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MONOGRAFIA EESC – Pós Graduação em Arquitetura e Urbanismo SAP 5830 – Teorias e Concepções da Modernidade Pós-graduanda: Luciana Cristina Ceron Docente: Cibele Saliba Rizek JUNHO 2008


A teoria do moderno, juntamente com a filosofia da cultura e o diagnóstico do presente fazem parte, de forma complementar e interdependente, do mesmo enfrentamento que Georg Simmel trabalha na sua aventura filosófica sobre a época do moderno, por ele constelada e intrinsecamente articulada pela economia do dinheiro. Partindo dessas principais linhas de pensamento que são trabalhadas em Simmel por Leopoldo Waizbort, esta monografia pretende dialogar “O dinheiro na cultura moderna” (1896) de Simmel1, com seu interlocutor Karl Marx, em “O Capital” Vol.1, Primeiro Livro, capítulos 1,2 e 3 2. As aspirações pretendidas estão em encontrar as dicas entre autores nesse diálogo sobre a economia do dinheiro, finamente detalhada e trabalhada por Marx e trazida como exemplos e análises por Simmel, na vida do homem moderno. Mais precisamente, com o aprofundamento da vida monetária e a centralidade do dinheiro como grande meio de valor, o olhar desta monografia está voltado para a forma contraditória e aporética que os valores qualitativos dos objetos perdem espaço para o crescente caráter racional e calculador da época moderna, expresso nos valores quantitativos. A possibilidade de fechamento deste diálogo neste texto fica na ânsia de maior e continuada leitura destes dois autores, trazendo aqui uma pequena relação pincelada de pensadores, além da base trabalhada em aula sobre o livro “As aventuras de Georg Simmel”, de Leopoldo Waizbort e o clássico “A metrópole e a vida mental” de Simmel.

Sobre a inserção do dinheiro na cultura moderna, o estudo de Simmel estrutura-se num processo continuado. Em 1889, tem-se a primeira publicação sobre, intitulada “Psicologia do Dinheiro”, sendo um pequeno texto publicado por Gustav Schmoller, e considerado por Waizbort a base que delineia seu percurso, sendo gradualmente sedimentado, explorado e direcionado através dos anos até chegar, onze anos depois, na publicação do livro “Filosofia do Dinheiro”, em 1900, onde desenvolve com amplas dimensões a sua teoria do moderno. Deste, três anos depois, tem-se o texto para uma conferência na Exposição das Cidades, em Dresden, denominado “A metrópole e a vida mental” ou “As grandes 1 Souza. Jessé e Berthold Oelze. “Simmel e a modernidade”. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2005, 2° ed. (pág. 23 - 40). 2 Marx, Karl. “O Capital”. Apresentação de Jacob Gorender. Coordenação e revisão de Paul Singer. Tradução de Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. Editora Nova Cultural. 1996. (pág. 165 - 264).

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cidades e a vida do espírito” que se apresenta como uma versão ampliada do capítulo final do livro mencionado e se torna um dos grandes clássicos das ciências sociais. Apesar do livro desenvolver, em amplas dimensões, a teoria do moderno de Simmel, não há como minimizar, na visão de Waizbort, a presença e importância da discussão sobre o diagnóstico do presente e a filosofia da cultura. Diz o autor que, somente no deslocamento constante das perspectivas que elas operam é que Simmel pode ganhar, para as suas análises, um pouco da mobilidade que é característica de seus objetos, sendo sua própria atitude uma estratégia de interpretação e conhecimento. Assim, a partir de exemplos e comparações, Simmel constela elementos característicos do objeto a ser estudado, na procura de não encontrar respostas definitivas, mas aproximações e afastamentos, relações, valorizando o processo de pesquisa sobre o objeto3. Um processo investigativo e inconcluso, cabível aos tempos modernos.

Na leitura de Simmel, o período do moderno por ele estudado, foi atingido pela economia do dinheiro, a qual gerou um ‘domínio das próprias leis das coisas’ sobre as personalidades singulares que estavam a se estruturar. Na leitura sobre Marx, poderíamos dizer que um momento histórico dominado pelas ‘leis das coisas’ seria considerado uma sociedade em que há o domínio do modo de produção capitalista, e que nesta, suas riquezas aparecem como uma ‘imensa coleção de mercadorias’, tendo como forma elementar a ‘mercadoria individual’4. Para Simmel, ao mesmo tempo em que o homem na cultura moderna se emancipava com autonomia de personalidade e liberdade de movimentos, a 3 Sobre o processo de pesquisa, Simmel trabalha em seus textos a FORMA ENSAIO, não muito aceita no meio acadêmico na época por não trazer em si a questão da verdade e se contrapor ao pensamento positivista. Sem procurar respostas únicas ou soluções, este formato se apresenta sem fim, num movimento de afastamento e aproximação do sujeito ao objeto. Essa forma ensaio permite o modo simmeliano de análise: procura de unidade entre fragmentos, anti-essencialismo, contra a fixidez e o rigor do tempo, a valorização do processo e não do conteúdo em si. 4 Em sua escrita explicativa e continuada de elementos, Marx inicia seu primeiro capítulo intitulado ‘a mercadoria’, esclarecendo que sua análise está nas sociedades em que domina o modo de produção capitalista, e considera que suas riquezas aparecem como uma ‘imensa coleção de mercadorias’, tendo como forma elementar a ‘mercadoria individual’. Neste contexto, portanto, ao analisar a mercadoria, afirma a necessidade de voltar à vista para seus guardiões, os possuidores de mercadoria, já que elas não podem por si mesmas ir ao mercado e se trocar.

