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Cobaia | Edição nº 4 - Outubro 2015

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A presente edição da Cobaia traz cinco reportagens que, embora não tenham uma conexão direta, têm em comum a complementação da aprendizagem jornalística. Concebida em sala de aula, desde a elaboração das pautas até a arte final, esta quarta edição da Cobaia traz a visão singular de nossos acadêmicos-repórteres sobre assuntos diversas vezes abordados pela imprensa. Essa visão de um grupo de cinco acadêmicos prestes a deixar os bancos escolares e encarar o mercado do trabalho traz frescor a temas como as delícias e decepções de ser fã, por exemplo. A repórter Fernanda Swirski tenta entender essas pessoas que saem pelo mundo atrás de seus ídolos e que veem na felicidade dele ou dela, a sua própria felicidade. Já o repórter Matheus Iltchechen investiga, por meio de um perfil, as marcas que uma, ou várias enchentes deixam na vida de uma pessoa. José Rossi Junior resgata a história do distrito canoinhense de Marcílio Dias, que já foi considerado o centro de Canoinhas, mas que hoje só vive das lembranças das glórias do passado, com moradores tentando manter sua história por meio de projetos que preservem seu patrimônio. A repórter Ana Laura Posselt nos leva à casa de uma família que até pouco tempo convivia com a escuridão noturna. Sem energia elétrica, tinha de usar a criatividade sem nunca deixar de sonhar com a luz. Por fim, Bruna Wagner perfila a dona de um tradicional café de União da Vitória, mostrando o quanto seu cotidiano está ligado à cidade e aos clientes que passam por seu comércio. São histórias relatadas por meio de personagens que trazem nas suas histórias, verdadeiras lições de vida. A mais importante, talvez, seja a que em meio as maiores adversidades, devemos manter o foco e correr atrás de nossos sonhos. Boa leitura! Edinei Wassoaski Professor coordenador da Cobaia

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A pouco mais de quatro quilômetros do centro de Canoinhas, um pequeno vilarejo apresenta mais do que apenas casas e moradores: Marcílio Dias tinha tudo para ser um grande centro empresarial, mas seu poderio econômico acabou ficando na memória dos moradores. A estação ferroviária foi desativada juntamente

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com a ferrovia, em meados da década de 1980. Ela, hoje, pertence à empresa que detém a concessão de utilização da ferrovia, mas assim como aconteceu em Três Barras, a estação pode, a qualquer momento, ser tombada como patrimônio histórico, passando a pertencer definitivamente à prefeitura do município, para então ser restaurada. Em Três Barras, município vizinho de Canoinhas, a estação foi tombada como patrimônio histórico no início dos anos 2000 e restaurada logo em seguida. Hoje é o principal ponto turístico do município e é mantida pela prefeitura.

palavra da PERSONALIDADE

liderança COMUNITÁRIA

O deputado estadual Antônio Aguiar, natural de Marcílio Dias e filho de ex-ferroviário, conta que residiu na estação durante sua juventude. Um de seus principais projetos é a luta pela preservação do prédio. “Quero restaurar totalmente a estação de Marcílio Dias, além disso, pretendo instituir o Trem do Contestado, que utilizará as ferrovias já existentes e desbravará histórias da região e do povo do planalto norte”, relata.

A professora aposentada de educação artística Fátima Santos, que é moradora de Marcílio Dias, faz questão de destacar a importância da estação para a história local. “A estação e a ferrovia foram muito importantes no desenvolvimento do nosso distrito. Foi por meio da ferrovia que se transportou muita gente e mercadorias”, comenta. Fátima também relata que, após a desativação da

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Um novo OLHAR

ferrovia, de certa forma o distrito perdeu importância econômica. “Era muita circulação de trens por aqui. Muitos vagões, muitos passageiros, muito movimento. Agora está tudo parado. Há muito tempo não passa mais trem por aqui”, conta. A professora comenta, ainda, que os moradores têm a esperança de que um dia a estação seja restaurada e o trem volte à ferrovia. “A estação precisa urgentemente de uma restauração. Muito se tem prometido sobre isso, mas até agora nada aconteceu. Os moradores querem muito ver nossa estação funcionando de novo e o trem passando por aqui, mesmo que seja só o de turismo”, diz.

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O jornalista Fábio Rodrigues, que em seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) discorreu sobre a história de Marcílio Dias, relata como surgiu a ideia de escrever um livro sobre o distrito. “Ouvia histórias de alguns amigos que moram lá. Eles falavam muito da estação, da ponte de ferro, das vivências deles. Aí percebi que a localidade tem um conteúdo sensacional e que, assim como eu, pouca gente conhecia.” O jornalista também destacou a relevância da estação ferroviária, tanto para o distrito quanto para o município de Canoinhas. “Comecei a pesquisar. Quando fui falando com os moradores de lá, fiquei sabendo de todo o potencial que a vila teve, principalmente quando o trem passava por lá. Os passageiros movimentavam economicamente o comércio: restaurantes, pousadas, mercados, açougues, farmácias. Foi uma vila que já teve de tudo e, por sua causa, Canoinhas se desenvolveu tanto. Sem a estação de Marcílio Dias, pouca coisa teria chegado à sede de Canoinhas.”

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Pai, mãe e cinco filhos conviviam em uma casa de três cômodos sem energia elétrica, até que a luz chegou à porteira

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Casemiro e Olivina aprenderam ainda crianças que quando o sol se punha, era hora de entrar em casa. Nascidos à luz do dia, não conheciam um lar com energia elétrica até seis anos atrás. Casados há trinta anos, vivem em Monjolo Velho, localidade no interior de União da Vitória. Os moradores brincam que, para chegar lá, tem de querer muito. Rosangela Matos explica que não chega a ser longe. “Você sai da cidade, que já é meio interior, aí chega em São Domingos, passa na igrejinha de Santo Antonio da Guaíra e chega. É rápido, mas de ônibus o caminho nunca acaba.”

