OCUPAÇÕES NA ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: SOLUÇÕES DE MORADIA E AÇÕES DE RESISTÊNCIA

Page 1

OCUPAÇÕES NA

ZONA PORTUÁRIA DO

RIO DE JANEIRO SOLUÇÕES DE MORADIA E AÇÕES DE RESISTÊNCIA NO CONTEXTO DO PROJETO PORTO MARAVILHA luciana alencar ximenes


LUCIANA ALENCAR XIMENES

OCUPAÇÕES NA ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: SOLUÇÕES DE MORADIA E AÇÕES DE RESISTÊNCIA NO CONTEXTO DO PROJETO PORTO MARAVILHA

Monografia de final de curso apresentada como requisito à obtenção do grau de Especialista em Sociologia Urbana, no curso de Pós-Graduação do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Orientador: Profa. Dra. Maria Josefina Gabriel Sant’anna

RIO DE JANEIRO 2017


Catalogação da publicação

Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanos

Ximenes, Luciana Alencar Ocupações na zona portuária do Rio de Janeiro: soluções de moradia e ações de resistência no contexto de implementação do Projeto Porto Maravilha – Luciana Alencar Ximenes – Rio de Janeiro, 2017. 135 f.

Orientadora: Profa. Dra. Maria Josefina Gabriel Sant’anna Monografia (Especialização em Sociologia Urbana) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro

1. Ocupações 2. Produção social do espaço 3. Porto Maravilha 4. Remoções



RESUMO

O restrito acesso à terra urbana, a ineficiente produção pública habitacional e a profunda desigualdade social levam grande parte da população brasileira a ter condições inadequadas de moradia ou à situação de rua. A moradia passa de condição intrínseca ao homem a um privilégio, dentro do amplo processo de segregação urbana das cidades brasileiras. Como caso emblemático, o Rio de Janeiro tem seu crescimento urbano junto ao surgimento de soluções de moradia das classes populares como ações de resistência ao contínuo processo de expulsão das áreas de interesse do capital. O presente trabalho busca lançar luz sobre as recentes ocupações para fins de moradia, localizadas na zona portuária, como ações diretas dos movimentos sociais urbanos e que têm enfrentado grandes tensões com início de uma onda de remoções forçadas que, mais uma vez, afastam a população pobre da área da central da cidade, legitimada pelo Projeto Porto Maravilha. O estudo permite reconhecer as ocupações como soluções de moradia das classes populares, compartilhando dos estigmas que fortalecem a exclusão social desta população. No âmbito da produção do espaço urbano, o Porto Maravilha mostra-se como uma das engrenagens da segregação urbana e da violação do direito à moradia por meio de ações do poder público articulado com o capital privado, seguindo diretrizes do Planejamento Estratégico. Como resistências a este processo, surgem projetos de produção de moradia por autogestão dos grupos de moradores das ocupações que, ao colocarem a demanda pela Produção Social da Moradia, por meio de autogestão, na região central da cidade e com entendimento amplo da moradia colocamse como importantes ações contra-hegemônicas.


LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1 - Caricatura de Oswaldo Cruz, na revista O malho de 1907................ Figura 2 - A destruição do “Cabeça de Porco” na capa da Revista Ilustrada .... Figuras 3 e 4 - Ocupação Chiquinha Gonzaga: antigo prédio do INCRA ocupado e abastecimento de agua improvisado .................................................. Figuras 5 e 6 - Ocupação Zumbi dos Palmares: vistas da fachada do antigo prédio do INSS ocupado ..................................................................................... Figura 7 - Ocupação Quilombo das Guerreiras, vista a partir de sua horta ....... Figura 8 - Simulação do novo “skyline” da área do Projeto Porto Maravilha a partir dos empreendimentos imobiliários previstos ............................................ Figura 9 - Porto Vida Residencial: expectativa de projeto em contraste com a obra paralisada .................................................................................................... Figuras 10 e 11 - Lumina Rio, um dos empreendimentos residenciais de alto padrão para a região portuária, lançado em março de 2015 com a presença do Prefeito Eduardo Paes ......................................................................................... Figura 12 - Mapeamento das licenças do PMCMV, por faixa de renda salarial e número de unidades – 2009 a 2013 .................................................................. Figuras 13 e 14 - Detalhes do Mapeamento das licenças do PMCMV, com destaque para a região portuária com prioridade da faixa de 3 a 6 salários mínimos .............................................................................................................. Figura 15 - Mapa elaborado em 2015 com o status dos empreendimentos do MCMV para zona portuária, explicitando a inexistência de empreendimentos contratados nesta área ......................................................................................... Figura 16 - Remoções forçadas e a periferização da produção de moradias pelo PMCMV como viabilizador deste processo ............................................... Figura 17 – Linha cronológica das ocupações na zona portuária; grandes eventos internacionais; e marcos políticos e institucionais ............................... Figura 18 - Mapeamento de favelas e ocupações de movimentos sociais ameaçados de remoção na zona portuária .......................................................... Figura 19 - Cena do documentário “Atrás da porta” mostrando a ação policial na remoção forçada da Ocupação Casarão Azul ................................................. Figura 20 - Registro da ação policial na remoção forçada da Ocupação Casarão Azul ....................................................................................................... Figura 21 - Mapeamento das ocupações que permanecem e novos empreendimentos de uso habitacional previstos na Zona Portuária ................... Figura 22 - Trecho da entrevista de Guilherme Boulos (MTST) em resposta à pergunta “Como vocês analisam o PMCMV?”................................................... Figura 23 - Trecho da entrevista de Maria de Lurdes Lopes (Lurdinha) e Elisete Napoleão (ambas do MNLM) em resposta à pergunta “Como vocês analisam o PMCMV?”......................................................................................... Figuras 24 e 25 - Oficinas de construção do Projeto Quilombo da Gamboa .... Figuras 26 e 27 - Concepções do Projeto Quilombo da Gamboa, destacando o interesse da sua interação com o espaço público ................................................

23 31 44 45 47 61 66

67 70

70

71 73 88 89 92 92 97 105

105 110 110


LISTA DE TABELAS Tabela 1 - Informações gerais das favelas e ocupações de movimentos sociais na zona portuária ................................................................................................. 48 Tabela 2 - Ocupações de movimentos sociais e favelas removidas ou sob ameaça de remoção ............................................................................................. 86


SUMÁRIO Introdução ........................................................................................................................................ 7 1.

O morar .................................................................................................................................. 15

2.

Soluções de moradia das classes populares e suas representações na zona portuária do Rio

de Janeiro ....................................................................................................................................... 19 2.1

Cortiços............................................................................................................................... 28

2.2

Favela ................................................................................................................................. 32 O crescimento urbano e a favela carioca ............................................................................... 32 Favela como território da pobreza e da violência .................................................................. 36

2.3

Ocupações ........................................................................................................................... 39

3.

Reconfiguração espacial do ambiente construído: o projeto porto maravilha e os conflitos

em torno da moradia ...................................................................................................................... 50 3.1

mobilidade do capital e a configuração espacial do ambiente construído .......................... 50

3.2 O Projeto Porto Maravilha enquanto ação de planejamento estratégico do Rio de Janeiro .... 53 O modelo do Planejamento Estratégico no Brasil ................................................................. 53 breve análise crítica do instrumento da Operação Urbana Consorciada ............................... 56 O Projeto Porto Maravilha ..................................................................................................... 59 O uso habitacional no Projeto Porto Maravilha: conflitos da permanência e a inserção de novos perfís populacionais .................................................................................................... 64 O Plano de Habitação de Interesse Social do Porto Maravlha .............................................. 77 4.

Ocupações no contexto do projeto porto maravilha .............................................................. 83

4.1

A onda de remoções ............................................................................................................ 83

4.2

As permanências ................................................................................................................. 99

5.

Conclusões e perspectivas ................................................................................................... 113

6.

Bibliografia .......................................................................................................................... 131


7

INTRODUÇÃO O morar é condição intrínseca ao homem como o conhecemos hoje. É a casa que representa o enraizamento do homem no espaço urbano e social. Como nos diz Bachelar, a casa é “nosso canto no mundo (...) nosso primeiro universo (...) um verdadeiro cosmos”. Diante da condição brasileira de extrema desigualdade social e urbana, o elevado custo da terra retira de grande parte da população o direito à moradia digna, levando-as a condições precárias de moradia (insalubridade, insegurança, ônus excessivos com aluguel etc). Esta grande parte da população brasileira compõem o grupo que aqui denomino como sem-teto. Diante da complexidade desta temática, me parece importante incorporar este entendimento reivindicado por movimentos sociais urbanos no qual ampliamos a condição de sem-teto para além da população em condição de rua e damos visibilidade a esta grande parcela da população sem condições dignas de moradia, estando ela organizada ou não em movimentos sociais. Na medida em que a moradia digna passa a ser um privilégio de uma pequena parcela da população, podemos reconhecer a sua produção como parte do amplo processo de segregação urbana nas cidades brasileiras. Enquanto a insipiente produção de moradias de interesse social por meio do Estado sofre com o grave problema da inserção periférica, por outro lado a produção privada da moradia atende às demandas por valorização do capital que não dialogam com o baixo poder aquisitivo das classes populares. Assim, a questão da moradia permanece em aberto diante da emergência de que, de um jeito ou de outro, é preciso morar. Acompanhando a evolução urbana das cidades brasileiras, deste o início do século XX, na cidade do Rio de Janeiro, este quadro tem levado ao surgimento de diversas soluções insurgentes que aqui são entendidas e discutidas como ações de resistência. Dentre as mais diversas soluções de moradia das classes populares, como favelas e cortiços, aqui nos detemos às recentes ocupações de vazios urbanos para fins de moradia que têm em comum, dentre suas diversas especificidades, a união em prol de um projeto político. Estas ações de resistência dos movimentos sociais urbanos dos sem-teto promovem a territorialização de espaços estratégicos, configurando um novo domínio político neste espaço da cidade. Como fruto da organização e da discussão política destes grupos, a região central foi definida como área prioritária de ocupação na cidade do Rio de Janeiro. Esta definição passa pelo caráter simbólico de se disputar o espaço da cidade que concentra em torno de si grandes tensões


8

e diversas dimensões, acumulando camadas históricas que lhe atribuem uma elevada densidade social; mas também responde à grande demanda por moradia nesta área da cidade, consequente da deficiência de políticas habitacionais para a população de baixa renda, a péssima qualidade e o alto custo do transporte público e a precarização dos vínculos trabalhistas. Esta diretriz de localização das ocupações na cidade do Rio de Janeiro vai ao encontro do grande número de imóveis vagos cumprindo fins especulativos nesta área, dos quais grande parte é imóvel público (especialmente da União). O conjunto de diretrizes e a disponibilidade de imóveis vagos são encontrados especialmente na antiga zona portuária da cidade, que vem passando por um processo de esvaziamento de suas atividades industriais e portuárias conjuntamente com os reflexos desta especialização do uso do solo. Sua configuração fez da zona portuária a área na qual se concentraram diversas ocupações para fins de moradia, realizadas por movimentos sociais urbanos no início dos anos 2000. A zona portuária, composta oficialmente pelos bairros Saúde, Gamboa e Santo Cristo, possui limites imprecisos e que podem ser sensibilizados a partir de cada perspectiva que se toma. Nela estão impressas disputas entre Estado, capital imobiliário e população que, ao longo do tempo, moldaram essa área de acordo com seus interesses e necessidades. A zona portuária tem sua identidade atrelada a uma estrutura de capital fixo do processo produtivo, a estrutura portuária, que ao possibilitar a circulação do capital sob a forma de mercadoria se insere no processo produtivo (HARVEY, 2013). A esta parte fixa da indústria do transporte é então atribuída uma grande desvantagem pelo lento ritmo das mudanças tecnológicas, o qual levou à inadequação do antigo porto do Rio para as atividades demandadas após a chegada dos “containers”, na segunda metade do século XX. Sua condição de capital fixo torna-a extremamente vulnerável à desvalorização contra a qual o capital constantemente aciona o Estado como regulador. Desta forma, são diversas as intervenções do Estado nesta área da cidade, desde as regulações quanto à permissão ou não do uso habitacional que compõem a elevada especialização do uso do solo, passando pela proibição de habitações insalubres, as grandes obras urbanísticas que buscam alterar o sistema de mobilidade urbana da cidade por meio de rasgos na antiga malha urbana local, chegando ao projeto de Porto Maravilha em curso atualmente. Diante de sua inclusão no processo produtivo e sua vulnerabilidade à desvalorização, apesar das constantes intervenções do Estado, a zona portuária foi, ao longo dos anos, um local de moradia das classes populares, abrigando as suas


9

mais diversas soluções como cortiços, estalagens, avenidas e favelas. Esta região da cidade chegou ao fim do século passado em uma configuração singular por sua oferta de um estoque de imóveis vazios públicos, bem localizados e com baixa fluidez no mercado imobiliário; em um contexto de grande segregação urbana e escassa oferta de moradia a baixo custo. Esta condição abre espaço para a apropriação desse estoque de imóveis vazios como formas de moradia diversas. As particularidades desta região contígua ao centro da cidade do Rio de Janeiro costuram no histórico da sociedade representações diversas, mas que são conjuntamente permeadas pela construção de um estigma de sua população como atores da ameaça social, diretamente associada às soluções de moradia dos trabalhadores, assim como dos vagabundos e malandros. A configuração original dos terrenos desta área da cidade – mangues e enseadas – somada à presença de habitações coletivas e precárias reforçam sua imagem como área insalubre e foco de doenças. Enquanto sua imagem como local da pobreza e da insubordinação é ressaltada pela presença de estivadores, antigos escravos e imigrantes europeus que juntos são protagonistas de diversos movimentos sociais de reinvindicações e revoltas, como a Revolta da Vacina e a luta travada pelos moradores do cortiço que ficou conhecido como Cabeça de Porco, contra a derrubada de seus lares. Após as diversas intervenções urbanas que permearam a zona portuária na virada para o século XX, ela atravessa um longo período com poucas obras públicas e poucos investimentos privados, tornando-se um contraponto do dinâmico vetor imobiliário que seguia na direção sul da cidade. A ausência de investimentos e ações do poder público ocorre junto à consolidação da imagem do Porto como local de abandono, afastado dos grandes fluxos da cidade, e ao fortalecimento do estigma sobre seus moradores. Mesmo diante dos diversos edifícios ocupados para fins de moradia, abrigando uma grande população de pobres urbanos, é criada e reforçada a imagem desta área como um vazio urbano. O discurso hegemônico da ausência do uso habitacional na zona portuária da cidade age no sentindo de silenciar a presença de algumas das primeiras favelas da cidade, como o Morro da Providência e o Morro do Pinto. Dos estigmas e da exclusão compartilham também os muitos moradores das ocupações urbanas da zona portuária. A semelhança do perfil sócio econômico de seus ocupantes e sua dita informalidade tanto na propriedade da terra ocupada como dos vínculos empregatícios, levam à constante associação entre favelas, cortiços e ocupações no senso comum.


10

Estes estigmas sobre as classes populares e suas soluções de moradia na zona portuária são fortalecidos ao longo da sua evolução urbana marcada por “sucessão de momentos de expulsão do uso residencial e das camadas populares, em que se destacaram a ação interventora do Estado (pela reforma urbana), a sua ação normativa (pela ação legislativa), e a ação do mercado (pela valorização da terra), que respectivamente expulsaram, impediram e desencorajaram a habitação popular” (VAZ, SILVEIRA, 1994, p.8). O deslocamento forçado desta parte da população pobre urbana realizado por meio de expulsões, despejos judiciais e remoções, podem ser vistos como parte de uma ação política permanente, que encontra nas conjunturas específicas de cada período as suas justificativas. A recente onda de remoções forçadas das ocupações da zona portuária - da Ocupação Casarão Azul em 2009, das Ocupações Carlos Marighela, Zumbi dos Palmares e Flor do Asfalto em 2011; da Ocupação Machado de Assis em 2012; e da Quilombo das Guerreiras em 2014 ocorre junto ao sofrimento desta população, que pela sua saída forçada do local de moradia por meio de ações que desconsideram sua organização coletiva e as profundas relações existentes com o território no qual se inseria, perde a segurança do abrigo que aquela rede social constituía. Esta onda de remoções exige resistência das classes populares, que lutam e se posicionam politicamente para defender suas soluções de moradia. Assim como imprime no cotidiano desta população o sofrimento da remoção. A nova conjuntura que em seu discurso legitima as ações de remoções ocorre na recente rodada de neoliberalização, que chega ao Brasil na década de 1990 trazendo o modelo do Planejamento Estratégico. Neste modelo de planejamento as cidades funcionam como uma grande empresa, buscando produtividade e competitividade no processo de globalização. Neste quadro tem destaque a ação do governo local como promotor da cidade, criando condições de “cooperação” entre poder público e privado. Dentre suas ações está o Projeto Porto Maravilha como uma das principais estratégias de renovação urbana para o aumento da competitividade do Rio de Janeiro em âmbito mundial, que propõem grandes transformações urbanísticas na antiga zona portuária da cidade. Ele apropria-se de um espaço com fortes traços identitários para a cidade, sobre o qual argumenta-se que não vinha sendo devidamente explorado, o que legitima a grande intervenção urbana em andamento. Diante do contexto de crise mundial, este projeto é apresentado como um grande auxílio à sua superação, com a atuação conjunta do poder público e agentes econômicos.


11

O Projeto Porto Maravilha traz como uma de suas diretrizes centrais a atração de novos moradores por meio de empreendimentos habitacionais sob o fortalecimento do estigma da população existente nesta área da cidade, colocando em seu discurso a zona portuária como uma área “abandonada”, um vazio urbano. Neste momento transparece a estratégia deste modelo de planejamento que busca tornar invisíveis os conflitos sociais em torno de suas ações, que em contraponto são explicitados pela resistência das diversas ocupações. Apesar desta diretriz, o uso habitacional aparece em quantidade pouco significativa de empreendimentos para a região, priorizando o fortalecimento do mercado imobiliário neste setor e tendo como foco a população de classe média e média alta, o que ocorre em detrimento a uma das principais justificativas colocadas na Lei de criação deste Projeto: a garantia do direito à moradia e a promoção de habitação de interesse social. O Projeto Porto Maravilha, portanto, dá continuidade ao histórico processo de segregação das classes populares, expulsas das regiões centrais e de melhor localização da cidade. A segregação urbana ocorre não só pela ausência de ofertas de habitações para as diversas camadas sociais e de políticas de manutenção da população já residente, mas também de forma direta e incisiva com a massiva remoção forçada de moradores da zona portuária do Rio de Janeiro, com a violação de direitos fundamentais e estratégias de enfraquecimento dos grupos. Como ação de resistência, algumas ocupações que se organizam em torno de um projeto político têm se articulado para permanecer na zona portuária por meio de projetos de autogestão da produção da moradia, são elas: Ocupação Chiquinha Gonzaga, Ocupação Mariana Crioula e a Ocupação Quilombo das Guerreiras. Cada ocupação traçou sua estratégia de resistência, de acordo com os atores envolvidos (movimentos sociais, proprietários dos terrenos e diferentes esferas da justiça) e as condições que encontraram ao longo do processo, entretanto, guardam em comum a opção por ocupar e permanecer em terrenos públicos e realizar seu projeto de moradia por autogestão. Ao colocar a demanda pela Produção Social da Moradia, por meio de autogestão, em uma região central da cidade e com um entendimento amplo da moradia, estes casos colocam-se como ações contra-hegemônicas, que disputam a cidade com seus grandes atores capitalistas. Ao reconfigurar o espaço urbano e estabelecer novos domínios no território, estes projetos são, portanto, mais uma forma de ação direta dos movimentos sociais urbanos em sua luta política.


12

Este breve estudo parte da minha vontade enquanto pesquisadora em lançar luz sobre a disputa entre o interesse estratégico dos pobres urbanos de morar em uma área central, próxima aos bens comuns e espaços de geração de renda, e o interesse do mercado imobiliário em inserir nesta área usos que permitam maior acumulo de capital. Esta disputa torna-se mais clara quando analisamos as soluções de moradia das classes populares nas áreas centrais. Na cidade do Rio de Janeiro, a zona portuária se constitui como um recorte espacial de elevada densidade social, abrigado historicamente as classes populares (tanto em sua moradia como em seu trabalho) e com uma configuração urbana de interesse específico do capital, o qual tem as ocupações de prédios vazios para fins de moradia como uma das principais ações de resistência. Desta forma, tem-se como questão norteadora compreender como estas ocupações inserem-se dentre as soluções de moradia das classes populares (compartilhando suas representações, agregando o caráter autogestionário e pautando-se por um projeto político do qual é uma ação direta de luta urbana), em resistência ao padrão de urbanização que preza pela valorização do solo a partir da intensificação dos usos mais rentáveis. Este padrão de urbanização é percebido no Projeto Porto Maravilha, sendo este mais um elemento das conjunturas historicamente usadas para legitimar o deslocamento forçado da população pobre urbana em prol da acumulação de capital. O contexto recente de ocupações na zona portuária do Rio de Janeiro, marcado pelo início da Ocupação Zumbi dos Palmares em 2005, é fortemente tensionado em 2009 pela apresentação do Projeto Porto Maravilha na aprovação da Operação Urbana Consorciada (OUC). No período que segue, diversas ocupações surgem na zona portuária, a OUC avança com suas ações em busca da valorização do solo e muitos são os eventos internacionais sediados no Rio de Janeiro como elementos do Planejamento Estratégico em curso. Diante do adensamento dos conflitos que surgem com este quadro, o estudo aqui apresentado buscou aprofundar-se no período que segue desde o início da Ocupação Zumbi dos Palmares até a realização dos Jogos Olímpicos 2016, sediados no Rio de Janeiro, mesmo ano em que se encerra o período de governo municipal de Eduardo Paes. A apresentação do estudo se inicia no capítulo “O Morar”, no qual busquei fazer-nos não perder de vista a dimensão cósmica do morar. Neste momento é introduzido o tema da moradia a partir do estudo fenomenológico de Bachelard em seu livro “A poética do espaço” (2008). Esta dimensão é retomada ao longo do estudo para que possamos questionar como se


13

alcança a complexidade do morar, em toda sua cosmicidade, nas ocupações, diante da constante tensão imposta sobre a sua permanência em contraponto à sua função de abrigo. No capítulo seguinte, “Formas de moradia das classes populares e suas representações na zona portuária do Rio de Janeiro”, busco discutir a zona portuária a partir do uso habitacional, de como é representada a sua população e destacar as soluções habitacionais encontradas pela classe trabalhadora e de baixa renda para se manter nesta região de localização privilegiada e em disputa na cidade. Partindo de uma breve apresentação da área para então traçar uma perspectiva histórica destas questões. Como primeira solução de moradia eu abordo os cortiços, dando especial atenção ao episódio da remoção do Cabeça de Porco, mais famoso cortiço carioca que abrigava uma enorme quantidade de moradores e que foi violentamente destruído pelo poder público municipal junto a empresários que tornaram-se figuras ativas nas grandes reformas urbanas do Rio de Janeiro. Em seguida discuto a favela como solução de moradia, partindo das representações criadas sobre os moradores dos primeiros aglomerados, vistos como locais provisórios de moradia, um perigo à ordem social com o risco de contagio. Em um quadro mais recente, discuto a representação da favela como território da pobreza e da violência, com a violação consciente e consentida de direitos de cidadania da população favelada, considerada como agente em potencial da desordem social. As ocupações são incluídas neste tópico como uma das formas de moradia das classes populares. Neste momento do estudo, trago uma discussão sobre a definição de sem-teto como movimento social que tem a moradia como seu mote principal, tendo percepções distintas do que significa e importa nesta luta, indo deste a conquista de um local de moradia com condições dignas de habitabilidade até a inserção ampla desta luta em um contexto de projetos políticos de transformação social. Apresento neste tópico um breve resgate do processo histórico de formação das ocupações Chiquinha Gonzaga, Zumbi dos Palmares e Quilombo das Guerreiras que foram as primeiras ocupações de sem-teto na região central do Rio de Janeiro com projetos políticos, vinculadas ou apoiadas por organizações sociais e que, até hoje, mantêm-se como referências importantes desta luta. O capítulo seguinte, “Reconfiguração espacial do ambiente construído: o Projeto Porto Maravilha e os conflitos em torno da moradia”, inicia-se com um resgate teórico sobre a mobilidade do capital e a configuração espacial do ambiente construído, tendo como referência o


14

estudo de David Harvey sobre as estruturas de capital fixo para assim podermos ler a estrutura portuária, sua baixa fluidez e a propensão à desvalorização. Em seguida, discuto o Projeto Porto Maravilha no âmbito do Planejamento Estratégico, apresentando este modelo de planejamento em curso na cidade do Rio de Janeiro e seu desenho como Operação Urbana Consorciada, instrumento que melhor transparece este modelo de planejamento. Sigo apresentando o Projeto Porto Maravilha em si, sua legitimação pelo discurso que coloca a zona portuária como área abandonada e em decadência; sua estrutura financeira que traz a combinação de fundos públicos e grande volume de capital; e a criação de um cenário especulativo e fragmentado. De forma mais aprofundada, discuto a questão da moradia no contexto de implementação do Projeto Porto Maravilha. É destacada a ausência de propostas significativas de produção de moradias de interesse social pelo poder público, seja pelo Programa Minha Casa Minha Vida ou pelo Programa Novas Alternativas, e o perfil dos empreendimentos promovidos pela iniciativa privada em andamento, levando ao entendimento de que as novas unidades habitacionais que surgem na região portuária têm como foco a população de classe média e média alta. Esta pequena produção de moradias prevista se dá em um cenário de ausência de políticas de manutenção da população já residente e forte processo de remoção direta de antigos moradores. Desta forma é dada continuidade ao histórico processo de segregação das classes populares, expulsas das regiões centrais e de melhor localização da cidade. Diante desta crítica, é apresentado e analisado o Plano de Habitação de Interesse Social do Porto Maravilha, exigência da esfera federal para aplicação de recursos do FGTS em Operações Urbanas Consorciadas, buscando tornar claras as contradições entre o Projeto Porto Maravilha e suas diretrizes colocadas no PLHIS Porto. Por fim, no capítulo “Ocupações no contexto do Projeto Porto Maravilha” adentro na discussão sobre a onda de remoções forçadas, em curso desde os anos 2000. Ela atinge especialmente as ocupações que se colocam como ações de resistência contra o padrão de urbanização em curso. Neste momento do texto são discutidas as remoções forçadas de grande parte das ocupações da zona portuária, que ocorrem com diversas violações de direitos fundamentais. Trago também uma análise sobre o momento do despejo, o uso da força policial e a constante indefinição e fragmentação do destino (distante da zona portuária) de cada membro da ocupação. Utilizo o conceito de “cultura de remoção” (GALIZA, VAZ, SILVA, 2014) para


15

analisar este processo em curso como parte de uma ação política historicamente permanente, que encontra nas conjunturas específicas de cada período as suas justificativas. Dentro deste último tópico, o estudo aborda ainda as permanências das poucas ocupações que resistem à onda de remoções, articulando-se em torno de projetos de autogestão da produção da moradia. São elas: Ocupação Chiquinha Gonzaga, Ocupação Mariana Crioula e a Ocupação Quilombo das Guerreiras. É discutido o conceito de “Producción Social del Habitat”, a influência uruguaia e as experiências nacionais de autogestão da produção da moradia. Diante do caminho traçado pelas ocupações, no qual inseriram suas lutas no campo da política pública, é problematizado o Programa Minha Casa Minha Vida, em especial sua linha voltada para Entidades, na qual as ocupações se enquadram. A inserção destes projetos na zona portuária, propondo a permanência dos moradores de cada ocupação, se diferencia positivamente do padrão de inserção periférica dos projetos produzidos pelo PMCMV. No entanto surgem novos desafios, dentre os diversos enfrentados, na necessidade de estabelecer diálogos com o padrão de ocupação urbana promovido para o seu entorno, dentro do contexto de implementação do Projeto Porto Maravilha, em uma situação de intensa proximidade territorial e distância social.

1. O MORAR O contexto urbano no qual se inserem as questões abordadas neste trabalho traz consigo uma grande complexidade ao significado do morar. Podemos abordar o morar por meio do olhar do urbanismo, das políticas públicas habitacionais, do mercado imobiliário, da economia crítica, dos movimentos sociais contra-hegemônicos etc. Entretanto, transitando nestas esferas, por vezes nos afastamos de sua essência, deixando predominar um olhar distante. Neste tópico inicial me interessa tornar a construção das ideias deste trabalho sensíveis à essência do morar. Inicio o resgate da essência do morar apartir da obra “A poética do Espaço”, do filósofo francês Gaston Bachelard (1957). Neste livro, o autor elabora um estudo fenomenológico da casa, local do morar, espaço íntimo que participa da vida cotidiana desencadeando sentimentos e lembranças, abrigando a imaginação e os devaneios. É apresentada como tarefa básica do fenomenólogo ultrapassar os limites e problemas da descrição em busca das virtudes primárias, da “função original do habitar”. Pra o autor “O geógrafo, o etnógrafo podem descrever os mais variados tipos de habitação. Sobre essa variedade, o fenomenólogo faz o esforço necessário para compreender o germe da felicidade central, segura, imediata. Encontrar a concha inicial em


16

toda moradia, no próprio castelo – eis a tarefa básica do fenomenólogo.” (BACHELARD, 2008: 24). Bachelard nos apresenta a casa como lugar do enraizamento, o qual no cotidiano consolida-se como “nosso canto no mundo (...) nosso primeiro universo (...) um verdadeiro cosmos.” (BACHELARD, 1884-1962, p. 24). Ao nos apresentar a imagem da casa, o autor tem o cuidado de não romper os laços entre a memória e a imaginação. Como todos os abrigos, a casa não é vivida somente no ato presente, no dia-a-dia, ela traz junto o passado. Por meio do devaneio “um âmbito imemorial se abre para além da mais antiga memória”, ele ilumina a síntese entre o imemorial e a lembrança. E é esta a função maior da casa para o autor, ser um abrigo seguro para o devaneio. “Nessas condições, se nos perguntam qual o benefício mais precioso da casa, diríamos: a casa abriga o devaneio, a casa protege o sonhador, a casa permite sonhar em paz. Só os pensamentos e as experiências sancionam os valores humanos. Ao devaneio pertencem valores que marcam o homem em sua profundidade” (BACHELARD, 2008, p.26). Dito isso, o autor expõe como objetivo de seu estudo “mostrar que a casa é uma das maiores (forças) de integração para os pensamentos, as lembranças e os sonhos do homem. Nessa integração, o princípio da ligação é o devaneio” (BACHELARD, 2008, p.26). Tratando das diversas imagens que a casa traz, o autor busca ordená-las em dois temas principais que se interligam, são eles a casa como “ser vertical” e a casa como “ser concentrado”. A verticalidade é trabalhada a partir da oposição entre sótão e porão, respectivamente a racionalidade e a irracionalidade. O autor nos convida a perceber a verticalidade a partir do entendimento da função do habitar como réplica imaginária da função do construir: Os andares elevados, o sótão, o sonhador “os edifica” e os reedifica bem edificados. Com os sonhos na altitude clara estamos, convém repetir, na zona racional dos projetos intelectualizados. Mas, quanto ao porão, o habitante apaixonado cava-o cada vez mais, tornando ativa sua profundidade. O fato não basta, o devaneio trabalha. Com relação à terra cavada, os sonhos não têm limite. (BACHELARD, 2008, p. 37)

Quando o autor traz essa análise da verticalidade para as casas das grandes cidades, ele nos alerta de serem “moradas oniricamente incompletas”. Tendo como exemplo as casas da grande Paris, o autor descreve a cidade como um amontoado de caixas, com localizações definidas por algarismos, sem espaço ao redor nem verticalidade em seu interior. Para o autor não


17

existem casas em Paris! “Falta às diferentes peças de um abrigo acuado no pavimento um dos princípios fundamentais para distinguir e classificar os valores de intimidade. À falta de valores íntimos de verticalidade, é preciso acrescentar a falta de cosmicidade da casa das grandes cidades” (BACHELARD, 2008, p.44-45). Como uma solução para esse problema o autor nos aponta a imaginação, dando como exemplo a metáfora do oceano, com a qual constrói uma imagem particular dos sons e acontecimentos da cidade como elementos da natureza, o barulho dos carros sendo visto como um trovão de uma grande tempestade. Já trabalhando a imagem de centralidade da casa, ele nos leva a buscar os centros de simplicidade. Em nossas fugas pela segurança e proteção em um refúgio, chegamos à imagem da casa primitiva, aquela mais simples, a cabana. Bachelard trabalha essa imagem por meio da obra de Bachelin e nos leva a compreender a relação da cabana com a essência da função do habitar. Nas palavras do autor: “Nas páginas de Bachelin, a cabana revela-se como a raiz axial da função do habitar. Ela é a planta humana mais simples, aquela que não precisa de ramificações para subsistir. É tão simples que não pertence mais às lembranças, tantas vezes excessivamente carregadas de imagens. Pertence às lendas. É um centro de lendas” (BACHELARD, 2008, p.48). Percorrendo a leitura de Bachelard, temos claro o caráter essencial do morar para a vida humana. Das mais diversas formas que a moradia possa ocorrer, em sua essência ela é imprescindível. Entretanto, no Brasil, o acesso a este bem tem se dado de forma bastante restrita. Na condição urbana de grandes disparidades sociais, o elevado custo da moradia inviabiliza seu amplo acesso pelas classes populares, o que leva uma grande parte da população brasileira a possuir condições precárias de moradia (insalubres, inseguras, com elevados alugueis etc.) ou não ter acesso algum a este bem, vivendo em situação de rua. Esta grande parte da população brasileira compõem os sem-teto. A visão ampla do conceito de sem-teto, para além da população em situação de rua, é reivindicada pelos movimentos sociais de moradia como forma de desconstruir o mito de que os sem-teto seriam uma exceção da população urbana, um caso isolado. O número de sem-teto em nosso país é incrivelmente alto: são cerca de 22 milhões de pessoas que não têm casa, morando de favor, em barracos totalmente precários ou pagando aluguel que – pela baixa renda familiar – inviabiliza a sobrevivência. Além disso, existem mais ou menos 48 milhões de pessoas que vivem sem condições básicas de serviço público e infraestrutura. [...] Por isso entendemos que os sem-teto são todos


18

aqueles que são afetados pelo problema da moradia, seja pela falta dela ou por tê-la nas condições precárias. São aqueles trabalhadores a quem o capitalismo atacou de modo brutal, com suas armas mais afiadas: desemprego, baixos salários, trabalho informal, superexploração. (BOULOS, 2015, p. 89-90)

Para esta parte da população, a ocupação passa a ser a solução de acesso à moradia e uma estratégia de luta urbana. “Como pagar aluguel ganhando um salário mínimo por mês? Ou, pior ainda, ganhando algum só quando aparece a oportunidade de um bico? Estas questões não têm resposta e, por isso, muitos trabalhadores constroem sua própria resposta ao ocuparem os terrenos e prédios deixados vazios pela especulação imobiliária” (BOULOS, 2015, p.90). As ocupações urbanas, forma de moradia das classes populares a qual vamos nos profundar neste trabalho, têm dentre suas diversas especificidades as configurações espaciais com grandes precariedades (de infraestrutura, de privacidade, de manutenção) conciliadas ao princípio do bem comum, da solidariedade, da luta por um ideal de projeto político. Soma-se a estas configurações o risco constante do despejo, os embates políticos para sua permanência, e a necessidade financeira do trabalho individual para a sobrevivência de seus moradores. Nas condições espaciais e simbólicas que pouco se assemelham à imagem da cabana que Bachelard nos descreve, como então estes coletivos alcançam as diversas dimensões da casa, sua verticalidade? Em que momento é permitido e realizado o devaneio? Com a vivência recente do espaço ocupado, o qual não abriga de fato a longa história de vida de seus moradores, e sim tendo sido conquistado por luta coletiva, como se dá o “enraizamento”, o “sonho” e o “devaneio”? Como um caminho possível para explorar estas questões podemos recorrer ao poder da imaginação tão ressaltado por Bachelard, aquele capaz de dar a todo ser a sensação dos limites de seu abrigo, vivendo a casa “em sua realidade e em sua virtualidade”. (...) todo espaço verdadeiramente habitado traz a essência da noção de casa [...] como a imaginação trabalha nesse sentido quando o ser encontrou o menor abrigo: veremos a imaginação construir "paredes" com sombras impalpáveis, reconfortar-se com ilusões de proteção ou, inversamente, tremer atrás de um grande muro, duvidar das mais sólidas muralhas. Em suma, na mais interminável dialética, o ser abrigado sensibiliza os limites de seu abrigo. Vive a casa em sua realidade e em sua virtualidade, através do pensamento e dos sonhos. Por consequência, todos os abrigos, todos os refúgios, todos os aposentos têm valores de onirismo consoante. Não é mais em sua positividade que a casa é verdadeiramente "vivida", não é só na hora presente que se reconhecem os seus benefícios. O verdadeiro bem-estar tem um passado. Todo um passado vem viver, pelo sonho, numa casa nova. A


19

velha locução: "Carregamos para a casa nova nossos deuses domésticos" tem mil variantes. (BACHELARD, 2008, p.25)

Do conflito entre o entendimento do caráter essencial e imprescindível do morar e da grande parcela da população urbana sem acesso a este bem surgiram diversos marcos que visam a garantia legal da moradia, especialmente a partir da segunda metade do século XX. A moradia adequada é reconhecida como um direito humano pela Declaração Universal dos Direito Humanos em 1948, tornando-se um direito humano universal, aceito e aplicável em todas as partes do mundo como um dos direitos fundamentais. Já em 1991, a Organização das Nações Unidas buscou tratar o tema dando-lhe uma abrangência para além do espaço físico e limitado da casa. Passa a ser considerada uma “moradia adequada” a que contempla os seguintes pontos: segurança da posse; disponibilidade de serviços, infraestrutura e equipamentos públicos; custo acessível; habitabilidade; não discriminação e priorização de grupos vulneráveis; localização adequada; e adequação cultural.1 Apesar dos grandes avanços normativos para a garantia da moradia adequada, é latente a amplitude da violação a este direito. Como relatado no trecho aqui apresentado de Guilherme Boulos, no Brasil estas violações ocorrem em um contexto urbano singular e atingem uma enorme parcela da população. Diante da relevância do morar, de todo o cosmo que é a casa para seu morador e de sua problemática no espaço das grandes cidades, no próximo tópico serão tratadas as fsoluções de moradia (e resistência) das classes pobres urbanas na cidade do Rio de Janeiro, com foco na evolução urbana de sua antiga zona portuária.