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modernidade trouxe um caráter objetivado aos conteúdos práticos da vida, impondo cada vez mais seu domínio e separando tudo isso das singularidades de personalidades. Ou seja, o moderno separou e autonomizou o sujeito e o objeto, para que ambos realizassem o próprio desenvolvimento de forma mais pura e mais rica. Como exemplo, Simmel compara a posse da terra na Idade Média, de competência única da personalidade possuidora, com a já modificada possibilidade de nomear um representante do proprietário para seus cuidados no séc. X, e finalmente com a moderna possibilidade de, estando em Berlim, receber suas “encomendas de trens americanos, de hipotecas norueguesas e de minas de ouro africanas”.

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Ele descreve, como ápice desta autonomia, a criação das sociedades

anônimas de ações, onde indivíduos desconhecidos se associam objetivamente, sendo cada acionário apenas expresso por uma soma de dinheiro. Essa substituição do sujeito pelo objeto, na análise marxista, aparece na discussão sobre a troca de mercadoria6 onde os sujeitos, numa relação econômica e jurídica, se reconhecem como proprietários privados e, portanto, só existem, reciprocamente, como representantes de mercadorias ou personagens econômicos encarnados pelas pessoas como personificações das relações econômicas, como portadores das quais elas se defrontam. Nessa relação de troca de mercadorias, para Simmel, o dinheiro é o grande mediador do processo, entremeando-se entre o proprietário e a posse, como também entre a totalidade objetiva das associações e a totalidade subjetiva da personalidade, por seu caráter impessoal e não-colorido, de universal representação, diz que: “(...) o dinheiro, com sua ausência de cor e indiferença, se alça a denominador comum de todos os valores, ele se torna o mais terrível nivelador, ele corrói irremediavelmente o núcleo das coisas, sua peculiaridade, seu valor específico, sua incomparabilidade. Todas elas nadam, com o mesmo peso específico, na corrente constante e movimentada do dinheiro (...)” 7. Marx, para chegar ao caráter do dinheiro de representante universal, começa uma detalhada explicação sobre o ‘valor de uso’ e o ‘valor de troca’ das mercadorias. Ao possuidor, sua mercadoria não tem nenhum valor de uso direto, do contrário, não a levaria ao mercado. Ela tem valor de uso para outros. Para ele, ela tem diretamente apenas valor de uso de ser portadora do valor de troca 5 Simmel. 2005. Pág. 24. 6 Marx. 1996. Pág. 209. 7 Simmel, George. “As grandes cidades e a vida do espírito.” (1903). In: MANA 11(2): 577-591. 2005. Pág. 582.

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e, portanto, meio de troca. Todas as mercadorias são não-valores de uso para seus possuidores e são valores de uso para seus não-possuidores. Elas precisam, portanto, universalmente mudar de mãos. Por outro lado, as mercadorias têm de comprovarem-se como valores de uso, antes de poderem realizar-se como valores. Percebe-se que para todo possuidor de mercadoria toda mercadoria alheia funciona como equivalente particular de sua mercadoria, mas como todos os possuidores de mercadorias fazem o mesmo, nenhuma mercadoria é equivalente geral. Apenas a ação social pode fazer de uma mercadoria ser equivalente geral. Portanto, a ação social de todas as outras mercadorias exclui determinada mercadoria para nela representar universalmente seus valores. Ser equivalente geral passa, por meio do processo social, a ser a função especificamente social da mercadoria excluída. Assim ela torna-se dinheiro: o cristal monetário necessário do processo de troca. Essa forma de equivalente geral surge e desaparece com o contato social momentâneo que lhe deu vida. É atribuída alternativa e transitoriamente a esta ou àquela mercadoria. Com o desenvolvimento da troca de mercadorias ela se fixa exclusivamente em espécies particulares de mercadorias ou se cristaliza na forma dinheiro. Na medida em que o valor das mercadorias se desenvolve para vir a ser materialização do trabalho humano em geral, a forma dinheiro transpõe-se a mercadorias que por natureza são adequadas para a função social de equivalente geral, como os metais preciosos, que podem ter uma forma adequada de manifestação do valor ou materialização de trabalho humano abstrato e, portanto, pode ser apenas uma matéria cujos diversos exemplares possuam todos a mesma qualidade uniforme e são capazes de expressar variações meramente quantitativas, portanto, possa ser dividida à vontade e novamente recomposta a partir de suas partes. Assim, como qualquer outra mercadoria, o valor próprio do dinheiro é determinado pelo tempo de trabalho necessário a sua produção e se expressa naquele quantum de qualquer outra mercadoria em que está cristalizado o mesmo tempo de trabalho. A dificuldade não reside em compreender que dinheiro é mercadoria, porém como, por quê, por meio de que mercadoria é dinheiro. E essas mercadorias, ouro e prata, tais como saem das entranhas da terra, são imediatamente a encarnação direta de todo o trabalho humano. Daí a magia do dinheiro. Daí sua universalidade de representações. Para Simmel, essa ausência de caráter específico do dinheiro, que tornou possível os seus serviços imensos formando um novo fio condutor para os