Era uma vez um programa do governo federal que garantia energia elétrica para a população do meio rural. Criado pela então ministra de Minas e Energia, Dilma Rousseff, o Luz Para Todos iluminou mais de três milhões de famílias em 11 anos. Isso contabiliza cerca de 15 milhões de pessoas alcançadas. A Copel é a responsável por operar a maior parte do projeto no Paraná, e instalou mais de 76 mil ligações até 2012 – fase de maior intensidade de trabalho. A Companhia de Força e Luz do Oeste, a Campolarguense de Energia e a Paulista de Força e Luz – Santa Cruz também auxiliam na distribuição do programa. A energia elétrica está massivamente presente nas cidades e é indispensável na maioria das tarefas diárias. Mas o trabalhador, a dona de casa e o estudante só se dão conta da importância da luz quando ela falta. Tomar banho frio, não ter cafeteira de manhã ou ficar sem computador para trabalhar quebram a rotina e é preciso encontrar outros meios de fazer a hora passar. A vida moderna, nos grandes centros, precisa de tomadas. Mas, para muitas casas no interior, elas ainda são novidade. Mais de 257 mil casas ainda vivem sem acesso à eletricidade, o que deixou de ser a realidade em Monjolo Velho.

A FAMiLIA PIRUK Em 2008, a sala do seu Casemiro Piruk não tinha luz. Ao subir os quatro degraus de madeira velha da escada, era preciso ir no rumo da janela para descobrir onde pisar. Somente os donos da casa é que andavam com firmeza, sabendo onde cada móvel começava e terminava.

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Uma estante sem televisão ocupava a parede dos fundos, onde a esposa, Olivina Piruk, guardava as louças. “Minha avó que deu quando casei. E eu não usava com medo que quebrasse. Mas agora tem luz e eu vejo onde está cada prato pra não cair.” Ao chegar na comunidade, as casas ainda têm energia elétrica – a primeira propriedade tem até um telefone. Mas, conforme as moradias vão acabando, os postes desaparecem. A casinha azul, de madeira picada, é a última chácara de Monjolo Velho. Cinco alqueires divididos entre pequenas plantações de erva-mate e colmeias. Casemiro ri de si mesmo quando lembra que a falta de luz já o ajudou. “Fui tirar o mel e as abelhas estavam nervosas, vieram atrás de mim e eu me escondi no escuro, lá na cozinha.” Há seis anos, quando o último vizinho se instalou, os olhos da família ganharam cores. A penumbra rendeu-se às luminárias, que vieram no mesmo caminhão que uma geladeira, televisão e um fogão a gás. O vizinho, Silvio Posselt, conta que teve que ensiná-los a ligar a geladeira. “Parece exagero, mas tive de colocar na tomada e ensinar a guardar os alimentos. Eles só usavam sal para conservar.” Casemiro, Olivina e os três filhos que ainda moram na região se encontram todos os domingos. Ézio Piruk fala com orgulho da união da família. “Se os filhos não vêm na casa do pai, ele e a mãe vão até a gente. E tem fartura, com café da manhã, almoço e um bolo à tarde. Só não dá pra jantar porque é muito escuro pra voltar pra casa”. Apesar de não haver postes na estrada de terra, Olivina deixa a lâmpada da frente da casa acesa para guiá-los no caminho. Rose Baur, a última filha que se casou e saiu de casa, mostra o documento de liberação da passagem dos postes. “Olha isso, aqui todo mundo se conhece, mas ninguém deixou a luz passar dentro do seu terreno para chegar aqui em casa. O vizinho que chegou de fora, da cidade, é que se preocupou com a gente”. Dia 21 de outubro de 2008, a Copel iniciou a passagem dos cabos que trouxeram alegria para a família. Mas e com a comida, como é que fazia Olivina? “Tem um tanque de peixe ali, vê? A gente pescava de manhã pra comer no almoço e ia na venda comprar uma carne pra comer na janta. E quando matava um porco,

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tinha de chamar todos os vizinhos pra comer, senão estragava.” Ernesto, um dos filhos, reclama que tinha de andar quase dez quilômetros por dia para comprar comida ou fazer uma ligação. “Às vezes ia a cavalo, só quando o pai não estava trabalhando. Parece que agora eu nem tenho mais disposição de andar tanto.” Contrariando a premissa urbana de que tempo é dinheiro, a família Piruk sempre viveu no sossego. Na simplicidade da porteira vermelha de madeira, a educação interiorana é o que reina. Ao se aproximar da entrada, os doze cachorros aparecem para dar boas-vindas e chamar os donos, que vêm juntos receber a visita. Sem carro na garagem, sem garagem. Só dois cavalos que vivem soltos. “E pra que mais?”, ele pergunta sorridente. A energia elétrica trouxe incontáveis benefícios para a área rural, mas isso não mudou a forma como se vive. O silêncio que espera os pássaros no amanhecer, o cheiro de comida preparada lentamente na lenha e a inocência dos olhares que acreditam nessa vida calma permanecem inalterados. Como Olivina ensina, a vida não pode mudar porque ficou mais fácil. “A luz veio e a gente agradece, mas ela não é Deus. Ajuda, mas não deixei ninguém perder o costume que tinha sem luz. Tem que rezar pra ser protegido no escuro, olhar por onde anda, ter paciência pro céu agir.”

O PROCESSO João Marcondes, funcionário da Copel em União da Vitória, explica a abrangência do Luz Para Todos na região. “As famílias que participam são de baixa renda, que moram em assentamentos, localidades indígenas ou que fazem parte do Território da Cidadania. E também estão inclusas as escolas, postos de saúde, pontos de encontro da comunidade. Eles podem consumir até 220 kWh por mês e pagam só uma tarifa social, bem baixa.” Diariamente, Marcondes anda pelo interior, procurando os lugares distantes em que moram as famílias cadastradas e conhecendo as mais diversas técnicas para viver sem energia elétrica. “Tem lampião nas varandas, caixas com muito sal grosso para conservar carne, fogão à lenha sempre com água quente pra tomar banho, de tudo.” Ele acredita que o legal é participar do final da instalação, perto da casa. “A gente sente que está fazendo um

