O foco do livro-reportagem são histórias de pessoas oprimidas no futebol e de coletivos e instituições de discussão e combate a tais formas de opressão.
Lucas Faraldo Knopf
Como consequência de tais discriminações – por gênero, cor de pele, orientação sexual e classe social –, o futebol deixa de se tornar “esporte do povo”, impedindo mulheres, negros, homossexuais, bissexuais, transsexuais e pessoas menos afortunadas de se sentirem confortáveis em tal ambiente.
IMPEDIMENTO
Este livro-reportagem tem como objetivo abordar alguns fatores de opressão no campo futebolístico. Presentes na sociedade, comportamentos como machismo, racismo, homofobia e elitização são refletidos no futebol dentro das peculiaridades do esporte bretão.
IMPEDIMENTO Machismo, racismo, homofobia e elitização como opressões no futebol
Lucas Faraldo Knopf
IMPEDIMENTO Machismo, racismo, homofobia e elitização como opressões no futebol
Diagramação Ricardo Kuraoka Arte de capa Ricardo Kuraoka
IMPEDIMENTO Machismo, racismo, homofobia e elitização como opressões no futebol
Lucas Faraldo Knopf Junho 2016
Dedico este livro a meus pais, Jeanne e Daniel, a meus irmãos, Ceci e Dudu, e a minhas amigas e meus amigos. Agradeço a todos que me ajudaram ao longo dos últimos meses. Em especial à professora e orientadora Eun Yung Park. Meu muitíssimo obrigado a vocês.
Sumário Machismo............................................................................ 9 Nasce uma rebelde corintiana....................................................11 Decreto..........................................................................................13 Uma educadora feminista...........................................................18 Futebol pensado por homens e para homens.........................22 O machismo sutil como barreira entre mulheres e futebol.............................................................29 A luta da mulher no futebol.......................................................34 Racismo............................................................................. 43 Mais um capítulo de racismo.....................................................45 Relatório, casos de 2014 e episódios mais recentes e constantes..........................................................49 Túnel do tempo: da aposentadoria à infância.........................55 História no futebol e inserção do negro na sociedade...........59 Injúria racial ou racismo?............................................................64 O racismo velado no país ‘sem racistas’...................................67 Luta contra o racismo e as dificuldades no combate.............70 Homofobia......................................................................... 75 A triste noite de um palmeirense na feliz noite do Palmeiras ........................................................77 Combate à homofobia, e as arquibancadas como espaço de luta....................................................................80 Como Roberto se descobriu......................................................86 Elas e eles se assumiram. E agora?...........................................89 Árduo caminho pela frente........................................................94
Elitização........................................................................... 99 Corintiano, maloqueiro e sofredor..........................................101 Elitização em números.............................................................105 Jeitinho para ir aos jogos na Arena.........................................107 Luta contra discriminação por classe social...........................112 Inserção dos mais pobres no ‘esporte do povo’...................118 Bibliografia.......................................................................125 Notícias.......................................................................................127 Filme............................................................................................131 Livros, artigos e relatórios........................................................132
Machismo “Éu, éu, éu… Boceta da Fiel!”
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Nasce uma rebelde corintiana Maria Angélica Oliveira é corintiana fanática. Dessas que se orgulham e fazem questão de mostrar para Deus e o mundo qual é seu time de coração. Concede entrevista com camisa surrada do Corinthians e oferece café em um conjunto de xícaras personalizado com as cores preta e branca em seu apartamento, localizado no Tatuapé, a pouco mais de um quilômetro do Parque São Jorge. “Pode ver que aqui é tudo Corinthians, né?”, brinca ela, cheia de orgulho, apontando para itens de decoração de sua sala. Se há algo a lamentar em sua relação com o clube do coração é a tardia aproximação. Nascida em 1941, ela só teria o primeiro contato com o Corinthians em 1955, aos 13 anos de idade. Apesar de paulistana, se mudou com a família para Bauru quando ainda era um bebê. Cresceu no interior paulista sob influência de um pai são-paulino roxo, militar, udenista, conservador e muito rígido. A mãe era palmeirense por influência dos ascendentes italianos. Quinta filha, a caçula viu metade dos irmãos se declarar alviverde; a outra metade, tricolor.
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“Quando nasci, nasci na cabeça de todo mundo para desempatar. E se fosse desempatar acho até que eu seria uma porquinha, porque tive muito mais relação com minha mãe. Meu pai desencarnou quando eu tinha oito anos e era muito rígido também”, lembra, entristecida pelo misto de lembranças da morte e da rigidez do pai, e usando termo que remete ao espiritismo, sua religião. Em fevereiro de 1955, Maria Angélica viajou a São Paulo com a mãe para visitar amigos da família. Na época, a televisão já havia chegado a algumas residências da capital paulistana. Maria Angélica teve oportunidade de ficar pela primeira vez frente a frente com um desses aparelhos. O dono da casa havia convidado sua mãe para assistir ao Palmeiras na final do Campeonato Paulista de 1954, que valia o título de campeão do IV Centenário. “Quando cheguei lá nem perguntei quem era o adversário. Aí em algum momento falei para o dono da casa: ‘Vai jogar contra o São Paulo?’. E ele: ‘Não. Contra o Corinthians’. Fiquei pensando: ‘Ué, o que é Corinthians?’”, conta, afinando a voz como quem volta no tempo em que ainda era pré-adolescente. “Nunca tinha ouvido falar de Corinthians. Era só São Paulo e Palmeiras na minha casa. Aí o dono da casa, que era corintiano, me contou a história do Corinthians, um time fundado por operários e tudo aquilo, achei linda a história. Eu já tinha uma veia vermelhinha (risos). Fiquei babando ouvindo aquilo. Tem gente que fala até hoje que sou corintiana por causa do PT, do Sócrates… Também, também”, confessa, entre risos, já sinalizando o perfil de militante que a acompanharia ao longo da vida. Bastou pouco mais de uma hora e meia para Maria Angélica descobrir, com direito a festa de campeão, que era corintiana. “Não sei se foi uma rebeldia de adolescente, porque eu tinha 13 anos, mas acho que foi mais do que isso, foi uma questão
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de amor à primeira vista. Quando o Luizinho, o Pequeno Polegar, fez o primeiro gol do Corinthians, eu já gritei, já comemorei”, lembra gesticulando com os braços para todos os lados, não deixando dúvida alguma sobre sua ascendência italiana. “Até torci para o Palmeiras empatar para minha mãe não ficar triste, mas não queria que o Corinthians perdesse de jeito nenhum. E o empate dava o título do IV Centenário para o Corinthians. E acabou empatado. Foi nesse momento que me tornei corintiana.”
(Foto: Lucas Faraldo Knopf)
Decreto No mesmo ano em que Maria Angélica nascia, o Brasil dava passos retrógrados no que diz respeito à igualdade de gênero. Sob governo de Getúlio Vargas na ditadura do Estado Novo e alinhamento com a Alemanha nazista, as mulheres foram proibidas de praticar esportes, conforme determinado pelo artigo 54 do Decreto-Lei 3.199 de 1941:
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“Às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza, devendo, para este efeito, o Conselho Nacional de Desportos baixar as necessárias instruções às entidades desportivas do país.” A justificativa dada pelo Governo se baseava no movimento eugenista, que tinha a crença de “melhorar” a raça humana. Uma carta enviada a Getúlio Vargas em nome do cidadão José Fuzeira e que repercutiu na imprensa na época dizia que “a mulher não poderá praticar este esporte violento sem afetar seriamente o equilíbrio fisiológico de suas funções orgânicas, devido à natureza que a dispôs a ser mãe”. “O espaço da mulher era reservado unicamente para as tarefas do lar. O espaço social, de lazer, era predominantemente masculino. Uma outra constatação era que o futebol era comentado por jornalistas homens para torcedores homens sobre um futebol de homens. Embora estivéssemos presentes lá no início, eramos invisíveis”, analisa Thais Kusuki, responsável pelo Neco Mulher, ala feminista do Núcleo de Estudos do Corinthians. Apesar do decreto, muitas mulheres seguiam praticando esportes e formando até times de futebol. Um golpe mais duro, contudo, viria a ser dado durante nova ditadura, desta vez sob comando de Castelo Branco. Em 1965, o Conselho Nacional de Desportos (CND) baixou a deliberação nº 7 do conselho, que dizia: “Não é permitida [à mulher] a prática de lutas de qualquer natureza, do futebol, futebol de salão, futebol de praia, polo aquático, polo, rugby, halterofilismo e baseball.” Apenas em 1979, com forte retomada do movimento feminista no Brasil, o CND baixou a deliberação de nº 65/79, assegurando às mulheres brasileiras o direito à prática do futebol. Na opinião de Thais, esse cenário explica o porquê de o futebol ser ainda um esporte visto majoritariamente como masculino enquanto a modalidade feminina ainda dá os primeiros passos
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em termos de profissionalização. “As práticas de futebol masculino e feminino andaram em sentidos opostos. O futebol masculino andava para frente como um esporte de massa enquanto o feminino era proibido e discriminado”, aponta a pesquisadora do Neco Mulher.
Thais Kusuki, Monikita, Denise Bolfim e Rosiane Siqueira, responsáveis pelo Neco Mulher (Foto: Lucas Faraldo Knopf)
Uma pesquisa divulgada no início de 2016 pelo NYC Mayor’s Office, a respeito do futebol nos Estados Unidos, ilustra tal desigualdade de gênero em cifras. As mulheres ganham pouco menos de 40% do salário dos homens na mesma modalidade. A seleção estadunidense feminina, porém, é a dona do maior número de títulos de Copa do Mundo na categoria, com três taças, enquanto a masculina não soma nenhum troféu e ocupa somente o posto de 29º melhor agremiação no ranking da Fifa. As mulheres
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também trabalham mais. Foram 27 partidas disputadas em 2015 contra apenas 20 dos homens. A seleção feminina gerou US$ 20 milhões a mais em receitas do que a masculina. “Nós somos as melhores do mundo, e a seleção masculina ganha mais apenas para aparecer enquanto nós mulheres somos pagas para ganhar os principais campeonatos”, diz a goleiro e ídolo estadunidense Hope Solo. Se nos Estados Unidos, potência do futebol feminino e referência mundial, a situação é delicada, no Brasil, que há poucas décadas era conivente com a deliberação do CND, o problema é ainda mais complexo. De acordo com súmulas (confirmadas via dirigentes, técnicos e até jogadoras em reportagem publicada no jornal Lance!, em julho de 2015), há ausência de auxiliar-técnico, preparador físico e até médico em várias partidas do Campeonato Paulista feminino, principal Estadual da categoria no país. Redes de gol rasgadas, atraso no início de jogos, vestiários sem chuveiros e estádios sem energia elétrica são outras precariedades registradas. A diferença em relação aos Estados Unidos se deve, acima de tudo, ao apoio que a modalidade recebe de instituições. Na América do Norte, times femininos são bancados por universidades e federações, com estímulo de estudo às jogadoras. No Brasil, mesmo em grandes clubes como Santos, Corinthians, São Paulo e Flamengo, as atletas tem de se dividir entre a rotina de treinos e jogos e alguma outra profissão. Para a Confederação Brasileira de Futebol (CBF), a modalidade ainda é considerada amadora. “A gente vive aqui de teste. Vamos fazer teste de Campeonato Paulista, Copa do Brasil, Liga Nacional e fica dois, três meses testando. Aí não dá certo e no ano seguinte não tem liga”, declara Marta, jogadora com mais prêmios de Melhor do Mundo da Fifa na história, se referindo às voláteis tentativas recentes da CBF em criar competições. O Campeonato Brasileiro feminino,
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por exemplo, voltou a ser disputado em 2013 após 12 anos de ausência no calendário do futebol nacional por dificuldade de arcar com custos e conseguir renda seja de direitos de transmissão ou de patrocinadores. “É estudar melhor a situação do futebol feminino e escolher a melhor opção. O que poderíamos fazer é manter uma liga estruturada e dar oportunidade para as meninas se dedicarem ao futebol feminino como trabalho.” “É um esporte que para alguns é masculino, mas na verdade o sexo não influencia em nada. É questão de talento. E talento a gente tem”, completa Marta. Vale destacar que as diferenças trabalhistas relacionadas a gênero não são exclusividade do futebol. Um estudo do Banco Interamericano de Desenvolvimento, que levou em conta informações de 18 países da América Latina, apontou o Brasil com um dos maiores níveis de disparidade salarial. No país, os homens ganham cerca de 30% a mais do que as mulheres de mesma idade e nível de instrução. Tal número é quase o dobro da média da região (17,2%). A corintiana Maria Angélica associa o ainda precário tratamento dado à modalidade no Brasil justamente à discriminação histórica a que as mulheres foram submetidas ao longo de grande parte do século 20. A consequência nos tempos atuais é a dificuldade de CBF, imprensa e até mesmo torcedores associarem a figura feminina ao futebol. Apenas uma pequena parcela das principais agremiações do país possui, hoje, equipes femininas. E alguns dos poucos que abriram suas portas às mulheres só o fizeram graças à Medida Provisória nº 671/20151, popularmente conhecida MP do Futebol, que exige uma série de contrapartidas dos clubes para que estes possam aderir ao Profut (Programa de Modernização da Gestão e de Responsabilidade Fiscal do Futebol 1 Convertida em Lei nº 13.155 em 4 de agosto de 2015
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Brasileiro) e então parcelar dívidas públicas – entre as contrapartidas, está a criação de times de mulheres. “O futebol é ainda hoje visto como algo para o homem. Mulher que gosta de futebol ainda é vista como maria-chuteira. Sabe? A mulher quando vai para o futebol ou vai para arrumar namorado ou vai para ver as pernas dos jogadores ou ela é sapatão. Os próprios gestores do futebol não dão a mínima para o futebol feminino. Esse decreto que por muito tempo impediu que as mulheres praticassem o futebol demonstra muito isso. Esse decreto foi revogado, mas a cabeça das pessoas não foi revogada”, lamenta a corintiana que viu com os próprios olhos o surgimento e o “fim” da tal proibição.
Uma educadora feminista Ser corintiana pela origem operária do clube é apenas uma das características revolucionárias de Maria Angélica. Nem mesmo a influência da família e o conservadorismo que marcou a política brasileira durante sua juventude e seus primeiros anos da vida adulta foram capazes de lhe impedir de, durante estadias por algumas cidades do interior de São Paulo, se formar em pedagogia, se tornar presidente do conselho da criança de Marília, criar o conselho tutelar de Marília, se engajar na militância política e ser representante regional da CUT e fundar o PT também em Marília. Aos 62 anos, quando se mudou para a capital paulistana, ainda tentou se filiar ao PSOL, mas acabou desistindo por falta de paciência diante das “intermináveis reuniões de partido político”. “Hoje faço ações voluntárias. Prefiro ajudar em outras ações. Trabalho atualmente no Núcleo Assistencial Espírita aqui do Tatuapé e no Centro de Assistência Social lá em Guaianases,
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onde atendemos 120 famílias. Esse trabalho de orientação está bem alinhado com minha profissão, algo de pedagoga, de orientadora. Vi nisso uma forma de eu continuar trabalhando na educação, mas de um outro jeito. Porque, assim, acho que a gente nasceu para ser útil, né?”, conta. Apesar de ter dado aulas de didática e trabalhar com pesquisa na área de educação na Unesp ao longo de 20 anos, época em que os hoje grisalhos e curtos cabelos eram morenos e escorriam pelos ombros e costas, Maria Angélica confessa que sua realização profissional foi poder ter trabalhado em inúmeras escolas de periferia. Nesses locais, ao longo das décadas de 60, 70 e 80, tentava combater a desigualdade de gênero que, na contramão, era legitimada pelos ditadores que estavam à frente do país. Na função de diretora, ela tinha de brigar com professores e professoras de educação física para que as meninas que desejassem jogar futebol, basquete ou qualquer outro esporte pudessem ter suas vontades atendidas. Na época, usava a argumentação de que algumas décadas antes mulheres não dirigiam carros e, àquela altura, tal convenção social já havia sido derrubada. “Ainda tinha aquele decreto de que (praticar esportes) atrapalhava as funções reprodutivas da mulher, era terrível. Quando as meninas queriam jogar futebol e mesmo basquete ouviam do pessoal mais tradicional: ‘Por que não vai fazer balé?’. E eu sempre abri para as meninas. Quer jogar joga, ué. Ainda não tinha time feminino, lembro, e as meninas jogavam com os meninos. E tinham duas meninas, gêmeas, que eram sempre as primeiras a serem escolhidas pelos meninos, porque elas jogavam melhor que eles. Então sempre apoiei, sempre permiti que houvesse essa liberdade”, diz, esbanjando orgulho. “Acho que minha contribuição nessa época foi nesse sentido, de abrir para as meninas uma opção de escolha. As meninas,
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antes, eram obrigadas a fazer ginástica artística se quisessem praticar esportes. As meninas muitas vezes não queriam aquilo, queriam jogar futebol, basquete. Acho que consegui desmitificar um pouco isso de coisa de menino e coisa de menina. Eu desde pequena já pedia carrinho de natal, por exemplo, já tinha esse jeitinho”, acrescenta, cheia de orgulho na voz e com as mãos entrelaçadas, agitadas, se lembrando daquela época. Por ironia do destino, entretanto, foi uma proibição machista que levou Maria Angélica à área da pedagogia, onde pôde colocar em prática seus ideais feministas inclusive no que diz respeito a atividades esportivas. O desejo da então adolescente que acabara de se formar no ginásio era viajar para São Paulo e estudar filosofia e sociologia. A família achou de mau tom permitir que uma jovem fosse morar sozinha na capital e a fez escolher algum curso que pudesse ser prestado no interior. “Me adaptei, fui boa profissional, me realizei profissionalmente, mas só depois de casada, anos depois, vim fazer pós-graduação de sociologia e política na USP, em 1968, 1969. Fiz isso porque eu gostava de sociologia, de política, queria entender melhor, queria trabalhar com pesquisa. E foi muito bom para minha formação. Mas tive esse problema no fim da década de 50”, pondera. O medo da família de Maria Angélica em meados do século passado é refletido em pesquisas divulgadas atualmente. De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2015, 67% da população brasileira afirmam ter medo de sofrer alguma forma de violência. Ao restringir o resultado da análise por gênero, 90,2% das mulheres têm medo de sofrer violência sexual. Em 2014, 47.646 casos de estupro foram registrados. Os dados, contudo são ainda mais alarmantes. De acordo com a publicação “Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde”, produzida pelo Instituto de
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Pesquisa Econômica Aplicada em 2015, apenas 7,5% das vítimas de violência sexual registram o crime na delegacia. O estudo estima que 527 mil mulheres sejam estupradas por ano no país – um caso por minuto.
Maria Angélica ao lado do esposo Antônio, em 1971 (Foto: Arquivo pessoal)
“Mas foi gozado isso de eu ser proibida de cursar o que eu queria. Mudou o rumo da minha vida. E, quando me tornei diretora, eu era uma das poucas mulheres diretoras, vivia num universo totalmente masculino ali na década de 60. Hoje já há mais mulheres na área. Eu não me sinto menos mulher por isso. Procurava ali ficar de igual para igual, mas você percebe tudo isso”, afirma. Quem dera houvesse distinção de gênero apenas em um dos vários núcleos dos quais fazia parte. Maria Angélica sofreu com olhares e comentários “curiosos” não apenas na área da educação, mas também nos movimentos partidário e sindical, no ambiente familiar e, é claro, no mundo do futebol.
