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ANO 24
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MAIO/2016
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20 000 exemplares
A espada do Brexit paira sobre a Europa
E mais...
N
a Batalha da Inglaterra, entre julho e outubro de 1940, a força aérea britânica evitou a catástrofe, conservou a independência de Londres e lançou as sementes da derrota final nazista, em 1945. A Europa de hoje é, em algum sentido, um fruto daquela batalha. Em poucas semanas, será travada uma nova Batalha da Inglaterra. Dessa vez, o teatro de combate são as urnas do plebiscito britânico sobre a permanência na União Europeia. Como em 1940, estará em jogo o futuro da Europa. Brexit é a contração Em Manchester (Inglaterra), eleitores portam cartazes que defendem o voto pela ruptura da popular da expressão “saída Grã-Bretanha com a União Europeia, no plebiscito convocado para 23 de junho britânica” (Britain exit). No lado do Brexit alinham-se as forças “eurocéticas” abrigadas principalmente no Partido Conservador e no ultranacionalista Partido da Independência do Reino Unido (Ukip). As crises do euro e dos refugiados são as armas brandidas pelo exército antieuropeu. No lado oposto, perfilam-se o primeiro-ministro David Cameron, com parcela dos conservadores, o Partido Trabalhista, os nacionalistas escoceses e a maior parte da elite empresarial e financeira. A Grã-Bretanha não ocupa o núcleo da União Europeia, composto pela parceria entre Alemanha e França. Também não faz parte da Zona do Euro. Mesmo assim, uma retirada britânica assestaria um golpe profundo no projeto europeu e, por extensão, na ordem geopolítica do Ocidente. A Europa está em jogo, mas há algo mais. Na hipótese de saída britânica, os nacionalistas escoceses teriam todos os argumentos para exigir um novo referendo sobre a permanência da Escócia no Reino Unido. De fato, um triunfo do Brexit poderia implicar a desagregação da própria Grã-Bretanha. A sorte está lançada. Veja as matérias às págs. 6 a 9
Grande Sertão
À sombra do barão de Coubertin espectro da Grécia Antiga paira sobre o Ocidente desde os tempos da Renascença. No final do século XIX, auge da Belle Époque, Pierre de Frédy, o barão de Coubertin, evocou o espírito dos deuses gregos para criar o movimento olímpico. Os primeiros Jogos Olímpicos da era moderna realizaram-se em 1896, exatos 120 anos atrás, em Atenas. Coubertin olhava para o seu tempo quando promoveu uma suposta ressurreição das olimpíadas gregas. De fato, respondia a demandas das elites políticas e culturais de uma Europa embriagada pela crença no progresso, na tecnologia e no Estado-nação. O movimento olímpico exaltava o individualismo, a honra, o patriotismo e o militarismo. Além disso, cultuava o higienismo, a disciplina social e a estética da forma física. De 1896 para cá, muita coisa mudou, com a profissionalização de inúmeros esportes. Mas o “ideal olímpico”, com sua pesada carga ideológica, continua a animar o espetáculo quadrienal que se instalará no Rio de Janeiro em agosto. Pág. 10
© Nova Fronteira/Divulgação
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© Divulgação
© Oli Scarff/AFP
● O Meio e o Homem – A modernização portuária do Brasil avançou mais rápido que a implantação das infraestruturas viárias de escoamento de mercadorias. Pág. 2 ● Editorial – Os políticos estão na berlinda – com toda a justiça. Mas inexiste saída fora da política. Pág. 3 ● Há 70 anos, Juan Domingo Perón inventou o peronismo. A Argentina nunca mais foi a mesma. Pág. 3 ● Primeiro turno das eleições peruanas evidenciou a cisão do país entre o fujimorismo e o antifujimorismo. Pág. 4 ● Diário de Viagem – A polaridade política e geográfica entre Johannesburg e a Cidade do Cabo reflete a dupla alma da África do Sul. Pág. 5 ● Um século atrás, por meio de um acordo secreto, britânicos e franceses delinearam as fronteiras do Oriente Médio. Hoje, essa ordem estatal implode sob as vagas de uma guerra de âmbito regional. Pág. 11 ● A Operação Lava Jato inspira-se na Operação Mãos Limpas, que varreu a Itália duas décadas atrás. Temos lições a extrair dela. Pág. 12
Nº 3
Gutemberg de Vilhena Silva Especial para Mundo
Gargalos rodoviários reduzem a eficiência dos portos brasileiros
A
construção histórico-geográfica dos portos no Brasil implicou um legado que vai das instalações rudimentares, implantadas logo após o “descobrimento”, até os grandes complexos portuários e terminais especializados hoje existentes ao longo de toda a sua costa. Essa evolução teve pontos de destaque importantes: em 1808, a “abertura dos portos às nações amigas”; no final do século XIX, as principais concessões para exploração dos “portos organizados” e das ferrovias de acesso; na ditadura militar, a implantação de terminais especializados, compatíveis com a industrialização, como instrumento da prioridade exportadora dos Planos Nacionais de Desenvolvimento (PND). A partir da lei de modernização dos portos, de 1993, que dispõe sobre o regime jurídico de exploração das instalações portuárias, foram criadas algumas definições, com destaque para o porto organizado, ou seja, construído e aparelhado para atender às necessidades da navegação, da movimentação e da armazenagem de mercadorias, concedido ou explorado pela União, sob jurisdição de uma autoridade portuária. Diante de várias dificuldades, a lei de modernização dos portos sinalizou para uma reestruturação da atividade baseada em princípios de desregulamentação e descentralização. No Brasil, existem 34 principais portos públicos, entre marítimos e fluviais [veja o mapa]. Desse total, 16 são delegados, concedidos ou têm sua operação autorizada à administração por parte dos governos estaduais e municipais. Além dos portos marítimos, há também 62 portos secos em funcionamento em diversos estados, situados em zona secundária, onde são executadas operações de movimentação, armazenagem e despacho aduaneiro de mercadorias. No Brasil, mesmo que a circulação por cabotagem tenha sua importância, predomina o transporte de longas distâncias. Os principais produtos movimentados são minério de ferro, mercadorias conteinerizadas, combustíveis, grãos de soja, fertilizantes, milho, bauxita, trigo, maquinário em geral e farelo de soja. Desde 2002 os portos nacionais vêm apresentando aumento nas exportações e diminuindo as importações. Além do aumento das commodities agrícolas e minerais estimulado pelo crescimento da China, os preços internacionais desses importantes
Principais portos brasileiros Porto de Santana
Porto de Manaus Porto de Santarém
Porto de Belém
Porto de Vila do Conde
Porto de Itaqui Porto de Fortaleza
RR
EXPEDIENTE
Terminal Salineiro de Areia Branca
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Porto de Natal
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MA
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BA
MT GO MG MS SP
ES RJ
Porto de Cabedelo Porto de Recife Porto de Suape Porto de Maceió Porto de Salvador Porto de Aratu Porto de Ilhéus
Porto da Barra do Riacho Porto de Vitória Porto do Forno
Porto do Rio de Janeiro Porto de Niterói Porto de Itaguaí Porto de Angra dos Reis Porto de São Sebastião Porto de Santos SC Porto de Antonina Porto de Paranaguá Porto de São Francisco do Sul RS Porto de Itajaí Porto de Imbituba Porto de Laguna Porto de Estrela Porto de Porto Alegre Porto de Pelotas 1.000 km 0 Porto de Rio Grande
PR
Fonte: ANTAQ, 2015
produtos na pauta de exportações brasileira foram inflados por movimentos especulativos nas bolsas de mercadorias mundiais. Com a crise econômica de 2008, o cenário do comércio mundial tomou um novo rumo. Grandes economias como os Estados Unidos e a França sofreram com suas exportações, principalmente os produtos que agregam alta tecnologia. As dez principais mercadorias movimentadas nos portos organizados (minério de ferro, soja, combustíveis e óleos minerais, açúcar, milho, fertilizantes e adubos, farelo de soja, produtos químicos orgânicos, plástico e suas obras e trigo) representaram 68,4% da movimentação de cargas nessas instalações. A China se tornou o maior parceiro dos produtos brasileiros, superando os Estados Unidos, parceiro principal entre as décadas de 1970 e 2000. A Argentina posiciona-se na terceira colocação em trocas comerciais com o Brasil via portos. Na Europa, França e Alemanha são os grandes nomes das relações bilaterais com o Brasil via portos. Nos casos desses dois países, as importações brasileiras chegam a superar as exportações, sobretudo com produtos de alta tecnologia. O Porto de Santos, em São Paulo, continua sendo o mais relevante do Brasil e também da América Latina, com movi-
mentação de contêineres muito superior a qualquer outra no cenário nacional. Contudo, quando avaliamos as taxas de crescimento nos últimos anos, dois portos amazônicos, os de Belém e de Vila do Conde, ambos no Pará, destacaram-se no período 2002-2012, em razão da alta no preço das commodities por eles exportadas. O Brasil enfrenta grandes dificuldades em seu sistema portuário. A carência de vias de acesso e de investimentos em infraestrutura aumenta o custeio dos preços dos fretes, comprometendo diversos produtos, principalmente os perecíveis, e prejudicando a competitividade dos portos. A dispersão da malha rodoviária brasileira é um agravante, visto que é por ela que ocorre o transporte de cargas e o tráfego urbano. A solução desses gargalos de infraestrutura, uma tarefa de médio e longo prazos, propiciaria importantes avanços de produtividade portuária, criando condições para a evolução da pauta de exportações em longas distâncias. Gutemberg de Vilhena Silva é professor de Geografia Política na Universidade Federal do Amapá e bolsista de Pós-Doutorado do CNPq no exterior
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2016 MAIO
PANGEA – Edição e Comercialização de Material Didático LTDA. Redação: Demétrio Magnoli, José Arbex Jr., Nelson Bacic Olic (Cartografia) Jornalista responsável: José Arbex Jr. (MTb 14.779) Revisão: Jaqueline Ogliari Pesquisa iconográfica: Thaisi Lima Projeto e editoração eletrônica: Wladimir Senise Endereço: Rua General Brasílio Taborda, 218, São Paulo – SP. CEP 05591-100. Tel/fax: (011) 3726.4069 / 2506.4332 E-mail: pangea@uol.com.br www.facebook.com/JornalMundo Assinaturas: Por razões técnicas, não oferecemos assinaturas individuais. Exemplares avulsos podem ser obtidos no seguinte endereço, em São Paulo: • Banca de jornais Paulista 900, à Av. Paulista, 900, São Paulo – SP. Fone: (011) 3283.0340 E-mail: bancagazeta@gmail.com
www.clubemundo.com.br Infelizmente não foi possível localizar os autores de todas as imagens utilizadas nesta edição. Teremos prazer em creditar os fotógrafos, caso se manifestem.