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bem, porque sabe o quanto isso vai ajudar a vida dessas pessoas”. Desde 2002, quando o programa foi criado, o governo já investiu R$ 16 bilhões no Luz Para Todos. Com a meta de universalizar o fornecimento de energia elétrica no Brasil, estudos são feitos a cada etapa para descobrir quantas famílias ainda estão de fora. O custo médio da instalação não é definido, pois depende do estado do terreno, condições de trabalho e situação de risco. Entretanto, para a família beneficiada, o custo é zero, arcando apenas com as despesas internas da casa, com a instalação de equipamentos, tomadas etc. A meta do governo era que todas as casas brasileiras tivessem energia elétrica até 2008. Mas, segundo informa o Ministério de Minas e Energia, o programa Luz para Todos tinha como base o censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE) de 2000, que apontava 2 milhões de famílias nas zonas rurais sem energia elétrica. Número muito menor do que as mais de 3 milhões de famílias beneficiadas até maio de 2015. Edição nº 4 - Outubro 2015 |

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União da Vitória e região sofrem, década após década, com as avassaladoras cheias e vazantes do rio Iguaçu. Aos moradores, resta apenas esperar pela próxima

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Fotos: Matheus Iltchechen

Em 2014, as chuvas, que se sucederam durante quase toda uma semana, fizeram com que o nível do rio Iguaçu, que corta os municípios vizinhos de União da Vitória, no sul do Paraná, e de Porto União, no norte de Santa Catarina, tivesse seu leito elevado em 6 metros, assustando e retirando cerca de 12 mil moradores de suas casas. Em 22 anos, essa foi a maior cheia do Iguaçu, atingindo 40% da área urbana do município. Embora menor do que as enchentes de 1983 e 1992, cerca de 15 residências foram avariadas de maneira irreversível pela enchente. Com 74 anos, a moradora do bairro Rocio, em União da Vitória, a aposentada Natália Waismann conta que, em 1983 - a maior enchente registrada na região -, não salvou nada porque “não imaginava que a água iria subir tanto e tão depressa”.

“Eu saí com a roupa do corpo só, deixei tudo. A água subiu muito rápido e uma vizinha passou aqui e me levou junto” Ela conta que, quando começava a lembrar das coisas que ficaram na água, era de dar desespero. “Mas não tinha nada pra eu poder fazer, só voltamos para pegar os cachorrinhos, pelo telhado, que boiaram em cima do colchão. Depois disso, a água cobriu até o forro.” Natália relata que foram três meses sem poder voltar para sua casa e, enquanto o nível da água baixava e a casa cheirava mal, ela, na casa de uma amiga com os filhos, lavava as roupas recuperadas pelo marido. “Nós tínhamos perdido tudo, não queria perder o resto que eu poderia tentar salvar. Enquanto eu levava as roupas, via muita gente jogando fora, porque achavam que não dava pra lavar, mas eu tinha que tentar. Depois disso,

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Natália Waismann: “Não queria perder o resto que eu poderia tentar salvar”

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muita gente começou a lavar também, mas a maioria via o estado em que estavam as roupas e jogava de volta naquela água barrenta.”

Muita sujeira se reuniu na casa de Natália e, como ela conta, em todo o seu terreno havia animais mortos e muito barro misturado com madeira e entulhos que, por sua difícil remoção, causaram alguns ferimentos na família. “Os meninos pisavam naquela lama e o pé afundava.

O problema é que tinham ripas e pregos por baixo daquilo. Eles ficaram muito machucados e com as pernas inflamadas, além de tudo”, contou. Há 40 anos moradora do bairro, Natália conta que criou seus cinco filhos em uma casa que, após a enchente de 1983, teve de ser reconstruída, mas nada mais foi como antes. “O meu velho depois da enchente disse que a casa estava toda torta, e que tínhamos de reconstruir. Fiquei debaixo de uma lona na parte dos fundos do terreno enquanto os homens faziam isso. Era um calor insuportável embaixo daquela lona, mas eu tinha de esperar.” O homem que remontou a casa fez tudo errado, segundo a aposentada. “Minha casa não era assim, era bem mais bonita. Era madeira de primeira, mas ele montou tudo diferente: minha área ali fora era maior, e aqui dentro não era assim. Ele nem colocou os sarrafos de porta e está assim ainda, sem acabamento, há 30 anos.”

A casa remontada após a enchente de 1983 ainda é a mesma e foi surpreendida por mais duas cheias do Iguaçu. Em 1992, a situação foi um pouco diferen-

te. Reconstruída nove anos antes, a casa teve seus móveis elevados com a ajuda de tocos de madeira, não sendo atingidos pela água, mas novamente obrigando a saída da família. Dessa vez, com Natália viúva.

“Quando voltamos para casa, não sabia de onde tinha vindo tudo aquilo, não entendia como”

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Após 22 anos de trégua, Natália conta que foi terrível reviver a experiência de ter sua casa invadida pela água - pela terceira vez.

“De volta aquela água vindo, sem ser convidada, entrando no terreno” De forma diferente, a aposentada relata que não seguiu os “caminhos” que nas cheias anteriores havia seguido. “A água sempre chegava pelos fundos do terreno, suja, e aí subia e alcançava a casa. Dessa vez não.” Ela conta que uma água limpa começou a sair dos bueiros, ou bocas de lobo, como se refere, e criou uma suposição para o fato. “A água subiu pela rua, por causa desses aterros todos que foram feitos, tanto aqui no bairro como em toda a cidade. Tem muito mais terra e construção do que nas vezes anteriores. A água já não vem pelo mesmo caminho.” Os móveis foram elevados mais uma vez. Natália, entretanto, não presumira que a água continuaria a subir. “Não esperava ter de sair daqui dessa vez. Umas pessoas que eu não sei quem são até agora pararam o bote na porta de casa e, como estavam oferecendo ajuda, eu fui.” Natália diz que por ela teria permanecido em sua residência mesmo com um “pouco de água”. Após um dia na casa de parentes, porém, abrigou-se na casa de seu filho Oscar, mais alta, nos fundos de seu terreno. “Fiquei lá três dias esperando a água baixar. Quando baixou, não dava pra ficar dentro da casa, e eu nem queria mais inco-