2. SOLUÇÕES DE MORADIA DAS CLASSES POPULARES E SUAS REPRESENTAÇÕES NA ZONA PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO O centro urbano concentra em torno de si as grandes tensões e as diversas dimensões da cidade. Por seu acumulo de camadas históricas, ele se mostra como um rico objeto de estudo e observação para a compreensão dos processos de evolução urbana. No caso do Rio de Janeiro, por sua inserção na política nacional como capital do país até a metade do século passado, esse

1

Site para consulta sobre o tema do direito à moradia: http://direitoamoradia.org/


20

espaço ganha ainda mais densidade. Em seu entorno encontra-se nossa área de interesse neste estudo, a região portuária, composta pelos bairros Saúde, Gamboa e Santo Cristo. Com limites imprecisos e sensibilizados a partir de cada perspectiva que se toma, a zona portuária do Rio de Janeiro se configurou durante muitos anos como uma reserva de expansão do centro, zona mais valorizada da cidade, o que lhe dá um lugar de destaque no cenário de disputa dos atores urbanos. Estado, capital (especialmente representado pelo setor imobiliário) e população foram ao longo do tempo moldando esta área sob seus interesses e necessidades, com a especificidade do interesse em comum entre estado e capital em evitar o uso habitacional dessa área pelas camadas mais pobres, e a necessidade latente dos pobres urbanos em morar próximo aos bens comuns e espaços de geração de emprego e renda. Neste tópico, busco discutir a zona portuária do Rio de Janeiro a partir do uso habitacional, de como é representada a sua população e destacar as soluções habitacionais encontradas pela classe trabalhadora e de baixa renda para se manter nesta região de localização privilegiada e em disputa na cidade. Partindo de uma breve apresentação da área para então traçar uma perspectiva histórica destas questões. A região atualmente conhecida como zona portuária do Rio de Janeiro, teve o início deste uso ainda nas primeiras décadas do século XVII. Com o destaque nacional da cidade e a ocupação holandesa na região nordeste do país, o Rio de Janeiro passou a escoar os produtos da mineração e de demais rotas de transportes do interior para o litoral. Neste período, o trabalho escravo ocorria de forma regular no embarque e desembarque de mercadorias no porto. Já no final do século XVIII e início do século XIX, a região estabelece-se como de grande importância econômica e denso local de trabalho, além de ter nas chácaras de seu entorno o princípio do uso habitacional (SILVA, ANDRADE, CANEDO in VAZ, REZENDE, MACHADO; 2012). O porto do Rio de Janeiro chega à segunda metade do século XIX como o mais importante do Brasil, entretanto com diversas inadequações em sua estrutura, que não se limitavam ao cais, extrapolava para a malha urbana ainda inadequada para o grande fluxo de mercadorias e pessoas, com sua imagem vinculada à insalubridade e focos de doenças como febre amarela. Estes foram alguns dos argumentos legitimadores para as grandes reformas ocorridas no final do século XIX e início do século XX, período marcado por profundas transformações da cidade.


21

A inadequação não se restringia às estruturas portuárias. Pelas estreitas e imundas ruas da região, muito convenientes à proliferação de doenças, circulavam capoeiristas, malandros, reis e rainhas de folias, sambistas, batuqueiros e praticantes de religiões afro brasileiras, entre outros elementos inferiorizados da sociedade. Aos olhos da elite a região concentrava inconvenientes à saúde e à moral, a tal ponto que não eram raros os casos de navios estrangeiros que temiam aportar na cidade. (XAVIER, 2011, p.32)

Ainda no final do século XIX, com o crescente estímulo à urbanização na cidade do Rio de Janeiro, a zona portuária passa por profundas transformações em sua estrutura fundiária e seu mercado imobiliário com a inauguração da estrada de Ferro D. Pedro II (1854) e a construção das docas de D. Pedro II e da estação marítima (ramal Gamboa em 1879). Na pesquisa feita por Maria Laís da Silva, Luciana Andrade e Juliana Canedo, são apontados dois movimentos consequentes destas mudanças da área. O primeiro deles é a valorização da região para o uso comercial, fabril e portuário. O segundo movimento é a desvalorização da área para o uso residencial. As grandes chácaras são aos poucos substituídas por pequenos lotes para construção de conjuntos de casas, enquanto os grandes lotes abrigavam as novas demandas do mercado imobiliário e as primeiras habitações coletivas da cidade (SILVA, ANDRADE, CANEDO in VAZ, REZENDE, MACHADO; 2012). A região portuária passa a mesclar as atividades de trabalho e habitação popular, o que irá consolidar-se na imagem desta região por um longo período. A configuração original de seus terrenos – mangues e enseadas – somada à presença de habitações coletivas e precárias, reforçam sua imagem como área insalubre e foco de doenças; enquanto sua imagem como local da pobreza e da insubordinação é ressaltada pela presença da população residente em casebres, cortiços e morros, da antiga atividade escravista e imigrantes europeus, que juntos são protagonistas de diversos movimentos sociais de reinvindicações e revoltas. A representação dos bairros portuários envolverá, historicamente, a construção de um estigma em que se entrelaçam a rejeição social e política da população. Esta, por sua vez, vai se caracterizar como uma população com alta diversificação cultural e de origem: aos negros escravos e ex-escravos que permanecerão na região (vindos de diferentes partes da África e de estados brasileiros), há que se adicionar a chegada de imigrantes europeus já na segunda parte do séc. XIX e nordestinos, com maior intensidade nos anos de meados para o final do século XX. (SILVA, ANDRADE, CANEDO in VAZ, REZENDE, MACHADO; 2012, p. 140-141)

Dois episódios podem representar bem as diversas manifestações populares que alimentam a imagem de insubordinação da região portuária. O primeiro deles é a luta travada pelos moradores do cortiço que ficou conhecido como Cabeça de Porco contra a derrubada de


22

seus lares. Este caso será abordado mais a diante neste trabalho, quando nos detivermos sobre os cortiços como solução de moradia dos pobres urbanos. O segundo episódio ficou conhecido como a Revolta da Vacina, manifestação popular contra as ações realizadas na campanha de saneamento de 1907, sob a direção de Oswaldo Cruz durante o governo de Pereira Passos. Contra as resistências populares, Oswaldo Cruz levou a diante a obrigatoriedade da vacinação de combate às epidemias de febre amarela, varíola e peste; além de demolições de grandes áreas que se juntaram às ações de modernização do porto e à reforma urbana de Pereira Passos. A autora Lícia Valladares (2006) aponta a violência das demolições no contexto da grande crise habitacional como principal causa da revolta popular. Em sua campanha, Oswaldo Cruz utiliza de ilustrações para veiculação pela imprensa. Uma delas é destacada por Lícia Valldares, a qual tem como cenário o Morro da Favella, hoje conhecido como Morro da Providência, localizado na zona portuária e emblemático para o processo histórico de formação das primeiras favelas cariocas. Uma caricatura, publicada na revista O Malho, mostra Oswaldo Cruz bem vestido, calçado e penteado, ostentando uma braçadeira com a cruz vermelha no braço esquerdo, enquanto o direito arranca a população do Morro da Favella com um pente em que se lê ‘Delegacia de Hygiene’. O Morro da Favella é representado pela cabeça de um homem mal encarado, com aspecto de malfeitor. A sugestão da imagem é de serem os habitantes da favela como piolhos que precisam ser estivados. Ao acompanhar a caricatura um curto texto: ‘Uma limpeza indispensável; a Hygiene vai limpar o Morro da Favella, ao lado da Estrada de Ferro Central. Para isso intimou os moradores a se mudarem em dez dias’. (VALLADARES, 2005, P.28)


23

Figura 1: Caricatura de Oswaldo Cruz, na revista O malho de 1907.

Fonte: O Malho, nº 247, 08/06/1907. Disponível em: http://www.casaruibarbosa.gov.br/omalho

Em seu trabalho, Priscilla Xavier aponta a Revolta da Vacina como “episódio fecundo para ilustrar a dialogia na construção material e simbólica da capital e da região portuária” (XAVIER, 2011, p. 32). Destacando a resistência dos moradores da zona portuária, a autora trás em seu texto um trecho da descrição de Sevcenko: Para o bairro da Saúde convergia todo o interesse das autoridades. Havia sido projetado, para a noite, um ataque geral ao formidável reduto a que haviam dado a denominação de Porto Arthur, formado por trincheiras de mais de um metro de altura, feitas com sacos de areia, trilhos arrancados às linhas de bondes, veículos virados, paralelepípedos, fios de arame, troncos de árvores, madeiras das casas em demolição. Seus defensores armados de carabinas e revólveres, bem providos de munição e bombas de dinamite, ali permaneciam numa constante ameaça. Os morros do Livramento e [da] Mortona haviam sido igualmente fortificados pelos amotinados, que dominavam todo o bairro (...) O calçamento de todo o bairro havia sido revolvido a picareta. Árvores, postes telegráficos


24

e de iluminação, ralos de sarjetas, haviam sido arrancados. (SEVCENKO, 1993, p.24 apud XAVIER, 2011, p.33)2

A autora ressalta que episódios de contestação como a Revolta da Vacina são acontecimentos que produzem narrativas que informam suas dimensões, que são costuradas no histórico da sociedade atribuindo significado e identificação ao lugar. A grande representatividade desta população nas lutas operárias soma para o entendimento da zona portuária como local de insubordinação e de rebeldia. Como local de moradia e trabalho de uma grande população operária, a região abrigou diversas manifestações como greves e comícios, que décadas depois vieram a alinhar-se ao trabalhismo e às reinvindicações do quadro político-institucional legal. A alta densidade social da zona portuária revela-se também no desenvolvimento de uma sociabilidade particular que fortalece a cultura popular local, com a especificidade do diálogo entre o universo do trabalho, do samba e das culturas dos imigrantes, em especial a africana (SILVA, ANDRADE, CANEDO in VAZ, REZENDE, MACHADO; 2012). O contexto de grandes mudanças na estrutura urbana e social da cidade do Rio de Janeiro é imprescindível ao entendimento deste amplo processo no âmbito da zona portuária. As fábricas que chegam à zona portuária, chegam também aos subúrbios cariocas, atraídas pela grande oferta de terras livres e a recém implantada rede de transportes ferroviários. Esta oferta de empregos ocorre em um momento de grande oferta de mão de obra a baixo custo decorrente do declínio do sistema escravista e da política de migração de trabalhadores europeus. Por sua vez, a elite aristocrata vinculada à produção cafeeira, diante do declínio deste ciclo econômico, transfere seus investimentos para atividades urbanas, como a implantação de infraestrutura nos novos bairros e as indústrias recém-chegadas à Cidade. Surge então um forte vínculo entre os investimentos financeiros, as obras de urbanização e a disponibilidade de mão de obra barata. (ABREU, 2013) Torna-se clara a busca da cidade por sua “modernização” e “civilização” como superação ao período colonial. Para o restante do país, o Rio de Janeiro passa a ser a cidade que representa esse período de mudanças. Estas novas configurações urbanas produzem novas formas

Trecho da obra de Nicolau Sevcenko, “A Revolta da Vacina: mentes insanas em corpos rebeldes”, de 1993, citado por Priscila Oliveira Xavier em sua dissertação de mestrado, “Do porto ao Porto Maravilha: considerações sobre os discursos que (re)criam a cidade”, de 2011. 2


25

de relacionamento social, ampliando sua diversidade e consequentemente suas tensões, que tomam destaque com o aumento dos índices de violência e criminalidade urbana. Tem-se, na virada do século XIX para o século XX, o início de uma forte crise de moradia na cidade. Com o crescimento da classe trabalhadora sem poder aquisitivo para compra de residências nas áreas dotadas de infraestrutura urbana e o descompasso entre a produção habitacional e a demanda crescente, surgem diversas as tipologias de moradias precárias (casebres, cortiços e morros) como forma de resistência à expulsão dessa parcela da população das áreas de maior interesse do mercado imobiliário. Na busca pela “modernização” e “civilização” do Rio de Janeiro, os locais de moradia das classes populares, especialmente os cortiços, passam a representar aquilo que buscasse superar ou, de algum modo, não expor. Considerado o locus da pobreza, no século XIX era local de moradia tanto para trabalhadores quanto para vagabundos e malandros, todos pertencentes à chamada ‘classe perigosa’. Definido como verdadeiro ‘inferno social’, o cortiço carioca era visto como antro da vagabundagem e do crime, além de lugar propício a epidemias, constituindo ameaça à ordem social e moral. (VALLADARES, 2005, p. 24)

O século XX tem início com grandes intervenções urbanas protagonizadas pela ação conjunta do Estado e do capital que têm como denominador comum afastar da região central e seu entorno o uso residencial e os pobres, como um processo de depuração sócio espacial, construção de uma nova imagem urbana e consequente aumento do valor da terra. Lilian Vaz e Carmem Silveira (1994) nos apontam quatro significativos exemplos destas grandes intervenções: Reforma Passos nos primeiros anos do século XX que, dentre suas ações, destruiu grande número de habitações coletivas (durante a qual ocorreram as ações de Oswaldo Cruz que desencadearam a Revolta da Vacina); o desmonte do morro do Castelo na década de 1920, quando desaparece o mais antigo núcleo residencial da cidade; a abertura da Av. Pres. Vargas na década de 1940, com a demolição de mais de quinhentas moradias; e a derrubada do morro Santo Antônio na década de 1950, que abrigava uma das mais antigas favelas da cidade. (VAZ, SILVEIRA, 1994). Nas palavras das autoras: No que diz respeito à habitação popular da área central do Rio de Janeiro, pode-se dizer que a modernização desta área constituiu-se de uma sucessão de momentos de expulsão do uso residencial e das camadas populares, em que se destacaram a ação interventora do Estado (pela reforma urbana), a sua ação normativa (pela ação legislativa), e a ação do


26

mercado (pela valorização da terra), que respectivamente expulsaram, impediram e desencorajaram a habitação popular. (VAZ, SILVEIRA, 1994, p.8)

As grandes intervenções de mobilidade urbana impactaram diretamente sobre as conexões entre a zona portuária, o centro e o restante da cidade. A abertura da Avenida Presidente Vargas já havia configurado um grande corte na malha urbana, rompendo as ligações viárias entre a zona portuária e a região central mais próxima ao eixo de expansão para a zona sul da cidade. Soma-se a esta intervenção a construção do Elevado da Perimetral, tendo início ainda na década de 1950 e sendo realizada em etapas. Pensado na escala metropolitana, este elevado seguia o traçado da avenida Rodrigues Alves e criava uma conexão direta entre zona sul e zona norte, dando acesso ainda à Avenida Brasil e a Ponte Presidente Costa e Silva (popularmente conhecida como Ponte Rio-Niterói). No mesmo período destas grandes intervenções urbanas na cidade, a modernização dos processos tecnológicos levou à inadequação do antigo porto para as atividades demandadas. As atividades portuárias passaram a necessitar de grandes áreas descobertas para a manipulação dos containers e a instalação de esteiras rolantes, tendo como novos polos a expansão no bairro do Cajú na década de 1960 e posteriormente o novo porto de Sepetiba. Com este quadro, a Zona Portuária tem um esvaziamento de sua principal função econômica e o distanciamento de sua população residente dos bairros do litoral norte – majoritariamente portuários, de origens africanas e lusitanas – da frente de mar, tendo seu nome apenas como um resgate histórico. (MELLO, 2003; GONÇALVES, 2012). A região portuária recebeu poucas obras públicas e empreendimentos privados ao longo do século XX, tornando-se um contraponto do dinâmico vetor imobiliário que seguia na direção sul da cidade. Priscilla Xavier nos aponta que somente em meados da década de 1980 nota-se o retorno do interesse do poder público, a reboque do setor privado, em ações na região (XAVIER, 2011). A partir de então os bairros da Saúde, Gamboa e Santo Cristo foram sendo reiteradamente entregues à própria sorte. Atravessaram décadas à margem dos investimentos públicos, fossem no sentido de aprimorar ou preservar seus equipamentos urbanos, fossem no de resguardar o patrimônio arquitetônico e cultural ali localizados. O esquecimento da região criou uma distância em termos de desenvolvimento urbano comparando-a com demais bairros da cidade, todavia, preservou estruturas e modos de vida condizentes com períodos pregressos. (XAVIER, 2011, p. 43-44)


27

A ausência de investimentos e ações do poder público ocorrem junto à consolidação da imagem do Porto como local de abandono, afastado dos grandes fluxos da cidade, e ao fortalecimento do estigma de seus moradores. “Nesse ínterim, a população local passou a sofrer cada vez mais com rótulos e estigmas de outsiders, ou dos “de fora”, que cada vez mais associavam os bairros portuários a áreas de escassez e de pobreza” (GONÇALVES, 2012, p.237). Esta nova configuração, por sua vez, abriu espaço para a reprogramação dos imóveis até então sem uso (em sua grande maioria prédios públicos), passando a servir como local de moradia de uma população à margem dos grandes investimentos privados e do acesso aos serviços públicos, que demandava de soluções de habitações próximas ao centro urbano e de baixo custo. Diante deste contexto histórico, podemos compreender que a diversidade das soluções de moradias da zona portuária são exemplares de resistência ao processo de modernização excludente historicamente implementado pelo poder público e os detentores do capital. Com sua composição social densa formada por trabalhadores e pobres urbanos, esta área da cidade vem sendo vista pelas classes dominantes sob uma perspectiva negativa, na qual se concentram diversos estigmas. Mesmo no final do século XX, parece ter perdurado, no caso da região portuária, a ideia de bairros com muitos cortiços, ao menos na memória de alguns de seus antigos moradores (BARROS, 2005). Por outro lado, a presença das favelas, especialmente a da Providência, alimentou a representação negativa que sempre teve o espaço dos pobres no Rio de Janeiro. Configura-se, pois, no início do século XX, uma imagem de população residente pobre, operária, quando não de ‘marginais’ da sociedade incorporando-se ao estigma – já existente – de ‘bairros africanos’, ou seja, a representação negativa daqueles que vinham de fora para trabalhar no Porto e nas atividades nos seus arredores. (SILVA, ANDRADE, CANEDO in VAZ, REZENDE, MACHADO; 2012, p. 143, grifo meu)

A partir desta fala de Maria Laís da Silva, Luciana Andrade e Juliana Canedo, podemos destacar as principais soluções habitacionais encontradas pela população de baixa renda na zona portuária – cortiços e favelas - e, a partir delas, seguirmos este estudo. Como fenômeno mais recente pode-se adicionar a este recorte as ocupações de imóveis vagos por movimentos sociais de luta por moradia, não citadas pelas autoras neste trecho, porém de especial relevância para o momento atual e para a discussão que é tema do presente trabalho.


28

2.1 CORTIÇOS Esta solução popular e precária de moradia veio como resposta de um momento específico da cidade do Rio de Janeiro. Como já descrito anteriormente, o final do século XIX foi marcado por profundas transformações urbanas, sendo uma delas o crescimento populacional acelerado e desordenado. Com a alforria dos escravos e a chegada dos imigrantes europeus motivados pela política de incentivo à migração, a população carioca cresceu 90% entre 1872 e 1890, enquanto o quantitativo habitacional cresceu 62% (há de se considerar este um índice bastante elevado, porém inferior à demanda) (GONÇALVES, 2012). Com o baixo poder financeiro dessa população, a necessidade de residir próximo ao local de trabalho por um custo reduzido era primordial. Neste quadro, passa também a interessar aos privilegiados proprietários de terras e edifícios na área central a obtenção de bons rendimentos com elevados aluguéis de imóveis densamente ocupados. Essa conjuntura levou a cidade do Rio de Janeiro a dobrar a quantidade de moradores de cortiços entre os anos 1888 e 1890, chegando ao número de 100.000 pessoas, equivalente a 20% da população total da cidade na época (GONÇALVES, 2012). Diante da quantidade de pessoas vivendo nesta condição e da novidade que a categoria “cortiço” representava no uso do espaço construído da cidade tradicional, há de se compreender que sob esta categoria se enquadravam as mais diversas soluções arquitetônicas e arranjos sociais (relações entre proprietários, locatários e gestores dos cortiços; assim como compartilhamentos e cotidiano dos seus morados). Em sua pesquisa, Lilian Vaz nos apresenta algumas tipologias arquitetônicas, as quais me utilizo neste momento. Nos estudos de Lilian Vaz, a “estalagem” é indicada como a primeira tipologia habitacional de baixa renda, surgida ainda por volta de 1850. A autora aponta os exorbitantes valores dos alugueis e as descreve fisicamente como “minúsculas casas térreas – ‘quartos’ ou ‘casinhas’ -, alinhadas nos fundos dos estreitos lotes tradicionais” (VAZ, 1994, p.09), tendo como características principais a grande quantidade de moradores, as instalações sanitárias insuficientes ou inexistentes e as más condições de conforto ambiental (ventilação e iluminação) (VAZ, SILVEIRA, 1994). Já no final do século, a Lilian Vaz situa o surgimento de uma segunda tipologia, a “casa de cômodos”, a qual já parte para uma ocupação das antigas edificações tradicionais das classes abastadas (como sobrados e mansões) com a subdivisão de seus espaços internos, o que


29

levava a uma pior condição de habitabilidade em relação às estalagens. Às duas tipologias às quais são atribuídas a categoria “cortiço”, somam-se as “avenidas”: “estalagens higienizadas (às quais se acrescentariam instalações sanitárias de uso coletivo) ou construídas a partir da virada do século atendendo às exigências da legislação sanitarista” (VAZ, SILVEIRA, 1994, p.10). Estas exigências, citadas pela autora, surgem como resposta do poder público à imagem dos cortiços como principais focos de infecções sanitárias e grandes propagadores de “epidemias sociais”. Estas infecções sanitárias rapidamente tornavam-se epidemias que se davam sistematicamente pela cidade e ganhavam especial destaque por afetarem particularmente as forças de trabalho e prejudicarem as relações de comércio exterior. Já a ameaça social era diretamente associada ao cortiço como local de moradia dos trabalhadores, assim como dos vagabundos e malandros, todos sob o estigma da “classe perigosa”. No livro “Favelas do Rio de Janeiro: História e Direito”, Rafael Gonçalves nos apresenta um trecho da tese de medicina de 1877 de Barata Ribeiro, que viria a ser prefeito da cidade entre os anos de 1892 e 1893. Neste recorte fica claro o entendimento do cortiço como ameaça social e moral, assim como já é apontada a destruição destes pelo poder público, como viria a acontecer em seguida. Alimenta-os a lubricidade do vício, que se ostenta impudonorosa, ferindo os olhos e os ouvidos da sociedade séria que deles se aproxima, e a miséria andrajosa e repugnante, que faz da ociosidade um trono, e por um contraste filho das circunstâncias peculiares à vida das grandes cidades, ao lado (...) do vício e do lodoçal impuro do aviltamento moral, está também o leito do trabalhador honesto, que respira à noite a atmosfera deletéria deste esterquilínio de fezes! No cortiço acha-se de tudo: o mendigo que atravessa as ruas como um monturo ambulante; a meretriz impudica, que compraz um degradar corpo e alma, os tipos de todos os vícios e até (...) o representante do trabalho (...) Só vemos um conselho a dar a respeito dos cortiços: a demolição de todos eles, de modo que não fique nenhuma para atestar aos vindouros e ao estrangeiro, onde existiam as nossas sentinas sociais, e a sua substituição por casas em boas condições higiênicas. (RIBEIRO apud GONÇALVES, 2013, p.39)3

Com a real intenção de afastar da região central a moradia das classes populares, diversas leis foram criadas e aplicadas. Ao mesmo tempo em que buscava a interdição e erradicação progressiva dos cortiços das regiões centrais, reduzia impostos para incentivar a construção de habitações higiênicas para operários. Entretanto, é importante observar que os

3 Trecho da Tese de Medicina de 1877 de Barata Ribeiro, futuro Prefeito da cidade do Rio de Janeiro entre os anos de 1892 e 1983, destacado por Rafael Gonçalves em seu livro “Favelas do Rio de Janeiro”, de 2013.


30

cortiços, apesar de serem tidos como um problema social, também geraram grande rentabilidade ao setor imobiliário e aos detentores dos meios de produção com a redução do custo da mão de obra. Desta forma, enfrentar os cortiços era ir de encontro aos ideais liberais, na medida em que também impunha limites ao gozo dos direitos de propriedade. Como apontado em diversos estudos (VAZ; GONÇALVES; dentre outros), os cortiços que resistiram às diferentes interdições, tiveram como elemento real de ameaça e de derrota as grandes e sucessivas reformas urbanas do início do século XX e o processo de valorização imobiliária do núcleo central, e não as legislações especificamente voltadas para os cortiços. Um caso emblemático desta articulação de interesses entre poder público e mercado imobiliário de terras para remoção das classes populares com o apoio da legislação urbana é o arrasamento do Cabeça de Porco4. Esse foi o mais famoso cortiço carioca, localizado na rua Barão de São Felix, que abrigava uma enorme quantidade de moradores (estudos apontam de 2000 a 4000 moradores), sendo o único cortiço destruído pelo Poder Público5, “ocorrido em circunstâncias espetaculares que constituíram um verdadeiro evento, aumentaram a sua fama e inscreveram o seu nome na História” (GALIZA, VAZ, SILVA, 2014, p.04). O cortiço localizavase em uma área de grande interesse do mercado imobiliário, com projetos para melhoramentos urbanos propostos por particulares para a área, tendo como proposta de relocação a construção de casas higiênicas. O projeto que levou à destruição do Cabeça de Porco foi fruto de um contrato entre o engenheiro Carlos Sampaio e a Intendência Municipal para o prolongamento da Rua Santana e construção do túnel no Morro da Providência, tendo como consequência a eliminação do cortiço. Enquanto prefeito, Barata Ribeiro cumpriu o que havia proposto em sua tese (a qual lemos um trecho anteriormente) e, com criação de um decreto que viabilizou o feito, liderou a derrubada do Cabeça de Porco junto a trabalhadores cedidos pela Empresa de Melhoramentos do Brasil (empresa a qual posteriormente foi transferida a concessão), que tinha como diretores o próprio

4

Em minha análise deste episódio tenho como base um estudo realizado por Maria Laís da Silva, Lilian Vaz e Helena Galiza (2014). 5

É importante ressaltar aqui que a demolição do Cabeça de Porco tornou-se um caso singular por ter sido ação direta promovida pelo poder público com o objetivo de sua extinção. Diversos outros cortiços viriam a ser demolidos pelo poder público, porem não como objetos centrais destas ações, mas como impactos das grandes obras, como as intervenções do período da reforma urbana de Pereira Passos que ficou conhecida como “bota a baixo” pelas grandes demolições promovidas.


31

Carlos Sampaio, além de Vieira Souto e Paulo de Frontin. Ressalta-se aqui que esses foram figuras ativas nas grandes reformas urbanas do Rio de Janeiro, transitando entre diversos papéis (poder público, proprietários de terras urbanas, prestadores de serviços etc). A obra então noticiada em jornais no dia seguinte à demolição só foi concluída trinta anos depois, em 1922, quando Carlos Sampaio já havia chegado a assumir um novo papel, para além de engenheiro e concessionário, o de prefeito da cidade do Rio de Janeiro. Aos proprietários das terras impactadas pelo evento, foram pagas indenizações, em alguns casos com valores superelevados. Figura 2: A destruição do “Cabeça de Porco” na capa da Revista Ilustrada.

Fonte: Revista Ilustrada, nº 656, fevereiro 1893 apud ABREU, Maurício de Almeida. A evolução urbana no Rio de Janeiro. 4.ed. Rio de Janeiro: IPLANRIO, Zahar, 2013.

Quanto à população sumariamente expulsa do Cabeça de Porco, ela teria se abrigado no morro mais próximo, hoje Morro da Providência. Assim como a Providência, os morros do entorno da área central teriam sido o destino dos demais moradores de cortiços demolidos que


32

ficaram desabrigados nas grandes reformas urbanas ou daqueles que não tiveram condições de arcar com os custos desta moradia. Daí tem-se o entendimento do cortiço como o “germe” da favela, “a partir da ligação direta entre as demolições dos cortiços do Centro da cidade e a ocupação ilegal dos morros no início do século XX” (VALLADARES, 2005, p. 24).

2.2 FAVELA O CRESCIMENTO URBANO E A FAVELA CARIOCA A favela tem a origem de suas representações sociais nas descrições e imagens produzidas por escritores, jornalistas e reformadores sociais do início do século XX: “Suas representações convergiam para o estabelecimento de um arquétipo de favela, um mundo diferente que emergia na paisagem carioca em contracorrente à ordem urbana e social estabelecida”. (VALLADARES, 2005, p.28). É apresentada a seguir uma breve descrição do morro de Santo Antônio feita por João do Rio. Eu tinha do morro de Santo Antônio a ideia de um lugar onde pobres operários se aglomeravam à espera de habitações, e a tentação veio de acompanhar a seresta [...] O morro era como qualquer morro. Um caminho amplo e mal tratado, descobrindo de um lado, em planos que mais e mais de alagavam, a iluminação da cidade. [...] Acompanheios e dei num outro mundo. A iluminação desaparecera. Estávamos da roça, no sertão, longe da cidade. O caminho serpenteava descendo era ora estreito, ora largo, mas cheio de depressões e de buracos. De um lado e de outro casinhas estreitas, feitas de tábuas de caixão, com cercados indicando quintais. [...] Como se criou ali aquela curiosa vila de miséria indolente? O certo é que hoje há, talvez, mais de mil e quinhentas pessoas abrigadas lá por cima. (MARTINS, 1971, p. 54 – 55 apud VALLADARES, 2005, p.30)

Este morro localizado na zona central da cidade foi, junto ao Morro da Providência, um dos primeiros espaços de ocupação reconhecidos como origens das favelas como as conhecemos atualmente. Os dois morros têm em comum em sua história o uso da terra para abrigar os praças que retornavam da guerra de Canudos no final da década de 1890. O Morro da Providência serviu de abrigo aos soldados que aguardavam definições sobre suas condições de retorno, sendo estrategicamente localizado próximo ao Ministério da Guerra. Somaram-se a estes moradores aqueles que vieram da demolição do cortiço Cabeça de Porco, que se localizava nas bases deste morro. Lícia Valladares (2005), traz um estudo da relação entre a representação da favela em suas primeiras experiências e a representação da estrutura espacial e da configuração social de


33

Canudos, relatada por Euclides da Cunha. Para Lícia, a obra “Os Sertões” trouxe aos intelectuais cariocas imagens que os permitiram compreender e interpretar a favela emergente na cidade. Dando continuidade ao relato de João do Rio, podemos perceber este entendimento de Lícia. O cronista continua seu texto sobre a visita ao Morro de Santo Antônio: “Tinha-se, na treva luminosa da noite estrelada, a impressão lida da entrada do arraial de Canudos ou a funambulesca idéia de um vasto galinheiro multiforme” (MARTINS, 1971, p.54-55 apud VALLADARES, 2005, p.30). Dentre diversos elementos de análise a autora destaca a dualidade transposta de “litoral versus sertão” para “cidade versus favela”; a posição estratégica do morro em Canudos e nas favelas com grande campo de observação e pouca visibilidade da parte da cidade, assim como seu difícil acesso; o crescimento rápido e desordenado dos dois espaços; distância da zona de domínio do Estado; dentre outros aspectos elencados em sua análise. Destaco aqui dois aspectos importantes para a discussão aqui proposta, sobre a imagem negativa do mundo popular, são eles o comportamento moral revoltante descrito pelos observadores das favelas cariocas e de Euclides da Cunha em “Os Sertões”, e a percepção destes espaços como perigo à ordem social com o risco de contagio. Apesar de não estar explícito nos primeiros momentos das favelas, o tema do contágio virá a ganhar destaque nas décadas seguintes. Nos falando sobre este momento de surgimento das primeiras favelas e suas representações, em uma breve amarração de suas ideias, Lícia nos apresenta o seguinte quadro: A imagem matriz da favela já estava, portanto, construída e dada a partir do olhar arguto e curioso do jornalista/observador. ‘Um outro mundo’, muito mais próximo da roça, do sertão, ‘longe da cidade’, onde só se poderia chegar através da ‘ponte’ construída pelo repórter ou cronista, levando o leito até o alto do morro que ele, membro da classe média ou da elite, não ousava subir. Universo exótico, em meio a uma pobreza originalmente concentrada no Centro da cidade, em cortiços e outras modalidades de habitações coletivas, prolongava-se agora, morro acima, ameaçando o restante da cidade. (VALLADARES, 2005, p. 36)

O crescimento destas áreas, a percepção de que esta forma de ocupação não seria uma solução transitória, como apontado por João do Rio quando coloca ser a favela “lugar onde pobres operários se aglomeravam à espera de habitações” (MARTINS, 1971, p. 54 – 55 apud VALLADARES, 2005, p.30, grifo meu), e a abordagem higienista em voga neste período consolidam a favela como um novo problema urbano a ser enfrentado e sanado pelo poder público. Como primeiras respostas a este problema, o poder público dá continuidade às posturas


34

tomadas em relação aos cortiços, propondo políticas urbanas que eliminem esta forma de moradia, dentre elas ações de remoção e produção de casas populares para trabalhadores. A partir deste momento, minha abordagem extravasa a zona portuária e proponho que vejamos a favela como uma solução de moradia das classes populares e suas representações na cidade do Rio de Janeiro, entendendo que as favelas da zona portuária passam a fazer parte deste grande e novo contexto da cidade. Há aqui ainda um salto da leitura cronológica, que do final do século XIX retomamos na década de 1930. Esta lacuna entre as origens e expansão inicial das favelas até a sua inclusão como alvo de políticas públicas demonstra a novidade que este processo representava, refletindo na carência de produções acadêmicas e científicas sobre este tema em seu primeiro momento. Destaco aqui o grande potencial que podemos ter em produções literárias e populares a serem exploradas e que tendem a contribuir com ricas informações para a discussão desta temática, tendo como exemplo as contribuições feitas por João do Rio em suas crônicas sobre os primeiros morros ocupados no centro da cidade. Tem-se a década de 1930 como marco do início das politicas públicas voltadas para as favelas, marcadas pelo populismo e com ações restritas à construção de novas unidades em consonância com a extinção das ocupações existentes. Como grande projeto de planejamento urbano da época tem-se o Plano Agache, apresentado como o primeiro a contemplar a expansão e a renovação da então capital do país. O Plano aborda a questão da favela já com uma atenção especial. Agache destaca-se em relação aos demais planejadores até então por revelar uma preocupação em compreender de forma ampla a questão habitacional da época. Ao longo do Plano, Agache traz a tona o vínculo entre o processo de ocupação informal e a gestão urbana em curso, indo além das questões morais fortemente ressaltadas pelo senso comum e pelas políticas públicas anteriores. Esta questão é apresentada no seguinte trecho do Plano: Póde-se dizer, que [as favelas] são o resultado de certas disposições nos regulamentos de construcção e da indiferença manifestada até hoje pelos poderes públicos, relativamente as habitações da população pobre. Perante as dificuldades acculmuladas para obter-se uma auctorização de edificar, - requerimentos e formalidades só alcançam o seu destino depois de muito tempo e taxas onerosas, - o operário pobre fica descoroçoado e reúne-se aos sem tecto para levantar uma choupana com latas de kerozene e caixas de emballagem nas vertentes dos morros próximos a cidade e inoccupados, onde não se lhes reclamam impostos nem auctorisações (AGACHE, 1930, p. 189)

Lícia Valladares (2005), ao analisar este período em seu livro “A invenção da Favela: Do mito da origem a favela.com”, ressalta o olhar sociológico de Agache sobre as favelas,


35

entretanto destaca que este aporte foi pouco valorizado assim como todo o restante do projeto proposto, em virtude das mudanças políticas da década de 1930. A ditadura instaurada por Getúlio Vargas neste período que se segue é marcada pela alteração nas representações das classes populares e, consequentemente, das favelas. Neste período há um retorno à temática higienista que atribuía a propagação de inúmeras doenças às más condições de sanitárias das moradias populares, recorrendo ao clientelismo e populismo político em suas intervenções. O Código de Obras de 1937, que permanece em vigor até 1970, é um instrumento importante para este período, pois nele é apresentado o problema da favela pela primeira vez na legislação urbana do Rio de Janeiro, introduzindo a necessidade da extinção das habitações antihigiênicas. Ele define o significado do termo “favela” para as ações do poder público, orienta o “congelamento” das áreas e criação de alojamentos de acordo com as normas de salubridade. Esta legislação demonstra que, pouco a pouco, o poder público expõe a necessidade de se administrar estas áreas e conhecê-las, dando início a levantamentos importantes e pioneiros de informações das favelas. No período que se segue até meados da década de 1960, o crescimento das favelas ocorre diante de pouca oferta de terras urbanizadas nas áreas centrais com valores acessíveis às classes populares e carência de transportes públicos de massa. Surgem e crescem favelas geograficamente localizadas no entorno das zonas industriais, buscando reduzir a distância do trajeto ao trabalho e tirar proveito dos meios de transportes disponibilizados para essa atividade. A ocupação destes terrenos se potencializa com o cenário nacional de polarização econômica no eixo Rio - São Paulo em detrimento de um período de longa seca na região nordeste do país e pouca oferta de trabalho nos demais estados, como Minas Gerais. Este vetor de crescimento traz como consequência um forte fluxo migratório que por sua vez reflete no crescimento da população residente em favelas. Acompanhando o crescimento das favelas, há uma forte repressão e desarticulação de suas estruturas, fragilizando a mobilização social, em especial em suas ações de cunho político. Na escala do Estado da Guanabara, Carlos Lacerda é eleito como primeiro governador. Orientado por uma postura de oposição à candidatura nacional de Jânio Quadros, Lacerda aproxima-se do imperialismo em prol do desenvolvimento nacional. Recebe grande apoio das classes mais abastardas e conservadores, colaborando com a redução do papel político das camadas populares.


