umas &outras Carlos Felipe RequiĂŁo
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Sumário 07
Apresentação
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Amigo é para essas coisas
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Apenas um detalhe
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Onisuáquimalipanse
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Inter faeces et urinam
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Pelas asas da Panair, 1960
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Red roses for a blue man
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Outono em Nova York
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Caminhos diferentes, destinos semelhantes
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O arremate
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Aconteceu no Leblon
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O Opala azul-marinho SS,
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Um certo palacete da Al. Santos
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Campo minado, apenas uma crônica
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Carlos Felipe Requião,
duas portas, modelo 1972
flash biográfico
Apresentação
“Umas & Outras” reúne 13 histórias versando sobre temas urbanos. A maioria delas tem como palco a cidade do Rio de Janeiro, mais precisamente bairros da zona sul. Seus personagens são de diferentes classes sociais e a época dos acontecimentos, poucas décadas atrás. Quase todas tem a minha participação como testemunha, coadjuvante ou personagem principal. Amigo é para essas coisas abre a publicação. Como nas demais histórias é um mix de realidade e ficção. O que pode espantar o leitor em todas as histórias são exatamente os fatos reais como estão narrados. Estupefação. Surpresa. Final patético. Apenas um detalhe trata de um momento na época do meu curso universitário. Provavelmente gente da minha faixa etária e que estudou na PUC-RJ, início dos anos 60, identificará as situações com facilidade e terão, talvez, um flash de saudade. A história envolve Armando, Marcos e a sedutora Heloisa. Pode ferir sentimentos religiosos mas foi assim que aconteceu, assim está narrada. Ponto final. Onisuáquimalipanse conta como iniciou, amadureceu e terminou um caso de amor incondicional entre dois homens. Sem dúvidas por parte de um deles. Ingratidão e
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preconceito fecham a história. Como pano de fundo os sentimentos e desejos que hoje são manifestados livremente; à época tinham de ser velados sob pena de graves danos morais e perseguições. Inter faeces et urinam conta fatos corriqueiros que se converteram em suplício para um cidadão que, involuntariamente, se envolveu numa “teia de aranhas” de calculadas e maldosas pretensões, propósitos nada nobres. decepções. No entanto, a atração sexual, rompendo a estética, a ética e os limites da razão, anulou resistências com força indômita. Perplexidade. Pelas asas da Panair apenas explora os naturais desejos de parceiros jovens saudáveis , dispostos ao prazer em satisfações pontuais e relacionamentos de curta duração. No entanto, o extraordinário fica por conta da imprevisibilidade, sempre surpreendente e chocante em diversas situações. É quando a possibilidade de alguma coisa acontecer é baixa, mas cede, não resiste ao esforço e obstinação de determinadas pessoas. Red roses for a blue man, ao contrário, diz respeito a previsões próximas das certezas, que simplesmente caem por terra. Um casal olimpícamente perfeito tem tudo para dar certo, mas..........as coisas tomam outro rumo e desmoralizam as expectativas. Nessa história personagens, lugares, imperfeições de personalidade, fatos políticos e até mesmo militares formam a trama. Não é dificil identificar os atores desse circo. Outono em Nova York. Como o título indica tem como cenário a mais cosmopolita cidade do mundo, restaurante de alta classe , tarde fria de outono. Revela que quando há desejo sexual entre duas pessoas, um jovem
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norte-americano , promissor astro do cinema, e uma jovem uruguaia disposta a pagar pelos riscos desse desejo, é como fogo morro acima ou água morro abaixo, como dizem por aí. A impossibilidade de se comunicarem através das palavras é facilmente contornada por outros recursos, sem problemas. Mas não é só isso. Subitamente um elemento estranho quebra a graça do encontro, com consequências e indignação. Caminhos diferentes, destinos semelhantes tenta ilustrar as diferenças entre duas pessoas que por nada se identificam, mas que tem como destino o valão do abandono. Valem os sentimentos, num final quase caótico para um e fatalista para a outra. O Arremate talvez seja , de todas as histórias, a mais crua. Conheci as personagens femininas de vista – faziam ponto na porta de um hotel que ficava defronte ao prédio onde meu pai tinha seu escritório --, apenas montei uma estrutura com conhecimentos e observações que tive por força de ter servido, durante bom período de tempo, nas patrulhas noturnas diárias na zona do meretrício da cidade de S. Paulo, década de 50, como soldado da Cia. de Polícia da FAB. É possível dominar as forças primitivas que determinam os desejos? Ou é mais confortável e prazeroso deixar que as forças primitivas do desejo sejam satisfeitas? Aconteceu no Leblon é simples descrição do que acontece com casais desfeitos, num certo ambiente. Pode despertar interesse a forma como as coisas se sucedem e o desfecho final, mas a trama é particular e envolve quatro personagens: Arnaldo, Telma, a conselheira Eva e sua amiga Irene. A tragédia fecha a história. Incompreensões ? Inveja ? Vingança? Culpas? O Opala azul-marinho SS, duas portas, modelo
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1972 tem no automóvel o principal personagem. A história entra apenas como recheio. Problemas de um casal de classe média média de um bairro paulistano, a influência de circunstâncias e condicionantes que induzem pessoas a assumir riscos sob valores triviais, falsos, por aí segue. A importância de se negar a realidade, como medida extrema e defesa dá o toque final. Um certo palacete da Alameda Santos nos oferece histórias de amor pouco comuns entre cidadãos caixa-alta da cidade de São Paulo. Também de dois personagens principais, o caminho natural de aproximação e a formação do casal feliz. No entanto, os caminhos nem sempre são lisos, como nas histórias água com açúcar: é o que aproxima a trama da realidade. Lances que envolvem lugares e figuras conhecidas no mundo do poder tem sua presença em vários momentos. Revela ao leitor perfis e situações embaraçosas que pressionam e que alteram o rumo da vida, na perseguição de interesses genuínos e na busca de razões para a própria existência: também o sentido da renúncia. No entanto, o aspecto que merece mais destaque é a mensagem de que a vida pode superar as frustrações e perdas, atenuadas pela sequência do simplesmente viver. El amor jamás se acaba, solo cambia de lugar, canta Mercedes Sosa. Campo Minado, apenas uma crônica é quase tragédia rodrigueana. No entanto, os personagens, as circunstâncias e o destino de cada um tornam a narrativa próxima de qualquer folhetim, com destaque para detalhes sobre costumes e valores em confronto: de um lado a elegância e do outro o comportamento gerado������������������������������������ por impulsos primitivos. A esperança frustrada, a frustração doentia, e vai por aí. Enfim, é isso. 10
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Esclarecimento Vale dizer que tive excelentes professores de português; do ginásio e do curso científico destaco o Dr. Jorge Pachá (além de professor era médico cardiologista em Petrópolis, RJ) que em suas aulas superconcorridas nos apresentava “ao vivo” grandes nomes da literatura portuguesa e brasileira. Sempre com bom humor, vozeirão com registro de barítono. interesse genuíno pelo ensino e didática que nos encantava a todos. Sem exceções. Lamentavelmente fui mau aluno. A ele dedico Umas & Outras, que procurei escrever com o meu jeito de contar histórias. Posso não agradar a filólogos, perfeccionistas e acadêmicos, mas esse detalhe pouco me interessa. Vale dizer que assim como há histórias ruins e maus escritores há também péssimos leitores, convenhamos. Como amador é enorme e muito forte a minha satisfação em fechar essas 13 histórias e perceber que fui e estou sendo fiel a mim mesmo, já que me confundo com todas elas, direta ou indiretamente, Sem preocupações freudianas É só. Um abraço, divirtam-se. •
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Amigo é para essas coisas
1976
Av. Ataulfo de Paiva, bairro do Leblon, Rio de Janeiro. Augusto sai do Álvaro’s pouco depois da meia-noite. Um sinal e o guardador vai buscar seu carro na quadra seguinte. Dois ônibus passam em velocidade, ruidosos, sujando o ambiente com fumaça preta. Alguns rapazes visivelmente embriagados conversam em voz alta na esquina defronte. Noite quente mesmo àquela hora, calor em parte atenuado pela brisa que chegava da praia do Leblon em suaves lufadas. Augusto, pouco tolerante ao verão carioca, imaginava Petrópolis, onde estavam Isabel, sua mulher, as duas filhas menores e a sogra, D. Isaltina: passavam quase todos os verões na região serrana, hábito das famílias cariocas abonadas. Os maridos, como o nosso herói, ficavam no Rio por compromissos profissionais, subiam a serra nos fins de semana, eram popularmente conhecidos como cigarras. O Álvaro’s, bar e restaurante bem cotado na zona sul, ambiente descontraído, bebidas honestas e excelente cozinha, era o ponto de encontro dele com seus amigos, quase todos de longa data; um espaço essencialmente masculino mas também de mulheres desacompanhadas ou em pequenos grupos: não raro pintavam paqueras, aventuras.
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Trânsito fácil, chega em casa pouco tempo depois. O prédio, na Av. Ruy Barboza é classudo, seu apartamento é amplo, decorado com extremo bom gosto por Isabel, que tem dotes para a arquitetura de interiores, embora formada na área das humanas. Sente sede -- desta vez o filé saiu apimentado demais. Da copa percebe que a luz da área de serviços está acesa., vai desligá-la. Será que Lenita saiu e ainda não voltou ? Aflora-lhe a dúvida. A porta do quarto das empregadas está aberta. As duas camas estão iluminadas pela luz da área, mas Augusto precisa de algum tempo para reconhecer o que estava vendo: Lenita, deitada de bruços, nua, parecia dormir. Aproxima-se dela com cautela, não resiste, forte demais, senta-se na beira da cama, passa a mão direita suavemente sobre as nádegas da pseudoadormecida, que se contrai numa espécie de aprovação fisiológica. Em seguida Lenita segura, aperta sua mão esquerda, um sinal de evidente assentimento. Não poderia ser diferente.......Augusto sente-se total e absolutamente dominado pelos hormônios, as pernas leves e fracas, momento de júbilo, arranca as roupas e deita-se também completamente despido ao lado da jovem serviçal. Acontece. Pura animalidade, inédito, esgotaram-se às duas da madrugada. No dia seguinte, muito cedo, acorda o amigo Mesquita com um telefonema. -- Mesquitão, precisamos conversar, hoje mesmo. Antes que o amigo respondesse ou perguntasse alguma coisa, emendou: -- Amigão, fiz uma besteira, não me pergunte nada agora, eu explico tudo direitinho, dá para você aparecer lá na Pardellas , vamos dizer, pelas cinco horas, está bem para
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você?