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modar o Oscar”. A aposentada ficou na casa de sua neta, criada como filha após a morte de sua mãe, que também fica no mesmo terreno. “Na minha casa, a madeira puxou muita umidade, então fazia muito frio dentro e vinha um cheiro forte de podridão do assoalho.” Depois do período na casa de sua família, a aposentada diz não saber mais onde estão suas coisas. “As paredes no fundo da casa despregaram, o assoalho ficou mais torto ainda, meu jardim com minhas plantinhas morreu todo. Mas o que vou fazer? Não estou achando mais o lugar onde deixei minhas coisas, não acho mais nada. Mas não me importo.” Embora a água tenha abaixado há mais de dois me-

ses, a aposentada ainda sofre com os efeitos na umidade em sua casa. O assoalho ficou repleto de lombadas e ela tem de prestar atenção para não tropeçar nelas. O medo da aposentada agora é que a água, mais uma vez, retorne inesperadamente. Sua casa pode não suportar mais uma cheia.

No bairro São Bernardo, também em União da Vitória, a situação foi ainda mais grave. A região é mais propícia a enchentes: quando o rio atinge 6 metros já invade dezenas de residências. A maioria de moradores já está acostumada com a situação. É o caso de Catarina e Otacílio do Amaral, que residem no bairro há mais de 50 anos. Em 72 anos de casados, e mais de 90 anos de

idade cada, essa foi a quarta vez que sua casa sofreu com os efeitos das chuvas. Dessa vez, contudo, não puderam salvá-la. A casa de madeira onde a família cresceu foi interditada pela Defesa Civil, logo após o nível do rio Iguaçu normalizar. “A casa é muito antiga e eu já tentei fazer com que se mudassem para outra casa, que eu mesmo ia construir, no fundo do terreno, mas eles sempre nega-

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“Não quero ter de sair daqui mais uma vez, não aguento mais essa situação”

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vam”, conta Alvir Castilho, genro do casal, que mora próximo a eles. Durante cinco décadas a casa nunca passou por nenhuma reforma, apenas pinturas e reparos, e suas áreas internas ainda abrigavam marcas da água. Desde julho o casal mora em uma residência alugada, próxima à antiga, enquanto esperam a nova casa ficar pronta. “Quando souberam que teriam que desmanchar a casa, Seu Otacílio chorou e falou que não queria ver ela ser desmontada. Mas ele é muito curioso, sempre vai dar uma olhada na obra da nova casa”, revela Olga Amaral, uma das quatro filhas do casal. Catarina sofre há alguns meses com perda da memória, portanto, não consegue se comunicar direito, mas a família sente sua tristeza em não poder mais morar na casa que a abrigou durante mais de 50 anos.

“Nas outras enchentes não tivemos muito tempo para tirar nossas coisas, alguns móveis só levantamos, mas sempre a família ajudou muito nessas horas”

Catarina Amaral sofre com esquecimentos frequentes

E, por fim, ele ainda afirma, munido de sua vasta experiência de vida, como se realmente previsse: “Vamos continuar recebendo a água em nossa casa”. E ele está coberto de razão, pois segundo a “Lei da Topografia”, que se encontra gravada em um placa às margens do rio Iguaçu, “Enchente maior está por vir”.

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Otacílio do Amaral nãoEdição nº 4 - Outubro 2015 | se desapega da casa antiga

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Fã - 1. Pessoa entusiasta de um artista, seja de cinema, teatro, televisão, rádio etc. 2. por ext O que tem muita admiração por alguém: Pedro é fã de Maria. Dicionário Michaelis

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Divulgação

Este foi o relato de uma fã até conhecer a banda RBD. A banda de origem mexicana foi lançada em 2004, após a exibição da novela Rebelde em diversas emissoras de televisão. Composta por seis integrantes, sendo três mulheres e três homens – Anahi, Dulce Maria, Maite Perroni, Afonso Herrera, Christian Chávez e Christoopher Uckemann -, a banda conheceu 116 cidades em 23 países. O grupo é considerado o mais bem-sucedido da história da música pop mexicana, por ter conquistado reconhecimento fora da América Latina. A banda RBD visitou o Brasil em fevereiro e em setembro de 2006, em abril de 2007, e em dezembro de 2008. Thamye Kessia Baseggio tinha apenas 13 anos na primeira turnê da banda no Brasil. Como não tinha idade para viajar sozinha, não encontrou nenhuma possibilidade para conhecer a sua banda preferida. “No começo não achei que fosse real, demorei alguns dias pra entender que realmente era verdade. Me senti desolada, mas não havia nada que eu pudesse fazer”, diz Thamye. Ela foi apenas no último show da banda no Brasil, logo após sair o anúncio que a RBD estava chegando ao fim. “Eu sempre digo que foi o melhor dia da minha vida. Esperei quatro anos para poder ir ao meu primeiro – e último – show e só aconteceu porque eu sabia que era a última turnê da banda no Brasil, já que no mês seguinte a

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banda terminaria. Fui uma semana antes para São Paulo, conheci uma menina que também ia ao show e fiquei na casa dela por três dias, até que, na quarta, eu fui acampar na fila do show. Conheci muita gente bacana lá, dormi na fila de quarta-feira até sábado, quando seria o dia do show. Foi uma sensação maravilhosa e indescritível ver aquelas seis pessoas que eu tanto amava tão perto e ao mesmo tempo tão longe de mim em cima do palco. Eu chorei do começo ao fim do show, e isso nunca tinha acontecido comigo, nunca senti algo tão mágico e surreal quanto naquele dia”, conta. A banda gravou inúmeras músicas, acompanhada das melodias espanholas. Thamye tem preferência por uma letra. Para ela, No Pares tem um significado importante. “Tenho várias músicas preferidas da banda, as letras são realmente emocionantes, mas a preferida sempre vai ser No Pares, já que é interpretada pela minha integrante preferida, que é a Dulce Maria , e a letra fala sobre a gente não desistir nunca de realizar os nossos sonhos”, diz. Edição nº 4 - Outubro 2015 |