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conteúdos associados de vida, exacerba a visão de infinito e liberdade. E ressalta que o dinheiro gera, nesse mundo de trocas, uma ligação extremamente forte entre os membros de um setor econômico. O homem moderno depende de um número incomparavelmente maior de fornecedores e de fontes de abastecimento do que os homens livres da antiga Germânia, como uma rede de ligações tecida por centenas de interesses monetários. Diz: “Na medida em que o dinheiro possibilita a divisão social do trabalho, ele encadeia os homens de maneira irresistível, pois agora cada um trabalha pelo outro. Somente o trabalho de todos gera a união econômica abrangente que completa os desempenhos unilaterais do indivíduo. Em uma rede mediada pelo dinheiro, podemos comparar valores de produtos singulares, ante uma situação de falta de padrão comum para as coisas de mais distintas qualidades, e podemos realizar a troca de modo rápido e fácil através de um meio que pode se converter em cada e qualquer produto e vice-versa.” No dizeres de Marx, a divisão social do trabalho torna tão unilateral seu trabalho quanto multilaterais suas necessidades. Por esse motivo, o produto serve-lhe apenas de valor de troca e, ao fazer a troca, o produtor somente obterá a forma equivalente geral, socialmente válida, como dinheiro. E o dinheiro encontra-se em bolso alheio. Para tirá-lo de lá, a mercadoria tem de ser, sobretudo, valor de uso para o possuidor do dinheiro, que o trabalho despendido nela, portanto, tenha sido despendido em forma socialmente útil ou que se confirme como elo da divisão social do trabalho. Mas a divisão do trabalho é um organismo de produção que se desenvolveu naturalmente e cujos fios se teceram e continuam a tecer-se às costas dos produtores de mercadorias. Nesta lógica de mercado, onde a mercadoria ama o dinheiro, os possuidores de mercadorias descobrem que a mesma divisão de trabalho (que os torna produtores privados independentes) torna independentes deles mesmos o processo social de produção e suas relações dentro desse processo, e que a independência

recíproca

das

pessoas

se

complementa

num

sistema

de

dependência reificada universal. Com o correr do tempo, torna-se necessário, portanto, que parte do produto do trabalho seja intencionalmente feita para a troca. A partir desse momento, consolida-se, por um lado, a separação entre a utilidade das coisas para as necessidades imediatas e sua utilidade para a troca. Seu valor de uso dissocia-se de seu valor de troca. Produz-se o valor de uso pensando no seu

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valor de troca dentro da economia, ou seja, produz-se com um pensamento externo, já com capacidade de comparação e lógica comum a vários. Essa ‘lógica comum a vários’ está presente em Simmel ao discorrer sobre os infinitos laços entre os homens modernos que garantem certa igualdade de diretrizes e que contribuiu de maneira decisiva para a representação de uma idéia única cabível a todos. O dinheiro teria feito surgir uma relação de proporção radicalmente nova entre liberdade e compromisso e, o indivíduo moderno, entrelaçado nesta grande rede de fornecedores, está inevitavelmente reunificado, ao mesmo tempo em que, por outro lado, adquire um espaço extraordinariamente vasto para a individualidade e para o sentimento de independência. Esclarece Simmel que esse individualismo moderno não está relacionado pela quantidade de relações que o indivíduo executa cotidianamente. É certo que o homem das épocas econômicas anteriores encontra-se na dependência de muito poucos homens, mas sendo estes bem definidos e impermutáveis. Esse individualismo, que não foi criado pelo isolamento que distancia os homens, vem da forma específica de relacionar entre si, focado na objetividade e troca financeira, baseado no anonimato e desinteresse pela individualidade do outro, provocando assim um individualismo no meio da multidão. Há uma distinção mais pura entre a ação econômica objetiva do homem e a sua coloração individual, o seu próprio ego, que agora se afasta das relações de ofício e quase se retira em direção às suas esferas mais íntimas. Em Marx, a relação social dos produtores com o trabalho (relações de ofício) é reflexo do caráter fetichista da mercadoria que, por transformar as características específicas do trabalho humano em características objetivas dos próprios produtos trabalhado, gera uma relação social existente fora dos produtores, e sim entre objetos. Neste jogo, como os produtores somente entram em contato social mediante a troca de seus produtos de trabalho, as características especificamente sociais de seus trabalhos privados só aparecem dentro dessa troca. Por isso, aos produtores aparecem as relações sociais entre seus trabalhos privados como o que são e não como relações diretamente sociais entre pessoas em seus próprios trabalhos. São relações reificadas entre as pessoas e relações sociais entre as coisas. Neste contexto de ação econômica objetiva do homem, Simmel afirma que as correntes da cultura moderna deságuam em duas direções aparentemente opostas: por um lado, na nivelação e compensação, no estabelecimento de círculos sociais cada vez mais abrangentes por meio de ligações com o mais

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remoto sob condições iguais; por outro lado, no destaque do mais individual, na independência da pessoa, na autonomia da formação dela. E ambas as direções são transportadas pela economia do dinheiro que possibilita, por um lado, um interesse comum, um meio de relacionamento e de comunicação totalmente universal e efetivo no mesmo nível e em todos os lugares; e por outro lado, uma reserva maximizada, permitindo a individualização e a liberdade8. A expressão e a abstração do desempenho por meio do dinheiro, em Simmel, eram percebidas como instrumento e apoio da liberdade pessoal. Como exemplo descreve a lei romana da “carta magna da liberdade pessoal”, em que o devedor de um serviço definido poderia, por meio de pagamento em dinheiro, quitar sua dívida, mesmo contra a vontade dos credores. A substituição do desempenho pessoal pelo pagamento em dinheiro liberta, de repente, a personalidade da cadeia específica imposta pela obrigação de trabalho: agora não era mais a atividade concreta pessoal que o outro podia reivindicar, mas, sim, somente o resultado impessoal desta atividade. No pagamento em dinheiro, a personalidade não se dá mais a si mesma, mas sim a algo totalmente abstrato e livre de toda relação interna com o indivíduo. Para Marx, uma dívida ou um serviço, por estarem numa sociedade capitalista, são como tudo mais, mercadoria. E, no mundo das mercadorias, uma espécie é tão boa quanto à outra, se o seu valor de troca for igual, pois não existe nenhuma diferença ou distinção entre coisas de valores iguais. Já, como valores de uso, as mercadorias são, antes de mais nada, de diferentes qualidades, mas como valores de troca, só podem ser de quantidade diferente, não contendo, portanto, nenhum átomo de valor de uso. Se o pagamento em dinheiro é algo totalmente abstrato, deve-se deixar de lado o valor de uso dos corpos das mercadorias (valor qualitativo), restando a elas apenas uma propriedade, que é a de serem produtos do trabalho humano. Entretanto, o produto do trabalho também já se transformou, pois ao se abstrair seu valor de uso, abstraem-se também os componentes e formas corpóreas que fazem dele valor de uso, apagando todas as suas qualidades sensoriais.