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Futebol pensado por homens e para homens É impossível negar a existência de um avanço ao longo das décadas na participação das mulheres no futebol, bem como na sociedade. Hoje há equipes profissionais de futebol, campeonatos oficiais, departamento destinado à modalidade na Confederação Brasileira de Futebol, produtos voltados às mulheres nas lojas dos clubes, etc. Hoje a figura feminina é, ao menos “oficialmente”, existente na cabeça de dirigentes do esporte bretão. Mas elas não são dirigentes, por exemplo. E a partir daí é fácil reparar que esta existência da figura feminina no ambiente futebolístico não é tão real quanto pintada na versão oficial. Tomando como base o Corinthians, um dos principais clubes do país: 59 funcionários trabalham no departamento de futebol profissional; destes, apenas oito são mulheres. O dado é mais alarmante se levados em consideração os cargos ocupados por elas: nutricionista, assessora de imprensa, secretária, hotelaria e auxiliar de cozinha. Os homens, por sua vez, ficam com os cargos mais altos como treinador, auxiliar técnico, fisioterapeuta, médico, preparador físico, analista de desempenho e cozinheiro. Fundado em 1910, o clube do Parque São Jorge teve apenas Marlene Matheus como presidente (mesmo assim, apontada na época como “marionete” do marido Vicente Matheus). Em mais de cem anos, a agremiação foi conduzida por outros 33 homens na condição de presidentes definitivos ou interinos. A desigualdade de gênero no mercado de trabalho vai além do Corinthians e do futebol. Estatísticas tornadas públicas no Fórum Econômico Mundial de 2015 apontam ainda haver 60% de desigualdade entre os gêneros masculino e feminino quando se trata de participação econômica e oportunidades para mulheres no mundo. O órgão projeta que apenas em 2095 haverá igualdade de gênero no mercado de trabalho.
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(Imagem: Reprodução/Site do Corinthians)
“Lamentavelmente (a exclusão das mulheres) ainda é dominante em nossa sociedade, nas empresas, nas universidades, nos organismos de poder e em outros setores. Temos acompanhado alguns sinais de melhora, na inclusão de mulheres e de outros grupos de excluídos, mas precisamos avançar mais, bem mais. Qualquer tipo de preconceito é opressivo, impositivo, autoritário e violento e não contribui para melhorar a vida”, explica, em entrevista, Mauricio Murad, sociólogo e professor do mestrado da Universidade Salgado de Oliveira, autor do livro Para Entender a Violência no Futebol. Nas arquibancadas o fenômeno de exclusão se repete. A época mudou, os hábitos mudaram, a reação diante da presença de uma mulher no estádio também mudou. Ao longo de boa parte da segunda metade do século 20, torcedoras que se aventuravam a assistir a um jogo do Corinthians no Pacaembu tinham de passar por uma espécie de corredor formado por homens. Eram milhares deles, seja na entrada do portão principal, do Tobogã ou nos arredores do estádio. Postados como cães de guarda babando à espera da presa. Os cheiros de cerveja, suor e carne assada por ambulantes se misturavam ao coro de gritos
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intimidadores “Éu, éu, éu… Boceta da Fiel!”. Hoje o machismo assume formas mais discretas, mas ainda pode ser representado por estatísticas e (falta de) ações. “Na Arena Corinthians não há uma ouvidoria para a mulher. Tinha que ter, para que as mulheres pudessem fazer todo tipo de reclamação. Questão de assédio, de violência, até de banheiros. Não tem um berçário para a mulher poder trocar a criança, não que seja obrigação só da mulher. Mas não dá para se sentir confortável, ou ter um absorvente. Como é ‘padrão Fifa’ e estão faltando questões mínimas?”, indagou Monikita (prefere ser chamada pelo apelido), que também faz parte da organização do Neco Mulher. Números divulgados pelo Corinthians a pedido do Neco Mulher assustam pela discrepância em termos de gênero. O perfil dos quase 30 milhões de torcedores alvinegros espalhados Brasil afora aponta 52% de mulheres. Em relação aos sócios-torcedores (filiados ao programa Fiel Torcedor e que representam grosso modo o público presente atualmente nas arquibancadas da Arena Corinthians), elas são apenas 13%: dos 132.481 associados, apenas 17.200 são mulheres (12.200 são dependentes e somente 5.000 são donas do título). Denise Bolfim, outra representante do Neco Mulher, levanta a bola para uma questão sutil e que muito provavelmente homens jamais tenham reparado. As lojas oficiais dos clubes têm pouquíssimos produtos destinados a mulheres em relação à quantidade destinada a homens. “Enquanto tivermos uma cúpula administrada só por homens, nunca teremos espaço. São homens pensando com a cabeça de homem”, analisa. Roger Reis, sócio-operador da maior filiar da rede de lojas Poderoso Timão, de produtos do Corinthians, localizada na Arena, em Itaquera, reconhece a diferença entre os gêneros no que diz respeito à oferta de variedade de produtos. Responsável pelas
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vendas, ele, contudo, alega que a demanda pelas vestimentas da equipe, por exemplo, são maiores para o público masculino. “As peças, principalmente da Nike (fornecedora esportiva do Corinthians), são mais modelos masculinos. Isso é referente à demanda também, que é bem menor do que a masculina. A proporção é a seguinte: a cada dez masculinas que vendo na loja, vendo uma feminina. Mesmo assim acho que daria para a gente ter mais produtos femininos na loja da Nike, principalmente blusas, calças, isso acho que nem tem na linha”, diz. Não é só de camisetas ou demais produtos, no entanto, que as mulheres do Neco Mulher lutam. O respeito à mulher, seja nos pequenos ou nos mais amplos gestos, tem de prevalecer.
(Imagem: Reprodução/Site do ShopTimão)
“Uma das coisas que mais queremos é o fim da brutalidade da polícia na hora da revista. Ninguém aguenta as policiais
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batendo na gente na revista para entrar no estádio. Queremos banheiros decentes. Queremos uniforme, camiseta, produtos pensando na gente. Não é camisa rosa, é camisa preta e branca numa modelagem que cabe no nosso corpo. Queremos respeito. Queremos ir de short sem ser assediadas. Queremos ir sem pessoas perguntando ‘Mas quem está te levando? Seu namorado, seu pai?’. Não tem para onde fugir, temos de lutar de todas as formas. As mulheres se afastam do futebol pela violência, mas não poderiam ser elas objetos de pacificação?”, indaga Denise.
(Fotos: Divulgação/Atlético-MG e Reprodução/Instagram)
O marketing voltado quase exclusivamente ao público masculino tornou-se escandaloso em fevereiro de 2016. Um desfile de lançamento de uma nova linha de uniformes do Atlético-MG, em parceria com a fornecedora de material esportivo DryWorld,
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tornou-se alvo de parte da imprensa e de coletivos feministas por seu caráter machista. Modelos seminuas foram utilizadas para exibir a vestimenta do clube. Não bastasse a chuva de críticas em torno do evento, uma usuária do Instagram denunciou uma estampa interna da tal nova camiseta: a frase “Dê a sua mulher” aparece nas instruções de lavagem da DryWolrd. “A exposição da mulher no desfile da camisa do Atlético-MG não nos representa. Nos objetifica”, resumiu Monikita. Na ocasião, parte da imprensa noticiou a repercussão negativa que o lançamento do uniforme ganhou nas redes sociais. Por meio de perfis pessoais, contudo, alguns profissionais da imprensa ironizaram a revolta de torcedores e grupos feministas. Milton Neves, jornalista, apresentador de televisão e radialista, utilizou sua conta no Twitter para publicar uma montagem na qual uma mulher aparece vestida com uma burca personalizada com o escudo do Atlético-MG e escrever “Fim do mimimi, para alegria dos hipócritas e das feministas”.
(Imagens: Reprodução/Internet)
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A imprensa esportiva, aliás, ainda está longe de se tornar um espaço de combate ao machismo. Exemplos não faltam. Na capa do jornal Lance! do dia 24 de março de 2016, a protagonista foi Thais Garcia, “musa do São Bernardo”. A modelo apareceu seminua, e a manchete trouxe uma tentativa de trocadilho entre a imagem e uma vitória do Corinthians no jogo do Campeonato Paulista na noite anterior: “Fez bonito”. “Entre tantos destaques do futebol na noite da quarta-feira, optou-se por expor, mais uma vez, a mulher de maneira sexualizada e objetificada (...) a imprensa opta por reafirmar o estereótipo feminino no futebol: a mulher como mero enfeite sexual”, declararam torcedoras do coletivo feminista Movimento Toda Poderosa Corinthiana, na época. Um jornalista do portal Uol, que preferiu não se identificar, revelou que o conteúdo que mais dá audiência por ano entre todas as editorias do site é uma página de concurso de “musas” intitulado “Belas da Torcida”, na qual são expostas galerias de mulheres seminuas associadas aos principais clubes do país e criadas votações para que torcedores elejam, numa espécie de campeonato, com regulamento e diferentes fases, a vencedora. Na opinião de Ana Clara Ferrari, jornalista que atualmente trabalha na Secretaria de Saúde e já cobriu esportes pela Rádio Globo e pela Bandeirantes, o problema começa dentro das redações. Quando há um número irrisório de mulheres no ambiente de produção de notícias esportivas, a tendência é o machismo não ser debatido tampouco combatido, mas sim fortalecido. “Eu fazia um quadro chamado ‘Bola dentro e bola fora’. Existia uma orientação clara sobre qual seria o papel da mulher. Era o único espaço em que uma mulher falava sobre futebol. Precisava ser um mulher falando sobre futebol para que outra mulher pudesse entender o futebol. Precisava de uma tradução simples e fácil de mulher para mulher. É diferente de uma preocupação do
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jornalista de atingir todas as classes sociais. É uma distinção de gênero. É uma forma de rebaixar a mulher”, afirma Ferrari.
O machismo sutil como barreira entre mulheres e futebol Aos 75 anos, ao ser questionada sobre as formas de opressão já enfrentadas por ser mulher, Maria Angélica não precisa ir longe para trazer à tona exemplos. Mesmo com dois períodos de ditadura política vividos ao longo de sua vida, as primeiras recordações que vêm em sua mente são recentes. Em feriados e alguns fins de semana, Maria Angélica tem o hábito de se reunir com sua filha em uma chácara da qual parentes do genro são donos. As duas famílias se encontram, almoçam, jogam cartas, bebem, ouvem música… E assistem a jogos de futebol. Esta última atividade, contudo, ao contrário das demais, parece destinada exclusivamente à parcela masculina dos presentes no recinto. Quase sempre fardada com alguma de suas camisetas do Corinthians, Maria Angélica quebra o estereótipo. Não somente “se infiltra” na sala repleta de machos, como é a primeira a alertar os familiares do genro sobre a proximidade do horário do início do jogo. Com a televisão devidamente ligada e o melhor assento entre os disponíveis no cômodo, ela coloca fones de ouvido, sintoniza o celular na Rádio Coringão e ouve a narração e os comentários de sua equipe de jornalistas esportivos predileta – sem tirar os olhos da TV, é claro. A rotina quase metódica de uma torcedora fanática causa espanto. Espanto não pela pressa em ligar a televisão sem correr riscos de perder qualquer minuto da partida. Espanto não pelo medo de sentar em uma parte do sofá na qual a vista não seja a melhor possível. Espanto não por acompanhar o
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mesmo jogo por dois meios de comunicação diferentes. Espanto por ser uma mulher. “Uma amiga da minha filha foi se despedir de mim um dia na sala, durante um jogo, e falou: ‘Credo, só tem a senhora de mulher na sala’. E isso não foi no século passado. Foi no ano passado”, lembra, olhando para os lados e estendendo as mãos para frente como quem procura sentido naquele episódio.
Maria Angélica na chácara com amigos e parentes da filha e do genro (Foto: Arquivo Pessoal)
“Há uns dois ou três anos, um amigo nosso corintiano falou: ‘Ai, Dona Angélica, a senhora é tão esquisita, diferente… Gosta de futebol, de política. Não se interessa por bater perna em 25 de Março, em shopping…’. Aí eu respondi para esse amigo: ‘Sou uma mulher normal. Não critico quem gosta de bater perna. É opção. Mas eu não tenho que gostar por ser mulher’. Ele ficou me olhando como se eu fosse um ET.” Se Maria Angélica é tachada de ET ao acompanhar um jogo pela televisão, não é muito difícil imaginar a reação de amigos e
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conhecidos quando a senhora de 75 anos vai assistir a um jogo no estádio. Seu marido, apesar de declarar orgulhosamente ser torcedor da Portuguesa, não é dos mais animados para marcar presença em arquibancadas. A corintiana da família, portanto, acaba muitas e muitas vezes indo sozinha àquele que é disparado seu principal programa de lazer. “As pessoas ficam me perguntando: ‘Nossa! Mas você foi sozinha? Quem foi com você?’. Aí falo: ‘Ah, um amigo foi me levar ou pegar’. Perguntam se é meu genro ou alguém da família. Eu digo que não, que é um amigo, e já olham torto e falam ‘Ah…’. Sabe? Com meu genro posso, mas com um amigo não? Essas sutilidades são uma discriminação”, aponta, aqui já com a voz mais rude, de quem não esconde a irritação por ainda ter de conviver com questionamentos que marcaram sua juventude, lá em meados do século passado. “Quando perguntam se você não tem medo do estádio, se não se incomoda com os palavrões… Sabe? Nunca aprendi nenhum palavrão novo no estádio. Querem falar palavrão, falem. Já me perguntaram se meu marido me deixa ir ao estádio sem ele… São coisas sutis, mas que incomodam. Mais antigamente tinha um grito que era cantado por boa parte da torcida enquanto entravam no estádio e viam mulheres: “Éu, éu, éu… Boceta da Fiel!”. Eu me incomodava? Claro. Era horrível. Mas esse tipo de situação sutil, implícita, acho que machuca até mais.” Não é necessário se aprofundar tanto no mundo da bola para identificar as sutilezas citadas por Maria Angélica. Em algumas torcidas organizadas, por exemplo, mulheres são proibidas de tocarem na bandeira da instituição ou de se candidatarem a cargos da diretoria. Jogos considerados de “alto risco de violência entre uniformizadas rivais” têm carga de ingresso, entre as organizadas, destinada apenas a homens. A justificativa dos responsáveis é a preocupação com a segurança das mulheres, assumindo
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serem elas portanto frágeis. Uma associada da Gaviões da Fiel, que preferiu não se identificar, afirmou estar em busca de áudios ou troca de mensagens que comprovem a teoria de que, na verdade, o interesse por trás da proibição de mulheres em algumas partidas seja garantir mais bilhetes aos homens. Estes, afinal, membros da diretoria, são os detentores da palavra final.
Torcedoras do Internacional pedem respeito nas arquibancadas do estádio Beira-Rio (Foto: Divulgação/Comando Feminino Camisa 12 - Internacional)
“A mulher tem que ter a opção. Não pode ninguém apontar para a mulher e falar: ‘Você não tem condições de se defender em
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uma briga’. A mulher que sabe do que ela tem condição ou não. Conheço casos de brigas em que as mulheres envolvidas foram protegidas por homens. Mas vem cá: a mulher quis ser protegida? É diferente eu estar andando devagar na rua, com dificuldade de locomoção, e alguém me ajudar. O que não pode acontecer é algo para oprimir, ditando regras para as mulheres, ditando o que pode e o que não pode fazer”, diz Maria Angélica. “Acho sensacional a mulherada indo para a arquibancada. É o que eu sempre falo: a arquibancada é um espaço de luta. Mesmo que você não fale nada, o fato de você estar lá é uma forma de não se deixar oprimir. Você está reivindicando seu direito de estar lá, seu espaço. É formidável”, acrescenta.
(Foto: Divulgação)
As discriminações por gênero não são exclusividade de torcidas organizadas. O próprio Corinthians de Maria Angélica está por trás de algumas das tais sutilezas. O departamento feminino, localizado na sede social do clube, no Parque São Jorge, é um dos
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casos. De acordo com o site oficial da agremiação, “o Departamento Feminino convida a todas as associadas para conhecer o local dedicado para você mulher corintiana. Venha participar das novidades preparadas com todo carinho por nossas assessoras. Descubra a artista que há em você, use toda sua criatividade e aprenda, passo a passo, com nossas professoras as aulas de culinária, artesanato, fuxico entre outras variedades, sempre num bate-papo gostoso e descontraído.” Na visão de Maria Angélica, que trouxe por espontânea vontade a questão do departamento feminino à tona, o Corinthians estaria induzindo a parte feminina de sua torcida a atividades de cunho doméstico. Em contrapartida, o resto do clube, com áreas para lazer, confraternização e práticas esportivas, portanto, seria destinado à parte masculina dos torcedores. “Aí é que está o problema. Vejo a opressão de uma forma muito sutil. Hoje nenhum homem vai chegar para a mulher, pelo menos no meu convívio, e obrigá-la a cozinhar. Em churrascos, por exemplo, eles até gostam de cozinhar (risos). Hoje o que oprime é algo mais sutil. E isso é perigoso. Porque a gente só consegue lutar contra aquilo que a gente vê. Aí tiram as feministas de loucas. Falam que não tem mais machismo, não tem mais racismo, não tem mais homofobia”, completa.
A luta da mulher no futebol O machismo e a consequente tentativa de exclusão das mulheres do futebol estão longe de acabar. A figura feminina no esporte bretão, contudo, vai mostrando-se cada vez menos disposta a se submeter a hábitos, regras e injustiças impostas por homens. A luta femininista vai ganhando, ainda que os poucos e sofrendo constantemente com discriminação por gênero, espaço nas
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manchetes, nos gramados e nas arquibancadas Brasil afora. Talvez o mais simbólico dos exemplos seja a criação de torcidas feministas em alguns Estados do país. No Rio Grande do Sul, por exemplo, torcedoras do Internacional criaram uma torcida feminista chamada Comando Feminino. As mulheres se reúnem para assistir aos jogos, sejam em bares ou estádios, levam faixas e fazem protestos. A torcida é, acima de tudo, por respeito e fim do machismo. (Fotos: Reprodução/Facebook) Arquirrival do Internacional, o Grêmio também não ficou para trás na luta pela igualdade de gênero. Em jogo válido pela Libertadores, em abril de 2016, com transmissão internacional na televisão, torcedoras se organizaram para levar uma faixa na Arena do Grêmio com frase “lugar de mulher é no estádio”. De acordo com alguns veículos de imprensa gaúchos, a intenção das gremistas, na ocasião, era engrossar o coro feminista contra o então deputado e presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha, conhecido por declarações machistas e homofóbicas. A participação de tradicionais clubes de futebol do país em campeonatos femininos, ainda que estimulados pela MP do Futebol, também vale ser destacada. Em 2013, quando a CBF criou o Campeonato Brasileiro feminino, o Vasco era o único entre os 20 times participantes a ter também relevância nacional na modalidade masculina. Em 2016, entre 20 equipes, sete eram de agremiações de maior visibilidade: além do Vasco, também participaram da competição América-MG, Corinthians, Flamengo, Portuguesa, Santos e Vitória.