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Rodrigo Berton

Ela conta que no começo da novela sua artista favorita era Mia (interpretada pela Anahí), mas com o passar do tempo, Roberta (interpretada pela Dulce Maria) virou sua artista preferida. “Passei a novela inteira encantada pela Mia e pelas suas atitudes de coração nobre, porém quando a novela acabou e os fãs puderam acompanhar um pouquinho mais a vida pessoal de cada um pela banda, descobri que a menina doce na vida real era Dulce María e a Anahí passou a não me interessar tanto assim’’, relata. A banda acabou em 2008 e desde então Thamye esperou até 2011 para que Dulce voltasse ao Brasil, dessa vez com carreira solo. “Fui sozinha até Porto Alegre (capital gaúcha) para realizar o tão esperado sonho de finalmente poder abraçá-la. Abracei minha doce menina e ainda fiquei na grade de seu show. Ela não poupou carisma e simpatia em cima do palco’’, conta Thamye. Ela reencontrou Dulce Maria no mês de agosto de 2011, na capital paranaense. Thamye comprou meet , que dá direito ao camarim da cantora. Para Thamye cada reencontro é indescritível e perfeito. Além de gostar de música estrangeira, a futura publicitária também é fã de um cantor de gênero sertanejo.

Thamye sendo “donzela” do ídolo Luan Santana

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Bruno Fioravante

Luan Santana, cantor sertanejo, hoje com 24 anos, atualmente é um dos cantores mais influentes no Brasil. Luan já conquistou discos de Platina e Ouro. Com uma das contas mais acessadas pelo Youtube, o vídeo Tudo o que você quiser, ao vivo em seu novo DVD, passou dos 117 milhões de visualizações, ultrapassando vídeos mais conhecidos como os de Justin Bieber, Britney Spears, entre outros. Com tanto sucesso, Luan encanta milhares de pessoas. Seu Twitter passa de 5 milhões de seguidores, e uma delas é Thamye. “Gostei de Luan desde que ouvi suas músicas em setembro de 2009, mas comecei a acompanhar sua carreira apenas em novembro de 2011. Luan apareceu na minha vida num momento delicado que foi quando terminei meu namoro de quatro anos. Encontrei no Luan e nas músicas dele um refúgio, fiz dele meu alicerce para superar um momento difícil”, diz Thamye. Ela já foi em 13 shows do cantor, nem todos em Santa Catarina, estado onde mora. Thamye já conheceu São Paulo, Paraná e Rio Grande do Sul. “O primeiro show que eu fui, foi em Porto Alegre, em maio de 2011. Depois disso, em novembro, teve show dele na minha cidade, que foi onde ganhei camarim e o abracei. A partir daí foi impossível não querer estar por perto sempre, não é?’’ Em 2012 ela foi em cinco shows dele, conseguindo abraçá-lo apenas uma vez, em Curitiba. Já em 2013, conseguiu ser Nega – que é a menina que dançava com ele um refrão da música em cima do palco. “Foi um sonho que eu pensei que não fosse possível realizar já que eu não sabia como as coisas funcionavam por trás do palco. Ganhei camarim e pedi a chance para dançar com ele, então eu tive de dar meu camarim para outra pessoa, mas fui presenteada com essa oportunidade incrível. Não parecia ser real, foi um daqueles dias que a gente não sabe se está sonhando ou se está acontecendo de verdade’’, conta emocionada. Pela segunda vez, em 2013, na cidade de Florianópolis, a fã conseguiu dançar com seu ídolo novamente. “Consegui ser Nega, já que sabia com quem falar para isso. Viajei quase 500 km só para vê-lo e valeu mais a pena do que nunca. Foi meu último show do ano e fechou com chave de ouro”, relata Thamye. Depois do DVD do cantor, gravado em julho de 2013, Luan trocou a Nega pela Donzela, como se chamaria a moça que dançaria com ele no palco. A partir daí nasceu outro sonho para Thamye. “No meu segundo show de 2014 eu ganhei a chance de estar com ele no palco novamente”, conta.

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Rodrigo Berton

A fã acredita que tem sorte com números ímpares, pois era seu terceiro show no ano, seu 13º show desde que começou a ser fã, e foi no dia 13 de junho. Thamye diz que já sonhou, já realizou, já se decepcionou, mas não deixa de ser feliz. Para ela, a maneira que o cantor tem de lidar com certas coisas é seu diferencial, a humildade, o jeito que ele mexe a mão na hora de cantar, a fresta entre os dois dentes, o sorriso torto são

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coisas que a encantam e não sabe explicar o porquê. Muitas pessoas se arrependem pelo que já fizeram por seu ídolo, mas ela diz que seu caso é diferente. “Eu tenho certeza absoluta que não me arrependeria. Como posso me arrepender de algo que só enche meu coração de amor?”, argumenta. Para ela, o significado de fã é um sentimento puro, é amar sem esperar nada em troca.

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Lucas Ferreira, estudante de Publicidade e Propaganda, tem 20 anos e é fã do fotógrafo catarinense Primo Tacca Neto. Com 34 anos, Tacca dedicou os últimos cinco à fotografia e vem figurando entre os nomes mais cotados da fotografia em ensaios de moda e beleza do Brasil. Tacca escolheu um público-alvo: as mulheres. Ele é um dos melhores fotógrafos do Brasil. Seu estúdio fica em Brusque (SC). Nele, além de seus ensaios, Tacca também oferece cursos para novos profissionais. Lucas diz que começou a se interessar pela fotografia no último ano do ensino médio. Os colegas gostaram dos trabalhos fotográficos, e o que era somente diversão virou profissão. “Faz uns quatro anos que comecei a gostar da fotografia, fiz trabalhos escolares destinados à fotografia, e a partir daí escolhi investir, e levar isso como profissão’’, conta. Um congresso foi o que fez Lucas virar fã de Tacca. O jovem conta que a partir daí começou a acompanhar a carreira do profissional, e não parou mais. “Conheci Tacca em um congresso em Curitiba, admirei muito seu trabalho e virei seu fã, sempre que posso acompanho seu trabalho em congressos e palestras’’, conta entusiasmado. Ele diz que o diferencial do fotógrafo é o modo que ele registra seu trabalho, e acha que tem muita coisa em comum com o seu método. Lucas diz que a melhor oportunidade foi conhecer o estúdio de Tacca e fazer seu curso aprendendo novas técnicas. “Foi uma experiência incrível fazer um curso com uma pessoa que tanto admiro, aprendi diversas técnicas, e desejo voltar assim que possível”, conta. Seu sonho é participar das mesmas coisas que Tacca participa, talvez, fazer uma futura parceria com o fotógrafo renomado. Para Lucas, ser fã é admirar, chegar ao mesmo nível da pessoa, além disso tentar ultrapassar, não copiar, mas se espelhar. “Acredito que é chegar ao nível da pessoa ou até tentar ser melhor, isso mostra que a pessoa tem categoria, dá bons exemplos e você quer segui-los”, afirma. Divulgação