8 Na cidade moderna, a idéia de liberdade advém de forma contraditória e conflituosa ao homem moderno. Este, ao mesmo tempo em que possui sua independência, apresenta o seu pertencimento ao mundo em que está inserido, dependendo de toda a rede criada pela divisão do trabalho, perdendo assim muitas vezes seu caráter qualitativo de vida. Quando isso é percebido, é visto como promessa, muitas vezes esse homem moderno cria um estilo de vida para sobreviver e admitir essa característica da vida modernidade.

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Ao desaparecer o caráter útil dos produtos do trabalho, desaparece o caráter útil dos trabalhos neles representados, e desaparecem também, portanto, as diferentes formas concretas desses trabalhos, que deixam de diferenciar-se um do outro para reduzir-se em sua totalidade a igual trabalho humano, a trabalho humano abstrato9. Porém, Simmel alerta que a substituição do desempenho pelo dinheiro pode provocar opressão, no momento em que não nos damos conta, que aos nos livrarmos dos deveres através da compra, existem muitas vezes direitos e significações mais sutis que abandonamos junto com eles. O mesmo se observa no processo de venda. Por um lado, sentimos a transformação de uma posse em dinheiro como se fosse uma libertação, ao podermos dar ao valor qualquer forma desejada, enquanto este era preso, anteriormente, a uma forma definida. Mas, muitas vezes, essa tal liberdade significa ao mesmo tempo uma ausência de conteúdos da vida e um afrouxamento da sua substância: cada vez mais coisas podem ser compradas com dinheiro, alcançadas pelo dinheiro, apresentando-se este, consequentemente, como pólo imóvel no fugaz das aparências, e por causa disso não levamos em consideração, frequentemente, que os objetos da transação econômica ainda têm aspectos que não podem ser expressos em dinheiro. Acredita-se muito facilmente que se possui no dinheiro o equivalente exato e total do objeto. Mas aí está, para Simmel, um motivo profundo para o caráter problemático, a inquietação e insatisfação da nossa época: o lado qualitativo dos objetos perde a sua importância psicológica por causa da economia monetária. O valor em dinheiro, continuamente calculado, apresenta-se assim como o único valor vigente. O homem moderno vive passando, sem perceber, cada vez mais rápido, pelo significado específico, não-qualificável, das coisas. Sente que o núcleo e o sentido da vida escapam, as satisfações definitivas realizam-se cada vez menos, que os esforços não valem à pena. Diz:

9 Marx trabalha no capítulo I o fetichismo que adere sob produtos de trabalho humano, tão logo são produzidos como mercadoria e, portanto, possuem quantidade de trabalho que se igualam objetivamente na forma de valor dos produtos de trabalho. Em suas palavras: “O misterioso da forma mercadoria consiste, portanto, simplesmente no fato de que ela reflete aos homens as características sociais do seu próprio trabalho como características objetivas dos próprios produtos de trabalho, como propriedades naturais sociais dessas coisas e, por isso, também refletem a relação social dos produtores com o trabalho total como uma relação social existente fora deles, entre objetos.”.

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“Não quero afirmar que a nossa época já se encontra inteiramente numa tal situação psíquica. Mas, lá onde existe uma aproximação daquele estado de coisas, temos, com certeza, uma conexão com a subordinação dos valores qualitativos pelos valores quantitativos, pelo interesse a um mero mais ou menos quantitativo. Só os primeiros satisfazem os nossos desejos de maneira definitiva.”

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De fato, as coisas em si são desvalorizadas ao se equivalerem com o meio de troca valido para qualquer coisa. Para Simmel, o dinheiro é vulgar porque é equivalente para tudo e para todos, e somente o individual é nobre; o que corresponde a muitas coisas corresponde ao mais baixo entre elas e reduz, por isso, também o mais alto para o nível mais baixo. Esta é a tragédia de cada nivelação, dado que ela conduz o superior ao lugar igualitário do inferior. O superior sempre pode descer, mas quase nunca o inferior se eleva até o elemento mais alto. Assim, o valor mais específico das coisas fica prejudicado pela possibilidade constante da transformação do mais heterogêneo em dinheiro. Em Marx, para compreender esse nivelamento de valores qualitativos e entender que ‘coisas que não tem valor podem ter preço’, é necessário introduzir, além das questões trabalhadas anteriormente, o papel do dinheiro e o preço da mercadoria. Voltemos ao ouro11 e prata como medida de valor e instrumentos de equivalente geral. A primeira função do ouro é representar os valores das mercadorias, qualitativamente iguais e quantitativamente comparáveis. Assim, o ouro se torna inicialmente dinheiro. Porém, não é por meio do dinheiro que as mercadorias se tornam comensuráveis. Dinheiro, como medida de valor, não é mercadoria, mas sim a forma necessária de manifestação da medida imanente do valor das mercadorias: o tempo de trabalho. Assim, a expressão de valor de uma mercadoria em ouro é sua forma de dinheiro ou seu preço.