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“Vejo o Profut como política afirmativa, assim como as cotas. As cotas começaram a funcionar e você mudou o perfil de alunos da universidade. A questão da mulher vejo da mesma forma. Essa coisa do futebol feminino ser uma exigência do Profut é chata? Sim, incomoda. Parece que só estão fazendo para ter um benefício em troca. Mas essa ‘imposição’ está tendo seu papel”, comenta Maria Angélica. A corintiana, aliás, abriu as portas de seu apartamento para conceder a entrevista enquanto ouvia, pela Rádio Coringão, os minutos finais de um jogo do Corinthians pelo Campeonato Paulista feminino. Ouvir tal jogo só foi possível por conta do Profut, ao qual o clube do Parque São Jorge aderiu. Caso contrário, não haveria equipe feminina para Maria Angélica torcer naquele dia. “Tem de haver alguns mecanismos de inclusão. Alguns jogos das meninas já passam na televisão. Hoje não é chocante. Está havendo uma evolução. Essas mulheres que se aventuravam no futebol ou eram putas ou sapatão. Uma mulher ‘normal’ não faria isso. Acho que tem de haver medidas estruturais, legislação”, opina Maria Angélica, balançando a cabeça afirmativamente como quem dá ainda mais legitimidade à própria opinião. “A coisa tem de ir além, não adianta só mulher ficar gritando. Tem de haver coisas práticas. Se a mídia tivesse algum compromisso com a mudança, seria muito bom também. Mas aí ficam fazendo esses concursos de musa, sabe? Hoje ficam com esse papo de bela da torcida, bela do clube… Isso é um açougue, é uma exposição de carne. Eu nunca permiti que eu fosse valorizada pelo corpo. Acho bonito ver uma moça bonitona, é bonito. Mas a mulher ser valorizada só por isso? Isso é errado.” A fala de Maria Angélica é legitimada em uma rápida consulta na grade de programação dos canais de televisão. Principal competição do país na categoria, o Campeonato Brasileiro
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feminino tem algumas partidas transmitidas pela TV Brasil (canal aberto) e outras poucas pelo SporTV (canal pago). Uma ainda mais breve pesquisa feita no Google externa outro problema: a objetificação da mulher no espaço futebolístico. Ao buscar o termo “jogadora de futebol”, os dois primeiros resultados da pesquisa são “fantasia” e “bonita”. No primeiro caso, aparecem imagens de mulheres seminuas; no segundo, atletas rotuladas como “musas” e/ou que se encaixam num padrão de beleza. A situação se agrava se o termo da busca for alterado para “torcedor(a)”. No caso de pesquisa com a palavra masculina, são vistas imagens de homens gritando, rezando, torcendo suas camisetas, se abraçando, etc. Se acrescentada a letra a no fim da palavra, chovem imagens de mulheres com decotes, fotos de bundas de torcedoras e ensaios sensuais. Em 2014, a bandeirinha Fernanda Colombo foi discriminada por ao menos dois dirigentes após cometer erros num jogo entre Cruzeiro e Atlético-MG. Diretor de futebol do Cruzeiro na época, Alexandre Mattos disse que “estão tentando promover ela porque ela é bonitinha e não é por aí. Ela tem que ser boa de serviço, profissional e competente. Se é bonitinha, que vá posar para a Playboy, não trabalhar com futebol”. Alguns meses depois, ela foi expulsa do quadro de arbitragem da Federação Catarinense de Futebol após bater de frente internamente com o então presidente da entidade, Delfim Peixoto, que argumentou que “as atitudes dela saíam daquilo que a arbitragem deve e pode ser. Ela estava mais preocupada em ser modelo, vedete. Avisamos que ela podia procurar outra Federação que aqui ela não ia mais ficar”. Ela não abaixou a cabeça, seguiu treinando por conta própria e em seguida se filiou à Federação Pernambucana para continuar atuando como auxiliar de arbitragem.
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“Maior incômodo é de não ter o reconhecimento do trabalho. Isso incomoda qualquer profissional em qualquer área. Mas aconteceu... O fato de ser mulher chama mais atenção. Os erros ganham proporção maior. O futebol ainda é um esporte muito masculino. Vai demorar um pouco, mas as mulheres estão, ainda que aos poucos, dominando alguns âmbitos do futebol. A mulher vem se inserindo”, afirma Fernanda.
(Imagem: Reprodução/Site do jornal Extra)
Na época em que tal episódio ganhou destaque, poucos foram os profissionais de grande alcance midiático que se posicionaram a favor de Fernanda. Um deles foi Mário Marra,
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jornalista da Espn. O profissional da imprensa, mais de um ano depois, também reagiu publicamente ao famigerado desfile de lançamento de uniforme do Atlético-MG. E choveram críticas ao “repórter feminazi”. “O episódio do desfile. Eu me posicionei e até hoje levo muita pancada. Eu queria ver o uniforme, não uma mulher de calcinha. É doloroso para mim receber ameaça por conta disso. Você tenta conversar e a pessoa só quer te bater, te humilhar. Mas mesmo que me batam, me xinguem, eu não posso me calar. Porque tenho que promover o debate”, explica. E se há dificuldade da mídia, em grande parte, assumir o papel de combate ao machismo, as mulheres decidiram então se unir e iniciaram por conta própria um veículo feminista. O Dibradoras é um site de notícias e opiniões voltado a modalidades femininas de futebol e outros esportes. Formado por mulheres, tal mídia tem como principal objetivo desconstruir a desigualdade de gênero no mundo da bola e, consequentemente, na sociedade. “Ano passado (2015) teve Copa do Mundo e ninguém noticiava. Quando noticiavam, cometiam erros bizarros. Isso não acontece com o futebol masculino. Nós não nos sentimos respeitadas na mídia esportiva. O jornalismo esportivo fala para homens heterossexuais. A mulher atleta é tratada como musa. E a gente não concorda. Por isso surgimos com o Dibradoras”, conta a jornalista Renata Mendonça. “A menina quando nasce obrigatoriamente tem de ganhar boneca. A Sissi, uma das maiores jogadoras do Brasil, ganhava boneca, arrancava a cabeça e chutava como se fosse uma bola”, acrescenta. Há muito o que ser melhorado. Há muito o que ser consertado e desconstruído. Exemplos de mulheres que sofrem com o machismo, seja no futebol ou não, ainda transbordam na sociedade. Ainda que a passos lentos, como os de um jogador, ou
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melhor, jogadora machucada se locomovendo em um gramado encharcado de água e lama, há também uma revolução sendo construída. Maria Angélica é testemunha. E não é que o maior jejum de títulos da história do clube de coração, de 1954 a 1977, serve de inspiração para a corintiana acreditar no fim da desigualdade de gênero? “Não sei se é uma coisa que eu verei. Mas a tendência é melhorar. Quando vejo mulheres lutando, homens lutando, a ação de grupos querendo justiça, o bem… A história da humanidade mostra que as pessoas se matavam pela carne. Hoje conseguem comprar a carne no açougue sem se matar. Então, se compararmos hoje com o passado, você vai vendo que muito devagar está tendo uma melhora na sociedade”, diz Maria Angélica, com consideráveis pausas entre as frases, com a voz trêmula, tentando transparecer o máximo de convicção.
Maria Angélica ao lado do marido Antônio (Foto: Arquivo pessoal)
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“Esperança não haveria se achássemos que está tudo bom. Enquanto houver um grupo, algumas pessoas dispostas a lutar… Temos de ter uma dimensão maior, além desse momento. Talvez nós não tenhamos possibilidade de ver os resultados, mas as próximas gerações colherão os frutos das nossas ações. Estamos num momento difícil, mas vamos superar. Falo como alguém que viu tanto amigo sendo morto na Ditadura, sumindo na Ditadura… E como alguém que esperou 23 anos para ver o Corinthians ser campeão, né?”
Racismo “Macaco! Volta para a selva! Temos que matar todos vocês, seus negros sujos!”
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Mais um capítulo de racismo Era mais uma quarta-feira à noite de futebol na pequena cidade de Bento Gonçalves, no Rio Grande do Sul. Escalado pela Federação Gaúcha de Futebol (FGF) para apitar o jogo entre Esportivo e Veranópolis, pelo Campeonato Gaúcho de 2014, Márcio Chagas da Silva chegou ao acanhado estádio e se preparou para mais um dia de trabalho. Trabalho este que ele considera uma espécie de bico, haja vista que não há muito suporte por parte da FGF tampouco estabilidade para se manter unicamente dos salários de árbitro. “A arbitragem é uma atividade, não uma profissão. Ficar dependendo só de escala e da boa vontade dos comandantes não dá rentabilidade suficiente, a não ser quando se chega num patamar elevado em que se possa viver só da arbitragem, o que não é meu caso”, diz o gaúcho formado em educação física e que se acostumou a trabalhar como professor em escolas do Rio Grande do Sul paralelamente a sua carreira de 15 anos de duração como árbitro.
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Mesmo ciente de que a arbitragem não passava de uma atividade, Márcio nunca deixou de exercê-la com o máximo do profissionalismo – naquela noite em Bento Gonçalves, portanto, não seria diferente. Não à toa, aliás, foi eleito o melhor árbitro daquela edição do Campeonato Gaúcho, sendo escalado para ser o juiz da final entre Internacional e Grêmio. Ainda assim, teve de aprender a lidar com as críticas muitas vezes injustas, exageradas e movidas pelo fanatismo das torcidas das equipes de futebol. Tais precoces julgamentos expressos por massas de torcedores costumam vir acompanhados de xingamentos. “Filho da puta”, “ladrão”, “vai tomar no cu” são algumas das ofensas que qualquer árbitro que queira se aventurar nos gramados do futebol brasileiro ouvirá. Mas Márcio não era qualquer árbitro. Márcio era o único negro a figurar entre os cerca de 20 nomes da escala de arbitragem da época da Federação Gaúcha. As críticas, os precoces julgamentos e os xingamentos, então, tomavam um viés diferente. Um viés racista. As ofensas, aliás, se iniciavam antes mesmo de a bola rolar. “O fato derradeiro, que foi mais emblemático comigo, aconteceu no fatídico dia 5 de março de 2014, em Bento Gonçalves, quando torcedores se manifestaram de forma preconceituosa com relação a mim em ao menos quatro momentos, na entrada em campo, na saída do primeiro tempo, no retorno ao segundo tempo e no fim da partida. Estes (torcedores) proferiram as seguintes palavras enquanto eu e meus colegas da equipe de arbitragem nos dirigimos ao vestiário: ‘Volta para a selva, seu negro, macaco, ladrão safado, imundo. Temos que matar todos vocês, seus negros sujos. Márcio Chagas, tu é a escória do mundo, seu lixo, mal-intencionado’”, lembra, surpreendentemente calmo, mas sem esconder a tristeza em sua voz. Mesmo diante das ofensas e das ameaças de morte, Márcio terminou de apitar o jogo. Ao fim da partida, preencheu a súmula
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que viria a ser entregue à Federação Gaúcha. No documento oficial da partida, relatou ter sido vítima de racismo, descrevendo as situações pelas quais teve de se submeter naquela noite. Tendo preenchido a súmula e tomado o costumeiro banho pós-jogo, Márcio se retirou do vestiário e deixou o estádio, que já não continha mais torcedores, jogadores, ou quaisquer outros rastros do que havia acontecido por ali algumas minutos antes. Ou melhor, quase não continha rastros. Ao se aproximar do estacionamento, mais precisamente de seu carro, o árbitro que há pouco havia sido vítima de discriminação racial passou por uma das situações mais humilhantes e marcantes de sua vida. “Fui pegar meu veículo e ele estava com as portas amassadas a pontapés e havia duas bananas por cima do veículo. Quando fui dar a partida para sair daquele estacionamento escuro e poder fotografar as bananas no carro e enviar para a Federação através da súmula, meu carro deu uma engasgada. Tentei dar a partida mais uma vez, e outra engasgada. Na terceira partida caíram duas bananas do cano do escapamento. Ali para mim foi a gota d’água”, descreve, com a voz num misto paradoxo de trêmula e firme, incrédula e racional, se lembrando das atitudes de barbárie cometidas por parte da torcida naquela noite.
(Fotos: Márcio Chagas / Arquivo pessoal)
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“Temos de tomar a frente em determinados momentos e divulgar, não ficar omissos, senão outras pessoas passarão por isso”, completa. E foi isso que fez. Márcio não somente encaminhou a súmula com as fotos de seu carro em anexo à Federação como também foi à imprensa denunciar o episódio e cobrar punição aos protagonistas do episódio de racismo que marcou aquela quarta-feira de futebol na Serra Gaúcha. O Tribunal de Justiça Desportiva (TJD) do Rio Grande do Sul puniu o Esportivo, clube responsável pelo mando do jogo e pelo qual torcem os responsáveis pelas ofensas racistas, com perda de cinco mandos de campo (sendo assim obrigado a jogar longe de seu estádio) e multa de R$ 30 mil. Na época, Márcio e demais árbitros e assistentes filiados à FGF passaram a protestar antes dos jogos do Campeonato Gaúcho pedindo punição mais severa. O Tribunal reviu o caso e, então, aumentou a punição para perda de seis mandos de campo e nove pontos na classificação do Estadual, o que culminou no rebaixamento do Esportivo à Segunda Divisão. Nenhuma pessoa física, contudo, foi punida. E engana-se quem pensa que o episódio de Bento Gonçalves foi o único de racismo enfrentado por Márcio no futebol. Em 2006, foi ofendido por um jogador dentro de campo, levou o caso adiante e viu o atleta ter de ir à delegacia prestar depoimento e, posteriormente, prestar serviços comunitários como punição. O caso contudo, não ganhou grande repercussão. Um ano antes, em 2005, passou por situação semelhante, que viria a ganhar destaque na imprensa gaúcha graças a um outro registro de ofensas racistas – Tinga, jogador do tradicional Internacional, foi xingado de “macaco” num jogo contra o Juventude, e recebeu atenção da imprensa. Este último episódio motivou o repórter Jone Silva, do jornal Zero Hora, a fazer uma reportagem sobre casos de racismo no futebol do Rio Grande do Sul e então achar a súmula na qual
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Márcio relatou ter sido chamado de “macaco de merda” pelo treinador Nestor Mior, do Encantado, em jogo contra o Caxias do Sul, em Caxias do Sul. Inicialmente, o técnico havia sido punido com suspensão de 15 dias; após a situação ser exposta na mídia, a punição se elevou para três meses. “Tudo só em função da preocupação (da Federação Gaúcha) com o fato de a imprensa divulgar, senão ficariam as penas brandas, como normalmente acontece”, sinaliza Márcio, apontando a importância da mídia no combate à discriminação e ao mesmo tempo deixando no ar uma certa conivência por parte dos órgãos que deveriam tomar as rédeas dessa luta.
Dilma recebeu Márcio Chagas (esq.) e Tinga no Planalto em 2014 (Foto: Divulgação)
Relatório, casos de 2014 e episódios mais recentes e constantes Márcio Chagas e o Rio Grande do Sul estão longe de serem exceções no falso cenário de igualdade racial pintado nos gramados
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de futebol Brasil afora. Somente em 2014, ano em que o árbitro gaúcho foi vítima de ofensas racistas, outras 36 ocorrências de racismo foram registradas envolvendo brasileiros e/ou clubes brasileiros no mundo da bola. Tais dados foram divulgados no relatório anual do Observatório da Discriminação Racial no Futebol. A organização voluntária de combate ao racismo foi criada justamente em 2014 e hoje já tem bom relacionamento com o Ministério do Esporte e parceria com a entidade inglesa Fare Network – rede anti-discriminação e de inclusão social que combate a desigualdade e a exclusão no futebol por meio de ações coordenadas. “O que me levou a criar o Observatório foram aqueles sucessivos casos de racismo envolvendo o Tinga, o Arouca – chamado de “macaco” em março de 2014 por torcedores do Mogi Mirim em jogo válido pelo Campeonato Paulista. Fui pesquisar o que acontecia nos casos de racismo, qual era a pena aplicada. Não encontrando essa informação, fui criar um espaço onde eu pudesse falar não só dos casos, porque os casos a mídia geralmente noticia e aí já gera um grande volume, mas queria um acompanhamento desses casos, as penas aplicadas aos clubes, aos torcedores”, diz Marcelo Carvalho, diretor-executivo e criador do Observatório. E assim nasceu o principal órgão de contabilização e combate ao racismo do futebol brasileiro. Em 2015, foi publicado pelo Observatório o primeiro relatório anual, relativo ao ano anterior. Entre as 37 ocorrências (36 citadas mais a de Márcio Chagas), 20 aconteceram em território brasileiro. Os Estados com maiores índices de ocorrência foram o Rio Grande do Sul, com cinco casos, e São Paulo, com quatro. Paraná e Minas Gerais tiveram dois episódios identificados. Mais sete situações foram apontadas em Rio Grande do Norte, Sergipe, Goiás, Paraíba, Espírito Santos, Rio de Janeiro e Santa Catarina.
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As vítimas são: atleta Lúcio, do São Paulo-RS; atleta Dida, do América-RN; árbitro Márcio Chagas, da Federação Gaúcha; atleta Arouca, do Santos; atleta Assis, do Uberlândia; atleta Paulão, do Internacional; atleta Marino, do São Bernardo; técnico Antônio Carlos, do Vocem-SP; atleta Oliveira, do Estanciano-SE; atleta Maicon, do Londrina; atleta Reinaldo, do Luverdense; atleta Baiano, do Garibaldi-RS; diversos atletas do Cuiabá; atleta Aranha, do Santos; atleta Igor, do Operário-MT; atleta Jefferson, do Atlético-ES; atleta Gil, do Corinthians; atleta Francis, do Boa Esporte; atleta Victor, do Votuporanguense; atleta Bruno Alves, do Macaé. No que diz respeito aos órgãos responsáveis pelas penalizações, sete das ocorrências foram punidas pelo Tribunal de Justiça Desportivo do Estado onde o episódio ocorreu (aqui se encaixa o caso contado por Márcio Chagas, em Bento Gonçalves); duas foram punidas pelo Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD), órgão máximo da Justiça Desportiva no país. Dos sete casos punidos pelo TJD, seis tiveram aplicação de multas que variaram de R$ 2 mil a R$ 15 mil a clubes e um teve perda de pontos na competição (Esportivo, no Campeonato Gaúcho); dos dois casos punidos pelo STJD, as multas variaram de R$ 10 mil a R$ 45 mil, e um clube foi punido também com perda de pontos (Grêmio, na Copa do Brasil). Houve também perda de mandos de campo. Chama atenção a falta de punição contra os autores das ofensas racistas. Dos 20 episódios registrados pelo Observatório, uma pessoa foi penalizada pelo próprio clube; uma foi demitida da empresa onde trabalhava (empresa de comunicação); uma foi identificada e presa pela polícia; uma respondeu a processo por não apresentar provas; uma não sofreu punição porque a vítima decidiu não prestar queixa. Quatro casos não tiveram seus desenrolares descobertos pelo Observatório.
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Vale destacar que os episódios listados e descritos no relatório anual do Observatório são aqueles que ganham algum destaque na mídia e assim chegam à equipe comandada por Marcelo Carvalho. Portanto, acredita-se que tenha havido outros casos em 2014, bem como aconteceram em 2015 e seguem sendo registrados e relatados aos montes em 2016. “O que queria é mostrar que os casos não são poucos e também o que acontece com cada caso, como é julgado, o que fala a Justiça Desportiva… Essa foi a ideia de criar o Observatório, ter um espaço onde a gente pudesse compartilhar os casos, as punições e também as ações afirmativas feitas através do futebol”, fala Marcelo. Um levantamento primário que será utilizado como base para a formulação do relatório de 2015 deu conta de um aumento de 75% nas ocorrências de racismo no futebol brasileiro em relação a 2014. A tendência é a mesma para os próximos anos. Somente nos primeiros meses de 2016, choveram casos de discriminação racial. Em fevereiro, em jogo válido pelo Campeonato Paulista, em São Carlos, o árbitro Rafael de Araújo Pereira disse ter sido chamado de macaco por um grupo de torcedores – após pedido do próprio juiz, um torcedor foi detido pelos policiais que trabalhavam na partida. Em março, a torcida organizada Camisa 12, do Internacional, denunciou ofensas racistas da torcida do Juventude num jogo ocorrido em Caxias do Sul pelo Campeonato Gaúcho: “Tais fatos repugnantes e inaceitáveis já estão se tornando corriqueiros no estádio Alfredo Jaconi, e parecem contar com a conivência da própria direção do clube e omissão das autoridades competentes”, apontou a nota emitida pela uniformizada colorada. Em março, o jogador do Palmeiras Gabriel Jesus foi alvo de imitações de macaco por parte da torcida do Nacional, do Uruguai, em partida realizada em Montevidéu, pela Copa
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Libertadores da América. Pelo mesmo torneio, em Itaquera, no jogo entre Corinthians e Cerro Porteño, um torcedor paraguaio foi flagrado pelas câmeras de televisão se dirigindo para a torcida corintiana e também imitando macaco. Tal duelo também foi válido pela Libertadores.