36

Junto a esta postura, os investimentos internacionais foram além das grandes estruturas industriais, chegando a interferir diretamente nos problemas habitacionais promovendo ações de remoções. Com financiamento norte-americano, foram removidas diversas favelas e construídos os grandes conjuntos habitacionais Cidade de Deus e Vilas Kennedy, Aliança e Esperança. FAVELA COMO TERRITÓRIO DA POBREZA E DA VIOLÊNCIA Entre as décadas de 1970 e 1990, o Brasil teve um enorme crescimento das suas áreas informais e o Rio de Janeiro acompanhou este processo que veio a somar com o seu grande crescimento populacional dos subúrbios das décadas de 1940 e 1950. A partir de 1975, houve uma pausa nos grandes processos de remoções de favelas na cidade e, posteriormente, um crescimento destas áreas, sendo um total de 376 favelas na cidade do Rio de Janeiro no ano de 1980 e 603 favelas no ano de 1996 (LEITE, 2000). 6 O crescimento das favelas foi acompanhado da transformação da cidade do Rio de Janeiro de “cidade maravilhosa” para uma cidade fortemente vinculada à imagem da violência urbana. Analisando este quadro sobre a chave da “questão social”, diversos estudiosos passaram a trabalhar sobre o conceito de “cidade partida” (LEITE, 2000). O termo pode ser entendido de duas formas, a primeira delas relaciona a “cidade partida” com as consequências sociais do modelo de crescimento econômico e de expansão urbana que exime de seus benefícios grande parte da população, que por sua vez participou da produção de seu capital. Já em uma segunda forma de entendimento, parte-se da representação, fortalecida pela mídia, da grande oposição entre classes de maior poder aquisitivo (médias e altas) e a população moradora de favelas, incluindo neste grupo de moradores de morros, subúrbios e periferias. Esta oposição vem do sentimento de medo e insegurança presentes nas classes abastadas e a territorialização da pobreza e da marginalidade nas favelas. Em seu artigo “Entre o individualismo e a solidariedade: Dilemas da política e da cidadania no Rio de Janeiro”, Marcia Leite traz como argumento que o crescimento da violência e do sentimento de insegurança pelas classes abastadas têm como reflexo a violação consciente e

6 Estes dados possuem variância entre os diversos autores que abordam o tema (consequentes das frágeis metodologias e estruturas de pesquisas), entretanto é consensual o grande crescimento das favelas, tanto em quantidade quanto em número de moradores.


37

consentida de direitos de cidadania da população favelada, considerada como agente em potencial da desordem social. No contexto da cidade partida, a população a passa a se dividir como em uma guerra com lados opostos, representados pelos contrapontos do morro e do asfalto. Diante da desordem urbana, a população passa a não mais confiar nos mecanismos institucionais de administração dos conflitos sociais. Já a mídia, por sua vez, reforça a ideia de incompatibilidade das políticas de garantia de direitos humanos e segurança pública. Esse contexto legitima a ação policial violenta nas áreas de favelas e contra seus moradores, em especial os jovens pobres, apontados como principais atores do tráfico de drogas. Representar o conflito social nas grandes cidades como uma guerra vem implicando acionar um repertório simbólico em que lados/grupos em confronto são inimigos e o extermínio, no limite, uma das estratégias para a vitória, pois com facilidade é admitido que situações excepcionais – de guerra – exigem medidas também excepcionais e estranhas à normalidade institucional e democrática. (LEITE, 2000, p.79)

O novo cenário de violência, insegurança e medo é posto como limitador do sentimento de direito à vida daqueles que se entendem como passivos neste conflito. Neste processo é renovado e reforçado o estigma sobre os favelados e coloca-se em questão a validação da cidadania e do direito à cidade. Luiz Antônio Machado da Silva (1967) nos auxilia a visualizar algumas questões estruturais nas ações do poder público na favela, em especial no momento em que a favela passa a ser vista como importante ser político. O autor critica as análises que partem do entendimento da favela como uma estrutura autônoma e marginal à sociedade, à política e à economia. Para o autor, esta linha de análise embasa-se em um falso isolamento da favela em relação ao sistema global, tendo em vista que “sua própria existência depende muito mais de determinadas condições estruturais da sociedade global do que dos mecanismos internos desenvolvidos para mantê-los” (MACHADO DA SILVA, 1967, p.35). Machado da Silva critica ainda as abordagens nas quais os favelados são entendidos como um grupo particular dentro da classe do proletariado, portanto formada por um grupo social específico, o que vai de encontro ao seu entendimento da heterogeneidade da composição social da favela. Machado da Silva nos aponta que a favela não possui um tipo único, ela possui especificidades tanto em sua estrutura interna (em seus diversos estratos sociais que a compõem)


38

como em relação às diversas e distintas favelas existentes. Qualquer análise de favelas ou favelados deve ter como pressuposto que a favela é uma organização transversal, envolvendo diferentes setores de atividades, com base geográfica bem definida e com intensas relações com o seu entorno. Qualquer análise do processo político nas favelas e das atitudes e comportamentos dos favelados que se pretenda objetiva deve partir da noção de que a favela é uma organização transversal, isto é, tem uma base geográfica em geral bastante definida que envolve uma extensa gama de atividades e situações e apresenta profundas conexões com outras organizações e atividades, em uma extensão territorial mais ampla. É necessário enfatizar as bases geográficas definidas das favelas, porque elas permitem uma organização com pequeno grau de burocratização e impessoalidade. Essas características organizacionais – a transversalidade e as relações pessoais – parecem fazer com que as favelas funcionem como espécies de agentes refratores de certos fatores da sociedade global que influenciam as atividades e os comportamentos políticos de seus moradores. (MACHADO DA SILVA, 1967, p.37).

A heterogeneidade das favelas e de seus moradores é desconsiderada quando se aciona o discurso pautado pelo estigma continuamente renovado e reforçado sobre seus moradores como de pessoas “vagabundas”, “transmissoras de doenças”, “promíscuas”, “perigosas”, “agentes em potencial da desordem social”, dentre diversos outros. Como nos coloca Márcia Leite, o crescimento da violência urbana e do sentimento de insegurança pelas classes abastardas também fortalecem a exclusão dessa população, que passa a ser destituída de seus direitos de cidadania. Dos estigmas e da exclusão compartilham também os moradores de ocupações urbanas. A semelhança do perfil sócio econômico de seus ocupantes e sua dita informalidade tanto na propriedade da terra ocupada como dos vínculos empregatícios 7, levam à constante associação entre favelas e ocupações no senso comum. Esta associação, entre ocupações e favelas, é criticada pelos movimentos sociais de moradia que realizam ocupações urbanas. Como podemos ver no texto de Guilherme Boulos, a organização coletiva e autônoma dos moradores em uma disputa política pela garantia de seus

7

Em contraponto a esta imagem criada da informalidade das classes populares, quanto ao vínculo empregatícios, alguns estudos têm apontado o elevado índice de trabalhadores com carteira assinada em áreas de favela em relação aos demais moradores dos bairros de classes médias e altas de seu entorno. Já com relação à propriedade e posse da terra, diversas favelas possuem concessões públicas para moradia ou titularidade de sua posse, fornecidas pelo poder público através da pressão popular. Enquanto que na cidade dita “formal” também se encontram diversos imóveis irregulares quanto ao uso e à ocupação do solo, assim como quanto ao título de propriedade em si. Portanto, o debate em torno desta distinção entre “formal” e “informal” deve ser realizado de forma crítica, buscando ir além destes estereótipos.


39

direitos é posta como grande diferencial. Após ressaltar que “é preciso questionar o imaginário dominante que identifica ocupação e favela”, Boulos coloca o seguinte posicionamento. nem toda ocupação produz favela. As ocupações organizadas por movimentos populares, além de ser resultado da falta de alternativa de moradia, trazem muitas vezes valiosas lições para uma nova lógica de organização do território urbano. Muitas das experiências mais interessantes de questionamento à segregação e irracionalidade da Cidade do Capital foram e são produzidas nas ocupações (BOULOS, 2015, p. 105)

Um segundo ponto de diferenciação utilizado é a organização espacial das ocupações. Esta característica é acionada como uma diferenciadora da “desordem” da favela, que levaria a péssimas condições de vida, em contraste com as ocupações organizadas que possuem um ordenamento espacial prévio ao uso. “As favelas são, em geral, produtos de ocupações não organizadas, onde os moradores vivem nas piores condições, sujeitos a todo tipo de adversidade. Ninguém quer morar numa favela” (BOULOS, 2015, p. 104). Boulos destaca a experiência da ocupação Anita Garibaldi do MTST em Guarulhos, a qual teve o apoio de uma assessoria técnica da faculdade de arquitetura e urbanismo da Universidade de São Paulo (USP) para elaboração do seu projeto de implantação, e que “tem ruas na medida correta, campo de futebol e uma enorme área social de convivência, hoje parcialmente ocupada por uma creche” (BOULOS, 2015, p.105), podemos destacar ainda que são colocados como pontos positivos das ocupações a existência de equipamentos comunitários como biblioteca e barracões. No próximo tópico trataremos das ocupações urbanas promovidas por movimentos sociais, mantendo o foco na zona portuária, a partir do processo histórico de formação destas soluções habitacionais. A reflexão a respeito do compartilhamento dos estigmas entre as favelas e as ocupações é importante para que tenhamos em vista o enfrentamento comum destas diferentes configurações. Em especial, procuramos ter para as ocupações o olhar atento para reconhecê-las como frutos de mobilizações sociais de luta contra a violência às classes populares, desde a violência policial – como bem trabalho por Machado da Silva e discutido anteriormente nesse tópico – até a violência da limitação do acesso à moradia adequada.

2.3 OCUPAÇÕES O tema da violência permeia todas as reflexões sobre as ações no espaço urbano, seja esta violência praticada por atores hegemônicos ou contra-hegemônicos, especialmente a partir da década de 1990, quando na cidade do Rio de Janeiro existia um grande clima de disputa, com


40

tensões e enfrentamentos constantes entre poder governamental e setores da sociedade civil. Dentre as ações sociais de destaque neste quadro tem-se o movimento de mães em busca de filhos desaparecidos por uso da força policial, as manifestações contra a atuação policial no Complexo de favelas do Alemão e da Maré, e mobilizações contra a repressão a camelôs em virtude dos Jogos Pan Americanos. O enfrentamento da população ao modo de agir das forças policiais somou-se às articulações de grupos/movimentos políticos em uma nova organização em rede, da qual fazem parte as ocupações autogestionárias com projetos políticos (FERNANDES, 2014). Estas ocupações ocorreram e ocorrem ainda com as mais diversas configurações, tendo desde antigos imóveis sem uso que são ocupados por uma primeira pessoa que passa a cobrar taxas para permitir a moradia (precária) de outras pessoas, até ocupações de movimentos sociais de luta por moradia. Nos interessam aqui os casos onde estas são as soluções habitacionais encontradas pelo movimento dos sem-teto. A temática do movimento dos sem-teto é bastante complexa de ser abordada, tendo em vista que diversas questões essenciais são pontos de polêmica no interior do movimento, especialmente por ser uma ação social ampla que se desenrola no cotidiano, sendo sempre atualizada. Para a breve abordagem deste estudo da temática, tomo como base o trabalho de Grandi (2010), o qual indico para aqueles que desejarem conhecer a fundo a ação social do movimento dos sem-teto e sua atuação no espaço urbano na cidade do Rio de Janeiro. Neste momento, tratarei somente da apresentação, em especial do surgimento, desta tipologia de solução habitacional na área central da cidade do Rio de Janeiro. Nos próximos capítulos esta forma de moradia será aprofundada e problematizada, considerando sua inserção em meio às pressões do capital imobiliário sobre esta área da cidade. Uma primeira questão que já demonstra a complexidade do tema é a de se definir quem são os indivíduos “sem-teto”. Grandi nos esclarece que a moradia, quanto a sua própria condição e o espaço que ocupa na cidade, é a dimensão social que mais os identifica. Sendo grande parte dos sem-teto inserida na parcela hiperprecarizada da população urbana, o que traz também a dimensão das condições de trabalho. Nos discursos daqueles tidos como sem-teto, a identidade deste grupo heterogêneo ainda parece em construção. Algumas abordagens trazem uma visão mais abrangente, colocando como sem-teto todos aqueles que não moram em “condições dignas”, estejam eles organizados ou não, e outras abordagens são mais restritivas, entendendo o sem-teto como participante de um movimento social (GRANDI, 2010).


41

O que nos guia no entendimento dos sem-teto é ter em vista que a moradia é o mote principal de seu movimento, tendo percepções distintas do que significa e importa nesta luta, indo deste a conquista de um local de moradia com condições dignas de habitabilidade até a inserção ampla desta luta em um contexto de projetos políticos de transformação social. Nesta luta, duas são as principais formas de ação no espaço urbano, que diversas vezes ocorrem de forma articulada, são elas: a ação direta e a pressão institucional. As ocupações são ações diretas, sendo a principal forma de luta do movimento, “territorialização de espaços da cidade operada pelo movimento [...] que configura o espaço e estabelece um novo domínio político sobre o território em questão. E ela não só se dá em sentido estrito, mas também a partir de ações que se valem de símbolos provocativos e quebram regras espaciais impostas pelo Estado ou questionam direitos e prerrogativas legais de proprietários privados – ou seja: uma territorialização em sentido amplo” (GRANDI, 2010, 150 -151). Como formas de luta, as ocupações são fruto de grandes processos de organização, densos de discussões sobre seus aspectos políticos e da importância da construção de uma nova sociabilidade. No caso da cidade do Rio de Janeiro, as ocupações organizadas privilegiaram sua inserção da área central e suas fronteiras, especialmente as ocupações que contavam com o apoio da Frente de Luta Popular (FLP). Esta diretriz espacial de localização das ocupações na cidade do Rio de Janeiro vai ao encontro do grande número de imóveis vagos nesta área. A área central e suas margens, em especial a zona portuária, vem passando por um processo de esvaziamento de seus imóveis que perderam a atratividade para usos que exigiam edifícios mais adequados às novas tecnologia, ao que se soma a pouca tradição brasileira em readequar edifícios antigos e a perda da importância da cidade no cenário político e econômico nacional. Estas questões são ressaltadas pela alta especialização do uso do solo advindo da lei de proibição ao uso habitacional na área central que, embora já não seja mais válida (atravessou as décadas de 1970 a 1990), também deixou uma sombra nesta frente do mercado imobiliário. Já na zona portuária juntam-se a estas questões a especificidade do esvaziamento de suas atividades industriais e portuárias. Dentre os imóveis vazios atualmente, que vêm cumprindo fins especulativos, é importante ressaltar a grande quantidade de imóveis vazios públicos (especialmente da União) nesta área. diante inclusive da predominância de outras atividades econômicas na cidade nas últimas décadas (comércio, turismo, serviços, etc.), muitos dos imóveis localizados na Zona Portuária e em parte do Centro da cidade, antes diretamente vinculados à atividade industrial, cumprem atualmente nítidos fins especulativos, servindo enquanto reserva de


42

valor para empresas e particulares sem aterem-se às atuais exigências legais de cumprimento da função social da propriedade. Da mesma maneira, o próprio Estado (em suas diversas escalas administrativas e suas diferentes subdivisões e autarquias) vem mantendo há anos imóveis subutilizados na área. Muitos deles remetem diretamente às antigas e já citadas atividades administrativas dos períodos nos quais o Rio de Janeiro cumpriu as funções de capital do Império e da República. Outros imóveis, enleados na burocracia do Estado moderno, compõem hoje em dia o amplo estoque de bens recebidos de terceiros pelos órgãos públicos como parte do pagamento de dívidas de toda sorte. (GRANDI, 2010, p. 168)

Com a crescente demanda por moradia que se fortalece com a deficiência de políticas habitacionais para a população de baixa renda, a péssima qualidade e o alto custo do transporte público e a precarização dos vínculos trabalhistas, o movimento dos sem-teto formou seu primeiro grupo com o objetivo de realizar uma ocupação na área central da cidade do Rio de Janeiro, que se consolidaria como a ocupação Chiquinha Gonzaga, em 2004. Para realizar esta ocupação, atuaram juntos dois movimentos sociais que viriam a consolidar novas ocupações posteriormente, a Frente de Luta Popular (FLP) e a Central dos Movimentos Populares (CMP). De acordo com Grandi, apesar de divergências que viriam a ter destaque em um momento posterior, as duas organizações tinham como características comuns a “preocupação cotidiana com a articulação e a formação política do dia-a-dia das ocupações e […] a importância da pressão, negociação e articulação política com e sobre várias entidades (inclusive governamentais) e em várias escalas de acordo com o interesse da ocupação” (GRANDI, 2010, p. 161). Estes dois movimentos também têm em comum a preferência pela ocupação de prédios públicos, embasados no arcabouço jurídico-legal que respalda as ações, que resgata a responsabilidade do Estado na garantia da moradia digna, como consta em nossa legislação federal. A ocupação de prédios públicos para fins de moradia ganhou maior respaldo junto ao poder púbico diante do momento histórico do governo federal ocupado pelo Partido dos Trabalhadores (PT). Com a conjuntura política que se configurou durante a presidência da república exercida por Luís Inácio Lula da Silva, as ocupações ganharam força, respaldadas por seu discurso de apoio à ocupação de prédios vazios para fins de moradia popular. Grandi transcreve em seu trabalho a fala de um dos membros da ocupação Chiquinha Gonzaga que teve seu momento inicial neste contexto. Ai foi justamente naquela época que o Lula falou que os prédios que tivessem vazios seria reformado pra moradia popular. E a gente baseou naquela fala do Lula, que até saiu


43

no jornal que nós pregamos ali em frente à portaria. Então nós se afirmamos naquilo ali que o Lula tinha acabado de falar. (Informação verbal, 2010, apud GRANDI, 2010, p. 174)

De acordo com Grandi, a ocupação Chiquinha Gonzaga foi a primeira realizada na área central da cidade do Rio de janeiro por articulação de movimentos sociais políticos juntos ao movimento dos sem-teto. Houve algumas experiências anteriores, como a ocupação 17 de Maio organizada pela FLP, na cidade de Nova Iguaçu, região metropolitana do Rio de Janeiro, porém a Chiquinha Gonzaga teria sido a primeira a se inserir neste território de disputas da cidade abordado neste estudo. Sua organização teve início no ano de 2003, com diversas reuniões preparatórias nas quais os futuros moradores e os movimentos sociais apoiadores realizavam discussões políticas e sobre a ação prática da ocupação. Estas reuniões ocorriam algumas vezes em espaços públicos e outras nas sedes dos movimentos sociais apoiadores, FLP e CMP. O nome da ocupação foi escolhido coletivamente em homenagem à Chiquinha Gonzaga, considerada companheira da luta das mulheres e também de grande destaque na luta abolicionista no Brasil (GRANDI, 2010). O grupo da ocupação escolheu um prédio do INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), localizado na Rua Barão de São Felix, 110, próximo à estação Central do Brasil e ao Morro da Providência. O prédio, sem uso a mais de 20 anos, foi estudado por uma equipe específica do grupo, sendo somente estas pessoas as que sabiam antecipadamente qual seria o prédio e em qual momento seria ocupado. A ocupação foi realizada 23 de julho de 2004, por cerca de 40 famílias, na data de aniversário de 11 anos da Chacina da Candelária 8. O prédio, que havia sido um antigo hotel, encontrava-se em péssimo estado de conservação, o que levou a ter os primeiros dias da ocupação dedicados à limpeza e recuperação da sua estrutura. A primeira repressão policial veio do poder municipal que, por ser o prédio de órgão federal, não pôde agir. Já quando a Polícia Federal chegou ao local, o fato do grupo da ocupação estar articulado e em comunicação com o INCRA foi definidor para evitar maiores conflitos. (SOUZA, 2008; GRANDI, 2010) Figuras 3 e 4: Ocupação Chiquinha Gonzaga: antigo prédio do INCRA ocupado e abastecimento de agua improvisado. 8

A Chacina da Candelária ocorreu durante a noite de 23 de julho de 1993 no centro da cidade do Rio de Janeiro, na região próxima à Igreja da Candelária. Neste crime, policiais civis e militares abriram fogo contra jovens sem-teto, assassinando 8 entre muitos outros que dormiam no entorno. Esta Chacina é um dos grandes marcos colocados pelos movimentos sociais que militam contra o extermínio da juventude negra e pobre.


44

Fonte: www.moradiacentral.org.br/index.php?mpg=08.04.03. Acesso em 15 de agosto de 2016.

Vale ressaltar aqui o simbólico retorno das classes populares às áreas das quais são sistematicamente expulsas. A ocupação Chiquinha Gonzaga escolheu como espaço a ser territorializado (o edifício na avenida Barão de São Felix, no 110) um lugar muito próximo daquele que em tempos passados também abrigou um marco da presença e remoção forçada dos pobres no centro do Rio de Janeiro, o cortiço Cabeça de Porco (localizado na rua Barão de São Felix, no 154). a coincidência espacial entre a localização do cortiço Cabeça de Porco e da Ocupação Chiquinha Gonzaga reforça o fato de tal área da cidade ser, há tempos, um recorte espacial da cidade em disputa (de forma muitas vezes violenta) por diferentes agentes modeladores do espaço urbano. No caso dessa ocupação (como também nas demais dessa fração do movimento dos sem-teto carioca), essa tensão vincula-se de maneira refletida (em diferentes graus) a um conflito marcado por divisões sócio-espaciais de toda sorte (de classe e étnico-raciais, por exemplo). É um território em disputa, no qual pode-se reconhecer as atuais ocupações de sem-teto como flancos populares importantes


45

(da mesma forma que, diga-se de passagem, outras tantas iniciativas da área) (GRANDI, 2010, p. 189)

A realização da ocupação Chiquinha Gonzaga possibilitou a seu grupo um enorme ganho de experiência, até então inexistente, na ação da ocupação do prédio em si, seus preparativos e sua manutenção, como rotinas de trabalho coletivo, articulações políticas, redes de contatos. Com a experiência adquirida e a demanda por moradia latente, o grupo resolveu partir para uma nova ocupação, a Zumbi dos Palmares. Após uma tentativa sem sucesso devido à repressão de seguranças particulares do entorno, em 06 de abril de 2005 o coletivo de mais de 120 famílias ocupou o prédio de um antigo hospital próximo à Praça Mauá (Av. Venezuela, no 53), de propriedade do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) construído sobre terreno da União e abandonado a mais de 10 anos. Figuras 5 e 6: Ocupação Zumbi dos Palmares: vistas da fachada do antigo prédio do INSS ocupado.

Fonte: lab83.blogspot.com.br/2010/06/ocupacao-zumbi-dos-palmares.html Acesso em 15 de agosto de 2016.

A necessidade de um trabalho de base nas ocupações já existentes e a demanda constante por novos locais de moradia dividiram o grupo da FLP. Aqueles que, diante da demanda por moradia, vislumbravam a realização de novas ocupações juntaram-se a membros da Frente Internacionalista dos Sem-Teto (FIST), da Federação Anarquista do Rio de Janeiro (FARJ) e do Movimento Estudantil Libertário (MEL). A aproximação da FIST à FARJ nesta articulação teria sido um importante fator para a desmobilização de moradores da Chiquinha Gonzaga como parceiros em uma possível nova ocupação. A esta articulação de movimentos sociais juntou-se os futuros moradores da terceira ocupação, que receberia o nome de Quilombo das Guerreiras. (GRANDI, 2010)


46

A Quilombo da Guerreiras tem em sua história uma “peregrinação”, com ocupações e despejos, que levaram a diversas negociações com o Estado e fortaleceram os laços entre os membros de seu grupo. A primeira ação de ocupação deste grupo ocorreu em um prédio do INSS com localização privilegiada na área central, próximo à praça da Cinelândia e ao lado da Câmara Municipal. Entretanto, a permanência do grupo neste edifício foi muito curta, não chegaram a completar um dia no local, sendo removidos por força policial. Este episódio levou a uma nova articulação, da qual a FIST não mais participava. Após esta primeira tentativa, as reuniões do grupo que ocorriam no espaço da ocupação Zumbi dos Palmares também foram repreendidas por ações policiais e passaram então a ser descentralizadas, a partir de reuniões por comissões e posterior encontro de representantes destas comissões. Uma segunda tentativa de ocupação ocorreu então no bairro do Rio Comprido, próximo à região central da cidade. Porém, novamente houve ação policial para o despejo, tendo como diferencial uma articulação junto ao Instituto de Cartografia e Terras do Estado do Rio de Janeiro (ITERJ) para o cadastramento das famílias do grupo. Na terceira tentativa o grupo obteve sucesso, ocupando um prédio da Companhia DOCAS do Rio de Janeiro localizado no bairro de Santo Cristo, próximo ao Terminal Rodoviário Novo Rio (Av. Francisco Bicalho, no 49). A nova articulação composta por FLP e MEL levou à reaproximação com os moradores das ocupações Chiquinha Gonzaga e Zumbi dos Palmares. A ocupação foi realizada no dia 8 de outubro de 2006 - véspera do aniversário de morte de Ernesto “Che” Guevara - e teve seu nome, Quilombo das Guerreiras, escolhido como uma homenagem às lutas populares.

Figura 7: Ocupação Quilombo das Guerreiras, vista a partir de sua horta.


47

Fonte: www.facebook.com/quilombo.dasguerreiras/. Acesso em 15 de agosto de 2016.

A descrição do processo de formação destas ocupações nos mostra que estas se inserem num movimento comum que as une, o qual Grandi se refere como “uma mesma onda”. Elas se conectam por participarem ativamente da história umas das outras e compartilharem experiências semelhantes, além de suas afinidades políticas e sociais entre moradores e grupos de apoio. as três ocupações se inserem no contexto de uma mesma “onda” de ações de uma fração específica do movimento dos sem-teto carioca. Mais do que isso, elas compartilham contextos sócio-espaciais similares, notadamente (mas não só) pela proximidade física que compartilham. Para além disso, diversos aspectos da história das três ocupações ressaltam elementos fortemente ligados à cultura popular e às suas histórias de resistência e luta. Demonstra, assim, uma tentativa de reafirmação de referências pautadas por valores sócio-espaciais distintos dos expostos e eternizados na “história oficial. (GRANDI, 2010, p. 182)

Estas três ocupações são símbolos do processo das quais foram pioneiras na cidade do Rio de Janeiro. Chiquinha Gonzaga, Zumbi dos Palmares e Quilombo das Guerreiras foram as primeiras ocupações de sem-teto na região central do Rio de Janeiro com projetos políticos, vinculadas ou apoiadas por organizações sociais, e que até hoje mantêm-se como referencias importantes desta luta. Após estas primeiras experiências sucederam-se diversas ocupações, dentre as quais é possível listar algumas: Ocupação Flor do Asfalto (2006), Ocupação Carlos Marighela (2007), Ocupação Nelson Mandela (2007), Ocupação Manuel Congo (2007), Ocupação Alípio de Freitas, Ocupação José Oiticica, Ocupação Machado de Assis (2008).


48

Tabela 1: Informações gerais das favelas e ocupações de movimentos sociais na zona portuária

Fonte: Elaboração da autora.


49

Fazem parte do histórico de consolidação destas ocupações diversos momentos de tensão com ameaças de remoções sob discursos como o da ilegalidade da posse ou da má influência em seu entorno, contra as quais se articulavam junto a suas assessorias técnicas, grupos de apoio e estratégias de militância. Como um caso emblemático destas articulações e de organização do coletivo podemos destacar a Ocupação Manoel Congo do Movimento Nacional de Luta por Moradia (MNLM) que se tornou referência nacional nesta luta. Localizada no edifício anteriormente ocupado sem sucesso pelo coletivo Quilombo das Guerreiras, no entorno da praça da Cinelândia, esta ocupação foi uma das contempladas pelo edital do Minha Casa Minha Vida categoria Entidades, com obra de reforma em andamento. Apesar das articulações e mobilizações existentes, grande parte das ocupações na área central e na zona portuária sofreram despejos legitimados pela implementação do Programa Porto Maravilha e das adequações da cidade para a realização de megaeventos, especialmente Copa do Mundo de Futebol (2014) e Jogos Olímpicos (2016). Estas intervenções na produção do espaço urbano são exemplos de engrenagens do aumento da segregação urbana e da violação do direito à moradia por meio de ações do Estado articulado com o capital privado, segundo diretrizes de um Planejamento Estratégico. Neste contexto, Maria Josefina e Leopoldo Pio destacam em seu estudo (SANT’ANNA; PIO; 2014) algumas das ocupações que sofreram processos de despejo: Ocupação Machado de Assis - remoção em 2012; Ocupação Zumbi dos Palmares - remoção em 2011; Ocupação Carlos Marighela - remoção em 2011; Ocupação Casarão Azul - remoção em 2009. Para aqueles que hoje estão ou estiveram na área, como moradores ou trabalhadores com seu próprio pequeno negócio, o destino é a remoção. Esta será uma nova área central que fará parte da Cidade Maravilha reservada ao capital financeiro e imobiliário que abrigará o Porto Maravilha. No modelo ideal do marketing urbano, a população pobre que vive hoje ali (ou que vivia, porque muitos já foram removidos ou desocuparam os imóveis que haviam ocupado) deve deixar o lugar. Não importa que tenham que se deslocar para partes mais periféricas e menos valorizadas da cidade, por conta dos processos de valorização fundiária e imobiliária que as próprias intervenções que os expulsam trazem consigo. (SANT’ANNA; PIO; 2014, p. 113)

O grande processo de remoções forçadas das classes populares, em especial dos moradores ocupações da zona portuária, será tratado nos próximos tópicos deste estudo. Para compreender melhor o contexto deste processo vamos prosseguir em uma análise crítica dos aspectos norteadores da produção do espaço urbano em andamento nesta área da cidade,


50

discutindo o Projeto Porto Maravilha enquanto operação urbana consorciada fundamentada no ideário neoliberal expresso no modelo de Planejamento Estratégico, atuando como condensador dos interesses hegemônicos.

3. RECONFIGURAÇÃO ESPACIAL DO AMBIENTE CONSTRUÍDO: O PROJETO PORTO MARAVILHA E OS CONFLITOS EM TORNO DA MORADIA 3.1 MOBILIDADE DO CAPITAL E A CONFIGURAÇÃO ESPACIAL DO AMBIENTE CONSTRUÍDO A partir de uma leitura da produção social do espaço elaborada por David Harvey, temos que a indústria do transporte possui lugar de destaque no sistema capitalista por ser uma das responsáveis pela circulação do capital sob a forma de mercadoria, na medida em que ela faz parte do processo de produção ao possibilitar o deslocamento do produto até o mercado. Como nos diz Harvey, “a continuidade na circulação do capital só pode ser assegurada mediante a criação de um sistema de transporte eficiente e espacialmente integrado, organizado em torno de alguma hierarquia dos centros urbanos” (HARVEY, 2013, p.482). A indústria do transporte tem como característica específica seu amplo capital fixo incorporado ao ambiente construído, como as grandes redes rodoviárias, ferroviárias e áreas portuárias. Essa sua particularidade torna-a especialmente vulnerável à desvalorização. Por esta especificidade, o capitalista aciona o Estado como regulador, por sua possibilidade de reduzir os riscos da desvalorização atraídos por estas estruturas intrincadas no espaço urbano. A estas partes fixas da indústria do transporte é então atribuída uma grande desvantagem pelo lento ritmo das mudanças tecnológicas. A demanda por mecanismos mais usuais para o mercado deixa de prevalecer como determinação das inovações tecnológicas e passam a ter voz ativa os mecanismos especulativos e políticos. Estas mudanças ficam sujeitas ao poder econômico, às políticas e às vezes aos caprichos arbitrários de capitalistas associados ou de burocratas do Estado. Como reflexo disto temos os espaços urbanos marcados por grandes estruturas de transportes precárias – como linhas férreas e portos abandonados – que bloqueiam a valorização, funcionando no sentido contrário, como elemento de desvalorização. Tem-se, portanto, uma contradição na busca do capitalismo em superar barreiras para sua circulação


51

criando infraestruturas físicas que são estáticas e, por isso, extremamente vulneráveis à desvalorização específica do lugar. Esta contradição na criação e superação de barreiras também ocorre quanto à mobilidade da força de trabalho. Se por um lado a mobilidade geográfica da força de trabalho é essencial para a fluidez do capital, sendo condição para a sua acumulação e possibilitando uma fácil substituição dos processos de trabalho; ela é travada pelo desejo do capitalista de manter suas reservas de trabalho no lugar. Esta questão se reflete nas metrópoles contemporâneas com a grande diferenciação residencial que configura espaços a partir dos perfis ocupacionais, sendo as comunidades organizadas para a reprodução de profissionais necessariamente diferentes daquelas dedicadas à reprodução de trabalhadores braçais. Com isso temos o espaço urbano como uma grande “colcha de retalhos”, em diversas escalas, composta por áreas de especialização local, interregional e até internacional. As grandes áreas desvalorizadas por antigas estruturas de transporte, como as históricas zonas portuárias, por vezes são elementos determinantes para as ocupações espontâneas de pobres urbanos para fins de moradia nas grandes cidades brasileiras, por disponibilizar estoque de terras vazias bem localizadas com baixa fluidez no mercado imobiliário. Entretanto, quando não interessa ao capitalista que este perfil ocupacional permaneça neste espaço da cidade, por diferentes motivos como a busca por valorização imobiliária, tem início os grandes processos de remoções. Neste estudo, a zona portuária do Rio de Janeiro é pensada como grande exemplo deste processo. Harvey nos chama atenção que, diante da busca por fluidez do capital, busca-se eliminar ao máximo as amarras ao espaço fixo, com isso a terra é incorporada ao sistema capitalista como mera forma de capital fictício, com seus títulos negociados livremente e sua renda identificada especificamente como atributos da localização. Em sua análise, Harvey aponta que “a localização é um momento ativo dentro do qual a circulação e a acumulação totais do capital (...) ao lado das reestruturações radicais da economia de espaço do capitalismo desempenham um papel vital nos processos da formação e resolução da crise, e que estes podem até ser um “ajuste espacial” (como o chamamos) para as contradições internas do capitalismo” (HARVEY, 2013, p.487).