10 Simmel. 2005. Pág. 31. 11 Mais para frente no texto, Marx questiona a possibilidade de substituição do ouro, como mercadoria e equivalente de valor, por emissão de papel moeda: “Pergunta-se, finalmente, por que o ouro pode ser substituído por meros signos de si mesmo, sem valor? Porém, como já foi visto, o ouro é somente substituível na medida em que, em sua função como moeda ou como meio circulante, é isolado ou tornado autônomo. (...) As peças de ouro são simples moedas ou meio circulante somente enquanto efetivamente circulam. O que, porém, não vale para uma moeda individual de ouro, é aplicável à massa mínima de ouro substituível por moeda papel. Esta reside constantemente na esfera de circulação, funciona continuamente como meio circulante e existe, portanto, exclusivamente como portador dessa função.”

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Dinheiro, por sua vez, não tem preço. Para participar dessa forma relativa unitária das outras mercadorias, teria de ser relacionado a si mesmo, como seu próprio equivalente. O preço ou a forma monetária das mercadorias, como sua forma valor em geral, é distinta de sua forma corpórea real e tangível, uma forma somente ideal ou imaginária. Em sua função de medida de valor, o dinheiro serve, portanto, como dinheiro apenas imaginário ou ideal. Embora apenas dinheiro imaginário sirva para a função de medida do valor, o preço depende totalmente do material monetário real. Assim, dinheiro exerce duas funções inteiramente diferentes: como medida de valor, serve para transformar

os

valores

das

mais

variadas

mercadorias

em

preços,

em

quantidades imaginárias de ouro; e como padrão dos preços, mede essas quantidades de ouro. Com a transformação da grandeza de valor em preço, essa relação necessária aparece como relação de troca de uma mercadoria com a mercadoria monetária, que existe fora dela. A mercadoria é realmente valor de uso, a sua existência como valor aparece apenas idealmente no preço. A possibilidade de uma incongruência quantitativa ou divergência entre o preço e a grandeza de valor é, portanto, inerente à própria forma preço. Isso não é um defeito dessa forma, mas torna-a, ao contrário, a forma adequada a um modo de produção em que a regra somente pode impor-se como lei cega da média à falta de qualquer regra. A forma preço, porém, não só admite a possibilidade de incongruência quantitativa entre grandeza de valor e preço, isto é, entre a grandeza de valor e sua própria expressão monetária, mas pode encerrar uma contradição qualitativa, de modo que o preço deixa de todo de ser expressão de valor, embora dinheiro seja apenas a forma valor das mercadorias. Coisas que, em si e para si, não são mercadorias, como por exemplo, consciência, honra etc, podem ser postas à venda por dinheiro pelos seus possuidores e assim receber, por meio de seu preço, a forma mercadoria. Por isso, uma coisa pode, formalmente, ter um preço, sem ter um valor. A expressão de preço torna-se aqui imaginária, como certas grandezas da Matemática. Por outro lado, a forma imaginária de preço, como, por exemplo, o preço da terra não cultivada, que não tem valor pois nela não está objetivado trabalho humano, pode encerrar uma relação real de valor ou uma relação derivada dela. Essa possibilidade de comprar toda e qualquer mercadoria a partir de seu preço, independente de seu valor é vista por Simmel na arrogância blasé das classes que têm dinheiro, analisando esta característica social como um reflexo psicológico, já que possuem o instrumento que permite comprar o mais variado e

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o mais especial. Diz ele que a análise de escolha do objeto desejado (casaco, trigo, terras, consciência, honra, etc) parte cada vez mais pelo valor quantitativo, tendo um atrofiamento da sensibilidade sutil sobre o valor qualitativo das coisas. Diz Simmel: “(...), pois exatamente isso é a arrogância blasé: não reagir mais as diferenças

e

propriedades

específicas

dos

objetos

com

uma

graduação

correspondente da sensação, mas sim senti-las de maneira nivelada e, por isso, com uma coloração abafada sem atitudes significantes de contrastes.”

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O dinheiro, quanto mais desenvolve seu caráter nivelador com sua crescente aculturação, tanto mais perde sua importância para certas relações elevadas. Simmel traz como exemplo, a sociedade primitiva, onde se podia pagar com dinheiro a pena de um assassinato, significando, por um lado, a ainda falta de valor da individualidade, e por outro, ainda um certo significado qualitativo no dinheiro. No processo histórico, torna-se cada vez mais impossível pagar a pena de um assassinato com dinheiro a partir da crescente diferenciação do homem e a indiferenciação progressiva do dinheiro. Para Marx, no processo de circulação da troca, o dinheiro faz parte da metamorfose global de uma mercadoria, que consiste em dois movimentos opostos e complementares, como em um ciclo: “Primeiro, o dinheiro defronta-se à mercadoria como sua figura de valor, que no outro lado, no bolso alheio, possui realidade reificadamente contundente. Assim, ao possuidor de mercadorias se defronta um possuidor de dinheiro. Tão logo a mercadoria se transforma em dinheiro, torna-se este último à forma equivalente transitória dela, cujo valor ou conteúdo de uso existe desse lado, nos corpos das outras mercadorias. Como ponto final de primeira transformação da mercadoria, o dinheiro é ao mesmo tempo ponto de partida da segunda. Assim, o vendedor do primeiro ato torna-se comprador, no segundo, onde com ele se defronta um terceiro possuidor de mercadorias, como vendedor.”

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Esse processo de circulação, esclarece Marx, produz uma duplicação da mercadoria em mercadoria e dinheiro, sendo uma antítese externa, dentro da qual elas representam sua antítese imanente entre valor de uso e valor de troca, ou

12 Simmel. 2005. Pág. 32. 13 Marx. 1996. Pág. 234.

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seja, a mercadoria é realmente valor de uso (qualitativo) e a sua existência como valor

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aparece apenas idealmente no preço (quantitativo).