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texto publicado à pág. 4 da edição nº 2 (abril/2016) de Mundo H&C, sobre a reforma curricular, tem como coautor Ruy Lozano, licenciado em Ciências Sociais pela USP, professor do Ensino Médio e coautor do livro Geografia: Contextos e Redes (Moderna).
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“Ontem, a Câmara dos Deputados do Brasil aprovou a abertura do processo de impeachment quase nenhum dos de-
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O
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A
A saída é política
americano)
–
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seguiram a mesma linha, colocando
pelos deputados faz parte de um processo inevi-
em destaque o total despreparo político, para dizer
tável e necessário de aprendizagem.
o mínimo, dos parlamentares brasileiros diante de
acusação oficial, a de que o seu governo praticou
No Brasil, mesmo muito daqueles que apoiaram
‘pedaladas fiscais’. Em vez disso, citaram razões como ‘para você, mamãe’, ‘pela paz em Jerusalém’, ‘pelos corretores de seguros’, ‘pelos caminhoneiros’, ‘para que não nos tornemos vermelhos, como na Venezuela e na Coreia do Norte’.” Foi assim que a revista britânica The Economist , uma das mais respeitadas do mundo ,
o impeachment se sentiram incomodados, não repre-
Não há atalhos, caminhos curtos para a construção de uma democracia. A “decisão da maioria” demanda, antes de mais nada, a consciência de que há maiorias e minorias, e portanto diferenças. A co-
sentados pelo festival de barbaridades apresentado
esão social só pode ser mantida pela interlocução
de
Dilma Rousseff. Mas
D
putados que fizeram uso da palavra mencionou a
uma crise de grande magnitude.
pela
Câmara. Restou
um gosto de ópera-bufa, de
– e este é, precisamente, o Negar a política equivale a in-
e respeito às diferenças
perplexidade para aqueles que de fato se preocupam
lugar da política.
com o destino do país.
terromper o diálogo e transformar as diferenças em antagonismos, em choques inconciliáveis.
noticiou a abertura do processo de impeachment
Uma reação possível – de fato, a mais previsível – é a condenação genérica dos políticos e da própria atividade política como um todo, sentimento
Dilma Rousseff, em 18 de abril. Poderia ter
reforçado pela decepção de muitos com o governo
de várias encruzilhadas emaranhadas. Se há uma
PT. Mas a negação da política é a pior “saída” possível, até por não representar saída alguma. Bem ou mal, o Congresso Nacional reflete o nível de consciência política do eleitorado brasileiro, e é essa realidade que o país deve enfrentar. Nesse sentido, o grotesco espetáculo promovido
saída no horizonte, ela será possível se – e apenas
de
também acrescentado a homenagem feita pelo deputado Jair
Ustra,
Bolsonaro ao coronel Brilhante
um dos mais implacáveis torturadores à
época da ditadura militar.
Outros importantes
jornais e revistas – incluindo Le Monde (francês),
El País (espanhol) e The New York Times (norte-
chefiado pelo
Éo
caminho para a desagregação social e o caos.
O Brasil está diante de uma encruzilhada, ou
se
– os cidadãos brasileiros tomarem para si a ta-
refa de determinar o seu próprio destino, o que inclui ir às ruas, quando necessário, e pressionar, desafiar e exigir seriedade e comprometimento de seus representantes.
Newton Carlos Da Equipe de Colaboradores
A
história me foi contada por um jovem peronista engajado como guerrilheiro. O que se segue foi presenciado por ele. Perón tinha de escolher um chefe de polícia. Reuniu os líderes das várias facções para comunicar sua escolha. “Mas esse senhor serviu à ditadura como policial”, reagiu um dos presentes, do plantel esquerdista. “Eu preciso de alguém que tenha experiência policial, quando eu quiser fazer guerrilha eu chamo vocês”, sentenciou Perón, encerrando a reunião. Juan Domingo Perón assumiu como presidente eleito da Argentina em junho de 1946, há 70 anos, no imediato pós-guerra, e governou por nove anos, consolidando o movimento peronista por meio do Partido Justicialista. Voltaria ao poder décadas depois, brevemente, entre 1973 e 1974, falecendo no posto. A política moderna argentina gira em torno do peronismo. Decifrar o peronismo continua sendo um desafio enfrentado com pouco êxito pelos historiadores. Versão “argentinizada” do fascismo? Ou fascismo de esquerda? Alguns falam em variante do bonapartismo, outros em feitiço populista com o ornamento da beleza jovem de Eva Perón ou simplesmente em “pai dos descamisados”, como o nosso Getulio foi o “pai dos pobres”. O conceito de caudilhismo fornece um elo de aproximação entre o peronismo e o getulismo, que produziu traumas políticos e mobilizou a diplomacia americana.
A foto, de 1951, mostra Juan Perón no auge de seu poder e prestígio na Argentina
© Archivo General de la Nación, Buenos Aires
O peronismo como esfinge
Uma biógrafa de Perón, a uruguaia Marisa Navarro, disse que ele era “excessivamente personalista”, traço que o colocava num mesmo saco com outros ditadores latino-americanos. Construiu monumentos em sua homenagem, trocou nomes de ruas, substituindo-os pelo seu, adorava ouvir discursos de exaltação a ele próprio etc. Tampouco suportava um mínimo de oposição. Mas teve apoio popular, algo que nem mesmo seus mais ferozes inimigos se dispunham a questionar. O peronismo foi o maior movimento de massas da América Latina, no qual se confundiam as cabeças de Perón e Evita, a primeira-dama e musa inspiradora dos “descamisados”. O argentino Jorge Abelardo Ramos, um nacionalista de esquerda, foi às origens. De modo sucinto, a crônica é a seguinte. Perón “percebeu” que a industrialização criara um enorme proletariado sem tradição de militância sindical e política, sem relações com as esquerdas tradicionais, uma “nova classe social que se constituía em enorme fator de poder”. Por isso num dos tantos golpes MAIO 2016
que se seguiram à derrubada do presidente Hipólito Yrigoyen, em 1930, no crack de Wall Street, e da falência do “projeto de hegemonia burguesa” na velha Argentina da classe média, escolheu o Ministério do Trabalho, mobilizou os “descamisados” e assumiu o poder em 1946. A influência do fascismo ficou clara na adoção de uma “terceira posição”, entre o comunismo e o capitalismo. Aliança de classes, em vez de luta de classes, e divisão da renda nacional, de modo igual, entre capital e trabalho. Não só a elite conservadora se opunha ao peronismo. Também comunistas e socialistas, cujos espaços o peronismo invadiu. O inglês H. S. Ferris lembra o que ele fez em matéria de salários e previdência, razão mais forte pela qual a “revolução libertadora”, que o derrubou em 1955, não conseguiu desmontar seu movimento. O peronismo voltou ao poder em maio de 1973, por meio de Héctor Cámpora, um preposto de Perón, e em outubro do mesmo ano, com o próprio Perón que retornava do exílio. Naquelas eleições, o caudilho obteve 64% dos votos. Levou à Casa Rosada, como vice, a segunda mulher, Isabelita, prenúncio do caos, já que se consumiam as resistências físicas de Perón. Com sua morte, explodiram os conflitos internos do peronismo, envolvendo guerrilheiros esquerdistas (os Montoneros), sindicalistas de todos os tipos e gângsteres de extremadireita, como José López Rega, “El Brujo”, que se instalou em palácio em parceria com
Isabelita, a herdeira e sucessora de Perón, golpeada em 1976. O peronismo precisou de 18 anos (de 1955 a 1973) para deixar claro que a Argentina não podia ser governada sem ele – e menos de dois (o curto período de Isabelita) para mostrar como se leva um país à ruína. Foram abertas as comportas para uma ditadura brutal e as crises que resultaram numa tragédia nacional. O que chegou a ser o maior movimento de massas da América Latina tornou-se mero objeto eleitoral Não só isso. O peronismo sempre teve personalidade ditatorial, mas com Isabelita e López Rega adotou o banditismo. Os militares que sobrevieram aos dois aumentaram a dose de crueldade. Com a redemocratização, no final de 1983, o peronismo tornou-se mero objeto eleitoral, sem feições definidas. Hoje, abriga o confronto entre um manipulador dos chamados “movimentos sociais” e um empresário milionário com a disposição de mobilizar eleitoralmente a classe média. A Argentina talvez seja o único país latino-americano com história de presença marcante da classe média nos embates políticos. Ela foi dominante no pré-peronismo. Néstor e Cristina Kirchner, os herdeiros mais destacados do peronismo, governaram por mais de 13 anos, entre 2003 e 2015. A recente derrota eleitoral de Cristina, que não fez seu sucessor, coloca um ponto de interrogação na longa história que começou há sete décadas e que se confunde com a trajetória da Argentina moderna.
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peru
Uma nação dividida pelo fujimorismo No primeiro turno das eleições peruanas, liberais e esquerdistas disputaram os votos antifujimoristas ogo mais, em 5 de junho, os peruanos escolherão seu novo chefe de Estado, no segundo turno das eleições presidenciais. O sucessor de Ollanta Humala será Keiko Fujimori, filha do ex-presidente Alberto Fujimori, que governou entre 1993 e 2000, ou Pedro Pablo Kuczynski, o PPK, um economista liberal que ocupou o cargo de ministro das Finanças no governo de Alejandro Toledo, na primeira metade da década de 2000. O primeiro turno, realizado em 10 de abril, não merece a qualificação ritual de uma “festa da democracia”, pois o órgão eleitoral oficial cassou as candidaturas de Julio Guzmán e César Acuña Peralta com base em frágeis argumentos técnicos. O centrista Guzmán iniciou sua campanha com apenas 5% das intenções de votos e alcançou em março, na hora de sua cassação, o segundo lugar nas sondagens, com mais de 20%. Sobram teorias conspirativas sobre o gesto do órgão eleitoral, que provavelmente exerceu influência decisiva na configuração do segundo turno. Sem Guzmán, os eleitores se dividiram desigualmente entre três candidaturas. Keiko venceu facilmente, com quase 40% dos votos populares, mas não obteve a maioria absoluta. PPK chegou ao segundo turno com 21% dos votos, pouco à frente de Verónika Mendoza, candidata da Frente Ampla, uma coalizão de esquerda, com cerca de 19% dos votos. No fundo, o país dividiu-se entre fujimoristas e antifujimoristas – e o segundo grupo partiu-se entre um arauto de políticas liberais, pró-mercado, e uma defensora de políticas intervencionistas.