52

Para que a configuração espacial do ambiente construído atenda às exigências do capital e do trabalho em geral, são utilizados diversos tipos especiais de dispositivos institucionais que lidam com a coordenação da produção, uso, transformação e abandono de elementos particulares dentro do ambiente construído. Como exemplo temos as grandes renovações urbanas e a intervenção do Estado por meio de regulamentações legais e administrativas que surgem para controlar e promover benefícios interativos e custos de diferentes tipos de usos diretos da terra. O zoneamento, que tem grande aceitação no Brasil pela crença numa regulamentação urbana pautada na demarcação de espaços diferenciados para garantia de uma ordem social necessária, é um exemplo de ferramenta administrativa que junto ao planejamento urbano propõem-se a ser favorável ao lucro dos investimentos imobiliários. É a busca pela valorização da terra, sua especulação realizada por atores como os especuladores imobiliários e agentes fundiários, que geram a excitação caótica que movimenta as alterações nas configurações espaciais. Por maior que seja o seu custo para o capital e por mais destruidora que possa ser para o trabalho, não é interessante ao capital que se combata esta especulação, pois ela é um mal necessário. Sua relevância destaca-se nos momentos de crise do capitalismo, onde o ambiente construído é um elemento fundamental, “a criação de configurações espaciais e da circulação do capital no ambiente construído é, podemos concluir, com segurança, um momento extremamente ativo nos processos gerais da formação e resolução da crise” (HARVEY, 2013, p.506). Os diversos papéis disponíveis para o capitalista na produção do espaço – proprietários de terra que recebem renda, construtores que ganham o lucro do empreendimento, financistas que proporcionam capital monetário em troca de juros – têm sido ocupados por atores que vêm incorporando em suas ações o modelo do Planejamento Estratégico. Em busca da valorização do solo a partir da intensificação dos usos mais rentáveis, a cidade tem sido tratada como uma potente máquina de crescimento.


53

3.2 O PROJETO PORTO MARAVILHA ENQUANTO AÇÃO DE PLANEJAMENTO ESTRATÉGICO DO RIO DE JANEIRO O MODELO DO PLANEJAMENTO ESTRATÉGICO NO BRASIL Este modelo de planejamento é adotado no Brasil ainda na década de 1990, somandose às grandes referências de planejamento urbano até então no país – funcionalista tecnocrático e ideário da reforma urbana. Ele tem sua origem nos países centrais, consolidando-se como uma solução à ideia de crise que ocupava cidades como Barcelona que, por força de seus governantes e principais agentes econômicos, recebeu um grande evento internacional tido como solução a esta crise colocada. Na literatura crítica brasileira tem-se que o planejamento estratégico atua com base em três fatores: sensação de crise, negociação entre poder público e agentes econômicos, e consenso público em prol de um projeto de cidade. Este modelo de planejamento aciona uma postura protagonista das cidades que, com a globalização e o neoliberalismo, passam a competir em um mercado mundial. Ele coloca o governo local no papel de promotor da cidade, criando condições de “cooperação” entre poder público e privado, criando uma imagem simbólica da cidade que vise o “patriotismo cívico” (VAINER, 2005). Neste modelo de planejamento, cidades assumem um funcionamento semelhante ao de uma grande empresa. Ganha destaque, portanto, a ideia da gestão urbana sobre a antiga e fragilizada valorização do planejamento, “a cidade deve ser entregue a quem entende dos negócios (...), devem-se chamar os empresários para dirigi-la, ou então, os especialistas na gerência de negócios” (VAINER, 2005, p.138), com o objetivo de alcançar a maior produtividade e competitividade no processo de globalização. Ao nível local, o “Plano Estratégico” (...) cumpre um mesmo papel de desregular, privatizar, fragmentar, e dar ao mercado um espaço absoluto. Ele reforça a ideia da cidade autônoma, a qual necessita instrumentalizar-se para competir com as demais na disputa por investimentos, tornando-se uma “máquina urbana de produzir renda. (ARANTES, 2000, p.15)

As estratégicas de marketing aplicadas à criação de imagens e significados urbanos tornam-se parte da gestão urbana. Os pontos positivos de cada cidade são ressaltados e os potenciais latentes são identificados e trabalhados para o seu desenvolvimento, tendo como consequência (desejada) a criação de uma imagem simbólica da cidade que vise o “patriotismo cívico”, compartilhado entre aqueles que vivenciam estas cidades em prol de um objetivo comum


54

(ZANATTA, XIMENES, 2015). Este movimento é atravessado por uma análise de mercado pela qual busca-se identificar interesses e demandas globais voltados para aquela cidade específica vista como uma estrutura “prestadora de serviços”, com destacada ação do governo local como promotor da cidade, criando condições de “cooperação” entre poder público e privado. Em seu texto “Pátria, empresa e mercadoria. Notas sobre a estratégia discursiva do Planejamento Estratégico Urbano”, Carlos B. Vainer trata de sua crítica ao modelo de planejamento destacando a busca pela criação do consenso urbano como uma oposição à heterogeneidade inerente à cidade e, tendo como referência os estudos da Escola de Chicago, afirma que este modelo de planejamento tem levado à morte da cidade: Sim, a diversidade da cidade significa a possibilidade, eu diria mesmo a inevitabilidade da coexistência de múltiplos projetos. Já desde os sociólogos da Escola de Chicago, nos anos 20 e 30 do século passado, a definição sociológica de cidade tinha como elemento central a ideia de heterogeneidade. Ali onde não há heterogeneidade, diziam, não há cidade. Por essa razão, pode-se afirmar que a utopia da cidade-empresa é indissociável de um projeto e de práticas autoritárias. A vitória da cidade-empresa anuncia, em certa medida, o fim da heterogeneidade, a morte da cidade. (VAINER, 2005, p.139)

Considerando as grandes disparidades sociais, a exclusão social e a cidadania restrita de grande parte da população brasileira, entende-se que o consenso proposto pelo Planejamento Estratégico só é possível com o silenciamento dos conflitos existentes e a dominância do discurso hegemônico de produção e acumulação de capital, especialmente sobre a dinâmica urbana. É importante ressaltarmos que os conflitos sociais são indesejados quanto à sua exposição, na medida em que são prejudiciais à prezada competitividade, entretanto eles são crescentes e acompanham o agravamento das desigualdades. Em sua produção imagética, o planejamento estratégico traz a criação de paisagens a serem consumidas, com espaços espetacularizados, “onde o cotidiano vivenciado é um recorte encenado da realidade que o envolve” (KAWAHARA, XIMENES, 2015, p. 4). Para criação destes cenários, em geral são apropriados espaços que trazem consigo traços da “identidade” da cidade (como centros históricos, monumentos, orlas, dentre outros), os quais passam por grandes investimentos para sua renovação. Surgem então as grandes obras de renovação urbana nestas áreas da cidade, legitimadas pelo argumento da competitividade, sendo colocadas como contribuição essencial ao marketing da cidade. É construída a imagem destes locais estratégicos como grandes potenciais não devidamente explorados, sendo necessárias estas grandes


55

intervenções para a promoção de melhorias urbanas que seriam apropriadas por todos os cidadãos e a para a superação da crise. Pode-se concluir que a “vocação expansiva da cidade” e a sensação generalizada de crise ou de perda de oportunidades são pré-requisitos para a implementação do plano estratégico, na medida em que permitiriam neutralização das oposições ao plano e o mascaramento das contradições existentes entre as propostas dos megaeventos e as demandas populares existentes. Entre esses dois fenômenos, há um conjunto de processos de diferenciação social, econômica e territorial, bem como de segregação, geralmente ocultados pela intensa produção imagética e ideológica de tais projetos de “requalificação urbana”, que devem ser analisados. (SANT’ANNA; PIO; 2014, p. 105 106)

No Brasil, a cidade do Rio de Janeiro destaca-se na adoção deste modelo de planejamento. A cidade passou a ter sua gestão baseada no modelo de Planejamento Estratégico no início da década de 1990, na gestão de Cesar Maia, quando foi então elaborado o Plano Estratégico do Rio de Janeiro por consultores catalães que traziam no portfólio a experiência da remodelação de Barcelona para receber os megaeventos esportivos realizados nesta cidade. Desde então a cidade do Rio de Janeiro tem sido sede de grandes eventos internacionais, especialmente de temática esportiva, que são parte da sua inserção no circuito mundial competitivo de grandes cidades (junto a Londres, Nova Iorque, Barcelona, Paris etc). Como estratégias de marketing, esses eventos são veiculados pela grande mídia como ações fortalecedoras do então desejado consenso público em prol de um projeto de cidade. O Brasil passou a fazer parte do circuito internacional de grandes eventos, alguns dos quais usados como justificativa para grandes obras no Rio de Janeiro, que implicam na extinção de comunidades pobres. A cidade sediou os Jogos Pan-Americanos de 2007, os Jogos Militares em 2011, a Conferência da ONU (Rio+20) em 2012, além da Copa das Confederações e da Jornada Mundial da Juventude (com a presença do Papa) em 2013. Neste ano de 2014 realizam-se a Copa do Mundo de Futebol e, em 2016, os Jogos Olímpicos, comandados pelas instituições privadas Federação Internacional de Futebol Associado - FIFA17 e o Comitê Olímpico Internacional – COI. Com o apoio da grande mídia, são difundidos na população sentimentos de “patriotismo” e “orgulho” pela cidade ter sido escolhida para sediar os jogos. (GALIZA, VAZ, SILVA, 2014, p.10)

Junto à realização de grandes eventos internacionais, tem-se o Projeto Porto Maravilha. Este projeto é uma das estratégias de renovação urbana para o aumento da competitividade do Rio de Janeiro em âmbito mundial, que se propõem a realizar grandes transformações urbanísticas na antiga zona portuária da cidade. Este projeto é um caso exemplar


56

da utilização de dispositivos institucionais para alterar configurações espaciais do ambiente construído para atender às exigências do capital. Como ferramenta administrativa que dialoga com a prática do zoneamento urbano, este projeto utiliza-se do instrumento da Operação Urbana Consorciada (OUC), presente no Estatuto da Cidade, que se destaca atualmente por ser o meio principal de atuação do Planejamento Estratégico nas grandes cidades brasileiras. No próximo tópico temos uma análise crítica deste instrumento, partindo dos estudos sobre este tema elaborados por Mariana Fix. BREVE ANÁLISE CRÍTICA DO INSTRUMENTO DA OPERAÇÃO URBANA CONSORCIADA A Operação Urbana Consorciada (OUC) é o instrumento no qual se consolida uma extensa discussão que tem origem na década de 1970, quando se passou a discutir sistematicamente a apropriação integral e indevida da valorização territorial pelos proprietários imobiliários, tendo como pano de fundo o conceito de função social da propriedade e a captura de mais-valia urbana, ideários do Movimento de Reforma Urbana9. Algumas experiências pontuais municipais ocorreram com implementação de outorgas onerosas, parcerias público-privadas, e discussões sobre o solo criado10. Esse acúmulo de experiências e discussões foi consolidado no instrumento da OUC, regulamentado no Estatuto da Cidade em 2001. A inclusão deste instrumento se deu sob um amplo discurso do Estado de que este seria voltado para as pautas da Reforma Urbana, a respeito do qual são feitas duras críticas. No Estatuto da Cidade, o instrumento se apresenta como uma possibilidade de intervenção do Poder Público em parceira com o setor privado em uma área específica da cidade a fim de aprimorar a sua estrutura urbana. Para sua viabilidade financeira, é posto a venda o 9

A articulação pela Reforma Urbana parte de uma problematização do diagnóstico desenvolvimentista, tratando os problemas urbanos e habitacionais como parte de uma reforma de base, pautando uma política mais democrática e redistributiva, na discussão das desigualdades e dos direitos sociais, tendo como uma de suas principais bandeiras a função social da propriedade. Essa discussão que se inicia pouco antes da ditadura militar e por esta é atingida, ganha novamente espaços de debate com a abertura política, quando discute e interfere na elaboração da Constituição Federal de 1988 (CF 1988). Os pontos sobre a questão urbana levados à CF 1988 são regulamentados em 2001 pela Lei do Estatuto da Cidade, onde são apresentados diversos instrumentos, que resultam de um campo de fortes disputas e que se refletem em suas possibilidades de aplicação. 10

O instituto do Solo Criado pode ser definido como toda a área edificável que vai além do coeficiente único de aproveitamento do lote, legalmente fixado para aquela zona na qual insere-se o terreno. O proprietário do terreno não tem, portanto, o direito originário de construir para além do que define a legislação, mas poderá adquiri-lo do Município.


57

direito de construir para além das restrições da lei de zoneamento, por meio da outorga onerosa. Neste âmbito, surge o Certificado de Potencial Adicional de Construção (CEPAC) que, de maneira simplificada, define-se como títulos deste direito a serem negociados em leilões para empreendedores, emitidos pela administração pública e vinculados à área da OUC. A princípio, o valor arrecadado com a venda de CEPAC garantiria ao poder público a realização de grandes obras urbanas na área da OUC sem que fosse necessário onerar o orçamento municipal, sendo ainda uma forma de captura de mais-valia urbana. Como indicado em publicação do Ministério das Cidades “Operações urbanas: anais do seminário BrasilFrança”, em texto de Paulo Sandroni (2009), esta captura coloca-se da seguinte forma: a valorização proporcionada pelos novos direitos de construção seria partilhada entre o proprietário do terreno e a Administração Pública que os concede. Partindo do entendimento de que é inerente ao instrumento a perspectiva de valorização da área na qual se aplica para que se garanta sua viabilidade financeira, entende-se que este instrumento se aplica em áreas da cidade que já são valorizadas, por vezes, por maciços investimentos públicos. Há também de se considerar que as obras prévias de urbanização, que tornaram atraentes ao setor privado o investimento na área da OUC, não são consideradas na captura de mais-valia pelo poder público pela venda de CEPAC, sendo um grande custo por vezes desconsiderado das análises destas operações. Critica-se, portanto, o discurso de que esta vinculação do valor capturado pelo poder público nessas operações com sua área específica seja positiva. Entende-se que a vinculação do valor capturado pelo poder público nestas operações com sua área específica agrava a grande desigualdade urbana presente nas cidades brasileiras. De acordo com Mariana Fix (2009), as Operações Urbanas Consorciadas favorecem o circuito de reinvestimento em regiões já favorecidas, sendo contrárias às políticas de distribuição de renda, democratização do acesso à terra e aos fundos públicos. Com sua necessidade de valorização imobiliária, as OUC também se tornam grandes instrumentos de expulsão dos núcleos habitacionais de baixa renda das áreas de interesse do mercado imobiliário, também tendo reduzido seus espaços de participação popular na medida em que possuem temporalidades e pressupostos incompatíveis com o modelo de planejamento proposto. Com a eminência dos processos de gentrificação, esta questão é incorporada ao discursos do poder público como “possível” impacto, como podemos ver no texto publicado por Sandroni (2009) pelo Ministério das Cidades, e contra o qual poderia ser utilizado com eficácia o instrumento da Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS). Esta indicação destoa do objetivo


58

central da ZEIS (pautado por movimentos sociais) que tem como horizonte a redução do déficit habitacional com a garantia da oferta de terras urbanizadas bem localizadas para a produção de moradia de interesse social e de permanência de núcleos consolidados, passando a ser utilizado como parte do discurso legitimador das OUC e como potencial amortecedor dos impactos sociais negativos. Em afinidade com o Planejamento Estratégico, no objetivo de fortalecer sua legitimidade a OUC pretende construir um discurso de consenso em torno de sua implementação. Incentiva que toda a população esteja unida em prol da competitividade da cidade no mercado mundial e, para isso, cria espaços espetaculares, cenários urbanos. As áreas definidas como OUC desempenham o papel de possibilitarem aos investidores urbanos construir edifícios que componham o skyline da cidade, que ao mesmo tempo em que são excepcionais e particulares em sua estética, seguem padrões característicos exigidos pelo mercado imobiliário que os vêm como ativos financeiros. Como aponta Mariana Fix (2009), o edifício se transforma em “logomarca” e o skyline em “marca”, uma alusão ao entendimento da cidade como empresa e as estratégias de branding, propostos pelo Planejamento Estratégico. Em torno destas imagens, o planejamento visa construir um patriotismo de cidade, um consenso (aparente) no qual os conflitos não podem transparecer, sendo por isso indesejável a presença daqueles que expõem os custos sociais destas intervenções. A OUC é, por tanto, o instrumento que melhor transparece o modelo do Planejamento Estratégico quem vem sendo amplamente aplicado nas grandes cidades brasileiras, como São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Fortaleza. Ela garante ao capitalista que atua na produção no espaço – seja como proprietários fundiários, incorporadores ou construtores – a possibilidade de interferir nos vetores de valorização, com o objetivo de fazer crescer financeiramente os investimentos privados na cidade. Sobre este ponto Mariana Fix coloca: Uma hipótese para o interesse despertado pelas operações urbanas pode ser o fato de que elas reúnem, em um mesmo projeto de lei: um programa de investimentos (característico dos planos) e a definição de novas regras de uso e ocupação do solo (características do zoneamento); a legitimidade social conferida por seu suposto autofinanciamento, de modo a dispensar qualquer discussão sobre o fato de serem prioritárias ou não; e o respaldo do urbanismo dito progressista, que as identifica como um mecanismo de recuperação das chamadas “mais-valias urbanas”. Tudo isso, vale dizer, de modo muito mais restrito, dirigido e controlado no tempo e no espaço. Por isso, justamente, mais interessante para o circuito imobiliário, uma vez que a criação da “exclusividade” e da


59

diferenciação são ingredientes básicos da apropriação da renda fundiária. (FIX, 2009, p.52)

O PROJETO PORTO MARAVILHA O Projeto Porto Maravilha é apresentado como uma das iniciativas estratégicas do Planejamento Estratégico da Prefeitura do Rio de Janeiro (em sua versão 2013-2016) que traz em sua capa o texto “Pós 2016 - Rio Mais Integrado e Competitivo”.

De acordo com este

documento, este projeto “irá recuperar 5 milhões de m2 da área central da cidade, há anos abandonada em estado de decadência”11. Esta área descrita como abandonada e em decadência é a zona portuária da cidade do Rio de Janeiro, que compreende grande parte a norte do centro expandido. Para sua viabilidade, o município aprovou o projeto por meio das Leis Municipais Complementares nº 101 e 102 de 2009, que ampara a Operação Urbana Consorciada coordenada pela Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto do Rio de Janeiro (CDURP), empresa pública de capital misto. De fato, o Porto Maravilha pode ser entendido como caso emblemático das aplicações do modelo de Planejamento Estratégico em curso nas grandes cidades do Brasil. Ele apropria-se de um espaço com fortes traços identitários para a cidade, sobre o qual argumenta-se que não vinha sendo devidamente explorado, o que legitima a grande intervenção urbana em andamento. Diante do contexto de crise mundial, também vivida no Brasil, este projeto é apresentado como um grande auxílio à sua superação, com a atuação conjunta do poder público e agentes econômicos. Seu caráter emblemático vem também pelas adaptações necessárias à implantação de um modelo formulado nos países centrais quando entra em contato com limites impostos pela formação social brasileira, com padrão de acumulação mais baixo e as grandes disparidades sociais. Alguns destes limites serão tratados aqui especialmente quanto à questão da moradia e, por sua vez, do acesso à terra. Ao definir a área do Projeto como “há anos abandonada em estado de decadência”, o Projeto utiliza-se desta imagem historicamente construída da região portuária para sua legitimação, reforçando a ideia de que esta é uma região vazia. Em seu texto de divulgação, o Projeto coloca-se como promotor do reencontro desta região com a cidade. “O Porto Maravilha é

11

Trecho destacado da página 106 do documento disponível em: /www0.rio.rj.gov.br/planoestrategico. Acesso em 30 de julho de 2016.


60

uma operação de requalificação urbana que promove o reencontro da Região Portuária com a cidade, lançando novo padrão de qualidade de vida no Rio de Janeiro. Com as mudanças previstas para o município e para a área do Porto Maravilha, a degradação de décadas será revertida na histórica onda de reformas urbanas que servem como referência para outros bairros”12. Este posicionamento ressalta o grande papel das barreiras rodoviárias, como a Av. Presidente Vargas, criadas pelo poder público que rasgaram a malha urbana desta região da cidade, levando ao seu isolamento. Estas intervenções tiveram suas consequências agravadas pelos diversos anos passados sem investimentos ou ações do poder público que ocorrem junto à consolidação da imagem do Porto como local de abandono. Fortalece-se também o estigma de seus moradores. Ao considerar a área como “abandonada”, um vazio urbano, estão sendo acionadas algumas estratégias do modelo de Planejamento em curso que buscam tornar invisíveis os conflitos sociais em torno de suas ações, que são explicitados pelas diversas ocupações de imóveis pela população de baixa renda que encontra nesta área baixos custos com moradia e fácil acesso às ofertas de emprego. Este argumento da ausência do uso habitacional na zona portuária da cidade silencia também a presença de algumas das primeiras favelas da cidade, como o Morro da Providência e o Morro do Pinto. Desconsidera-se que o próprio poder público induziu uma alta especialização do uso do solo na zona portuária com a lei de proibição ao uso habitacional na área central que, embora já não seja mais válida (atravessou as décadas de 1970 a 1990), também deixou uma sombra nesta frente do mercado imobiliário. Assim como tem sido protagonista da ociosidade de imóveis na região, que vêm cumprindo fins especulativos, mantendo sem uso grandes imóveis públicos (especialmente de propriedade da União). Retoma-se assim a ideia do método do Planejamento Estratégico de legitimar suas ações por meio de um marketing que destaca a precariedade e desqualificação da área de intervenção. Como contraponto a este quadro construído por seus principais agentes, o Projeto propõe o adensamento demográfico da área, com a atração de novos moradores: “No centro da reurbanização está a melhoria das condições habitacionais e a atração de novos moradores para

12

Disponível em: www.portomaravilha.com.br/web/esq/imprensa/pdf/05.pdf. Acesso em 27 de julho de 2016.


61

a área de 5 milhões de metros quadrados (...) Projeções de adensamento demográfico indicam salto dos atuais 32 mil para 100 mil habitantes nos próximos 10 anos na região”13. Seu alinhamento com o modelo de Planejamento vem também com o uso do instrumento da Operação Urbana Consorciada, essencial para possibilitar as grandes alterações nos parâmetros urbanísticos vigentes na área. Até então, a zona portuária seguia parâmetros que garantiam uma ocupação urbana com prédios baixos e poucos espaços vazios entre as edificações. O Porto Maravilha trouxe novos parâmetros que agregam potencial construtivo em grande parte de sua área de abrangência: onde antes poderiam ser construídos apenas pequenos prédios passa a ser permitida a edificação de grandes torres. Os novos parâmetros estabelecidos na legislação são necessários para que esta área cumpra seu papel de abrigar novos edifícios para compor o “skyline” desejado para a cidade considerando-se suas estratégias de branding, assim como para delinear novos usos e usuários para esta área. Figura 8: Simulação do novo “skyline” da área do Projeto Porto Maravilha a partir dos empreendimentos imobiliários previstos.

Fonte: “Porto Maravilha e a alienação no trabalho em arquitetura e urbanismo”. Trabalho final de graduação de Vitor Haufen. Disponível em: https://issuu.com/vitorhalfen/docs/porto_maravilha_e_a_aliena____o_do_

Para adquirir este direito de construir o investidor deve comprar Certificados de Potencial Construtivo (Cepacs), sendo o lucro destas vendas apresentado como fonte de financiamento para as obras previstas pelo Projeto. É importante destacar que no caso da OUC do Porto Maravilha foi realizado, em 2011, um leilão no qual os 6,4 milhões de Cepacs foram arrematados em um 13

Op. Cit.


62

único lote pela Caixa Econômica Federal (CEF) por meio do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), por um valor de 3,5 bilhões de reais. (...) em um leilão de condições inéditas no dia 13 de junho de 2011, os 6,4 milhões de Certificados de Potencial Adicional de Construção (Cepacs) foram arrematados em lote único, o que garantiu recursos para todas as obras e serviços da operação urbana Porto Maravilha nos 5 milhões de metros quadrados (m²) da Região do Porto do Rio de Janeiro por período de 15 anos. O Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), administrado pela Caixa Econômica Federal, adquiriu o conjunto por R$ 3.508.013,49014

Seguindo o edital deste leilão, o FGTS assume o compromisso de arcar com o investimento de 8 bilhões de reais ao longo de 15 anos. Como recompensa pelo risco assumido, o FGTS ganha preferência na compra de terrenos públicos na área do Projeto. Desta forma, a operação urbana conseguiu arrecadar em uma única transação todo o financiamento necessário para sua realização conforme previsto em orçamento, enquanto o FGTS assumiu todas as Cepacs e passa a negociá-las com os investidores, evitando possíveis prejuízos do município com a incerteza das vendas, portanto assumindo o risco. Foi criado o Fundo de Investimento Imobiliário Porto Maravilha (FIIPM) para gerir estas operações financeiras. De acordo com o site do Projeto, o FIIPM já tem pré-comercializados cerca de um quarto do estoque de Cepacs15. O formato do leilão realizado foi direcionado para que apenas grandes agentes financeiros pudessem cumprir suas exigências e com isso participar desta negociação. Ao formular este padrão de edital, que se diferencia de outras experiências de OUCs no Brasil, podemos perceber que houve interesse do poder público municipal em viabilizar financeiramente o projeto de forma rápida, com o formato de leilão, evitando a compra por atores de menor porte e em compras de menores volumes. Assim como, houve por parte do governo federal, que possui forte representatividade e poder de decisão nas atividades do FGTS 16, interesse em atuar neste mercado indo ao encontro das expectativas da esfera municipal. Com isso, nota-se a existência de

14

Publicação disponível no site http://portomaravilha.com.br/materias/cepacs/c.aspx

15

Dados disponíveis em: www.portomaravilha.com.br/materias/entenda-o-negocio/e-o-n.aspx. Acesso em 30 de julho de 2016. 16

De acordo com o site do FGTS, seu Conselho Curador é composto por 12 representantes do governo, 6 representantes dos empregadores e 6 representantes dos trabalhadores. Por alinhamento político, os 12 representantes do governo funcionam como um bloco unificado que vota de forma homogênea, enquanto os outros atores disputam seus interesses neste espaço. Tem o cargo da presidência do conselho o Ministro do Trabalho, que em caso de empate em votação possui o voto de minerva. Com esta estrutura, o poder do governo torna-se claro nas operações deste fundo.


63

uma coalisão de interesses entre as duas esferas do governo, federal e municipal, para a realização deste investimento financeiro. Esta atuação do FGTS no leilão de Cepacs do Porto Maravilha é pautada estritamente pelo lucro, justificada pelo objetivo de dar rentabilidade ao dinheiro do contribuinte, o trabalhador. De acordo com o gerente Nacional de Fundos Imobiliários da Caixa Econômica Federal, Vitor Hugo Pinto: O que esperamos [FGTS] é a valorização dos custos, algo que já está acontecendo. Hoje, a unidade do Cepac está valendo mais do que o dobro do que compramos. O que temos no caso do Porto é um ciclo virtuoso. Financiaremos a operação urbana e rentabilizaremos o Fundo. Investimos na revitalização e depois colhemos os frutos. Não fazemos doação de dinheiro, mas investimento, trabalhando para o retorno e lucro. Nosso modelo de gestão tem o objetivo de rentabilizar o montante desse dinheiro, que é privado, de todos os contribuintes do FGTS17.

Esta estrutura financeira do Projeto é bastante significativa para suas consequências na cidade, tendo em vista que a combinação entre fundos públicos e grandes volumes de capital trouxeram uma grande mudança no padrão de urbanização brasileiro nas últimas décadas. Podemos perceber o crescimento do papel de fundos diversos, que ao reunirem pequenos atores financeiros chegam a grandes somas que possibilitam o ganho em escala, assim como a pulverização dos riscos. Este formato distancia o espaço da tomada de decisão dos territórios físico e financeiros onde ocorrem de fato. O descolamento territorial da tomada de decisão ocorre junto à busca por grandes lucros, utilizando-se como estratégia a especulação imobiliária que agrava as grandes disparidades sociais das cidades brasileiras, em especial do Rio de Janeiro. Já não importa aos agentes financeiros as consequências urbanas de suas ações, como as intervenções propostas pelo Porto Maravilha, mas sim o lucro gerado. Diante de todo seu conjunto de ações, o Projeto cria um cenário especulativo e fragmentado, o qual temos dificuldade em visualizar suas consequências diretas para a paisagem urbana a ser criada. Tem-se o andamento das obras urbanas previstas pela OUC, seguindo o ritmo imposto pela eminência dos megaeventos esportivos a serem sediados pela cidade, especialmente os Jogos Olímpicos 2016. Este ritmo das obras urbanas não tem sido acompanhado pelos investimentos privados em edificações. Apesar das grandes expectativas criadas, poucos edifícios novos estão com obras em andamentos ou concluídas, tendo especial destaque a ausência de 17

Publicação disponível no site http://www.portomaravilha.com.br/noticiasdetalhe/3981


64

projetos com usos habitacionais em contrapondo à diretriz de adensamento populacional do Projeto Porto Maravilha. Já aos moradores locais, as obras têm impactado diretamente seu cotidiano, tanto inviabilizando deslocamentos e alterando suas rotinas diárias, como imponto um novo custo de vida acima daquele anterior que viabilizava sua permanência nesta área da cidade. Com isso, são relatados tantos casos de remoções indiretas por impossibilidade de arcar com o custo de vida, como remoções diretas por meio das intervenções do poder público municipal. Tomamos aqui a questão da moradia como grande centro de conflito de interesses, tendo por um lado a demanda latente pela permanência e a melhoria das condições de moradia da população moradora da zona portuária, enquanto por outro lado o Projeto traz como objetivo, pautado na geração de lucros, a atração de novos moradores a partir de novos empreendimentos habitacionais. O USO HABITACIONAL NO PROJETO PORTO MARAVILHA: CONFLITOS DA PERMANÊNCIA E A INSERÇÃO DE NOVOS PERFÍS POPULACIONAIS Apesar de ser apresentada como diretriz do Projeto Porto Maravilha a retomada do uso habitacional nesta área da cidade, podemos perceber que este tipo de uso aparece em quantidade pouco significativa de empreendimentos para a região. As poucas inciativas voltadas para o uso habitacional priorizam o fortalecimento do mercado imobiliário neste setor, o que ocorre em detrimento a uma das principais justificativas colocadas na Lei de criação deste Projeto: a garantia do direito à moradia e a promoção de habitação de interesse social. Como nos apontam Maria Josefina Sant’anna e Leopoldo Pio, “em vez de reforçar os vínculos legais e culturais dos moradores com a região, justificam a inserção de um novo perfil de morador para a área, que inclui a inserção maciça das classes média e média alta na região e a força do mercado imobiliário na organização da dinâmica residencial da área” (SANT’ANNA; PIO; 2014, p.8-9). Mariana Werneck e Orlando Santos Junior fundamentam uma parte de suas críticas ao Projeto a partir deste ponto, colocando que “as boas intenções do projeto, pelo menos por enquanto, terminam por aí” (JUNIOR, WERNECK, 2015), fazendo referência às suas justificativas progressistas. Para Orlando, a indefinição de uma política significativa de inclusão de novas unidades de habitação de interesse social pode levar as poucas unidades deste tipo já previstas a terem aspectos residuais, caírem no vazio.


65

Na prática, as intervenções e os principais instrumentos que estão sendo implementados atendem aos grandes interesses dos agentes do mercado: isenções e incentivos fiscais, comércio de certificados de potencial construtivo, operações em bolsas de valores, parcerias público-privadas. E a habitação de interesse social? Sem vinculação de recursos e a definição de percentuais mínimos de construção de habitação social nos diversos setores que compõe a área portuária, as ações de promoção ou produção de novas unidades de habitação de interesse social são residuais e correm o risco de cair no vazio. (JUNIOR, WERNECK, 2015)

Dentre os empreendimentos privados previstos para a área e levados ao poder público para licenciamento, apenas um possui uso habitacional, o Porto Vida Residencial com 130.662,16m2, em contraste com os 1.214.774,96m2 do total de área edificada prevista de empreendimentos comerciais, evidenciando o contraste dos interesses do mercado imobiliário entre estes dois usos18. O projeto do Porto Vida Residencial possui 1.333 unidades habitacionais, das quais 1000 (correspondente a 75% do total) teriam prioridade de venda para funcionários da Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro, tendo o valor do metro quadrado para venda semelhante ao da Tijuca19, tradicional bairro carioca. O lançamento deste primeiro empreendimento habitacional na zona portuária desde o início do Porto Maravilha foi amplamente abordado pela mídia, com reportagens veiculadas em jornais de grande circulação, como em “O primeiro residencial do Porto” publicada em junho de 2013 no jornal O Globo que dizia: “É esperado ainda para esta quinzena o lançamento oficial de um dos mais aguardados empreendimentos imobiliários da cidade: o Porto Vida, primeiro residencial da região portuária, concebido para funcionar, inicialmente, como a Vila de Árbitros e Mídia das Olimpíadas de 2016”20. Nesta matéria o residencial é apontado como parte das acomodações para os Jogos Olímpicos de 2016 e cerca de 2900 funcionários da Prefeitura já haviam realizado o cadastro com interesse em adquirir as unidades.

18

Estres dados estão sistematizados e disponíveis no trabalho final de graduação do arquiteto e urbanista Vitor Halfen, “Porto Maravilha e a alienação do trabalho em arquitetura e urbanismo”. Disponível em: <https://issuu.com/vitorhalfen/docs/porto_maravilha_e_a_aliena____o_do_>. 19

A prioridade dada aos servidores também se estende para benefícios financeiros. De acordo com matéria publicada no jornal O Globo, os servidores teriam acesso aos apartamentos com um valor de 6,5 mil reais o metro quadrado. Este preço seria inferior ao praticado no mercado imobiliário e somente possível devido aos descontos em algumas taxas. 20

Disponível em: www.oglobo.globo.com/economia/imoveis/o-primeiro-residencial-do-porto-8573697. Acesso em 01/08/2016.


66

Figura 9: Porto Vida Residencial: expectativa de projeto em contraste com a obra paralisada.

Fonte: noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2015/02/11/unico-projeto-residencial-do-portomaravilha-rj-tem-obra-parada-ha-um-ano.htm. Acesso em 15/03/2015.

