Lucia Helena Ramos poemas feitos
nas coxas e em outros lugares
todos os direitos p/ lucia helena ramos texto e fotografia: lucia helena ramos projeto grรกfico: estudiopv.com
2011
Todo poeta precisa ser triste para escrever poemas? Todo poeta precisa ser angustiado a ponto de morrer de tuberculose para fazer boa poesia? Todo poeta precisa sofrer numa especie de condenação? As palavras foram companheiras desde a adolescencia e sempre nos momentos mais tristes, mais densos. “Poeta é um sofredor...” - frase guardada. E essa era a crença quando comecei a fazer a ofiCEP com o poeta Chacal, mas nela aprendi lições importantes, as mais importantes: a) não é preciso sofrer para escrever; b) é bom dar férias ao Eu, olhar o Outro, as coisas, o mundo e resignifica-lo, retirar o olhar do proprio umbigo e ver o que há fora dele - com prazer de descobridor; c) estar em grupo é bom e isso já era sabido, mas trocar críticas, palavras, idéias, ansiedades, expectativas, poesia - isso é novo e mais que bom: é maravilhosamente humano, como um milagre, um encontro. A partir dessas descobertas que parecem simples mas de simples não têm nada, virou gosto a função de catar palavras, cortar muitas, buscar o ritmo, os sons, a melhor forma para falar o poema, estar em grupo fazendo isso. Confesso: ainda estou no caminho e ainda ficarei nele muito tempo, uma existência talvez. Mas tem sido um caminho prazeroso e muito apaixonado. E sou agradecida: obrigado, Chacal e ao Grupo Farani Cinco Três!
agradecimentos agradecidos Ao Grupo Farani Cinco Três Poesia + Performance. Aos faranis: Adiron Marcos, Alice Souto, Ana Schlimovich, Bruno Borja, Carol Leal, Caró Lago, César Campos, Danilo Rodrigues de Melo, Deborah Carneiro da Cunha, Douglas Pedra, Dorly Neto, Felizpe Frutose, G, José Henrique Calazans, Luis Turiba, Liv Nicolsky, Nina Flor Adlin, Paulo Maciel, Romã Neptune, Silvia Castro e Thadeu Santos. Ao poeta Ricardo Chacal pela coordenação da oficina (ofiCEP) de onde saiu o estímulo e aprendizado para produzir esse livreto. Ao poeta Paco Cac por me apresentar Leminski e Cacaso. A Évora Giffoni e D. Maria Ramos (em memória) por me ensinarem o valor das palavras. Aos meus amigos pela força e trocas e à minha família pela paciência e ouvidos: D. Rute Ramos, Ney Robinson, Luciene Pereira, Márcia Fernandes, Lígia Feijó, Aurea Canuto, entre tantos. Aos amigos das redes sociais que me estimulam a escrever diariamente. A todos os poetas que fizeram da poesia sua estrada e me acompanham na minha através dos seus poemas.
À minha amiga Paulinha (Ana Paula de Sá Miranda), designer, artista plástica, contadora de histórias e admiradora de poesia. Viajou para o céu dos passarinhos, nesse ano de 2011.
tempo tempo
contratempo
Tempo
é curto para viver longo para doer não passa para esperar voa para chegar se muito faz esquecer se pouco faz reviver tempo é coisa esquisita não se pega, não se sente, não se olha, não se dita, não se come, não se bebe, [nem se coloca dentro de uma caixinha para ouvir ou ver depois] está e não está vem e vai não tem tamanho nem medida dizem que são horas, minutos e sgundos anos-luz, dimensão mas todo mundo sabe que não, ninguém segura o tempo com a mão.
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Tic-Tac Tic-Tac Tic-Tac Tic-Tac Tic-Tac Tic-Tac Tic-Tac Tic-Tac Tic-Tac Tic-Tac Tic-Tac Tic-Tac Tic-Tac Tic-Tac Tic-Tac Tic-Tac Tic-Tac Tic-Tac Tic-Tac Tic-Tac Tic-Tac Tic-Tac
Tic-Tac Tic-Tac Tic-Tac Tic-Tac Tic-Tac Tic-Tac Tic-Tac Tic-Tac
Tic-Tac Tic-Tac Tic-Tac Tic-Tac Tic-Tac Tic-Tac Tic-Tac Tic-Tac Tic-Tac
Tic-Tic-Tic-Tic-Tic-Tic
BOOOOOOM!
Nas águas sujas do chafariz, crianças tomam banho. [Um grupo da terceira idade faz exercícios com “os mais novos equipamentos instalados pela prefeitura para proporcionar saúde à população”.
Blade Runner
Pet-cola: meninos cheiram, adultos vendem. Mendigos urinam árvores Velhos jogam baralho não se importam A Polícia finge, com os meninos A Guarda Municipal não finge, mendigos Esfinge e árvores a Matriz tão centenárias. Calada, Os meninos Imóvel, mendigos Imponente. não se importam Amontoados com eles. de adolescentes As árvores talvez. matam aula, indiferentes.
Nessa praça, vez por outra, circo, ciranda, teatro, música, quadrilha, festa, brincantes, artistas, delinqüentes, e flores perfumadas de árvores insistentes. No Largo do Machado, um retrato e toda essa ausência, que dói.
O real urina na utopia balanรงa e vai embora
sem poesia
O real urina na poesia balanรงa e vai embora
sem utopia
De lixo recortado De lata em frio metal Com dobra e papel Fez-se um
Brinquedo
[Fiuim Fiuim Fiuim] De que serรก? Azeite Palmito Sardinha Caviar? Colorido a esmo, por sorte ou azar O delicado engenho Espera um vento um menino e seu tempo Para bater suas asas E voar.