Em 2016, Olé repete capa racista; em 1996, havia se referido a nigerianos e brasileiros como macacos na ocasião da Olimpíada de Atlanta (Fotos: Reprodução)
No intervalo de uma semana no mês seguinte, ao menos quatro casos foram apontados pela imprensa e/ou por torcedores e/ou jogadores, no começo de maio, em situações ligadas à Copa Libertadores da América. No dia 4 de maio, o Diário Olé, principal jornal esportivo da Argentina, estampou manchete “Mão negra” ao se referir à suposta fraca arbitragem do juiz venezuelano José Argote em jogo no qual o argentino Huracán perdeu para o colombiano Atletico Nacional. O episódio repercutiu negativamente nas redes sociais e até na imprensa brasileira.
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Uma semana depois, em jogo realizado em Belo Horizonte, entre Atlético-MG e Racing, o preparador de goleiros Juan Carlos Gambandé, da equipe argentina, gesticulou para a torcida do clube brasileiro como se estivesse descascando e comendo uma banana. Após repercussão do caso na imprensa brasileira e em alguns periódicos argentinos, ele foi demitido. Na mesma noite, em jogo realizado em Itaquera, jogadores de Corinthians e Nacional brigaram na saída de campo para o intervalo, no caminho aos vestiários. Os jogadores corintianos e ao menos dois repórteres que presenciaram a confusão afirmaram ter visto uruguaios fazendo gestos racistas contra os brasileiros. No dia seguinte ao episódio envolvendo uruguaios em Itaquera, foi a vez de torcedores do Corinthians, por meio das redes sociais, manifestarem discriminação racial. O alvo foi o atacante André, do clube do Parque São Jorge. Por ter errado um pênalti no jogo decisivo da noite anterior, ao menos oito torcedores usaram o Twitter para chamá-lo de “macaco”, “preto” e “carvão”, entre outras ofensas. Ou seja, a discriminação racial parte de povos de diferentes nacionalidades, seja pessoalmente ou pela internet, por torcedores, funcionários ou até jogadores. E o pior: segue absurdamente presente no futebol nos dias atuais.
(Imagens: Reprodução)
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Túnel do tempo: da aposentadoria à infância A sucessão de episódios nos quais foi vítima de racismo, em combinação com a passividade da Federação Gaúcha (instituição para a qual trabalhava), motivou Márcio Chagas a se aposentar da atividade de árbitro pouco menos de dois meses após o caso de Bento Gonçalves. Atividade essa que havia sido exercida por 15 anos, sendo dez deles no quadro da CBF e três como aspirante ao quadro da Fifa. Atualmente, é comentarista de arbitragem da RBS, emissora de televisão filial da Rede Globo no Rio Grande do Sul. “Um dos fatos que pesou bastante foi esse que passei em Bento Gonçalves. Eu esperava um apoio maior da entidade que eu representava. Não tive. Isso me decepcionou bastante. A partir dali, pensando melhor com minha família, questão de segurança…”, diz, preferindo nem terminar a projeção. “Quando se mexe em determinados vespeiros tu começa a ser visto com outros olhos. Foi o que aconteceu”, sintetiza. “No nosso país, infelizmente, os negros que se manifestam não são bem vistos. O negro bom é o negro quieto, que apanha calado e se limita às migalhas que nos são dadas. E no meu caso sempre fui educado a lutar e procurar o justo. Esse fato pesou bastante para minha aposentadoria da profissão de árbitro”, acrescenta. A intenção de Márcio ao deixar os gramados foi se afastar de eventuais polêmicas por conta da arbitragem e assim evitar que algo viesse a ser feito contra sua esposa, com quem se relaciona há 20 anos, ou contra seu pequeno filho de apenas três anos. Ainda assim, a perseguição não parou. Até hoje, passados mais de dois anos de seu início de trabalho na televisão, longe portanto dos alambrados, dos cânticos ofensivos e daquele ambiente que tanto o chicoteou, ele tem de lidar com comentários discriminatórios por meio de redes sociais.
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“Constantemente ainda sou alvo de alguns racistas que, vira e mexe, em função de comentários meus na televisão, ainda continuam tentando me atingir de alguma forma. Como não dá para gritar das arquibancadas, eles hoje me mandam mensagens no Twitter. Quando eu tento identificá-los, me bloqueiam. As pessoas ainda abordam algumas de suas insatisfações lembrando a cor da pele”, diz, em tom de lamentação, de quem parece não acreditar nos episódios dos quais é vítima. Uma rápida olhada no perfil do ex-árbitro na rede social e é possível identificar um usuário remetendo ao episódio de Bento Gonçalves para rebater alguma análise de arbitragem com a qual não tenha concordado. Na sequência da discussão, o indivíduo cujo perfil se chama Mário Almeria diz que Márcio se utilizou da noite em que foi alvo de ofensas racistas e até ameaças de morte para se promover e conseguir emprego na filial da Rede Globo. “Quer se promover mais um pouco com este assunto? Incompetente. Tá aí na RBS graças a uma banana”, escreveu o “torcedor”.
(Imagem: Reprodução / Twitter)
“São fatos como estes, corriqueiros, que fazem com que de certa forma eu me fortaleça e tente fazer algo diferente. Tenho um filho para criar e espero que ele tenha tanta força quanto eu para vencer essas barreiras, que são inúmeras. Passados tantos
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anos após a abolição, vivemos hoje ainda numa senzala bem forte”, comenta, se orgulhando ao mostrar fotos nas quais aparece ao lado do filho e da esposa. Segundo filho em uma casa com mais três irmãos – os quais Márcio faz questão de contar que, mesmo sofrendo pela discriminação racial, tornaram-se policial civil, professora de espanhol e enfermeiro –, ele estufa o peito para falar dos pais: a mãe é professora de português; o pai, engenheiro civil. Justamente o fato de prezar tanto pelos parentes próximos faz o professor de educação física lembrar com dificuldade a ocasião em que foi exposto publicamente pelos racistas de Bento Gonçalves. “Minha família reagiu ao fato com muita tristeza. Minha mãe ficou muito preocupada, chocada, não imaginou que um filho dela pudesse passar por isso, algo que sabemos que acontece mas nunca esperamos que aconteça com alguém tão próximo. Minha mulher também”, recorda.
(Fotos: Arquivo pessoal)
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Na madrugada do dia 6 de março de 2014, ao chegar em casa e se deparar com a mulher e o filho já dormindo, Márcio preferiu não acordá-los para desabafar. Ele diz que a vontade era extravasar, quebrar objetos, socar paredes e portas, mas não quis passar essa raiva para aqueles que mais ama. A esposa descobriu o que o marido havia enfrentado graças às notícias veiculadas pela imprensa na manhã seguinte aos ataques. O filho, na época com pouco mais de um ano, ainda não tinha discernimento para entender os bocados pelos quais o pai tinha sido submetido na noite anterior, enquanto trabalhava para complementar a renda da família “Mas é um processo que acompanha todos os negros do Brasil desde cedo. Eu e meus irmãos, que estudamos em colégios particulares desde a infância, sabemos bem. Na época já sofríamos brincadeiras de mau gosto de alguns alunos mais velhos, aquelas piadas corriqueiras de que negro não é gente, negro caga na entrada ou na saída. Quando é criança, não se sabe bem como reagir a essas situações, você acaba levando na brincadeira para não brigar com todo mundo e se sentir deslocado. Mas são fatos marcantes, tanto que lembro até hoje de ter passado por isso diversas vezes na infância. Na adolescência eu já sabia me defender, mas também passei por algumas situações”, conta. Uma dessas situações passadas por Márcio quando jovem ainda vem constantemente a sua cabeça. Aos 16 anos, seis meses após iniciar relacionamento com a primeira namorada, se perguntava o porquê de não poder frequentar sua casa. Um dia, foi à tal residência. Ao entrar, ouviu a tia da garota perguntar, da cozinha, se “alguém autorizou esse negro a entrar”. Ele respondeu que não teria problema algum em sair. E saiu. “São situações dessas que convivemos bastante aqui no Rio Grande do Sul. No Brasil inteiro, na verdade, mas aqui ainda é pior porque tem um sentimento maior de colonização, de população europeia que se passa para o Brasil inteiro. Tem uma população negra
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muito grande aqui, mas não se passa essa imagem para que se mascare a contribuição do negro na construção desse Estado”, comenta, se referindo a um Estado onde quase duas milhões de pessoas se declararam negras ou pardas de acordo com o Censo Demográfico de 2010, do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
História no futebol e inserção do negro na sociedade A história ajuda a explicar tanto a dificuldade do negro de se inserir no futebol quanto na sociedade. O futebol chegou ao Brasil no fim do século 19 pelas mãos do estudante Charles Miller, que havia tido contato com a modalidade na Inglaterra. Ou seja, o inicio da prática do esporte bretão em terras tupiniquins foi concomitante com os primeiros anos de liberdade dos negros no país que acabara de abolir o regime de escravidão. Não é de espantar, portanto, que, assim como em diversas outras áreas da sociedade, a elite branca é quem dominava o futebol, seja como jogador, técnico, dirigente de clubes ou funcionário de federações. “Acho que o futebol é uma representatividade muito forte da nossa sociedade e remete aos tempos passados. E parte como se fosse uma pirâmide, onde os dirigentes em quase sua totalidade são brancos, os conselheiros dos clubes quase em sua totalidade são brancos, os treinadores brancos, e os jogadores como força escrava negros quase em 90%. Quem detém poder, que são os empresários, dirigentes, presidentes, treinadores são brancos”, diz Márcio, lembrando que apenas Roger Machado, do Grêmio, e Givanildo Oliveira, do América-MG, são negros entre os 20 técnicos que iniciaram a Série A do Campeonato Brasileiro de 2016. “São muito pouco representados num contexto onde deveria se ter uma cultura completamente diferente, já que o futebol é o esporte do povo. Mas não é assim que a gente observa. E a
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única diferença que eu vejo do período escravocrata para cá, em relação ao futebol e também à sociedade, é que os negros são remunerados”, complementa. Tamanha era a discriminação racial na época, que os primeiros clubes do Brasil a abrirem suas portas para jogadores negros se orgulham do “feito” até hoje. São os casos de Ponte Preta, Vasco e Bangu, por exemplo. No site oficial da agremiação de Campinas, há uma reivindicação à primazia, citando Miguel do Carmo, um fiscal ferroviário negro da cidade paulista, como meia-atacante do clube de 1900 até 1904. Segundo o livro “O negro no futebol brasileiro”, do jornalista Mário Filho – que dá nome ao Maracanã –, o Bangu é que foi a primeira equipe a aceitar um atleta negro, Francisco Carregal. O Vasco, por sua vez, foi quem escalou um time efetivamente misto, com grande quantidade de atletas negros e pardos – isso apenas na década de 20.
Francisco Carregal, agachado, no centro, em 1905 (Foto: Bangu / Divulgação)
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Em meio a uma sociedade explicitamente racista, alguns dos primeiros negros a se aventurarem no mundo da bola adotavam o hábito de passar pó-de-arroz na pele antes de entrar em campo, escondendo assim a cor negra para se sentirem menos discriminados no esporte então dominado pela elite branca. O maior símbolo desta prática foi Carlos Alberto, jogador do Fluminense. Durante um jogo contra o América, em 1914, o suor fez a maquiagem ser perdida, e torcedores nas arquibancadas passaram a gritar de forma pejorativa “pó-de-arroz”, que viria a se tornar apelido do Fluminense até os dias atuais. Passados mais de cem anos, ainda há reflexos da prática de pó-de-arroz no futebol e em demais setores da sociedade. Um episódio movimentou as redes sociais após a conquista do título gaúcho de 2016 pelo Internacional. O clube colorado tem como mascote o Saci Pererê. Na arte de comemoração da RBS, afiliada da Globo no Rio Grande do Sul, foi apresentada aos telespectadores a imagem de um Saci branco e exageradamente musculoso, deixando de lado a tradicional figura do negro e magro personagem do folclore brasileiro. A emissora foi criticada por internautas e alguns portais de notícias. O caso foi apontado por coletivos de combate ao racismo como “whitewashing”, que, ao pé da letra, significa “lavagem branca” e, em tradução livre, “embranquecimento”. Tal fenômeno vai bem além do futebol. A expressão surgiu para denunciar um hábito corriqueiro da indústria cinematográfica estadunidense, conforme apontado em reportagem de Amanda Scherker no The Huffington Post, intitulada “Whitewashing Was One Of Hollywood’s Worst Habits. So Why Is It Still Happening?” (“Whitewashing foi uma das piores manias de Hollywood. Então por que segue acontecendo?”). Historicamente, como apontado pela reportagem, boa parte dos filmes produzidos nos Estados Unidos e que têm como objetivo retratar
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algum povo ou personagem negro, árabe, indígena, asiático, etc. é gravada com atores brancos. A discussão já chegou à igreja católica, que é acusada por alguns grupos ateus e religiosos de retratar Jesus como branco quando na verdade ele teria pele mais escura, haja vista a região onde nasceu.
(Imagens: Reprodução/TV e Ilustração/Ziraldo)
“Depois de tantos anos da escravidão, vende-se a história de que foi um curto período do Brasil. E não foi. Durou 300 anos. E não temos nem 200 anos depois da abolição. E sempre vendem um pouco de romantismo, de que a escravidão foi algo leve, que
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só apanhavam os negros que não queriam trabalhar, que de forma geral o negro não era maltratado. Podemos já falar de maltrato se você tira a pessoa da terra dela, separa ela das famílias e das tribos dela para que ela não pudesse se organizar contra o sistema. Isso já é uma violência”, explica Marcelo, associando a herança escravocrata à ainda presente exclusão dos negros na sociedade. “Fora isso, o negro não podia ter posse de terras, estudar, entrar em alguns lugares. Todo esse reflexo traz o problema social do Brasil hoje, que vivemos uma disparidade social entre pobres e ricos, onde a grande maioria dos pobres são negros. A pobreza tem uma cor e tu precisa trabalhar essa questão da cor antes de trabalhar a questão social”, completa, embasado numa pesquisa do IBGE que apontou que apenas 17% da camada considerada rica da população brasileira em 2014 eram compostos por negros. Tanto Marcelo quanto Márcio trazem à tona a necessidade de políticas afirmativas para os negros não apenas se orgulharem de sua cor de pele como também serem inseridos na sociedade de forma igualitária aos demais povos. Nesta questão, surgem as cotas raciais em faculdades como tema nas entrevistas. O assunto é polêmico, haja vista que 62% dos brasileiros são contrários a tal medida de acordo com levantamento da agência de pesquisa Hello Research, feito em 2015. Inegável, porém, são as consequências afirmativas que as cotas vêm ajudando a produzir: uma pesquisa do IBGE de 2014 apontou que 53% da população brasileira se declararam negros ou pardos. Até 2007, a maioria dos brasileiros se declarava branca. Em conversa ao jornal El País na época da divulgação dos dados, Adriana Beringuy, técnica do IBGE, disse que “o que observamos mesmo é a predominância da autodeclaração”, sugerindo não ter havido um aumento na taxa de natalidade de negros e pardos, mas sim de autoafirmação. “Daqui a pouco pode ter e acredito que vai ter nos próximos anos um pouco de mudança nesse sentido de aparecerem
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algumas figuras negras como representação em seguimentos que não vemos tão comumente com essa abertura e oportunidades de estudos que vêm acontecendo pelo país até pelas cotas nas universidades, que é um assunto que gera uma polêmica grande quando é direcionado aos negros”, opina Márcio Chagas. E dados do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP) da UERJ dão legitimidade a Márcio. Em 2012, antes da Lei de Cotas entrar em vigor, 13.392 vagas nas faculdades federais eram destinadas a negros, pardos e indígenas. Em 2014, tal quantidade saltou para 43.613 vagas. Houve, portanto, um aumento de 225% das vagas exclusivas a esses grupos, aumentando assim a quantidade de afrodescendentes – bem como de indígenas – nas faculdades e, potencialmente, no mercado de trabalho nos próximos anos. Por exemplo, segundo dados do IBGE de 2010, apenas 13% dos juízes do Brasil são pardos ou negros – enquanto este grupo representa mais da metade da população nacional. “Quando o Governo hoje no Brasil, de forma geral, não pensando só em PT ou PSDB, implanta cota, ele traz um equilíbrio. Todo ser humano trabalha motivado por exemplos. Vou sempre seguir um exemplo próximo a mim. Então vou querer ser algo que esteja perto de mim, um médico, um juiz. Se alguém da minha família estiver assim, eu vou desejar. Mas se isso estiver no campo do impossível, poucas pessoas vão chegar. Precisamos trazer essa grande massa”, diz Marcelo, em tom de quem faz apelo por algo que parece tão necessário e ao mesmo tempo tão difícil de entrar na cabeça da população.
Injúria racial ou racismo? Seja no âmbito do futebol ou na sociedade de forma geral, muito se debate sobre a ineficiência da legislação no que diz respeito à
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penalização de pessoas que cometem discriminação racial. Isso porque boa parte dos casos são enquadrados como injúria racial. O crime de racismo está previsto na lei número 7.716/1989. A injúria racial, por sua vez, aparece no Código Penal, no artigo 140, parágrafo 3º. O racismo é considerado crime inafiançável, ao contrário da injúria racial. Mas afinal, o que diferencia uma situação da outra?
Torcedora Patrícia Moreira foi flagrada chamando Aranha de macaco (Foto: Reprodução/ TV)
De acordo com o Conselho Nacional de Justiça, “o crime de injúria está associado ao uso de palavras depreciativas referentes à raça ou cor com a intenção de ofender a honra da vítima”. Em seu site, o próprio CNJ lembra um episódio ligado ao futebol para exemplificar. Trata-se do “caso Aranha”, de 2014, no qual o goleiro do Santos foi xingado de “macaco” por torcedores do Grêmio; estes foram identificados, denunciados por injúria racial pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (TJRS), em ação pedida pelo Ministério Público, e chegaram a ser
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impedidos de frequentar estádios. Um acordo no Foro Central de Porto Alegre, no entanto, suspendeu a ação por injúria. Aranha, por sua vez, passou ao menos os seis primeiros meses de 2016 desempregado: “Com certeza, o preconceito atrapalha. Ele existe no futebol e acho que vai continuar existindo para sempre”, comentou, em entrevista ao Diário de S. Paulo, pouco após deixar o Palmeiras, seu último clube. Para uma situação ser enquadrada como crime de racismo, precisa haver “conduta discriminatória dirigida a determinado grupo ou coletividade e, geralmente, refere-se a crimes mais amplos”, conforme apontado pelo CNJ. Exemplos mais simples são os de proibição de entrada de negros em estabelecimentos ou a não contratação proposital de negros numa determinada empresa. “A questão da lei brasileira determinou que o racismo é um racismo que na verdade não é. Racismo não é só proibir a pessoa de entrar num lugar. Há o racismo e a injúria racial. E aí todos os crimes vão para injúria racial, onde a pena é mais branda. Mas a pena, se tu for pensar em reclusão, é a mesma: de dois a quatro anos. Mas a injúria por si é mais branda, por ter essa questão de não ser preso e de não ser inafiançável, por a sociedade convencionar que a injúria não é tão pesada quanto o racismo mas esquecer que ambas provêm do mesmo crime”, alega Marcelo. No caso da Justiça Desportiva, que prevê punição a clubes, dirigentes e jogadores, não há a diferenciação teórica entre racismo e injúria racial. O artigo 243-G do Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD) fala em prática de “ato discriminatório, desdenhoso ou ultrajante, relacionado a preconceito em razão de origem étnica, raça, sexo, cor, idade, condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência”. As punições, por sua vez, também soam como brandas. Isso sem contar na possibilidade de advogados de defesa se
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utilizarem da argumentação de injúria racial – que sequer é prevista no CBJD – para tentar diminuir as penas. A prática da discriminação prevê suspensão de cinco a dez partidas, se praticada por atleta, mesmo se suplente, treinador, médico ou membro da comissão técnica. Há também multa que pode variar de R$ 100 a R$ 100 mil. “A Justiça Desportiva enquadra os crimes de preconceito. Tem questão contra negro, judeus, gays, idosos… Não existe a questão de injúria e de racismo. Mas muitos advogados quando defendem clubes ou atletas dizem que a pessoa que ela está defendendo não cometeu racismo, cometeu injúria. Mas essa questão nem está em pauta no esporte. No esporte tem a questão da discriminação de forma geral. Injúria e racismo fogem da questão esportiva, são crimes da Justiça comum”, complementa o diretor do Observatório.