Como resposta deste quadro de pouco interesse dos investidores privados em lançar novos empreendimentos habitacionais na região portuária, a Prefeitura do Rio de Janeiro lançou em 2014 um pacote de incentivos que flexibilizaram os padrões construtivos e reduziram os custos do investimento, por meio das leis complementares nº5.780 de julho de 2014 e nº 143 de agosto do mesmo ano. Em apresentação do Projeto Porto Maravilha são apresentados como diferenciais positivos da nova legislação: menores custos com CEPAC, impostos e taxas, e flexibilização na demanda por construção de garagens; resultando na consolidação do uso residencial no Projeto com destinação de metade do estoque de potencial adicional de construção para este uso. Apesar destes incentivos por meio da legislação, somente alguns poucos novos projetos de uso habitacional foram apresentados pelo setor privado, os quais destacam-se por seu grande porte e elevado padrão. A este cenário de pequena oferta somou-se, já em 2015, as dificuldades de implementação do Porto Vida Residencial. O seu uso como acomodações para os Jogos Olímpicos não foi efetivado, sendo esta demanda suprida por novas unidades produzidas na Zona Oeste da cidade, distante da zona portuária. A perda deste uso temporário para o


67

empreendimento levou à paralização das obras. Como publicado no site UOL de notícias na matéria “Fora da Olimpíada, obra na zona portuária do Rio esta parada há oito meses”21: Até o primeiro semestre do ano passado, quando o empreendimento privado ainda estava na rota de instalações dos Jogos Olímpicos de 2016, a Prefeitura do Rio propagava com frequência a ideia de que o Porto Vida representaria a "reocupação da zona portuária", um modelo a ser seguido para revitalizar a região de modo que não existissem apenas prédios comerciais. Era o "Porto Olímpico". Porém, mais de um ano depois, o que se vê no local são apenas blocos de concreto. O trabalho foi interrompido no primeiro semestre do ano passado, com apenas 25% das obras concluídas 22

Figuras 10 e 11: Lumina Rio, um dos empreendimentos residenciais de alto padrão para a região portuária, lançado em março de 2015 com a presença do Prefeito Eduardo Paes.

Fonte: disponível em: http://www.rio.rj.gov.br/web/guest/exibeconteudo?id=5245048, acesso em 20 de agosto de 2016.

A pequena atuação do setor privado na produção de moradias também é acompanhada pelo poder público. Até o início de 2013, o programa municipal Novas Alternativas era divulgado como única iniciativa de produção de moradia do poder público municipal nesta área da cidade. Este programa tem seu foco na recuperação de imóveis (em especial de relevante interesse histórico e arquitetônico) para uso habitacional na área central. Estas ações teriam parte dos custos arcados pelo poder público municipal e outra parte financiada pela Caixa Econômica Federal. O Programa, que tem sua origem ainda na década de 1990, possui alguns projetos de reabilitação de antigos sobrados e recuperação de ruinas de grande repercussão no meio técnico e acadêmico, como por exemplo a intervenção no antigo cortiço localizado na rua Senador Pompeu que foi restaurado para abrigar 23 unidades habitacionais. Apesar de tornar-se referência nacional 21

Disponível em: www.noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2015/02/11/unico-projeto-residencial-doporto-maravilha-rj-tem-obra-parada-ha-um-ano.htm. Acesso em 18 de março de 2015. 22

Op. Cit.


68

por sua intenção em promover moradia popular na área central com a preservação do patrimônio arquitetônico, o programa tem como um dos seus grandes entraves o alto custo das obras e da manutenção dos casarios reformados, além do elevado custo de aquisição de seus imóveis destinados a faixa de renda familiar de 3 a 6 salários mínimos, o que o distancia da proposta original de ter os moradores da baixa renda como seu público alvo. Além disso, a quantidade de novas unidades habitacionais propostas por meio deste programa na área do Projeto do Porto Maravilha, cerca de 50023, é pouco significativa em relação à real demanda e à diretriz de adensamento populacional do Projeto. Já em agosto de 2013, o então prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, anunciou a previsão de produção de 2.200 novas unidades habitacionais na região portuária por meio do Programa Minha Casa Minha Vida, seguindo a diretriz deste programa para o porte dos empreendimentos, sendo cada um de até 200 unidades habitacionais. Orlando Junior e Mariana Werneck (2015) apontam que, deste total de 2.200, apenas 68 novas unidades foram licenciadas até abril de 2015. E mesmo as licenciadas sofrem atrasos tanto por responderem às oscilações de interesses do setor da construção civil, quanto por entraves no processo de aprovação de projeto junto à Caixa Econômica Federal. Ainda em 2014, este insipiente número de unidades habitacionais de interesse social na área do Porto Maravilha foi levado à discussão pela Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (ALERJ) em texto elaborado por Isabel Cristina da Costa Cardoso24 o qual teve como objetivo “expor e denunciar a subordinação da função social da propriedade e da cidade na região portuária do Rio de Janeiro ao processo de valorização da terra e do capital imobiliário a partir da criação e do desenvolvimento da Operação Urbana Consorciada (OUC) da Região do Porto do Rio de Janeiro, vulgo “Porto Maravilha”. Neste texto que compõem o Relatório Anual de Direitos Humanos da ALERJ de 2014, Isabel Cardoso ressalta o pequeno número habitações de interesse social no Porto em relação ao total de empreendimentos do PMCMV na cidade: “se por um lado o número previsto de unidades habitacionais parece impressionar, é necessário cotejá-lo com os dados oficiais do licenciamento 23

Em alguns materiais publicitários foi divulgado um quantitativo de aproximadamente 500 unidades habitacionais como expectativa a ser alcançada, entretanto por não estarem apresentadas no Programa Básico do Projeto torna-se difícil o levantamento preciso das famílias beneficiadas e da real efetividade do Programa. 24

Professora da Faculdade de Serviço Social da UERJ, Membro do Fórum Comunitário do Porto e Coordenadora do Projeto de Extensão Direito à Cidade, Política Urbana e Serviço Social.


69

da produção habitacional do PMCMV, no Município do Rio, no período de 2009–2013 (...) verifica-se o total de 73.321 u/h.” (CARDOSO, 2014, p.102). Se realizarmos esta ponderação sugerida por Isabel Cardoso e considerarmos as 2.200 unidades anunciadas em relação ao total de 73.321 no período de 2009 a 2013, podemos perceber a quão irrisória é esta oferta. O que se agrava ainda mais se somarmos a este valor os novos empreendimentos do PMCMV após 2013. Para Isabel Cardoso, estas poucas unidades previstas para a região portuária ao sofrerem também com entraves para a aprovação do projeto, assim como já pontuado por Orlando Junior e Mariana Werneck, demonstram a emergente necessidade de demarcação e destinação de terras públicas para a produção habitacional de interesse social. Por isso, é fundamental enfatizar que a produção significativa de habitação de interesse social na região portuária da cidade depende da demarcação e destinação das terras públicas lá existentes para o cumprimento dessa finalidade. Tal é o desafio fundiário do direito à moradia na região, pois os terrenos mais valorizados, onde está prevista a maior capacidade de consumo de CEPACS são terrenos públicos, em grande parte da União. Sem a definição de política pública nessa direção, a criação de incentivos fiscais e urbanísticos pelo poder público municipal deixará ao mercado a tarefa de imprimir a direção da produção de moradia. O que significa subordinar novamente o valor de uso da terra e da propriedade − que fundamenta a própria concepção da moradia como direito humano e direito social − ao valor de troca. (CARDOSO, 2014, p. 102).

Figura 12: Mapeamento das licenças do PMCMV, por faixa de renda salarial e número de unidades – 2009 a 2013


70

Fonte: Relatório de Evolução da Ocupação e uso do solo 2009-2013, produzido pela Secretaria Municipal de Urbanismo da Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro.

Figuras 13 e 14: Detalhes do Mapeamento das licenças do PMCMV, com destaque para a região portuária com prioridade da faixa de 3 a 6 salários mínimos.

Fonte: Relatório de Evolução da Ocupação e uso do solo 2009-2013, produzido pela Secretaria Municipal de Urbanismo da Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro.

Figura 15: Mapa elaborado em 2015 com o status dos empreendimentos do MCMV para zona portuária, explicitando a inexistência de empreendimentos contratados nesta área.


71

Fonte: Plano Habitação de Interesse Social do Porto do Rio, 2015, elaborado pela Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro.

Pela ausência de propostas significativas de produção de moradias de interesse social, seja pelo PMCMV ou pelo Programa Novas Alternativas, e pelo perfil dos empreendimentos promovidos pela iniciativa privada em andamento, podemos visualizar como as novas unidades habitacionais que surgem na região portuária têm como foco a população de classe média e média alta. Maria Josefina Sant’anna e Leopoldo Pio (2014) ressaltam que estas novas moradias são previstas em um cenário de ausência de políticas de manutenção da população já residente, em sua maioria de classes populares, e que as diretrizes para a provisão habitacional de interesse social são vagas e possuem pouca concretude, em contraste com as intervenções que visam a valorização do capital privado investido. Os autores trazem uma declaração do ex-diretor do Projeto Porto Maravilha e então diretor da Secretaria Municipal de Urbanismo, na qual é exposto que há a preocupação com a gentrificação e que haveria um interesse do poder público em incentivar a produção de empreendimentos com voltados para uma maior diversidade de faixas de renda. Entretanto, ele coloca que este interesse não tem se rebatido nas ações realizadas, tendo como entrave a predominância do capital privado nas decisões sobre o espaço urbano.


72

A questão da gentrificação é sempre uma preocupação muito grande, desde o início [...] A primeira preocupação foi estabelecer microcrédito, como estabelecer microcrédito na área. Mas é muito difícil avançar. Não se conseguiu avançar.25 E o que é pior: a gentrificação em cima dos aluguéis [...] Porque a prefeitura tem feito na medida do possível um programa de requalificação de alguns antigos cortiços [...], algumas edificações, aumentando o número de unidades [...], mas é pouco dentro desse universo. [aqui faz-se referência ao Programa Novas Alternativas] [...] Na verdade, é bom que as áreas da cidade tenham um mix de renda, pessoas de várias classes sociais, porque essa troca entre elas é boa. Você ter serviços próximos a você, você precisar de um bombeiro, um eletricista próximo, para você é bom, um sapateiro, um quitandeiro, pequenos comércios [...] porque não é só a questão da moradia, é a questão do próprio comércio de rua, o comercio tradicional se perde às vezes por conta de um comércio um pouco mais sofisticado. [...] Esse processo é muito difícil porque a gente não consegue ter um controle [...]. Quer dizer, tem uma discussão que a gente tenta avançar há algum tempo que é a de estabelecer cotas. Todo empreendimento residencial, por exemplo, teria que ter vinte por cento de certa classe. Teria uma obrigatoriedade [...] um diferencial para um tipo de população. É uma discussão que é difícil se levar adiante. Hoje a gente está tendo muito mais o mercado, o mercado definindo um pouco o que vai ser a oferta da região. E a oferta tem sido em cima sempre do escritório, né? Já tem uma sobreoferta de escritórios [...] vai ter uma reversão para a área residencial. Agora, evidentemente, não vai ser voltada para a população de baixa renda. 26 (CORREA apud SANT’ANNA; PIO; 2014, p. 109 -110)

Como uma das características inerentes ao Planejamento Estratégico desenvolvido pela cidade do Rio de Janeiro, fica claro o alinhamento do Estado com as ações empreendidas pelo capital privado em prol da sua acumulação neste Projeto. É dada continuidade ao histórico processo de segregação das classes populares, expulsas das regiões centrais e de melhor localização da cidade. A segregação urbana se dá não só pela ausência de ofertas de habitações para as diversas camadas sociais, mas também de forma direta e incisiva com a massiva remoção forçada de moradores da zona portuária do Rio de Janeiro. Estas remoções ocorrem num contexto mais amplo de grandes remoções justificadas pela realização de grandes intervenções urbanísticas. De acordo com os levantamentos realizados pelo Comitê Popular da Copa e Olimpíadas a partir dos dados apresentados pela Prefeitura do Rio de Janeiro, 22.059 famílias foram removidas na cidade do Rio de Janeiro, cerca de 77.206 pessoas, entre 2009 e 2015. 25

É interessante percebermos que, em sua fala, o microcrédito é acionado como uma opção para lidar com a gentrificação, partindo do entendimento comum deste elemento como promovedor de uma melhoria da qualidade de vida e de mobilidade social das classes populares, entretanto é importante percebermos que mesmo esta proposta – apresentada como progressista e que não parece ter tido avanços – não escapa de uma esfera maior de acumulação de capitais, neste caso através do aumento do nível de endividamento. 26

Declaração feita por Antônio Correa durante a Palestra Porto Maravilha, realizada em 02 de março de 2014 no Instituto Pereira Passos, inserida no artigo de Maria Josefina e Leopoldo Pio (referenciado na bibliografia deste trabalho).


73

Figura 16:. Remoções forçadas e a periferização da produção de moradias pelo PMCMV como viabilizador deste processo

Fonte: Livro “SMH 2016: Remoções no Rio de Janeiro olímpico”, de Lucas Faulhaber e Lena Azevedo.

Na zona portuária, o projeto de urbanização em desenvolvimento do Morro da Providência, incluso no Programa Morar Carioca desenvolvido pela Secretaria de Habitação da Prefeitura do Rio de Janeiro, destaca-se tanto por ter sido um dos primeiros do Programa como por suas intervenções previstas, com elevado percentual de remoções previstas e implantação de um teleférico - infraestrutura de alto custo e com grande apelo turístico que se une também à abertura de novos espaços para visitação previstos no projeto. Ao longo do projeto e da obra têm ocorrido diversos conflitos, em especial violações graves ao direito à moradia e a ausência de informações e de espaços de participação do projeto para os moradores. A princípio a Prefeitura informava ser necessária a remoção de 380 famílias localizadas em área de risco e 291 famílias em áreas de impacto das obras do teleférico e de um plano inclinado também proposto, ameaçando mais da metade das famílias moradores do Morro da Providência27.

Com a

articulação dos moradores junto a apoiadores, o processo de remoção enfrentou entraves e foi parcialmente paralisado28, sendo realizada apenas a obra do teleférico até então e uma nova 27

De acordo com o Instituto Pereira Passos, com base nos dados do IBGE, Censo Demográfico (2010), o Morro da Providência abriga um total de 4.094 habitantes e 1.237 domicílios. 28

Diante das diversas violações de direitos, os moradores do Morro da Providência tiveram como ganho da sua mobilização junto à Defensoria Pública do Estado a paralização das obras de urbanização e remoções de moradias.


74

remoção de um número pequeno de famílias em 2015 (DOSSIÊ MEGAEVENTOS E VIOLAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS NO RIO DE JANEIRO, 2015). Alguns dos pontos de crítica levantados pelos moradores do Morro da Providência foram apresentados em carta aberta da Comissão de Moradores da Providência e Fórum Comunitário do Porto, da qual segue um trecho que destaca a resistência da população diante destas ameaças de remoção e a falta de diálogo sobre a implantação deste projeto de grandes impactos: Segundo a ‘Planta Geral de Urbanização do Projeto Morar Carioca’ o número de unidades habitacionais planejadas para serem construídas ao longo de dois anos é menor do que o número de remoções! (...) na comunidade a maioria das casas possui mais de uma família morando; famílias que construíram suas casas ao longo de muitos anos e com muito trabalho e que não querem sair dali! Para a construção do Teleférico roubaram a nossa única área de lazer - A Praça Américo Brum! Para a construção de uma rua que vai ligar o Teleférico à Vila Portuária várias famílias da área da “Toca” já foram desapropriadas com valores baixíssimos! Para a construção de um centro esportivo, que também não nos consultaram sobre a necessidade, a área conhecida como AP na Ladeira do Farias foi demolida e desalojou cerca de 60 famílias de um dia para o outro. Nesse caso a Prefeitura demoliu casas ainda com pessoas dentro!!! (...) O nosso Direito a Moradia não está sendo respeitado!29

Um outro processo de remoção direta que vem ocorrendo na região portuária é causado pelo próprio desenho de umas das políticas de provisão habitacional aqui apresentadas, o Projeto Novas Alternativas. Ao priorizar a escolha de imóveis públicos, em especial casarões abandonados e em ruínas na área central da cidade, suas ações têm sido norteadas por critérios que as fazem disputar espaço com as ocupações para fins de moradia promovidas por grupos que visam – mesmo que precariamente – habitar a baixo custo nesta região da cidade, por vezes articulados em uma esfera maior de mobilização dos movimentos sociais urbanos. Esta disputa pela permanência ocorre com forte pressão dos grandes agentes do espaço urbano contra grupos de alta vulnerabilidade social, que em sua maioria possuem pouca estrutura para resistir contra o despejo forçado.30

Porém, este ganho não é em si uma solução pois a paralisação destas ações é algo instável, que se mantém por determinações jurídicas ajustadas às circunstâncias atuais, não estando garantido plenamente o direito a moradia daquelas famílias residentes das áreas em remoção. 29

Disponível em: www.global.org.br/arquivo/carta-dos-moradores-do-morro-da-providencia-a-populacao-do-rio-dejaneiro/. Acesso em 30 de julho de 2016. 30

A tensão entre remoções forçadas e a permanência das ocupações para fins de moradia na zona portuária será mais densamente discutida nos próximos tópicos do texto.


75

Discutindo este tema, Helena Galiza, Lilian Vaz e Maria Laís da Silva em seu texto “Grandes eventos, obras e remoções na cidade do Rio de Janeiro, do século XIX ao século XXI” tomam o conceito de gentrificação trabalhado por Neil Smith e apontam que o Porto Maravilha parece está sofrendo este processo, estando em uma segunda etapa onde a gentrificação se consolida, na qual “são criados novos programas e financiamentos de reabilitação de habitações, bem como a reestruturação da política urbana municipal para a área” (GALIZA, SILVA, VAZ, 2014, p. 15), a ser seguida por uma terceira etapa de generalização da gentrificação com a transformação completa da área. Para as autoras, o processo ocorre de modo acelerado também pelo alinhamento das ações de diferentes esferas de governo ao visarem a valorização imobiliária da área. “O Projeto Porto Maravilha parece estar na segunda onda mencionada por Smith, porém com uma velocidade mais devastadora ainda, visto que tanto o município quanto o governo federal (através da Caixa) assumem publicamente a busca sem limites pela valorização da área. São posturas que contribuem para aumentar os riscos de exclusão social dos pobres urbanos sendo que, em muitos casos, as remoções foram promovidas pela própria política municipal de habitação. Este é o caso do Programa Novas Alternativas, da Secretaria Municipal de Habitação (SMH), que reformou e transformou casarões arruinados em habitações multifamiliares e que removeu centenas de moradores que viviam em ocupações irregulares de imóveis arruinados, desapropriados para a produção de moradias para famílias com renda superior. (GALIZA, VAZ, SILVA, 2014, p.15)

A insipiente produção de moradias acessíveis para as classes populares torna ainda mais graves os impactos das remoções. Quando são removidas grande parte das famílias recebem do poder público indenizações em valores correspondentes à edificação que ocupam, à benfeitoria do solo31. Sabe-se que os valores destas indenizações não têm sido suficientes para a permanência das famílias em seu local de origem e em boas condições de moradia. Desta forma torna-se recorrente a violação do direito a moradia na medida em que não é garantida a mudança das famílias para condições iguais ou melhores daquelas de origem, conforme orientação da Organização das Nações Unidas (ONU). Devemos observar que um dos fatores que impossibilitam a manutenção das famílias em seu local de origem, para além dos impactos diretos das intervenções, é o elevado valor do 31

A indenização pela benfeitoria ocorre naqueles casos nos quais o morador não tem comprovada a propriedade da terra, ou seja, apenas exerce a posse, o que engloba grande parte dos casos de remoções em andamento na cidade. Nestes casos, são pagos valores referentes aos materiais e à mão de obra empregados na edificação construída sobre o solo ocupado.


76

solo urbano, o que se agrava com o seu padrão de produção em andamento, visando a valorização imobiliária. Considerando os anos de 2013, 2014 (quando o Brasil sediou a Copa do Mundo de Futebol) e 2015, o metro quadrado dos imóveis para venda subiram 29,4% na cidade do Rio de Janeiro. Recuperando dados desde o ano de 2008 até 2015, a maioria dos bairros da AP1 que engloba a região central da cidade e a região portuária tiveram uma valorização superior a 300%, como no caso do bairro da Gamboa que alcançou 401,4% (DOSSIÊ MEGAEVENTOS E VIOLAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS NO RIO DE JANEIRO, 2015). Diante do número de remoções e das formas de indenizações, podemos perceber que a valorização imobiliária dada a estas áreas de interesse do capital, como é a região portuária, não é apropriada poraqueles que nelas residem e são alvos de remoções. Uma vez que o valor das indenizações não considera a territorialidade da edificação, sua localização, ele desconsidera a valorização imobiliária promovida pelas próprias intervenções urbanas que motivaram sua remoção. Isto demonstra como a valorização promovida pelos investimentos públicos tem sido apropriada de maneira seletiva, apenas pelos grandes agentes transformadores do espaço urbano e especialmente proprietários latifundiários, colaborando para o fortalecimento da segregação residencial urbana. As condições de permanência dos moradores pertencentes às classes populares em áreas de interesse do capital para grandes intervenções urbanas é, portanto, uma questão social de especial relevância, como destacado por Maria Josefina Sant’anna e Leopoldo Pio no trecho a seguir. A questão social que se coloca é: em que local os moradores atingidos pelas remoções, pelas desapropriações e mesmo pelas situações de aluguel social, podem estabelecer sua nova moradia? A literatura tem mostrado que os valores pagos pelas desapropriações nunca são suficientes para que o morador se reinstale na própria região em que morava, pois apenas o anúncio de obras na área já aumenta o valor da terra e esse aumento nunca é considerado no preço da indenização. A única solução que resta ao morador é deslocarse para áreas mais afastadas, com uma série de prejuízos para seu trabalho, suas redes de relações sociais, para a escola de seus filhos. Esses efeitos perversos da desapropriação e da remoção fazem com que os movimentos de resistência dos moradores sejam tão fortes. (SANT’ANNA; PIO; 2014, p. 113)

Para as autoras Helena Galiza, Lilian Vaz e Maria Laís da Silva (2014), o quadro que engloba o Projeto Porto Maravilha é parte de um processo de segregação espacial e elitização da cidade, que leva a um agravamento das disparidades sociais historicamente existentes. Este processo é perceptível espacialmente quando notamos os grandes vetores de deslocamentos causados pelas remoções forçadas que parte das áreas centrais, da zona sul e norte da cidade, para as suas áreas mais periféricas, especialmente a zona oeste. As autoras destacam como um


77

agravante o processo do qual faz parte o Projeto Porto Maravilha a sua justificativa pautada na lógica empresarial privada – que domina o modelo de planejamento urbano em curso, o Planejamento Estratégico –, tendo como grande financiador o fundo dos trabalhadores (FGTS) e a inserção de terrenos públicos (especialmente da União) neste mercado imobiliário. As contradições entre o discurso de legitimação e as reais ações em curso são ilustradas pelas autoras na contradição entre os interesses em “desadensar o morro” e “adensar o asfalto”: “O projeto Porto Maravilha deixa evidente no seu discurso as contradições do seu planejamento, ao propor desadensar o “morro”, onde vivem os pobres e adensar o vizinho “asfalto”, com os estímulos que são dados para a produção de habitação para o mercado” (GALIZA, VAZ, SILVA, 2014, p.17) O PLANO DE HABITAÇÃO DE INTERESSE SOCIAL DO PORTO MARAVLHA Todos estes processos em curso vão de encontro às pautas propostas pelos movimentos sociais urbanos - especialmente os que atuam na luta pelo direito à moradia e pela reforma urbana - e enfrentam grande resistência destes grupos e dos moradores da região portuária que são atingidos diretamente pelo Projeto Porto Maravilha. Esta resistência encontrase em um contexto positivo de articulação de diversos segmentos de movimentos sociais que, a partir de um acumulo da discussão e fortalecidos pelo grande levante das jornadas de junho no Brasil, denunciam as violações aos direitos humanos, especialmente motivadas pela recepção de grandes eventos esportivos no Brasil. Como fruto desta articulação popular destaca-se o Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas, que vêm documentando e divulgando violações aos diretos humanos, contribuindo significativamente para a mobilização contra as remoções forçadas em curso. Em 2015, a Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro anunciou a elaboração do Plano de Habitação de Interesse Social do Porto (PHIS Porto). Um grupo de pesquisadores do INCT Observatório das Metrópoles aponta que esta iniciativa surge de uma exigência da esfera federal, que por sua vez incorpora as reivindicações dos movimentos populares32.

O INCT Observatório das Metrópoles está desenvolvendo o projeto “Estratégias e instrumentos de planejamento e regulação urbanística voltados à implementação do direito à moradia e à cidade no Brasil”. Em sua pesquisa visa monitorar e influenciar políticas nos municípios do Rio de Janeiro, São Paulo e Fortaleza com foco na função social da propriedade, inclusão socioterritorial da população de baixa renda e ampliação do acesso aos serviços urbanos. No Rio de Janeiro a pesquisa tem como foco as obras de revitalização da zona portuária da cidade tendo em vista o 32


78

Incorporando a reivindicação dos movimentos populares, o Ministério das Cidades emitiu, em dezembro de 2014, uma instrução normativa sobre operações urbanas que utilizam recursos do FGTS, no qual se exige como contrapartida aos projetos de intervenção urbana a elaboração de planos de habitação de interesse social. Em decorrência da Instrução Normativa no 33, a prefeitura do Rio emitiu um decreto constituindo um grupo de trabalho institucional com a tarefa de coordenar a elaboração de um plano de interesse social na área portuária. (JUNIOR, WERNECK, 2015)

É interessante percebermos que a articulação entre os movimentos sociais urbanos críticos ao Projeto Porto Maravilha encontra maior espaço de inserção de suas pautas na esfera federal, por meio do Ministério das Cidades. Contribui para isto a estrutura política brasileira recente que tem origem na elaboração da Constituição Federal de 1988 e segue no decorrer da década de 1990, que coloca o governo local no papel de promotor da cidade e criando condições de “cooperação” entre poder público e privado. Com isso, essa esfera de poder abriga grandes enfrentamentos diretos entre as reivindicações populares e o poder hegemônico como produtor da cidade. Ao passo que o Ministério da Cidades surge no primeiro governo Lula como fruto de uma reivindicação do Fórum Nacional de Reforma Urbana, sendo composto inicialmente por técnicos de perfil progressista (em especial Ermínia Maricato, Raquel Rolnik e tendo como ministro Olívio Dutra) e que dialogavam com os movimentos. Apesar das profundas mudanças sofridas no Ministério desde sua criação, ele ainda guarda alguns elementos que o permitem ser um espaço mais receptivo a estas discussões.33 A exigência do Ministério das Cidades sobre a elaboração de um Plano de Habitação de Interesse Social vem por meio da Instrução Normativa no33 de 2014, que regulamenta a aplicação de recursos do FGTS em Operações Urbanas Consorciadas. 8.2 Novos aportes financeiros relativos às operações de que trata o item 8.1 ficam sujeitos à formalização de compromisso da Prefeitura Municipal responsável pela implementação da Operação Urbana Consorciada que lastreia a operação, em elaborar, de forma participativa, Plano de Habitação de Interesse Social para a área da Operação Urbana Consorciada (...) 34.

Projeto Porto Maravilha. Aqui utilizo alguns artigos lançados pelo grupo no âmbito desta pesquisa, os quais indico os links de acesso. 33

Para uma leitura mais completa e próxima da criação deste Ministério, seu diálogo com as propostas do Fórum Nacional de Reforma Urbana e o desenrolar de suas atividades, ver “Reforma Urbana: Limites e Possibilidades Uma Trajetória Incompleta”, de Ermínia Maricato, no livro “Globalização, Fragmentação e Reforma Urbana”, de 1996. 34

Instrução Normativa MC no 33 de 17/12/2014. https://www.legisweb.com.br/legislacao/?id=278905.

Acessado

em

13/08/2016.

Disponível

em:


79

Helena Galiza (2015) compartilha da leitura crítica sobre esta movimentação do poder público municipal, acompanhada por pesquisadores como Sonia Rabello, ao indicar que “a repentina proposta de elaboração desse plano de HIS é, na verdade, um pré-requisito para a obtenção de outros bilhões de reais do FGTS, já pleiteados pela CDURP para a continuação da operação (…) Segundo uma auditoria da Controladoria Geral da União (CGU, 2012), a falta dessas regras levou o Ministério a suspender o aporte de novos recursos do FGTS em operações urbanas, no exercício de 2013” (GALIZA, 2015). Como o arranjo financeiro da OUC referente ao Porto Maravilha é composto por um valor inicial do lote único arrecadado em leilão e de parte de seu rendimento ao longo dos 15 anos seguintes, torna-se difícil compreender se este prérequisito da existência do Plano de Habitação de Interesse Social aplica-se somente às novas ações ou também à operação Porto Maravilha que se encontra em curso, tendo em vista que esta ainda prevê lançamentos financeiros futuros, porém já previstos. Ao elaborar esta crítica, Galiza parece indicar que, em sua leitura, a elaboração deste documento não seria necessária para a continuidade do Projeto, mas que a normativa foi cumprida tendo em vista a busca de novos recursos financeiros pelo FGTS para esta OUC. A Instrução Normativa apresenta também a necessidade de cumprimento de algumas exigências que têm como objetivo “garantir que as OUCs apoiadas visem ao interesse público e ao benefício social, o cumprimento da função social da cidade e da propriedade, a sustentabilidade econômica dos empreendimentos e a promoção da participação e do controle social”35. Dito isso, é exigido que as ações a serem implementadas: “I - Privilegiem a permanência da população local por meio da ampliação das condições de acesso desta população à moradia digna, ao trabalho e aos serviços públicos; II - Viabilizem as unidades habitacionais necessárias para atender toda a população deslocada pelas intervenções e/ou que habite em áreas de risco, tais como a compra de imóveis para habitação de interesse social; a composição de recursos com programas habitacionais federais, estaduais ou municipais; a implementação de locação social, entre outras; III - Reservem imóveis e/ou áreas exclusivas para habitação de interesse social, preferencialmente através da instituição de zonas especiais de interesse social (ZEIS), especialmente no caso de OUCs que contenham vazios urbanos ou em áreas de expansão; e

35

Instrução Normativa MC no 33 de 17/12/2014. https://www.legisweb.com.br/legislacao/?id=278905.

Acessado

em

13/08/2016.

Disponível

em:


80

IV - Prevejam o investimento de, no mínimo, 10% do valor arrecadado com as contrapartidas para implementação das ações componentes do Programa de atendimento econômico e social” 36

Ao atender à exigência desta Instrução Normativa, o Projeto Porto Maravilha parece caminhar no sentido de reduzir seus impactos, como colocado por Galiza “poderia representar uma possível mudança de rumo na Operação Urbana Consorciada” (GALIZA, 2015). Entretanto, tomando que as operações urbanas, conforme seu desenho previsto no Estatuto da Cidade e seu importante papel para o Planejamento Estratégico e para a ideologia neoliberal, somente se viabilizam com a elevada valorização do solo urbano no qual se aplica, trazendo consigo um fortalecimento da segregação social urbana, podemos compreender que os objetivos colocados por esta Instrução Normativa não são conciliáveis com o Projeto. Esta incompatibilidade reflete-se nas diversas críticas que a elaboração que o PHIS Porto tem recebido. Dentre elas destaco duas, a primeira delas é a crítica à insipiente participação popular em sua elaboração. Apesar desta ser uma exigência da Instrução Normativa e estar destacada nas diversas peças de divulgação do Projeto, a qualificação desta participação não é tratada. A metodologia de elaboração do Plano traz consigo a memória daquela realizada pelo projeto de urbanização do Morro da Providência, fortemente criticada pelos moradores pela falta de diálogo e informações, e insere-se num contexto mais amplo de falta de canais de participação efetiva do Projeto Porto Maravilha, como colado por Orlando Junior e Mariana Werneck, “chama a atenção a inexistência de canais de participação, amplos e democráticos, em torno desta temática [da habitação de interesse social], como, por exemplo, um fórum público de discussão sobre habitação de interesse social na área portuária” (JUNIOR, WERNECK, 2015). A elaboração do PHIS Porto teve como canais de participação reuniões temáticas, coordenadas por funcionários da Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro e pela CDURP, que mantiveram o formato tradicional de audiência, composta pelo domínio da fala do poder público e a participação popular realizada como fala de plateia, um modelo mais “participassivo” do que participativo. Outra questão que se coloca é que, considerando a importância e implicação desta área e do projeto Porto Maravilha para a cidade como um todo, torna-se inadequado pensar os canais de participação limitados aos atores locais, o que deixa de lado também a essencial articulação em múltiplas escalas dos movimentos sociais urbanos. Este entendimento aparece em 36

Op. Cit.


81

diversas propostas de deslocamento do campo do debate para esferas mais amplas, como podemos ver na reflexão de Orlando Junior e Mariana Werneck: (...) propõe-se a realização de uma Conferência Municipal para discussão e deliberação do PHIS Porto. A realização de uma Conferência Municipal com esta finalidade, a ser realizada na própria área portuária, se constituiria em uma oportunidade efetiva de democratizar as discussões e o processo de elaboração do plano. (...) as reuniões têm reproduzido até o momento o formato das audiências públicas tradicionais, onde a participação se reduz às falas da plateia. Não existe um processo participativo efetivo de elaboração e deliberação do plano, que deve ser aprovado, segundo o decreto da Prefeitura Municipal, pelo Conselho Municipal do Fundo de Habitação de Interesse Social, vinculado à Secretaria Municipal de Habitação. Antes disso, o documento a ser elaborado pela CDURP, como resultado deste ciclo de reuniões, poderia se constituir em uma pré-proposta a ser debatida e deliberada na Conferência Municipal. (CARVALHO, WERNECK, JUNIOR, 2015)

A discussão do projeto somente com os atores locais nos leva à segunda crítica sobre a elaboração do PHIS Porto. Apesar de indicar como um de seus objetivos a inserção de um grande volume de novos moradores de perfis diversificados na região, o projeto Porto Maravilha pouco é trabalhado como uma possibilidade de oferta de moradia das classes populares que hoje encontram-se em zonas periféricas da cidade, o que se reflete na pouca discussão deste Projeto em espaços de abrangência municipal ou metropolitana. A prioridade do Projeto em ofertar moradia para classes médias e médias altas aparece no PLHIS Porto, que apesar de indicar a regulamentação de diversos instrumentos previstos no Estatuto da Cidade, nenhum deles implica diretamente a produção de habitação de interesse social. Por sua vez, as ofertas habitacionais previstas limitam-se ao Programa Minha Casa Minha Vida, descartando a destinação de recursos da própria Operação Urbana para este fim. Assim como as demais políticas de provisão habitacional do município, todas as alternativas colocadas são enquadradas no PMCMV. Para além das críticas negativas ao próprio Programa, este arranjo financeiro demanda atenção. É dispensado o aporte financeiro municipal e da própria Operação Urbana, considerando somente orçamentos federais e linhas de financiamento para os futuros moradores. Esta questão surge no segundo objetivo apontado no PHIS Porto que é discutido por Orlando Junior e Mariana Werneck no trecho a seguir:


82

Já o segundo objetivo apresentado visa à captação de recursos do programa Minha Casa Minha Vida por meio de parcerias com o governo federal. Neste caso, apesar de ser interessante captar recursos federais, chama atenção o fato de não estarem sendo previstos recursos da operação urbana. Tendo em vista a Lei Complementar 101/2009, que afirma ser a promoção de Habitação de Interesse Social uma das principais diretrizes da operação urbana, é preciso que haja finalmente a definição de um percentual dos recursos da própria operação urbana para sua produção no Porto Maravilha. Isso se revela de extrema importância em um momento no qual o programa federal já sofre com a redução de recursos pela política de ajuste fiscal. (CARVALHO, WERNECK, JUNIOR, 2015)

Resta a doação de terrenos como possibilidade de apoio que pode ser pleiteado junto à esfera municipal, que ganha especial relevância neste contexto de elevado e crescente valor do solo da área. Ao mesmo tempo em que essa alternativa pode viabilizar empreendimentos voltados para a faixa de renda mais baixa do PMCMV (0 a 3 salários-mínimos), leva a uma grande oneração dos cofres públicos municipais que custeiam valores altos de indenizações por desapropriações para aquisição de terrenos, desta forma favorecendo a captura de capital pelos proprietários fundiários da zona portuária. Como forma de conter este repasse de grandes valores dos cofres públicos para os proprietários fundiários, que compõem o ciclo vicioso das OUCs já discutido por Mariana Fix (2009), ganha extrema relevância a definição de Zonas Especiais de Interesse Social que demarquem vazios urbanos para fins de produção de habitação de interesse social. Apesar desta ser uma das indicações do PHIS Porto, ela aparece de forma pouco definida, demonstrando que a renda promovida pela propriedade fundiária ainda é o obstáculo central da garantia do direito à moradia. Na reunião37, Alberto Silva38 também apontou instrumentos legais que já estão em vigor, além de alguns que tramitam na Câmara de Vereadores. Sua aplicação, ele afirma, amplia as possibilidades de produção habitacional na área da operação urbana (…) São todos projetos interessantes que podem vir a estimular a produção habitacional, mas não necessariamente de interesse social. Eles podem, inclusive, favorecer o mercado imobiliário ou estimular usos que não a moradia. Assim, é difícil pensar que as leis e os projetos funcionem como uma base sólida para uma política efetiva de produção de 37

Aqui refere-se à segunda reunião temática do processo de elaboração do PHIS Porto, que teve como tema a produção habitacional na área portuária. 38

Alberto Gomes Silva, então presidente da Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto do Rio do Rio de Janeiro (CDURP)


83

habitação de interesse social, argumento que se fortalece na medida em que não são estipulados prazos ou determinadas explicitamente as áreas de sua aplicação. Nesse sentido, a aplicação de outro instrumento, as Áreas de Especial Interesse Social (AEIS) em terrenos vazios, é fundamental, muito embora ainda não haja a previsão de sua instituição no perímetro da operação urbana. (CARVALHO, WERNECK, JUNIOR, 2015)

As contradições entre o Projeto Porto Maravilha e suas diretrizes colocadas no PLHIS Porto tornam-se claras com a leitura destas críticas, que nos mostram a permanência do padrão excludente de urbanização, guiado pela acumulação de capital dos grandes agentes produtores da cidade em detrimento da garantia do direito à moradia para as classes populares na zona portuária. Permanece a utilização de recursos federais, com o enquadramento da oferta habitacional no PMCMV, e do fundo dos trabalhadores (FGTS), ainda com indicativo de novas injeções financeiras; sem que seja destinada nenhuma parte do orçamento da própria OUC para lidar com esta demanda. Com as poucas definições de estratégias progressistas encontradas no Plano e a permanência destes padrões excludentes, temos também pouca segurança de que estas ações propostas no âmbito do Plano venham a ser de fato realizadas. Com isso, os promotores do projeto Porto Maravilha parecem dar à elaboração do PHIS Porto um papel de legitimação, utilizando-se deste documento como uma estratégia para reduzir as pressões e dispersar às fortes críticas as quais buscam driblar.