Encontro acertado, veste-se e sai apressado para o trabalho sem o café da manhã. Só poderia ser mesmo com o Mesquita. Foram colegas e são amigos desde o ginásio no Colégio Sto. Antonio Maria Zacarias. Posteriormente escolheram carreiras diferentes, Augusto formou-se em engenharia civil e o Mesquita em direito, mas na mesma PUC do Rio. Esse amigo do peito foi um dos padrinhos de casamento de Augusto com Isabel, e depois de tanto tempo de convivência consideravam-se quase irmãos; solteiro, era convidado com freqüência para jantar com o casal amigo. A Casa Pardellas ficava na Rua Sta. Luzia, quase esquina com Graça Aranha, centro do Rio, ao lado do tradicional clube de remo Boqueirão do Passeio. Na entrada um corredor formado por mercadorias em gôndolas ascendentes, imensas e muito bem ajeitadas, valorizando os produtos expostos, todos de primeira linha, uma característica da Pardellas: frutas de muitas origens, mais adiante embutidos e queijos em refrigeradores com portas envidraçadas, muitos produtos importados. Inaugurada na década de trinta foi por anos e anos referência de qualidade, até sua desativação por conveniências imobiliárias. Augusto chega meia hora antes, cumprimenta o senhor octogenário, fundador da Casa, sempre atento no caixa, acomodado num plano superior, posição privilegiada que lhe permitia ver o movimento dos empregados e clientes, nada lhe escapava. A uisqueria ficava ao fundo, era freqüentada particularmente por aposentados amantes de bebidas de qualidade -- outra marca registrada da Casa Pardellas --, todos beneficiários de generosas pensões que lhes favoreciam
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esse etílicos encontros vespertinos e diários. Dirige-se a um canto do salão, ocupa mesa afastada do grupo dos idosos. A decoração local é de simplicidade franciscana, chão de tábuas corridas, pé direito alto, como quase todas as construções antigas nessa parte do Rio. Havia no entanto uma gostosa atmosfera de boemia e descontração, a partir dos desenhos de conhecidos cartunistas que ornavam as paredes, geralmente focando personalidades políticas e do meio artístico que compareciam para o uísqui amigo e papo solto. Augusto está super-ansioso, preocupado com as conseqüências de sua “arte” na noite do anterior. Imagina um escândalo. Como encarar sua mulher, as filhas e, principalmente sua sogra, com quem não tinha bom trânsito. Um marido de merda, um fraco, um tarado, sente-se perseguido, moralmente acuado, o que contribui para aumentar o rol de suas preocupações. Abrir-se com o amigo é necessidade. Aliás, o Mesquita sempre é o seu interlocutor quando aparece um pepino ou uma decisão difícil, em qualquer plano, em situações de trabalho ou mesmo em suas relações com Isabel. Teve influência até para se decidir sobre o casamento; o namoro e o noivado com Isabel foram a toque de caixa, ela tinha saído de um relacionamento longo e complicado, enfim, riscos e riscos. Com seus sábios feedbacks o Mesquita permite que seu raciocínio se torne mais claro, facilita a análise de variáveis e a busca de soluções equilibradas, lógicas, como realmente um engenheiro deve se comportar, menos contaminadas pelos aspectos afetivos, emoções, por aí. Amigaço esse Mesquita. Afinal, amigo é para essas coisas. Pede cerveja, sua cabeça ferve, sua a cântaros embora
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o ambiente tenha clima atenuado por pré-histórico e barulhento aparelho de ar condicionado. O Mesquita chega logo depois, abraçam-se fraternalmente, pedem mais cerveja. Atento, o amigo deixa que Augusto se abra, sem interrupções. Comenta em seguida. -- É meu caro, tremenda fria, não adianta chorar pelo que aconteceu. O jeito é a gente conversar, de repente pode pintar uma saída honrosa --, são as primeiras falas do amigo. -- Não tenho explicação, sei que pode acontecer com qualquer um, mas logo comigo ? – emenda Augusto. – Se arrependimento matasse eu estaria esticado alí no chão. Que babaquice......sei que só eu posso resolver essa situação, essa enrascada, mas estou confuso, não estou legal. -- Bem Augusto, o caminho para acertar tudo isso você já está apontando, tem que partir de você mesmo, resta saber como. De partida a cabeça no lugar, serenidade, a vida é cheia de armadilhas; pessoalmente....... nunca passei por um caso desses mas no escritório ficamos todos sabendo de problemas domésticos muito mais cabeludos, verdadeiros dramas, dilemas, com qualquer família, de arrepiar mesmo, alguns banhados em sangue. Pode crer, esse seu caso um belo dia será motivo somente de piadas, procure esfriar – e tocou os ombros de Augusto, paternalmente. Lá pela terceira ou quarta cerveja Augusto animou-se, o álcool estava lhe fazendo um bem danado, a tensão inicial já estava superada e disse, avançando o corpo mais próximo do amigo e em tom de cochicho: -- Mesquitão, hoje mesmo vou falar com a Lenita, olho no olho, ela tem de entender que nosso affair foi apenas um fato episódico, estamos os dois envolvidos e uma
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solução pacífica é benéfica para ambos. Mesquita fez uma careta, a cerveja estava quente, chamou o garçom e olhando firme para Augusto clarificou: -- Meu camarada, tudo bem, acho que o caminho é esse mesmo. Mas, veja só, ela não estava pelada na cama, iluminada, por acaso. Ela criou a situação, esperava por você e deve ter motivos para isso. Pode ser tesão ou qualquer outra coisa, não é a primeira vez que um patrão rola com a empregada, na maioria dos casos o homem entra de gaiato porque a empregadosa simplesmente monta o teatro, a arapuca. Com que interesse, qual a intenção ? Aí é que está o fulcro da questão, afinal cada caso é um caso -- sentenciou como advogado. Augusto parece estar distraído mas, na verdade, enquanto o Mesquita fala ele se concentra nas iniciativas que julga necessárias, imediatas, no mesmo dia, .....hoje. –Chamo a Lenita para um papo, vamos conversar sem pressões, mas quero conduzir tudo para uma solução que beneficie os dois, entende ? Ela trabalha lá em casa há três anos, como mineira típica é de poucas falas, nos dias de folga vai visitar parentes que moram em Marechal Hermes, a gente sabe pouco da vida dela. Acho que não tem namorado, Isabel é quem deve saber dessas coisas. E se ela emprenhar ? De repente essa foi a intenção, não usei camisinha, nada, olha só quanta merda no ventilador !!! Será apaixonite ? O que tem de mulher pirada por aí, cismam com um cara e coitado dele, obsessivas, não dão folga, Comigo ela sempre foi bom dia boa tarde e só isso. Bem, chego e casa, chamo para uma conversa, quem sabe é uma grana o que ela quer ? Vamos ver......... -- Augusto, dar uma grana para a moça sumir, desa-
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parecer, não me parece uma boa saída. Ela pode se ofender, enfim, só no curso da conversa é que será possível mesmo encontrar uma solução conveniente para você, desde que a moça não se sinta ofendida: uma oferta dessas pode ser fatal. Como você vai explicar para a Isabel os motivos que levaram você a despedir a moça ? É.........já imaginou, ela desce de Petrópolis fera, vai querer saber detalhe por detalhe, enfim, olha o rebu montado aí. Não menospreze a moça porque é empregada doméstica, meu caro. Pelo que sei Isabel só volta de Petrópolis no final de março, é isso mesmo ? Então, meu caro, mãos à obra, você tem quarenta dias para resolver o imbróglio. -- É, vamos ver, diz Augusto num quase suspiro. Mesquita olha seu relógio. – Vamos embora, chega de cerveja, vá para casa, tome uma ducha, quando se sentir tranquilaço chame a moça, é isso, conclui Mesquita, imperativo. Pagam a conta e saem, seis e meia, o sol ainda presente, despedem-se na calçada. Combinaram, Augusto telefonaria para o amigo mais tarde, teria o que contar, certamente. No entanto, antes de cada um tomar seu rumo Mesquita chama seu amigo para bem próximo e pergunta ao pé do ouvido: -- Que tal o corpinho da menina? Ela sempre me lança um olhar quando vou na sua casa, juro, deve ser rolicinha e de bundinha empinada, certo ?. Solta uma risadinha debochada, aperta os ombros do amigo e em seguida desaparece no meio das pessoas que se dirigem à Av. Rio Branco. Onze da noite. Mesquita diminui o som da TV , atende o telefone. -- Sou eu, o Augusto, desculpe ligar tão tarde, mas nem te conto. E sua voz estava estranha, esganiçada, falava aos saltos, nervoso. Deu merda, meu caro, deu merda !
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Mesquita procura tranqüilizar o amigo: -- Calma, calma, calma, respire fundo, fale devagar, .......conte o que exatamente aconteceu, não temos pressa. -- ..................ela estava me esperando, arrumada, perfumada...........sentamos na sala muito próximos, próximos demais, comecei a falar coisas sem nexo, em pouco tempo, Mesquita, estávamos rolando sobre o tapete. Comi a Lenita outra vez ! Agora a coisa encrencou de fato, preciso falar com você mas me dá um tempo, alguns dias, preciso de você, o problema é maior, claro. Depois eu ligo, me dá um tempo. -- Espera um pouco, calma, calma, estive pensando, quem sabe você procura um psicanalista. Eu tive problemas seríssimos, Augusto, você sabe disso, mas felizmente uma amiga indicou o Dr. Marcos Peçanha, um craque, na terceira sessão percebi que.........me ouve, Augusto ? não desligue, é rápido,........na terceira vez que estive com ele percebi que somos vítimas de uma odiosa cultura religiosa que nos persegue com o sentimento de culpa, é culpa de tudo, desde os primeiros nãos, as primeiras punhetas, esse maldito sentimento acaba com a gente,............não se preocupe, deixarei o número do telefone dele na secretária eletrônica do seu escritório...... fique tranqüilo. Tchau. -- Tudo bem, tudo bem, tchau, tchau. Mesquita estica-se no sofá, não consegue segurar um sorriso, respira fundo várias vezes e liga para Petrópolis. -- Isabel, sou eu. Desculpe a hora mas é assunto urgente, precisamos conversar. Vamos fazer o seguinte, subo amanhã de tarde, nos encontramos no shopping de Itaipava pelas cinco horas, tem um hotelzinho novo no Vale da Boa Esperança, vamos conhecê-lo, não é longe, ouvi dizer que é
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uma graça. Está bom para você ? Sim ? Tenho uma bomba do Augusto para lhe contar. Um beijo, carinho, boa noite, beijo -- e quase num sussurro --, tchaaaaauu
Angra dos Reis, julho de 2010 cf-requiao@bol.com.br
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Apenas um detalhe
PUC RJ Intervalo maior da manhã, “bar” do seu José, alunos e professores confraternizam, batem papo, hora do cafezinho. Paqueras, muito agito, namoros começaram e terminaram nesse ambiente, encontros amorosos discretamente combinados, estamos no início da década de 60. Armando, aluno da escola de engenharia, raramente comparece nesses “hapennings” ; além das aulas ocupa-se com o projeto de implantação do primeiro computador da PUC, com orientação do professor norte-americano Oskar Duek e fundos do programa Aliança para o Progresso. Nesse dia, no entanto, uma folga permite que se junte aos colegas. Encontra-se com seu amigo Marcos, aluno da faculdade de direito, que estava acompanhado por mulher visivelmente mais velha que ambos, talvez uns trinta e cinco anos, por aí. Mais velha sim, mas um pedaço de mulher. Armando e Heloísa foram apresentados, o aperto de mão denunciou um dos mistérios da vida que é a atração física imediata: contato demorado, quente. Olhos nos olhos. Disse a distinta estar chegando de Paris onde estudou teatro e tentou entrar para o cinema: seu irmão, oficial da Aeronáutica, era um dos adidos militares da embaixada do Brasil na França, não poderia ter
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perdido essa chance. Simpática, comunicativa e bem articulada, joga bem com as mãos e os braços quando fala de suas coisas, provavelmente movimentos que aprendeu nas aulas de interpretação. Bem feita de corpo, seu vestido de tecido fino e solto beneficia as curvas características de muitas mulheres cariocas, que encantaram e encantam o mundo inteiro, quando se apresentam semipeladas nas praias da zona sul do Rio; Copacabana e Ipanema somam oito quilômetros de mulheres bonitas, provocantes. Os dois amigos estavam mexidos com a presença de Heloísa. Certamente Armando, o contato com a mão da mulher provavelmente injetou-lhe leve carga de testosterona no sangue. Inevitável a comparação de Heloísa com as meninas alunas da PUC. Sem o rigor de uma pesquisa sociológica pode-se afirmar que eram padronizadas, quase todas vestidas com roupas politicamente adequadas, ou seja, blusas e saias nas medidas convencionais, cabelos penteados no sentido prático, pouca maquiagem, conversas sem sal, era mais ou menos isso naquela época; a grande maioria procedia de colégios religiosos caros, freqüentados pela elite carioca, as famílias melhor abonadas financeiramente. A exceção ficava por conta das “meninas” politizadas e que participavam de ações das esquerdas, filiadas aos diretórios acadêmicos; essas geralmente despojadas com a apresentação física, línguas afiadas e de prontidão para qualquer entrevero dialético. Daí a projeção de Heloísa, que não só concentrava a atenção dos dois amigos como também dos dissimulados de plantão que, discretamente, a examinavam cirurgicamente de cima a baixo: era a diferença que faz a diferença, o charme da mulher madura. Marcos despede-se. Na sua ausência forma-se o casal. Esticam a conversa mais um pouco, Heloisa volta para o
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curso de letras – sua matrícula é a de ouvinte -- e Armando apressadamente dirige-se ao CPD, um colega foi buscá-lo para atender a um pepino de operação. No entanto, tiveram tempo para anotar o número dos respectivos telefones, indicando interesse dos dois para prosseguirem com o papo, quiçá com avanços para a intimidade física, cultivava Armando. E assim aconteceu. No sábado seguinte ao primeiro encontro marcam uma hora, na parte da tarde, seria apenas um passeio pelo calçadão do Leblon, bairro onde ela morava com parentes. Estava implicitamente acordado que precisavam se conhecer melhor. Armando pontualmente encontra-se com Heloísa no hall de entrada do prédio, cumprimentam-se formalmente, dirigem-se à praia. Para ele surpresa, imaginou que Heloísa desse continuidade à conversa no “bar” do seu José, pois uma pessoa que mora em Paris quase três anos, freqüenta meios artísticos, conhece gente de teatro e de cinema, obviamente deve ter muito o que contar; e conversa interessante para ele, aficionado que era da “nouvelle vague”, fã incondicional dos atores, diretores desse movimento cultural do cinema francês de tanto sucesso nos meios intelectuais, particularmente entre os universitários cinéfilos do Rio de Janeiro. Mas, surpresa. Assim que atravessam a Av. Delfim Moreira e atingem a calçada do outro lado, recebe como um tranco a inquisição de Heloísa: “Você é católico ? “. “Mais ou menos”, respondeu sem firmeza Armando, procurando ganhar tempo e colocar as idéias em ordem. “Como mais ou menos?”, emendou Heloísa, “ou a pessoa é ou não é, o meio termo sempre dá um sentido de escapismo”. Num lance de segundos surgem dúvidas, certamente sua expectativa
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de conversa esticada com Heloísa previa outros assuntos, não há certezas em nenhuma expectativa, sabe por convicção e também através de cálculos de probabilidade matemática, assunto que dominava com maestria. Mas, é evidente, poderia ser, sim, outro assunto, qualquer um, por que religião ? Será que essa mulher é maluca ? Está a fim de me evangelizar ou coisa que a valha ?, refletiu para si mesmo. Mas, readquiriu seu equilíbrio mental, sorriu e engatou: “Concordo com você mas acho esse tema muito complexo para uma conversa à beira-mar, com esse visual, daqui a pouco o sol vai se esconder pot trás do Dois Irmãos, penso que a gente poderia falar de coisas mais leves, digeríveis, combinam melhor com este nosso momento”. Heloísa demonstra sinais de impaciência enquanto ele fala, mas ouve elegantemente até a última palavra, e insiste: “Acho que a gente pode e deve falar dos nossos valores e crenças em qualquer momento, lugar, é a mais correta forma das pessoas se conhecerem, ir fundo na essência de cada um. Se você tem algum sentimento religioso, é católico, bate com o meu e a gente se entende melhor. O que faz parte dos lugares comuns, do corriqueiro, dos acidentes, isso pode vir depois, tudo é importante sim quando contribui para um melhor entendimento entre as pessoas – nós, por exemplo --, a partir da nossa estrutura espiritual, de convicções, é assim que penso e entendo”, concluiu professoralmente. Claro, Armando ouve, mais surpresas ainda, não esperava que a conversa com Heloísa fosse iniciar-se com essa lengalenga doutrinária, mas, tudo bem, vale o sacrifício já que seus objetivos têm fortes motivações endócrinas: vale o habitual sacrifício para um objetivo prazeroso. Como bom carioca resolve apostar, de imediato admite que o assunto seja apenas uma forma de causar boa impressão, afinal ela es-
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tava chegando da França e tinha convivido com profissionais e amadores de condutas marginais, a gente sabe da bandalha sexual que envolve atores, atrizes e diretores de teatro e de cinema; ora, se há muita sacanagem nos ambientes com esse tipo de gente no Brasil, dá para imaginar como não deve ser na França, afinal Paris sempre foi tida e conhecida como a capital mundial do sexo liberado, da putaria, matriz da prostituição universal. Contraditório, estranho, sim, jamais imaginaria uma atriz, ou mesmo candidata como ela ao teatro ou ao cinema, iniciar um papo desses no calçadão do Leblon; este nosso mundão é doido mesmo !!!!! Armando torcia, controlava-se para não se aborrecer, afinal não é todo dia que aparece um mulherão desses na vida da gente. Tenta mudar o assunto, mas Heloísa parecia estar tomada pelo capeta, queria porque queria que ele se definisse como religioso ou não. Armando, num dado momento, talvez até mesmo para se livrar do sufoco, disse que sim, tinha sido batizado na Igreja de São Paulo Apóstolo, em Copacabana, chegou a participar da Congregação Mariana ainda menino. Água fria na fervura. Era o que Heloísa queria ouvir, sem dúvida não se sentiria à vontade se Armando fosse ateu ou professasse outra religião. Imediatamente o clima melhorou, andavam sem pressa, mãos dadas, a corrente da atração cada vez mais forte, presente. Era noitinha quando Armando a leva de volta para o prédio onde morava. Na despedida troca de beijinhos, discretamente, não poderia ser diferente já que algumas mães com crianças estavam muito próximas. Combinaram outro encontro, para a semana seguinte, por telefone fariam o contato E assim aconteceu. Foi tudo rápido, ela informou que tinha alugado um
