EM DEFESA DA VIDA, A EXTREMA DIREITA PRECISA SER DERROTADA!
Boa tarde a todos e a todas.
Trago a esta tribuna, neste meu primeiro grande expediente do novo mandato, este tema que julgo fundamental na conjuntura política do País.
No Brasil e no mundo, nós observamos a organização e o crescimento de uma extrema direita que surgiu como uma alternativa à crise das democracias liberais. É assim que eles se apresentam, com uma roupagem antissistema, muito embora sejam, na verdade, a representação mais apodrecida do nosso sistema político e econômico.
No Brasil, tivemos essa experiência com o governo Bolsonaro. Nos Estados Unidos, foi o governo Trump. Ambos foram derrotados em países onde é muito raro que um presidente no exercício do mandato não consiga se reeleger.
Mas essa força política da extrema direita se expressa no mundo inteiro. Na Itália, com o governo da Giorgia Meloni, cujo partido, Irmãos da Itália, é descendente direto do partido fascista de Mussolini. A França viu o crescimento da Frente Nacional, da Marine Le Pen, que
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Luciana Genro no Grande Expediente - 27/04/2023 Assembleia Legislativa
foi ao segundo turno contra o Macron. Em Portugal, a extrema direta é representada pelo partido Chega, que tem a terceira maior bancada do Parlamento. Até na Alemanha, tão firme em combater a extrema direita após os horrores do regime nazista, assistimos ao crescimento de um partido de extrema direita chamado Alternativa para a Alemanha.
Na Europa e nos Estados Unidos, um dos pontos centrais da extrema direita é o discurso anti-imigração, que mira em todos os povos do sul global que precisam migrar em busca de melhores oportunidades ou para fugir de perseguições e guerras.
Aqui na América Latina, a extrema direita também coloca a sua cabeça para fora. Foi ao segundo turno no Chile com o candidato Kast, derrotado, felizmente, pelo atual presidente Boric. Estão no governo em El Salvador, onde o presidente Bukele se comporta como um ditador, controlando totalmente as instituições, inclusive a Suprema Corte. E estão tentando chegar ao poder na Argentina com o discurso antipolítica do economista Javier Milei.
Aqui no Brasil, esse fenômeno da extrema direita expressou-se no governo Bolsonaro. Uma figura da baixa política, que passou a vida inteira como um inexpressivo deputado que ninguém levava a sério, que foi um mau militar, suspeito de planejar atentados a bomba, e que incrivelmente conseguiu se apresentar à população como alguém contrário a tudo que está aí.
Mas para além de Bolsonaro, é preciso falar sobre a ideologia representada por Bolsonaro, porque ele foi derrotado em uma eleição muito dura, por uma diferença muito apertada de votos, mas a ideologia da extrema direita segue viva e atuante. E ela se agrega em torno de algumas pautas, que são as pautas que mobilizam a extrema direita no mundo inteiro e no Brasil também.
Aqui, especificamente, temos algumas que são muito relevantes para o debate político, como o armamentismo, o apelo às armas.
Um estudo do Instituto Sou da Paz aponta que, em 2020, o País teve 17,2 mil internações devido a ferimentos causados por arma de fogo, o que gerou um custo de 37,8 milhões ao SUS. O Anuário Brasileiro de Segurança Pública informa que o Brasil tem 4,4 milhões de ar-
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mas em acervos particulares. Só no governo Bolsonaro, mais de 40 atos foram publicados para flexibilizar a aquisição de armas no País. Os principais beneficiados foram os colecionadores, atiradores e caçadores, os chamados CACs, com 673 mil registros em 2022, contra 515 mil, em 2021.
Outras pautas são o combate ao que eles chamam de politicamente correto, ou seja, o combate contra a ampliação dos direitos civis e das liberdades individuais, a oposição aos direitos das mulheres, dos indígenas, da negritude e da população LGBTQIA+, o desejo de continuarem fazendo piadas e discursos racistas, misóginos, LGBTfóbicos, como se a linguagem não tivesse nenhuma influência na violência que esses grupos vivenciam.
E vejam que, apesar desse verdadeiro mi-mi-mi que eles fazem contra os direitos humanos, essas lutas seguem avançando. Afinal, a LGBTfobia foi criminalizada em pleno governo Bolsonaro. A verdade é que a extrema direita de hoje é descendente direta dos mesmos que, no passado, eram contra a abolição da escravização, eram contra as mulheres terem direito a votar e serem votadas. Mas as mulheres não vão voltar para a cozinha, a não ser que queiram cozinhar mesmo, a
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negritude não vai voltar para a senzala e as LGBTs não vão voltar para o armário. Eles não passarão.