4. OCUPAÇÕES NO CONTEXTO DO PROJETO PORTO MARAVILHA 4.1 A ONDA DE REMOÇÕES O padrão excludente de urbanização aplicado à cidade do Rio de Janeiro tem sido reforçado, desde os anos 2000, pela retomada das remoções forçadas. Estas ações concentram-se nas áreas de maior interesse do mercado imobiliário tendo em vista a sua expectativa de valorização, especialmente promovida pelas grandes obras urbanas. A zona portuária destaca-se neste contexto com a implementação do Projeto Porto Maravilha, ao mesmo tempo em que temos também um alinhamento de ações dos movimentos sociais urbanos de luta por moradia nesta região da cidade. Como já destacado, entre os anos 2005 e 2008 estabeleceram-se na zona portuária importantes espaços de ação direta destes movimentos: as ocupações para fins de moradia, de caráter autogestionário e pautadas por projetos políticos. Estas ocupações colocam-se


84

como ações de resistência contra o padrão de urbanização em curso, promovendo uma ampla territorialização destes grupos no entorno. A consolidação desta tipologia de moradia das classes populares passa também por constantes momentos de tensão referentes a sua permanência, especialmente por ameaças de remoções, e essas tensões tornaram-se mais fortes a partir da aprovação das Leis Municipais que formalizam a Operação Urbana Consorciada do Projeto Porto Maravilha no ano de 2009. No quadro da política nacional, em 2009, é lançado o Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV), Programa que não estabelece diálogos com o acúmulo da política nacional de habitação que se desenvolvia no País, sendo uma alternativa para redução dos impactos da crise financeira sobre setores econômicos estratégicos. Ao mesmo tempo em que o governo federal criava a imagem do PMCMV como facilitador do acesso à moradia pelas classes populares, ele também se constituía como o braço federal financeiro que viabilizaria grandes remoções e reassentamentos promovidos pelos governos municipais (GALIZA, VAZ, SILVA; 2014). Com a eleição de Eduardo Paes como prefeito da cidade do Rio de Janeiro em 2008, reeleito em 2012, temos a intensificação do novo período de remoções forçadas na cidade. Com referências na reforma urbana de Pereira Passos e seu “bota a baixo” que marcou o início do século XX, o novo período de remoções agora recebe a roupagem da ideologia neoliberal, levando os dois mandatos de Eduardo Paes a somarem até julho de 2015 mais de 22 mil famílias removidas. Neste cenário é dado então início à onda de remoção das ocupações da zona portuária da cidade, que ao representarem uma contestação política ao acesso à terra e à moradia são fortemente repreendidas, sob a pressão da valorização imobiliária, com ações legitimadas pelo discurso construído pelo Projeto Porto Maravilha e com o aporte do PMCMV para reassentamentos em conjuntos habitacionais nas zonas periféricas da cidade. As informações que foram possíveis de levantar sobre este processo estão sistematizadas nas tabelas a seguir. Apesar da consulta a diversas fontes, algumas informações ainda permanecem ocultas. A falta de acesso à informação, recorrente nas ações de remoção, violando direitos fundamentais e consolidando-se como estratégia de enfraquecimento das ações de resistência. A não apresentação dos dados pelo poder público pode ser fruto da falta de planejamento, que se revela nas mudanças de trajetos de obras mesmo depois de audiências públicas e processos licitatórios, o que pode ser interpretado como parte de


85

uma estratégia de aumento da pressão psicológica, como meio de impedir formas de resistência, ou mesmo um mecanismo para encobrir eventuais ilegalidades nas transações realizadas. (...) A não apresentação dos dados e a ausência do debate público democrático reforçam esse quadro em que os mais vulneráveis perdem o pouco que conquistaram na luta diária pelo acesso à cidade. (COMISSÃO DE DIREITOS HUMANOS NO RIO DE JANEIRO, 2015, p. 19)


Tabela 2: Ocupações de movimentos sociais e favelas removidas ou sob ameaça de remoção

86


Fonte: Elaborada pela autora.

87


39

Fo Fonte: da autora (2016).

Figura 17: Linha cronológica das ocupações na zona portuária; grandes eventos internacionais; e marcos políticos e institucionais39

88

Não estão presentes na linha cronológica as ocupações da Rua do Livramento que não possuem data definida de início e que sofreram processo de remoção no ano de 2010.


Fonte: Mapa elaborado pela autora com base nas informações levantadas neste estudo sobre imagem do Google Earth.

Figura 18: Mapeamento de favelas e ocupações de movimentos sociais ameaçados de remoção na zona portuária

89


90

Nas ações de remoção, as instituições de repressão são protagonistas. Polícia, justiça e órgãos do governo municipal agem respaldados por legislações como o Decreto 30.398/2009, criado ainda no primeiro mês do primeiro mandato da gestão municipal de Eduardo Paes, que estabelece que a Secretaria de Ordem Pública faça as demolições das edificações e construções sob risco de desabamento e irregulares, considerando inadiável a tomada de providências em relação aos edifícios que julguem oferecer risco de vida aos cidadãos. A tensão nestas ações de remoção é ainda maior no caso das ocupações na zona portuária. Nesta região da cidade há uma predominância de edifícios vazios pertencentes à União, porém ainda acumulando grandes complicações no registro legal dos imóveis. Ao mesmo tempo em que a esfera federal é de mais fácil diálogo com os movimentos sociais protagonistas das ocupações, os encaminhamentos jurídicos destes processos são complexos e agravam-se com a opacidade dos seus trâmites. O filme de Vladimir Seixas, “Atrás da Porta”, documenta os métodos autoritários e violentos do poder público contra as ocupações Casarão Azul, Flor do Asfalto, Guerreiros do 234, Guerreiros do 510, Machado de Assis e Zumbi dos Palmares. Neste filme a fala de Alexandre Fabiano Mendes, então Defensor Público no Rio de Janeiro, destaca a violação do direito à informação e o uso da violência policial nestes processos. São ações que possuem uma lógica em comum, não são ações isoladas fruto de uma ação desastrada de um subprefeito, de alguém da subprefeitura ou de algum setor município, mas sim ações que hoje estão presentes na lógica de ação mais ampla do município. Os dados mais graves em relação a esta questão são, como eu falei, primeiro: não há notificação prévia do dia e da hora da realização do despejo e da demolição, isso é um fato grave! Não há publicidade em relação ao procedimento administrativo que gera a demolição, as pessoas não tem acesso às razões daquele ato administrativo, não tem acesso à ampla defesa, ao contraditório, não podem realizar uma contra argumentação, no âmbito mesmo do município. E no fim, quando o município chega para realizar a demolição, eles acordam com um aparato muitas vezes da polícia civil, da guarda municipal, delegados cedidos da secretaria de ordem pública e que realizam de forma truculenta o despejo. E mesmo quando se preocupam com a última coisa que eles teriam, que seriam os bens, a geladeira, o fogão, o que que eles vão fazer com aqueles moveis, o sofá da sala. Mesmo diante dessa preocupação do que sobrou ali da moradia eles se deparam com um caminhão de lixo aberto, de entulho, que vai sacudindo o caminho inteiro como solução pro transporte desses bens. (MENDES, 2010)


91

A configuração espacial das ocupações também traz aspectos específicos a estas ações de remoção. As ocupações da zona portuária ocorrem, em sua maioria, em grandes prédios que têm determinado pelo coletivo de moradores uma área específica de acesso, na qual é instalada a “portaria”. Este espaço é especialmente dedicado à segurança da ocupação que se organiza em escalas para que sempre haja alguém nesta função, controlando o acesso ao prédio. Em seu estudo sobre a ocupação Chiquinha Gonzaga, Grandi (2010) relata o funcionamento deste espaço, que também funcionou como importante espaço de encontros e conversa entre os moradores. Porque no período que a gente tava fazendo, cumprindo plantão na portaria – que era uma coisa que a gente fez desde o início da ocupação – a gente... Como não tem porteiro, então a gente mesmo ficava ali pra estar controlando a entrada das pessoas no prédio. E aí, então, era um espaço que às vezes a gente ficava lá. Geralmente ficavam dois moradores, representantes de dois apartamentos, por cada plantão de duas horas. Mas assim, acabava outras pessoas chegando, parando, batendo um papo, reclamando de alguma coisa, já adiantando alguma questão que fosse ser discutida na reunião... Então era um espaço, a portaria mesmo. (Informação verbal, 2010, apud GRANDI, 2010, p. 381)

Com a consolidação da ocupação, o cumprimento dos turnos de portaria não é mais cobrado na Chiquinha Gonzaga, apesar de ser constante a discussão em reuniões sobre sua necessidade. A Chiquinha Gonzaga é um exemplo de algo que é comum entre as ocupações, com rigor maior quanto ao funcionamento da portaria nos períodos de maior vulnerabilidade, como nos primeiros dias da ocupação, e posterior “relaxamento” desta atribuição em períodos mais estáveis. O entendimento da necessidade dessa estrutura para a permanência da ocupação demonstra a constante tensão existente diante da possibilidade do despejo repentino, assim como da entrada de atores externos não desejados na ocupação (como exemplo podemos ressaltar o temor à entrada de pessoas envolvidas com o tráfico de drogas da região). Então o meu medo de morar aqui em embaixo é esse também. Porque essas portas são frágeis. A minha, pelo menos, eu considero frágil, porque eu mesmo derrubei ela um dia desses que eu achei que tinha esquecido a chave, não tava na bolsa. Eu meti o pé e derrubei. E abri. Então a minha insegurança é essa. Então o meu medo de morar aqui embaixo é só por causa da insegurança. Que eu tenho medo. (Informação verbal,

2010, apud GRANDI, 2010, p. 382)

Nos momentos de confronto, tendo uma única porta de acesso, as forças policiais voltam-se contra este ponto de maior fragilidade para realizar os despejos, empenhando grande força para


92

seu arrombamento. Após romper esta barreira, o despejo é realizado rapidamente. É esta imagem impactante da força policial contra esta frágil estrutura de segurança da ocupação que dá nome ao denso documentário de Vladimir Seixas. Figura 19: Cena do documentário “Atrás da porta” mostrando a ação policial na remoção forçada da Ocupação Casarão Azul.

Fonte: Disponível em http://filmeatrasdaporta.blogspot.com.br/2010/01/apagar.html. Acesso em 15 de setembro de 2016.

Figura 20: Registro da ação policial na remoção forçada da Ocupação Casarão Azul.

Fonte: Disponível em http://www.passapalavra.info/2009/11/15000. Acesso em 15 de setembro de 2016.

Aqui podemos resgatar o estudo de Bachelard sobre a casa. Para este autor, o benefício mais precioso da casa é a função de abrigo, ao proteger o sonhador e abrigar o devaneio ela permite que sejam sancionados os valores humanos. “Ao devaneio pertencem valores que marcam o homem em sua profundidade” (BACHELARD, 2008, p.26). Como então podemos atribuir às ocupações a ideia de uma casa, em toda a sua cosmicidade, diante da constante tensão imposta sobre a sua permanência em contraponto à função de abrigo? Podemos aqui ariscar


93

entender as ocupações como a descrição de Bachelard para as casas de Paris, “moradas oniricamente incompletas”, sua estrutura coloca grave limitação à presença de valores íntimos e à cosmicidade da casa. Como apontado por Bachelard, a imaginação pode ser a chave para o entendimento deste processo, tendo que o autor nos coloca que todo ser abrigado é capaz de sensibilizar os limites de seu abrigo, indo além da realidade da casa, chegando a sua virtualidade. A ocupação que se articula como um coletivo, que compartilha um projeto político e faz da sua moradia um ato de resistência parece oferecer ao indivíduo a segurança do abrigo por meio das intensas redes sociais que se formam e da construção de uma identidade coletiva. Passando por momentos de carência daquilo que é essencial à vida, a rede de solidariedade entre os indivíduos age como suporte da virtualidade do sentido de abrigo. Há de se considerar que esta intensa rede de relações difere em cada grupo em torno das diferentes ocupações, assim como diferem para cada indivíduo, sendo possível arriscarmos aqui que esta rede se configura de forma mais densa entre aqueles indivíduos que compartilham a atividade de militância da qual a ocupação é uma ação direta. Estes indivíduos que muitas vezes representam as ocupações, como lideranças muitas vezes informais destes movimentos, apesar de sua força de articulação, de modo geral não formam a maioria dos moradores. São parte de um grupo minoritário. Parte dos moradores busca especificamente sanar a sua demanda urgente por moradia e vê nas ocupações um caminho para isso, sem acarretar em grandes ônus financeiros e garantindo a permanecia em áreas bem localizadas da cidade. Em conversa com algumas lideranças do MNLM pude compreender que, nas ocupações promovidas por este movimento social no Rio de Janeiro como Manoel Congo e Mariana Crioula, o envolvimento desta maioria dos moradores na discussão política é um ponto recorrente de discussão entre as lideranças do movimento social. Para promover uma maior inserção dos moradores em geral nas pautas de lutas dos movimentos, as reuniões de moradores das ocupações ganham grande relevância, sendo encarado como um grande espaço de formação política. No momento do despejo, a constante indefinição e fragmentação do destino de cada membro da ocupação atinge a dimensão de abrigo que aquele coletivo denso portava. Quando são apresentadas alternativas habitacionais aos moradores, são desconsiderados os vínculos do indivíduo com o território que ocupa e às redes sociais por ele construídas. Com a comunicação direta do poder público com as famílias, desconsiderando o coletivo da ocupação e sua participação em um movimento social mais amplo, estas ações fragilizam as articulações


94

construídas, sendo está uma das estratégias para dar maior agilidade à remoção frequentemente denunciadas pelos moradores. Já no momento da realocação das famílias em novos espaços habitacionais, estas têm se distanciado de local de origem e têm sido realocadas indiferentemente do coletivo do qual fazem parte. Por exemplo, as ocupações da Rua do Livramento, despejadas em 2010, e os moradores da ocupação Marchado de Assis, despejados em 2012, tiveram como alternativa de reassentamento um conjunto habitacional do PMCMV em Senador Camará, bairro a cerca de 45km de distância do seu local de origem. Já aos moradores da ocupação Carlos Marighela, despejados em 2011, foi oferecida a permanência em abrigos localizados na Ilha do Governador ou em Paciência, ambos também distantes do antigo local de moradia. A forma perversa como esta alternativa habitacional é colocada pela Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro é descrita por Francis da Costa, líder comunitária da favela Metrô no episódio “Remoções” da série “Contagem Regressiva”40, a qual transcrevo a baixo: Nossa comunidade era aproximadamente 700 famílias, e aí quando a Prefeitura chegou e levou pra Cosmos, ela não chegava e tirava ‘vou começar dali, vou começar daqui’, não! Era uma coisa assim minada, tirava um daqui e deixava o de baixo, tirava o de cima e deixava... entendeu? Tudo pra desestabilizar, tudo pra enfraquecer a união, e a as pessoas sempre também querendo que as coisas acontecessem muito rápido e muito medo, que sempre que a Prefeitura chegava na comunidade, chegava aterrorizando, dizendo que ia vir a máquina e passar por cima das casas de quem não tava aceitando ir pra Cosmos. Então era uma coisa, assim, bem ... sabe? Bem sofrida. (...) A gente também não gosta de viver em lugares feios. A primeira reunião que eu tive com Eduardo Paes eu falei pra ele ‘Vamos então melhorar a comunidade. Porque não melhorar a comunidade. A gente faz mutirão’. Porque na comunidade existe gente trabalhadora, gente que gosta também de suas casas bonitas. Entendeu? Falei isso pra ele. Não precisa ter que tirar a gente dali, porque ali tem pessoas que ... filhos que fazem faculdade, entendeu? Tem pessoas que os filhos estudam. Que inclusive muitas crianças que foram pra Cosmos perderam o ano letivo. Entendeu? Pessoas que foram pra Cosmos, que faziam faculdade teve que mudar, teve que ... várias coisas que aconteceram. Fora as pessoas que não aguentaram e morreram. Entendeu? Então falei isso pra ele: ‘Não precisa ter que tirar a gente de lá. Pode melhorar. A gente tá fazendo feio? Vamos melhorar!’ Ele falou na minha cara ‘Eu

A série “Contagem Regressiva” foi realizada pela Justiça Global e Couro de Rato, com direção executiva de Vladimir Seixas e direção de Luis Carlos de Alencar, nela são relatadas as violações de direitos humanos que marcaram o processo de preparação da cidade para os Jogos Olímpicos. A minissérie divide-se em quatro capítulos: Remoções, Controle Urbano, Zona Portuária e Mobilidade. Disponível em: www.couroderato.com.br/contagem.regressiva/ 40


95

quero aquilo ali limpo!’. Quer dizer, nós éramos o sujo ali. Aí eu fui e falei: ‘Então você tá chamando a gente de sujo?’, ele só olhou pra mim: ‘Eu quero limpo!’ (Fala de Francis da Costa em COSTA, 2016)

Por vezes outras opções são colocadas para além do reassentamento em condomínios do PMCMV, como a indenização calculada com base nas benfeitorias, a aquisição assistida e o auxílio aluguel, sendo este último o procedimento mais comum nesta onda de remoções em curso. Aos moradores da ocupação Machado de Assis que não aceitaram a mudança para o bairro de Senador Camará, restaram as opções de receber a indenização em dinheiro, com valores que variavam de cinco a vinte mil reais, ou o auxílio aluguel (comumente chamado de aluguel social), no valor de 400 reais, por um prazo máximo de um ano. Nenhuma das “alternativas habitacionais”41 apresentadas permite a permanência dos moradores das ocupações da zona portuária, no entorno de sua antiga moradia. No caso dos reassentamentos em conjuntos habitacionais, estes são distantes das áreas centrais, as mais valorizadas da cidade pelo mercado imobiliário, tendo incentivos da política pública municipal para sua inserção prioritária em áreas periféricas. Já quanto às demais alternativas, não oferecem a necessária viabilidade financeira para a permanência dos moradores em seu local de origem, diante na crescente valorização da zona portuária no mercado imobiliário. Considerando o caso exemplar das indenizações recebidas pelos moradores da Ocupação Machado de Assis, que alcançaram o valor máximo de 20.000 reais, e tendo que o valor médio do metro quadrado para compra de imóveis habitacionais no bairro da Saúde está atualmente em torno de 7 mil reais e da Gamboa de 5 mil reais42, podemos compreender que não seria possível a aquisição de uma nova moradia adequada no entorno da antiga ocupação. É significativo percebermos que o maior valor de indenização recebida pelos moradores da Ocupação Machado de Assis no caso da sua reinserção no bairro da Gamboa equivaleria a uma habitação de quatro metros quadrados! É uma possibilidade tão inviável quando a locação de um imóvel de uso habitacional no mercado formal nesta área da cidade com valor a baixo dos 400,00 reais, valor então estipulado com a opção pelo aluguel social. No capítulo da série Contagem Regressiva dedicado à zona portuária temos o relato de Roberto Santos, antigo morador da Ocupação Quilombo das Guerreiras, sobre a situação 41

Por considerar inadequado diante das diversas e profundas violações realizadas ao direito à moradia adequada dos moradores de ocupações utilizo este termo, “alternativas habitacionais”, entre aspas. Faço uso deste termo ao longo do texto como recurso para estabelecer um diálogo com o discurso proferido pelo Estado. 42

Estes valores foram obtidos em consulta ao Índice FIPEZAP.


96

de um ex-morador da ocupação Casarão Azul que nos mostra a precarização da condição de moradia diante destes processos de remoção. A gente ta aqui diante de uma das supostas maravilhas do Porto Maravilha [fazendo referência ao VLT que passa a frente do antigo prédio da Ocupação Casarão Azul] e logo aqui nós temos a ocupação Casarão Azul. Nós tínhamos muita afinidade. O Quilombo das Guerreiras com o pessoal do Casarão Azul, entre outras ocupações aqui da região central aqui do Rio e lamentavelmente está aqui intacta, não foi mexida numa palha sequer. Continua da mesma forma como que fizeram com que os moradores saíssem, numa pressão muito grande, continua aí, intacta. E um desses moradores hoje em dia mora num espaço que pode ser considerado um cortiço, de apenas três por três, um quarto de três por três, onde mora ele, a esposa e seis filhos. Então é lamentável! Tá aí esperando valorizar mais ainda com a questão da especulação imobiliária e as pessoas morando em situações completamente precarizadas. (SANTOS, 2016)

O despejo desta ocupação foi realizado de forma bastante truculenta, com uso da força policial para transposição das barricadas feitas pelos moradores. A ação foi documentada e as filmagens são apresentadas no documentário “Atrás da Porta”. Neste caso, os moradores foram removidos sem qualquer alternativa habitacional, tendo somente um cadastro prévio de cerca de metade dos moradores para o PMCMV. Como colocado na poesia de Elaine Freitas de Oliveira: Ouça o apito dos navios para o desterro dos habitantes do porto. Nos olhos de despedida a tristeza de não poder levar tudo – e todos. Mas também…levar pra onde? A prefeitura responde: – Levar pra longe. Ou pra debaixo da ponte. (OLIVEIRA, 2016)

No relato de Roberto Santos é denunciada ainda a permanência do antigo prédio da ocupação sem atribuição de novos usos pelo poder público, o que ocorre em grande maioria das ocupações removidas. O que demonstra que as justificativas apresentadas para as remoções, que de modo geral apontam a necessidade de alteração de uso do prédio em prol do Porto Maravilha ou de sua demolição por impacto de obras urbanas, são utilizadas apenas para legitimar estas ações de expulsão das classes populares desta área da cidade.


Fonte: Mapa elaborado pela autora com base nas informações levantadas neste estudo sobre imagem do Google Earth.

Figura 21: Mapeamento das ocupações que permanecem e novos empreendimentos de uso habitacional previstos na Zona Portuária.

97


98

Para Lilian Vaz, Helena Galiza e Maria Laís da Silva o deslocamento forçado desta parte da população pobre urbana realizado com expulsões, despejos judiciais e remoções, apesar de ganhar novas dimensões e visibilidades com o Rio de Janeiro como cidade sede de megaeventos, são parte de uma ação política historicamente permanente, que encontra nas conjunturas específicas de cada período as suas justificativas. De maneira ensaística, as autoras trabalham o conceito de “cultura de remoção”: “A cotidianidade e a permanência da “solução remoção” no imaginário de autoridades públicas e classes altas e médias, faz refletir sobre a existência de uma “cultura de remoção” desde o final do século XIX até os dias de hoje.” (GALIZA, VAZ, SILVA, 2014, p. 02). Para as autoras, a “cultura de remoção” é complementada por uma “cultura do sofrimento”, tendo como base a “memória de experiências compartilhadas de grupos com forte enraizamento em vários territórios (MACHADO [DA SILVA], 2004). Este processo pode implicar numa verdadeira desagregação de redes sociais, associada à desestabilização emocional e a insegurança do futuro dos grupos mais vulneráveis.” (GALIZA, VAZ, SILVA, 2014, p. 04). A partir desta reflexão podemos inserir as remoções forçadas das ocupações da zona portuária em um contexto mais amplo da “cultura de remoção”, sendo uma solução mais uma vez acionada que busca a motivação no Projeto Porto Maravilha e suas intervenções urbanas. Ela ocorre junto ao sofrimento desta população, que pela sua saída forçada do local de moradia em ações que desconsideram sua organização coletiva e as profundas relações existentes com o território no qual se inseria, perde a segurança do abrigo que aquela rede social constituía. As autoras trazem como marco inicial desta “cultura de remoção” o período de grandes reforças urbanas do governo de Pereira Passos (final do século XIX e início do século XX). A partir de então, esta cultura varia em relação aos seus motivos e às diversas conjunturas históricas. O período em que o poder federal era ocupado pelas forças militares também marca esta cultura, entre os anos de 1962 e 1974 ocorrem grandes remoções de favelas no Rio de Janeiro, correspondendo a 139.218 moradores distribuídos entre conjuntos habitacionais em áreas então periféricas à malha urbana. Estes anos foram sucedidos por um período em que se fortaleceu a ideia da urbanização de favelas, deixando a remoção “aparentemente adormecida na história”. A nova conjuntura dos anos 2000, com ideias neoliberais impressos em um modelo de planejamento estratégico, inseriu o país no circuito mundial de cidades globais. O termo remoção voltou a ser amplamente empregado, trazendo consigo interesses econômicos das classes


99

dominantes. Para as autoras, neste período podemos falar de uma institucionalização da “cultura de remoção”, financeiramente viabilizada pelo PMCMV e sob a justificativa de adequar a cidade para a recepção de grandes eventos internacionais. Para as autoras, a cultura de remoção tornou-se uma permanência histórica, que se fortalece na estigmatização das classes populares e de suas soluções de moradia, assim como nos interesses dos atores hegemônicos na produção do espaço urbano. A ideia de cotidianidade da solução remoção é importante para compreendermos este processo e sua contraposição, composta por resistência e sofrimento. Ela exige resistência das classes populares, que lutam e se posicionam politicamente para defender suas soluções de moradia. Assim como imprime no cotidiano desta população o sofrimento da remoção. “Esta permanência no imaginário social vem, portanto, carregada de símbolos, de formas de procedimento que foram internalizadas ao longo da história como um verdadeiro processo cultural, parte de um “cotidiano” marcado por uma violência intrínseca não questionada (intencionalmente ou não)” (GALIZA, VAZ, SILVA, 2014, p. 17).

4.2 AS PERMANÊNCIAS Como ação de resistência contra as remoções em curso, algumas ocupações que se organizam em torno de um projeto político têm se articulado para permanecer na zona portuária por meio de projetos de autogestão da produção da moradia, são elas: Ocupação Chiquinha Gonzaga, Ocupação Mariana Crioula e a Ocupação Quilombo das Guerreiras. Cada ocupação traçou sua estratégia de resistência, de acordo com os atores envolvidos (movimentos sociais, proprietários dos terrenos e diferentes esferas da justiça) e as condições que encontraram ao longo do processo, entretanto, guardam em comum a opção por ocupar e permanecer em terrenos públicos e realizar seu projeto de moradia por autogestão43. A Ocupação Chiquinha Gonzaga propõem o seu projeto de permanência na zona portuária no mesmo terreno que hoje ocupa - localizado na rua Barão de São Felix, 110 -, que pertencia ao INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), foi repassado para a

43

As informações nas quais aqui me baseio me foram apresentadas por diversos caminhos, dentre eles as pesquisas realizadas pela Fundação de Direitos Humanos Bento Rubião; diálogos com assessores técnicos dos movimentos sociais de luta por moradia atuantes no Rio de Janeiro; minha participação em espaços de discussão sobre esta temática; e visitas a algumas ocupações.


100

SNPU (Secretaria Nacional de Patrimônio da União) que por sua vez cedeu à esfera estadual por meio do ITERJ (Instituto de Terras do Estado do Rio de Janeiro). Seu projeto prevê atender à demanda por moradia de 70 famílias e tem como fonte de financiamento o FNHIS (Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social). Mesmo diante das recentes perdas e a descapitalização deste fundo, a Ocupação Chiquinha Gonzaga permanece neste caminho, diferentemente dos outros dois grupos que migraram para o PMCMV Entidades para obter uma nova fonte de recursos. Este pode ser entendido como um dos reflexos da desarticulação política dos moradores desta ocupação e da aparente paralização das ações do seu projeto44. Assim como a Ocupação Chiquinha Gonzaga, a Ocupação Mariana Crioula também tem seu projeto proposto para o mesmo terreno hoje ocupado – localizado na rua da Gamboa, 120/122 –, a partir da requalificação de dois antigos galpões e a construção de uma nova edificação ao fundo do terreno, abrigando as 60 famílias da ocupação. O terreno pertence à SNPU, mas já foi concedido por contrato de CDRU (Concessão de Direito Real de Uso) ao MNLM, movimento que articula a Ocupação. Este projeto também teve em seu início o FNHIS como possível fonte de recursos para sua realização; porém, por articulações políticas e dificuldades no acesso às verbas deste fundo, o projeto foi levado para o PMCMV, na linha Entidades. Já os antigos moradores da Ocupação Quilombo das Guerreiras, despejada em 2014, organizaram-se em torno do Projeto Quilombo da Gamboa, junto a outras famílias que vivem e trabalham na zona portuária organizadas pelos movimentos CMP e UMP que articulavam a Ocupação. O projeto foi selecionado pela Ação de Apoio à Produção Social de Moradia do FNHIS e teve acesso aos imóveis disponibilizados pela SNPU para fins de moradia. Após um primeiro projeto arquitetônico discutido e realizado coletivamente, esta população foi novamente atingida por grandes obras urbanas da região portuária. Os terrenos previstos para o projeto tiveram que ser alterados, pois estavam previstos também para serem utilizados para a nova Via Binário do Porto, que foi inaugurada em 2013. Após a readequação à nova composição dos terrenos, o projeto tem sido encaminhado em vias institucionais de aprovação e financiamento.

44

Uma das motivações da desarticulação relatadas por integrantes dos movimentos sociais presentes na zona portuária seria que, após a implantação da Unidade de Polícia Pacificadora no Morro da Providência, os atores do tráfico de drogas desta área passaram a pressionar as ocupações do entorno para expandir seu território de domínio. Dentre as diversas ocupações afetadas, a Ocupação Chiquinha Gonzaga teria sido politicamente desarticulada.


101

Assim como a Ocupação Mariana Crioula, este projeto encontra-se hoje vinculado ao PMCMV, linha Entidades, como fonte de financiamento. Os projetos habitacionais propostos pelas ocupações que resistem na zona portuária estão para além da autoprodução, que caracteriza amplamente as formas de provisão de moradia das classes populares (moradias construídas por autoconstrução, mutirão, empreitada, contratações pontuais, etc).

Como um recorte dentro do universo das diversas formas de

autoprodução da moradia historicamente realizadas pelas classes populares, a socióloga argentina Maria Carla Rodríguez (2007) nos traz reflexões acerca da “Producción Social del Hábitat”. Este conceito tem sua origem nos movimentos sociais envolvidos com esta prática que o definiram como uma resposta à necessidade por moradias promovida pelos próprios moradores e que se consolidaria como uma estratégia de luta contra o liberalismo econômico, sendo desta forma um conceito político. A “Producción Social del Hábitat”, que em português podemos usar como Produção Social da Moradia, se distingue do processo mais geral de autoprodução por abrigar “al subuniverso de las prácticas dirigidas de manera consciente – es decir recionalizadas y organizadas por algún tipo de actor social –, para potencializar las capacidades e potencialidades que se prefiguran en el fenómeno general de autoproducción” (RODRÍGUEZ, 2007, p.10). Trata-se, por tanto, de um subsistema da economia popular, que também atua no campo de luta do direito ao trabalho por ter fins de formação profissional e não visar o lucro com apropriação do trabalho alheio. Neste conceito político de Produção Social da Moradia trato aqui as soluções de permanência das ocupações Chiquinha Gonzaga, Mariana Crioula e Quilombo das Guerreiras, as quais seus grupos de moradores se articulam em prol de projetos de permanência na Zona Portuária enquanto ações de resistência, de luta social e política. A forte participação dos moradores na elaboração do projeto arquitetônico e a previsão de atuação direta na obra, com perspectiva de formação profissional e organização coletiva em torno de cooperativas profissionais, demonstram para além do envolvimento nas decisões deste projeto a força da pauta da economia popular. Na América Latina temos ampla experiência nestas práticas, tendo como paradigma o caso Uruguaio no qual destacam-se as Cooperativas de Vivienda por Ayuda Mutua, uma associação de famílias que se uniram em torno da demanda comum por moradia, com o objetivo de formar um coletivo que buscasse a solução de forma conjunta. Estas organizações unem o tradicional saber dos autoconstrutores, que muito se vale dos saberes da população imigrante que


102

povoou o país (especialmente espanhóis e italianos), com as organizações populares de grande força local, particularmente a articulação sindicalista dos trabalhadores uruguaios. Enquanto cooperativas, elas incorporam uma forma organizativa pautada pela relação entre iguais e aplicam a ajuda mútua como modalidade de trabalho a partir do aporte de mão de obra das famílias cooperadas. As principais práticas das cooperativas uruguaias surgem na década de 1960, no contexto do pós-guerra de altas inflações e crise econômica, sendo as cooperativas uma saída encontrada para a produção habitacional e uma articulação política dos trabalhadores. Em 1968, o país tem a Ley de Viviendas como um marco na sua produção habitacional, ela surge como uma tentativa de atacar os problemas da produção formal de habitação com ações como promoção privada com financiamento público, porém prevê as Cooperativas de Ajuda Mútua como umas formas de produção de moradia. Esta previsão, que aparecia como marginal na lei, destaca-se como uma preferência da população e promove diversas experiências no território Uruguayo, com grandes conjuntos habitacionais construídos e tendo a FUVCAM (Federacíon Uruguaya de Cooperativas de Vivienda por Ayuda Mutua) como parte importante no desenho desta política para sua estabilização, afirmando a sua base sindical favorecida pela estabilidade do emprego. “Las cooperativas fundaron FUCVAM en 1970 y a partir de allí han emprendido un camino de desarrollo que no ha contado con pocos obstáculos. Desde la lucha consecuente por la libertad y la democracia en la oscura noche de la dictadura hasta el mejoramiento de las condiciones y criterios de las políticas habitacionales de turno”45. Com a nova rodada de liberalização econômica que ocorre na década de 1970, o governo então militar retira seu apoio às cooperativas, que voltam a ter apoio estatal somente na década de 1990, tendo como marco a criação da “Cartera Municipal de Tierras para Vivienda” na cidade de Montevideo. Este novo marco institucional implementou normas e recursos para destinação de terras urbanas às famílias de baixa renda, atendendo a uma grande demanda das cooperativas habitacionais (NAHOUM, 1999). No Brasil, a pressão social adensada no momento de abertura política pós ditadura militar e o agravamento da questão urbana levaram à inserção dos processos de autoconstrução nas políticas formais para a demanda por moradia. Destacando-se a criação dos seguintes 45

Trecho da descrição da FUVCAM encontrada em seu site: http://www.fucvam.org.uy/medio-siglo/.