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micro apartamento no prédio que abrigava no térreo o teatro Santa Rosa, em Ipanema, prometeu preparar uma sopa de cebolas à moda francesa, enfim, era tudo o Armando esperava, queria. Edifício velho e mal freqüentado, apartamento discretamente decorado, denunciava em algumas peças a passagem dela pela Europa; sala e quarto conjugado, um sofá de bom tamanho, mesinha de centro, a cozinha era embutida e a geladeira ocupava um canto, quase escondida. A divisória da sala para o quarto era apenas uma cortina de tecido estampado, de gosto duvidoso. Ela o recebeu com um tomara-que-caia em tom de chocolate claro, combinando com a cor da pele, os cabelos e seus olhos verdes, enormes. Ambos sorridentes, Armando senta-se, Heloísa liga um ventilador de mesa, melhora enormemente o clima do ambiente. Conversam abobrinhas até Armando fazer perguntas sobre os três anos em Paris. Heloisa prontamente apanha numa estante dois álbuns, eram fotos suas, um “book”, poses insinuantes, peças de carne à mostra, caras e bocas. Armando de pronto faz julgamento negativo, achou tudo brega e coerente com o tecido que dividia a sala do quarto, havia sim um quê de vulgaridade envolvendo Heloísa. Mas, claro, longe de reduzir o interesse dele pelas pernas e coxas, pelos seios, hálito, toda ela enfim, por tudo de mulher que Heloísa recendia e mostrava, pessoalmente ou pelas fotos, um conjunto altamente excitante. Heloisa serve vinho de boa qualidade, aprontou a tal sopa, a conversa evoluiu para onde ele queria, trocaram opiniões sobre o cinema francês contemporâneo. Depois da alimentação física regada a bom cabernet, mais uma vez sentam-se no sofá, daí para diante já entrando em intimi-
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dades, contatos, Armando quase não se continha de desejo; ela, aparentemente controlada pede alguns minutos: afasta a cortina , fecha-a por dentro em toda a extensão, cuidadosamente, desaparece. Para Armando tratava-se de algum ritual, Heloisa mudaria de roupa, quem sabe apareceria de “baby doll”, calcinha vermelha, enfim, e por algum tempo apenas o silêncio. Passam-se minutos, para ele uma eternidade. Estava indeciso, deveria tirar a roupa, ficar à vontade? Tudo indicava, segundo as normas gerais, que os dois teriam um contato amoroso “caliente”. O maravilhoso corpo de Heloísa e a carga hormonal de um rapaz com menos de 25 anos de idade.............. Ave Maria !!!!!! Preferiu ficar como estava, deu mais uma olhada nos álbuns. Silêncio quase absoluto, pela Visconde de Pirajá passavam ônibus fumacentos, barulhentos, carros buzinando em histeria, do décimo andar tudo isso melhorava, mas não muito. O silêncio ficava mesmo por conta daquelas quatro paredes, o interior do minúsculo apartamento. Passam-se mais minutos, Armando começa a se impacientar. Num dado momento alguma coisa altera a sua atenção, surge cheiro de queimado, de pano queimado, odor ruim, estranho. E vinha de onde estava Heloísa. Ele se levanta, abre uma ponta da cortina e, surpresa, lá estava ela ajoelhada num genuflexório desses que encontramos em igrejas, igualzinho, à frente uma enorme santa, pode ser qualquer uma, várias velas acesas compõem o ambiente. De imediato Armando conclui: “essa mulher é maluca, doidaça !!!!” Incrível, custa acreditar no que vê; a mulher vestida com uma espécie de “pegnoir”, de olhos fechados e
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face contraída, mãos entrelaçadas, somente os lábios se movimentam: claro, Heloisa está rezando. Armando, por alguns segundos estupefato, paralisado, não sabe se fica ou se vai embora. Segundos depois decide fugir. Dirige-se à porta , evita fazer ruídos, sai para o corredor do prédio, alcança a porta do elevador , alívio, tchau mesmo !! Férias de julho No retorno às aulas Marcos e Armando se encontram no lotação. Há quase dois meses não batiam um papo; Armando passou para ele, resumidamente, a situação atual do funcionamento do computador, das expectativas de seu uso em pesquisas, que o empolgavam. Marcos, sem grande entusiasmo ouve atentamente o amigo, seguramente naquele momento não estava muito interessado nos avanços do cérebro eletrônico, mesmo porque estava concluindo o curso de direito e suas atenções estavam concentradas mais no mercado de trabalho; havia escolhido o direito tributário como linha profissional, um tremendo desafio num país que a cada minuto mudam as regras do jogo, suprimem e criam impostos, por aí. Desafio sim mas é o que exatamente tornava esse campo de trabalho extraordinariamente interessante, sob muitos aspectos, sobretudo pelos elevados ganhos financeiros. Descem do lotação defronte ao portão principal da universidade. Caminham juntos pelo jardim que leva aos prédios, salas de aula. Subitamente Marcos pergunta: “E aquela Heloísa, que é que aconteceu, você a tem visto ? “ “Não”, de imediato responde Armando, “ nos encontramos apenas uma vez, foi uma caminhada e bate-papo no calçadão
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do Leblon e nunca mais”, mente. “Caramba, cara, não deu em nada ? Espanto. “Olha”, continuou Armando, “ela começou um papo broxante, coisa de católica fanática, Jesus Cristo, não tive saco e sumi do mapa”. “Tudo bem”, prosseguiu, “é possível que eu seja radical nessas coisas, mas, Marcos, foi chateação demais para a expectativa de meia hora de sacanagem e 15 segundos de tremelique, entende ?” Marcos senta-se no primeiro banco disponível, Armando o acompanha curioso; lado a lado, Marcos fala, o amigo ouve atentamente. “Armando, não confunda uma rapidinha com uma sessão completa de sacanagem, uma coisa de louco. Falo pra você porque somos velhos amigos, há confiança, para qualquer outra pessoa seria uma cafajestagem, claro, mas uns vinte dias depois de tê-la apresentado a você ali no bar do seu José encontrei Heloisa na Pça. Gal Osório, acho que estava fazendo compras. Conversa vai, conversa vem, ela perguntou por você, perguntou como estavam as coisas na PUC, enfim falou do curso que tinha concluído. Pelas tantas e de repente perguntou se eu era católico e impulsivamente disse que sim. Convidou para ir ao apartamento dela, não muito distante de onde estávamos. Fomos. É num prédio bem no início da Visconde de Pirajá, o apartamento é quitinete, mas tudo bem, isso é o que menos interessa. Tomamos um vinho, em seguida ela ficou atrás de uma cortina, que escondia a cama e um pequeno armário de roupas. Fechou-se, deve ter acendido velas porque o cheiro era forte, dei uma olhada, estava rezando num genuflexório. A esta altura Armando estava absolutamente pasmo com o que ouvia e loucamente interessado no desfecho. Marcos prosseguiu. “Fiquei sentado, fazia um calor infernal mas para uma mulher como Heloísa valia e vale qualquer sacrifício.
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Depois de algum tempo ela reapareceu gostozérrima, fechou a janela, ligou um ventilador e a coisa começou. Foi um prazer total. Ela tomou a iniciativa em quase todas as variedades, deve ter aprendido isso tudo em Paris, imagino. Para não me estender, Armando, foi uma noite inédita e combinamos mais encontros. O curioso disso tudo fica por conta da despedida, ela pediu, nos demos as mãos, fechamos os olhos e rezamos o Padre Nosso. Foi assim e selamos o encontro com um beijo de língua”. Armando levanta-se, diz estar atrasado, despede-se do amigo, precisa ficar sozinho e pensar na vida. Um parabéns chocho para o amigo. “Parabéns coisa nenhuma, Armando, ela é que é a felizarda, é uma coroa fazendo amor com a garotada de vinte e poucos anos........ pára com isso !!!”. Armando acena um tchau, segue para a escola de engenharia, passos rápidos. Provavelmente tinha uma encrenca qualquer esperando por ele no CPD.
THE END
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Rio de Janeiro, 1948, sete horas da manhã, o professor José de Souza Valentim dirige-se ao Colégio Rio de Janeiro; desce do bonde na Visconde de Pirajá duas quadras antes do Bar Vinte, tinha tempo de sobra para o cafezinho. Surpresa, empregado novo no boteco, um pouco sem jeito pela falta de experiência, certamente, mas compensava com gentileza incomum para o ambiente, tipo de negócio. O professor reconhece no rapaz certo trato, como se dirige aos fregueses, exceção. Seguiu para o colégio, tinha quatro horas/aula pela frente, não conseguia tirar da cabeça a imagem do jovem. No dia seguinte menos gente no boteco e consegue trocar algumas palavras com o rapaz; chama-se Emílio, mora no bairro da Gamboa e era, sim, o seu primeiro emprego. Pelo jeito dos entendimentos o professor percebe que o papo pode se estender, é o que quer, deseja, curiosíssimo, coração acelerado. Uma semana depois e os dois já estavam trocando informações com certos detalhes, o professor ficou sabendo que ele era órfão de mãe, morava com o pai, ex-tripulante do Loyd Brasileiro, aposentado e com problemas de saúde. Numa manhã, estimulado para criar uma relação de amizade o professor cria coragem e convida o rapaz para saírem juntos, comerem alguma coisa, seria a oportunidade
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para checar seus sentimentos, conhecer melhor uma pessoa de origem humilde mas de comportamento civilizado, uma surpresa agradável para o professor, que tinha lá seus momentos de psicólogo como qualquer pedagogo. E assim aconteceu. É evidente que Emílio cometeu algumas gafes, o restaurante não era cinco estrelas, mas o uso dos talheres, a forma de distribuir os alimentos no prato e mesmo o ato de comer tem regras universais, cá entre nós. E deste jantar em diante o relacionamento entre os dois se estreitou, o professor cada vez mais paternal dava conselhos, procurava estimular em Emílio a necessidade de estudar, enfim, como pessoa e principalmente professor Valentim estava resolvido , com natural prudência, tutelar Emílio. Para o rapaz ter conhecido o professor, um marco em sua vida. Sempre sentiu a necessidade de estudar, chegou a completar o ginasial, mas outras necessidades ligadas à sobrevivência imediata tornaram a possibilidade de continuar os estudos mero sonho, projeto inviável, sempre adiado. Dezenove anos de idade, sim, e era uma pessoa fisicamente das que se perdem no anonimato, nada tinha que o tornasse um indivíduo distinto dos demais. Do professor ganhou roupas, livros e num momento que Valentim julgou oportuno recebeu o convite para que morassem juntos. Seu Menegal, o pai de Emílio, tinha vida vegetativa. Problemas circulatórios, pressão alta, um homem fisicamente enorme, quase um metro e noventa de altura por 100 quilos de peso, mas massa inútil; o cardápio de doenças e problemas menores de saúde o impediam de conviver com seus amigos, quase todos vizinhos lá na Gamboa, de freqüentar os
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botecos, bilhares e talvez casas de moças de aluguel que graçavam nas proximidades do túnel João Ricardo. Mas foi beneficiado por ter a mente estreita, carente de sonhos e apetência cultural, aprendeu apenas a operar caldeiras e turbinas em navios; um trabalho exaustivo, calor ambiental senegalês e rusticidade dos instrumentos dessas operações. Quando foi afastado do trabalho sentiu certo alívio, teria pensão por invalidez; graças a Deus, pelas doenças que contraíra e pela sua inatividade, um merecido retiro prematuro. Enviuvou cedo, sua mulher morreu pouco depois do nascimento de Emílio. Como nessa época viajava sempre, o menino foi entregue à avó materna, lá mesmo na Gamboa; portanto, somente nas escalas do Rio de Janeiro é que via o filho, conversas sempre monossilábicas, o envolvimento afetivo de Emílio era todo centrado em sua avó D. Raimunda, Diquita para os íntimos. Já estava afastado do trabalho quando perdeu a sogra e Emílio foi dividir com ele uma casa de dois cômodos na ladeira do Arruda. No início se estranhavam, o pai sempre grosso e primitivo em tudo que dizia, comentava, o menino retraído e esquivo, quanto menos contato com o pai, melhor. Mas, conseguiu pelo menos concluir o ginasial; o colégio ficava na parte velha do Rio, ruas que cercavam a Central do Brasil: professores desestimulados por salários de fome, era o que o Estado pagava para que fizessem pelo menos atos de presença. Enfim, o ambiente não era dos melhores, mas Emílio conseguiu extrair desse lodo cultural alguma coisa boa, no seu íntimo sabia que o estudo era o único caminho para afastá-lo da Gamboa, do pai, dos vizinhos, da escola, de tudo que representava para ele o atraso, a grossura, a incivilidade entre outras qualidades negativas mais. No entanto, a situação financeira do pai não
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permitia o luxo de pagar seus estudos, o único jeito, saída, foi trabalhar e buscar o ensino através do seu esforço, e assim aconteceu. Pegou o primeiro emprego que apareceu, topou mesmo, na expectativa de um belo dia trocar por trabalho de melhor qualidade. Quando conheceu Valentim, depois de muita conversa e do tal jantar, sentiu-se apoiado, enfim uma pessoa que aparentemente desinteressada preocupava-se com ele, com seu futuro, quem sabe representando a possibilidade de uma melhor qualidade de vida. O boteco era, na realidade, a parte frontal de um restaurante popular. O dono do estabelecimento, um português de poucas falas, mas de comportamento coerente com o nível do estabelecimento, tinha avançado para ele a possibilidade de passar de auxiliar de copa para garçom, sem dúvida um salto profissional, principalmente em ganhos. No entanto, trabalhar em restaurantes, bares e assemelhados não estava na carta de interesses de Emílio: pegou o emprego porque estava mesmo nas fronteiras de uma crise por falta de dinheiro. Valentim em seus momentos reservados desenhava projetos e neles sempre a figura de Emílio se apresentava como o centro de suas atenções. Em conversa por aqueles dias, tinha decidido, iria oferecer ao jovem a possibilidade de estudar no Colégio Rio de Janeiro, onde certamente conseguiria razoável desconto por pertencer ao quadro de professores, quem sabe, com chance de trabalhar na secretaria do colégio. Ou seja, resolveria numa só tacada dois grandes problemas que afligiam o jovem e, claro, estariam diuturnamente próximos. Desde o início do relacionamento surgiu a oportunidade de oferecer também a sua própria moradia, chegou à conclusão de que a companhia do pai, como o pró-
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prio Emílio o descreveu, só poderia prejudicá-lo em sua formação como pessoa. O motivo maior de todas essas atenções era o sentimento afetivo e o desejo sexual que Emílio lhe despertava, sabia dos riscos que estava assumindo, os aceitou com coragem; sem dificuldades. Emílio passou a proteger-se no mesmo teto de Valentim, um apartamento modesto em Botafogo, mas bem equipado, teriam quartos separados, em ambos dominava o otimismo de que as coisas se resolveriam no sentido do bem. O impasse maior poderia ter sido o seu Menegal, e não foi. Valentim propôs que ambos fossem falar com ele, tinham certamente argumentos que o convenceriam sobre as vantagens dessa mudança etc. e tal. No entanto, ficou resolvido que a primeira conversa seria do filho com o pai, somente os dois, caso as coisas complicassem, aí sim Valentim entraria no esquema. Mas, surpreendentemente, seu Menegal entendeu que realmente seria uma boa para o Emílio, lembrou-se que ele mesmo quando escolheu sua profissão sabia que seriam ausências de meses longe da família, dos amigos e das coisas boas que o Rio oferecia como rodas de samba e bate-papo nos botecos, enfim, a vida boêmia. São os cavacos da vida. Cada um na sua. E Emílio, maduro, também desenhou seus projetos pessoais, contava com a proteção do professor., indispensável. Claro, um homem com sérios problemas de saúde sentiria falta do filho, era a única pessoa com quem contava caso alguma coisa se complicasse com ele. Mas, o telefone está aí mesmo, racionalizou Emílio. A partir de sua mudança as relações entre pai e filho melhoraram, uma vez por semana Emílio ia visitá-lo, sempre levava comidinhas, ambos batiam papo como nunca na vida,
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o tempo era só dos dois. Até mesmo sob esse aspecto a vida de Emílio deu uma melhorada. E os amigos e amantes durante muitos meses só celebraram motivos positivos; davam-se muito bem, Emílio aceitava as recomendações de Valentim, todas oportunas e com boas conseqüências. Matriculado no curso clássico, horário noturno e empregado na secretaria do colégio, confirmava que o professor tinha intuições positivas. No trabalho entregava-se com afinco a qualquer tarefa, rapidamente aprendeu datilografia, em pouco tempo passou a ser pau para toda obra, lidava com habilidade nos arquivos assim como encantava as pessoas que atendia no balcão da secretaria, era extremamente cordial com os colegas e a chefe. Todos. Apoiado em Valentim não teve dificuldades nos estudos, em relativo pouco tempo perdeu o pavor até da matemática, embora com interesses evidentes dirigidos aos livros, o que gradativamente poderia cristalizar um caminho vocacional. Num belo dia Valentim o presenteou com uma obra prima, assim dedicada: “Emílio Memórias Póstumas de Brás Cubas talvez seja o livro mais importante da literatura brasileira. Em sua época, Machado foi o grande criador, trazendo em sua pena, uma escrita brasileira, toda uma gama de emoções e características tão nossas. Para muitos foi um psicólogo, para outros reconquistou o tempo, antes mesmo de Proust. Não gosto de rotular Machado; a minha incapacidade é flagrante, mas posso garantir que o Homem é realmente genial.