A outra pauta da extrema direita é o negacionismo científico, que vimos muito bem na pandemia, com 700 mil mortos, enquanto a extrema direita fazia propaganda de remédio para vermes e para malária como se fossem resolver o problema, sem nenhuma comprovação científica. Ao mesmo tempo, boicotaram a vacina, essa, sim, cientificamente comprovada e eficaz. E, agora, muitos não estão vacinando os seus filhos contra o Covid por acharem que a vacina faz mal, quando o que mata é o vírus. Muitos não estão vacinando os seus filhos para as doenças que já estavam erradicadas no País, também nessa mesma ideologia anticiência.
Outra pauta é o negacionismo climático, que não reconhece o problema do aquecimento global e refuta qualquer política de preservação do meio ambiente. E neste sentido, a extrema direita é uma ameaça ao planeta, e vai na contramão até mesmo das práticas capitalistas mais avançadas, que já reconhecem a necessidade de se preservar o meio ambiente, mesmo que esse discurso seja feito com vistas a ganhos financeiros.
O ataque aos jornalistas e ao jornalismo profissional é outra pauta da extrema direita, porque, afinal, são eles que dizem cotidianamente que os veículos de mídia seriam dominados pela esquerda. Vejam só, até a Rede Globo é acusada de ser comunista por essa extrema direita completamente fora da realidade. É uma narrativa fantasiosa, que não para em pé. Para eles, na verdade, a única informação válida é aquela publicada por sites obscuros, as fake news que eles organizam.
Os ataques a jornalistas no Brasil cresceram 23% em 2022, na comparação com 2021, segundo levantamento da Abraji. A entidade identificou o envolvimento de membros da família Bolsonaro em 41,6% dos casos e registrou o aumento no número de episódios considerados graves.
Outra pauta da extrema direita é o permanente ataque às universidades, que é um ataque ao conhecimento e à ciência. Vimos o governo Bolsonaro deixar as universidades federais à míngua, cortando recur-
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sos e nomeando reitores interventores, alinhados à sua ideologia, desrespeitando a democracia e autonomia acadêmica.
Todas essas pautas são condensadas em discursos de ódio divulgados no esgoto da Internet, seja o esgoto subterrâneo, a deep web, seja o esgoto a céu aberto, que são as redes que todos nós usamos, como o Twitter, o Facebook, o Instagram e o TikTok. É por isso que a extrema direita é contra o projeto de lei que busca combater esses crimes na Internet, porque são crimes que eles mesmos cometem e querem mais liberdade para cometê-los. De acordo com a ONG Safernet, em 2022, foram registrados 74 mil crimes de ódio praticados virtualmente, sendo que, em 2021, foram 44 mil.
Embora as figuras públicas da extrema direita não se digam nazistas ou fascistas, até porque é crime, o seu discurso é o mesmo desses regimes odiosos, tanto é que vivenciamos no Brasil, durante e após a passagem da extrema direita pelo governo, o aumento dos casos de neonazismo. Dados da Polícia Civil gaúcha informam que o número de ocorrências relacionadas ao nazismo no Rio Grande do Sul passou de sete, em 2019, para 41 em 2022. Neste ano,
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já são 27 casos, e nós estamos recém no mês de maio.
As células neonazistas no País passaram de 75 para 530 de 2015 a 2021. Em 2015, foram 1.282 denúncias de conteúdo nazista nas redes, ante 9.004 em 2020, um crescimento de mais de 600%. Só em 2020, 1.659 páginas neonazistas foram derrubadas nas redes graças às denúncias. O número de inquéritos da Polícia Federal, que investigam o crime de apologia ao nazismo, passou de seis, em 2015, para 110 em 2020. Só de 2019 a 2020, o crescimento das investigações desse tipo de crime foi de quase 60%.
O Brasil teve a maior filial do Partido Nazista fora da Alemanha entre 1928 e 1938. Esta organização genocida estava presente em 17 Estados, com 57 núcleos organizados e cerca de 3 mil membros. Ainda hoje, tem gente que sonha com a volta desse horror. Há poucos dias, a Polícia desmantelou a reunião de uma organização neonazista em Santa Catarina.