103

programas entre as décadas de 1970 e 1990: Financiamento de Lotes Urbanizados (Profilurb), Promorar, o Projeto João de Barro (que atuou até a extinção do Banco Nacional de Habitação em 1986) e o Vila Nova Cachoeirinha. Tendo o caso Uruguaio como paradigma que muito influenciou os formuladores envolvidos nesta pauta (acadêmicos, lideranças populares e alguns técnicos e gestores do serviço público), especialmente nas regiões sul e sudeste do Brasil, esta experiência precisou passar por algumas adequações à realidade brasileira. Cibele Risek e João Marcos Lopes (LOPES, RISEK, 2006) apontam alguns destes ajustes, em especial quando a autoconstrução se insere nas políticas públicas: lá [Uruguai], organização sindical; aqui [Brasil], movimento popular; lá, um plano e uma lei que regula a produção autogestionária de moradia em todo o país; aqui, programas que não compõem sequer uma política habitacional local; lá, cooperativas que, juridicamente, permitem o mútuo coletivo, a propriedade comum e sua comercialização regulada; aqui, associações comunitárias que, mal e mal mantêm sua condição como agente promotor que apenas atua como mediador temporário entre o agente financeiro e o mutuário final. (LOPES, RISEK, 2006, p. 13)

Os autores apontam ainda que conseguimos perceber a grande contribuição destas experiências quando as analisamos em escala micro, na escala de cada experiência especificamente. Defendem que a autogestão da produção da moradia não pode assumir o papel de solução para o déficit habitacional, afirmando que ela não funciona quando ampliada para uma escala da produção em massa. Assim, rememora-se o papel do Estado como provedor de benefícios sociais, garantidor de direitos básicos como é a moradia digna. Nas experiências compartilhadas entre Estado e movimentos sociais destaca-se o exercício da crítica social dos grupos autogeridos. Atualmente, podemos ver os grupos militantes desta pauta no Brasil embasarem as críticas contra a baixa qualidade da produção estatal de habitação de interesse social a partir de suas experiências adquiridas neste campo. Os projetos realizados pelos movimentos populares, por não serem comandados por uma perspectiva mercantil, obtêm áreas construídas em cada habitação significativamente maiores, tipologias diferenciadas, novas qualidades arquitetônicas e construtivas, além de diversos espaços coletivos e equipamentos comunitários – sinais da prevalência do valor de uso em relação ao valor de troca. Em projetos mais recentes, estão sendo propostas novas características espaciais que favorecem a urbanidade, a integração e a permeabilidade na relação com o entorno, de modo que o projeto habitacional se torne


104

um novo trecho da cidade, de uma outra cidade possível, ao invés de um conjunto murado (o que, infelizmente, também foi a regra entre os mutirões) (...) O nome de um desses projetos, "Comuna Urbana", indica o sentido da nova experiência territorial que alguns dos movimentos estão dispostos a conduzir, inclusive questionando a propriedade privada individual, ao proporem a cessão de uso coletiva ou outras formas de propriedade coletiva. (FIORI ARANTES, FIX, 2009, p.17)

Desta forma, as experiências acumuladas na autogestão da produção da moradia tornam-se politicamente estratégicas para se contrapor ao formato hegemônico da produção pública habitacional, demonstrando ser possível uma melhor qualidade da moradia em um mesmo contexto político e econômico. Esta contraposição estratégica realizada pelos movimentos sociais se deu em um contexto político favorável, onde a esfera federal de governo brasileiro esteve ocupada pelo Partido dos Trabalhadores. Desde o início do Governo Lula (2003), deu-se uma sequência de programas de financiamento habitacional para projetos autogeridos: Programa Crédito Solidário em 2004 e Programa Produção Social da Moradia, chegando em 2009 o Programa Minha Casa Minha Vida. Este último programa não estabelece diálogos com a política nacional de habitação que se desenvolvia, entretanto respondeu às pressões dos movimentos sociais de luta por moradia por meio de uma de suas linhas, o PMCMV Entidades, um braço direcionado para o financiamento de associações comunitárias para a produção de moradias por autogestão, que apesar dos reconhecidos avanços, corresponde a uma parte mínima dos recursos totais destinados ao Programa.

Figura 22: Trecho da entrevista de Guilherme Boulos (MTST) em resposta à pergunta “Como vocês analisam o PMCMV?”


105

Fonte: “As alternativas habitacionais dos movimentos sociais”, disponível em drive.google.com/file/d/0BwZaXcp0rHvzQkRlcDd3UzZZLVU/view. Acesso em 30 de setembro de 2016.

Figura 23: Trecho da entrevista de Maria de Lurdes Lopes (Lurdinha) e Elisete Napoleão (ambas do MNLM) em resposta à pergunta “Como vocês analisam o PMCMV?”

Fonte: “As alternativas habitacionais dos movimentos sociais”, disponível em drive.google.com/file/d/0BwZaXcp0rHvzQkRlcDd3UzZZLVU/view. Acesso em 30 de setembro de 2016.


106

Para Luciana Correa do Lago (2016), em seu artigo “Autogestão habitacional e a politização das práticas econômicas populares”, os programas federais que dialogam com as demandas associativas para produção habitacional não rompem efetivamente com a forma de produção hegemônica, funcionando para minimizar as pressões exercidas pelos movimentos sociais sobre o governo. O Brasil abriga hoje uma diversidade de experiências associativas no campo da produção habitacional, impulsionada pelos programas federais Crédito Solidário e Minha Casa Minha Vida Entidades, o primeiro implantado em 2005 e substituído pelo segundo em 2009. Esses programas não foram pensados como política de fomento a experimentações inovadoras e alternativas à produção empresarial massiva, mas como resposta enviesada às reivindicações dos movimentos de moradia que, desde o processo constituinte, lutam pela gestão democrática de um fundo nacional para financiamento da habitação popular no país. (LAGO, 2016)

Dentre as diversas críticas existentes à linha Entidades do PMCMV, Flávio Ghilardi e João Huguenin (2015) destacam a inclusão dos movimentos sociais na disputa no mercado de terras urbanas e na adoção de práticas hegemônicas capitalistas na produção dos imóveis. “O Programa Minha Casa Minha Vida – Entidades acabou por inserir os movimentos sociais em uma disputa com as grandes empreiteiras na produção do espaço urbano. No entanto, percebemos que nessa disputa os movimentos vem incorporando uma prática que muitas vezes os fazem se aproximar mais das ações de um empreiteiro do que de sua origem popular ” (GHILARDI, HUGENIN, 2015, p.9). Deve-se ressaltar que esta configuração tem sua origem em grande parte definida pelo próprio desenho do PMCMV, que não atende à essencial distinção entre esses dois atores (empreiteiras e movimentos sociais) que atuam na Produção Social da Moradia. Reforçando essa indiferença do Programa aos distintos atores urbanos, Flávio Ghilardi e João Huguenin (2015) trazem ainda uma crítica que muito se aproxima à crítica aqui exposta anteriormente sobre o tratamento dados às famílias durante as remoções forçadas. “Um ponto importante a ressaltar é que o modelo de relação entre entidades e famílias conforma, no âmbito dos programas públicos estudados no Brasil, um modelo entre um "prestador de serviços" e um "cliente". Nesse modelo, ao final da obra a entidade se retira e não resta, necessariamente, uma organização comunitária das famílias” (GHILARDI, HUGENIN, 2015, p.10). O PMCMV desconsidera a articulação dos moradores em coletivos vinculados a movimentos sociais mais


107

amplos, desenvolvendo-se dentro da lógica da moradia como mercadoria em circulação. O desenho desta política pública força o estabelecimento de vínculos entre a Entidade pleiteadora do projeto e as famílias de moradores por meio de contratos individuais que não dialogam, e nem mesmo possuem a flexibilidade necessária, aos arranjos internos de cada coletivo. Assim, para ter acesso ao financiamento por este Programa, a Entidade passa por um penoso processo de adequação aos padrões mercadológicos, que coloca a casa como mercadoria, a Entidade (neste caso movimentos sociais) como prestadora de serviços e as famílias como clientes. Assim, de uma maneira similar à fragmentação com que são tratados os moradores de ocupações nos momentos de remoções, este Programa adota estratégias que levam à fragilização das articulações coletivamente construídas. A inserção urbana periférica destas moradias produzidas pelo PMCMV também é uma questão importante de ser debatida. Diferente do Uruguai, onde a carteira de terras está a serviço das cooperativas para que estas não participem da disputa desigual do mercado de terras urbanas, no Brasil o PMCMV, inclusive na linha Entidades, indica a compra de terras para os projetos via mercado. Como colocado por Hugenin e Ghilardi, os movimentos sociais passam a agir como empresários que disputam no mercado, até mesmo na compra da terra. Ao ocuparem terrenos públicos numa área central da cidade, a zona portuária, e proporem a realização de seus projetos habitacionais neste mesmo espaço, as Ocupações Chiquinha Gonzaga, Mariana Crioula e Quilombo das Guerreiras reafirmam-se enquanto ações de resistência, de luta social e política, especialmente contra a histórica expulsão das classes populares das áreas de interesse do capital e o viés mercadológico do PMCMV que serve primeiramente como dinamizador dos mercados imobiliários e da construção civil, em detrimento da garantia do direito à moradia digna. Para além disso, o uso de imóveis públicos é também estratégico para contrapor a produção hegemônica, formando um quadro positivo de experiências de referência para outros coletivos, utilizando-se da longa pauta de luta dos movimentos sociais urbanos pela oferta de prédios públicos e privados que não cumpram com sua função social para ações de readequação e posterior oferta de habitação para as classes populares.


108

A conquista da localização privilegiada por meio do PMCMV Entidades na Zona Portuária do Rio de Janeiro da Ocupação Mariana Crioula e da Quilombo da Gamboa46, traz novas questões para o debate e que a princípio não surgem na experiência uruguaia ou na produção em massa da linha principal do PMCMV. Enquanto que a grande maioria da Produção Social da Moradia nacional e uruguaia enfrenta dificuldades com inserção periférica, esses dois projetos se propõem a ocupar uma das principais áreas de interesse do mercado imobiliário na cidade. No artigo “La relación cooperativa/medio: la cooperativa después de la vivienda”, José Tognola (1999) reflete sobre a relação dos movimentos de cooperativas habitacionais uruguaias com seu entorno em zonas da periferia urbana, especialmente após o período de mutirão e a conclusão das unidades habitacionais. Para este autor, a inserção destes conjuntos em qualquer que seja seu contexto local transforma a realidade, sendo, portanto, um promotor de cidade. A carência de equipamentos públicos em seu entorno muitas vezes tem levado as cooperativas a serem promotoras também de espaços como escolas, creches e postos de saúde. Por vezes estes espaços permitem a prática da gestão compartilhada com o poder público, o que abre para interessantes reflexões sobre as relações entre local de moradia e local de trabalho. No caso dos projetos da Ocupação Mariana Crioula e do Quilombo da Gamboa, a inserção urbana não se dá em locais escassos de serviços públicos. Pelo contrário, estão inseridos em uma região privilegiadamente servida de escolas, hospitais, postos de saúde, meios de transporte etc. Um grande desafio se apresenta a estes projetos na necessidade de estabelecer diálogos com o padrão de ocupação urbana promovido para o seu entorno, dentro do contexto de implementação do Projeto Porto Maravilha. Ao analisar as ofertas de moradia até então colocadas (com a ausência de propostas significativas de produção de moradias de interesse social, ausência de políticas de manutenção da população já residente, e pelo perfil dos empreendimentos promovidos pela iniciativa privada), mesmo diante da elaboração de um Plano Local de Habitação de Interesse Social, podemos compreender que as ações promovidas pelo poder público em parceria com a iniciativa privada nesta região da cidade levam a uma produção espacial (histórica) que exclui as classes populares das áreas de interesse do capital, reforçando a segregação urbana existente. Com isso, tem-se que os projetos da Ocupação Mariana Crioula e do 46

Aqui desconsidero a Ocupação Chiquinha Gonzaga por não está inserida no PMCMV Entidades e ter poucas definições sobre a perspectiva de permanência e possível realização do seu projeto.


109

Quilombo da Gamboa seguem o sentido inverso deste processo e com sua consolidação estarão, em relação aos empreendimentos imobiliários previstos para o entorno, em uma situação de intensa proximidade territorial e distância social. Neste contexto, os espaços de uso comum (compartilhado entre moradores, vizinhos e visitantes) ganham especial relevância como promotores de interações entre estes diferentes grupos sociais. Com o resgate de uma das estratégias encontradas pelas cooperativas uruguaias para fortalecer laços de vizinhança no entorno de seu local de moradia, com produção de equipamentos de uso coletivos e de gestão compartilhada, podemos lançar luz sobre possíveis caminhos para redução do distanciamento social. Os projetos habitacionais elaborados pelos coletivos da Ocupação Mariana Crioula e do Quilombo da Gamboa parecem incorporar esta questão propondo a construção de um espaço complexo que avance para além da garantia da unidade habitacional a cada família, com a proposta de inclusão de diversos espaços de uso comuns. A proposição destes espaços deve-se também ao fato de que os movimentos sociais envolvidos não possuem nenhum espaço com tão boa estrutura que possa equivaler à que pode vir a existir por meio da execução dos projetos. Portanto, os espaços comuns aparecem como demandas para os projetos a partir de uma necessidade dos movimentos sociais de forma ampla, para além das necessidades específicas dos grupos de moradores. Analisando as propostas arquitetônicas em constante discussão e produção podemos destacar que, no caso do Projeto Quilombo da Gamboa, a relação com o entorno tem sido abordada tanto pelo tratamento do fechamento do edifício - que busca evitar o padrão de muros altos e fechados predominante na produção do PMCMV propondo amplas aberturas que permitam o contato visual entre as áreas de circulação dos prédios e os espaços públicos do entorno -, quanto pela inclusão de espaços abertos a visitantes - dentre os quais são propostos espaços dedicados à educação (salas de cursos, reuniões, atividades de reforço escolar, estudo e biblioteca), à geração de renda (produção de alimentos, lavanderia e salão de beleza), ao lazer e cultura (cozinha integrada a um salão para eventos como festas, apresentações teatrais ou musicais) e uma creche47.

47

Estas informações constam em uma apresentação do Projeto Quilombo da Gamboa, em formato digital, a mim repassada gentilmente por uma colega que tem acompanhado as reuniões entre a equipe de apoio técnico e o grupo de futuros moradores. Creio ser importante ressaltar que as categorias nas quais enquadro cada espaço proposto assim me foram apresentadas, exponho estas informações respeitando o entendimento do grupo que discute e produz


110

Figuras 24 e 25: Oficinas de construção do Projeto Quilombo da Gamboa.

Fonte: apresentação do Projeto Quilombo da Gamboa em acervo pessoal.

Figuras 26 e 27: Concepções do Projeto Quilombo da Gamboa, destacando o interesse da sua interação com o espaço público.

Fonte: apresentação do Projeto Quilombo da Gamboa em acervo pessoal.

o projeto. Com isso podemos aqui perceber especificidades como o destaque do espaço da creche que, por exemplo, não foi considerado como de geração de renda nem de educação, ultrapassando a dimensão destas duas categorias.


111

O projeto arquitetônico em desenvolvimento para a Ocupação Mariana Crioula48 também insere espaços coletivos, sendo esta uma das premissas do MNLM em todos os seus projetos. Além das 60 unidades habitacionais, o projeto contempla o Restaurante e Casa de Samba Mariana Crioula como espaço de geração de renda, atrelado às atividades da cooperativa Liga Urbana, por meio da culinária e da música voltadas para a valorização da cultura negra. Esta cooperativa é formada por moradores das ocupações do MNLM no estado do Rio de Janeiro e atua principalmente nos setores da construção civil, gastronomia e cultura. A cooperativa Liga Urbana “tem como proposta central promover a sustentabilidade de projetos de habitação de interesse social, articulando a luta pela moradia com o trabalho, cultura e lazer”49, sendo as ações de geração de renda entendidas pelo movimento como essenciais à permanência dos moradores de ocupações em áreas valorizadas das cidades por ser este “um espaço privilegiado para o acesso aos equipamentos públicos da cidade, carrega consigo a valorização dos imóveis e o risco da chamada expulsão branca”50. A cooperativa tem ainda um papel de destaque durante das obras do MNLM sendo protagonista da gestão e execução dos projetos, como podemos observar na obra de requalificação do prédio da Ocupação Manoel Congo, demonstrando o posicionamento político do movimento na adoção prioritária do cooperativismo em detrimento do assalariamento. Sabendo que o custo de vida no centro é muito caro e conhecendo sua base, em grande parte desempregada, a coordenação do MNLM-RJ expande seu projeto da moradia, isto é, do campo da reprodução, para o trabalho, campo da produção. Isto porque a coordenação entende, como Harvey (1982), que a reprodução da vida dos trabalhadores é indissociável do campo da produção econômica. Para sobreviverem com qualidade de vida, as pessoas precisam trabalhar. (MELLO, 2014, p.111)

O projeto da Ocupação Mariana Crioula traz também a estrutura necessária para o desenvolvimento do projeto CRIARTE, comum às demais ocupações do MNLM no Rio de Janeiro. Este é o espaço das ocupações voltado para as crianças moradoras, no qual são realizadas atividades culturais e de reforço escolar durante a semana, assim como são trabalhados temas vinculados ao projeto político do movimento (MELLO, 2014). Diante da localização 48

O projeto arquitetônico da Ocupação Mariana Crioula me foi informalmente apresentado por um de seus arquitetos, Lucas Faulhaber, a quem aqui agradeço muito pela atenção. 49

Disponível em: www.mnlmrj.blogspot.com.br/p/cooperativa-liga-urbana.html. Acesso em 26 de julho de 2016.

50

Idem.


112

emblemática do projeto, o MNLM tem proposto para este novo espaço o papel de sede do Movimento, por tanto, estes espaços de uso comum ganham ainda maior destaque pois almejam não só atender aos moradores das unidades habitacionais propostas, mas também aos demais membros do movimento em uma escala ampla. Para receber eventos de maior porte, como seminários, o acolhimento de pessoas de outras localidades é pensado no projeto na previsão de um espaço de alojamento. Apesar do potencial latente destes espaços comuns para uma maior integração entre moradores das ocupações e moradores/usuários do entorno, como a inclusão de crianças filhas de trabalhadores da região portuária na creche do Quilombo da Gamboa, a realização de eventos de grupos culturais tradicionais desta área da cidade na Casa do Samba ou a oferta de refeições a moradores da região pela Cooperativa Liga Urbana; estes espaços são motivos de grandes entraves ao financiamento pelo PMCMV Entidades. A inadequação do Programa à produção social da moradia ocorre também neste âmbito da definição das atividades a serem abrigadas e realizadas nos novos espaços de moradia. O valor do financiamento é um dos limitantes, ao ser definido tendo como base sempre o número de unidades habitacionais previstas (e estas são fixadas no momento da contratação, não podendo ser alteradas independentemente dos processos em curso), o incremento do projeto com espaços de uso comum acarretam em uma redução as escassas verbas para a produção destas unidades. Os tipos de usos também são limitados pelo Programa, não sendo permitido o uso comercial. Portanto, as estratégias dos movimentos são de grande importância para viabilizar a existência destes importantes espaços comuns. Em uma entrevista para a montagem da exposição “Lutar, Ocupar, Resistir: As Alternativas Habitacionais dos Movimentos Sociais”51, os arquitetos Lucas Faulhaber, Núbia França e Bruno Caio destacam algumas destas críticas ao formato do Programa em contraponto à demanda do Movimento, a partir da experiência do Projeto da Ocupação Mariana Crioula. Lucas Faulhaber: A ideia é que a Mariana crioula seja a sede do Movimento. Por isso, o prédio terá muitos espaços de uso coletivo, auditório, e até vestiário e alojamento para pessoas de fora quando tiver seminário. Este forte aspecto político está no desenvolvimento do projeto. (...) (N)o MCMV não (é) permitido espaços comerciais,

51

Esta exposição gerou uma pequena publicação de mesmo nome, na qual são apresentadas entrevistas com lideranças populares e técnicos de apoio dos movimentos sociais que têm as ocupações para fins de moradia como estratégia de luta urbana. A exposição tem curadoria de Pedro Rivera e ocorreu no Studio-X Rio, espaço que é parte da rede global de laboratórios da Escola de Arquitetura, Planejamento e Preservação da Universidade de Columbia (GSAPP).


113

então se precisa dizer que é um espaço de uso comum. Além disso, a verba é por apartamento, isto é, se você quiser fazer 1000m² de área comum, a verba será a mesma. Por isso, as construtoras fazem somente apartamentos para o MCMV: espaços de uso comum são um gasto a mais para elas. (...) Núbia França: Um dado importante é que são 60 apartamentos. Está no contrato com a caixa e não pode mudar no meio do processo: nem para 62, nem para 58. Lucas Faulhaber: com relação aos quartos, pelo MCMV, não estaria permitido fazer de um único quarto, todas as unidades habitacionais deveriam ser de dois quartos. Mas conseguimos fazer essa flexibilização. Bruno Caio: Nas regras do MCMV, os espaços são muito amarrados. No caso da Mariana Crioula, essas regras ainda eram um pouco flexíveis, mas foram se adaptando o tempo todo.

A dificuldade dos movimentos em realizar projetos condizentes com seus ideais reforça como o formato do PMCMV Entidades fomenta a reprodução do padrão excludente de produção da cidade. Guiado pelos padrões mercadológicos das ações gerais do PMCMV, reduz a moradia à unidade habitacional padronizada. Pela ausência de uma oferta de terras para a produção de moradias de interesse social, o formato do programa tem levado à inserção periférica desta população, distante dos serviços básicos necessários, e suas determinações físicas (como extensos muros e guaritas) têm produzido péssimas relações com a cidade. Ao colocar a demanda pela Produção Social da Moradia, por meio de autogestão, em uma região central da cidade e com um entendimento amplo da moradia que prioriza os espaços de uso comuns, estes projetos levados pelos coletivos de ocupações colocam-se como ações contra-hegemônicas, que disputam a cidade com seus grandes atores capitalistas. Ao reconfigurar o espaço urbano e estabelecer novos domínios no território, estes projetos são, portanto, mais uma forma de ação direta dos movimentos sociais urbanos em sua luta política. Além disso, a experiência prática do trabalho associado e dos princípios da autogestão é também uma experiência de politização, de tomada de consciência das formas de dominação na sociedade capitalista e das alternativas para a emancipação e para a elevação das condições de bem-estar urbano de todos os trabalhadores e suas famílias, de acordo com seus projetos e desejos. (LAGO, 2016)

5. CONCLUSÕES E PERSPECTIVAS Este estudo tem lugar especial em meu interesse em tratar dos conflitos urbanos em torno da produção do espaço, que partem da disputa pela localização e nos levam a complexas relações sociais. Dentro deste amplo tema, a partir de minha afinidade e proximidade, optei por


114

deter-me na luta por moradia, mais especificamente nas ocupações promovidas por movimentos sociais como soluções de moradia das classes populares na zona portuária da cidade do Rio de Janeiro, as quais têm lutado pelo direito à moradia digna e contra uma sucessão de movimentos de expulsão, mais recentemente fortalecidos pelo Projeto Porto Maravilha. A amplidão das questões aqui exploradas por vezes nos leva a um distanciamento da esfera do morar, passando ao largo de toda a cosmicidade que a casa possui. Em uma ocupação, para além do seu caráter político de luta pela garantia do direito à moradia, existem moradores. E é neste espaço que eles têm seus devaneios, seu enraizamento e seus sonhos. A partir da leitura de Bachelard, podemos reconhecer a imaginação como a chave para dar à ocupação a condição de casa, fazendo com que seus moradores ultrapassem as precariedades físicas dos imóveis ocupados e as tensões causadas pelas ameaças de remoções. Podemos entender que é a imaginação quem permite a todo ser abrigado sentir os limites de seu abrigo, vivendo a casa para além da realidade, chegando à virtualidade, dando-lhe a essência da noção de casa. A apreensão da cosmicidade da casa, que existe em cada ocupação para cada família, enriquece as análises sobre os conflitos urbanos e o direito à moradia. Pensar na casa “em sua realidade e em sua virtualidade”, como abrigo de pensamentos, sonhos e devaneios nos leva a perceber com mais sensibilidade e cuidado cada episódio de remoção forçada ou de predominância da valorização financeira sobre a permanência da população local. A recorrência destes episódios de violação ao direito à moradia têm sido comum ao desenvolvimento urbano no Brasil. O restrito acesso à terra urbana leva grade parte da população brasileira a ter condições inadequadas de moradia ou à situação de rua. Desta forma, a moradia passa de condição intrínseca ao homem a um privilégio, dentro do amplo processo de segregação urbana das cidades brasileiras. Neste quadro ganha força e significância o grito dos movimentos urbanos de luta por moradia: “ENQUANTO MORAR FOR UM PRIVILÉGIO, OCUPAR É UM DIREITO!”. Diante das reflexões realizadas neste estudo, as ocupações para fins de moradia podem ser percebidas como uma das diversas soluções insurgentes e de resistência contra as violações ao direito à moradia e ao crescimento urbano excludente. Estas soluções tomam forma juntas ao processo de “modernização” das cidades brasileiras, entre as quais o Rio de Janeiro é um caso de destacada significância. A cidade do Rio de Janeiro, então capital do País, chega ao


115

fim do século XIX com grandes mudanças na sua estrutura urbana e social, com grande volume de investimentos nas atividades urbanas, com a proposta de superação do período colonial recémencerrado por meio de diversas intervenções urbanas (ABREU, 2013). Já no início do século XX inicia-se uma forte crise habitacional, aflorada com o crescimento da população pobre urbana e o descompasso da produção habitacional diante da crescente demanda. Neste quadro, a população que resistia para permanecer na área central da cidade buscava soluções de moradias que fossem condizentes com sua condição social. Logo, crescem as tipologias de moradias precárias – os cortiços, as estalagens, as casas de cômodo, as avenidas e os casebres em morros – que naquele momento representavam o oposto do projeto de “modernização” e “civilização” em curso na cidade. Na imprensa, na literatura e entre as classes sociais mais abastardas as soluções de moradia dos pobres urbanos eram representadas como espaços da vagabundagem e do crime, da chamada “classe perigosa”, uma ameaça à ordem desejada (VALLADARES, 2005). Os grandes investimentos voltados para as obras urbanas de “modernização” e “civilização” da cidade levaram a grandes remoções das classes populares da área central do Rio de Janeiro. Exemplos como a derrubada do Morro do Castelo que abrigava uma das mais antigas favelas da cidade ilustram as ações do mercado e do Estado que levaram a sucessivas expulsões dos pobres urbanos da área central da cidade. As reformas urbanas tiveram especial impacto na zona portuária, área da cidade até então densa de trabalho e moradia popular. Como é comum aos diversos bairros portuários urbanos, sobre a zona portuária do Rio de Janeiro se construiu um estigma que entrelaça rejeição social e política (SILVA, ANDRADE, CANEDO in VAZ, REZENDE, MACHADO DA SILVA; 2012), o que se intensificou com a forte presença das soluções de moradia popular e os episódios de insubordinação de seus moradores, como a Revolta da Vacina. As grandes obras de mobilidade urbana no centro da cidade isolaram a zona portuária, que passou por longos anos de sem obras públicas ou investimentos privados, em contraponto ao dinâmico vetor imobiliário que seguia na direção sul da cidade. A consolidação da imagem do porto como local de abandono e o fortalecimento dos estigmas sobre sua população fortaleceram-se com o esvaziamento da sua principal atividade econômica com a desativação do porto e sua transferência para o bairro do Caju (MELLO, 2003; GONÇALVES, 2012). Já no final do século XX, a zona portuária atraia pouco interesse do mercado imobiliário, condição que junto ao grande estoque de imóveis vazios trouxe às classes populares a possibilidade de morar na área central da cidade a baixo custo, promovendo reprogramação de


116

grandes prédios (em sua maioria públicos), por meio das ocupações. A proposta deste estudo passou pelo entendimento das diversas ocupações que no período recente encontramos na região portuária como soluções de moradia dos pobres urbanos. Assim, o estudo se dá tendo as ocupações como uma das formas de resistência ao processo de crescimento urbano excludente historicamente implementado pelo poder público e pelos detentores do capital. A partir deste arranjo, entendendo as ocupações como uma das soluções de moradia das classes populares, é possível perceber que compartilham dos mesmos estigmas que fortalecem a exclusão social dessa população e de seus locais de moradia. Em relação às favelas carioca, Machado da Silva (1967) destaca que, quando se aciona o discurso pautado pelo estigma continuamente renovado e reforçado sobre seus moradores, omitimos a heterogeneidade da composição das favelas e as tratamos como isoladas do sistema global. Em contraponto a isto, Machado da Silva reforça que a favela não possui um tipo único, ela possui especificidades tanto em sua estrutura interna como em relação às inúmeras favelas existentes (MACHADO DA SILVA, 1967). Parece ser interessante que possamos trazer essa observação de Machado da Silva para outra escala, pensando no conjunto das formas de moradia das classes populares. Quando os estigmas são acionados às diferentes formas de moradia, poucas são as ressalvas quanto a especificidades. Das favelas às ocupações, essas soluções são representadas como locais onde vivem pessoas “vagabundas”, “transmissoras de doenças”, “promíscuas”, “perigosas”, “agentes em potencial da desordem social”. Elas são vistas como uniformes diante da suposta semelhança do perfil sócio econômico de seus moradores compondo um grupo social específico e sua dita informalidade tanto na propriedade da terra ocupada como dos vínculos empregatícios. Esta questão aparece na fala de Guilherme Boulos, líder do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, quando coloca que “é preciso questionar o imaginário dominante que identifica ocupação e favela” (BOULOS, 2015, p. 105). Como ponto central de distinção é destacada a organização coletiva e autônoma dos moradores em uma disputa política pela garantia de seus direitos, aqui se referindo àquelas ocupações articuladas pelo MTST. Mas os argumentos também vão à organização espacial das ocupações. Fugindo do estigma da favela como espaço da desordem, as palavras de Boulos reforçam que as ocupações possuem desenho urbano previamente definido e com diversos equipamentos comunitários. Enquanto liderança do MTST, Boulos fala das ocupações de terrenos vazios, com grande concentração em São Paulo e


117

em sua região metropolitana, condição bastante distinta das ocupações de prédios no centro de São Paulo e ainda mais do Rio de Janeiro. Assim como Machado da Silva (1967) quando fala sobre as favelas, no estudo das ocupações faz-se necessário reconhecer a heterogeneidade das suas composições. Desde ocupações onde alguém cobra das famílias uma taxa para ocupar pequenos cômodos até ocupações autogeridas promovidas por movimentos sociais de luta por moradia, a todas chamamos de ocupações. Neste trabalho busquei ter minha análise limitada às soluções habitacionais do movimento dos sem-teto, entendendo sem-teto como aquele que tem a moradia como o mote principal de seu movimento e a ocupação como forma de luta (GRANDI, 2010). Como formas de luta, as ocupações são fruto de grandes processos de organização, densos de discussões sobre seus aspectos políticos e da importância da construção de uma nova sociabilidade. Na cidade do Rio de Janeiro, essas ocupações organizadas privilegiaram sua inserção da área central e seu entorno, dentre os quais a zona portuária destacou-se. O fato de esta área possuir diversos imóveis vazios públicos cumprindo nítidos fins especulativos também foi determinante52. A ocupação de prédios públicos para fins de moradia ganhou maior respaldo junto ao poder púbico diante do momento histórico do governo federal ocupado por Lula como presidente da república que trouxe em seu discurso o apoio à ocupação de prédios vazios para fins de moradia popular. Grandi transcreve em seu trabalho a fala de um dos membros da ocupação Chiquinha Gonzaga que teve seu início neste contexto político. Ai foi justamente naquela época que o Lula falou que os prédios que tivessem vazios seria reformado pra moradia popular. E a gente baseou naquela fala do Lula, que até saiu no jornal que nós pregamos ali em frente à portaria. Então nós se afirmamos naquilo ali que o Lula tinha acabado de falar (informação verbal, 2010, apud GRANDI, 2010, p. 174)

A ocupação Chiquinha Gonzaga foi a primeira deste processo na zona portuária do Rio de Janeiro, em 2004. O grupo da ocupação escolheu um prédio do INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), localizado próximo à estação Central do Brasil e ao Morro da Providência. Nesta ocupação os movimentos tinham a “preocupação cotidiana com a 52

Estes grande estoque de imóveis vazios públicos se deve principalmente à estrutura fundiária desta região, ao esvaziamento de seus usos e aos diversos de bens recebidos de terceiros pelos órgãos públicos como parte do pagamento de dívidas de toda sorte.


118

articulação e a formação política do dia-a-dia das ocupações e […] a importância da pressão, negociação e articulação política com e sobre várias entidades (inclusive governamentais) e em várias escalas de acordo com o interesse da ocupação” (GRANDI, 2010, p. 161). A localização da Ocupação Chiquinha Gonzaga realça o conflito entre a histórica expulsão da classe popular das áreas interesse do capital e a luta constante pela permanência nestas áreas com diversas soluções de moradia. A ocupação Chiquinha Gonzaga escolheu como espaço a ser territorializado (o edifício na avenida Barão de São Felix número 110) um lugar muito próximo daquele que em tempos passados também abrigou um marco da presença e remoção forçada dos pobres no centro do Rio de Janeiro, o cortiço Cabeça de Porco (localizado na rua Barão de São Felix, no 154). Como posto por Grandi, “a coincidência espacial entre a localização do cortiço Cabeça de Porco e da Ocupação Chiquinha Gonzaga reforça o fato de tal área da cidade ser, há tempos, um recorte espacial da cidade em disputa (de forma muitas vezes violenta) por diferentes agentes modeladores do espaço urbano” (GRANDI, 2010, p. 189). A experiência adquirida com essa primeira ocupação na zona portuária e a grande demanda por moradia levaram a surgir outras ocupações organizadas por movimentos sociais, que por vezes se uniam em uma única ocupação como ocorreu com a Ocupação Chiquinha Gonzaga. Dentre as diversas ocupações que surgiram na década de 2000 temos como marcos principais a ocupação Zumbi dos Palmares (2005) em um prédio do INSS vazio a mais de 10 anos e o grupo da Ocupação Quilombo das Guerreiras (2006) que se estabilizou em um prédio da Companhia DOCAS do Rio de Janeiro próximo ao Terminal Rodoviário Novo Rio (Av. Francisco Bicalho, no 49). Chiquinha Gonzaga, Zumbi dos Palmares e Quilombo das Guerreiras foram as primeiras ocupações de sem-teto na zona portuária do Rio de Janeiro com projetos políticos, vinculadas ou apoiadas por movimentos sociais de abrangência nacional, e que até hoje se mantêm como referencias importantes desta luta. Podemos compreendê-las como partes de uma mesma onda, participando ativamente da história umas das outras e compartilhando experiências. Nos anos seguintes novas ocupações semelhantes surgiram nesta região da cidade, dentre as quais é possível listar: Ocupação Flor do Asfalto (2006), Ocupação Carlos Marighela (2007), Ocupação Nelson Mandela (2007), Ocupação Manuel Congo (2007), Ocupação Alípio de Freitas, Ocupação José Oiticica, Ocupação Machado de Assis (2008).