Primo Tacca Neto

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Um grande artista sempre vai brilhar, como Elvis brilha em grandes festivais nos dias de hoje, mesmo por meio de covers ou documentários, ele sempre será o grande artista”, diz Julio orgulhoso. Hoje em dia, Julio guarda a discografia do cantor, acompanha o histórico pela internet e conversa com fãs do mundo inteiro. “Tenho amizades em vários países, graças ao meu grande Elvis, tem muita gente de bom gosto, que sabe o que é uma boa música e admira as letras de Elvis’’, diz Julio. Para ele, o sonho não acabou, pois ainda quer ir em uma exposição de Elvis, conhecer o que já foi dele, e visitar o seu túmulo. “Eu não sei quando vou conseguir viajar, pois o custo é alto, e acaba dificultando o acesso à exposição, mas olha, quero ir, conhecer mesmo que esteja com 90 anos, é meu grande sonho’’, afirma emocionado. Para o admirador de Elvis, ser fã é admirar mesmo sem ter um reconhecimento em troca, é gostar mesmo sem nada material. “Eu sei que não vou ter acesso a ele, pois já morreu, mas minha admiração pelo seu trabalho é enorme, e sempre vou acompanhar sua história, gosto de ir em shows, mesmo que não seja o próprio ali, mas um cover, pra mim ser fã é admiração, é querer conhecer a cultura do ídolo”, explica.

Divulgação

Julio de Assis, de 47 anos, é fã do cantor Elvis Presley. Desde criança Julio ouvia as músicas do cantor, por influência dos pais. Na época de sua adolescência, Elvis era o artista do momento. O jovem menino sonhava em ir a um show, ficar perto do cantor. Mas, para ele, infelizmente, o sonho não se realizou. Elvis Aaron Presley se tornou ícone da cultura popular, ficou conhecido na década de 1950 como um dos pioneiros do movimento Rock and Roll. Elvis também era reconhecido pela maneira extravagante de dançar e se vestir. Seu estilo ainda é referência nos dias de hoje. Em 16 de agosto de 1977, o mundo se surpreendeu com a notícia da morte de Elvis. O motivo foi um colapso fulminante associado à disfunção cardíaca. Julio, assim como os milhares de fãs espalhados pelo mundo, ficou em choque, de luto. O jovem ouvia o rádio com as homenagens junto às lágrimas que caíam em seu rosto. Para Julio, um cantor de verdade nunca tem fim na sua história, mesmo após a sua morte, continua fazendo sucesso. “Ouvia ele quando era criança, meus pais ouviam, e com certeza vou ensinar meus filhos a ouvirem.

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Para a psicóloga Fernanda Silva da Costa, tornar-se fã é passar a conhecer tudo sobre a outra pessoa, ou seja, entregar-se para viver a vida de outra pessoa. Ela diz que isso ocorre porque as pessoas são movidas pelo prazer. “Quando alguma coisa boa satisfaz, a tendência é repetir essa ação. A mesma coisa acontece com os fãs, algo que tem no artista, algo de sua personalidade atrai emocionalmente, gerando um prazer, ou seja, a necessidade de viver algo bom foi preenchido como ver um show de algum artista. Ter essa experiência é bom, desde que a pessoa consiga manter seu equilíbrio emocional”, diz Fernanda. “Manter o equilíbrio é saber dosar as várias funções que detém como pessoa no meio social”. A psicóloga usa como exemplo uma garota adolescente que tem de exercer alguns papéis na sociedade: a função de ser filha, de ser uma estudante, de ser uma garota que tem amigas, de ser uma namorada, de ser fã do Luan Santana entre outras funções, e todos esses papéis são vividos ao mesmo tempo e precisam ser cada um desempenhado com doses de dedicação moderada. “A partir do momento em que essa garota dedicar todo o seu tempo em função de um único papel aí sim passa a ser algo prejudicial, pois ela deixa de viver as outras obrigações para se dedicar a alguém que muitas vezes não tem o conhecimento dela como pessoa”, diz a psicóloga. “Quando a pessoa passa a viver a vida do outro ela esquece por completo que tem uma vida, tornando-se algo patológico”. Esse comportamento é definido como neurótico. “Ter um comportamento neurótico é exagerado, passa do equilíbrio emocional. A pessoa responde à vida através de reações vivenciais não normais, com ansiedade desproporcional, como por exemplo, passar mal, como vemos em várias fãs que acabam desmaiando ao ver seu ídolo bem de perto. Assim, o neurótico tem plena consciência do seu problema e, muitas vezes, sente-se impotente para modificá-lo”, conta Fernanda. A psicóloga explica que ser neurótico não é ser louco. Como tem plena consciência de seu fanatismo/obsessão, são pessoas que sabem amar, gostar, que têm sentimentos pelos outros, não é algo que interfere na sua inteligência e eles têm o contato com a realidade. O que pode estar alterado no neurótico é a quantidade desses sentimentos. Uma fã que tem seu comportamento exagerado demonstra ser mais ansiosa, mais angustiada, mais deprimida, mais sugestionável, mais teatral, mais impressionada, mais preocupada, com mais medo, enfim, tem as mesmas emoções que qualquer pessoa, porém, em quantidade que compromete a adaptação. “Caso não tratado, tal comportamento pode levar a algum grau de incapacidade social e/ou profissional, como cometer atos ilegais ou fazer uma ‘loucura’ por um ídolo. É preciso tomar cuidado. Quando o fanatismo começa a se tornar prejudicial, é preciso procurar a ajuda de um profissional”, completa a psicóloga.