Aqui, próximo de Porto Alegre, na cidade de Maquiné, a Polícia prendeu um jovem que iria praticar um atentado em sua escola, e sua casa estava repleta de materiais nazistas. Bandeira nazista, quadro com pintura do Hitler, livros de apologia ao nazismo. Até os pais do rapaz foram presos, pois também estão sendo investigados por estimular essa ideologia em seu filho.
O resultado disso tudo é uma tragédia, é o aumento da violência,
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e este aumento da violência também se reflete dentro das escolas. De 2011 até este ano, 52 pessoas foram assassinadas em ataques a escolas no Brasil, sendo 7 em 2022. No período entre setembro de 2022 e abril de 2023 foram cinco ataques fatais.
Esses ataques estão diretamente relacionados ao discurso de ódio, masculinista, misógino, racista, contra as mulheres, contra os negros, contra as LGBTs.
Para especialistas no tema, há um rito de crime observado nos atentados a escolas, onde as motivações são as mesmas: o extremismo. Em comum, foram identificados fatores como a glorificação do atacante por uma comunidade mergulhada em sua visão deformada de mundo.
Coibir o extremismo de direita e fazer com que os jovens deixem de ser instrumento dessa ideologia perversa é uma das formas de se prevenirem os atentados. Os jovens que estão promovendo esses horrores são sempre apreendidos – ou quase sempre apreendidos – com materiais nazistas e fascistas.
O que está acontecendo é que os jovens estão sendo recrutados por uma ideologia de extrema direita para se tornarem agentes de violência contra a sociedade, por meio das escolas, e quem afirma isso é o professor Daniel Cara, da Faculdade de Educação da USP, que elaborou o relatório O extremismo de direita entre adolescentes e jovens no Brasil: ataques às escolas e alternativas para a ação governamental.
Os especialistas apontam que o perfil dos jovens que cometem ataques tem muito em comum: na maioria das vezes são de classe média baixa, sofrem bullying, têm famílias problemáticas, se sentem rejeitados e isolados. São jovens que, ao demonstrar ódio da sociedade,
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sofrimento e até mesmo intenções suicidas, acabam se tornando alvo de organizações de extrema direita e sentem-se pertencentes a um grupo de cidadãos iluminados, superiores. Este ódio é, então, direcionado a quem essa juventude identifica como os culpados por seu sofrimento: a escola e seus integrantes.
Então, todos esses elementos compõem a ameaça que a extrema direita representa à vida. E a melhor forma de combater essa ameaça, no Brasil, é seguir a luta para que os problemas reais da maioria da população sejam resolvidos. O povo precisa de um salário mínimo digno, de uma saúde pública de qualidade, de emprego decente, de creches, de escolas de qualidade, de aposentadoria que faça frente às necessidades das pessoas idosas.
Para isso, o Brasil não pode seguir submetido ao sistema financeiro, pagando a maior taxa de juros do mundo e destinando 46% do orçamento público para pagar juros. O novo arcabouço fiscal proposto pelo governo não mexe neste problema, ao contrário, propõe metas que podem levar a mais cortes nos investimentos em saúde e educação.
Não podemos seguir com este sistema tributário regressivo, que cobra altos impostos da classe trabalhadora e dos mais pobres e alivia para o grande capital, os especuladores, os bilionários e os banqueiros. Não podemos seguir com um modelo político no qual o povo é enganado nas eleições com promessas de paraíso e, depois, é chamado a pagar a conta da crise.
Precisamos de democracia real. Para combater a extrema direita, para minar esse terreno fértil no qual ela se propaga, precisamos de mais democracia, de mais presença do Estado nas periferias, de mais serviços públicos de qualidade, de mais participação da sociedade nas decisões do Parlamento e dos governos.
Se o governo Lula não enfrentar este sistema e não fizer mudanças estruturais no nosso País, o risco que corremos é que o mesmo
Jair Messias Bolsonaro ou um outro messias da extrema direita apareça dizendo que é contra tudo que está aí e ganhe o povo para uma nova aventura da extrema direita. Não podemos permitir que isso aconteça.
O PSOL vai lutar para que possamos virar esta página definiti-
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vamente, e que as forças vivas da sociedade, a classe trabalhadora, as mulheres, a negritude, as LGBTs, tomem as rédeas da política em suas mãos e façam a mudança acontecer.
É esse o caminho que nós entendemos necessário para enfrentar a extrema direita, mobilizar a sociedade e garantir os direitos do povo, das mulheres, das LGBTs, da negritude, de todas e todos que vêm sofrendo as consequências brutais desse sistema econômico e político que traz cada vez mais desigualdade, que traz cada vez mais preconceito, que traz cada vez mais pobreza, que traz cada vez mais desemprego. Assim poderemos, realmente, viver em um País que acolha a todos e a todas.