O espectro de Alberto Fujimori pairou sobre a campanha presidencial pela segunda vez. Nas eleições de 2011, Keiko disputou o segundo turno com Humala, perdendo por estreita margem (51,5% a 48,5%). Fujimori, o pai, condenado por violações de direitos humanos e corrupção, cumpre sentença de prisão de 25 anos. Mesmo assim, dois quintos dos peruanos querem restaurar o fujimorismo, por meio de sua herdeira política. É que o nome Fujimori está associado à ordem e ao assistencialismo. O ex-presidente Fujimori conduziu uma campanha inclemente de erradicação do Sendero Luminoso, uma
© Congresso da República do Peru, Lima
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Keiko, filha do ex-presidente Alberto Fujimori, obteve quase 40% dos votos no primeiro turno das eleições no Peru, graças a uma plataforma assistencialista, na tradição herdada de seu pai
A esquerda na encruzilhada Verónika Mendoza rejeitou apoiar qualquer uma das candidaturas remanescentes no segundo turno das eleições peruanas. “Ambas representam a continuidade do modelo depredador e excludente que queremos mudar”, disse a terceira colocada no turno inicial, acrescentando, porém, que “o pior que pode acontecer a nosso país é o retorno do fujimontesinismo ao governo”. Na linguagem política peruana, “fujimontesinismo” faz referência à dupla Alberto Fujimori e Vladimiro Montesinos, o sinistro chefe do Serviço de Inteligência Nacional (SIN), responsável direto pelas perseguições políticas e violações de direitos humanos no governo de Fujimori. A segunda parte da declaração de Verónika evidencia a encruzilhada da esquerda peruana. A Frente Ampla não pode emprestar apoio ao liberal PPK, mas define o fujimorismo como inimigo principal. De fato, além de óbvias motivações ideológicas, a esquerda peruana abomina Keiko Fujimori por razões político-eleitorais. No fim das contas, o fujimorismo rouba o oxigênio da esquerda no país, controlando o eleitorado mais pobre. Há 40 anos, quando as ditaduras latino-americanas perdiam fôlego, a esquerda peruana emergiu como uma força política ascendente e coesa. Em 1977, uma coalizão esquerdista sedimentou-se na Frente Operária, Camponesa, Estudantil e Popular (Focep), disputando o eleitorado das principais cidades e de algumas importantes regiões rurais. A Focep estava longe de almejar realisticamente um triunfo eleitoral nacional, mas parecia abrir caminho para a consolidação de um grande partido de esquerda no país. Contudo, a oportunidade política da esquerda foi perdida com o início da insurgência armada do Sendero Luminoso, que atravessou toda a década de 1980 e pavimentou o caminho para o regime autoritário de Fujimori. Uma segunda encarnação da esquerda coagulou-se com a ascensão de Ollanta Humala. O antigo oficial militar iniciou sua carreira política na direita ultranacionalista, mas fez um brusco giro à esquerda, rendendo-se aos encantos anti-imperialistas de Hugo Chávez. Foi como um convertido ao chavismo que ele venceu o primeiro turno das eleições presidenciais de 2006, mas acabou batido no turno final por Alan García, o candidato do mais tradicional partido peruano. O apoio explícito e incisivo do caudilho venezuelano parece ter sido a causa decisiva da derrota. Humala chegou à Presidência em 2011, concorrendo como um candidato da esquerda moderada e derrotando Keiko Fujimori. No governo, porém, abandonou sua plataforma de esquerda, conservando as políticas econômicas ortodoxas do antecessor. Então, a esquerda desistiu de Humala, organizando-se na Frente Ampla e escolhendo Verónika Mendoza como sua candidata. A derrota de abril evidenciou que uma muralha separa a esquerda peruana da maioria do eleitorado pobre. O nome da muralha é fujimorismo.
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organização de insurgência armada de inspiração maoísta que operou com força na década de 1980. O Sendero Luminoso difundiu-se a partir do Departamento de Ayacucho, no centro-sul do país, para o altiplano central e as vertentes andinas e amazônicas setentrionais, praticando atos de terror e aterrorizando comunidades rurais. A prisão de seu líder, Abimael Guzmán, em 1992, marcou o declínio da insurgência, que ainda conserva pequenos bandos e realiza operações de impacto quase desprezível. Junto com o triunfo sobre o Sendero, Fujimori consolidou sua liderança por meio de uma política ortodoxa de choque anti-inflacionário e de incontáveis ações assistencialistas, que deixaram marcas profundas nos povoados pobres do interior. Keiko triunfou em quase todo o Peru setentrional, beneficiando-se principalmente dos votos dos pobres e das populações rurais. Ela venceu em Lima, surfando no eleitorado da periferia da metrópole, mas perdeu nas regiões centrais da capital. Por outro lado, o sul do Peru dividiu-se entre Verónika Mendoza, que triunfou no altiplano, e PPK, que venceu na populosa faixa litorânea. A fronteira do fujimorismo separa o Peru tradicional do Peru moderno. Nas cidades, uma classe média em expansão e os trabalhadores organizados rejeitam o populismo autoritário do ex-presidente. Desde a derrota de 2011, Keiko procura reinventar-se como liderança moderada, a fim de ultrapassar a barreira política do antifujimorismo. Durante a campanha, comprometeu-se a respeitar a democracia e os direitos humanos, garantindo inclusive que não tentaria promover um perdão judicial para seu pai. A sua manobra tática consiste em distinguir a herança econômica da herança política do fujimorismo. Ela promete estabilidade econômica e assistência aos pobres, rejeitando as soluções autoritárias do passado. O resultado do primeiro turno sugere que a reinvenção de Keiko não fracassou. Cinco anos atrás, a filha de Fujimori obteve 23,5% dos votos no turno inicial, contra 31,7% de Humala, que concorria numa plataforma de centro-esquerda. O salto para os 40% obtidos em abril confere a Keiko uma oportunidade excepcional de alcançar o grande prêmio. Contudo, a força do antifujimorismo não deve ser desprezada. Em 2011, cerca de metade dos eleitores de PPK, que chegou em terceiro lugar ao turno inicial, com 18,5%, preferiu eleger o candidato da esquerda, recusando a orientação de seu candidato e negandose a votar em Keiko. Hoje, as coisas inverteram-se e, ironicamente, é o liberal PPK que depende dos votos da esquerda para ultrapassar a herdeira do fujimorismo [veja o boxe].
2016 MAIO
Adriano Lucchesi Especial para Mundo
Johannesburg e Cidade do Cabo, duas faces da África do Sul
Cidade do Cabo (acima) e Johannesburg – associadas, respectivamente, ao Rio de Janeiro e a São Paulo por turistas brasileiros que visitam o país – são ícones de uma sociedade que tenta se reinventar na era pós-apartheid
© South African Tourism
rise política e econômica endêmicas, governo lutando contra processo de impeachment, desemprego e criminalidade aumentando a cada dia, êxodo de cérebros, reforma indevida na casa de campo, corrupção sistêmica atingindo as maiores empresas estatais do país, estádios superfaturados e ociosos, partido governista tentando salvar o projeto de poder. Por incrível que pareça, não estamos falando do Brasil. A nova República da África do Sul foi constituída em 1994, tendo como primeiro presidente eleito o xhosa Nelson Mandela, líder do Congresso Nacional Africano (CNA). Com o fim do regime do apartheid, o CNA deixou de ser um movimento clandestino, identificado com a luta de liberdade dos africanos contra a opressão neocolonialista e racista das metrópoles europeias. Na antiga África do Sul, os freedom fighters Nelson Mandela, Oliver Tambo e Walter Sisulu lutavam contra o regime do Partido Nacional de D. F. Malan, Pieter Botha e Frederik de Klerk. A partir de 1990, com a liberdade de Mandela, o CNA pavimentou seu caminho rumo ao governo. Saiu da obscuridade das townships para conquistar os Union Buildings, o palácio presidencial de Pretoria, sede do Poder Executivo. Com uma ascensão espetacular e um líder carismático, respeitado em todo o planeta, o CNA reinou pleno por muitos anos, sem enxergar qualquer movimento oposicionista que viesse a tirar o sono da cúpula do partido. Após a Presidência de Mandela (1994-1999), assumiu o posto seu vice, Thabo Mbeki (1999-2008). Exceto por uma política de saúde desastrada e equivocada, em especial com relação à prevenção da aids, Mbeki fez um bom governo na área econômica e alçou a África do Sul a uma posição de destaque no continente africano. Na área social, as transformações foram mais lentas que as demandas da população carente, mas houve avanços na habitação e educação, manteve-se o excelente nível da infraestrutura, as empresas públicas de transporte, comunicações e energia funcionavam a contento e as tensões raciais, embora sempre evidentes, recebiam do governo ordens de arrefecimento, não de inflamação. Com a eleição do zulu Jacob Zuma para a Presidência, em 2009, o CNA con-
© South African Tourism
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verteu-se de verdadeiro partido do povo sul-africano em mero herdeiro dos anos da luta pela liberdade, do legado de Mandela e, principalmente, da carta racial, para se perpetuar no poder. A grande maioria da população negra da África do Sul vota no CNA quase por instinto: gratidão, lealdade ou receio de mudanças. Mas o governo de Zuma é tão ruim que até mesmo este cenário começa a se embaralhar, e aumenta a demanda por mudanças. Disputas internas no CNA enfraquecem o partido, enquanto a oposição da Aliança Democrática, que governa a província do Cabo Ocidental, começa a ser percebida nas outras regiões do país. Os paralelos entre Brasil e África do Sul ultrapassam as esferas da corrupção e do desgoverno, manifestando-se também no cotejo das duas principais metrópoles. Johannesburg, como São Paulo, é o motor econômico da África do Sul e sua cidade mais populosa. A Cidade do Cabo, como o Rio de Janeiro, destaca-se pela extraordinária beleza de suas praias e montanhas, pelo modo de vida mais relaxado e uma MAIO 2016
economia centrada em serviços e turismo. Para o turista brasileiro que visita as duas cidades sul-africanas, a comparação com São Paulo e Rio é inevitável, embora as semelhanças limitem-se aos pontos citados e aos códigos telefônicos. Curiosamente, o código de Johannesburg é 11, e o da Cidade do Cabo, 21. Johannesburg situa-se na Província de Gauteng, que significa “Terra do Ouro”. Daí veio a riqueza da menor e mais rica província da África do Sul. O ouro, atualmente esgotado, possibilitou o financiamento de indústrias e o fortalecimento do setor financeiro. Sandton é o ícone da riqueza de Gauteng, enquanto Soweto mantém-se como a referência da luta de libertação e do período livre da vida de Mandela nos tempos do apartheid. Cidade de 4,5 milhões de habitantes (ou 7 milhões, considerando a região metropolitana), espalhada por diversos bairros e distritos interligados por highways com e-tolls (cobrança automática de pedágios), Jo’burg é conurbada com Pretória. Oferece vibrante vida cultural, noturna e
gastronômica, ignorada pela maioria dos turistas, que preferem dedicar seu tempo aos safáris, natureza e cultura de outras regiões do país. A aversão deriva, em parte, à injusta fama de violência que acompanha Jo’burg. Embora o centro da cidade de fato mereça cuidado especial, as demais regiões são relativamente seguras e possuem atrações que justificam o interesse dos visitantes. A Cidade do Cabo é, na opinião de muitos, a mais bela cidade litorânea do mundo. Além das atrações históricas e culturais do centro (conhecido como City Bowl), que preserva muitas construções do tempo da Companhia das Índias Ocidentais, a fantástica arquitetura Cape Dutch é uma singular fusão de culturas e etnias. Além das óbvias influências africana e europeia, a cidade também experimenta a influência asiática e muçulmana dos Cape Malays. A capital do Cabo Ocidental situa-se em uma península com 75 quilômetros de extensão em que mar e montanha se fundem em um espetáculo único da natureza. Ao contrário do Rio, onde as montanhas são dominadas por favelas, na Cidade do Cabo as montanhas são protegidas tanto pelos ricos quanto pelos pobres por uma cuidadosa legislação de parques nacionais que regula a utilização do patrimônio natural. A região turística é segura, e muitos avanços sociais vêm sendo observados nas regiões mais carentes das townships próximas ao aeroporto. Vista por muitos como cidade arrogante e europeia, a Cidade do Cabo talvez guarde a chave do futuro da nação. Com uma administração moderna e eficiente, a Aliança Democrática governa o Cabo Ocidental desde 2009 e agora ambiciona voos mais altos. Se Gauteng deixar de lado as rivalidades políticas tradicionais, permitindo que novas e arejadas ideias vindas do Atlântico atinjam Pretória, teremos uma importante evolução no sombrio cenário atual, marcado pelo moribundo governo de Jacob Zuma.