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Você, Emílio, pode e deve aproveitar esta obra de Machado para um estudo, dentro da sua matéria e do que escolheu para você. Estará ajudando, e muito, a todos nós, porque compreendendo Machado, você estará avançando muito, ajudando, pois, a todos nós. Encontrará nestas Memórias Póstumas de Brás Cubas, toda a realidade e a imaginação, o desespero e as pequenas alegrias, as emoções e o conhecimento racional de si mesmo (Machado) que fizeram desta obra o que ela é = caminho aberto para o desenvolvimento e a pesquisa da literatura brasileira. Achando que já enchi demais nesta dedicatória tão boba perto desta que vai abaixo, despeço-me. ‘Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico com saudosa lembrança estas Memórias Póstumas’ Seu amigo sempre, J. Valentim”
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Correm os anos, Emílio estuda e trabalha na secretaria do colégio; mora bem e tem toda a infraestrutura doméstica. Com Valentim uma relação quase de pai para filho, raramente se desentendiam e quando isso acontecia jamais baixavam o nível do tratamento civilizado. Seu Menegal sempre na mesma, os problemas de saúde não regrediam, mas não mais o incomodavam. Praticamente imoblizado, já que a perna esquerda estava tomada por inflamação crônica, deslocava-se com o apoio de bengala e com dificuldades, costumava ficar horas e horas sentado na micro varanda da casa com um rádio portátil colado na orelha. Emílio conseguiu uma alma boa para a limpeza e arrumação da casa, uma senhora moradora no bairro, a alimentação do pai vinha de uma
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pensão dali mesmo. Enfim, não se sentia culpado por ter-se afastado do pai. Valentim, a esta altura já cumprindo seus cinqüenta e cinco anos de idade, era considerado pelos amigos como bem aventurado. Emílio não teve dificuldades, passou direto no vestibular para o curso de Letras. Em todo o período desse curso pouca coisa aconteceu de marcante na vida dos dois; no entanto, o que poderia ser um mesmismo era a expressão da tranqüilidade, o que o beneficiava enormemente. Após a graduação prestou concurso para uma instituição federal, iniciou sua vida no magistério com a vantagem de ter em Valentim, como sempre e durantes tantos anos, um preceptor de primeira qualidade. Por outro lado, Emílio foi atento discípulo, soube valorizar a orientação do mestre, amigo e companheiro. O clima do relacionamento de ambos invariavelmente era de muito boa qualidade, Valentim sabia de seu papel junto a Emílio, da importância de estar forjando uma pessoa em vários sentidos, sendo os mais importantes deles o caráter, a seriedade profissional, o apego à profissão e o profundo respeito a qualquer tipo de pessoa, sem discriminações e quaisquer outras manifestações de deformação mental. E surgiu a novidade, surpresa. Emílio, numa conversa de certa forma ensaiada informou Valentim sobre Mônica. Claro, uma pedrada, pela sua experiência de vida o professor conhecia muitas histórias com esse roteiro, mas na pele a coisa é sentida de outra maneira; um aperto no coração, parecia que lhe faltava o ar. Mas, como sempre acontecia em momentos de grandes dificuldades, conseguiu controlar-se, provavelmente às custas de
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prejuízos físicos e psicológicos, uma informação como essa e na altura de sua vida certamente deixaria seqüelas. Sabemos que o sentimento de perda tem tudo a ver com o de posse. Não era o caso no relacionamento de Valentim e Emílio, mas é óbvio que não passaria em branco. No entanto, hábil e sensível, Valentim percebeu Mônica como mais uma pessoa no seu círculo afetivo, dominado pelo espírito paternal que sempre prevaleceu nas suas relações com Emílio. Marcado pela característica do amor incondicional compreendeu a situação, resignado e, mais que isso, disposto a facilitar as coisas para o lado do casal. No seu entender Emílio merecia encontrar a felicidade nesse novo lumiar de sua vida. Meses antes do casamento Emílio decidiu comprar um apartamento, seria em Niterói. Através de empréstimo na Caixa Econômica Federal o contrato foi acertado e Valentim o surpreendeu oferecendo como presente aos noivos a entrada do imóvel e a responsabilidade sobre a fiança. E, assim que Emílio recebeu as chaves, tratou de providenciar os móveis e os utensílios de cozinha, enfim, equipou o apartamento com simplicidade e bom gosto. Claro, Valentim foi um dos padrinhos, cerimônia simples como convém às pessoas discretas, apenas um coquetel para o brinde aos noivos. Seu Menegal compareceu, Emílio alugou um terno azul-marinho, alugou também um táxi que o apanhou em casa e foi deixá-lo após a cerimônia e os festejos. Dizem que chorou fininho quando o padre abençoou os noivos. Valentim adoece. A esta altura estava trabalhando na secretaria de educação do estado do Rio de Janeiro, sessenta e poucos anos, idade na qual surgem os efeitos de nossos
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desmandos na juventude. Essa afirmação pouco se aplicava a ele, que sempre foi identificado como uma pessoa de hábitos saudáveis e comedidos, não bebia nem fumava, gostava de sua casa e do conforto, seus livros e a música. Adorava os espetáculos no Teatro Municipal, um dos primeiros programas que fez com Emílio foi assistir uma companhia de dança clássica nesse monumento da cultura. O teatro também fazia parte de seu menu, mas somente se habilitava a assistir uma peça quando recebia recomendações de amigos e lia a crítica; nada mais aborrecido do que agüentar um espetáculo teatral desagradável, fora de seus interesses e gosto. Emílio recebeu com preocupação essa notícia. Ele e Valentim tiveram longas conversar sobre o como cultivar a saúde, achava e com razão que o professor tinha vida sedentária, excesso de peso, sobretudo quando sua idade se aproximou dos sessentinha. O diagnóstico, implacável, um tumor no estômago. A princípio desconfiou-se de úlcera gástrica, enfim, uma doença benigna.. No entanto, depois de uma biópsia nova bomba explode na vida do professor. Inicia imediatamente o tratamento, recorre ao médico mais conceituado em oncologia no Rio de Janeiro, Dr. Raimundo Macedo, um dos fundadores do Instituto Nacional do Câncer e unanimidade quanto a competência. O início do tratamento trouxe expectativas positivas, o próprio médico buscou motivar Valentim. Mas, meses se passaram, o tumor regrediu um pouco, em seguida atacou firme anunciando fim trágico para o professor. Estava condenado. Emílio e alguns parentes de Valentim, entre eles sua única irmã, de Minas Gerais, souberam da morte anunciada, a medicina entregava os pontos. Num sábado ensolarado de fevereiro, Emílio e Mônica acompanharam os últimos momentos do professor
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e inesquecível amigo; essa trágica perda ele tinha que enfrentar. Semanas depois do enterro do professor Mônica e Emílio foram à Gamboa. Domingo quente, verão carioca, a pequena varanda quase não deu para abrigar os três, mas era o lugar mais arejado da casa. Conversa vai, conversa vem e surge o tema: inventário e herança do professor Valentim. Seu Menegal de repente pergunta: “E o apartamento de Botafogo, ele deixou pra você?” “Não”, responde prontamente Emílio, “ficou para a irmã que vive em Minas Gerais”. Seu Menegal, entre surpreso e indignado, mexe-se na cadeira, vocifera: “Mas que viadinho mais fiadaputa esse Valentim !!!!
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“Inter faeces et urinam” “Se uma idéia nos persegue, fica conosco muitos anos ...........suga como um vampiro até nos livrarmos dela, colocando-a no papel” Truman Capote “É muito difícil ser cavalheiro e escritor ao mesmo tempo” W. Somerset Maugham Obs.: Qualquer semelhança com pessoas ou fatos reais não é mera coincidência
Conheceram-se na livraria Da Vinci, centro do Rio de Janeiro. Próximos ao caixa trocaram olhares de simpatia, pintou um clima. Ricardo furtivamente constatou: boca de beijo, dentes perfeitos, belo sorriso e ainda uma bundinha empinada, saliente, beneficiada pela calça justa e sandálias de salto alto. Rita não estava diante de um Alain Delon mas Ricardo tinha bom porte, roupa de grife, voz agradável. Imediatamente trocaram idéias sobre livros, autores, preferências, saíram juntos, na Av. Rio Branco antes de se despedirem Ricardo anotou o telefone da recém-conhecida, prometeu ligar no mesmo dia, assim aconteceu. O convite foi para jantar, continuar a conversa, interesses comuns. Ricardo foi apanhá-la, uma casa tipicamente suburbana, na transversal ao Boulevard em Vila Isabel.
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Conheceram-se melhor, mas ainda reticentes. A partir do segundo encontro começou o namoro de fato. Nos seguintes, não muitos, progressivamente foram se soltando, trocando carícias, adultos e desimpedidos freqüentaram motéis, também o apartamento de Ricardo no aristocrático Parque Guinle. Daí para o envolvimento afetivo não durou muito, ambos amadurecidos caminharam para uma relação que permitia ser duradoura. Sem apuros mas também sem delongas. Os amigos de Ricardo, os mais próximos, festejaram. Apontavam nesse sentido, suas mulheres também. Era o único do grupo que trocava de acompanhante a cada encontro com eles, quase todos casados há anos. Desde seu desquite estava mais que na hora de encontrar uma pessoa certa, eleger uma parceira, juntar-se maritalmente com alguém, quem sabe filhos, afinal nenhum dos dois estava com idade para desprezar essa possibilidade. O “casamento” discreto, informal, apenas parentes e amigos, foi assim que Ricardo passou a conhecer tios e primos, amigos de Rita, gente do interior do estado do Rio, colegas de trabalho também. Ricardo limitou os seus convidados, apenas os que faziam parte do seu círculo de amizades, importante era a presença de seus pais, que aprovaram Rita como futura nora; e, claro, os amigos de sempre e da empresa onde trabalhava, cerimônia sem badulaques religiosos e coquetel bastante alegre, festivo, “petit comité”. Vida de casado tranqüila, Ricardo chefiava a consultoria financeira de uma multinacional, a Arthur Young Informations Systems. Rita conservou seu emprego na Prefeitura, funcionária concursada desprezou o curso de letras e a possibilidade de lecionar, mas a formação lhe servia e muito na seleção da boa leitura, um hábito do casal.