O racismo velado no país ‘sem racistas’ O racismo (ou injúria racial) nem sempre está explícito com um xingamento de “macaco” em alto e bom som. Talvez menos ainda em agressões físicas ou proibições de entrada em estabelecimentos como lojas ou restaurantes. Mas pequenos gestos de preconceito são espalhados aos montes no país onde 90% da população admitem existir racismo mas 96% negam ser racistas, conforme apontado numa clássica pesquisa do Datafolha de 1995, que tornou-se uma espécie de bandeira na luta de combate à discriminação racial nas últimas décadas. “Os preconceitos ‘cegam’ os indivíduos, que muitas vezes não se dão conta de seu próprio preconceito. O preconceito para se consolidar precisa se confundir ideologicamente com processos culturais de banalização e naturalização daquilo que em
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verdade é um processo de exclusão, de opressão, de violência”, comenta o sociólogo Mauricio Murad. Dentro das quatro linhas, no mundo da bola do país do futebol, portanto, não poderia ser diferente. Em uma pesquisa publicada pelo portal Uol em 2015, na qual 108 jogadores foram ouvidos, 75,9% disseram acreditar que existe racismo no futebol brasileiro. Apenas um entrevistado afirmou nunca ter visto caso de racismo. Márcio Chagas, uma das inúmeras vítimas, seja da discriminação velada ou da explícita, sabe bem o quanto os três quartos de jogadores perguntados estão certos. “Sentir quando alguém é preconceituoso comigo… Eu já tenho um misto de sentimentos com relação a isso. Às vezes eu prefiro que a pessoa seja explícita e diga o que sente do que seja falsa”, conta. “Já tive muita raiva, vontade de sair batendo. Mas não vai adiantar bater, quem é racista vai continuar racista. Melhor me afastar dessas pessoas e tentar um convívio mais harmônico com quem entenda as diferenças. Minha missão é passar isso para meu filho, já que, na escola que ele está hoje, da turma de dez crianças ele é o único negro. Na escola em geral tem três negros, ele e mais dois, num total de 600 crianças, num país que mostra essa diferença de termos 56% de negros declarados, mas nas escolas particulares o número é bem menor.” Há também o racismo que não é velado, pois extrapola a questão do olhar, da reação supostamente discreta, mas que também não é explícito, pois não há uma ofensa, ou uma referência direta à cor. Ainda assim, quem sofre na pele tal discriminação garante ter sido alvo sim de discriminação racial. Marcelo, do Observatório, viajava pelo litoral do Rio Grande do Sul e estava na praia quando foi abordado por uma viatura da polícia. Os policiais o revistaram e pediram documento. Ele dizia estar sem carteira pois acabara de sair do mar.
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Marcelo Carvalho lançou campanha #ChegaDePreconceito nas redes sociais antes do início do Campeonato Brasileiro de 2016 (Foto: Acervo pessoal)
Os policias passaram a ser (ainda mais) hostis com ele, o mandando calar a boca a cada pergunta que fazia. A situação só foi esclarecida quando uma outra viatura se aproximou e uma pessoa que estava dentro do carro, vítima de um assalto havia poucos minutos, disse aos policiais que Marcelo não era o ladrão que estava sendo procurado. Ao invés de se desculparem com Marcelo, os policiais insistiram com a mulher perguntando se ela tinha mesmo certeza de que não era ele o bandido. “Foi uma situação muito constrangedora. Te contando um outro fato: eu tinha uma noiva, que estudava numa universidade no interior do Rio Grande do Sul, em São Leopoldo. Um dia uma colega dela perguntou como ela tinha entrado na universidade. Aí ela respondeu, inocentemente, que entrou lá pelo portão central. Aí a colega: ‘Não, não. Como tu entrou no sentido de vestibular’. Aí minha
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noiva respondeu: ‘Sim. Fiz vestibular’. E a colega rebateu: ‘Nossa, que estranho. Lá na cidade de onde venho todo mundo fala que o negro tem baixa capacidade, não é capaz de passar no vestibular’. É um exemplo de situação em que o próprio velado extrapola. Ela tinha aquilo na cabeça e um dia deixou esse pensamento sair pela boca.”
Luta contra o racismo e as dificuldades no combate É possível dizer que tanto Márcio quanto Marcelo já estão “calejados”, seja pela experiência pessoal como alvo de racismo, seja pela proximidade que têm com casos de discriminação. Já acostumados com este cenário, ambos têm pensamento semelhante no que diz respeito ao futuro. A hipocrisia fica de lado, e a possibilidade de acabar com a discriminação racial num curto prazo é considerada nula. Num longo espaço de tempo, por sua vez, ainda que de forma um tanto quanto utópica, é sim possível imaginar um cenário de maior igualdade. Uma tecla na qual Márcio costuma bater – no trabalho, em casa e durante a entrevista – é a falta de interesse do poder público em combater o racismo. Sem alguma motivação política e/ou não havendo casos de grande repercussão, parece não haver um porquê para os brancos que comandam o país e o futebol iniciarem uma luta efetiva contra a discriminação racial. Ainda assim, o ex-árbitro vê nas políticas públicas as potenciais armas para a luta de movimentos negros. O Ministério da Cultura e o Ministério das Mulheres, Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos2 são apontados por Márcio como possíveis 2 Governo provisório de Michel Temer extinguiu o Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos durante o processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Fez o mesmo com o Ministério da Cultura, mas, em relação a este último, recuou e o reativou.
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trunfos na educação dos jovens: seja para aprofundar a história do negro no Brasil ou para combater a banalização de atos racistas. “Poderia haver mil iniciativas de tentar mostrar de alguma forma a grandeza da cultura negra na construção do Brasil, não só como mão de obra barata na questão da escravatura, mas sim na riqueza cultural que trouxe e até hoje é um fator determinante nessa miscigenação do país. Infelizmente não conseguimos ainda hoje posições favoráveis na questão de representatividade nos setores financeiros e outros que representem uma ascensão social e econômica, mas culturalmente acredito que o negro tem uma contribuição muito grande e possa ser um legado muito bom para que as crianças aprendam a respeitar”, discorre. “Mas enquanto não houver interesse real em abordar o assunto, sem oportunismo político, normalmente as pessoas vão banalizar a temática achando que há uma supervalorização do assunto”, acrescenta. Além do poder público, uma das dificuldades no combate ao racismo está na imprensa. Assim como banaliza ou até ironiza o machismo e a homofobia que ainda são rotineiros no universo esportivo, a mídia também tem papel construtor, ainda que velado, na discriminação racial. Márcio, hoje comentarista da maior emissora do Rio Grande do Sul, chega a questionar, com a voz apertada tamanha irritação, o fato de poucos ex-profissionais negros do mundo da bola se tornarem comentaristas na televisão. E não é só o ex-árbitro quem repara no sutil, mas muitas vezes discriminador, comportamento de boa parte dos veículos de comunicação. Jornalista e pós-graduado em marketing esportivo, Wagner Prado, tesoureiro da Associação dos Cronistas Esportivos do Estado de São Paulo (Aceesp), lembra com desgosto da narração de uma partida de tênis, modalidade que ele gosta bastante. Fã da tenista negra Serena Williams, ele, sem fazer questão de
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nomear o responsável pelo comentário, denuncia que, durante a narração, um profissional da Espn se referiu à atleta estadunidense como “Serenão”. “Como assim? Serenão? Isso é baixaria total. Começou a me incomodar. A outra jogadora, uma belga, branca, ele não colocava no aumentativo. Eu como negro estou com o ponto de vista do negro, do que passa comigo no dia a dia. Por que ele não põe o nome da outra jogadora também? Porque para mim está depreciando a Serena por ser negra, por ser bunduda. Essas perguntas ficam na minha cabeça. Não aguento. Preciso me manifestar sobre isso”, diz, gesticulando com as mãos na altura da cabeça como quem não acredita ter realmente ouvido aquilo. “A imprensa, no meu entender, tem um olhar muito machista, homofóbico e racista nas suas transmissões. Qualquer um pode perceber isso. Não precisa ser um negro com uma formação”, completa. Para que casos, sejam os sutis ou os explícitos, diminuam, é necessário maior comprometimento da Justiça com as punições. Na opinião de Marcelo, a banalização da injúria racial e facilidade com a qual acusados escapam de consequências mais graves ajudam a manter o status quo. No âmbito esportivo, o diretor do Observatório toma como exemplo campanhas organizadas pelos clubes para que torcedores parassem de jogar objetos em campo, pois tal ação passou a render punição aos clubes. Postura semelhante ainda não é vista em grandes proporções quando o assunto é a discriminação racial, que também rende punição às equipes. “Racismo é crime, mas não punir como tal acaba dando coragem para as pessoas continuarem cometendo o crime. Pensando na questão do futebol, a Justiça Desportiva não pode punir o cidadão, mas só o clube, a entidade esportiva. Acaba que o ideal mesmo é que ela puna os clubes, e as pessoas... Aí vai depender muito da Justiça junto com o Ministério Público e tudo o mais.
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Mas acho que punir é importante, mas o principal papel dos clubes e das federações é trabalhar no sentido da educação, de não ser racista”, aponta. Márcio reconhece a importância da punição e do comprometimento da mídia e principalmente do poder público com o combate ao racismo. O ex-árbitro, contudo, tende a valorizar mais a luta do negro do que o ataque dos racistas. Apesar de reconhecer a atmosfera utópica de um Brasil sem discriminação, ele, bom conhecedor de regras como todo juiz (Foto: Acervo pessoal) de futebol deve ser, dá a receita para melhorar o cenário do país: “Acredito que possa modificar quando se tiver médicos negros, políticos negros, governantes negros, apresentadores negros, quando os negros tiverem uma maior representatividade”, comenta, com a convicção de quem analisa há anos polêmicos lances de arbitragem. “Ficamos remando anos e anos. Foi essa dificuldade com nossos pais, está sendo hoje, mas quem sabe lá na frente, com a possibilidade de um futuro melhor, nossos filhos possam modificar esse quadro.”
Homofobia “Ôôôôô… Bicha!!!”
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A triste noite de um palmeirense na feliz noite do Palmeiras 2 de dezembro de 2015. Um dia especial para os mais de 10 milhões de torcedores do Palmeiras. A equipe, que uma temporada atrás brigava até a última rodada do Campeonato Brasileiro contra o terceiro rebaixamento no intervalo de apenas 12 anos, se reergueu e chegou à tão sonhada final da Copa do Brasil. É de se imaginar, portanto, a ansiedade que implodia dentro de cada um dos palmeirenses espalhados Brasil afora naquela quarta-feira. Com Roberto Silva3 não foi diferente. Roberto tem 32 anos, é paulistano e palmeirense fanático desde a adolescência. O interesse pelo Verdão, contudo, vem da infância, de uma afinidade infantil pela cor verde. A criança loira, de bochechas rosadas e gorduchas, lá no fim da década de 80, ainda sem grandes medos ou preocupações, mal podia imaginar que o gosto inocente pelo escudo do Palmeiras achado em um álbum de figurinhas se transformaria, menos de uma década depois, em sua 3 Roberto Silva é um nome modificado. O entrevistado pediu para que a identidade fosse ocultada, assim como a publicação de suas imagens.
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maior paixão. Desde quando passou a frequentar com assiduidade o Palestra Itália, em 1999, ele consegue contar nos dedos das mãos as vezes em que não pôde assistir a um jogo do time no estádio. “Vivo bem intensamente, não tem nada que seja prioridade maior”, conta, com naturalidade e convicção, sem esboçar qualquer insegurança em sua afirmação. Não é de se espantar, portanto, que Roberto assistiu à final da Copa do Brasil nas arquibancadas do hoje renomeado Allianz Parque4. Porém, do momento em que seu despertador tocou, logo ao amanhecer, até o instante em que o árbitro soou o apito de início do jogo, por volta das 22h, as horas demoraram uma eternidade para passar. “Acordei com a cabeça cheia, já pilhado, morrendo de inveja das pessoas que falavam que já estariam lá nas ruas próximas ao estádio desde as 13h. Naquele dia, não existia outra coisa que não o Palmeiras”, lembra, com brilho nos olhos. Ele, que trabalha na área de relações internacionais na Universidade de São Paulo e pediu para não especificar em que prédio ou cargo, confessa, entre risos de culpa e olhares de inocência, ter passado o dia sem trabalhar direito, em contato por meio de redes sociais com os cerca de 15 amigos com quem costuma ir aos jogos. Uma pessoa em especial, contudo, não se sente confortável para ir à arquibancada com Roberto nem nos mais acanhados jogos. Tampouco se sentiria à vontade, portanto, naquele jogo no qual, além dos quase 40 mil torcedores que lotaram o Allianz Parque, dezenas de milhares de palmeirenses encheram as ruas no entorno do estádio antes, durante e após a partida. Trata-se do também palmeirense Alfredo5, namorado de Roberto. 4 O estádio Palestra Itália foi derrubado em 2011 e, em seu lugar, foi construída a arena Allianz Parque, inaugurada em 2014. 5 Alfredo é um nome modificado. Roberto pediu para que a identidade fosse ocultada, assim como a publicação de suas imagens.
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“A agressão verbal já é algo que me faz desistir (de ir com meu namorado). Ela já é tão violenta quanto a agressão física. Quando o estádio novo foi inaugurado, estava tendo aquela onda de gritar bicha para os goleiros adversários. No fim de 2014 e no começo de 2015 teve muito”, diz, se referindo à prática dos torcedores de gritarem “Ôôô… Bicha!” no momento em que o goleiro adversário bate o tiro de meta, como tentativa de desestabilizá-lo. “O meio é homofóbico e você sente isso. Como é uma coisa tão próxima, dita com tanta raiva, em tom de provocação, é natural eu não me sentir à vontade nem seguro em levar meu namorado sem ter um respaldo”, completa, dando uma rápida espiada para os lados como quem busca em vão um final feliz para a história. Com os amigos ao lado, Roberto assistiu ao jogo. Uma partida emocionante, digna de final. O Santos, adversário tido como favorito pela imprensa, perdia por 2 a 0 até os 41 minutos do segundo tempo. Tal resultado dava o título ao Palmeiras. A equipe alvinegra, entretanto, balançaria as redes do goleiro Fernando Prass e deixaria o placar em 2 a 1, forçando a disputa de pênaltis. Após erros e acertos dos dois times, a última penalidade foi cobrada e convertida por Prass, garantindo o título aos donos da casa e promovendo uma explosão de sentimentos nas arquibancadas e no entorno do Allianz Parque. O Palmeiras era campeão da Copa do Brasil! Ao fim daquela tão esperada noite, Roberto, acompanhado de amigos e outras inúmeras de dezenas de milhares de torcedores ensandecidos com a conquista do título por parte do Palmeiras, foi às ruas comemorar. Eram cânticos dos mais variados, vendedores ambulantes jogando amendoim, carne assada e latas e mais latas de cerveja para o alto. Figurões dos mais carismáticos tipos escalando postes e árvores para pendurar bandeiras do clube nos mais diversos lugares. O time de coração, afinal, havia sido campeão.
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E, no meio de tudo aquilo, o coração de Roberto silenciou. A mistura do cheiro de cerveja, suor e carne sumiu. O barulho de fogos de artifício e gritos da torcida sumiu. O calor da multidão apertada numa espécie de bloco de Carnaval fora de época sumiu. O vazio falou mais alto do que aquele mar de palmeirenses que lotaram a Turiassu6. A sensação de impossibilidade de ter ali ao seu lado seu namorado, por medo da discriminação, fez com que a feliz noite do Palmeiras se tornasse uma escuridão incompleta, uma espécie de penumbra, para ao menos um palmeirense.
Festa de palmeirenses na Rua Turiassu após o título (Foto: Lucas Bachião)
Combate à homofobia, e as arquibancadas como espaço de luta De forma ainda discreta, a luta contra a homofobia já chegou ao futebol brasileiro e de outros cantos do mundo. O combate 6 Rua em frente ao estádio do Palmeiras e tradicional ponto de encontro e festejos da torcida.
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à discriminação por orientação sexual, contudo, é mais antigo e vem de outros campos que não o da bola. No fim do século 19, começaram a ganhar força, na Europa, teorias científicas que apontavam a homossexualidade (na época chamada de homossexualismo, com sufixo que caracteriza patologia) como doença. Em muitos países (como acontece até hoje em dia em diversos locais da África e do Oriente Médio), se relacionar com pessoas do mesmo sexo era crime. Apenas em 1981, a criminalização de gays e lésbicas foi combatida pelo Conselho Europeu em seus países-membros. Nove anos depois, a Organização Mundial da Saúde desclassificou a homossexualidade como doença, distúrbio ou perversão. E em 1993 tal classificação passou a valer nos Estados-membros das Nações Unidas. As tardias constatações de tais órgãos só não foram ainda mais atrasadas graças à militância que tomou as ruas das principais cidades dos Estados Unidos a partir da década de 70, quando jornais como o Gay Power e o Come Out! surgiram como mídia independente para quebrar o tabu acerca da homossexualidade e combater a violência praticada pela polícia e por grupos intolerantes e legitimada pelo Estado contra gays e lésbicas. Terapias como a lobotomia, que tirava partes do cérebro dos homossexuais como tentativa de “cura”, a hipnose e até a castração eram combatidas por coletivos anti-homofobia. No Brasil, o movimento foi posterior. O primeiro jornal de militância homossexual, o Lampião da Esquina, circulou entre o fim da década de 70 e o início dos anos 80. Tratava-se de uma mídia alternativa que dava voz a minorias em meio ao afrouxamento da Ditadura Militar no país. O subsídio para circulação do veículo se dava, em grande parte, por doações de pessoas interessadas na iniciativa. A criação de inúmeros coletivos, manifestações e a presença de parlamentares comprometidos com causas gays em Brasília,
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contudo, é algo que ganhou maior dimensão apenas no século 21, conforme explicado pelo sociólogo Mauricio Murad, que também já traça um paralelo com a temática no futebol.
Jornais estadunidenses e brasileiros abordando a homossexualidade (Imagens: Reprodução)
“O Brasil passa por uma crise econômica, política, institucional e moral gravíssima, e o nosso futebol acompanha essas mesmas crises no interior de suas estruturas de poder e de comando. As diferentes sociedades passam por diferentes conjunturas de ação e reação, frente às suas mazelas, contradições e dilemas. Há diferenças educacionais, culturais, históricas entre o Brasil e os Estados Unidos, por exemplo. Daí esses descompassos no tempo e nas tentativas de enfrentamento e superação de diversos problemas de ordem social e histórica.” No futebol, espaço tradicionalmente masculinizado e excludente portanto no que diz respeito a mulheres e homossexuais, a luta é ainda mais jovem e organizada por meio de redes sociais. Coletivos como o Palmeiras Livre e o Palmeiras Antifascista estão ao lado de Roberto Silva e outros tantos torcedores – sejam eles palmeirenses ou não – no combate à homofobia e a outros tipos de opressão, como transfobia, machismo e racismo.