Muito obrigada.
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SOBRE AIAS E BRUXAS: A LUTA DAS MULHERES NÃO VAI RETROCEDER
O crescimento da ideologia de extrema direita no mundo, e em particular no Brasil, levou ao fortalecimento de um discurso misógino (de ódio às mulheres, especialmente às feministas) e o aumento da violação dos nossos direitos, dos nossos corpos e da nossa liberdade. Os números não mentem:
Uma menina ou mulher é estuprada a cada 10 minutos no país. A cada hora, 26 mulheres são vítimas de violência. A cada dia, 3 mulheres são vítimas de feminicídio. Em quase 90% dos casos o autor do crime é o companheiro ou ex-companheiro. Os números são estarrecedores e estão crescendo. O número de feminicídios aumentou de 1.046 para 1.225 entre 2017 e 2018, e seguiu subindo para 1.354 em 2020 e para 1.410 em 2022.
A série “O conto da Aia” mostrou na televisão o que seria a vida das mulheres em um país dominado pela extrema direita. Margareth Atwood escreveu “The Handmaid’s Tale”, o livro que inspirou a série, em 1985. Mas foi a ascensão da direita cristã nos Estados Unidos du-
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Artigo publicado na Revista Socialismo e Liberdade da Fundação Lauro Campos e Marielle Franco
rante os anos 1970 e início dos anos 80, e a Revolução Islâmica de 1979 no Irã que lhe serviu de estímulo. Além disso, uma história familiar também contribuiu. Desde criança Atwood ouviu histórias de sua avó sobre “uma tal” Mary Webster, que talvez fosse sua parente. Webster realmente existiu, foi enforcada (e sobreviveu!) em Hadley, Massachusetts. Em 1685 ela foi acusada de bruxaria, alguns anos antes dos famosos julgamentos das “Bruxas de Salem”, que começaram em 1692, quando foram assassinadas 20 pessoas e outras 150 foram presas por acusações de bruxaria na Massachusetts colonial.
O que as bruxas têm em comum com a história contada por Atwood? Não há bruxas no livro, mas há muito naquela ficção que nos remete ao episódio histórico muito bem analisado por Silvia Federici no livro Calibã e a Bruxa. Vamos por partes.
No livro de Atwood, a República de Gilead é uma teocracia fundamentalista surgida de um golpe que liquidou com o estado democrático de direito norte-americano. Acidentes nucleares, epidemias e desastres naturais dizimaram boa parte da população e tornaram a maior parte das mulheres inférteis.
A história é contada por uma aia, como são chamadas as mulheres férteis que foram escravizadas e transformadas em reprodutoras de filhos dos Comandantes, os homens poderosos e ricos daquele país.
Nesta ditadura misógina e brutal, a maior resistência ao novo regime vinha das mulheres, então foi preciso esmagá-las. Foram degradadas, humilhadas, submetidas. Perderam toda autonomia. As mulheres foram proibidas de trabalhar e até de ler. Seus cartões de crédito foram cancelados. As aias perderam inclusive o direito a um nome próprio. Offred, a narradora, era June. Mas agora ela é propriedade do Comandante Fred. As mulheres devem viver como autômatas, cumprindo os papéis que lhes foram determinados de acordo com a sua classe social e com sua capacidade reprodutiva. As aias têm por obrigação procriar – são estupradas pelos Comandantes até engravidar - e entregar seus filhos e filhas para as esposas inférteis que sonham em ser mães.
A história carrega, de forma simbólica, muito do passado e do
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presente das mulheres. Vejamos como a autora marxista italiana Silvia Federici relata, no livro Calibã e a Bruxa, o processo econômico e político que se desenvolveu para que o capitalismo pudesse consolidar sua dominação sobre a humanidade, e o papel que desempenhou neste contexto o que ficou conhecido como “caça às bruxas”. Muito desta história real, relatada por Federici, pode ser vislumbrada em O conto da Aia.