Adriano Lucchesi, administrador de empresas pela FGV e mestre em Turismo pela ECA-USP, é diretor da Atlantic Connection Travel, especialista em África desde 1996. Ele completou a travessia terrestre da Cidade do Cabo, na África do Sul, a Alexandria, no Egito, em junho de 2015
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esde que a Grã-Bretanha ingressou na então Comunidade Econômica Europeia (CEE), em 1973, a relação entre Londres e seus sócios continentais tem sido a de um casamento sem amor, como bem definiu o jornal espanhol 20 Minutos. O último lance dessa união conflituosa teve início em setembro do ano passado, quando a Câmara dos Comuns britânica (Parlamento) aprovou uma lei permitindo que o primeiro-ministro David Cameron, do Partido Conservador, realizasse um referendo sobre a permanência britânica na União Europeia. Marcado para 23 de junho, o referendo pode assinalar uma derrota histórica do projeto europeu. A iniciativa do referendo decorreu da pressão dos “eurocéticos”, os contrários à integração europeia, que cresceu muito desde a crise econômica, inclusive no núcleo do Partido Conservador. Eles alegam que a União Europeia impõe excessivas regulações à atividade econômica e que os custos não compensam os ganhos. Também defendem restrições drásticas à circulação de pessoas no espaço europeu e se opõem a uma maior integração política. Para evitar o que está sendo chamado de Brexit (Britain exit, saída britânica da União Europeia), Cameron tentou arrancar de Bruxelas uma série de concessões. O primeiro-ministro busca armas políticas para vencer o referendo, barrando o voto “não”. A desconfiança britânica em relação à Europa continental é histórica e, no passado, levou Londres a adotar uma política externa baseada no “equilíbrio de poder”, de modo a evitar a hegemonia de um único país no continente [veja a matéria à pág. 8]. Ironicamente, foi um líder britânico, Winston Churchill, quem primeiro defendeu, em 1946, a criação dos “Estados Unidos da Europa”, baseada na reconciliação entre França e Alemanha. Mas, quando o Tratado de Roma criou a CEE, em 1957, a Grã-Bretanha recusou-se a integrá-la, por priorizar os laços comerciais e políticos com os países da Commonwealth (Comunidade britânica) e por ter restrições a um projeto baseado no conceito de compartilhamento da soberania nacional em benefício de instituições supranacionais. O cenário mudou junto com os ventos da economia. Em 1961, os britânicos reviram sua posição e solicitaram a entrada na CEE, mas as negociações foram barradas dois anos depois pelo presidente da França, Charles De Gaulle, que via com desconfiança os laços estreitos entre Lon-
Brexit: a Europa sem a Grã Cláudio Camargo Especial para Mundo dres e Washington. De Gaulle acalentava o projeto de criar uma “Europa das nações”, equidistante das duas superpotências da Guerra Fria (os Estados Unidos e a União Soviética), e enxergava na Grã-Bretanha um aliado prioritário dos Estados Unidos. No fim, os britânicos conseguiram entrar no clube europeu em 1973, mas conservaram um pé atrás em relação ao projeto de integração. Londres não aderiu ao Sistema Monetário Europeu (SME), criado em 1979. Durante o governo de Margaret Thatcher, a Grã-Bretanha assinou um acordo para reduzir sua contribuição à CEE, argumentando que não se beneficiava dos subsídios agrícolas. Os britânicos tampouco aderiram ao Tratado de Maastricht, de 1992, que implantou a moeda única, nem ao Acordo de Schengen, de 1995, de livre circulação de cidadãos no espaço europeu. Recentemente, em 2011, Londres rechaçou o pacto orçamentário, um acordo para reforçar a Zona do Euro, atingida pela crise econômica global. Depois da aprovação do referendo, Cameron apresentou ao presidente do Conselho Europeu, o polonês Donald Tusk, várias propostas no sentido de redefinir a relação britânica com a União Europeia, a fim de debilitar os argumentos dos defensores do Brexit. A principal, e mais polêmica, refere-se ao filho bastardo desse casamento de conveniência: os imigrantes. Trata-se de um “freio de contenção emergencial” – leia-se: redução – dos benefícios dos trabalhadores imigrantes com menos de quatro anos de contribuição. Além disso, os britânicos propuseram que a União Europeia reconheça o direito britânico de não avançar rumo à união política. Londres também pressiona por um mercado único mais aberto e menos regulado. Finalmente, Cameron pediu o reconhecimento explícito de que o euro não é a única moeda do bloco europeu, de modo que países que não pertençam à Zona do Euro não sejam alijados das decisões monetárias. As contrapostas de Tusk atenderam parcialmente às demandas de Cameron, mas foram questionadas por França, Bélgica e República Checa. A França, por exemplo, teme uma suavização das normas bancárias que beneficie a City londrina. No campo político do Brexit, destacase o xenófobo Partido da Independência do Reino Unido (Ukip), liderado por Nigel Farage, que capturou 13% dos votos
Começou uma nova Batalha da Inglaterra. Do seu resultado depende o destino de União Europeia, os escoceses votarão pela saída do Reino U as ondas de choque do Brexit sobre um continente curvado pelo peso de diversas cris
ingleses votarem pela saída da
Timothy Garton Ash, “Here’s how to argue with a Brexiter – and win”
© Andrew Parsons/i-images/Flickr/Creative Commons
União europeia
O primeiro-ministro conservador britânico David Cameron teme que o Brexit, além de ter um significado econômico desastroso, acabe provocando a separação da Escócia e, com ela, o fim da própria Grã-Bretanha nas últimas eleições para o Parlamento Europeu. Também defendem o Brexit inúmeros deputados conservadores e até alguns trabalhistas. Mas os arautos da saída se viram em uma saia justa quando a líder da extrema-direita francesa, Marine Le Pen, prometeu visitar Londres em apoio à retirada. Do outro lado da trincheira, Cameron obteve o apoio do presidente americano, Barack Obama. Em visita a Londres por ocasião do 90º aniversário da rainha Elizabeth II, Obama advertiu que, no caso de uma separação, os britânicos não poderiam esperar tratamento diferenciado por parte de Washington, como um acordo comercial bilateral. As declarações irritaram os líderes do Brexit, entre eles o prefeito de Londres, Boris Johnson, conservador como Cameron. Em artigo publicado no tabloide The Sunpor, Johnson sustentou que o fato de o pai de Obama ter nascido no Quênia, ex-colônia britânica, explicava os “sentimentos antibritânicos” do presidente. De quebra, ele criticou Obama por ter tirado um busto de Winston Churchill do Salão Oval da Casa Branca.
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Apesar do casamento sem amor, a opção pelo divórcio pode ser pior para ambos e péssima para o mundo. “Bruxelas é consciente de que uma Europa sem o peso econômico e geopolítico da Grã-Bretanha seria muito menos Europa”, escreve Miguel Máiquez no jornal espanhol 20 Minutos. Por isso, as concessões à singularidade britânica exigidas por Cameron estão sendo vistas pela União Europeia como um mal menor. “Do outro lado do Canal da Mancha, entretanto, a corda é tensionada, mas sem se romper, num reconhecimento implícito de que os tempos do poderio britânico já se foram e que uma Grã-Bretanha fora da União Europeia perderia grande parte de seu peso econômico e estratégico”, conclui Máiquez. Máiquez não disse, mas um triunfo do Brexit provavelmente provocaria a secessão escocesa, rompendo a unidade da Grã-Bretanha [veja a matéria à pág. 7]. O G20, por sua vez, num alerta dramático, afirmou em fevereiro que o Brexit poderia desestabilizar a economia mundial. Alea jacta est! Cláudio Camargo é jornalista e sociólogo
ã-Bretanha?
e duas uniões: o
Reino Unido e a União Europeia. Se os Unido. Então, não haverá Grã-Bretanha. Enquanto isso, ses poderia sinalizar o início do fim da União Europeia.