Lá vai o poeta de bicicleta levando a vida na flauta na poesia e na ribalta
Lá vai o poeta sem meias palavras brincando de verdades inteiras pela vida afora noves fora tudo Lá vai o poeta com sua toca que não dorme não dá bobeira nem sossega nem se cega só se sente e assim se solta salpicando poesia a sua volta.
Byke poema p/Chacal
Largo da
Carioca
Da gema e tรฃo decente Sai do Largo e vai dar lรก na Tiradentes.
Alfândega, Senhor dos Passos Passo a passo, “passo o ponto”, me desfaço No caminho, na Colombo, Colombina toma chá com serpentina. Buenos Aires, na Caçula pra caçar o que fazer. Essas ruas tanta coisa tem pra te dizer. ... ouve o moço, vê a moça Tudo pra vender Na esquina da Regente, o “Tá na Rua” pra ter ver! Pastel com laranjada, Kibe, esfirra, batucada Festa de São Jorge, Ogunhê, Santo Guerreiro! “Não aceitamos cheques”, diz o letreiro. Nessas ruas tem de tudo De Sant'Anna a Uruguaiana De cotia a camelô Cristão, judeu, muçulmano Árabe, hindu, coreano... Não é deserto, é humano
Santa Sara Saravá
Saara
Em tela o tramado é tecido em nós fios novelos contornos contrastes consensos cores cem textos tramam com-tatos tocam e tremam textura de trezentos traços trocentos troços
tapetes taciturnos traem trançam e traçam tecidos em tantos pontos contos, cantos, contas e esperas
palavras pa-lavras lavram hiatos histórias inicio fim ... no texto trama o contexto onde o drama tece a sina e o tecido diz o texto e a espera aqui termina.
Boca: nunca beijarei. Boca de outro, que ris de mim, No milĂmetro que nos separa, Cabem todos os abismos. [Carlos Drummond de Andrade]
Boca: Batom Dentes Brancos lábios Vermelhas portas de entrada Para um Outro Universo Pessoa Lugar Acesso
Boca
Boca: que fala mas não ouço Só vejo, intuo a língua a brincar de esconde Movimento abre e fecha Da umidade rosa [vejo-te rosa dizem vermelha, mas és rosa] Que anima a gula Paladar e tato Desejo do gosto Do gozo
Beijo: Como será? Lento Apressado Intrometido Abusado? Curioso, o medo o retém. Impotente, em regime e dieta, Sem raiva. Guarda em sonho O beijo que não beijei. Beijarei?
... "Chega mais perto e contempla as palavras, Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra e te pergunta, sem interesse pela resposta, pobre ou terrĂvel, que lhe deres: Trouxeste a chave?"... [Carlos Drummond de Andrade]
Procura Como todas, ela brinca de esconde contigo, [como todas] está perto de ti em lugares inusitados como bolsos de calças esquecidas e cabides de lanternas sem pilha. Olhas para todo lado e não a vês. Procuras. Procuras até a beira da impaciência ____[não use a raiva, ela não é boa companheira na função de catar chaves perdidas ou procurar chaves novas]. O tempo que se perde na busca não é de todo perdido, no meio do caminho se encontra numa gaveta qualquer Proteja o conteúdo guardado pela chave o retrato esquecido, o brinquedo de infância, o poema de que procuras. guardanapo, a flor de papel. Sinta Observa e continua a procura, calmamente, mas não e a chave, graciosamente, como óculos desanimes. perdidos sobre a fronte, Não te conformes com portas fechadas aparecerá. ____[nem as deixes abertas aos salteadores.]
A Chave
pego ou nao pego? pego mas se pego apego e se apego (ai) o bicho pega melhor é pegar mas sem se apegar deixar solto bicho solto na mão - que bom! nessa pegação ferrado fica o coração que não entende esse pega-não-pega [pequenas pegações grandes confusões] de tanto sonho insano, coração faz queixa ao dono: pode pegar mas não apega, se apegar, e não der pega,
p/Alice
desapega!
Busca intimidade com ela. Então, observa-a - cheia de desejo buraco de fechadura, sem pudores, alma pura, de sonhos. Levanta-lhe as saias, enfia a mão pela braguilha, tateia umidade, fareja odores, sente crescer na língua o gosto na boca... E, assim, de palavra preenchida, Lambe os beiços.
Intima
A esfera desliza __gostoso, sobre a textura __macia, e a palavra se escreve __
Redonda
Palavra
cria asa Não cria lodo Só se fosse pedra E ai pedra seria A palavra crê e cria.
...o olhar é para a criança que agora chora, é de amor que a fome ignora. ...e são tantas senhoras ... de tantos nomes... da vida na rua do porto sem sorte no parto da lida. ...e são tantas marias sem joãos sem josés de tantas praças de tantas graças das dez graças... enfim, seu "tão menino ainda" adormece, em seu colo, profundo. E ela desaba do altar e aperta o divino contra o peito, e continua a pedir esmolas...
Pieta
na rua
Navega impune em línguas sem coragem [pré-requisito] bebe água podre nas sarjetas sobrevive como a guerra quer como a discórdia deixa dissonante dissidente de penada despenada recusada doente nesse largo de Machado sem Assis
Divino
ao símbolo não se foge a regra nem se trai o conceito: aleijada semimorta a paz é uma pomba que pula numa perna só.
No cĂŠu da boca a palavra
Estrela
se forma faz cĂłcegas e nos dentes
p/Estrela Leminski
Estala
feito fogos de artifĂcio.
nas coxas
Poemas com tes達o, na coxia, nas colchas de conchas. Com jeito, e sem pressa. E se o verso escapa, o poema aguarda. Se o tempo nega, a poesia entrega.