Dessa forma, como mediador da circulação das mercadorias, o dinheiro assume a função do meio circulante e, nesse movimento, sofre o distanciamento constante do seu ponto de partida e o não retorno a esse mesmo ponto. Ou seja, o dinheiro afasta as mercadorias constantemente da esfera de circulação, ao colocarse continuamente em seus lugares na circulação e, com isso, distanciando-se de seu próprio ponto de partida. Embora o movimento do dinheiro seja, portanto, apenas a expressão da circulação de mercadorias, a circulação de mercadorias aparece, ao contrário, apenas como resultado do movimento do dinheiro15. Para Simmel, o aumento crescente do círculo de equivalentes do dinheiro, agravado por este contínuo e acelerado movimento, traz sua erosão e deteriorização em relação ao caráter qualitativo, e resulta na conseqüência da dominação do sistema monetário: não se percebe que o dinheiro é meramente meio para obter outros bens; ele torna-se alvo fim. Sobre, diz Marx: “Vendem-se mercadorias não para comprar mercadorias, mas para substituir a forma mercadoria pela forma dinheiro. De simples intermediação do metabolismo, essa mudança de forma torna-se fim em si mesma. A figura alienada da mercadoria é impedida de funcionar como sua figura absolutamente

14 No começo do texto Marx divide entre valor de uso e valor de troca. O valor de uso está relacionado à utilidade que aquele objeto possui para seu possuidor, ou seja, um valor que não o caracteriza como mercadoria e, portanto não o coloca no processo de troca de mercadorias. Mas, no momento em que um objeto tem interesse de uso para outra pessoa (ou comprador) ele adquire um valor de troca, com o qual entrará no crescente círculo de trocas e equivalências. Diz Marx: “Como valores de uso, as mercadorias são, antes de mais nada, de diferente qualidade, como valores de troca só podem ser de quantidade diferente, não contendo, portanto, nenhum átomo de valor de uso.” E, ao continuar sua análise, resume o termo ‘valor de troca’ para somente o termo ‘valor’, dizendo: “Abstraindo-se agora, realmente, o valor de uso dos produtos do trabalho obtém-se seu valor total como há pouco ele foi definido. O que há de comum, que se revela na relação de troca ou valor de troca da mercadoria, é, portanto, seu valor. O prosseguimento da investigação nos trará de volta ao valor de troca, como a maneira necessária de expressão ou forma de manifestação do valor, o qual deve ser, por agora, considerado independentemente dessa forma.” 15 Leopoldo trabalha a idéia em Simmel, do movimento incessante da vida moderna com o movimento do dinheiro, que nunca para, está sempre sendo substituído por uma mercadoria, no perpetumm móbile, que será trabalhado mais para frente neste texto.

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alienável ou como sua forma dinheiro apenas evanescente. O dinheiro petrifica-se, então, em tesouro e o vendedor de mercadorias torna-se entesourador.”

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O entesourador, com a possibilidade de manter a mercadoria como valor de troca ou o valor de troca como mercadoria, desperta a cobiça pelo ouro. Com a ampliação da circulação de mercadorias, aumenta o poder do dinheiro, da forma sempre disponível e absolutamente social de riqueza. Como exemplo, Marx cita Colombo, em carta da Jamaica, de 1503: “O ouro é uma coisa maravilhosa! Quem o possui é senhor de tudo o que deseja. Com o ouro pode-se até fazer entrar almas no paraíso.” Para Simmel, a maioria dos homens modernos tem o ganho do dinheiro como motivação mais próxima, formando-se a idéia que toda a felicidade e satisfação são necessariamente ligadas à posse de certa forma de dinheiro. Mas, quando o alvo é alcançado, surgem inúmeras vezes um aborrecimento e uma frustração, dando exemplo o caso de empresários ao se aposentarem. Diz ele: “Quando as circunstâncias que concentram a consciência valorativa no dinheiro não existem mais, o dinheiro começa a revelar o seu caráter verdadeiro como puro meio, o qual se torna inútil e insatisfatório logo que a vida depende, exclusivamente, dele. O dinheiro é, propriamente, nada mais que uma ponte aos valores definitivos, e não podemos morar numa ponte.”

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Esse caráter psíquico de frustração advindo do desejo ilimitado de tudo poder possuir, também está presente nos dizeres de Marx: “O impulso para entesourar é por natureza sem limite. Qualitativamente ou segundo a sua forma, o dinheiro é ilimitado, isto é, representante geral da riqueza material, pois pode trocar-se diretamente por qualquer mercadoria. Porém, ao mesmo tempo, toda a soma efetiva de dinheiro é quantitativamente limitada, portanto também apenas meio de compra de eficácia limitada. Essa contradição entre a limitação quantitativa e o caráter qualitativamente ilimitado do dinheiro impulsiona incessantemente o entesourador ao trabalho de Sísifo da acumulação. Acontece a ele como ao conquistador do mundo, que com cada novo país somente conquista uma nova fronteira.”

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16 Marx. 1996. Pág. 250. 17 Simmel. 2005. Pág. 33. 18 Marx. 1996. Pág. 253.

