A quinta temporada desta série acompanha um grupo de homens heróicos que desafiam as condições inóspitas do Inverno na Noruega e resgatam camiões pesados que transitam nas áreas montanhosas do país. Nenhum resgate é insignificante nestas condições. NATIONAL GEOGRAPHIC (NO TOPO, AO CENTRO E EM BAIXO)


Croctober A PA RT I R D E 1 1 D E O U T U B RO, À S 1 7 H TO D O S O S D O M I N G O S

Dr. T Lone Star E S T R E I A : 1 4 D E O U T U B R O, À S 1 7 H

A veterinária Lauren Thielen está de volta a casa, no Texas, e é a protagonista de uma série filmada na sua clínica de animais exóticos. Todos os dias, entram pela porta animais oriundos dos quatro cantos do planeta, com problemas de saúde complexos e motivando forte ansiedade nos seus donos. A Dra. Thielen tem missões… espinhosas.

World Animal Day 4 D E O U T U B RO AO L O N G O D O D I A EARTH TOUCH (PTY) LTD (NO TOPO); NATIONAL GEOGRAPHIC (AO CENTRO) E OPTIMUM TELEVISION (EM BAIXO)

Em Outubro, o Natinal Geographic Wild emite programação dedicada a um dos mais temidos predadores da natureza – o crocodilo. Incompreendido e alvo de muita superstição, este prodígio da evolução continua a surpreender-nos com a sua fantástica capacidade de adaptação a ambientes inóspitos e a modificações climáticas. Os documentários revelam agora as suas extraordinárias capacidades para caçar presas e garantir a sobrevivência. Todos os domingos, a partir de 11 de Outubro, não perca “Hippo vs Croc, “Jaguar vs Croc”, “Croc Inside Out”, “Cave Crocs of Gabon”, “Mother Croc”, “Lake of a Thousand Caiman”, “World’s Deadliest Crocs”, “When Croc Ate Dinosaurs” e “Boss Croc”.

No dia 4, como tem sido tradição, o National Geographic Wild celebra o Dia Mundial dos Animais, procurando alertar para a importância da biodiversidade e da conservação da natureza. Não perca a estreia de “Secrets of the Zoo: Tigers” e “Secrets of the Zoo: Rhinos”, entre outros.


P R Ó X I M O

N Ú M E R O

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NOVEMBRO 2020

NÚMERO ESPECIAL UM MUNDO VIRALIZADO O novo coronavírus mudou as nossas vidas. Não há espaço que tenha fugido a essa alteração, como demonstram os testemunhos fotográficos oriundos de diferentes recantos do planeta. Provavelmente, essas mudanças continuarão mesmo após a descoberta de uma vacina, com as consequentes repercussões no ambiente, na vida cultural e na percepção do papel da ciência.

N AT I O N A L G E O G R A P H I C

MUHAMMAD FADLI


História

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