NAS ORIGENS DO CAPITALISMO, DEGRADAR PARA DOMINAR
Assim como na fictícia Gilead o novo regime político necessitou subjugar a maioria do povo, no mundo real, para consolidar o capitalismo na Europa, foi preciso derrotar a resistência dos camponeses, e na América, a resistência dos nativos e das pessoas escravizadas. Em ambos os contextos as mulheres eram parte fundamental da resistência. Degradar as mulheres, quebrar sua força na comunidade e submetê-las aos interesses do novo modelo econômico era, portanto, um imperativo. Como na ficção de Gilead, na história real também as mulheres precisaram ser degradadas e quebradas para que o novo modo de produção se impusesse. A caça às bruxas foi fundamental para isto.
Não casualmente, essa operação de perseguição e incineração de mulheres coincidiu com revoltas urbanas e rurais, com as guerras camponesas contra o cercamento dos campos e a privatização da terra, especialmente na Inglaterra em 1549, 1607, 1628, 1631, mas também com força na França e Alemanha, muitas delas iniciadas e dirigidas por mulheres. Também na América, a ideia da bruxaria foi utilizada para quebrar a resistência dos povos originários. Muito tempo depois, em 1871 durante a Comuna de Paris, a burguesia parisiense retomou o mito da bruxaria para demonizar as mulheres communards, acusando-as de querer incendiar Paris.
Demonizar e reprimir as mulheres significava intimidar e re-
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primir todos os insatisfeitos e os que ousavam se revoltar. Segundo Federici, os homens que haviam sido expropriados, empobrecidos e criminalizados culpavam as bruxas pela sua desgraça e viam no poder que as mulheres tinham ganhado contra as autoridades uma ameaça que poderia se voltar contra eles.
A QUESTÃO DA REPRODUÇÃO
Na ficção de “O conto da Aia”, estava em jogo a tarefa da reprodução, pois eram poucas as mulheres férteis. No mundo real, na época das caças às bruxas, o corpo das mulheres não podia mais ser controlado por elas mesmas. Era preciso torná-lo território sob o domínio do Estado.
Desde a sociedade medieval as mulheres já tentavam controlar sua função reprodutiva. As chamadas “poções para a esterilidade” são referências ao uso feminino de contraceptivos e também ao aborto. Até a Alta Idade Média a própria igreja reconhecia que as mulheres tinham o direito de limitar suas gestações por razões econômicas.
Segundo Federici, foi a catástrofe demográfica resultante da “peste negra”, que entre 1347 e 1352 dizimou mais de um terço da população europeia, que levou a uma mudança brutal neste cenário. O controle das mulheres sobre a reprodução começou a ser visto como uma ameaça à estabilidade econômica e social diante da escassez de mão de obra provocada pela Peste. Menos gente para trabalhar significa espaço para barganhar melhor remuneração.
Era preciso quebrar o controle que as mulheres haviam exercido sobre seus corpos e sobre a reprodução. Isto foi feito demonizando o controle da natalidade e a sexualidade não reprodutiva, implementan-
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do penas mais severas ao aborto, à contracepção e ao infanticídio. As parteiras foram marginalizadas, pois era necessária uma vigilância estrita às mulheres durante a gravidez e o parto. Assim, os médicos homens passaram a tomar conta dos partos, expulsando o grupo de mulheres que se reunia em torno da futura mãe e tirando das mulheres o controle sobre este momento.
Nas palavras de Federici: “Enquanto na Idade Média as mulheres podiam usar métodos contraceptivos e haviam exercido um controle indiscutível sobre o processo de parto, a partir de agora seus úteros se transformaram em território político, controlado pelos homens e pelo Estado: a procriação foi colocada diretamente a serviço da acumulação capitalista” (p.163).
O ataque contra as mulheres, sua demonização, degradação, vilipendio econômico e moral serviu para justificar a criminalização do seu controle sobre a reprodução. O extermínio sempre foi uma resposta da classe dominante diante da resistência, e com as mulheres não foi diferente. A caça às bruxas exerceu este papel decisivo na construção da nova função social das mulheres e da degradação de sua identidade social. Junto com a apropriação masculina de seu trabalho, temos o que Federici chamou de patriarcado do salário.
TRABALHO PRODUTIVO E REPRODUTIVO
ESTÃO CONECTADOS
O controle sobre o corpo e o trabalho das mulheres é uma necessidade do capitalismo. Vocês já se deram conta de que o trabalho tomado das mulheres sem remuneração ou mal remunerado é o que mantém a sociedade funcionando?
Há um conjunto de coisas por trás do trabalho produtivo que gera o lucro e que torna possível o sistema. Entre elas está o trabalho reprodutivo, não pago ou mal pago, executado pelas mulheres.