© Fox Filmes/Divulgação
”, The Guardian, 20 de fevereiro de 2016
© W.J. Morgan & Co/Biblioteca do Congresso, Washington D.C.
A história de William Wallace, “pai” do nacionalismo escocês, foi levado por Mel Gibson às telas de Hollywood; as intrigas e lutas pelo poder que marcam profundamente a Escócia foram transformadas em tragédia por William Shakespeare, numa de suas peças mais impressionantes, Macbeth
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Referendo agita separatismo escocês W
illiam Wallace (1270-1305) apaixona-se pela camponesa Marian Braidfoot (1276-1297), com quem pretende se casar, em 1296. Mas os tempos são difíceis: estamos na Escócia, que acaba de ser invadida pelo rei inglês Eduardo I, fazendo eclodir a primeira de uma longa série de guerras separatistas. Para acatar a lei imposta por Eduardo I, Wallace terá que ceder a um senhor feudal inglês o direito de dormir com sua noiva no dia do seu casamento. Eles decidem casar-se secretamente, e Wallace assume a resistência ao invasor, cultivando um sentimento nacionalista herdado de seu pai (morto por soldados ingleses). A história é narrada no filme Coração valente, dirigido e estrelado por Mel Gibson e lançado nos Estados Unidos em 1995. Os feitos de Wallace são retomados, hoje, pelos nacionalistas escoceses que lutam pela separação da Grã-Bretanha. Wallace tornou-se um importante líder dos escoceses e chegou a impor grandes derrotas ao exército inimigo, em particular na sangrenta Batalha de Stirling, travada em setembro de 1297, quando foram mortos cerca de 5 mil soldados ingleses, para um número incerto, mas relativamente baixo, de perdas escocesas. No ano seguinte, Wallace seria nomeado Protetor da Escócia, num momento crucial de consolidação de um ideal de unificação nacional. Contudo, traído por uma parte da nobreza do país, foi preso pelos ingleses e executado em 1305 (Marian foi morta por um nobre inglês em 1297, pouco depois de seu casamento). As guerras contra a Inglaterra prosseguiram, de forma intermitente, até 1357, quando a Escócia recuperou sua independência, selada em 1502 por meio de um tratado de paz perpétua. Para firmar o pacto, Henrique VII da Inglaterra ofereceu em casamento sua filha Margarida ao rei da Escócia. Cem anos depois, em 1603, o rei James VI da Escócia se tornaria também James I da Inglaterra. Proclamando-se rei da Grã-Bretanha, o monarca escocês instalou-se em Londres, embora as duas nações tenham permanecido independentes. Finalmente, em 1707, depois de longas negociações, seria assinado o Tratado da União que criou o Reino Unido. Nenhum capítulo dessa longa história ocorreu de forma tranquila e indolor. Muito ao contrário. Foram séculos de guerras civis lideradas por clãs escoceses que disputavam o poder entre si, num complexo jogo que envolvia alianças, traições e conflitos com a monarquia inglesa. Não por acaso, William Shakespeare inspirou-se na Escócia para escrever Macbeth, uma de suas tragédias mais impressionantes, cujo tema central é a luta pelo poder. A criação do Reino Unido sufocou, em parte, a voz das correntes nacionalistas que insistiam no separatismo, criando uma falsa sensação de estabilidade. O cenário mudou no final da década de 1980, quando a agitação provocada na Europa pela crise do bloco socialista estimulou a eclosão de sentimentos nacionalistas em todo o continente. As tensões latentes voltaram a eclodir com
força também na Escócia. A expressão política desse processo foi a grande vitória eleitoral, em 2011, do Partido Nacional Escocês (SNP), cujo líder, Alex Salmond, dizia não ver qualquer propósito na união entre Inglaterra, Escócia e País de Gales. Para ele, uma Escócia independente, com sua abundância em petróleo, poderia se tornar um dos países mais ricos do mundo. Sua campanha tinha por lema a ideia de que havia chegado a hora da Escócia “controlar seu próprio destino”. Tradicionalmente, a Escócia funcionou como base política do Partido Trabalhista, de linha social-democrata. A ascensão fulminante do SNP quase destruiu a influência trabalhista na região, que foi substituída pelo nacionalismo separatista. À frente do SNP, Salmond conseguiu convocar um plebiscito regional para decidir a separação da Escócia, realizado em setembro de 2014. A proposta foi derrotada por 55,3% contra 44,7%. Refletindo o poder mobilizador do tema da separação, o comparecimento às urnas, de 84,5% dos eleitores, foi o mais alto em um pleito britânico desde 1928, quando as mulheres conquistaram o direito ao voto. Os separatistas perderam, mas a Escócia ganhou mais autonomia e poder de decisão sobre questões regionais. Para derrotar o movimento separatista, os líderes dos três principais partidos britânicos, incluindo o primeiroministro conservador David Cameron, adotaram todos os argumentos imagináveis: da chantagem pura e simples (acenando com a catástrofe econômica da Escócia, decorrente da impossibilidade de manter a libra esterlina como moeda nacional, em caso de separação) até o apelo aos laços históricos e culturais sedimentados ao longo de séculos entre os países integrantes do Reino Unido, passando pelo medo de “um salto no desconhecido”. Tratava-se de criar a imagem de uma Escócia que pagaria um preço insuportável por seu isolamento, sem com isso adquirir qualquer vantagem real. Os argumentos conseguiram convencer a maior parte do eleitorado. Mas o quadro político mudará completamente de figura se triunfar a proposta do Brexit no referendo de 23 de junho. Será quase insustentável manter uma retórica “unionista” dentro da Grã-Bretanha se a maioria dos eleitores decidirem romper com a União Europeia. Nessa hipótese, os separatistas argumentariam que uma Escócia dentro da União Europeia estaria mais conectada com o mundo que uma Grã-Bretanha rompida com a Europa. Na sua campanha contra o Brexit, Cameron admite que o que está em jogo é o destino da própria Grã-Bretanha. Os escoceses são profundamente europeístas. Se, apesar disso, uma maioria composta principalmente por ingleses decidir pelo Brexit, tudo indica que o SNP conseguiria convocar um novo plebiscito separatista – e triunfaria. Uma Grã-Bretanha fora da União Europeia seria, provavelmente, apenas um Reino Desunido. Nesse caso, mais de sete séculos depois, o fantasma de William Wallace voltaria a rondar os campos e as terras altas da Escócia.
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união europeia
De Churchill a Cameron, Londres oscila diante da Europa
© Biblioteca do Congresso, Washigton D.C.
s dois estadistas-trovadores contaram-nos histórias sobre quem somos – os britânicos e os franceses – e, porque acreditamos neles, nos tornamos, em alguma medida, os povos que eles inventaram.” O diagnóstico, do historiador Timothy Garton Ash, refere-se a Winston Churchill, o primeiro-ministro que conduziu a GrãBretanha na prova de fogo da Segunda Guerra Mundial, e Charles De Gaulle, o general que se insurgiu contra o governo colaboracionista francês e ergueu a bandeira da resistência antinazista. As “histórias” narradas pelos “estadistas-trovadores” ajudam a entender as divergências entre Paris e Londres sobre a Europa e iluminam as raízes profundas da campanha pelo Brexit. De Gaulle contou a história da “França verdadeira”, ou seja, da nação em luta contra a Alemanha nazista e da potência europeia que rejeita a hegemonia norte-americana. “A Europa unida, do Atlântico aos Urais”, sua fórmula célebre, expressava o sonho impossível de restauração de um mundo destruído pela guerra mundial. Na visão do general, o futuro da França seria a liderança de um continente reconstruído, livre tanto do poderio norteamericano quanto do expansionismo soviético. A União Europeia não emanou do sonho do general, mas de uma radical correção dele promovida pela realidade. De Gaulle almejava perenizar a fragmentação da Alemanha produzida pelo Acordo de Potsdam, que desenhou as quatro zonas de ocupação na potência derrotada. Contudo, as crises que desaguaram na Guerra Fria provocaram, em 1949, a reunião das três zonas ocidentais na República Federal Alemã (RFA) e, ao mesmo tempo, o nascimento da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Com a Otan, veio o rearmamento da RFA. Com o Plano Marshall, a reconstrução industrial da Alemanha Ocidental. Então, a França tomou a iniciativa de lançar o Plano Schuman, de 1950, que resultaria na Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (Ceca), o embrião da atual União Europeia. A soberania nacional estava na base do pensamento de De Gaulle. O projeto de integração europeia nasceu justamente da ideia de superação da soberania nacional, único caminho para a conciliação histórica entre os interesses da França e da Alemanha. O Plano Schuman não seria possível com De Gaulle, mas o general afastara-se do governo francês desde janeiro de 1946. Entretanto, no conceito de integração europeia subsistia um fragmento decisivo da visão gaullista: a Europa unida, não “do Atlântico aos Urais”, mas com a França no seu núcleo. Do outro lado do Canal da Mancha, Churchill contou uma história muito diferente. Ele falou sobre a comunidade de interesses dos “povos de língua inglesa”, delineando para a Grã-Bretanha um futuro no qual a Europa continente ocuparia lugar apenas periférico. Na sua visão geopolítica, a monarquia britânica persistiria como potência mundial pela manutenção do império, na forma da Commonwealth, e por meio de uma aliança estratégica com os Estados Unidos. Churchill voltou à chefia de governo em outubro de 1951, a tempo de confirmar a
Winston Churchill sustentava uma visão imperial da Grã-Bretanha, na qual as relações com a Europa continental ocupavam um lugar secundário Gráfico 1
Comércio exterior britânico (2015) 250 200 150 Milhões de libras
“O
A corrente “eurocética” britânica manifesta-se no Partido Conservador e no ultranacionalista Ukip, mas suas raízes profundas estão fincadas no solo do imediato pós-guerra
100
43,7%
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Exportações
Importações
União Europeia
Resto do mundo
Gráfico 2 Efeitos do Brexit no ritmo de crescimento britânico (horizonte de 15 anos) % 0 -5 -10 -15 -20 -25 -30
Cenário norueguês
Cenário canadense
Cenário russo
Fonte: HM Treasury, abril de 2016