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“Futebol é pior do que a sociedade. No futebol ainda tem aquela sensação de que pode tudo, de que não tem problema ser homofóbico, machista, transfóbico…”, explica Isadora Moraes, uma das administradoras da Palmeiras Antifascista. “A página aborda a homofobia, o racismo e o machismo no futebol. Apoiamos todas as pautas progressistas. Enquanto feminista afirmo que o estádio é um ambiente hostil para qualquer ‘minoria’”, completa Thaís Nozue, uma das responsáveis pela Palmeiras Livre. O surgimento da Palmeiras Antifascista aconteceu em 2014, quando parte dos fundadores acompanhava um jogo no estádio do Pacaembu e avistou um grupo de torcedores com jaquetas de uma torcida uniformizada fascista da Lazio, da Itália. Ao perceberem que só eles se indignaram com a situação, se inspiraram na Resistência Coral (torcida do Ferroviário, do Ceará, pioneira na luta antifascista nas arquibancadas brasileiras) e tiveram a ideia de criar um coletivo de combate a práticas discriminatórias. A Palmeiras Livre, por sua vez, foi criada em 2013, inspirada na Galo Queer, torcida anti-homofóbica do Atlético-MG. “A Galo Queer hoje é mais um movimento do que uma torcida, justamente porque os estádios são hostis. Ainda não conseguimos existir como torcida. A ideia surgiu porque fui no estádio e de repente 30 mil pessoas estavam xingando o adversário de bicha. Fiquei muito assustada com isso. E só eu me assustei. Precisava fazer alguma coisa”, diz Nathalia Duarte, uma das criadoras da Galo Queer, em participação no documentário Jogo Truncado, exibido no Canal Futura. Fora do Brasil, a luta contra a discriminação por orientação sexual no futebol também é reduzida a alguns nichos, mas já vem dando as caras há algumas décadas. Ao longo do século passado, a torcida do St. Pauli, clube alemão da cidade de Hamburgo, passou a aproveitar a união
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oriunda das arquibancadas para se organizar em protestos contra fascismo, racismo, homofobia, machismo e até capitalismo. As então inusitadas pautas dos torcedores foram abraçadas pela diretoria do clube, que já teve um presidente assumidamente homossexual e carrega em seu estatuto os ideais antifascistas e, portanto, de combate a opressão.
Majoritariamente pelas redes sociais, movimento anti-homofóbico já contempla torcedores de vários clubes de futebol do Brasil (Imagens: Reprodução/Facebook)
Na Itália, que sofreu nas mãos do governo fascista de Benito Mussolini nas décadas de 20, 30 e 40 do século passado, o maior é exemplo é o Livorno. Torcida, clube e até jogadores da equipe se posicionam contra qualquer forma de discriminação. Eles se opõem veementemente à Lazio, agremiação marcada por rastros da máfia italiana em sua administração e do neonazismo em sua torcida – esta tem hábito de levar faixas com suásticas e cruzes celtas às arquibancadas.
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O Rayo Vallecano, de Madrid, é o exemplo na Espanha. Considerado um clube alternativo da capital espanhola em meio aos gigantes Real Madrid e Atletico de Madrid, a pequena agremiação se declarou contrária à homofobia ao lançar um uniforme, em 2015, com a estampa de um arco-íris, bandeira do movimento LGBT. Parte do valor arrecadado com a venda das camisetas foi doado a instituições que representam a causa no país. Fato é que, ao menos nesses três exemplos europeus, há um número grande (na casa das dezenas de milhares) de torcedores engajados na luta por igualdade. Entretanto, seja na Palmeiras Antifascista, na Palmeiras Livre, na Galo Queer ou em basicamente qualquer outro grupo de combate à homofobia no futebol brasileiro, a luta ainda é perigosa. É difícil a busca explícita por um espaço nas arquibancadas. Quando se reúnem, tais grupos vão aos estádios em cinco, dez ou 20 torcedores – número bem inferior aos milhares das torcidas organizadas, por exemplo – e não escancaram seu posicionamento por medo de represália.
Torcida do St. Pauli comemorando nas arquibancadas (Foto: Divulgação/St. Pauli)
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“Vou tentar ir com as camisetas (da Palmeiras Antifascista) e ver o que acontece. Dificilmente vão bater em menina, no máximo dão um apavoro. Mas ainda assim temos medo. Medo da polícia militar e de neonazistas”, diz Isadora, num paradoxo de naturalidade e incredulidade. “Nossa sociedade cristã, patriarcal, machista, homofóbica e racista endossa esses comportamentos. Lutar contra esses preconceitos é ir de encontro à sociedade. É uma briga de cachorro grande, dolorosa e que muitos não estão dispostos ou preparados para lidar”, acrescenta Thaís, da Palmeiras Livre.
Como Roberto se descobriu Antes de chegar à quarta década de sua vida, Roberto teve uma juventude dura principalmente no que diz respeito a relacionamentos. Palmeirense desde criança, aceitou dividir seu coração com outra “entidade”. Quando adolescente, se apaixonou por três garotas – e não foi correspondido em nenhuma das situações. Aos 16 anos, amou platonicamente uma menina, que viria a falecer. A tragédia caiu como uma pedra em cima do peito do jovem, que passaria os 15 anos seguintes sem se envolver amorosamente com ninguém. Descendente de alemães e integrante de uma família conservadora e abertamente homofóbica, ele passou anos e mais anos calado, sufocado e sozinho. Aos 31, voltou a se apaixonar. Por um homem que havia acabado de encontrar numa agência bancária. Roberto deixou a personalidade tímida de lado. Eles conversaram e saíram. O palmeirense então deu o primeiro beijo da vida. O relacionamento não vingou por conta do preconceito religioso da família do potencial namorado. Bola para frente. Ou não.
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Aliviado num primeiro momento por entender ser gay e então ter ao menos uma dúvida de sua vida sanada, Roberto foi logo tomado pelo medo de ser apaixonado por um clube de futebol e ser homossexual. A combinação soou incompatível. Mas foi justamente numa página do Facebook destinada a torcedores do Palmeiras que ele decidiu se abrir, de forma anônima, e expor seus medos e angústias. A página era a Palmeiras Livre. “No momento da descoberta é uma profusão de sentimentos, você quer falar para alguém, às vezes não tem para quem falar… E na época já existiam esses grupos de torcedores”, conta, transmitindo uma sensação de alívio simplesmente por lembrar da existência desse nicho – ainda que pequeno – de militantes de arquibancadas. Em meio ao apoio recebido por tais coletivos e pelos amigos mais próximos, com quem se sentiu à vontade para se abrir – diferente da família, que não sabe sobre sua orientação sexual até hoje –, Roberto conheceu Alfredo, seu atual namorado, em agosto de 2015. O primeiro amor correspondido. Graças a algumas curtidas em fotos de um até então desconhecido, ele se aproximou daquele que viria a se tornar seu novo companheiro de viagens, jantares, cinemas, teatros, parques… Só não de arquibancadas – e olha que Alfredo é palmeirense. Tal qualidade, aliás, caiu como uma espécie de bônus, um algo a mais nas costas de alguém que enfim fez o coração de Roberto voltar a ganhar cores. Junto com a descoberta de sua orientação sexual e o início de seu namoro, Roberto passou a enxergar a sociedade e o futebol com outros olhos. Mais sensível a algumas piadinhas que outrora passavam despercebidas. A alguns comentários que ele jamais se dera conta do real significado. Das músicas de arquibancadas que ele até outro dia cantava junto com outras dezenas de milhares de torcedores.
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Como Roberto mesmo diz, ele tem “sorte, entre aspas, de seguir uma vida totalmente heteronormativa, sem dar pinta”. Nunca sentiu e nem mesmo depois de se descobrir gay sente-se atacado diretamente pela homofobia. Mas passou a ter um olhar aguçado aos terceiros, sejam eles os homofóbicos ou os homossexuais. “O que me incomoda é a repressão a terceiros, ver outros serem oprimidos e eu me colocar no lugar. Isso acontece em todo lugar, cinema, trabalho, no trabalho sempre tem alguém falando merda, ônibus, futebol, rua… Em todo lugar. É um incômodo que cresce cada vez mais. Eu tinha isso menos antes de me descobrir.” Alfredo é o exemplo mais próximo. Sua família, que mora em Alagoas e é bastante conservadora, ataca o comportamento não-heteronormativo do filho, desde o uso de calças coloridas ao perfil dos amigos com quem anda. Roberto percebe isso e naturalmente se magoa. “Eu me incomodo. A mãe dele já se referiu a ele como veadinho. O Alfredo acha que não temos que falar nada, que é assim mesmo, que temos que ficar no nosso cantinho. Ele ri dos comentários homofóbicos dos pais. Eu não tenho esse entendimento. Todo tipo de homofobia já me irrita de uma forma muito forte. Diretamente a mim, não tenho do que reclamar. Por falta de ocasião. Senão com certeza eu ouviria muita coisa”, explica, num tom de voz que entrega a perplexidade com a qual enxerga a passividade do namorado. E as situações do cotidiano, mais observadas por Roberto nos últimos meses, não pedem licença para entrar nos estádios. Aliás, elas escancaram a porta de entrada do futebol como se ali estivessem em casa. Com cânticos ofensivos, jogadores enrustidos e tabu da imprensa esportiva em tocar no assunto, o futebol reflete da forma mais límpida e perversa a homofobia que rasteja pelos cantos da sociedade.
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“É um reflexo perfeito. As burrices da sociedade nas questões homofóbicas são iguais. Fora do futebol, o homem macho se achando superior, e dentro do futebol, também. Os times com a fama e os times sem a fama. É a babaquice de sempre.”
Elas e eles se assumiram. E agora? Segundo pesquisas da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais, a população de homossexuais no Brasil é estimada em cerca de 20 milhões de pessoas (aproximadamente 10% do total de brasileiros). Seria bastante difícil, portanto, acreditar que não há gays entre os mais de 28 mil jogadores profissionais do futebol brasileiro. São raríssimos, contudo, os atletas que “saem do armário”. A explicação é simples e triste. O meio futebolístico é homofóbico, e jogadores, assim como torcedores, têm naturalmente medo de se expor. No esporte nacional, levando em consideração outras modalidade, já são pouquíssimos os atletas declaradamente homossexuais, casos de Luiz Cláudio Alves da Silva, o Lilico, ex-jogador de vôlei; Michael, jogador de vôlei; e Mayssa Pessoa, jogadora de handebol. “Ao se assumirem, os jogadores estariam contribuindo para diminuir esse horror social do preconceito e da homofobia. Entretanto, é muito difícil, porque o ambiente do futebol ainda é muito machista, entre profissionais e entre torcedores”, analisa Mauricio Murad. Thaís, da Palmeiras Livre, e Isadora, da Palmeiras Antifascista, engrossam a opinião de Murad. É inegável que, ao ver alguns de seus ídolos se assumindo gays, parte dos torcedores iria parar para ao menos refletir sobre o preconceito por orientação sexual. Em contrapartida, outra parte – talvez a maior
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– daria as costas às “bichas” e possivelmente os agrediria de diversas formas. “Eu até acredito que, se eles assumissem sua sexualidade, engrossariam o coro contra a homofobia. Contudo, de que forma isso se daria, sendo que eles precisam dos empregos, muitos seriam demitidos e expostos para as organizadas que, majoritariamente, são homofóbicas? É complicado cobrar isso”, diz Thaís. Para efeito de ilustração, nos primeiros meses de 2016, circulou pelas redes sociais um comunicado da torcida organizada Estopim da Fiel, do Corinthians, com dizeres abertamente homofóbicos. “Homens que pintam o cabelo e usam brinquinho não são bem vindos na arquibancada! Isso é coisa de mulher ou de veado!!!”, constava no panfleto. “Não sei se os jogadores se assumirem atualmente seria uma boa, porque eles correriam perigo de vida, principalmente em relação às torcidas organizadas. Então é bem complicado mesmo. Seria um risco muito grande para a vida pessoal deles”, opina Isadora. No cenário brasileiro, um caso que chamou atenção nos últimos anos foi o de Emerson Sheik. O atacante até então do Corinthians, em 2013, publicou nas redes sociais uma foto na qual aparecia dando um selinho em um amigo. A publicação viralizou, ganhou manchetes e tornou-se motivo de piada entre torcedores. Houve corintianos que se engajaram numa campanha de publicar fotos de casais homossexuais com camisas do clube alvinegro para mostrar apoio ao jogador, que não se diz gay – na época, ele justificou o beijo como “coisa de amigos”. Qualquer demonstração de apoio, entretanto, foi abafada pela enxurrada de críticas e xingamentos principalmente de corintianos que se sentiram ofendidos por verem um ídolo (ele havia sido protagonista na conquista da Copa Libertadores, um ano antes) beijando outro homem.
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Lúcio, zagueiro do Palmeiras, o chamou de “bicha” de forma pejorativa poucos meses após o episódio do selinho. O jogador não foi sequer denunciado pela promotoria do Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD). Torcedores organizados foram ao centro de treinamento do Corinthians no dia seguinte à publicação da foto cobrar explicações, alegando que “aqui não é lugar de bicha”. Apenas dois anos depois a torcida organizada Camisa 12 foi condenada pela Secretaria de Estado da Justiça e da Defesa da Cidadania de São Paulo a pagar multa de R$ 20 mil por atos homofóbicos contra o jogador. A Constituição Federal brasileira não cita homofobia como um crime.
Integrantes da Camisa 12 levaram faixas ao centro de treinamento para protestar contra selinho de Emerson Sheik (Foto: Reprodução/Twitter)
Há exemplos menos famosos e mais contundentes no futebol – não apenas brasileiro. O potiguar Jamerson (apelidado de Messi) assumiu ser homossexual em 2010, quando era goleiro do pequeno Palmeira de Goianinha-RN. Na época, foi destaque
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em jornais e programas de televisão e se dizia enfim livre para se vestir e agir como quisesse. Seis anos depois, vestindo a camisa do Alecrim-RN, Messi tornou-se avesso a entrevistas por receio de represálias. Num jogo do Campeonato Potiguar de 2016, entre Alecrim e Portiguar de Mossoró, torcedores do time adversário o xingaram de “bicha” e “veadinho” ao longo de praticamente toda a partida, causando revolta dos colegas de time contra a arbitragem e o policiamento do estádio, que nada fizeram para coibir o comportamento discriminatório da torcida. Na Espanha, o árbitro Jesús Tomillero, de 21 anos, tornou-se símbolo do combate à homofobia no início de 2016, ao se assumir gay durante entrevista ao jornal El Español. A repercussão gerou ataques homofóbicos vindos das arquibancadas dos jogos em que trabalhava. A perseguição, que foi intensificada pelas redes sociais, resultou na desistência de atuar na arbitragem. Ele alegou estar cansado dos contínuos e massificados insultos e deixou precocemente a carreira para trás. A sensação é de insegurança, portanto, para homossexuais num espaço como o futebol. Entidades responsáveis por vigiar e punir clubes, jogadores e torcedores fazem vista grossa quando o assunto é a discriminação por orientação sexual. Tal quadro, no entanto, muito lentamente, vem apresentando indícios de evolução. “Na atualidade tem tido alguma melhora, discreta ainda, mas uma melhora nesse cenário de preconceitos e estereótipos no mundo do futebol”, aponta Murad. Em 2014, em meio à crescente da prática de gritos de “Ôôô… Bicha!” por parte da torcida do Corinthians – já acostumada a entoar “vai pra cima delas, Timão, da bicharada” em jogos contra o São Paulo –, o STJD, nos bastidores, alertou o clube sobre a possibilidade de punição caso algum jogador ou eventualmente torcedor que se sinta discriminado fizesse uma reclamação
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formal ao órgão, conforme apurado pelo jornal Lance! na época. De acordo com o então procurador-geral Paulo Schmitt, a proibição do “preconceito por sexo”, que consta no artigo 243-G do Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD) e se refere à discriminação por gênero, pode ser utilizada como base para eventual punição por homofobia. Imediatamente, a diretoria corintiana soltou, por meio de redes sociais, um comunicado dirigido à torcida pedindo o fim dos gritos de “bicha”. Passados quase dois anos, a prática segue corriqueira nos jogos da equipe em Itaquera. Apesar de ter sido pioneira no Brasil na prática de tal cântico, a torcida do Corinthians atualmente é apenas mais uma entre as inúmeras que já se acostumaram a gritar “Ôôô… Bicha!” quando goleiros adversários batem tiro de meta. A inspiração para brasileiros iniciarem o tal grito é o futebol mexicano. Lá, a torcida criou o hábito de berrar “Ôôô... Puto!” quando os goleiros cobram tiro de meta. O termo tem como significado popular “prostituto” ou “homossexual”. Com receio de multas da Fifa, a Federação Mexicana de Futebol iniciou uma campanha de combate à homofobia, mas os efeitos parecem irrisórios, a exemplo do que aconteceu com o Corinthians. E a Fifa, aparentemente, decidiu agir. No início de 2016, poucos meses após entrar na mira do FBI em uma das maiores operações anti-corrupção da história do futebol, a entidade máxima do esporte bretão puniu com multas as federações de Argentina, Chile, Honduras, México, Peru e Uruguai. O motivo? Torcedores de tais países, durante jogos das eliminatórias para a Copa do Mundo de 2018, entoaram o tal grito de “Ôôô… Puto!” contra goleiros adversários. As penalizações variaram de R$ 80 mil a R$ 277 mil. Em março, a Fifa, já sob comando de seu novo presidente, Gianni Infantino, anunciou a criação do “Prêmio Diversidade Fifa”, a ser divulgado em julho. De acordo com o comunicado
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publicado em seu site oficial, a entidade promete valorizar organizações que se comprometam com o combate às diferentes formas de discriminação no futebol. “Não há lugar para qualquer tipo de discriminação no futebol. Começamos a trabalhar com observadores especiais nos jogos para nos ajudar a punir violações de conduta nas eliminatórias da Copa do Mundo. No entanto, outro elemento importante da luta contra a discriminação é um trabalho pró-ativo e iniciativas educacionais que promovam e celebrem a diversidade em todas as suas formas”, disse Gianni Infantino. O histórico de corrupção e de cartolas criminosos na entidade que comanda o futebol mundial, denunciado ao longo das últimas duas décadas pelo jornalista escocês Andrew Jennings e externado pelas investigações do serviço de inteligência estadunidense, dá pouca legitimidade para quaisquer medidas anunciadas ou até mesmo tomadas pela Fifa. Volta a haver insegurança, portanto, mesmo quando os órgãos responsáveis dizem estar interessados em combater a discriminação. “Confiar na Fifa, de um jeito ou de outro, não dá, né? Esse tipo de coisa, apesar de ser uma medida importante... O interesse por trás disso é unicamente tentar conquistar a confiança dos torcedores. Não sei se vai adiantar algo, tomara que adiante. Mas para mim é mais um jogo de politicagem mesmo”, opina Isadora, mostrando-se pouco à vontade em compactuar com o órgão suíço. “Alguém confia na Fifa?”, endossa Thaís, entre risos irônicos.
Árduo caminho pela frente Há portanto, ainda que a passos de tartaruga, movimentos e ações que tornam possível sonhar com um combate efetivo contra a homofobia, seja no futebol ou na sociedade. Fato é que,
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por enquanto, medidas como as tomadas pela Fifa, por clubes ou por qualquer outra entidade que não se mostre efetivamente ativa na luta pela causa LGBT não tornam o futebol um espaço seguro para gays, lésbicas ou transsexuais – a exemplo do que acontece na sociedade. É importante destacar, contudo, a crescente da temática e, consequentemente, da discussão nos últimos anos. Por meio do aplicativo Google Trends é possível medir a frequência mensal com a qual uma palavra é citada na internet. Com exceção de alguns picos motivados por acontecimentos pontuais, fica evidente o aumento na procura pelo termo “homofobia”. Em 2004, primeiro ano de análise do Trends, tal palavra registrou um mínimo de dois pontos (numa escala de 0 a 100); em 2016, o mínimo foi de sete pontos (quase quatro vezes mais resultados na web).