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Após aproximadamente seis meses de casados, num final de tarde, Ricardo estava em casa, no escritório/biblioteca, debruçado no desenho de um novo projeto. Atenção interrompida, D. Zileide, faxineira dele há mais de dez anos, pede desculpas pelo incômodo, era urgente, importante: D. Maria do Carmo, mãe de D. Rita, estava alterando a rotina de seu trabalho, ora com críticas, ora com ordens autoritárias, tornando o clima bastante pesado para ela. Situação difícil, demissão na alça de mira certamente. Surpresa, Ricardo ignorava essa presença constante de sua sogra no apartamento, intromissão grosseira, claro. Tranquilizou a faxineira, iria saber das coisas, o que estava acontecendo, assim que Rita chegasse do trabalho. E de saída perdeu a parada, ....................D. Zileide foi despedida. Rita justificou as freqüentes “visitas “ de sua mãe: apartamento enorme, construção antiga, precisava de uma pessoa mais jovem e competente que a fiel faxineira para cuidar de tantas coisas, deixar tudo em ordem. Não informou sobre a quase diária presença de sua mãe por julgar que as atividades domésticas escapavam às suas preocupações , justificou. E Ricardo deixou-se ficar alheio a essa questão, Rita e a mãe passaram a administrar a casa com carta branca. Depois desse episódio D. Maria do Carmo passou, efetivamente, a dar meio expediente diário, o pretexto foi cuidar pessoalmente das roupas da filha, orientar a empregada, recomendada por uma vizinha lá de Vila Isabel, gente conhecida. A vida do casal não era diferente de tantos outros, marido e mulher com seus respectivos empregos, depois do trabalho voltavam juntos para casa. Nos fins de semana costumavam se reunir com os amigos, casais também, iam ao cinema, ao teatro, esticavam habitualmente num bom
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restaurante. Com frequencia subiam a serra, Petrópolis ou Nova Friburgo, sobretudo no verão. Iam também a Angra dos Reis, na época considerada “point” de gente da alta, endinheirada. Praia raramente, Ricardo considerava programa de índio, Rita evitava expor-se de maiô, suas coxas grossas, roliças e desejáveis para certa categoria masculina, rapidamente acumulavam gordura, placas visíveis de celulite, um corpo do tipo pera: seios pequenos e traseiro mediterrâneo.
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Dois anos depois Anunciou a lipoaspiração. Ricardo sem tirar os olhos do jornal fez um aceno de positivo. Problema dela. Lembrou-se, com certa maldade, de Érico Veríssimo e a observação de que as belezas plebéias fenecem cedo. Certamente, Rita tinha apenas 34 anos de idade. Desequilíbrio hormonal, pode ser, genética, talvez, mas precisava mesmo dessa intervenção, já estava na fase de não conseguir usar uma calça justa. Mas, como problema Ricardo tirou de letra, não era o que o preocupava. Sim, outros surgiram em outras esferas, inferno à vista. Quando voltava das viagens era submetido a interrogatório, sempre sobre eventuais mulheres que conhecera. Sua roupa era examinada, cheirada. Desconfiava que até sua carteira de dinheiro e documentos de sua pasta de trabalho também fossem alvo de investigação. Rita, que controlava as finanças domésticas, inclusive com poderes para fazer aplicações, sacar, depositar, enfim, tinha pleno conhecimento sobre as despesas do casal. Qualquer novidade, desvio, compra não programada era atentamente objeto de esclarecimentos. Ricardo, na realidade, como tinha a vida limpa, com “fair play” achava graça dessas preocupações, caracterizando-
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-as como uma demonstração de insegurança, só isso. Mas, exatamente essa displicência, desatenção cavaram seu próprio buraco. Certa feita disse que ela precisava também de uma lipo no cérebro, o que causou reação surpreendente em sua mulher, pela primeira vez ela rodou a baiana e despejou um monte de barbaridades verbais sobre ele. A primeira de uma série. Quinze anos mais velho que Rita mantinha-se fisicamente bem, era comedido na mesa e no copo, aparentava muito menos idade. Estava sempre de bem com a vida, raramente se aporrinhava ou perdia o bom humor. Daí sua tolerância ao comportamento obviamente exótico de sua mulher e à própria presença da sogra em sua casa diuturnamente. Seus amigos, particularmente os que o conheciam desde os tempos do ginásio, invejavam esta forma de estar de Ricardo, diziam que ele não vivia, surfava despreocupadamente a vida. Corria a década de 80 A situação do país não era boa, problemas econômicos sérios, inflação alta. A recente redemocratização do Brasil e a má administração político/economica atingiam frontalmente a qualidade de vida, sobretudo do povão, das classes menos favorecidas, como sempre acontece. Muitas organizações privadas tiravam proveito exatamente desse caos; os bancos por exemplo, era o caso também da multinacional onde trabalhava Ricardo. Historicamente é o que acontece em economias com o rótulo de liberais; mas, na realidade, apenas a prática dos habituais arbítrios empresariais com o consentimento nem sempre discreto do poder público: estranha cumplicidade. Ricardo sentia-se firme em seu emprego, recebia excelente contraprestação dos seus serviços profissionais, além de generosa carta de benefícios, o que
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lhe permitia a aplicação de seu dinheiro excedente em papéis seguros, geralmente com garantias de poderosas instituições estrangeiras. Num belo dia foi procurado pelo sogro. Seu Olegário, aliás, um ótimo sujeito, que também como o genro tinha constantemente suas vidraças ameaçadas pela mulher, recomendava que parte das aplicações do casal fossem dirigidas à compra de imóveis. Trabalhava no ramo, sabia das coisas, sabia também que papéis, mesmo com garantias, podem de repente virar subnitrato de pó de traque, particularmente neste nosso Brasil. “Olha só o que aconteceu com o Banco Boavista”, repetia com frequência. Ricardo convence-se, acha que é uma boa, Rita foi chamada à presença de ambos e naquele momento decidiram pela diversificação das aplicações. “ Segurança , segurança” repetia seu Olegário,” é com casas e apartamentos para a classe média baixa, esses pagam corretamente os aluguéis; tenho certeza de que se esse momento será um dia lembrado, “ sentenciou . Rita tratou de tudo. Compraram casas, uma pronta e outras duas em construção em Guadalupe. Resgataram aproximadamente 80% das aplicações, Ricardo assinou a papelada, passou procuração para que Rita pudesse agir sem a sua presença física, sequer leu as escrituras. D. Maria do Carmo, sim, acompanhou de perto toda a operação, foi ao cartório com a filha, ela mesma queria certificar-se de que tudo estava de acordo com o figurino. Ricardo limitou-se a comemorar a façanha, foram todos almoçar um bacalhau à portuguesa no restaurante Timpanas, ali na Rua S. José. No entanto, nem o ambiente “festivo” tirou da sogra a carranca de mulher mal resolvida. Um estupor. Pouco tempo depois, nova investida , dessa vez pessoal-
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mente por Rita: uma série de conversas com Ricardo, a idéia era a de negociar o apartamento do Parque Guinle por um outro, se possível em Ipanema. Sonho antigo de Rita. Ricardo alegou que estavam bem instalados, próximos ao trabalho de ambos, havia também a parte afetiva já que tinha sido moradia de seu avô, seus pais, ele mesmo foi criado naquele ambiente, um privilégio. Enfim, muitas alegações, argumentos para que permanecessem por lá. Rita não ignorava todas essas ponderações mas, habilidosa no convencimento, conseguiu dobrar Ricardo, afinal um imóvel pelas bandas de Ipanema ou Leblon tendiam a valorizar-se muito mais que um prédio antigo, mesmo considerando sua localização muito especial. Mais que isso, mudar para a proximidade das praias traria até mesmo um novo estilo de vida para o casal, já que os bons restaurantes, bares e casas de diversões estavam por aquelas bandas da zona sul. Escolheram um próximo à Pça. N. S. da Paz, coração do bairro. Operação cruzada, Ricardo teve o leve sentimento de que ficara no prejuízo. E Rita, em curto espaço de tempo, passou a ser co-proprietária de quatro imóveis, nada mal para quem teve uma infância e adolescência difíceis, pouca grana, detestava Vila Isabel; mas, claro, isso já era coisa do passado e merecia o esquecimento. Morre seu Olegário Péssimo para Ricardo. D. Maria do Carmo desativa sua casa e muda-se definitivamente para Ipanema, apartamento de sua filha, claro, da filha e com papel passado. A presença da sogra em expediente integral não agradou Ricardo, que já estava percebendo alguns pontos de fria nesse casamento. No entanto, ponderou para si mesmo, afinal em suas freqüentes viagens a sogra faria companhia à filha, se
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entendiam muito bem, meno male. O casamento seguia, altos e baixos, tinham folga financeira e segurança econômica, bom padrão de vida, mas entre Rita e Ricardo a afetividade estava de morna para baixo. Sem conseqüências para o apetite sexual, pelo menos Ricardo tinha enorme tesão por Rita, sempre. Para ele bastava que se encostassem, que sentisse o cheiro de seu corpo.
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Correm os anos Janeiro de 1990. Ricardo festeja data emblemática, sessenta anos de idade. Como sinais de desgaste a calvície iminente, alterações no corpo, cintura grossa, rugas no rosto, início da velhice, ninguém escapa, ninguém chega aos sessentinha impunemente. Pressão arterial sob controle, o cardiologista fez uma série de recomendações: atividades físicas, alimentação regrada, enfim, o trivial. Viagens freqüentes, ritmo de trabalho, enfim, muitas variáveis impediam Ricardo de seguir atentamente essas recomendações. Mas dava para segurar nas refeições, assim como no consumo da cerveja e do whisky, recursos e apoio para atender a necessidades impostas pela solidão dos quartos dos hotéis. “Os gringos pagam bem,”, comentou certa feita aos amigos, “mas esfolam até sangrar.” Bomba! Foi chamado à sala do Mr. McGrath, seu chefe imediato. A empresa passava por um processo de reorganização, redução de custos, renovação dos quadros, ............estava demitido. Elogios, sempre foi um profissional exemplar, competente, mas os tempos mudaram, Ricardo sem mais nem menos estava no olho da rua. Começou como engenheiro de sistemas, fez carreira, assumiu a chefia da Divisão de Projetos Especiais, graças também ao domínio
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da língua inglesa. Surpresa, sentiu-se um lixo. Uma organização com uma malha imensa de filiais pelo mundo e é sumariamente descartado? Grosseiro, ridículo, duro de engolir. Forçou uma cara normal e entrou em casa. Rita e D. Maria do Carmo assistiam televisão, a novela das oito. Explicou-se, tinha passado no bar do Jockey Club, encontrou amigos, o tempo passou rápido, perdeu a hora. D. Maria do Carmo dirige-se à copa visivelmente contrariada, chama a empregada e manda servir o jantar. Na sala só o casal, Ricardo aproxima-se de Rita e pergunta baixinho: “Você leu A morte do Caixeiro Viajante ?” “Não”, responde Rita, que percebe nessa pergunta e mesmo na expressão de Ricardo alguma novidade, coisa ruim. Anos de chumbo Contatos com empresas, principalmente as que conheciam a qualidade do seu trabalho, visitas a “head hunters”, nessa fase de sua vida sentia estranhamento, nunca havia imaginado estar numa situação dessas. Pesava a sua idade, pesava ter trabalhado muitos anos, décadas, apenas numa estreita área de competência, extremamente especializada, muitos amigos e também gente que passou a conhecer nos contatos recomendavam o ensino, sim, poderia ser aproveitado como professor, em cursos acadêmicos ou intensivos, enfim, tinha que se preparar para novas atividades, isso a cada momento parecia ser a lógica, a saída honrosa. E fechou o clima em casa. Rita o bombardeava com perguntas sobre os avanços de suas iniciativas junto ao mercado, a insistência era tanta que Ricardo perdeu momentaneamente a sua clássica postura de homem cordial. Sujeito a cobranças, absolutamente inúteis, além de críticas, a alegação de que Ricardo
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deveria ter sido mais político, muitos dos seus colegas conseguiram postos de diretoria e ele insistia em permanecer na área técnica, acusava Rita: “ Deu no que deu, e aí ?”. “Vá à merda!”, disse Ricardo quando ela terminou o discurso. O jeito era passar a maior parte do dia fora de casa. Rita ia para o trabalho mas tinha a sogra sempre como uma espécie de sombra que o incomodava; era observado por ela, cada telefonema, cada passo, quase um filme de terror. Não raro filha e mãe cochichavam pelos cantos, até mesmo na sua presença, conversavam interminavelmente trancadas no quarto, realmente um panorama assustador. Sentia-se um estranho dentro de sua própria casa. Aposentadoria ? Sim, rápido, um contador reuniu a papelada e entrou com o processo no INSS. Cinco anos se passaram, suas reservas estavam sendo consumidas pelas despesas domésticas, tentou as aulas, não foi difícil conseguir trabalho como professor mas os vencimentos eram abaixo da crítica. Desistiu. O ensino universitário a partir da década de 90 noventa estava sendo sucateado, considerado apenas um bom negócio; elevadas mensalidades dos alunos e baixos “salários” para os professores, era a cartilha para o lucro desvairado. E sob as barbas das instituições públicas que festejavam a livre iniciativa dos modernosos empresários dessa área, como parte das políticas de progressiva privatização do ensino superior em todo o país. Praticava-se um crime contra a nação. Ricardo chegou ao limite de suas finanças, percebeu que tinha de sacrificar pelo menos um imóvel, pura necessidade. As três casas em Guadalupe estavam rendendo pouco, aluguéis baixos, Rita tratava de tudo mas sob esse aspecto as coisas não andavam bem. Pelos seus cálculos e pelas in-
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dicações de valores de aluguéis que os jornais publicavam, a perda era de quase 30%. Conversou com Rita a respeito, ela se explicou mas não o convenceu. Enfim ........ A idéia de vender uma das casas não agradou Rita e muito menos D. Maria do Carmo, sempre atenta quando o assunto girava em torno da perda do patrimônio da filha. Apesar de seus parcos estudos é velha esperta quando há valores envolvidos, era o caso dessa possível negociação. A situação não era desesperadora mas de prudência nos gastos. Os supérfluos como saídas a restaurantes, passeios nos fins de semana, estavam cortados há anos. E assim muitos amigos se afastaram, é o natural nessas circunstâncias, as regras do jogo social são em muitos casos severas para quem perde cacife. Pintava dentro de casa o clima de separação do casal...... por exaustão, Ricardo nunca teve dúvidas da forte influência de D. Maria do Carmo nesse sentido, imaginava que em suas rezas ela apelava aos santos a proteção de sua filha e descarte para ele o quanto antes. Sob o ponto de vista de Ricardo só o seu afastamento da sogra era um bom negócio. Anos e anos e a presença daquela mulher atingiu o insuportável. Separação civilizada, sim, e o divórcio seria a única saída, tinha terminado o ciclo do casal Rita e Ricardo, estava mais que na hora de cada um buscar o seu próprio destino. No entanto, tinham vida sexual ativa, dormiam juntos, nenhum desentendimento foi capaz de afastar o tesão de ambos; é evidente que D. Maria do Carmo sabia dessas intimidades , ela mesma cuidava da roupa de cama do quarto do casal que sempre apresentava os habituais vestígios . Esse detalhe pontuava para Ricardo, provavelmente como um aproveitador de sua filha, daí as crescentes manifestações de hostilidade da sogra.