rejeição britânica à Ceca. Londres também decidiu não participar do Tratado de Roma, de 1957, que criou a Comunidade Econômica Europeia (CEE). Os britânicos são “eurocéticos” desde o início. A mudança de rota veio apenas na década de 1960, junto com a desintegração do Império Britânico. Contudo, a solicitação britânica de ingresso na CEE foi bloqueada precisamente pela França, presidida de novo por
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De Gaulle, que enxergava na Grã-Bretanha a sombra da influência norte-americana sobre a Europa. No fim, em 1973, mais de dois anos após a morte de De Gaulle, a Grã-Bretanha entrou, finalmente, na CEE. Mesmo assim, nunca ingressou em seu núcleo de decisão, articulado em torno da parceria franco-alemã. O “euroceticismo” definiu a rota britânica. Logo após a queda do Muro de Berlim (1989) e a reunificação alemã (1990), França e Alemanha dobraram a aposta na integração europeia, firmando o Tratado de Maastricht, de união econômica e monetária. Diante disso, Londres repetiu seu gesto original de rejeição, aferrou-se ao dogma da soberania nacional e decidiu ficar fora da Zona do Euro. Um pé na canoa europeia, outro na aliança estratégica com Washington – eis a política escolhida pelos britânicos na encruzilhada de Maastricht. O Partido Conservador, de Churchill, sempre funcionou como ponta de lança do “euroceticismo” britânico. A conservadora Margaret Thatcher recusou o Tratado de Maastricht, um quarto de século atrás. Nos últimos anos, diante das crises combinadas do euro e dos refugiados, a corrente “eurocética” ganhou o reforço, pela extremadireita, do xenófobo Partido da Independência do Reino Unido (Ukip). Sob pressão intensa, o primeiro-ministro conservador David Cameron prometeu o plebiscito sobre a permanência do país na União Europeia. Cameron opõe-se ao Brexit, assim como a maioria do Partido Trabalhista, de oposição, mas não têm o respaldo de seu próprio partido, que está cindido. Apesar dos “eurocéticos”, ao longo das décadas a GrãBretanha colou-se à Europa continental. Mesmo separada pela moeda, a economia britânica está profundamente integrada ao restante da União Europeia. Um indício disso encontra-se na distribuição do comércio exterior: quase 44% das exportações e cerca de 53% das importações britânicas realizam-se com países do bloco europeu [veja o gráfico 1]. Na hipótese do Brexit, a parceria comercial sofreria abalos maiores ou menores, alertam os defensores da permanência britânica. Um relatório técnico do Tesouro britânico analisou três cenários econômicos resultantes do Brexit no horizonte de 15 anos. No “cenário norueguês”, a Grã-Bretanha se associaria à Área Econômica Europeia. No “canadense”, Londres negociaria um acordo bilateral de comércio com a União Europeia. Finalmente, no “russo”, a GrãBretanha não teria nenhum acordo comercial específico com a União Europeia. A conclusão: em todos os casos, a expansão do PIB perderia velocidade, desacelerando-se entre 4% e 25% [veja o gráfico 2]. Não é por acaso que o Brexit carece de apoio no meio empresarial britânico. O Brexit parece uma péssima ideia econômica. Barack Obama ressaltou que não é uma boa alternativa, do ponto de vista dos interesses geopolíticos e de segurança da GrãBretanha. Mas, às vésperas do plebiscito, quase metade dos eleitotes estavam dispostos a arriscar. É que a história que o “estadista-trovador” contou tem seu peso.
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união europeia
À beira do colapso? No rastro da crise do euro, a crise dos refugiados esgarçou o consenso liberal europeu e amplificou a audiência das correntes nacionalistas, colocando em risco o projeto supranacional da União Europeia
ideranças empresariais da Alemanha temem que os desentendimentos sobre como lidar com a crise de refugiados e o crescente nacionalismo nos países-membros possam levar à dissolução da União Europeia. A chegada à Europa de centenas de milhares de pessoas que fogem da guerra e da pobreza em países como Síria e Iraque tem abalado ainda mais os laços entre os países europeus, que já se encontravam esgarçados em decorrência da crise financeira da Zona do Euro. Além disso, o crescente nacionalismo pode ameaçar a riqueza, o sucesso econômico e a segurança da Europa, disseram os presidentes das mais destacadas associações empresariais da Alemanha à Reuters. “‘O ano que vem vai ser crucial para a Europa’, disse Ulrich Grillo, líder da associação industrial BDI. [...] A falta da solidariedade dentro do bloco faz que com que a Europa arrisque todas as conquistas das últimas décadas, disse Hans Peter Wollseifer, presidente da Associação de Negócios Especializados. A imigração tem elevado as preocupações de segurança e impulsionado o apoio a partidos eurocéticos por toda a Europa, como o partido alemão AfD, a Frente Nacional na França, o Lei e Justiça na Polônia e o Partido da Independência do Reino Unido (Ukip), que se opõe à presença da Grã-Bretanha na União Europeia.” A pequena nota, veiculada pela agência Reuters, em dezembro de 2015, oferece uma síntese precisa da crise que ameaça a União Europeia. Ela resulta da confluência de três vertentes principais que se alimentam mutuamente: a entrada de milhares de refugiados que, submetidos a condições desumanas e desesperadoras, buscam meios de sobreviver; a reação orquestrada por correntes nacionalistas e xenófobas, que demandam o fechamento de fronteiras; as incertezas quanto ao futuro do euro, como decorrência da crise mundial que se abriu em 2008. A campanha pelo Brexit, que coloca em pânico alguns dos principais líderes europeus e o presidente norte-americano Barack Obama, é, provavelmente, a expressão mais clara da dimensão atingida pela crise [veja a matéria à pág. 6]. A abertura das fronteiras entre os Estados europeus foi uma das maiores realizações do processo de integração europeia. Em junho de 1985, Alemanha, Bélgica, França e Luxemburgo anunciaram o Acordo de Schengen, que propunha suprimir gradualmente os controles nas fronteiras comuns e instaurar um regime de livre circulação para todos os cidadãos dos Estados signatários e de outros países europeus que aceitassem os seus termos. Em contraste com a crise que produziria o colapso do antigo bloco socialista, as elites europeias triunfantes aparentavam, então, ter a capacidade
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de realizar o sonho de uma Europa livre, democrática, internacionalista e unificada pelo mercado. A queda do Muro de Berlim (1989), a assinatura do Tratado de Maastricht (1992) e a entrada em vigor da União Europeia (1993) pareciam referendar a vitória desse modelo liberal. A humanidade em seu conjunto, após inúmeras tentativas que resultaram em fracasso – sendo a última delas o socialismo soviético – parecia, finalmente, ter encontrado a melhor forma de organizar as sociedades. Se algo demonstrava que a história tinha mesmo chegado ao fim, com o triunfo inquestionável do liberalismo, como preconizava Francis Fukuyama, era a Europa de Schengen. Mas o sonho, se ainda não acabou, agora ameaça converter-se em pesadelo. A “crise dos refugiados” escancarou a tampa do bueiro da xenofobia, do racismo e da islamofobia que palpitam nos subterrâneos da vida política e cultural da Europa. Nesse quadro, os atentados abomináveis que, nos últimos meses, sacudiram Paris e Bruxelas, cometidos pelo grupo jihadista Estado Islâmico, geraram os motivos, ou pretextos, para fechar as fronteiras nacionais, declarar estado de emergência e ampliar os poderes da polícia, além de acentuar a retórica nacionalista e anti-islâmica. Imediatamente após os atentados, quando as dezenas
de vítimas inocentes ainda não haviam sido enterradas, houve uma escalada de medidas repressivas e de controle por parte dos governos europeus; na França, o presidente social-democrata François Hollande chegou ao cúmulo de proibir manifestações públicas. A euforia de Schengen transformou-se no seu oposto. No final de sua viagem à Europa, realizada em abril, com o objetivo oficial de homenagear a rainha Elizabeth, que completou 90 anos, Obama fez uma forte declaração: o mundo precisa de uma Europa unida. Antes disso, o presidente norte-americano havia multiplicado elogios à política de abertura de fronteiras aos refugiados, preconizada pela primeira-ministra alemã Angela Merkel. As declarações foram entendidas como um ataque direto ao Brexit e um apelo à preservação de Schengen, como peça fundamental à preservação do que ainda resta da ordem mundial. Mas o pomo da discórdia é justamente a política da Alemanha para os refugiados. A União Europeia jamais conseguiu formular uma alternativa à crise dos refugiados. Em 2015, alguns governos, em particular o da Hungria, decidiram fechar as fronteiras. Merkel, inicialmente, abriu as portas da Alemanha, além de adotar uma série de outras medidas que multiplicaram tensões entre os países do bloco europeu. Os críticos de Merkel – em especial, os “primos pobres” da União Europeia (Eslováquia, Hungria, Polônia e República Checa) – passaram a acusá-la de “hipocrisia”. Segundo os governos desses países, o discurso humanista alemão apenas ocultava seus interesses reais: o país precisa de imigrantes. Estimativas oficiais indicam que a população alemã, hoje de 82 milhões, cairá para algo em torno de 68 milhões, em 2060. Para que essa queda não tenha impacto desastroso na economia, teria que ser compensada com a chegada de imigrantes, em um ritmo anual de até 491 mil pessoas por ano até 2050. Merkel, portanto, estaria tentando impor os interesses nacionais da Alemanha ao conjunto da União Europeia, fazendo valer seu peso econômico e político. Os países mais periféricos da União Europeia – em particular, a Grécia – tendem a pagar um preço mais elevado pela crise, piorando um quadro já deprimente provocado pelo desemprego e pela falta de perspectivas. Isso tudo acentua o medo, a frustração e sentimentos irracionais de violência, caldo de cultura ideal para o avanço da xenofobia e da extrema-direita. Por mais que Obama multiplique apelos, não há solução à vista. © Patrice Pierrot/Citizenside/AFP
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Fundamentalistas católicos do grupo Civitas marcham, em Paris, em defesa dos valores cristãos e tradicionais da França, em oposição às comunidades de imigrantes islâmicas, árabes e africanas