Trata-se do trabalho de gerar e cuidar das crianças que serão a
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futura força de trabalho, cuidar dos idosos que já não mais produzem lucro, garantir que a atual força de trabalho possa se alimentar, se vestir, divertir-se e até aliviar suas frustrações com o trabalho alienado ou a falta dele. Educar e dar assistência a quem necessita, desde saúde até comida.
Estamos falando da socialização das crianças, da educação, de serviços de saúde e dos serviços sociais. A mão de obra neste tipo de atividades está fortemente feminizada em dois sentidos: a grande maioria das trabalhadoras (assalariadas ou não assalariadas) são mulheres. Grande parte delas fazem esses serviços sem remuneração alguma, para algum familiar, e as assalariadas são extremamente exploradas e mal pagas.
Recentemente a luta das mulheres argentinas arrancou conquistas importantes nesse terreno da reprodução. Primeiro foi o direito ao aborto, legalizado em dezembro de 2020 após uma luta de muitos anos e gigantescas manifestações. Em seguida, um decreto possibilitou que mulheres em idade de aposentadoria possam acrescentar de um a três anos de tempo de serviço por filho que tenha nascido com vida, de modo que elas atinjam o tempo mínimo exigido por lei para alcançar o direito à Previdência.
São conquistas importantes e inspiradoras para nós, mulheres brasileiras que estamos muito atrás das argentinas nesta luta. Ao mesmo tempo, sabemos que a opressão das mulheres é um elemento estrutural da divisão do trabalho. É, portanto, um dos fatores diretos através do qual o capitalismo não apenas reforça a sua dominação em termos ideológicos, mas também continuamente organiza a exploração da força de trabalho e sua reprodução.
Na fictícia Gilead as mulheres sofreram uma derrota histórica com o golpe. Grupos clandestinos conformaram a resistência, lutaram pelas crianças tomadas de suas mães e tramaram formas de resistir. Elas sabem que a única forma de libertação é o fim daquele sistema econômico e regime político.
No mundo real, a transição do feudalismo para o capitalismo também foi ancorada em uma derrota histórica das mulheres, muito
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bem descrita por Federici. Por isso a luta feminista é também uma luta anticapitalista.
Liberdades democráticas duramente conquistadas pelas lutas da classe trabalhadora e pelas lutas feministas nos possibilitaram avançar muito em conquistas para as mulheres. Mas essas conquistas não são perenes, estão sempre sendo colocadas em cheque. A ascensão da extrema direita no mundo coloca a cada momento a possibilidade de novos enfrentamentos para garantir os direitos das mulheres, assim como das LGBTs e da negritude.
Nos Estados Unidos, Trump foi corrido da Casa Branca, e no Brasil derrotamos Bolsonaro. Mas a necessidade de derrotar a extrema direita, onde quer que ela levante a cabeça, não terminou. Isso será feito com a mais ampla unidade de ação na luta feminista por nossos direitos, e também conectando a luta das mulheres com a luta de classes, com a luta por salários decentes, por educação e saúde de qualidade. A construção de uma esquerda coerente, anticapitalista e antissistema é fundamental para enfrentar a extrema direita.
Não seremos subjugadas como mulheres de Gilead. Somos herdeiras das ditas bruxas, nossas antepassadas rebeldes, mas desta vez não seremos nós a arder nas fogueiras. A luta das mulheres já mudou e continuará mudando o mundo!
[1] https://dossies.agenciapatriciagalvao.org.br/violencia-em-dados/aumento-4-nosregistros-de-estupro-no-pais-entre-2020-e-2021/
[2] https://dossies.agenciapatriciagalvao.org.br/violencia-em-dados/a-cada-hora-26mulheres-sofrem-agressao-fisica-no-pais/
[3] https://dossies.agenciapatriciagalvao.org.br/violencia-em-dados/brasil-registra-1206-casos-de-feminicidio-em-2018/
[4] https://www.cartacapital.com.br/justica/brasil-registra-pico-de-feminicidios-em2022-com-uma-vitima-a-cada-6-horas/
[5] https://ravishly.com/witch-who-inspired-handmaids-tale https://time.com/4747102/margaret-atwood-time-100-handmaids-tale/ https://www.pri.org/stories/2017-05-13/17th-century-alleged-witch-inspired-margaret-atwoods-handmaids-tale
[6] Federici, Silvia. Calibã e a Bruxa. Mulheres, corpo e acumulação primitiva. Tradução Coletivo Sicorax. Ed. Elefante, 2017.
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