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Para Simmel, a sobreposição dos fins pelos meios é um traço essencial e um dos problemas principais de toda cultura elevada19, pois nela os propósitos dos homens tornam-se, passo a passo, tão complicados, difíceis e remotos que eles precisam de uma construção composta de meios e instrumentos múltiplos, de um desvio composto de muitos degraus e passos preparatórios. Um processo com uma multiplicidade de meios que se sustentam reciprocamente, levando ao final a um alvo definitivo. Mas, cada vez mais próximo está o perigo de perder a si mesmo neste labirinto de meios e esquecer, com isso, a finalidade última. Dessa maneira, formou-se a rigidez de todos os costumes externos, que antigamente eram nada mais do que meios para fins sociais definidos. Agora, os meios persistem como valores autônomos, enquanto aqueles fins caíram no esquecimento e tornaram-se ilusórios. Diz: “O tempo moderno e, especialmente, como parece, a situação global vivem um sentimento de tensão, de esperança e de pressão não-solucionado como se ainda fossem chegar à coisa principal, o definitivo, o sentido próprio e o ponto central da vida e das coisas. Este sentimento resulta, certamente, do supercrescimento dos meios e do efeito constrangedor da nossa técnica complicada de viver, de construir meios sobre meios até chegarmos às suas finalidades originais. Estas finalidades originais deslocam-se, cada vez mais, do horizonte de consciência e, finalmente, afundam-se sob este.”

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Em Marx, aquele entesourador, a procura de ilimitadas posses que o dinheiro lhe traz, tem como finalidade próxima, o acumulo de riquezas, e como finalidade última, um vago desejo de liberdade de compra. Mas, diz Marx: “Para reter o ouro como dinheiro e, portanto, como elemento de entesouramento, é necessário impedi-lo de circular ou de dissolver-se como meio

19 As culturas mais desenvolvidas são caracterizadas por cadeias teleológicas alongadas, isto é, capacidade de possuir diversos meios para alcançar o fim desejado, obtendo assim expressões culturais ricas e complexas. No período moderno, com a forte influência da economia monetária, temos um alongamento esgarçado da cadeia teleológica, uma ampliação do fetichismo da mercadoria e a preponderância do objeto sobre o sujeito. Simmel denomina isto como TRAGÉDIA DA CULTURA, onde não se produz mais para o enriquecimento do próprio sujeito, mas sim para a aquisição do seu meio, no caso mais exemplificado aqui, o dinheiro. Na visão de Simmel, o sujeito, ao analisar o objeto, está fazendo ao mesmo tempo uma análise de suas referências, enriquecendo assim sua subjetividade. Na realidade moderna, por finalizar seu processo nos meios, a Cultura – fusão momentânea do sujeito e o objeto – não é mais possível, não havendo mais o ‘cultivo’ do sujeito, não havendo mais a possibilidade de BILDUNG. 20 Simmel. 2005. Pág. 34.

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de compra, em artigos de consumo. O entesourador sacrifica, por isso, ao fetiche do ouro os seus prazeres da carne. Abraça com seriedade o evangelho da abstenção. Por outro lado, somente pode subtrair da circulação em dinheiro o que a ela incorpora em mercadoria. Quanto mais ele produz, tanto mais pode vender. Laboriosidade, poupança e avareza são, portanto, suas virtudes cardeais, vender muito e comprar pouco são o resumo de sua economia política.” Nunca antes um objeto de valor instrumental, como o dinheiro, tinha assumido o papel de um fim satisfatório por si mesmo com tanta força, tanta extensão e tanta influência na situação geral da vida. Para Simmel, sua posição central advém pelo crescimento enorme do círculo de objetos alcançáveis por ele e irradia sua influência em vários traços característicos da vida moderna. O dinheiro abriu a chance de satisfação do homem singular, dando a possibilidade de ganhar, quase com um golpe só, tudo que é desejável. Coloca-se como um mecanismo facilitador de aproximação entre o homem e os seus desejos. Ao ser alcançado, além do objeto de desejo inicial, inúmeras outras coisas tornam-se acessíveis, crescendo a ilusão de que todo o resto seria mais fácil de atingir que antes. Assim, com a aproximação da felicidade, aumenta consequentemente o desejo dela, pois o que acende a chama da paixão e da saudade máxima é o que não é possuído e cuja posse parece aproximar-se cada vez mais – como acontece por meio da organização monetária. Diz Simmel: “O desejo enorme do homem moderno ser feliz (...) alimenta-se, obviamente, do poder e do sucesso do dinheiro. A ‘aspiração’ especificamente moderna de classes sociais e de indivíduos (...) só podia crescer porque existe, agora, uma palavra-chave na qual se concentra tudo que é desejável. Existe um ponto central que só precisamos escolher, como se fosse uma chave mágica num conto de fadas, para que alcancemos todos os prazeres da vida.”

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Isto é, o dinheiro está sempre, potencialmente, como objeto alternativo, dando a motivação continuada do homem moderno de viver. Disto vem a inquietude, a febre e a falta de pausa na vida moderna. Vida propulsionada pelo motor desenfreado do dinheiro que torna a máquina humana um perpetuum móbile Em Marx, a idéia já trabalhada de ciclo contínuo das duas metamorfoses contrapostas da mercadoria ou, como diz, a rotação fluida de compra e venda, revela-se no infatigável curso do dinheiro, também trazendo ao conceito de perpetuum móbile do dinheiro na sua função de circulação.