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jogos olímpicos
Mens sana in corpore sano Elaine Senise Barbosa Especial para Mundo
“Mente sã em corpo saudável” – a expressão, do poeta romano Juvenal, apareceu no primeiro século da era cristã e tem raízes no filósofo grego Tales de Mileto. No final do século XIX, sob a sua inspiração, o barão de Coubertin recriou os Jogos Olímpicos
© Arquivo Nacional Alemão/Clobença
Pierre de Coubertin é o idealizador dos Jogos Olímpicos modernos, que acabaram ganhando uma importante dimensão simbólica, particularmente durante as Olimpíadas de Berlim, em 1936, quando o atleta negro norteamericano Jesse Owens derrotou a equipe alemã, encarregada por Adolf Hitler de provar a suposta superioridade da raça ariana
© Naj-Oleari/European Parliament/Fotos © Pietro Biblioteca do Congresso, Washington D.C. Públicas
uando o francês Pierre de Frédy (1863-1937), o barão de Coubertin, propôs a recriação dos Jogos Olímpicos, no final do século XIX, ele estava projetando sobre o universo desportivo o impacto das então recentes descobertas arqueológicas ocorridas na Grécia. A cidade de Olímpia, sede dos jogos gregos, era objeto de escavações que trouxeram de volta à luz a arena olímpica. Nessa época, os europeus gostavam de fazer listas e rankings, um hábito que se mundializou. “As sete maravilhas do mundo antigo” era uma delas. Entre as “maravilhas” estava a estátua de Zeus Olímpico, de 12 metros de altura, em ouro e marfim, feita por Fídias, o escultor mais famoso da Grécia Antiga e amigo de Péricles. Descobrir esses lugares, as ruínas, era o que impulsionava a arqueologia no século XIX, quando muitas das escavações foram financiadas por ricaços excêntricos. Assim, Olímpia foi encontrada: era lá que estava o Templo de Zeus e a famosa estátua. Mas a própria estátua não estava lá. Aquele era apenas o seu lugar. Celebrados desde 776 a.C. às margens do Rio Alfeu e dedicados ao deus-mor do Olimpo, os jogos congregaram os cidadãos do mundo helênico durante mais de um milênio. Contudo, entraram na lista de “cultos pagãos” e tiveram sua realização sumariamente proibida pelo imperador romano Teodósio I no ano de 393, quando o cristianismo tornou-se a única religião admitida pelo Estado. Então, Olímpia perdeu importância e declinou – horrivelmente depois do grande incêndio que consumiu o Templo de Zeus e a magnífica estátua, em algum momento no século V. Posteriormente, terremotos, inundações e guerras terminaram por relegar a cidade e os Jogos Olímpicos ao esquecimento. A revalorização da Antiguidade Clássica no século XIX ajudou as elites europeias da Belle Époque a afirmarem sua autonomia diante do pensamento conservador baseado na tradição religiosa, oferecendo-lhes um antropocentrismo grego idealizado. Nesse sentido, o tema olímpico destacou-se por exaltar valores como o patriotismo, o desprendimento pessoal (expresso no amadorismo dos competidores), a honra (o famoso fair play) e o pacifismo (pela integração dos atletas de diferentes origens). Mas a recriação dos Jogos Olímpicos também respondeu a outras demandas da época, ligadas à consolidação dos Estados nacionais e à nova ordem urbano-industrial, tais como o militarismo, o higienismo, o individualismo e a disciplinarização das massas. A ligação com o nacionalismo é evidente, já que os atletas competem em nome de seus países e é o hino nacional que coroa a entrega de medalhas. Além disso, a regra do amadorismo reforça o princípio de que se “veste a camisa” da pátria não por objetivos financeiros, mas por amor desinteressado. O nacionalismo, por sua vez, pedia exércitos compostos por cidadãos – como na Grécia – e esses homens comuns precisavam ser treinados. O valor que o barão de Coubertin dava à prática desportiva co-
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nectava-se com uma questão crucial para os franceses de sua geração: a vergonha pela derrota na Guerra FrancoPrussiana de 1871. Assim como Coubertin, muitos outros estavam convencidos de que a superioridade do material humano do exército prussiano devera-se à introdução da prática de exercícios físicos como ginástica e corrida, capazes de melhorar a força e disciplina dos soldados. O ideal olímpico ajudava a trazer de volta essa valorização do corpo enquanto “máquina” de força e resistência, cujo desempenho poderia melhorar graças ao condicionamento e ao planejamento. Com o tempo, todos os exércitos incorporaram as atividades físico-desportivas como parte fundamental do treinamento militar e, não por acaso, muitos atletas olímpicos saíram das forças armadas em todos os lugares. Enquanto isso, o mundo conhecia as gêmeas industrialização/urbanização e a necessidade urgente de organizar as massas de trabalhadores que se aglomeravam nas grandes cidades. De um lado, a preocupação com a ordem pública: o andar na rua, o decoro pessoal, a limpeza. Do outro, questões derivadas da nova ordem econômica: a fábrica, a jornada de trabalho e, sobretudo, o rendimento. Disciplinar os corpos tornou-se uma importante tarefa dos Estados, a fim de assegurar a ordem social e os interesses da moderna economia de mercado. Nas nascentes escolas públicas, as crianças eram ensinadas desde pequenas a ficarem quietas e atentas, seguindo instruções sem questionar. Já a prática esportiva – responsável pelo surgimento da Educação Física – auxiliava no condicionamento dos corpos por intermédio de movimentos repetitivos, pelo desenvolvimento do trabalho em equipe e pelo uso racional do tempo. Assim preparados, os jovens ingressavam no mundo do trabalho aptos a se ajustarem às necessidades de suas atividades profissionais e às cobranças por “performances”. Na prática pedagógica escolar, tornou-se comum a realização de “olimpíadas”. Já com o avanço do sanitarismo, ou seja, da saúde pública, o Estado conquistou o direito de invadir a privacidade do corpo em nome do interesse coletivo. As vacinas apareceram e se tornaram obrigatórias; os desajustados eram trancados em hospícios e prisões. O estilo de vida deve priorizar a saúde, e os médicos e profissionais de saúde são fundamentais nesse processo de domínio sobre o corpo. O corpo deve ser saudável e belo, o que também implica em autocontrole. Os atletas olímpicos são esse ideal de perfeição, devem nos inspirar a prática de uma alimentação saudável, a ausência de vícios, a higiene corporal. O corpo perfeito é um fim em si mesmo. Herdamos o culto à beleza física dos gregos.
Elaine Senise Barbosa é historiadora e professora no Curso Intergraus, em São Paulo 2016 MAIO
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oriente médio
Acordo Sykes-Picot ainda assombra o mundo árabe Firmado há exatos cem anos, o acordo secreto franco-britânico dividiu o Oriente Médio em esferas de influência e delineou fronteiras hoje contestadas
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O Acordo Sykes-Picot MAR CÁSPIO
MAR NEGRO
IMPÉRIO RUSSO
TURQUIA
Tabriz
ZONA AZUL Mossul
Alepo
ZONA A Beirute Damasco Amã Jerusalém
Kirkuk
PÉRSIA (IRÃ)
Bagdá
ZONA B
ZONA VERMELHA Basra
SINAI (EGITO)
ARÁBIA SAUDITA R MA ELHO M VER
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Mapa 1
MAR MEDITERRÂNEO
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m junho de 2014, após derrubar a última marca que identificava a fronteira entre a Síria e o Iraque, um representante da organização jihadista Estado Islâmico proclamou que o Acordo Sykes-Picot estava liquidado. O acordo originalmente secreto, firmado entre Grã-Bretanha e França em 1916, em plena Primeira Guerra Mundial (1914-1918), foi a base para a delimitação de grande parte das fronteiras atuais entre os países do Oriente Médio. No sistema geopolítico multipolar do início do século XX, as principais potências situavam-se no continente europeu, com destaque para Grã-Bretanha e França, detentoras dos maiores impérios coloniais. Em um segundo plano estavam os impérios Alemão, Russo, Austro-Húngaro e Otomano. O jogo de interesses entre essas potências deu origem a uma série de alianças que estão na raiz da deflagração da Primeira Guerra. Apesar da enorme extensão de seu império colonial, os britânicos dependiam do petróleo, uma matéria-prima energética que se tornava cada vez mais importante, especialmente o extraído na região da Mesopotâmia, que fazia parte do Império Turco-Otomano. Por conta disso, esse território e algumas áreas adjacentes tornaram-se focos das atenções de potências europeias como França, Alemanha e Rússia. O Império Turco-Otomano já era um gigante enfraquecido, o “homem doente da Europa”, numa expressão da época, e perdia gradativamente o controle de territórios sob seu domínio. Às vésperas da eclosão da guerra, a desintegração do império era entendida como uma questão de tempo, e as potências europeias se preparavam para avançar sobre seus despojos. Negociado no final de 1915, o acordo foi assinado em maio de 1916 pelos diplomatas britânico Mark Sykes e francês François Georges-Picot. Era um pacto secreto entre os dois governos, que se abriu depois à participação do Império Russo e da Itália. Ele definiu o desenho geopolítico do Oriente Médio e, desde então, funciona como um dos pilares da ordem geopolítica regional. O acordo conciliva os interesses britânicos e franceses durante a Primeira Guerra Mundial, travada entre a Tríplice Entente (Grã-Bretanha, França e Império Russo) e a Tríplice Aliança (Império Alemão, Austro-Húngaro e Itália, que mudou de lado no primeiro ano do conflito). O Império Turco-Otomano, que controlava amplas áreas do Oriente Médio, juntou-se à Tríplice Aliança. Segundo o pacto secreto, os britânicos assumiriam o controle dos territórios que atualmente correspondem, em linhas gerais, à Jordânia e ao Iraque, além de uma pequena área em torno de Haifa, cidade situada na porção setentrional do atual Estado de Israel. Aos franceses, caberia o sudeste do que hoje é a Turquia, a Síria, o Líbano e o norte do Iraque. As duas potências ficaram livres para definir as fronteiras no interior daquelas áreas. A Palestina, que abrange atualmente Israel e os territórios palestinos de Gaza e Cisjordânia, ficaria sob tutela internacional [veja o Mapa 1].