119

A permanência destas ocupações na zona portuária enfrentou tensões com ameaças de remoções sob o discurso da ilegalidade da posse, da má influência para o entorno ou do uso pouco adequado à região. Com implementação do Programa Porto Maravilha e a proximidade dos grandes eventos internacionais sediados na cidade do Rio de Janeiro, as pressões cresceram e deram início a uma onda de remoções forçadas que mais uma vez afastaram a população pobre da área da central da cidade. Dentre as diversas ocupações despejadas temos: Ocupação Machado de Assis em 2012, Ocupação Zumbi dos Palmares em 2011, Ocupação Carlos Marighela em 2011, Ocupação Casarão Azul em 2009. Neste momento, mais uma vez as engrenagens da segregação urbana agiram diante da ação conjunta do Estado com o capital privado em prol da valorização do capital, levando a população pobre para as periferias urbanas. Como colocado por Sant`Ana e Pio, “Para aqueles que hoje estão ou estiveram na área, como moradores ou trabalhadores com seu próprio pequeno negócio, o destino é a remoção (...). No modelo ideal do marketing urbano, a população pobre que vive hoje ali (ou que vivia, porque muitos já foram removidos ou desocuparam os imóveis que haviam ocupado) deve deixar o lugar” (SANT’ANNA; PIO; 2014, p. 113). Sobre o apoio teórico de David Harvey (2013) podemos entender que nesta nova etapa de reconfiguração espacial do ambiente construído que vem travestida como Porto Maravilha – que promove grandes remoções que desarticulam um conjunto de territorializações promovidas pelos movimentos sociais em luta por moradia – parece aproveitar-se da condição das amarras do capital fixo característico desta área que por um longo período possibilitou as ocupações pelas classes populares de imóveis não disputados no mercado imobiliário, para ali realizar uma reestruturação radical do espaço. A especulação imobiliária faz-se necessária. É preciso que esta área sobre a qual se construiu o estigma do “abandono” passe a inspirar investimentos, que seja possível nesta área da cidade uma valorização do solo que a traga de volta da desvalorização característica de sua estrutura portuária. Neste momento, os diversos papéis para o capitalista na produção do espaço têm sido ocupados por atores que vêm incorporando em suas ações o modelo do Planejamento Estratégico, do qual o Porto Maravilha é um de seus grandes projetos. Considerando as suas características e as contradições diante das grandes disparidades sociais brasileiras, esse novo modelo de planejamento parece ser possível somente com o silenciamento dos conflitos existentes e a dominância do discurso hegemônico de


120

produção e acumulação de capital, especialmente sobre a dinâmica urbana. Em sua produção imagética, o planejamento estratégico produz paisagens a serem consumidas, para as quais são apropriados os traços de “identidade” da cidade. Na criação destas paisagens são realizadas grandes obras de renovação urbana em locais estratégicos que, neste discurso, são apontados como grandes potenciais não devidamente explorados para a competitividade da cidade. O Projeto Porto Maravilha pode ser entendido como um exemplo da criação de cenários (nos quais estão representados o patriotismo cívico e o consenso em grandes cartões postais da cidade), próprios do planejamento estratégico. Dentro do planejamento estratégico do Rio de Janeiro, em sua versão 2013-2016 que traz em sua capa o texto “Pós 2016 - Rio Mais Integrado e Competitivo”, este projeto é apresentado como uma das principais iniciativas estratégias de renovação urbana para o aumento da competitividade da cidade do Rio de Janeiro em âmbito mundial, no qual se propõem realizar grandes transformações urbanísticas na antiga zona portuária da cidade. O Projeto Porto Maravilha é um caso exemplar da utilização de dispositivos institucionais como ferramentas para alterar configurações espaciais do ambiente construído para atender às exigências do capital. Ele é implementado por meio de uma Operação Urbana Consorciada, instrumento previsto pelo Estatuto da Cidade que possibilita a intervenção do Poder Público em parceira com o setor privado em uma área específica da cidade a fim de aprimorar a sua estrutura urbana, tendo sua viabilidade financeira garantida pela valorização do solo e venda da outorga onerosa do direito de construir. Em uma análise profunda e crítica do uso deste instrumento conclui-se que nele é fortalecido o circuito de reinvestimento em regiões já favorecidas, sendo contrárias às políticas de distribuição de renda, democratização do acesso à terra e aos fundos públicos (FIX, 2009). Este instrumento urbanístico tem sido o que melhor transparece o modelo do Planejamento Estratégico que vem sendo amplamente aplicado nas grandes cidades brasileiras, garantindo ao capitalista que atua na produção no espaço a possibilidade de interferir nos vetores de valorização, com o objetivo de fazer crescer financeiramente os investimentos privados na cidade. A área determinada como de intervenção do Porto Maravilha engloba toda a zona portuária do Rio de Janeiro, desde a Praça Mauá até o Gasômetro, e da Av. Presidente Vargas até os antigos galpões portuários. Em sua apresentação diz-se que o projeto “irá recuperar 5 milhões


121

de m2 da área central da cidade, há anos abandonada em estado de decadência” (grifo meu)53, retomando e fortalecendo a imagem da zona portuária como uma região vazia, sendo o Porto Maravilha um promotor do “reencontro da Região Portuária com a cidade”54. Ao tratar a área como “abandonada” torna-se clara a busca por omitir os conflitos sociais em torno do Projeto, já que aqueles que lá vivem não são desejados e com isso são inexpressivos ou inexistentes. Na intenção da construção de uma nova imagem da zona portuária são definidos novos parâmetros urbanísticos que possibilitam a área compor um novo “skyline” da cidade como parte da estratégia de branding. Apesar da promoção do uso habitacional ser apontada como um dos principais objetivos do Porto Maravilha, as diretrizes para a provisão habitacional de interesse social são vagas e possuem pouca concretude, em contraste com as intervenções que visam a valorização do capital privado investido. Não são percebidas propostas significativas de produção pública de novas unidades (seja pelo PMCMV ou pelo Programa Novas Alternativas), assim como não há interesse neste tipo de produção pela ação privada que tem seu foco na produção de unidades de comércio e serviço, com sua pouca produção habitacional voltada para classe média e média alta. Como declarado pelo ex-diretor do Projeto Porto Maravilha e então diretor da Secretaria Municipal de Urbanismo, “Hoje a gente está tendo muito mais o mercado, o mercado definindo um pouco o que vai ser a oferta da região. E a oferta tem sido em cima sempre do escritório, né? Já tem uma sobreoferta de escritórios [...] vai ter uma reversão para a área residencial. Agora, evidentemente, não vai ser voltada para a população de baixa renda.” (CORREA apud SANT’ANNA; PIO; 2014, p. 109 -110). À ineficiente oferta de habitação de interesse social do Projeto Porto Maravilha somam-se as remoções forçadas da zona portuária, que juntos reforçam a continuidade do processo de expulsão das classes populares das localizações privilegiadas. Dentre as diversas ações de remoções destacam-se aquelas que ocorreram nos poucos projetos que previam melhorar a condição de moradia da população. No Morro da Providência, o Programa Morar Carioca desenvolvido pela Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro levou à remoção de diversas famílias para realização de obras como a instalação de um teleférico (DOSSIÊ DO COMITÊ 53

Trecho destacado da página 106 do documento disponível em: /www0.rio.rj.gov.br/planoestrategico. Acesso em 30 de julho de 2016. 54

Disponível em: www.portomaravilha.com.br/web/esq/imprensa/pdf/05.pdf. Acesso em 27 de julho de 2016.


122

POPULAR DA COPA E OLIMPÍADAS DO RIO DE JANEIRO, 2015). Já o Programa Novas Alternativas, ao priorizar a escolha de imóveis públicos, em especial casarões abandonados e em ruínas na área central da cidade, acabou por disputar espaço com as ocupações para fins de moradia que, diante de sua vulnerabilidade, desocupam os imóveis para as ações do Programa. Acompanhando estes processos de remoção podemos perceber que diante da valorização imobiliária – essencial para a viabilidade financeira da Operação Urbana Consorciada – e da predominância da produção pública de habitação popular na periferia urbana, as “alternativas habitacionais” dadas às famílias removidas não permitem a permanência na zona portuária. O aluguel social não é suficiente para arcar com um imóvel habitacional na zona portuária escapando da precariedade, assim como as indenizações que não consideram a valorização imobiliária promovida pelas próprias intervenções urbanas que motivaram a remoção (SANT’ANNA; PIO; 2014). Esta condição deixa claro que a valorização imobiliária dada a estas áreas de interesse do capital, como vem sendo a região portuária, não é apropriada por aqueles que nelas residem e são alvos de remoções, mas sim pelos grandes agentes transformadores do espaço urbano. No caminhar do Projeto Porto Maravilha, em 2014, o Ministério das Cidades determinou a elaboração de um Plano de Habitação de Interesse Social em uma instrução normativa que regulamenta a aplicação de recursos do FGTS em Operações Urbanas Consorciadas. Com isso, em 2015 a Prefeitura do Rio de Janeiro anunciou a elaboração do Plano de Habitação de Interesse Social do Porto (PHIS Porto), o que para alguns pesquisadores foi uma forma da esfera federal incorporar as reivindicações dos movimentos populares (JUNIOR, WERNECK, 2015) e já para outros “a repentina proposta de elaboração desse plano de HIS é, na verdade, um pré-requisito para a obtenção de outros bilhões de reais do FGTS, já pleiteados pela CDURP para a continuação da operação” (GALIZA, 2015). A Normativa poderia ser um caminho para a redução dos impactos desta Operação Urbana Consorciada, mudando seus rumos (GALIZA, 2015). Entretanto, as ações propostas pela normativa e seus objetivos – “garantir que as OUCs apoiadas visem ao interesse público e ao benefício social, o cumprimento da função social da cidade e da propriedade, a sustentabilidade


123

econômica dos empreendimentos e a promoção da participação e do controle social” 55 – parecem inconciliáveis com o desenho deste instrumento e seu papel no planejamento estratégico da cidade do Rio de Janeiro. Apesar do texto elaborado para o PLHIS Porto parecer atender à Instrução Normativa, as profundas contradições são explicitadas no seu processo de elaboração bastante aquém do esperado e nas fortes críticas ao seu conteúdo final (JUNIOR, WERNECK, 2015; CARVALHO, WERNECK, JUNIOR, 2015). Permanece o padrão excludente de urbanização, guiado pela acumulação de capital dos grandes agentes produtores da cidade em detrimento da garantia do direito à moradia para as classes populares na zona portuária. A distância entre o texto da normativa, a elaboração do documento e o padrão de urbanização parece atribuir ao PHIS Porto um mero papel legitimador, a ser utilizado como uma estratégia para reduzir as pressões e dispersar às fortes críticas. Este entendimento sobre o papel do PHIS Porto é reforçado quando se adentra no grande processo de remoção das ocupações da zona portuária, em especial aquelas ocupações promovidas por movimentos sociais, que são caras a este estudo. Do processo em curso pouco se tem informação, tanto aquelas que poderiam ser acessíveis a outros grupos como de pesquisadores, como e principalmente as que deveriam estar claras aos próprios moradores despejados, como o novo local de moradia e o motivo da remoção. Esta recorrente ausência de informações sobre os processos de remoção forçada, para além de uma violação a direitos fundamentais, parece ser uma ferramenta importante para desestruturar formas de resistência e encobrir possíveis ilegalidades nas ações (COMISSÃO DE DIREITOS HUMANOS NO RIO DE JANEIRO, 2015). Para além da grave violação do direito à informação, o momento da remoção que já é de tensão para os moradores, é agravado pelo protagonismo da violência policial que chega sem notificação prévia do dia e da hora. As remoções são realizadas com truculência, sob a qual pouco parece importar as redes sociais e os bens materiais dos moradores que, quando transportados, vão sacudindo em caminhões de lixo (MENDES, 2010). A constante tensão existente diante da possibilidade do despejo repentino reflete-se no cotidiano dos moradores das ocupações que passam a se organizar para cumprir turnos de “portarias”, com maior rigor nos momentos de vulnerabilidade e algum “relaxamento” desta função em períodos mais estáveis. 55

Instrução Normativa MC no 33 de 17/12/2014. https://www.legisweb.com.br/legislacao/?id=278905.

Acessado

em

13/08/2016.

Disponível

em:


124

Diante disto, faz-se necessário refletir sobre o pensamento de Bachelard (2008) quando nos diz que o benefício mais precioso da casa é a função de abrigo. Diante da constante tensão imposta sobre a sua permanência, a ideia da ocupação como abrigo não parece vir da realidade, mas sim da virtualidade. A sensação de abrigo parece surgir das intensas redes sociais formadas entre os moradores, que compartilham projetos políticos e fazem da sua moradia um ato coletivo de resistência. Esse abrigo é fortemente rompido nas ações de despejo. Elas ocorrem desconsiderando o coletivo da ocupação e sua participação em movimentos sociais mais amplos, fragilizando as articulações construídas. A chegada das famílias em novas moradias aparece como indefinida e fragmentada em relação ao grupo de moradores. Quando realocados em conjuntos habitacionais do PMCMV, não permanecem próximos ao seu grupo, assim como se distanciam do seu local de origem. Quando recebem indenizações ou aluguel social, os valores não possibilitam sua permanência em condições dignas de moradia na zona portuária, diante da crescente valorização imobiliária desta região. Na leitura sobre a luta das classes populares pela permanência nas áreas de interesse do capital, na qual surgem as diversas soluções de moradia dentre as quais encontramos atualmente as ocupações, podemos compreender que as remoções são parte de uma ação política historicamente permanente. “A cotidianidade e a permanência da “solução remoção” no imaginário de autoridades públicas e classes altas e médias, faz refletir sobre a existência de uma “cultura de remoção” desde o final do século XIX até os dias de hoje.” (GALIZA, VAZ, SILVA, 2014, p. 02). Considerando o grande número de famílias removidas nesta década - na qual fomos inseridos no circuito mundial de cidades globais sob os ideais neoliberais impressos em no modelo de planejamento estratégico -, Lilian Vaz, Helena Galiza e Maria Laís da Silva (2014) colocam que podemos falar de uma institucionalização da “cultura de remoção”. Esta leitura das autoras sobre a “solução remoção” como uma permanência histórica lança luz sobre a presença cotidiana desta ação na vida dos pobres urbanos moradores das áreas de interesse do capital. Não é raro vermos moradores sendo removidos de seus lares, tendo chegado até lá devido a uma remoção anterior. Assim, a presença cotidiana da “solução remoção” nos traz também a presença constante da resistência e do sofrimento, esse último provocado por


125

uma “verdadeira desagregação de redes sociais, associada à desestabilização emocional e a insegurança do futuro dos grupos mais vulneráveis.” (GALIZA, VAZ, SILVA, 2014, p. 04). Como ações de resistência contra as mais recentes remoções na zona portuária, algumas ocupações articuladas por movimentos sociais têm elaborado seus próprios projetos de moradia, são elas: Ocupação Chiquinha Gonzaga, Ocupação Mariana Crioula e a Ocupação Quilombo das Guerreiras. As três têm em seus projetos a determinação de ocupar e permanecer em terrenos públicos e ter a sua realização por autogestão. Estes grupos podem ser entendidos como inseridos em um recorte dentro do universo das diversas formas de autoprodução da moradia historicamente realizadas pelas classes populares, mas que aqui se consolida também como uma estratégia de luta contra o liberalismo econômico. O conceito de “Producción Social del Hábitat” (RODRIGUES, 2007) parece nos ajudar a lançar luz sobre estes processos de resistência em curso na zona portuária em prol da permanência dos moradores das três ocupações. Neste recorte especial da autoprodução da moradia, a América Latina tem ampla experiência e tem o caso uruguaio como paradigma, no qual se destacam as Cooperativas de Vivienda por Ayuda Mutua articuladas em torna da FUVCAM e que têm a ajuda mútua como modalidade de trabalho na produção das moradias a partir do aporte de mão de obra das famílias cooperadas. A influência do paradigma uruguaio é percebida nas políticas públicas brasileiras que incorporaram a autoconstrução, entretanto com diferenças essenciais que refletem as distintas condições políticas dos dois países, como apontado por Cibele Risek e João Marcos Lopes (LOPES, RISEK, 2006). Na análise dos dois autores é pontuada também uma questão bastante cara aos movimentos envolvidos nas três ocupações aqui discutidas. A grande contribuição das experiências de autogestão da produção da moradia é percebida na escala de cada experiência especificamente, ela não se mostra como uma solução para o déficit habitacional sobre o qual se afirma o Estado como provedor de benefícios sociais, garantidor de direitos básicos como é a moradia digna. As experiências acumuladas na autogestão da produção da moradia, especialmente na cidade do Rio de Janeiro, são tomadas como estratégicas políticas para se contrapor ao formato hegemônico da produção pública habitacional, demonstrando ser possível uma melhor qualidade da moradia (considerando aqui também sua localização) em um mesmo contexto político e econômico.


126

Os movimentos sociais de luta por moradia presentes na zona portuária encontraram na linha Entidades, do PMCMV, uma forma de financiamento para a produção de suas moradias por autogestão. Dentre as diversas críticas levantadas por lideranças dos movimentos sociais, técnicos e acadêmicos envolvidos pela temática, penso que podemos apontar como crítica central que este programa federal apesar de dialogar com as demandas associativas para produção habitacional não rompe efetivamente com a forma de produção hegemônica, funcionando muitas vezes para desviar as pressões exercidas pelos movimentos sociais sobre o governo (LAGO, 2016). A entrada dos movimentos sociais na disputa do mercado de terras urbanas e a localização periférica dos edifícios são críticas elaboradas sobre a produção desta linha do PMCMV em todo em Brasil e que podem ser compreendidas dentro da crítica central. Ao ocuparem terrenos públicos na zona portuária e proporem a realização de seus projetos habitacionais neste mesmo espaço, as Ocupações Chiquinha Gonzaga, Mariana Crioula e Quilombo das Guerreiras reafirmam-se enquanto ações de resistência, especialmente contra a histórica expulsão das classes populares das áreas de interesse do capital e o viés mercadológico do PMCMV. Além disso, fortalece um quadro positivo de experiências de referência para outros coletivos, utilizando-se da longa pauta de luta dos movimentos sociais urbanos pela oferta de prédios públicos e privados que não cumpram sua função social para ações de readequação e posterior oferta de habitação para as classes populares. A perspectiva da permanência traz novas questões para o debate e que a princípio não surgem na experiência uruguaia ou na produção em massa da linha principal do PMCMV. Enquanto em ambas há o desafio da inserção periférica, marcada pela escassez de serviços, a perspectiva de inserção das três ocupações traz a necessidade de estabelecer diálogos com o padrão de ocupação urbano promovido no seu entorno. Diante do Projeto Porto Maravilha podemos compreender que teremos nesta região uma grande proximidade territorial em contraposição a uma grande distância social entre os grupos de moradores das ocupações e os novos perfis trazidos pra região por meio dos investimentos recentes. Assim como nos casos uruguaios, onde a produção de equipamentos de uso coletivo e gestão compartilhada foram importantes para fortalecer os laços de vizinhança no entorno dos locais de moradia, aqui este mesmo caminho parece ser trilhado, sendo possível observar este cuidado nas propostas arquitetônicas já elaboradas pelos grupos de ocupantes, especialmente a


127

Ocupação Mariana Crioula e o Projeto Quilombo da Gamboa. Seus projetos arquitetônicos propõem a construção de espaços complexos onde os usos vão muito além da moradia em si – prevendo espaços dedicados à formação, à geração de renda e ao lazer. A proposta destes diferentes espaços de usos coletivos se apresenta diante da ausência de outras estruturas físicas semelhantes que possam acolher as diversas atividades dos movimentos sociais, das quais participam não só os moradores da ocupação em si, mas também os demais militantes. Além de podermos pensar estes espaços como acolhedores também a pessoas externas aos movimentos sociais de luta por moradia. Apesar da grande relevância desta leitura do local de moradia como algo complexo e multifacetado, o formato do PMCMV Entidades tem sido uma grande barreira para sua realização. Por meio de suas normas para o acesso ao financiamento, ele fortalece os padrões mercadológicos que reduzem a moradia à unidade habitacional padronizada. Ao colocar a demanda pela Produção Social da Moradia, por meio de autogestão, em uma região central da cidade e com um entendimento amplo da moradia estes projetos levados pelos coletivos de ocupações colocam-se como importantes ações contra-hegemônicas. Ao reconfigurar o espaço urbano e estabelecer novos domínios no território, estes projetos são, portanto, mais uma forma de ação direta dos movimentos sociais urbanos em sua luta política. O interesse em estudar esse complexo conflito em torno da produção social do espaço me veio junto à dificuldade da realização da pesquisa de campo. As difíceis condições em que se encontravam as ocupações somaram-se à minha impossibilidade de realizar esta atividade que tanto nos toma e nos presenteia enquanto pesquisadores. O aumento das tensões com a onda de remoções das ocupações levou o foco dos movimentos sociais para a urgência das estratégias de permanência, o que por consequência torna ainda mais restrito o acesso às suas informações56. Respeitando essa demanda dos movimentos sociais que estavam envolvidos nas ocupações da zona portuária e reconhecendo a relevante produção acadêmica já existente no campo das ciências sociais, realizei meu estudo a partir de uma pesquisa documental com o suporte das teorias críticas da sociologia e do planejamento urbano. Já como parceira da luta pelo direito à

56

Todos os momentos em que pude aproximar-me das lideranças dos movimentos sociais articulados nas ocupações da zona portuária, em especial o MNLM, foram de extrema importância. Sempre fui recebida com carinho e atenção, entretanto era perceptível a urgência das ações estratégicas em prol da permanência em detrimento do tempo dispensado em diálogos com pesquisadoras como eu e também a ponderação quando entravamos em assuntos como as estratégias futuras de ação, por exemplo, ocupações temporárias de sedes de órgãos públicos e novas ocupações de prédios vazios para novos grupos de moradores.


128

moradia, mantive-me próxima às ocupações e seus movimentos sociais, tendo realizado visitas a algumas ocupações e participado de espaços de debate dos movimentos sociais que articulam ocupações na zona portuária do Rio de Janeiro. Considero que essa proximidade possibilitou apurar a minha percepção a respeito das informações já existentes e a centrar atenção nas questões mais caras aos movimentos sociais no difícil momento atual. Diante da velocidade com que chega esta nova onda de remoções que atinge as ocupações, da realização das grandes intervenções urbanas na zona portuária e do agitado contexto político, o tema aqui estudado parece se reconfigurar rapidamente, de tal forma que as informações elaboradas já não representam adequadamente a realidade na qual esta conclusão surge, mas sim uma parte de um período complexo. O tempo das transformações urbanas e sociais passa a frente do tempo da escrita. Aqui destaco duas questões que considero interessantes de pensar o desenvolvimento desta temática e que somente na conclusão do texto consigo pontuar. A primeira delas é o surgimento da ocupação Vito Gianotti no Santo Cristo, bairro da zona portuária, no início de 2016. Essa ocupação se dá em um antigo prédio do INSS vazio por mais de 10 anos. Nesta ocupação unemse diferentes movimentos sociais – Central dos Movimentos Populares (CMP), Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB), Movimento Sem Terra (MST) e a União Nacional de Moradia Popular (UNMP) – em prol da construção de um espaço para as demandas populares, não se identificando restritamente em uma ocupação de luta pela moradia. Diante de suas características, considero que esta ocupação merece um tratamento diferenciado em relação ao grupo de ocupações que neste trabalho pude estudar e que pode vir a abrir novas perspectivas sobre a luta pela permanência dos pobres urbanos nas áreas centrais. A segunda questão se impõe no cenário político do país. Diante do processo de impeachment de Dilma Russef tem fim um longo período de governo petista, especialmente marcado pelo “lulismo”, no qual os diferentes setores sociais viam-se de alguma forma representados no governo federal ou tinham canais que permitiam viabilizar demandas (CARDOSO, 2017, no prelo)57. Dentre essas demandas que partiam da pressão popular e alcançavam o desenho de políticas públicas destaca-se o PMCMV em sua linha Entidades. Esta 57

Para acompanhar uma crítica à política habitacional nos governos petistas e no difícil contexto político que se apresenta atualmente, eu indico a leitura das produções de Adauto Lucio Cardoso.


129

pequena brecha no PMCMV que era tida como viabilizadora do projeto de permanência das ocupações na zona portuária sofreu fortes abalos com a ruptura do governo federal. Os abalos podem ser ilustrados com a paralisação da obra da Ocupação Manoel Congo que corria pelo financiamento do PMCMV Entidades e que, recentemente, teve interrompida a verba para a conclusão da obra58. Tendo em vista o até então entrelaçamento entre as estratégias dos movimentos sociais de luta por moradia –tanto de produção habitacional quanto de disputa do Estado – e a Política do PMCMV Entidade, creio que seja imprescindível que façamos uma reflexão profunda desde o campo da produção habitacional em si pela autogestão até a política habitacional em toda sua amplitude para que possamos traçar novas perspectivas. Apesar da dificuldade em elaborarmos perspectivas sobre o quadro político nacional e seus reflexos na produção do espaço urbano, é possível perceber a ascensão dos princípios neoliberais, dos quais é fruto o Planejamento Estratégico em curso na cidade do Rio de Janeiro, e o enfraquecimento das políticas sociais que pode levar ao agravamento da profunda desigualdade social que temos no país. Em uma recente mesa de discussão sobre as perspectivas dos movimentos sociais de luta por moradia no novo contexto político que se impõem, a qual era composta por lideranças dos movimentos nacionais atuantes nas ocupações da zona portuária, um aspecto do cenário futuro tornou-se claro: o enfrentamento político será acirrado. Diante do quadro que se forma, os estigmas sobre as classes populares e suas formas de moradia tendem a se fortalecerem, o que pode dar lastro à intensificação das ações de expulsão dessa população das áreas de interesse do capital, fortalecendo a segregação urbana. Com isso, é de grande relevância que tenhamos em vista a necessidade de nos debruçarmos sobre os estigmas atribuídos às ocupações para que possamos trabalha-los e, na luta urbana, combate-los. Dentro do leque de possibilidade de novos caminhos a serem percorridos a partir deste estudo, a luta pela terra urbana parece cara a mim. É muito significativo que a condição de disponibilidade de imóveis públicos vagos a baixo preço de mercado e em uma boa localização tenha atraído movimentos sociais de luta por moradia e também o olhar dos grandes capitalistas da produção do espaço urbano por meio do Porto Maravilha. Os movimentos sociais impulsionados pela enorme demanda por moradia em áreas centrais e pelo não comprimento da 58

Esta ocupação está documentada na página www.facebook.com/MNLM.RJ/posts/1453948214616832.

da

rede

social

do

MNLM

Rio,

no

link:


130

função social da propriedade de prédios públicos, historicamente disputados para a produção habitacional de interesse social. Já os grandes capitalistas pela perspectiva da acumulação de capital a partir da compra a baixo custo de terrenos públicos e de valorização do solo com a intensificação de usos mais rentáveis. Nesse estudo que aqui se encerra pude me demorar nas ocupações enquanto estratégia contra-hegemônicas de ação direta dos movimentos sociais na produção capitalista do espaço, o que despertou meu interesse em levar o foco da análise do conflito para ações hegemônicas do poder público junto aos grandes atores do capital privado em prol da valorização fundiária de terrenos, especialmente aqueles até então desvalorizados pelas estruturas de capital fixo.


131

6. BIBLIOGRAFIA ABREU, Maurício de Almeida. A evolução urbana no Rio de Janeiro. 4.ed. Rio de Janeiro: IPLANRIO, Zahar, 2013. ARANTES, Otília. Uma estratégia fatal: a cultura nas novas gestões urbanas. In: ARANTES, O.; VAINER, C.; MARICATO, E. (Orgs). A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Petrópolis: Vozes, 2000. BACHELARD, Gaston. A poética do Espaços; tradução Antonio de Páuda Danesi. 2a ed. Selo Martins, 2008. – (Coleção Tópicos) BOULOS, G. Por que ocupamos? – Uma introdução à luta dos sem-teto. São Paulo: Autonomia Literária, 3ª Edição, 2015 CARDOSO, Adauto Lucio; JAENISCH, Samuel Thomas (no prelo). Mercado imobiliário e política habitacional nos governos de Lula e Dilma: entre o mercado financeiro e a produção habitacional subsidiada. In: XVII Encontro Nacional da ANPUR, São Paulo. Desenvolvimento, crise e resistência: quais os caminhos do planejamento urbano e regional? São Paulo: ANPUR, 2017. CARDOSO, Isabel. Impactos Sociais das Transformações Urbanas na área Portuária em Função do Projeto Porto Maravilha. In.: RIO DE JANEIRO. COMISSÃO DE DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS E CIDADANIA. Relatório da Comissão de defesa dos direitos Humanos e Cidadania | ALERJ, composição 2014. Rio de Janeiro: ALERJ, 2014. CARVALHO, Ana Paula Soares; WERNECK, Mariana; JUNIOR, Orlando Santos. Produção da Habitação de Interesse Social no Porto Maravilha: quantas moradias, onde e para quem? Disponível em: http://web.observatoriodasmetropoles.net/index.php?option=com_k2&view=item&id=1246%3A habita%C3%A7%C3%A3o-de-interesse-social-no-porto-maravilha-quantas-moradias-onde-epara-quem%3F&Itemid=180&lang=pt. Acesso em: 10 dez. 2015. CORREA, Antônio. apud SANT’ANNA, Maria Josefina Gabriel e PIO, Leopoldo Guilherme. Megaeventos esportivos, dinâmica urbana e conflitos sociais: intervenções urbanas e novo desenho para a cidade do Rio de Janeiro. In: SANTOS, Angela Moulin S. Penalva e SANT’ANNA, Maria JoseHina G. (orgs). Transformações territoriais no Rio de Janeiro do século XXI. Rio de Janeiro, Gramma, 2014, pp.103-121. COSTA, Francis da. Episódio 1 – Remoções. In.: Contagem Regressiva. Direção: Luis Carlos de Alencar. Produção Executiva: Vladimir Seixas. Realização Justiça Global e Couro de Rato. Brasil, 2016. DOSSIÊ DO COMITÊ POPULAR DA COPA E OLIMPÍADAS DO RIO DE JANEIRO. Megaeventos e violações dos direitos humanos no Rio de Janeiro. 2015. Disponível em: http://rio.portalpopulardacopa.org.br/?page_id=2972. Acesso em 10 de agosto de 2016.


132

FERNANDES, Adriana S. Arte do contornamento e ocupação de moradia no Rio de Janeiro. Revista de Ciências Sociais, n. 40, Abril de 2014, pp. 311-333. FIORI ARANTES, Pedro; FIX, Mariana.“Minha Casa, Minha Vida”, o pacote habitacional de Lula. Disponível em: web.observatoriodasmetropoles.net/download/gthab/text_ref_outros/fix_e_arantes_MCMV.pdf. Acesso em 25 de julho de 2016. FIX, Mariana. Uma ponte para a especulação – ou a arte da renda na montagem de uma cidade global. Caderno CRH, v.2, n. 55 (2009). GALIZA, Helena. O Porto Maravilha e a política de reabilitação de áreas centrais. 2015. Disponível em: www.raquelrolnik.wordpress.com/2015/07/16/o-porto-maravilha-e-a-politica-dereabilitacao-de-areas-centrais/. Acesso em: 30 de novembro de 2015. GALIZA, Helena; VAZ, Lilian Fessler; SILVA, Maria Laís Pereira da. Grandes Eventos, Obras e Remoções na Cidade do Rio de Janeiro, do Século XIX ao XXI. In: INTERNATIONAL CONFERENCE ON MEGA-EVENTS AND THE CITY, II, Rio de Janeiro, 2014. Anais... Rio de Janeiro: Ippur, 2014. GHILARDI, Flávio e HUGUENIN, João P. Algumas aproximações acerca da difusão e recepção do modelo uruguaio de produção cooperativa de moradia no contexto brasileiro. ANPUR, 2015. GONÇALVES, Paulo Mauricio Rangel. Rua Sacadura Cabral e Zona Portuária: uma viagem no espaço e tempo rumo à Maravilha. Revista do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro n.6, 2012, p.231-246 GONÇALVES, Rafael. Favelas do Rio de Janeiro: História e Direito. Rio de Janeiro: Pallas/PUCRio, 2013, 408 p GRANDI, Matheus da Silveira. Práticas espaciais insurgentes e processos de comunicação: espacialidade cotidiana, política de escalas e agir comunicativo no movimento dos sem-teto no Rio de Janeiro. Dissertação de mestrado pelo Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. (UFRJ), 2010. HARVEY, David. Os Limites do Capital. São Paulo: Boitempo, 2013. JUNIOR, Orlando; WERNECK, Mariana. Por um Plano de Habitação de Interesse Social no Porto Maravilha. Disponível em: http://www.observatoriodasmetropoles.net/index.php?option=com_k2&view=item&id=1225%3 Apor-um-plano-de-habita%C3%A7%C3%A3o-de-interesse-social-no-portomaravilha&Itemid=180#. Acesso em: 10 dez. 2015. ZANATTA, Ivan; XIMENES, Luciana. A regularização urbanística e fundiária de favelas no Rio de Janeiro e suas consequências na segregação sócioespacial. In: Anais do 8º Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico: direito urbanístico e conflitos urbanos: a efetividade da ordem jurídico-urbanística na promoção do direito à cidade. São Paulo: IBDU, 2016.


133

LAGO, Luciana Correa do. Autogestão habitacional e a politização das práticas econômicas populares. Disponível em: http://www.diplomatique.org.br/acervo.php?id=3241. Acesso em: 25 jun. 2016. LEITE, Márcia Pereira. Entre o Individualismo e a Solidariedade: Dilemas da política e da cidadania no Rio de Janeiro. Revista Brasileira de Ciências Sociais. Vol 15. Nº 44. Pp 73-90. 2000 LOPES, J. M. A. e RIZEK, C. S. O mutirão autogerido como procedimento inovador na produção da moradia para os pobres: uma abordagem crítica. In: CARDOSO, A. e ABIKO, A. Procedimentos de gestão habitacional para a população de baixa renda. Porto Alegre, ANTAC, Coleção Habitare, v. 5, 2006; p. 44 – 75. MACHADO DA SILVA, Luís A. “A política na favela”. Cadernos Brasileiros, Rio de Janeiro, v. 9, n. 3, mai./jun. p. 35-47. 1967. MELLO, Irene de Queiroz e. Trajetórias, cotidianos e utopias de uma Ocupação no centro do Rio de Janeiro. Dissertação de mestrado pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), 2014. MELO, Fernando Fernandes de. A Zona Portuária do Rio de Janeiro: antecedentes e perspectivas. Dissertação de mestrado pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), 2003. MENDES, Alexandre Fabiano. Atrás da Porta. Direção, montagem e roteiro: Vladimir Seixas. Assistência de direção: Chapolim. Produção Independente. Brasil, 2010, 92 min. NAHOUM, B. (org.) Las cooperativas de vivienda por ayuda mutuas uruguayas. Sevilla/Montevideo: Junta de Andalucia / Intendencia Municipal de Montevideo, 1999; p. 23-31. OLIVEIRA, Elaine Freitas de. Episódio 3 – Zona Portuária. In.: Contagem Regressiva. Direção: Luis Carlos de Alencar. Produção Executiva: Vladimir Seixas. Realização Justiça Global e Couro de Rato. Brasil, 2016 RODRÍGUEZ, María C. Producción social del hábitat y políticas en el Área Metropolitana de Buenos Aires: historia con desencuentros. Documentos de Trabajo 49. Instituto de Investigaciones Gino Germani. 2007. Capítulos 1 e 2; p. 7 – 31 SANDRONI, Paulo. O Cepac (Certificado de Potencial Adicional de Construção) como instrumento de captação de mais-valias urbanas e financiamento de grandes projetos urbanos. In: BRASIL, Ministério das Cidades. Operações urbanas: anais do seminário Brasil-França / Ministério das Cidades. Brasil: Ministério das Cidades, 2009. SANT’ANNA, Maria Josefina Gabriel e PIO, Leopoldo Guilherme. Megaeventos esportivos, dinâmica urbana e conflitos sociais: intervenções urbanas e novo desenho para a cidade do Rio de Janeiro. In: SANTOS, Angela Moulin S. Penalva e SANT’ANNA, Maria JoseHina G. (orgs).


134

Transformações territoriais no Rio de Janeiro do século XXI. Rio de Janeiro, Gramma, 2014, pp.103-121. SANTOS, Roberto. Episódio 3 – Zona Portuária. In.: Contagem Regressiva. Direção: Luis Carlos de Alencar. Produção Executiva: Vladimir Seixas. Realização Justiça Global e Couro de Rato. Brasil, 2016. SILVA, Maria Laís Pereira da; ANDRADE, Luciana da Silva; CANEDO, Juliana. As múltiplas faces do Porto do Rio ou onde reside a maravilha: a riqueza socioespacial da moradia popular. In: Denise Pinheiro Machado; Lilian F. Vaz; Vera F. Rezende (org). (Org.). Centros urbanos: transformações e permanências. 1aed.Rio de Janeiro: Casa 8/ PROURB, 2012, v. 1, p. 135-160. TOGNOLA, J. Cooperativas y sociedad: la relación cooperativa/médio. In: Nahoum, Benjamín (org.) Las cooperativas de vivienda por ayuda mutuas uruguayas. Sevilla/Montevideo: Junta de Andalucia / Intendencia Municipal de Montevideo, 1999; p. 97 - 103. VAINER, Carlos. Planejamento Urbano Democrático no Brasil Contemporâneo. In: ERBA, Diogo Alfonso; OLIVEIRA, Fabrício Leal; NOVAIS, P. (Orgs). Cadastro Multifinalitário como instrumento de política fiscal e urbana. Rio de Janeiro, 2005. VALLADARES, Licia do Prado. A invenção da favela - Do mito de origem a favela.com. Rio de Janeiro: Ed. Fundação Getúlio Vargas, 2005. 204p VAZ, Lilian Fessler; SILVEIRA, Carmen Beatriz. Habitação e área central. III Seminário de História da cidade e do urbanismo, Universidade de São Paulo – São Carlos, 1994. XAVIER, Priscila Oliveira. Do porto ao Porto Maravilha: considerações sobre os discursos que (re)criam a cidade. Dissertação (Mestrado). Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional, Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, 2011


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.