21 Simmel. 2005. Pág. 35.

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Para Simmel, da mesma forma que pela primeira vez a Igreja Cristã coloca a devoção em Deus uma atitude da alma contínua (enquanto antes era em determinados momentos e lugares), o desejo do dinheiro é o estado permanente da alma na economia de dinheiro completamente instalada. Essa queixa comum do dinheiro ser o Deus da época moderna é cabível pela presença da reconciliação e da reunião de todas as heterogeneidades em ambos, resultando a paz, a segurança, a riqueza como características psicológicas semelhantes. Aquela segurança e tranqüilidade que a posse de dinheiro faz sentir, aquela convicção de possuir com ele o centro de valores advém da já comentada centralidade na equivalência de valores que o dinheiro representa. Ou seja, quanto mais se torna o centro onde as coisas mais distintas se encontram, mais o dinheiro concede uma confiança na sua onipotência. Muitos desses traços característicos do homem moderno advêm do caráter da

economia

monetária

em

exigir

operações

matemáticas

contínuas

no

comportamento social do dia-a-dia, que fez a vida de muitos ser preenchida por tais operações como taxar, estimar, calcular, reduzir valores qualitativos a valores quantitativos. Isso contribui para o caráter racional e calculador da época moderna em contraposição as épocas anteriores que tinham o caráter mais impulsivo, mais emocional. A invasão da estimação monetária tinha de implantar nos conteúdos de vida uma exatidão e uma definição muito maiores, as quais ensinavam a definir e especificar cada valor até as suas diferenças mínimas quantitativas. Para Simmel, a exatidão, a nitidez, o rigor das relações econômicas da vida que influenciam também outros conteúdos progridem com a ampliação da economia monetária, mas não promovem um estilo generoso na condução da vida. Esta pontualidade não se impõe nas relações internas do homem no campo da ética. Pelo contrário, o dinheiro seduz a certa leveza e irresponsabilidade do agir, já que seu caráter indiferente e objetivo oferece, sem distinção, não só a ação mais nobre como também a ação mais baixa. O dinheiro não deixa ver nada de sua origem, enquanto outras posses e situações são marcadas por suas origens, sejam elas do tipo factual ou do tipo psicológico. Diz: “Quando uma ação produtiva desemboca no oceano imenso de dinheiro, então nunca mais pode ser reconhecida. As saídas deste oceano não contêm mais nada de suas entradas.”

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22 Simmel. 2005. Pág. 38.

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Sobre sua origem, Marx trabalha o dinheiro como a figura alienada de todas as outras mercadorias, ou seja, a mercadoria absolutamente alienável. Ele lê todos os preços ao revés e se reflete, assim, em todos os corpos das mercadorias como o material ofertado à sua própria conversão em mercadoria. E, como a mercadoria desaparece ao converter-se em dinheiro, não se reconhece mais no dinheiro como ele chegou às mãos de seu possuidor ou o que se transformou nele, qualquer que seja sua origem. Se por um lado representa mercadoria vendida, por outro representa mercadorias compráveis. Diz: “Como ao dinheiro não se pode notar o que se transformou nele, convertese tudo, mercadoria ou não, em dinheiro. Tudo se torna vendável e comprável. A circulação torna-se a grande retorta social, na qual lança-se tudo, para que volte como cristal monetário. E não escapam dessa alquimia nem mesmo os ossos dos santos nem as res sacrosanctae, extra commercium hominum. Como no dinheiro é apagada toda diferença qualitativa entre as mercadorias, ele apaga por sua vez, todas as diferenças. O dinheiro mesmo, porém, é uma mercadoria, uma coisa externa, que pode converter-se em propriedade privada de qualquer um. O poder social torna-se, assim, poder privado da pessoa privada. A sociedade antiga o denuncia, portanto, como elemento dissolvente de sua ordem econômica e moral. A moderna sociedade, que já em seus anos de infância arranca Plutão pelos cabelos das entranhas da Terra, saúda no Graal de ouro a resplandecente encarnação de seu mais autêntico princípio de vida.”23

Esse diálogo do relacionamento da economia monetária com os traços mais profundos da cultura moderna nos traz inúmeros meandros e exemplos de diálogo entre a teoria de Marx e a análise filosófica de Simmel. Neste curto processo de análise, a meu ver, fica clara a importância da economia monetária na vida do homem moderno, transformando tudo que possui valor em mercadoria, e toda mercadoria em dinheiro: um objeto de valor instrumental nivelador, portanto, desqualificador de todas as diferenças. Ao mesmo tempo, e não menos inconcluso e aporético, o dinheiro, como mediador universal de valor, traz a personalidade do homem moderno a capacidade de desenvolvimento, mobilidade e habilidade.

23 Marx. 1996. Pág. 252.

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Para Simmel, o homem moderno está desistindo de verdades absolutas que estejam fora de toda evolução e abrindo mão, com prazer, de transformações, do crescimento e da crítica, contínuos do nosso conhecimento. Para ele, a personalidade no tempo moderno, pode flutuar por meio de uma variedade múltipla de situações de vida, espelhando em si mesmo, por assim dizer, o panta rei (fluxo total) das coisas. Porém, a este grande processo heterogêneo da vida incorpora-se o domínio do dinheiro, sustentando este processo e sendo sustentado por ele. E cada vez mais coisas que parecem estar fora do alcance do intercâmbio monetário são arrasadas por sua corrente incessante. Diz: “Podemos aprender da consciência do dinheiro – em diferença à análise do materialismo

histórico

que

coloca

o

processo

cultural

inteiramente

na

dependência das condições econômicas – que a formação da vida econômica influencia, profundamente, a situação psíquica e cultural de uma época, mas esta formação recebe, por outro lado, o seu caráter das grandes correntes homogêneas da vida histórica, cujas forças e cujos motivos são, todavia, segredos divinos. Se estas igualdades formais e estas conexões profundas mostram a economia do dinheiro como um ramo da mesma raiz que alimenta todas as flores da nossa cultura, então podemos tirar daqui um consolo para aquelas queixas sobre os estragos feitos pela economia monetária e sobre a auri sacra fame que são proferidas, especialmente, pelos protagonistas dos bens ideais e agradáveis.”

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24 Simmel. 2005. Pág. 39.

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