(Imagem: Reprodução/Google Trends)
“Cresce muito o ativismo, mas talvez só porque agora estamos vendo o ativismo. Mas talvez não seja mais numeroso. Mas de toda forma: está maior ou mais visível. Mas aí a repressão está maior também. É bem assustador. A cabeça limitada das pessoas me assusta”, pondera Roberto Silva, com olhar perdido e assustado. Seja pelo aumento da visibilidade ou do número de coletivos, é certo que o “boom” de coletivos anti-homofóbicos
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– principalmente no futebol – é um fenômeno recente. E que vem tendo efeitos práticos, desde a publicação de um texto que ajude um torcedor a se declarar gay a broncas e mudanças de comportamento nas arquibancadas. Membros da Palmeiras Antifascista, por exemplo, não cantam trechos homofóbicos das músicas entoadas pela torcida de forma geral. “Pessoalmente, todas as músicas sobre o São Paulo que chamam de ‘bambi’, chamam de ‘elas’, eu não canto. E dá um desgosto. É muito desestimulante”, comenta, entre suspiros, Isadora. “Tive uma discussão na arquibancada com um cara num jogo contra o Internacional, no ano passado, porque ele não cantava, não gritava, não falava nada em apoio ao Palmeiras, só ficava chamando gaúcho de ‘veado’, essas coisas assim. Esse tipo de coisa desanima muito, vivo pensando em largar, em deixar de ir ao estádio”, completa. Por mais que organizações como a Palmeiras Antifascista e a Palmeiras Livre estejam conseguindo atingir pessoas – majoritariamente pela internet, mas, conforme citado por Isadora, também nas arquibancadas –, ainda é tudo muito pequeno comparado à quantidade de indivíduos coniventes com a homofobia. Roberto sabe muito bem disso. “Entre os torcedores comuns, existem tentativas, como as torcidas antifascistas. Mas fracas. Porque quem reprime vira e fala ‘olha lá os bostas’. Na verdade, o único meio é pegar no que pega no coração das pessoas”, opina. Roberto acredita que o caminho mais efetivo para cutucar os homofóbicos e assim tentar virar o jogo seja por meio de apelos de ídolos e clubes. Punições aplicadas pelos órgãos responsáveis, a exemplo do que já ocorre com o racismo, também seriam medidas válidas. Tais sugestões são assinadas embaixo pelos coletivos de combate à homofobia. É triste pensar, contudo, que tais medidas visam coibir apenas o comportamento homofóbico.
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Não se trata de mudar a cabeça do homofóbico, mas só deixar o sentimento discriminatório lá dentro.
Faixa estendida pela torcida Mancha Alviverde em 2012, em protesto contra o Palmeiras sobre a possível contratação de Richarlyson, jogador tido como homossexual no imaginário do futebol apesar de nunca ter se declarado (Foto: Reprodução/Twitter)
“O problema é que é difícil. É simplesmente difícil. É ruim porque a pessoa tem de crescer dentro dela. Ela não vai ver algo coerente e falar ‘Ah, é verdade’. É todo um processo”, diz Roberto. “Então é aquela coisa que desanima, faz pensar que vou morrer e não vou ver solução. O movimento é muito mais uma resistência, uma chance que se quer tomar para mostrar ‘nós existimos, vocês queiram ou não, estamos aqui e somos palmeirenses’. Vai melhorar? Muito provavelmente pouco ou nada. Mas vamos seguir aí”, completa, antecedendo um silêncio de muitos e muitos segundos, abafado pela respiração profunda e pensativa de entrevistado e entrevistador. Se há algo a se cravar, é que a luta será longa. Já vem sendo, aliás. Afinal, trata-se de um país onde são registrados cinco casos
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de violência homofóbica por dia, de acordo com relatório do hoje extinto Ministério das Mulheres, Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos7. Isadoras e Thaíses tomando a frente de uma militância que se faz muito necessária e Robertos se fazendo presentes nas arquibancadas dos estádios Brasil afora podem não ser as únicas soluções para o fim da homofobia. Mas estão contribuindo e muito para o crescimento do debate e para que a temática chegue no futuro aos cartolas que comandam o futebol. Quem sabe um dia Roberto e Alfredo poderão, nas arquibancadas do estádio do clube que amam, compensar o beijo que faltou naquele 2 de dezembro de 2015?
7 Governo provisório de Michel Temer extinguiu o Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos durante o processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff.
Elitização “Pai, quando você vai me levar pra conhecer a Arena?”
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Corintiano, maloqueiro e sofredor Isac Colombano é o estereótipo do torcedor corintiano. Morador do Itaim Paulista no extremo da zona leste paulistana desde que se conhece por gente, ele estampa na pele a paixão pelo clube de coração. A esposa e os três filhos não tiveram opção: todos torcem para o Corinthians. No trabalho, é sempre a mesma história: quando o Timão ganha, ninguém segura as piadas do chefe de manutenção de um dos empreendimentos mais valorizados da cidade de São Paulo; quando perde, fica impossível arrancar um sorriso sequer de seu rosto. Aos 37 anos, Isac tem rotina similar à de milhões de brasileiros. Acorda às 4h30 para encarar ônibus, trem e metrô pelos mais de 50 quilômetros que o separam de sua casa, onde mora há 12 anos por aluguel, e seu trabalho, no Itaim Bibi. Bate ponto às 8h e sai às 17h. Após mais uma viagem no horário de pico, chega em casa às 20h. Antes de se deitar, dá atenção à esposa, à filha de 17 anos, ao filho de 13 e à bebê de dois. “Minha vida é essa. Trabalhar e cuidar das crianças, botar o que comer dentro de casa. Brinco com as crianças, vou jantar
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e dormir”, conta, mexendo os lábios e franzindo a testa como quem passa um recado de “fazer o quê?”. Ao longo das últimas décadas, Isac tem se acostumado a utilizar justamente o Corinthians, sua maior paixão, como válvula de escape. De segunda a sexta, a rotina pode ser sufocante. Aos fins de semana, contudo, um bom e velho programa com a família regado a muitos gols e gritos nas arquibancadas tornou-se a principal forma de lazer. Tornou-se há um bom tempo, vale destacar. A primeira vez que foi a um estádio foi em 1990, na final do Campeonato Brasileiro daquele ano, entre Corinthians e São Paulo. Assistiu ao primeiro título nacional de seu clube nas arquibancadas do Morumbi e desde então acostumou-se a frequentar estádios. “A partir dali virei doente, virei quase psicopata. Minha mulher briga comigo porque eu bato a cabeça no travesseiro, no guarda-roupa, choro…”, conta, entre risos e com olhar penetrante, buscando compreensão pelos excessos. As maiores loucuras pelo Corinthians datam de 2012. Uma aconteceu; a outra ficou nos planos. Quando o time foi campeão da Libertadores, até então a maior obsessão dos mais de 30 milhões de corintianos, Isac faltou três dias seguidos no trabalho. “Foi épica aquela semana, tive dois comas alcoólicos. É isso aí. Sou corintiano doente”, lembra, sem o menor resquício de arrependimento. Cinco meses depois, ele gostaria de estar no Japão para assistir à participação do Timão no Mundial de Clubes. Aí não deu. “Só não fui para o Japão porque a mulher não deixou. Tiveram vários torcedores que financiaram. Eu queria ter feito um financiamento, um pacote. Mas na época era R$ 20 mil, aí minha mulher falou: ‘Você pode ir, mas me dê R$ 20 mil só para mim também’. R$ 20 mil é complicado, né?”, comenta, se referindo à esposa, que trabalha como artesã e divide a profissão com a rotina de dona de casa.
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Isac estampou o título da Libertadores na perna (Fotos: Arquivo pessoal)
Durante a adolescência e a juventude, ainda distante das conquistas que a equipe teria mais de 20 anos depois, ia aos jogos – majoritariamente no Pacaembu, por ser então a “casa” do Corinthians – acompanhado do pai e do irmão. Com o passar do tempo agregou ao passeio a esposa, com quem é casado há 17 anos, e os filhos, conforme foram nascendo. A distância de aproximadamente 40 quilômetros entre Itaim Paulista e o estádio localizado na zona oeste nunca foram empecilho para Isac marcar presença nas arquibancadas. Entretanto, quando soube, em 2010, que o clube enfim ganharia um estádio próprio e que a localização seria em Itaquera, bairro vizinho a sua casa, não pôde deixar de comemorar. A comemoração, contudo, foi em vão. Passados seis anos do anúncio de que o estádio seria construído e dois do primeiro jogo oficial em Itaquera, Isac percebeu que não conseguiria, agora na Arena, manter a assiduidade nas arquibancadas. A ida a um jogo acompanhado da esposa e dos três filhos poderia ultrapassar o custo de R$ 700 só em ingressos, descontando gastos com transporte e alimentação. No Pacaembu, ele diz que o mesmo programa familiar era feito com R$ 150.
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“Como fui muito ao Pacaembu com meu filho, ele sente hoje em dia muita falta. Me pede toda hora para levá-lo. E hoje que o estádio é do lado de casa, daria para ir andando, eu não consigo ir”, conta, com a voz fragilizada, como quem está se perdendo entre os pensamentos e o que está sendo dito. A última vez que Isac levou a família toda a um jogo do Corinthians foi no Pacaembu, no jogo que antecedeu a inauguração do estádio de Itaquera, em maio de 2014. Na ocasião, ele pagou R$ 30 por cada ingresso para ter acesso a um dos setores populares. De quebra, viu o Timão vencer o Flamengo por 2 a 0. “A Arena é muito elitizada. É muito elitizado esse negócio aí”, lamenta, agora amarrando o rosto, com cara de poucos amigos. “É muito caro. É muito outro mundo, né? É outro mundo, cara.”
Isac e os três filhos (Foto: Arquivo pessoal)
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Elitização em números O processo de elitização percebido por Isac vem marcando o futebol e a sociedade nos últimos anos. Seja no aumento dos preços de ingressos e camisetas do esporte bretão, seja no aumento do preço da comida, o brasileiro vem pagando mais caro pelo o que consome. Um levantamento feito pelo banco Itaú BBA e publicado pelo jornal Lance! em março de 2016 apontou uma alta de 89% no preço dos ingressos de futebol para jogos do Campeonato Brasileiro nos últimos dez anos. Levando em consideração o valor médio do bilhete corrigido pela inflação, o torcedor que pagava R$ 19,63 por jogo em 2006 passou a desembolsar R$ 37,06 em 2015. De acordo com a análise do banco, um dos fatores para explicar tal aumento diz respeito à inauguração de novas arenas, que teriam elevado os gastos dos clubes. No caso do Corinthians de Isac, os dados também chamam atenção8. A média de público da Arena Corinthians, em seus dois primeiros anos de funcionamento, saltou 40,1% em relação à do Pacaembu. A arrecadação com bilheteria, por sua vez, avançou 181%. Ou seja, ficou mais caro assistir aos jogos do “time do povo” no novo estádio. O preço médio dos ingressos dobrou – de R$ 29,44 para R$ 59,909. Tal cenário vai além do campo futebolístico. O preço de alimentos, por exemplo, avançou 99,73% no Brasil entre 2005 e 2014. Nesse mesmo período de dez anos, o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) apontou taxa de 8 Dados tirados de reportagem publicada pela Folha de S. Paulo em maio de 2016, assinada pela jornalista Camila Mattoso. 9 R$ 59,90 é o preço médio levando em consideração os preços mais baixos cobrados dos sócios-torcedores, que pagam mensalidades. Isac não se enquadra em tal situação.
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69,34% de inflação, inferior à alta da comida e dos ingressos do futebol nacional. “Aqui onde trabalho mesmo, esse prédio saiu como o metro quadrado mais caro de São Paulo numa matéria da Veja, com os flats. A gente aqui tem apartamentos de 35m², 42m² e 62m². O mais barato aqui é um milhão, sem nada, sem decoração. O de 62m² é um milhão e seiscentos. Esse decorado de 35 m² vendem por um milhão e meio”, descreve Isac, gesticulando com as mãos na tentativa de externar ao máximo quão incrédulo fica com tal realidade tão próxima de seus olhos. “É tudo muito pequeno. E mesmo assim vendem e compram por esses valores. E a ocupação está em 90%. É caro, mas tem gente pagando, então não baixam o preço. Quando vejo situações como essas, penso que a crise só existe para os pobres.” Outro dado que pode ser utilizado para destacar o processo de elitização do futebol brasileiro está diretamente ligado ao torcedor: as camisetas destinadas à torcida. Caso o corintiano Isac queira comprar uma camisa oficial na loja do clube, terá de desembolsar R$ 249,90, valor equivalente a 28,4% do salário mínimo. Para efeito de curiosidade, tomando como exemplo outros países onde o futebol é popular, uma camisa do Real Madrid custa € 70 na Espanha, ou 10,7% do salário mínimo local; do Manchester United, £ 90 no Reino Unido, ou 6,1% do salário mínimo local; do Bayern de Munique, € 65 na Alemanha, ou 3,5% do salário mínimo local10. Mas se por um lado torcedores “pagam o pato” em meio ao encarecimento de produtos ligados a seus times de coração, o mesmo não se pode dizer de outras classes de pessoas ligadas ao futebol brasileiro. Conselheiros (sócios do clubes por determinado período de tempo e que prestaram apoio político ao candidato vencedor das eleições) ganham ingressos das agremiações por praxe. 10 Dados de maio de 2016.
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Tal prática vem sendo colocada em xeque em protestos de algumas torcidas organizadas, como as do Corinthians por exemplo. O entendimento dos torcedores é de que boa parte dos associados – como o empresário Paulo Garcia e o jurista Antonio Roque Citadini – teriam condições financeiras para lá de suficientes de bancar seus bilhetes por conta própria, aliviando assim os cofres do clube. A situação se assemelha à recente discussão sobre os benefícios que o aumento da tributação de donos e acionistas de empresas traria aos cofres do Estado. Tal cobrança foi extinta em 1995, por Fernando Henrique Cardoso. Um estudo feito pelos pesquisadores Rodrigo Orair e Sérgio Gobetti, do Instituto de Pesquisa Aplicada (Ipea), e publicado pelo jornal El País em maio de 2016 sinaliza que o Governo poderia arrecadar mais de R$ 43 bilhões por ano com a volta de tal taxação sobre aqueles tidos como mais ricos. Fato é que, ao menos por enquanto, o que se vê é a população – principalmente a menos favorecida – apertando os cintos, seja dentro ou fora dos estádios. O corintiano Isac não é exceção. “Está tudo muito caro, essa é a verdade. Você não pode levar a família para ver um jogo. Aí pensa: ‘Bom, vamos dar uma volta no shopping, comer no McDonalds, sei lá. Antigamente íamos quase toda semana no McDonalds. Hoje em dia o próprio McDonalds te coloca esses lanches mais caros e seu filho não quer comer mais o BigMac, quer comer o lanche Anglus. Então cada vez que levo a família no McDonalds já dá uns 150 pau, muito caro. É tudo, né? Condução, combustível... Isso reflete em tudo, essa elitização está em todo lugar.”
Jeitinho para ir aos jogos na Arena Para quem se acostumou ao longo de praticamente toda a vida a frequentar estádios em busca daqueles 90 minutos de emoção
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frente ao Corinthians, seria impossível para Isac não conhecer a Arena. Poderia ela ser do outro lado do mundo que o morador do Itaim Paulista daria um jeito de assistir a alguma partida por lá. Imagine então sendo ao lado de casa. Por mais que não tenha condições de frequentar o estádio de Itaquera, Isac consegue driblar o sistema e, vez ou outra, entrar no empreendimento que mistura grama e porcelana e é estimado em mais de R$ 1 bilhão. E o jeitinho utilizado por aquele que se intitula “psicopata pelo Corinthians” passa pelo “boom” dos programas de sócios-torcedores adotados pelos clubes de futebol do Brasil nos últimos anos. Programas de sócios-torcedores têm como principal objetivo por parte dos clubes fidelizar o torcedor. Inspirados em modelos europeus como os dos gigantes Barcelona, Arsenal, Bayern de Munique e Benfica, tal movimento busca vender aos apaixonados por futebol prioridade na compra de ingressos, além de descontos, facilidades e outros benefícios. O fenômeno dos sócios-torcedores no Brasil teve início com os clubes gaúchos Internacional e Grêmio, nos primeiros anos do século 21. Um projeto chamado Movimento por um futebol melhor, criado pela Ambev no início de 2013, buscou interligar os programas de sócio-torcedores às principais redes de supermercados de olho no aumento do número de associados e de vendas de produtos com descontos a esses torcedores. A estratégia mostrou-se eficiente e, no intervalo de dois anos, foram registrados mais de 400 mil novos “torcedores de carteirinha” nos clubes Brasil afora, gerando uma receita superior a R$ 200 milhões. O Brasil é o único país com quatro clubes com mais de 100 mil sócios-torcedores (Corinthians, Palmeiras, Internacional e São Paulo). O funcionamento desses programas difere de clube para clube. Grosso modo, contudo, os associados pagam uma
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mensalidade às agremiações e, em troca, têm prioridade na compra dos ingressos para jogos de seu time de coração. Quanto mais assíduo o torcedor for no que diz respeito à compra de bilhetes, mais pontos ele soma; quanto mais pontos, maior a prioridade na hora em que se inicia a comercialização das entradas para as partidas. No que diz respeito ao Corinthians de Isac, o “boom” de associados foi um dos mais significativos do país nos últimos anos. Desde 2013, quando o Movimento por um futebol melhor passou a contar o número de sócios-torcedores, o programa corintiano Fiel Torcedor passou de 44 mil clientes para quase 130 mil. O programa existente desde 2008, portanto, triplicou o número de associados só nos últimos três anos, tornando-se o mais popular entre todos os clubes do Brasil. Mas então, por que Isac não se associa ao Fiel Torcedor? Não teria ele, assim, prioridade, descontos e demais benefícios na compra dos ingressos? Com a palavra, o próprio corintiano: “Então, já pensei em fazer isso aí de Fiel Torcedor. Mas não vale a pena. Porque você vai entrar lá atrás na lista de espera (de prioridade) pelos ingressos. Você não consegue fazer o Fiel Torcedor e já comprar um ingresso barato, porque quem é sócio há mais tempo vai ter mais prioridade que você. Aí vão sobrar ingressos caros do mesmo jeito”, reclama. Para atingir o mesmo patamar de prioridade que os associados mais antigos, é necessário pontuar. Para pontuar, é necessário comprar ingressos – inicialmente, sem prioridade, os mais caros, de R$ 80 a R$ 180. Ficar em dia com a mensalidade é obviamente obrigatório. Ou, seja, não se trata de um investimento simples. Entre os diversos planos disponibilizados pelo Corinthians a seus associados, o mais vantajoso para os torcedores interessados em frequentar os setores mais baratos da Arena é o plano Minha Vida, que custa R$ 80 por semestre. No início de 2015, o
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Corinthians promoveu a venda de um pacote de dez jogos, oferecendo desconto de 50% nas entradas (R$ 50 se tornou R$ 25). O clube trabalha com outro esquema de promoção: quando disponibiliza um pacote de três jogos, o torcedor que adquirir as três entradas ganha 30% de desconto em cada unidade (R$ 50 se torna R$ 35); se adquirir duas, ganha desconto de 25% (R$ 50 de torna R$ 37,50); se adquirir apenas uma, ganha desconto de 20% (R$ 50 se torna R$ 40). Tomando como base o primeiro semestre de 2015, que contou com 20 jogos em Itaquera, o Fiel Torcedor disponibilizou ingressos a preço mínimo médio de R$ 35,25 cada, já embutidas as seis mensalidades. Para conseguir o preço mínimo, no entanto, o associado teria que ter comprado todas as entradas, para assim ganhar o máximo em descontos. Ou seja, teria gastado, em um semestre, R$ 705. “Meu irmão tem o Fiel Torcedor há muitos anos, então ele consegue comprar ingressos no setor mais barato, de R$ 50, com a prioridade. Ele compra para todos os jogos, então fica lá na frente na fila. Na hora que você vê o procedimento todo que é para conseguir os ingressos, vê que não é tão simples se filiar a esse Fiel Torcedor, ainda mais se você quer fazer sua esposa e seus filhos associados também. É melhor juntar o dinheirinho e, uma vez na vida, pagar R$ 180 no ingresso”, pondera Isac, expondo sua opinião com clareza que indica que tal pensamento já passou por sua cabeça outras tantas e tantas vezes. O jeitinho usado por Isac para driblar o sistema e, então, assistir a alguns jogos na Arena é utilizar o cartão de associado do irmão ou da sobrinha. Nas raras ocasiões em que um dos dois não vai, ele paga o valor do ingresso ao irmão, pega o cartão emprestado e vai à Arena. Tal tática é suficiente para o corintiano fanático conhecer o estádio, mas não possibilita o programa em família nas arquibancadas, tão comum anos atrás.