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Cada um procurou o advogado de sua confiança, iniciou-se o processo de divórcio. D. Maria do Carmo deve ter agradecido aos santos de sua preferência, finalmente teria a sua filha somente para si. E Rita, quem sabe, com cinqüenta e poucos anos -- ainda bonita – a chance de um outro casamento. Sto. Antonio sabe o que faz. Ricardo imediatamente após a decisão sobre o divórcio contratou um despachante, pediu um levantamento no cartório de registro de imóveis: verificar as condições legais das três casas de Guadalupe e do apartamento da Nascimento Silva. Desconfiava de algo podre, sua intuição recomendava o preto no branco, documentos em suas mãos. Surpresa, tudo bem com o imóvel de Ipanema mas apenas uma das casas de Guadalupe estava em nome dele e de Rita; as duas outras tinham sido vendidas há mais de três anos. A princípio imaginou que o despachante estivesse equivocado, ele mesmo foi conferir, não deu outra. Procurou seu advogado, lembrou-se da maldita procuração que passou para Rita. Tarde demais. Nela Rita teve plenos poderes e fez uso deles, nada poderia provar que ela se conduziu fora da lei, o jeito era engolir em seco e aceitar essa realidade, dura por sinal. Em casa chamou Rita para uma conversa no quarto, só os dois, portas fechadas. Ela não se fez de rogada, simplesmente abriu o jogo, estava se sentindo insegura com a situação financeira de Ricardo, poderia sobrar para ela, , negociou as duas casas, com o dinheiro comprou um quitinete no Flamengo, estava no nome da mãe. O quê fazer ? Torcer o pescoço da referida ? Dar pontapés em sua bunda rechonchuda ? Expulsar as duas mulheres de casa ? Tomar um porre ? Adiantaria alguma coisa perder a elegância, mesmo considerando a sacanagem das duas cúmplices ? O melhor era
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se livrar de ambas imediatamente, com o tempo encontraria um recurso qualquer para compensar as perdas, imaginava. Numa certa noite estava na cama, deitado, ruminando o seus sentimentos negativos e principalmente a sua decepção, apenas olhava a televisão, meio dopado pelas recentes revelações. A porta do banheiro aberta, Rita escovava os dentes, tranqüila, como se nada estivesse acontecendo: para ela, a iniciativa de vender as casas foi uma questão de garantia , permitiu a compra do apartamento do Flamengo , sua mãe merecia e como filha única o futuro seria menos incerto. Raciocínio típico dos canalhas que usam a racionalização para justificar seus delitos. Da posição que estava a parte mais visível de Rita era seu imenso traseiro. A camisola, de tecido fino, deixava à mostra a poderosa bunda, quase toda, aquela mesma bunda que durante todos esses anos foi tão desejada por Ricardo. Tara. Olhando certos detalhes, com maldade, Ricardo se concentrou na pele “casca de laranja”, na celulite que pelo tamanho da dispersão lembrava as dunas maranhenses. Era todo o traseiro, quase, e a parte superior das coxas. Mais ainda, o rego acinzentado, quase um fio escuro pela contração das bochechas. Rita estava ruim de corpo, um bom motivo para Ricardo se escafeder, cair fora. Nada mais que outra faceta da racionalização. Certamente encontraria uma outra mulher com o prazer sexual que sempre teve com Rita: com ela saiu de um orgasmo puramente genital e frio para uma explosão cerebral, semelhante a um ataque epilético, indescritível, animal. E assim aconteceu. Ressentimentos e decepções sim, brigas não. Logo depois da audiência com o juiz que sacramentou o divórcio ambos saíram quietos e sem trocar olhares, apenas um tchau de ambos simultaneamente. Fim. Seu sen-
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timento foi muito próximo ao do dia que perdeu o emprego, logo depois do anúncio de sua demissão: preocupação e alívio. No bar do Jockey , vazio àquela hora da tarde, pediu whisky, precisava colocar a cabeça em ordem. Sim, a partir daquele momento sua vida teria rumo traçado pela cabeça, por projetos, era o que sabia fazer e bem, restava contabilizar o prejuízo assim como avaliar os salvados do incêndio. O dinheiro da aposentadoria, uma miséria se comparada aos seus últimos salários na AYG Informations Systems, sabia que como professor não valia sequer suar a camisa. Trataria a sua vida com maiores cuidados, desenho das expectativas, aplicação dos recursos, sentia-se só e com o sentimento do desamparo. Estranhamento sim, mas daria uma guinada, a começar pelo lugar onde morar, viver. O Rio de Janeiro para ele não tinha mais sentido. Petrópolis e outras cidades da região serrana foram alvos como possibilidade. E assim que conseguiu uma casa compatível, em Nogueira, mudou-se de corpo e alma. Vendeu seu carro, na realidade o trocou por um modelo popular, econômico sob vários aspectos. Seu lema: simplificar a vida, desaporrinhar a vida. Percebeu que as preocupações do homem comum não mais cabiam nele, a essa altura de sua vida não precisava ser bonito, elegante, forte, muito menos ter um pau grande. Estava acima desses paradigmas da equivocada cultura brasileira, principalmente a urbana, e isso o tranqüilizava; sentia-se melhor, certa leveza; gradualmente afastava, num processo de seleção, os badulaques impostos por uma cultura de merda e seus falsos valores. Uma outra companheira? Por que não? Mas, cada um na sua, nada de juntar os trapos, casamento convencional nunca mais!!, remoia. A casa, modesta, ficava nos altos desse distrito petropolitano. Bons vizinhos, na maioria veranistas . Teria,
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portanto, privacidade e silêncio, precisava de um ambiente tranqüilo que passou a ser exigência pela adoção de novo estilo de vida. O quarto, enorme, abrigou também os seus livros, aparelho de som e uma escrivaninha – que comprou num antiquário -- onde instalou o computador. Um quarto para hóspedes – afinal ainda tinha amigos -- a cozinha e a área de serviços entregou à responsabilidade de D. Cotinha, moradora no bairro e ótima empregada doméstica; um achado, no Rio não existe mais. Adotou vida regrada, comparecia três vezes ao Petropolitano para mexer o esqueleto, aulas coletivas de ginástica mais musculação, gostava de andar pelo bairro e isso fortalecia suas pernas, terreno acidentado, em caminhadas quase diárias. Lia muito, tinha uma rede de amigos que permitia a permuta de títulos que lhe interessavam, iniciou um livro sobre suas andanças pelo Brasil, não só abordando os aspectos profissionais mas com visão ampla, apoiado em seus recentes conhecimentos de sociologia. Um mesmo país, o mesmo brasileiro em culturas tão diferentes. “Impressões de um viajante pelo interior do Brasil” prometia, os amigos que liam a matéria assim que ele progredia aprovavam o estilo, a temática e a qualidade e apuro no uso da língua portuguesa. Mas Ricardo escrevia sem intenções intelectuais, se um dia alguém se interessasse pela publicação, tudo bem, caso contrário nenhuma alteração: sua motivação não era exatamente essa. Escrever, para ele, significava doação, catarse e sobretudo prazer, admitia somente que seus escritos pudessem vir a ser de importância para certas pessoas em situações peculiares, seu legado e testemunho, não estava preocupado em definir seu eventual público. Não foi fácil acostumar-se a essa radical mudança em sua vida. Muitos foram os momentos que indicavam a vida
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solitária, teve receios de sentir a amargura da solidão. Mas o tempo foi terapêutico: superou as fases ruins, fortaleceu-se exatamente com o estar e pelo estar só. Estimulado por um vizinho, também sessentão , viúvo, teve contatos com grupos chamados da “terceira idade”, ou “melhor idade”. Recuou. Assistiu cenas em que pessoas envelhecidas eram tratadas como crianças debiloides, um processo de infantilização-imbecilização; a coordenação desses grupos geralmente exagerava nos aspectos motivacionais, lembrou-se de Nelson Rodrigues: “Jovens, envelheçam, vocês não sabem o que estão perdendo”, foi o que afirmou certa feita o dramaturgo com sua habitual ironia, já um velho doente, condenado.. Na realidade a velhice é um chute nos culhões. Depois dos sessenta começam a surgir os problemas de saúde típicos da idade avançada, o organismo enfraquece, perde gradativamente as suas defesas, dependência à vista, é o pior que pode acontecer com uma pessoa lúcida, velha ou não. Mais a feiúra física como a deformação dos corpos e, principalmente, a transformação dos rostos em maracujás de gaveta. Chamar um velho de bonito é puro escárnio, zombaria, todos os velhos são feios, ficaram feios. Bonitas são as pessoas jovens e estamos conversados, sentenciava. Nada feito, portanto, quem goste que freqüente esses grupos, comigo não, repetiu para si mesmo várias vezes. Gostava da presença de seus amigos do Rio, os autênticos, sempre tinham muito assunto, pilheriavam com os problemas próprios e dos outros, eram sim encontros de extrema satisfação que aconteciam geralmente nos fins de semana. E em Petrópolis o que Ricardo mais gostava eram as reuniões e palestras na Universidade Católica: brasileiros e estrangeiros, filósofos, cientistas, professores de renomadas universidades daqui e do exterior,
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enfim, nesse ambiente ele se sentia como patinho na água. Era o seu ambiente. Correram dois anos Raramente os amigos comentavam alguma coisa sobre Rita, o que não despertava em Ricardo o menor sentimento. Para ele Rita estava mortinha da silva, coisa para o esquecimento. Durante um período, assim que foi morar em Petrópolis, recebeu cartas dela. Sequer as abria, as atirava à lata de lixo. Velhaca, suma, foda-se !! Um dia belíssimo do inverno petropolitano, frio suportável e o sol dando um show de luzes , diversos matizes, uma festa. Era dia de ir ao clube, gostava do horário matutino, sentia-se ótimo com os exercícios, mais ágil, custou mas perdeu quilos, enfim, um santo remédio, além das amizades, claro, o interesse comum aproxima as pessoas. Na volta para casa deu carona a uma colega do grupo, uma esticada até Itaipava. Trânsito intenso, a União Indústria em certos horários imita em congestionamento as grandes cidades, é estreita e sinuosa, notou um carro que não descolava de sua traseira. Foi fácil conferir, quando pegaram a via dupla ele diminuiu a marcha, em seguida arrancou, o tal carro repetia esses movimentos. Deixou a moça próxima de um shopping, manobrou e voltou pelo mesmo caminho. Nem sinal do carro “perseguidor”. “Será que estou ficando paranóico ? “, indagou para si mesmo. Saía do chuveiro. D. Cotinha bateu na porta do quarto e anunciou, uma moça queria falar com ele, estava na varanda. Ricardo vestiu o agasalho esportivo, fazia frio. Constrangimento, sim, mas recuperou-se rapidamente. Convidou-a para entrar. Sentaram-se vis-à-vis, constatou em sua ex-
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-mulher as marcas visíveis de uma cirurgia no rosto, para ele mal sucedida, o olho esquerdo bem maior que o outro, a pele do rosto esticada, lustrosa, artificial, a boca ligeiramente torta, como se faltasse um cigarro no canto esquerdo; lembrou-se, num lampejo, de Danuza Leão, recentemente tinha cruzado com ela numa rua de Ipanema. Rita num “vistazo” examinou a sala, perguntou como estavam as coisas, a vida de solteiro de Ricardo, enfim, papo típico de quebra-gelo. Ricardo surpreendeu-a, em vez de responder , perguntou: “ Já ouviu falar de Domenico De Masi, o papa da vadiagem funcional?”. Nesse momento D. Cotinha entra e serve cafezinho. O clima passou a ficar melhor, mais descontraído, aos poucos e só falando abobrinhas foram se soltando. Em muitos momentos olhos nos olhos e silêncio, apenas. E Ricardo percebeu que estava tendo ereção. Incontrolável. Ela também deu sinais, que ele bem conhecia, de que poderia pintar entrevero carnal . Enfim, a vitória do tesão sobre todas as merdas que acontecem com as pessoas, a chama que aproxima e pode afastar. Levantam-se sem dizer palavra, aproximam-se. Ricardo desliza as mãos pelas costas de Rita, aperta suas nádegas. Beijam-se com a sofreguidão com que dois negrinhos da Somália encaram um prato de comida. O mesmo perfume, os mesmo cheiros. Vão para o quarto, trancam a porta, foi uma manhã de desvario sexual condimentado por confusão de sentimentos. Bestial.