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Rosa Kowalski tem 58 anos e há 22 é proprietária do Café Expresso no Calçadão de União da Vitória. Desde 1991 ela faz café expresso com os grãos que o Café Tropeiro fornece. O espaço de Rosa é pequeno, não possui banheiro e é preenchido pelos balcões cheios de salgados, doces, balas, sucos, achocolatados, sorvetes. O ambiente tem duas portas e as janelas já foram fechadas e cercadas por grades, pois a segurança já não é a mesma

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desde a abertura do café. O ponto passou por outros donos antes de Rosa. O último foi seu ex-patrão, Ilário Krespo. Ele tinha um restaurante e lanchonete, com o nome El Sambero, que funcionava em frente ao Posto Nunes, na avenida Manoel Ribas. Ela trabalhava para ele no restaurante e existia outra funcionária que era responsável pelo quiosque do café. “Ele não cuidava direito, abria nos horários que queria,

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às dez da manhã e fechava meio-dia, abria novamente às duas e fechava às cinco”, conta Rosa. Em 1991, Krespo queria vender o ponto e ninguém se interessava, até que Rosa fez alguns empréstimos e comprou o café. “Foi bem sofrido, trabalhei por três anos para conseguir pagar os empréstimos”, relata. No começo o café não tinha muitos produtos e estrutura. “Tinha uma máquina de café antiga, espalhava vapor por todo espaço, tinha um balcão aqui que como se diz era de pau a pique”, lembra. Naquele tempo ela trabalhava de domingo a domingo, conquistando sua clientela, pois era o único lugar na cidade que tinha café expresso. Ela conta que há uns 15 anos o ponto era frequentado pelos advogados da cidade. Todos os dias eles iam ao quiosque, tomavam seus cafés, liam os jornais, trocavam ideias com seus colegas de profissão e iam trabalhar. “Quando eu os via chegando eu já sabia qual era o tipo de café que gostavam e já deixava pronto, até hoje é assim com meus clientes”, expõe. Rosa tem clientes que frequentam o café desde

“Tinha uma máquina de café antiga, espalhava vapor por todo espaço, tinha um balcão aqui que como se diz era de pau a pique”

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que ela comprou o ponto. Alguns já estão velhinhos, outros já faleceram. Ela relembra de Acir Ayub e Chiquinho Abdala. “Eles eram clientes de anos, viviam no calçadão, eram pessoas bem simples e queridas. Conheciam muito bem a história de União da Vitória e Porto União. O seu Chiquinho faleceu bem velhinho”, rememora. Os fregueses de Rosa chegam ao café, a chamam pelo nome, fazem o pedido e sempre contam uma história do seu dia a dia. Alguns pedem um salgado, um doce, cigarro, tomam um café rápido antes de começar a trabalhar. Uma jovem chega ao café e já começa a conversar com a atenciosa dona do estabelecimento. Conta da cirurgia que fez nos dentes pelo Sistema Único de Saúde (SUS). “Fui tirar um dente no SUS e isso começou a me incomodar, acabei indo em um dentista e ele me disse que a minha cirurgia não foi costurada, ele mexeu na ferida e não me incomodei mais”, desabafa. Ela pede à Rosa um Nescau gelado e um pastel, marca na sua conta e diz que paga na outra semana a dívida de R$ 16,75. A renda vem do café, do que tira no mês com o quiosque. Rosa diz que não é um ‘dinheiro grande’, mas dá para sobreviver. Conta que no tempo do calçadão as coisas eram melhores. “Vendia bem para as meninas das lojas, antes elas e outros clientes não me perguntavam o preço do café, hoje quem entra aqui é essa a

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primeira pergunta que faz. Parecia que naquela época as pessoas não se importavam em gastar o dinheiro com um café para começar o dia”, comenta. O lugar ainda tem clientes fiéis, que trouxeram os filhos e hoje trazem os netos. A cartela de clientes variou bastante nos últimos 15 anos, a maioria dos advogados não frequenta mais o local, e o público se diversificou, são pessoas da cidade, do interior, de fora da cidade que aparecem. Com a abertura das padarias e lanchonetes, as pessoas se dividem, vão a outros lugares. “Hoje eu não abro mais aos sábados à tarde, domingos e feriados, não há mais essa necessidade. Até pelo fato de eu não ter banheiro aqui, eu dependo do pessoal do comércio em volta. Uma vez fui pedir ali na farmácia, eles me disseram que o banheiro era só para o gerente, fiquei muito chateada”, explica. Rosa acredita que no tempo que existia o calçadão as coisas eram melhores. O local era muito bonito, com suas árvores e bancos. Nos finais de ano existiam palcos onde aconteciam as apresentações e muita gente vinha assistir. “As mães tinham a liberdade de deixar as crianças brincando no calçadão enquanto iam às lojas. Meus clientes compravam um jornal e sentavam aqui em volta para ler e tomar um café. Eu tinha mais público. Hoje isso não acontece, as pes-

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“Parecia que naquela época as pessoas não se importavam em gastar o dinheiro com um café para começar o dia” soas não ficam à vontade, não têm segurança pela passagem dos carros e o pessoal não para pra ver as lojas, pois não há estacionamento. Acho que não melhorou em nada o comércio com a abertura para a caneleta”, diz. A época de abertura do calçadão para a implantação de uma via foi por volta de 1996/97. Ocorreu uma reunião com os lojistas na prefeitura e os idealizadores dessa abertura foram três, um deles Rosa não lembra, mas os outros dois foram, Rui Jacobs, do Magazine Jacobs, e o outro foi Nelson Straube, dono da loja Arcon. A ideia era de as pessoas passarem na frente das lojas de carro, almejando mais clientes. Foi discutido e a via foi construída. “As lojas que tinham aqui eram a Arcon, Farmácias Minerva, Loja Olga, Fliperama, Alisson Discos, Jacobs, Restaurante do Enio. Lembro de todos eles porque sempre me dei bem com a vizinhança”, acrescenta. Nesse período existia outro quiosque no calçadão, mas a prefeitura fez um acordo para retirá-lo. O café também deveria ser retirado, mas não foi possível porque