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Isac ao lado da sobrinha, do irmão e do primo (Foto: Arquivo pessoal)
E mesmo tal jeitinho pode estar com os dias contados. No início de 2016, o Corinthians emitiu um comunicado em seu site oficial alertando os torcedores sobre a proibição do uso do cartão de sócio-torcedor por terceiros, podendo o portador do cartão ser barrado na catraca do estádio, e o dono, punido com perda de pontos. A fiscalização, contudo, ainda é ineficiente, apesar das ameaças do clube. Sem o cartão do irmão, Isac é considerado, na visão do clube, um “torcedor comum”. Primeiramente, não há desconto no preço dos ingressos. Ademais, a abertura da bilheteria só acontece após determinado tempo. Em tal tempo de vendas exclusivas aos associados, os setores mais baratos já têm seus ingressos esgotados. As opções que restam geralmente são de R$ 100, R$ 120 e R$ 180.
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“Se não fosse o Fiel Torcedor do meu irmão, eu nunca teria conseguido ir. Essa é a verdade. E pô… Você para e pensa… É um estádio de um bilhão. Se fizessem uma arena menos moderna, mas mais barata e portanto mais acessível seria melhor. Menos mármore e mais povão”, conclui Isac, com a voz frágil, num indicativo de tristeza e impotência.
Luta contra discriminação por classe social A elitização do futebol brasileiro tem como principal consequência a exclusão gradual das classes sociais mais baixas daquele que se tornou o esporte do povo com o passar das décadas no século 20. Para combater tal forma de discriminação, algumas pessoas vêm se organizando em grupos que debatem o tema e tentam propor ações que vão de encontro a tal processo. O coletivo Futebol, Mídia e Democracia é um dos principais exemplos do país. O objetivo de tal coletivo é justamente bater de frente com o elitismo que vem rondando o futebol brasileiro nos últimos anos. A base do Futebol, Mídia e Democracia é uma campanha intitulada “Jogo dez da noite, NÃO”. Com mais de dez mil simpatizantes por meio de redes sociais, a luta é contra a imposição da Rede Globo de agendar partidas de futebol 22h. Mas por que a Rede Globo transmite jogos às 22h? E por que isso é ruim para a maior parte dos torcedores? Como paga mais de R$ 500 milhões (divididos de forma proporcional aos clubes de acordo com a audiência que estes lhe proporcionam) anuais pelo direito de transmitir os jogos das equipes da primeira divisão do futebol nacional, a Rede Globo tem poder em uma série de decisões tomadas em conjunto com a Confederação Brasileira de Futebol (CBF). A maior de tais
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decisões diz respeito à adequação das partidas a sua grade horária de programação. Para os torcedores, isso é um mau negócio. Além da óbvia dificuldade em assistir a um jogo que acaba meia-noite e acordar no dia seguinte muitas vezes ainda de madrugada para trabalhar ou estudar, há as questões de segurança e transporte públicos. As principais capitais do país não apenas são palcos de casos de violência urbana como também reduzem a frota de ônibus, metrôs e trens a partir da meia-noite, justamente o horário em que milhares de pessoas estão deixando os estádios. Tal tema já foi discutido por deputados e senadores, que o veem como principal motivo para o esvaziamento das arquibancadas. A lógica de quem tenta acabar com os jogos às 22h é de que tal horário prejudica os torcedores, que indiretamente são os responsáveis por bancar as tais cotas de TV pagas pela Rede Globo aos clubes. Isso porque a emissora lucra com os patrocinadores e anunciantes, por isso investe nas direitos de transmissão. O interesse dos patrocinadores e anunciantes, por sua vez, é suas marcas chegarem justamente aos… torcedores.
Roda de debate do coletivo Futebol, Mídia e Democracia (Foto: Lucas Faraldo)
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“O primeiro passo é entendermos o futebol inserido na sociedade. O futebol é uma expressão cultural do nosso povo. Não é só uma mercadoria. Tem que respeitar o torcedor porque o torcedor é parte fundamental do espetáculo. O dia que o jogador entrar em campo, olhar para a arquibancada e não tiver nenhum torcedor, acabou o espetáculo, acabou o futebol”, explica, um tanto quanto enfurecida, Penélope Toledo, pesquisadora de sociologia do futebol, jornalista e integrante do coletivo Futebol, Mídia e Democracia. Outro coletivo que caminha em sentido contrário à elitização do futebol é o O Povo do Clube, formado por torcedores do Internacional. Tal movimento político-social foi criado com objetivo de acompanhar de perto a reforma do estádio Beira-Rio, que passou por modificações a pedido da Fifa para receber jogos da Copa do Mundo de 2014. A principal mudança diz respeito à setorização das arquibancadas, impedindo a circulação da torcida pelo estádio e aplicando novos preços pelos ingressos de acordo com os espaços aos quais eles são destinados. “Dirigentes viajaram para a Europa para pegar modelos e queriam repartir o estádio em inúmeros setores fatiadinhos e cobrando ingressos caríssimos por isso. Entramos numa luta ferrenha contra isso, para que o torcedor pudesse comprar o ingresso e circular por todo o estádio, assistir atrás do gol se quisesse depois ir para o outro gol, para que o torcedor tivesse essa liberdade. Nossos protestos renderam uma certa vitória. Ficou menos mau, vamos dizer assim”, conta Ivandro Rodrigo Morbach, um dos criadores do O Povo do Clube, se referindo à chamada “zona livre”, setor de 28 mil lugares do Beira-Rio onde a torcida tem liberdade para se mover. O processo de setorização, combinado com a mudança na tabela de preços dos ingressos, não é exclusividade do Internacional no futebol brasileiro. O corintiano Isac, por exemplo,
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percebeu, antes mesmo da inauguração da Arena Corinthians, que tal prática vinha sendo instaurada pelo clube já no velho e talvez não mais tão bom Pacaembu. “Antigamente, no Pacaembu, há uns anos, você torcedor comum podia ir na parte onde as organizadas ficam. Hoje em dia já não dá para fazer isso, eles têm o setor deles, divididinho. Parece que o clube não quer que se misturem com os outros torcedores, com o povo que paga os altos valores de ingressos”, comenta. Cercados em seu setor, as torcidas organizadas também surgem como grupos de combate à elitização. Formadas majoritariamente por pessoas de classes sociais menos favorecidas e marginalizadas pela opinião pública por conta de sucessivos casos de violência e ilegalidades como tráfico de drogas, as uniformizadas têm em sua essência a fiscalização e consequente cobrança – muitas vezes exagerada e violenta – do que acontece de errado no clube de coração. Maior torcida organizada do Corinthians com cerca de 100 mil associados, a Gaviões da Fiel foi pioneira de uma onda de protestos de arquibancada iniciada em janeiro de 2016. Com faixas nos estádios e caminhadas nas ruas de São Paulo, a uniformizada cobrou maior transparência nas contas do clube, afastamento de empresários e agentes de jogadoras das categorias de base do Timão, maior rigor e agilidade nas investigações de corrupção nas entidades que comandam o futebol nacional e o fim dos jogos às 22h. As manifestações ganharam adesão de torcedores ditos comuns, bem como de organizadas de outros clubes Brasil afora. “Começamos esses protestos porque já tem uns anos que já não ganhamos nada, só perdemos. Não tem mais festa nas arquibancadas, o povão não tem mais acesso aos estádios, tudo que a gente tinha de bom, de bandeira, de papel picado, de fumaça, foi tudo acabando junto com essa elitização que esses pilantras começaram a fazer. Tratam hoje o futebol como um produto, e o
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pobre e as torcidas organizadas estão sendo excluídos há muito tempo”, aponta Fabricio Pouseu, tesoureiro da Gaviões da Fiel. Ivandro, do coletivo O Povo do Clube, engrossa o coro puxado por Fabricio. O slogan do movimento colorado sintetiza a forma com a qual os participantes combatem a elitização: “Paz, povo e festa”. “Defendemos o futebol como cultura de paz, que é um debate que deve ser feito, mas não da forma como os elitistas fazem. Não queremos uma paz sem povo, sem festa. Tem que ter paz e festa com o povo humilde, trabalhador, negro dentro do estádio”, comenta Ivandro. “O debate vai além do futebol, diz respeito ao acesso do povo mais humilde de participar de todos os espaços da cidade, inclusive o estádio de futebol, que é um espaço para 50, 60 mil pessoas, que era frequentado até pouco tempo atrás pelo povo mais humilde. E agora ele passa a ser excluído desse espaço, do seu espaço de lazer. Essa luta é uma luta justa e legítima que temos de travar e vai além do debate específico do futebol”, completa, estendendo a temática para além do âmbito futebolístico. E é justamente fora das quatro linhas que os protestos iniciados pela Gaviões da Fiel chegaram. A explosão na mídia do esquema de superfaturamento de merendas escolares no Estado de São Paulo apontou o deputado estadual e presidente da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo Fernando Capez como um dos suspeitos de encabeçar a quadrilha. Quando promotor, na década de 90, ele declarou-se inimigo número um das torcidas organizadas, fechando a Mancha Verde e a Independente, de Palmeiras e São Paulo, respectivamente. As uniformizadas, que o acusam de generalizar todos os membros de torcidas como bandidos, não perderam tempo e, logo após o vazamento do escândalo da merenda, iniciaram uma série de protestos nas ruas e nas arquibancadas exigindo uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para
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averiguar o esquema. O que também não deixa de ser uma espécie de vingança contra Capez tornou-se luta por melhorias sociais. Protestar e lutar por pelo futebol e pela sociedade, contudo, parece ter seu preço. Em ao menos três oportunidades nos meses de fevereiro e março de 2016, a polícia militar foi acusada de agredir torcedores organizados nas arquibancadas e/ou no entorno da Arena Corinthians. Em uma das ações, policiais tentaram roubar uma das faixas de protesto da Gaviões, conforme relatos de jornalistas e torcedores presentes no estádio naquela ocasião. “Esses protestos que se iniciaram com a Gaviões são uma consequência da sociedade. Gente pobre, gente que reivindica direito ser oprimida pela polícia e pela sociedade de forma geral não é particularidade do futebol. A sociedade funciona assim. Reivindicar direito é criminalizado na nossa sociedade”, opina Penélope, do Futebol, Mídia e Democracia, a respeito da polícia mais violenta do mundo, segundo relatório divulgado pela organização Anistia Internacional em 2015. “O futebol está inserido na sociedade. Todos os problemas que se associam a ele são problemas da sociedade que são reproduzidos no futebol, como violência”, acrescenta.
Gaviões protesta em frente à Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Foto: Divulgação/Gaviões da Fiel)
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A elitização não é consenso apenas entre militantes que prezam pela democratização do futebol, da mídia e de outros alicerces da sociedade. O sociólogo Mauricio Murad também vê tal processo excedendo os limites da mercantilização, que, apesar de criticada pela militância, faz parte do mundo da bola. “A mercantilização excessiva do futebol – e este é um fenômeno mundial – gera processos de elitização e de exclusão, os quais indiretamente podem ser vistos como violências simbólicas contra os mais carentes, os mais necessitados, camadas sociais onde se situam imensas massas de torcedores”, explica. “Futebol é economia e mercado, sim, mas historicamente foi e é sobretudo e antes disso cultura, socialização, identidade, simbologia coletiva”, complementa.
Inserção dos mais pobres no ‘esporte do povo’ O combate contra a elitização não se limita a rodas de conversas entre militantes. Ações práticas vêm sendo feitas ou ao menos planejadas no futebol brasileiro, seja por clubes, parlamentares ou torcedores. Exemplos de fora do país também podem servir de inspiração para mudanças no cenário nacional. Em março de 2016, o Internacional anunciou a criação do “Estudante Colorado”. O projeto disponibiliza de mil a cinco mil ingressos a preços populares por jogo no estádio Beira-Rio para estudantes da rede pública de ensino. São bilhetes a R$ 10, valor bem abaixo dos R$ 80 que as entradas para não-sócios podem alcançar, e que miram um público que tende a se tornar, no futuro, clientela do clube. “O Estudante Colorado visa atrair ainda mais jovens torcedores, além de incentivar a frequência escolar, e já estará
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disponível na próxima partida”, diz o diretor de administração do Internacional André Flores, um dos idealizadores do projeto. Pulando do Rio Grande do Sul para o Rio de Janeiro, há também o que se destacar no que diz respeito à democratização das arquibancadas. O Vasco, em meio a situação delicada tanto futebolística quanto administrativamente, anunciou ao menos uma medida que “caiu bem” entre a torcida e assim colaborou para apaziguar os ânimos: planeja destinar parte dos ingressos dos jogos em São Januário para torcedores de baixa renda. A intenção, de acordo com o clube, é se inspirar no programa Bolsa Família, do Governo Federal, no qual famílias comprovam ter baixa renda e recebem de R$ 35 a R$ 77 por mês de acordo com informações de 2015 disponibilizadas pelo Governo. “Estou pensando numa fórmula... Tipo o Bolsa Família (...) O torcedor comprovaria sua renda no cadastro e aí daríamos o ingresso. Tenho que arrumar uma maneira de não marginalizar a camada popular, o Vasco é um clube popular”, comentou Eurico Miranda, presidente do clube cruz-maltino, em fevereiro de 2016, durante entrevista ao jornal O Globo. Nem só dos clubes, entretanto, precisam partir as ações em prol da democratização do futebol. Uma recente polêmica que chacoalhou a Inglaterra pode servir de exemplo para a instituições que comandam a modalidade no Brasil. A Premier League, principal liga profissional do futebol inglês, acatou protestos de torcedores de diversos clubes e delimitou um preço máximo a ser praticado pelas agremiações nos ingressos para torcidas visitantes. Os valores, que saltaram de £ 4 para até £ 60 entre 1990 e 2016, passaram a ter um teto de £ 30. Algumas agremiações, como o Arsenal, não somente aprovaram a medida como passaram a cobrar valores ainda menores, entre £ 20 e £ 30. O futebol brasileiro, por sua vez, ainda caminha a passos lentos (isso para não falar em marcha ré). A CBF não apenas
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se isenta ao não estipular valores máximos para cobrança de ingressos no Campeonato Brasileiro como coloca em seus regulamentos valores mínimos a serem praticados pelos clubes na hora de comercializar bilhetes. Em 2016, ao menos em tese, nenhuma agremiação da Série A está autorizada a vender entradas por menos de R$ 40, conforme consta no artigo 15 do quinto capítulo do regulamento específico da competição. Parlamentares envolvidos em propostas com impacto direto no futebol, por outro lado, tentam alterar essa situação. O deputado federal Orlando Silva, que foi ministro do Esporte durante o governo Lula, apresentou uma emenda nesse sentido à Medida Provisória 671/201511, a chamada MP do Futebol, que renegocia dívidas – majoritariamente oriundas de impostos – dos clubes com o Governo Federal em troca de contrapartidas. A emenda exige como uma dessas contrapartidas a comercialização de um mínimo de 10% dos ingressos a preços populares por parte dos clubes interessados em aderirem ao Programa de Modernização da Gestão e Responsabilidade Fiscal do Futebol Brasileiro (Profut). “Garantir ingressos populares também é um passo adiante. Ao mesmo tempo em que estamos fortalecendo o nosso futebol, não podemos permitir a exclusão dos trabalhadores dos estádios brasileiros”, diz Orlando Silva, a respeito da melhoria pela qual o futebol brasileiro precisa passar. A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das Torcidas Organizadas da Câmara Municipal de São Paulo, que se iniciou em 2015, teve seu relatório final entregue a Ministério Público, Prefeitura, Governo Estadual, Federação Paulista e clubes em maio de 2016. Entre as recomendações sugeridas pelos vereadores está a de que 10% da cota de ingressos mais baratos de cada 11 Convertida em Lei nº 13.155 em 4 de agosto de 2015
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estádio sejam colocados à venda para não-sócios, dando assim oportunidade para todos os torcedores assistirem aos jogos dos times de coração, sem precisar pagar bilhetes caros nem se associar aos clubes para conseguir concorrer pelos mais baratos. Além de clubes, cartolas e políticos, os próprios torcedores têm em mãos a possibilidade de (voltar a) inserir os mais pobres nos estádios de futebol, organizando-se assim em prol da democratização do “esporte do povo”. Criador do O Povo do Clube, Ivandro defende uma tríade de caminhos a serem segmentados e seguidos pelos torcedores nesse processo de luta contra a elitização. O primeiro desses caminhos seria a inserção de militantes nos clubes, seja por meio de chapas que concorram às eleições internas ou por meio de conselheiros que declarem apoio às chapas existentes. O próprio movimento O Povo do Clube é exemplo de tal estratégia, haja vista que foi criado em 2012 e, nas eleições coloradas de 2014, já conseguiu representatividade no conselho deliberativo do clube. “E aí quero alertar que esses programas de sócio-torcedor que querem implantar, criando até uma competitividade entre os clubes para ver quem tem mais associados, não vota. Sócios-torcedores não podem votar, diferente dos sócios das sedes sociais dos clubes. No Internacional, nós do Povo do Clube conseguimos fazer os sócios-torcedores terem direito de votar. Pelo menos no Inter, então, não são 100 mil pessoas só pagando mensalidade. Eles têm direito de votar. Ampliar a democracia do clube é uma luta que temos de fazer para empoderar os torcedores”, comenta Ivandro. Outro posicionamento a ser tomado pelas torcidas diz respeito aos protestos, a algo mais combativo portanto e que necessita de cuidado para não se tornar instrumento político ou massa de manobra de terceiros. Mexer com a opinião pública, seja por meio de faixas e músicas nas arquibancadas, passeatas
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nas ruas ou publicações em redes sociais, é um meio de pressão sobre os detentores de poder. Por fim, acredita-se que a terceira e talvez mais importante forma de os torcedores aderirem à luta pela democratização do futebol seja por meio de maior união e organização entre as diferentes torcidas, sejam elas uniformizadas ou não. Por exemplo, a Associação Nacional de Torcidas Organizadas (Anatorg), que é um órgão gerido por torcedores de diversas uniformizadas e tem como objetivo criar interlocução entre as torcidas, é alavanca potencial para a criação de agendas de pautas que unam os interessados em protestar contra a elitização. “Se o futebol é um patrimônio do povo brasileiro, é digno reivindicarmos política pública para que haja acesso popular ao futebol. E para reivindicar política pública precisamos de articulação nacional. É o caso de construirmos um modelo horizontal com todas as torcidas criando uma agenda de pautas, junto com uma frente que organize protestos com todas as torcidas numa mesma rodada do Campeonato Brasileiro no país inteiro, por exemplo. O torcedor, portanto, de forma organizada, tem que reivindicar seu protagonismo no futebol brasileiro”, explica Ivandro. A verdade é que meios e agentes para inserir as camadas mais baixas da sociedade nos estádios não faltam. É necessário, assim, maior visibilidade e organização dos que lutam pela causa. Enquanto a democratização não se concretiza, contudo, o que vai avançando cada vez mais é justamente a elitização. Em meio a tal debate, Isacs espalhados Brasil afora, na paradoxal condição de vizinhos e ao mesmo tempo excluídos do esporte que aprenderam a amar, vão seguir sentindo na pele as consequências da discriminação por classe social. “Enquanto não tiver um chacoalhão nesses dirigentes, não vai mudar. E a corda vai seguir estourando do lado mais fraco, o
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povo vai continuar pagando esse preço”, lamenta Isac. “A não ser que mude muita coisa, ou das políticas de esporte mudarem ou de eu ganhar na Mega Sena, não consigo me imaginar junto com minha família de volta ao futebol. É doido demais isso tudo. Tem que torcer pra mudar, né? Tem que torcer… Afinal, é isso que a gente é, né? Torcedor.”
Bibliografia
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