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Pelas asas da Panair, 1960
Manhã de feriado , meio da semana. Na praia do Leme um grupo de amigos aguardava a montagem da quadra de vôlei jogando linha de passe. E aparece no calçadão a moça morena com as filhas lourinhas do coronel Da Silva, que morava no mesmo prédio da Lota de Macedo Soares e Elizabeth Bishop e onde funcionava e funciona até hoje o restaurante Taberna Atlântica. Segurava as meninas, uma em cada mão e ainda por cima equilibrava a tralha: barraca, toalhas, chapéus e uma enorme bolsa. Bem feita de corpo, chama a atenção da rapaziada. Fernando antecipa-se aos amigos, dirige-se à morena e a ajuda a descer para a areia; mais que isso, também finca o pau da barraca e estende as toalhas. Sorrisos, agradecimentos, Núbia era o seu nome, dois dedos de prosa e fica sabendo que era parente do coronel, prima talvez, mineira, chegou no Rio de Janeiro disposta a enfrentar a seleção de pessoal da Panair do Brasil, queria porque queria ser aeromoça. Fernando volta para o grupo, a essa altura já estavam organizados 3 times, seria uma competição valendo refrigerantes. No dia seguinte Fernando tinha folga da faculdade e não deu outra: fica de campana na praia esperando Núbia aparecer, e assim aconteceu. Desta vez, já apresentados, as
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coisas estavam em mar de almirante, combinaram encontro naquele mesmo dia no final da tarde. De mãos dadas iam e vinham pelo calçadão da praia, da rua Antonio Vieira até o forte Duque de Caxias; assunto não faltou, as simpatias correram soltas. E pintou também a atração física, casal bonito, começaram pelos agrados, beijinhos inocentes e dois dias depois estavam rolando numa cama estreita do quarto de empregada da casa do coronel. E o segredo de Núbia ficou a descoberto, não era parente de ninguém mas babá das meninas. Tudo bem com Fernando, prometeu silêncio, moita. E como quase sempre acontece nessas situações, condições, em pouco tempo Fernando tomou fastio pela morena , resolveu tirar o time de campo. À francesa, se possível, menor desgaste para ambos. No entanto, mal sabia ele que estavam sendo observados por um amigo do Leme, este sim confesso apaixonado pela morena Núbia. Alberto aproxima-se de Fernando, diz que o tinha visto com “ela”. Num dado momento, repentinamente, pergunta ao amigo: “Me diga uma coisa, você está levando a sério esse namoro?” Fernando pediu mais um chope ao garçom, respirou fundo e fala abertamente: “Alberto, não posso mentir para você. Não quero nada de sério com essa moça, aliás, estou a fim de acabar com a relação”. O amigo, por sua vez, igualmente fortalece o sentido da amizade de ambos e se abri: “Meu camarada, estou fascinado CPOR essa mulher !!! Já que você não quer nada com ela, pelo menos me apresenta, daí em diante, deixa comigo”. Sim, promessa de Fernando, iria mesmo fazer a apresentação, mas duvidou que Núbia viesse a se interessar pelo amigo. Nada contra, era um rapaz inteligente, ótima pessoa, mas muito feio, tão feio que o apelido era rascunho. Mas, promessa é promessa, precisa-
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va mesmo é de um ardil, alguma coisa que despertasse nela alguma “atração” por Alberto. Combinam, então, que ele seria apresentado como filho do Paulo Sampaio, presidente da Panair. Tinha certeza, seria tiro e queda. Concordaram que seria o melhor, um dia ela vai descobrir a canalhice, paciência; o tempo se encarregará de transformar tudo isso numa brincadeira de mau gosto, no máximo, pode até dar certo, coisas da juventude. Quem não foi, quem não será? Dois dias depois, tudo acertado, Fernando e Núbia passeavam pelo calçadão, eis que aparece Alberto; é apresentado, os três ficam a conversar por algum tempo e, com uma categoria de grande ator Fernando solta um Ahhhhhhhh!!!, cara de espanto, revela para Alberto: “Núbia é de Formiga, Minas, está aqui no Rio para realizar o sonho de ser aeromoça”. Alberto, não menos ator, pergunta, dirigindo-se para a moça: “De que companhia?” Ela responde de imediato: “Quero trabalhar na Panair”. Os rapazes cinicamente fazem caras e bocas de surpresa e Fernando faz a revelação, numa cara-de-pau de invejar políticos: “Então a coisa está no bom caminho, Alberto, este meu amigo — descansa a mão direita no ombro do revelado — é filho do presidente da Panair, quem sabe pode dar uma ajudinha”. Núbia não se contém, abraça Alberto meio de lado, é toda sorriso, que coisa do destino, “hein minha gente de Minas Gerais”, é o que lhe passa na cabeça, eufórica. “Deus é grande”, repete para si mesma várias vezes. Os três combinam uma conversa entre Alberto e ela, a idéia era dele mostrar o caminho das pedras. E, a partir desse novo relacionamento de Núbia, Fernando sumiu do mapa. Curiosamente Núbia também “desapareceu”. Alberto idem: aceitou convite para trabalhar em Ribeirão Preto, interior do estado de São Paulo, nem deu notícias para Fernando
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sobre o que tinha acontecido, restou a história para um dia ser contada como mais uma molecagem praiana.. Passam-se dois anos. Fernando chega em casa, tinha sido um dia duro na Escola Politécnica, estava cumprindo os últimos créditos que o habilitariam a formar-se; cansado, tomou uma ducha e foi para o seu quarto. Minutos depois sua mãe bate na porta, quer falar-lhe, uma novidade. Fernando atende, e ela conta: “Hoje, logo depois no almoço, esteve uma moça lhe procurando. Disse que você voltaria pelas seis da tarde; ela, infelizmente tinha voo hoje à noite para os Estados Unidos, não podia esperar”. Fernando, entre ressabiado e curioso, interrompe: “E aí, e aí?!?” Calma”, diz a mãe. “Perguntou por você, pelo curso na PUC, lamentou não encontrá-lo, deixou de presente uma garrafa de whisky? É do que você gosta, não é mesmo? “Fernando, a esta altura está sentado na cama, estupefato, perplexo. E sua mãe complementa: “Uma morena bonita, de olhos verdes, com o uniforme de aeromoça da Panair, de nome Núbia. É sua conhecida de onde, meu filho? “Da praia, da praia, mãe”, pede para ficar sozinho. Precisava ficar sozinho.
Angra dos Reis, maio de 2010 cf-requiao@bol.com.br
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Aeroporto do Galeão, 1974 — Rio de Janeiro André desce do taxi, acomoda as duas malas num carrinho e dirige-se ao balcão da companhia aérea. Está mais de uma hora adiantado para o “check in”, mas ele é assim mesmo: disciplinado, não gosta de apuros e correrias. Aeroportos, voos e toda sorte de procedimentos para viajar é com ele mesmo. Exagerando um pouco vale dizer que nos quase 15 anos de Petrobrás talvez tenha passado mais tempo em aviões, embarques, desembarques e traslados do que propriamente na situação de trabalho, tão freqüentes são seus deslocamentos. Como geólogo suas missões duram semanas, meses. Comentam até que o seu caçula de dois anos, Paulinho, quando vai passear com a babá na pracinha, cada vez que vê um avião aponta para cima e diz: “papai”. Ausências de casa são cavacos do seu oficio. E Clara, em vez de procurar entender e aceitar essa circunstância da vida profissional do marido, transformou-se em vítima, enfim, as viagens de André com o tempo formaram uma espécie de bolha que a incomodava, irritava progressivamente. Com as amigas, amigos, seus pais, sempre que podia tocar nesse assunto com alguém manifestava o sentimento de mulher insatisfeita, indignada, estava cansada de levar o marido ao
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aeroporto. No entanto, os períodos que André passava no Rio, muitas vezes com generosas folgas para compensar o afastamento da vida em família, tinham um quê de normalidade: os dois filhos, o confortável apartamento da Gávea, as conversas em casa e oprazer dos encontros com amigos, a praia do Leblon, a vida escolar da filha mais velha , os supermercados, participando das atividades domésticas como qualquer cidadão e pai de família. Mas Clara exigia marido em tempo integral e, é evidente, sob cabresto. Nas últimas viagens, o clima da insatisfação elevou-se e o casal entrou em discussões e sérios desentendimentos: a tônica das acusações de Clara condenavam o marido como causa de toda a situação, era a de que não conseguia se impor na companhia, um frouxo, por isso mesmo era sempre quem ia para os lugares mais inóspitos; os outros se acomodavam em funções burocráticas, tinham uma vida regular, normal, como todo mundo. E Clara batia as tamancas, repetitiva, dava a impressão de comportamento teatral, ensaiado. Quando André voltou da última viagem, que nem durou muito, as discussões canalizaram-se para o pior: Clara propôs que se separassem , dessem um tempo, enfim, a coisa ficou preta. Por seu lado André contemporizava, insistia em defender sua carreira, não abria mão de suas atividades, não pretendia mudar os rumos do seu trabalho, irredutível, ponto final. “Como separar, dar um tempo ? Não bastavam os períodos que passavam distantes um do outro ?” , ironizou. Situação no mínimo intrigante, surpreendente. • 65
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André toma um cafezinho, compra um livro e fica de olho, atento no quadro de avisos sobre embarques e desembarques. Na hora prevista apresenta-se, passageiro para Buenos Aires. O destino foi decidido sem dúvidas. Na capital portenha passou a lua-de-mel, perfeito portanto para iniciar a exorcização do seu casamento. Marcou encontro com um casal amigo, de longa data, ele colega da Petrobrás: Guilherme estava trabalhando na subsidiária argentina há meses. Uma boa. No entanto, sentia-se desconfortável, um vazio enorme, parecia encurralado, pesadelo, foi tudo rápido demais, precisava colocar a cabeça em ordem. Recuperar o casamento ? Difícil, concluía. Atende a chamada para o embarque, vê o avião que o conduziria, era azul, isso o confortou. Azuis também os uniformes de toda a tripulação e a decoração interna do aparelho dividia o azul claro com a cor-de-creme, uma combinação bastante agradável. André sorriu, tranquilizou-se. Assim que o avião decolou e atingiu a altitude de cruzeiro cedeu às imposições do momento, impossível não pensar, repassar os fatos que desandaram nesse imbróglio e de forma tão radical, violenta. Nada melhor que um voo tranquilo. Sabemos que flashes do passado não surgem disciplinados, seqüenciais, lineares, mas em situações as mais surpreendentes; para a tomada de consciência nos esforçamos em trazer para o presente os mais comprometedores e clarificadores , os momentos críticos, como um cineminha; mas nossa memória é caprichosa e, provavelmente, um mecanismo de defesa impede que nos cheguem em penca, por maior que seja nosso esforço. Em muitos casos, como se diz por aí, caem as fichas, isto sim, e passamos a compreender o real significado dessas situações. Tarde demais.
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Leitura tardia que não permite acertos, reparações. Neste momento André lembra-se de um livro emprestado pelo seu colega de ginásio, Haroldo, que antes mesmo de passar para o curso científico já tinha se decidido pela futura profissão, seria médico psiquiatra. O texto de Freud dizia “.....ha que tenerse también en cuenta el hecho singular de que los hombres viven, en general, el presente con una cierta ingenuidad, esto es, sin poder llegar a valorar exactamente sus contenidos. Para ello tienen que considerarlo a distancia, lo cual supone que el presente ha de haberse convertido en pretérito para que podamos hallar en él, puntos de apoyo en que basar um juicio sobre el porvenir.....” Um dos flashes, talvez o mais elucidativo, revela Clara e as cenas de ciúme possessivo, os questionamentos irônicos, sempre em torno de supostas “amizades” de André, mulheres oferecidas que existem em toda parte. Realmente um nível de desconfiança doentio que não resiste a interpretações primárias. Esse comportamento sumamente desagradável, certamente no curso do tempo minou, destruiu o relacionamento do casal, particularmente ela mesma. Bem merecia um pontapé na bunda. André é tipo desligado, distraído, na verdade concentrado em questões para ele sempre mais importantes; deixava que tudo rolasse, num raciocínio simplista imaginou que as ridículas e infundadas desconfianças de Clara um belo dia cessariam. Questão de tempo. Clara, num “insight”, por si própria reconheceria seus equívocos. Ledo engano, claro. O perfil de André e seu descaso com essas manifestações podem ser compreendidos, como diria Steinbeck “...tipo que observa a vida como se fosse um garoto vendo passar um trem”. No entanto, e como sempre acontece depois dos
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fatos consumados, percebe que essas manifestações de sua mulher eram também recados de intenções veladas. Problemas à vista. • Duas décadas antes encontramos o nosso herói na praia de Copacabana, defendendo as cores do Lá Vai Bola, time de futebol de areia que reunia craques. O clube era também conhecido por ter em seus jogadores a rapaziada mais charmosa das praias. Os jogos do campeonato, geralmente nas tardes dos sábados, atraiam muita gente que se comprimia na estreita calçada da Av. Atlântica: torcedores com predominância de meninas-moças, compareciam muito mais para admirar e desejar os rapazes bem apanhados, alguns deles de famílias de destaque social, financeiro e cultural, “crème de la crème” da sociedade carioca da zona sul da cidade.. André pertencia a esse grupo, até torcida organizada o acompanhava onde o seu time enfrentava os adversários. Aproximações sim, sempre simpático e comunicativo atendia as meninas com extrema cordialidade. Assim que o juiz apitava, encerrando os jogos, os rapazes entregavam os uniformes para o roupeiro e quase todos iam tirar a areia colada em seus corpos suados num prolongado mergulho; o corpo quente, o suor e a água salgada davam a eles um brilho especial, particularmente quando anoitecia: enfeitiçavam as meninas. Ali mesmo eram assediados, não raro recebiam convites para festinhas no mesmo sábado. André não perdia as oportunidades. Adorava dançar, nessas reuniões sociais
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sempre ampliava o rol de pessoas conhecidas e, geralmente, era foco de atenção por parte das mães das meninas: tinha tudo ou quase tudo que elas avaliavam como importantes num candidato às suas filhas, como ótima aparência, aluno de colégio conceituado, porte, civilidade e elegância no trato com as pessoas, família conhecida, sobriedade nas roupas.........Pedigree. Para as estetas, eugênicas, André tinha os componentes físicos quase perfeitos para iniciar uma nova geração, na realidade “fazer” seus netos: nem alto nem baixo, nem bonito nem feio, nem musculoso nem magro; boa combinação de cabelos, olhos, nariz e boca, ótima simetria e proporção das pernas e braços com o tronco. Além disso dentes perfeitos, que tornavam seus sorrisos evidência de saúde. Era, portanto, disputado, diziam até que aos tapas, mas essas confusões aconteciam na surdina, nos banheiros, onde as meninas costumavam se reunir nas festinhas para comentar sobre as pessoas e os destaques masculinos. No entanto, seu interesse por geologia o afastou das praias cariocas. Passou no vestibular da Praia Vermelha, dedicou-se integralmente aos estudos. E o mercado de trabalho àquela época estava absolutamente aberto aos geólogos, pelas portas da Petrobrás, principalmente. Como qualquer sujeito em vida universitária, vinte e poucos anos, enfim, uma indicação óbvia de saúde física e mental, teve algumas aventuras, caso com prazo determinado. Depois de formado , conheceu Clara quando passou no concurso para a Petrobrás: vizinha do Leme, menina diferente, a tez fazia jus ao nome, olhos azuis e cabelos avermelhados quase cor de cobre, temperamento alegre, ruidosa, o namoro começou e pegou; deram-se um tempo, esperaram um momento da estabilização dele na empresa para pensar