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as pessoas se revoltaram, fizeram abaixo-assinado e os advogados que ali frequentavam ajudaram a manter o espaço. “Os advogados diziam que ali era o lugar deles e ninguém iria tirar. Muitas vezes eu pensei em aceitar um acordo, mas nunca foi possível por causa dos advogados, eles tinham muita influência na cidade. Faz 12 anos que ninguém mais toca no assunto de tirar o quiosque do lugar. Eles queriam esse espaço para fazer estacionamento”, esclarece. Os advogados que mais ajudaram foram Helio Bueno de Camargo e Dr. Irapuã. Eles iam às reuniões sobre o calçadão e a retirada do quiosque. “Dr. Hélio sempre me ajudou muito, ofereceu até uma sala na casa dele para que eu pudesse montar o café, mas não foi necessário e a gente continua aqui, quase se aposentando e lutando”, recorda. Entra no café Sandra, chama Rosa e começam a conversar. A cliente paga sua continha e diz que vai numa degustação de vinhos no centro. “Vou degustar o vinho do Di Sandi, de Bituruna. O vinho é muito bom!”, frisa. Além disso, as duas conversam sobre os animais que Rosa ajuda a cuidar. Sandra vai embora dizendo que vai trabalhar.

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Rosa não atende apenas pessoas, ela tem clientes muito diferentes. “Eu atendo clientes de quatro patas também. Tem muitos animais abandonados, aqui eles sabem que sempre tem comida e água. Teve gente que começou a se importar demais com isso e quis fechar minhas portas. Os cachorros ficam em volta, não dentro do café. Eu brigo por causa dos bichinhos, não por causa de gente”, afirma. Nesse momento entram três homens no quiosque, dois aparentam ter um pouco mais de idade e um mais jovem. Eles pedem café. Um deles entra falando inglês, justificando-se que com a Copa encontrou uma namorada gringa. “Rosa, me empresta o celular aí, quero falar com a minha namorada”, brinca. O outro já faz uma piadinha sobre chaveiro. “Sabe, Rosa, passei na frente do chaveiro esses dias e estava escrito lá, ‘revela-se segredos’. Entrei e perguntei ao rapaz um segredo e ele disse que não sabia nenhum”, conta rindo. O mesmo homem da piadinha do chaveiro, diz que está trabalhando no Mato Grosso do Sul e veio para União da Vitória porque estava de folga. Continuaram por ali por mais um tempo, conversando entre eles e reparando no Polaco, cachorro de rua que Rosa cuida. Sempre que pode ela faz mais pelos bichinhos, castra e acha um lar para eles. Ajuda também outras pessoas que cuidam de animais, como Cecília, que mora em São Cristóvão e ficou famosa por cuidar de mais de 50 animais em sua casa. Os clientes de Rosa entram nesse assunto. “Tem as meninas que cuidam dos cachorros aqui na cidade, não lembro o nome delas, mas é bonito o que

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vocês fazem”, discorre um deles. Ela já comenta com um deles se não querem comprar Polaco, em uma tentativa de doar o cachorro, mas os homens apenas brincam que vão deitar no lado do quiosque para ver se vão ser bem cuidados como o cachorro. Ficam por mais um tempo, pagam R$ 9 pelos cafés e vão trabalhar. Rosa está cuidando de dois cachorros da raça poodle de Cecília em seu apartamento. Ela mora na rua Sete de Setembro, com mais alguns amiguinhos. Tem seu gatinho e cachorrinhos, sempre muito bem cuidados e limpos. “Eu saio daqui e vou para casa, lá pego eles e saio dar uma volta, pois eles precisam caminhar, fazer suas necessidades. Às vezes levo Polaco para casa. Tem até uma cachorrinha que me visita, fica lá e depois volta para a sua casa. Alguns cachorros que já cuidei e achei uma casa, acabam voltando e ficam por ali, em volta do café, eles não ficam nos lares novos. Os comerciantes já conhecem eles e não tratam mal”, conta. Se depender de Rosa, uma mulher amável, que gosta de gente e de conversar, o quiosque se man-

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tém por mais alguns anos. “Pretendo ficar mais uns 15 anos com o café, pois me aposento com o salário mínimo e não dá para sobreviver”, pondera. A vida toda ela trabalhou assim, em restaurantes, hotéis e no seu negócio. Terminou o Ensino Médio, pensou em fazer faculdade, mas não foi para frente, até por falta de tempo. “A gente era do interior, o pai falava que a mulher não precisava estudar, o marido iria bancar, mas eu percebi que a coisa não era bem assim e comecei a lutar”, expressa. Rosa é uma pessoa muito amável, gosta de conversar, tem uma animação muito grande. Realmente é uma mulher que tem vontade de viver. Com seus 58 anos, aparenta se cuidar, tem bonitos cabelos loiros e seus olhos verdes realmente te convidam a tomar um café enquanto engata uma conversa. “O cafezinho faz parte da minha vida, acho que outra coisa eu não saberia fazer”, conclui. Chega um senhor no quiosque, de cabelos brancos e óculos. Pede para Rosa três maços de cigarro. Segundo a dona do café, ele vem comprar cigarro para a esposa, Heloísa. Eles jogam conversa fora e o senhor vai embora. Com o passar do tempo chegam mais clientes e fazem seus pedidos, cafés daqui e dali, alguma coisa para comer e os assuntos vão indo e vindo. Conversam sobre o tempo, sobre a vida, sobre o dia de cada um. É assim que Rosa passa o tempo em seu quiosque. Faz cafés, vende seus produtos, põe a conversa em dia com seus clientes, trata seus amigos de quatro patas e vai levando a vida.

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