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200 km
Zona Azul (sob controle da França) Zona A (sob influência francesa) Zona internacional Zona B (sob influência britânica) Zona Vermelha (sob controle britânico)
às pretensões do regime czarista, que havia acabado de derrubar. Apesar dos constrangimentos causados pela revelação, a maior parte dos termos do Sykes-Picot foi ratificada pela Conferência de San Remo (1920) e pelo Conselho da Liga das Nações que concedeu, em 1922, os mandatos britânico e francês no Oriente Médio. Diversas tensões no Oriente Médio, que eclodem em crises sucessivas, refletem os efeitos da criação de fronteiras nacionais adaptadas aos interesses franco-britânicos. Os jihadistas do Estado Islâmico cultivam mitos e sonhos. Mas a proclamação da falência do Acordo Sykes-Picot não deve ser vista, exclusivamente, como uma declaração de fanáticos. A crise em curso, expressa pela guerra civil na Síria, pelos persistentes conflitos no norte do Iraque e pela ascensão militar do nacionalismo curdo, atesta a desestabilização da ordem nascida com o acordo centenário. O vazio de poder aberto nessa área foi provisoriamente ocupado pelo Estado Islâmico, que se apoderou de territórios e proclamou um califado em 2014. O projeto dos jihadistas é redesenhar o mapa do Oriente Médio de acordo com sua visão de mundo [veja o Mapa 2]. No cenário do Oriente Médio operam potências regionais (Irã, Turquia e Arábia Saudita) e extrarregionais (Rússia, Estados Unidos, países europeus e China). Todos, de alguma forma, tentam tirar proveito das históricas rivalidades religiosas (especialmente entre muçulmanos sunitas e xiitas) e étnicas (curdos e yazidis, entre outras). Contudo, os diversos atores temem a expansão do Estado Islâmico, cujas ações reativaram o nacionalismo curdo, abrindo a inesperada possibilidade da criação de um Curdistão soberano. A hipótese assusta a Turquia, o Iraque, a Síria e o Irã, países que abrigam minorias curdas.
O governo britânico comprometera-se a apoiar a criação de países árabes independentes ao final da guerra, caso seus líderes se dispusessem a lutar contra os turcos-otomanos. A promessa britânica fora avalizada, antes do Mapa 2 início da guerra, pelo oficial T. E. Lawrence, o famoso “Lawrence da Arábia”. O Acordo Sykes-Picot Presença do Estado Islâmico foi uma traição de Londres àquele compromisso. na Síria e no Iraque Ele também abriu o caminho para a Declaração de Balfour, de 1917, pela qual os britânicos aceTURQUIA Kobane 100 km naram com a criação de um Lar Nacional Judeu Mossul na Palestina, passo inicial que conduziria à criação Raqqa Alepo do Estado de Israel, em 1948. Kirkuk Atualmente, circula a tese de que o Acordo Homs Sykes-Picot, junto com a Declaração de Balfour, SÍRIA IRÃ foi idealizado para obter o apoio do movimento LÍBANO sionista internacional, e especialmente dos judeus Bagdá Damasco norte-americanos, objetivando induzir os Estados Unidos a ingressar na guerra europeia ao lado da JORDÂNIA Entente. Teria servido, também, para impulsionar IRAQUE a Itália a mudar de lado, visto que o país mantinha ARÁBIA um conflito com o Império Turco-Otomano desde SAUDITA 1911. Como contrapartida pela troca de alianças, os italianos receberiam o controle da Líbia e de Áreas sob domínio ou com atividade do Estado Islâmico algumas ilhas do Mar Egeu. O Império Russo seria Áreas sob controle dos governos da Síria e do Iraque recompensado com a Armênia. ou rebeldes sírios O acordo só chegou ao conhecimento mundial Região autônoma curda no Iraque porque Lenin, o líder bolchevique da Revolução Russa de 1917, denunciou sua existência e renunciou MUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDOPANGEAMUNDO
itália
Lições da Operação Mãos Limpas Duas décadas atrás, juízes de Milão devassaram a corrupção sistêmica na Itália. A operação italiana, que inspira a Lava Jato no Brasil, não deve ser culpada pela ascensão de Berlusconi ao poder
Monumento em Palermo (Sicília, Itália) faz homenagem ao juiz Giovanni Falcone, principal responsável pela condução da Operação Mãos Limpas contra a corrupção, com frequência citada pelo juiz federal brasileiro Sergio Moro, encarregado do julgamento dos denunciados pela Operação Lava Jato
© Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
nome do juiz federal Sérgio Moro apareceu, em abril, na tradicional lista das cem personalidades “mais influentes” do ano publicada pela revista norte-americana Time. “Influente”, no caso, não é elogio nem crítica: na mesma lista figuram Barack Obama, Vladimir Putin, Angela Merkel, o papa Francisco, o ditador norte-coreano Kim Jong-Un e o velocista Usain Bolt. O impeachment de Dilma Rousseff comprova a influência de Moro, pois a Operação Lava Jato, que ele conduz, foi um dos fatores decisivos para a queda do governo brasileiro. Moro, um juiz de primeira instância, tem apenas 43 anos. Aos 31, em 2004, no segundo ano do mandato inicial de Lula, escreveu um artigo intitulado “Considerações sobre a Operação Mani Pulite”, publicado numa revista jurídica. A expressão italiana Mani Pulite significa “Mãos Limpas”, nome da megainvestigação judicial que, na década de 1990, desvendou a vasta rede de corrupção tecida por políticos e empresários na Itália. A célebre investigação inspirou o jovem juiz, que enxergou no Brasil os traços característicos da santa aliança da corrupção expostos na Itália. Sem a Operação Mãos Limpas, provavelmente não existiria a Lava Jato – e Moro não constaria em lista nenhuma de personalidades “influentes”. Uma corrente de críticos da Lava Jato, geralmente ligados ao PT, construiu uma narrativa condenatória sobre a Mãos Limpas. Basicamente, eles alegam que a investigação, conduzida por Antonio di Pietro e outros juízes de Milão, devastou o sistema político-partidário italiano e pavimentou a ascensão ao poder do corrupto magnata Silvio Berlusconi. Os juízes milaneses teriam desmoralizado a elite política, “criminalizando a política” e produzindo uma coalizão governista tão corrupta quanto as anteriores, mas menos democrática. De fato, a operação judicial italiana teve o efeito de um terremoto, destruindo dois dos principais partidos políticos. Contudo, é histórica e factualmente falsa a conclusão de que seu resultado foi a ascensão de Berlusconi. Antes pelo contrário: o poder de Berlusconi não emanou da Mãos Limpas, mas da interrupção da Mãos Limpas. Eis uma primeira lição para o Brasil de hoje. Na Mãos Limpas, os juízes milaneses desvenderam as redes de corrupção estabelecidas entre políticos e empresários, que configuravam um sistema estável de intercâmbio de contratos públicos por subornos. Atingida diretamente, a Democracia Cristã (DC), maior partido do país, perdeu metade de seus votos em 1992 e explodiu dois anos mais tarde. Já o venerável Partido Socialista (PSI), fundado em 1892, desapareceu junto com a DC, também como consequência dos processos judiciais. Contudo, o segundo maior partido, o Partido Democrático da Esquerda (PDS), herdeiro do Partido Comunista Italiano (PCI) escapou da fase inicial da investigação e chegou ao governo. Mais tarde, um pacto de conveniência entre o PDS e Berlusconi solapou a Mãos Limpas, abrindo caminho para o “berlusconismo”.
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À frente de uma coalizão conservadora, Berlusconi venceu as eleições gerais de março de 1994, mas seu gabinete caiu em dezembro daquele ano, derrubado precisamente por revelações da Mãos Limpas. Seguiram-se governos efêmeros, típicos do parlamentarismo italiano, até as eleições de abril de 1996, que marcaram o triunfo da coalizão de centro-esquerda liderada pelo PDS. O PCI havia mudado de nome, e de programa político, em 1991, no rastro da queda do Muro de Berlim. Naquele abril de 1996, os ex-comunistas chegavam pela primeira vez ao
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poder, impulsionados pelos ventos de mudança que agitavam a sociedade italiana. Não é inexato o diagnóstico de que a Mãos Limpas ajudou a eleger o partido da esquerda, que parecia ter “mãos limpas” num país furioso com os sucessivos escândalos expostos por Di Pietro. A coalizão de centro-esquerda governou entre 1996 e 2000, primeiro com o gabinete de Romano Prodi e, em seguida, com o de Massimo D’Alema. Nesse período decisivo, os juízes avançavam sobre os negócios mafiosos de Berlusconi – mas também descobriam as falcatruas de políticos ligados ao governo. Então, com a finalidade de proteger os seus próprios corruptos, a maioria parlamentar do PDS ajudou a passar leis cuidadosamente desenhadas para retardar julgamentos e antecipar a prescrição de crimes. Na prática, a bancada governista atuou em parceria com a oposição “berlusconista” para sabotar as investigações judiciais, cortando o oxigênio da Mãos Limpas. Eis uma segunda lição para o Brasil: esquerda e direita podem cooperar contra a “criminalização da política”, ou seja, na proteção dos esquemas de corrupção que envolvem políticos de todo o espectro ideológico. A santa aliança da elite política italiana quebrou as pernas da Mãos Limpas. Nas eleições gerais de maio de 2001, a coalizão Forza Italia, liderada por Berlusconi, obteve 45,4% dos votos, contra 43,5% da L’Ulivo, a coalizão liderada pelo PDS. Num distante terceiro lugar, com 5% dos votos, ficou o Partido de Refundação Comunista. O apertado triunfo de Berlusconi refletiu o desencanto dos eleitores com o teatro hipócrita dos cinco anos de governo do PDS. A “década de Berlusconi”, formada por seus períodos de governo de 2001 a 2006 e de 2008 a 2011, um longo ciclo de estagnação econômica e negacionismo político, não pode ser atribuída à Operação Mãos Limpas. A tese de que a Mãos Limpas conduziu à hegemonia de Berlusconi é tão falsa quanto a de que a revolução popular contra a ditadura de Hosni Mubarak, no Egito, em 2011, gerou a ditadura de Abdul al-Sisi, implantada em 2013. No caso do Egito, a narrativa exige que se esqueça o fracasso do governo da Irmandade Muçulmana, eleito no rastro do levante contra Mubarak. No caso da Mãos Limpas, exige que se ignore o fracasso de meia década de governos de centro-esquerda. Eis a terceira lição para o Brasil: submetida a tesouradas e colagens arbitrárias, a História funciona como ferramenta nas lutas políticas atuais.
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