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em noivado e casamento. Cinco anos e casaram. Clara nesse período formou-se em história, de menina transformou-se em mulher glamurosa, sabia escolher suas roupas, mesmo de pareô e sem maquiagem chamava atenção; a caminho da praia atraia as pessoas de qualquer idade, um tipo originalíssimo em terras cariocas. O casamento foi cerimônia simples e restrita aos amigos mais próximos, como convém e acontece com as pessoas bem nascidas, de bom nível social e cultural. Recém-casados, não tiveram problemas no período de acomodação, ajustes, na época André viajava pouco e sempre em curtos períodos. Não causava esse dissabor das frequentes ausências. E cada viagem representava novidades, um carioca descobrindo o Brasil e boa parte da América do Sul. Em muito pouco tempo foi identificado como profissional dedicado e competente, o que lhe valeu um curso de especialização nos Estados Unidos; com inglês fluente era igualmente escolhido com frequencia para representar a empresa em congressos e eventos sobre a sua área de competência. Em algumas viagens Clara o acompanhava, mas, quando nasceu Valéria, com dois anos de casados, ela mesma preferiu dar atenção total à filha. • Guilherme estava lá, com Teresa, no aeroporto de Ezeiza. Foram direto para a residência deles, um apartamento enorme, construção da década de 40, estilosa e com características de lay-out que dificilmente podem ser encontradas em prédios no Brasil. Área nobre de Buenos Aires, bem próxima do centro da cidade. Hora do almoço, Teresa, também velha amiga do nosso herói, o recebeu cordialmen-
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te, com extrema simpatia: Guilherme e Teresa formavam um dos casais mais próximos de Clara e André, a notícia da separação os deixou entristecidos. A recepção fez-lhe bem , sentia-se à vontade com os amigos mas preferiu hospedar-se num hotel que já conhecia, próximo à Florida. Dois dias após sua chegada já tinha por conta própria circulado por restaurantes e magníficas confeitarias, livrarias, teatros e concentrações de artistas populares. Um novo encontro com o casal Teresa-Guilherme e, mais soltos, tocaram no tema de sua separação. Sabia que os amigos não seriam invasivos, impertinentes: questão de elegância e para deixar André à vontade. Aliás, foi ele quem abriu a conversa, avançou com os motivos aparentes, suposições, responsáveis pelo desenlace. A questão das viagens, os desagradáveis inquéritos que não se limitavam ao momento de sua chegada das viagens, enfim é o que parecia ter sido da parte dele o mais importante fator da discórdia. Claro, apenas a ponta aparente do iceberg. Os acontecimentos ainda muito recentes tornavam praticamente impossível identificar causas, separar o essencial do episódico; o tempo , isenção e reflexões com a cabeça fria tornarão possível montar a equação, identificar as peças decisivas e as desprezíveis. Mas, os três puderam oxigenadamente entrar no tema sem pruridos e embaraços, muito menos constrangimentos. André sentia a necessidade de ouvir os amigos, perceber pontos de vista os mais diversos, receber feedback, já que sozinho estava com dificuldades para desatar a encrenca toda. Uma conversa, que poderia ser maçante, em certos momentos teve lances hilários, uma certa caricaturização que só a intimidade e o trânsito entre amigos permite.. Mas, enfim, Buenos Aires não foi escolhida para re-
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tiro espiritual, André não buscou nos amigos o ombro e o amparo. Precisava, sim, de um ambiente totalmente desvinculado do seu dia-a-dia e de opiniões livres, não comprometidas com um ou outro lado. Uma semana, o suficiente. Dois dias antes de voltar para o Rio, numa reunião informal no belo apartamento de Guilherme e Teresa, André conheceu Graciela. Realmente uma casualidade. Apresentados, conversaram longamente. Ela tinha viagem marcada, iria a São Paulo para a exposição de suas telas, aproveitou a boa vontade de André e conferiu as informações que tinha sobre o Brasil , que ela conhecia superficialmente em viagens de turismo e quase somente às praias de S. Catarina. Em certos momentos as inevitáveis comparações entre brasileiros e argentinos , mas tudo em ótima atmosfera. Como bom carioca André informou o número do seu telefone e endereço, não se tratava de compromisso nem convite, apenas um gesto simpático. Impossível não comparar: Graciela, em sua aparência, diferia frontalmente da sempre arrumada e elegante Clara; de cara lavada, usava um vestido frouxo de fazenda fina, esvoaçante, com desenhos, borrões em tom pastel , sandálias baixas e os cabelos desalinhados. Mas, ...............uma trintona nada desprezível. Numa quarta-feira André desembarca no Galeão. No dia seguinte tem compromissos de trabalho, reuniões para a avaliação dos projetos sob sua responsabilidade. Reuniões estas quase sempre complicadas, conflituosas, particularmente com o pessoal da área financeira, já que os pesquisadores com freqüência são acusados de aplicar recursos sem o retorno desejável. E nessas ocasiões sempre pintam alguns pecados capitais como a inveja, ciumeiras, é a competição nem sempre ética que assola as empresas, sobretudo nas es-
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tatais do porte da Petrobrás. Piores também pelas falhas nos sistemas de comunicação que sempre prejudicam o correto entendimento entre as partes. Uma pedreira. Mas, no final do dia, iria ver os filhos. Clara não se opunha a esses encontros, tudo indicava que as crianças estavam digerindo bem a separação dos pais, até onde isso é possível ou perceptível. Tinha o que contar para eles, quase uma semana em Buenos Aires, onde gostaria de levá-los, quem sabe, um dia. Paulinho por fora, muito pequeno, mas Valéria sabia das coisas, estudava num bom colégio onde as aulas de história e geografia não omitiam os países do chamado cone sul, os nossos vizinhos. Foi apanhá-los, a conversa áspera que teve com Clara uma semana antes não recomendou que ele subisse ao apartamento. Foram ao shopping da Gávea, precisavam somente de um lugar para conversar e matar as saudades. Ambos eram ligados a André apesar de suas frequentes ausências, mais compreensivos que a mãe, certamente. O processo do desquite rola sem tropeços, André atende a todas as solicitações financeiras da ex-mulher até que surge surpresa desagradável, quebra do aparente equilíbrio e tranquilidade: Clara entra com processo de alimentos exigindo pensão de 20 salários mínimos. Pior que o processo em si é a alegação: André estava gastando dinheiro a rodo com mulheres, em prejuízo de seus compromissos com os filhos. Falácia, estratégia, malandragem do advogado de sua ex-mulher., assim imaginou. Na audiência, a presença de ambos e de seus advogados frente a um juiz, André indignado recusa-se a pagar o valor absurdo . Clara ignora a sua presença, sequer o cumprimenta, dá atenção apenas para seu defensor. Impasse. Num dado momento o juiz pede tempo, retira-se por uns momentos, que o casal e seus ad-
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vogados acertem o valor da pensão, caso contrário ele teria de intervir e decidir. Os advogados conversam, cochicham, argumentam. Sentados vis-a-vis nossos personagens não arriscam um olhar, situação constrangedora. Finalmente fica acertado pelas partes que a pensão é de 10 mínimos. André concorda até mesmo porque sentia-se mal, situação insuportável, vencido pela decepção, inundado de dúvidas. E com essa Clara abriu um novo capítulo na cabeça de André, afinal como pôde ele equivocar-se tanto ? Erro de pessoa ? Afinal, quem é Clara ? Primeiro a desconfiança obsessiva, as mulheres com quem se metia e inventadas por ela, as desagradáveis sequencias de perguntas, o que acontecia em suas viagens, quem ele conhecia, se relacionava . E agora essa, sem acertar com ele qualquer questão de dinheiro arranja um advogado safado e faz um papelão na frente do juiz: ele farrista e perdulário ? Essa mulher é louca de pedra !! Prejudicando as crianças ? Como, por onde, realmente uma insanidade. Clara pode sim estar vivendo um surto qualquer de desequilíbrio. André sai da audiência arrasado Sacramentado pelo juiz, cumprir o estabelecido e ponto final. E o relacionamento com Clara que já estava difícil tornou-se insuportável. Qualquer casamento pode fechar um ciclo, terminar, o que André não entende é a hostilidade de Clara, chegando a usar recursos não éticos, mentiras de pernas curtas, que provas ela e seu advogado tinham sobre seus gastos excessivos ? Em que circunstâncias ? E, o mais importante e que o preocupava, o que estaria por trás desse tipo de manifestação ? Quais os limites de Clara ? A partir desse momento o casal só se comunicava através dos advogados. Quando queria estar com as crianças ele
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apenas deixava recado na secretária eletrônica – local, dia e hora, não mais que isso. Sabia dos horários de Valéria e Paulinho, da escola e de outras atividades, sempre marcou presença com os filhos, esses contatos não tinham a freqüência desejável mas estava tudo bem, era o possível. Enfim, cada um que trate da própria vida. O casamento ? Definitivamente página virada.
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Dois meses depois Tinha acabado de chegar em casa, o telefonema: Graciela. Estava no Rio, disse que a sua vernissage em São Paulo tinha sido de boa para ótima, conheceu muita gente interessante, seu agente Pier Giovani Zancopé era pessoa de forte penetração na sociedade paulistana, enfim, conseguiu reunir um grupo não numeroso mas de excelente nível cultural e versado em artes plásticas, o que lhe favoreceu. Muitos quadros vendidos e encomendas. Antes de voltar para Buenos Aires resolveu passar pelo Rio, quem sabe um par de dias na praia, conhecer a cidade, tão cantada como maravilhosa. Estava ligando para dizer de sua presença, conversaram rapidamente, André prometeu ligar no dia seguinte. E assim aconteceu. Jantaram no The Fox, ele quase sempre calado e ela falante, tinha um enorme repertório de histórias interessantes que prenderam a atenção do nosso herói. Mais que o brilho de suas palavras, Graciela despertou em André o homem que estava anestesiado há meses, era realmente uma pessoa mais interessante e rica do que fisicamente bela, no sentido vulgar dessa expressão. Progressivamente conquistou André. No dia seguinte ela foi ao seu apartamento e assim começou nova etapa na vida do geólogo. Fase da superação com seus encantos e alegrias, compensando as frustrações e
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as decepções que sempre acontecem com qualquer organismo vivo e inteligente na mesma situação que ele. Recebeu graciosamente a informação de que Clara estava saindo com determinada pessoa, aliás, do seu círculo de amizades. Pode parecer incrível mas esse fato aliviou André, que recebeu a informação com a mais absoluta indiferença, ele e Clara passaram a ser duas pessoas vinculadas apenas pelos filhos. Graciela volta para casa, tinha passado uma semana gorda no Rio de Janeiro, seu romance com André fez parte da viagem encantada, como artista sensível entendia que ele poderia ser o príncipe de sua vida. Será? Prometeram manter o contato, se encontrarem, quem sabe breve e em Buenos Aires? • No meio da manhã a secretária de André, assim que ele entra na sua sala, escritório, anuncia que o Cel. Veiga precisa falar com ele, assunto urgente. Desde o golpe de 64 as empresas estatais mantinham serviços de informação, subordinados a uma central em Brasília, o SNI. Nenhum candidato a essas empresas era admitido antes de cuidadosa investigação sobre qualquer forma de manifestação política contrária aos princípios e valores da “revolução”. Muitos foram rejeitados por esse motivo. As assessorias de segurança interna eram geridas por militares, as investigações sobre os candidatos tinham graus de apuro determinados pelas funções e nível hierárquico que correspondiam aos cargos de cada candidato. Claro, tinham seus postos de observação e informantes na empresa, nada lhes escapava. André estranhou a convocação do Cel. Veiga, que conhecia desde a implantação da ASI. Na
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época de sua admissão, 1959, os candidatos passavam apenas pelo crivo dos testes de conhecimentos e entrevistas, nem exame psicológico existia, a liberdade política era aparentemente total. Mas, tudo bem, ligou para o coronel, marcaram contato na parte da tarde. No horário acertado foi introduzido numa sala estranha, apenas três andares abaixo do seu escritório, sem janelas, parecia um contêiner, paredes lisas, apenas uma mesa e duas cadeiras, frio polar. Sentaram-se frente a frente, o coronel imediatamente abriu uma pasta, tirou meia dúzia de papéis e perguntou sobre a situação do seu casamento com Clara. Espanto! O que tinham a ver seus problemas pessoais e íntimos com um serviço de inteligência de finalidades políticas ? Por alguns segundos quase perdeu o prumo, considerou uma impertinência aquele questionamento, até que o coronel tornou-se mais explícito. A assessoria tinha sido procurada por um policial civil , da delegacia da Gávea, uma deferência por ele ser empregado de elevado nível hierárquico na Petrobrás. Tratava-se de um Boletim de Ocorrência do dia anterior, registrado em nome de Clara, acusando-o de escrever e riscar na porta do apartamento dela palavras de baixo calão e acusações altamente infamantes sobre sua conduta. André reagiu imediatamente, queria provas, iria abrir um processo contra ela, até que o coronel mostrou fotos da porta social do apartamento, que ele conhecia e muito bem. Lá estavam rabiscos com tinta preta, partes raspadas talvez com um canivete ou chaves, lá estavam e bem visíveis também as ofensas citadas no tal boletim. André recuperou a tranqüilidade, afinal estava sendo acusado injustamente, negou com firmeza ser o autor daquela barbaridade. Iria, sim, à delegacia e em companhia de seu advogado, essa questão precisava ser imediatamente esclarecida. Sentia-se
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indignado, revoltado, que motivos teriam induzido sua ex-mulher a uma acusação dessas ? Afinal estiveram casados por quase dez anos, tempo suficiente para ela perceber o tipo de pessoa que ele era. Na verdade o que não tinha resposta, pelo menos até aquele momento, era o fato dele jamais ter percebido o tipo de pessoa que ela sempre foi, uma mulher no mínimo estranha, surpreendente.. Na delegacia foi recebido com certa cerimônia, o Cel. Veiga já tinha entrado em contato com o delegado Pacheco. Na presença também do advogado, seu companheiro e amigo desde os tempos do futebol de praia, André respondeu a meia dúzia de perguntas, negou que tivesse cometido aquela estupidez e recusou-se a indicar nomes de possíveis autores das ofensas, até mesmo o nome da pessoa conhecida que estava, segundo informações, saindo com Clara; a policia que tomasse as providências e chegasse às conclusões, ponderou. Pediu ao delegado que as investigações tivessem rápido curso, já que ele era o principal suspeito. Muito cedo para imaginar que providências tomaria contra Clara: acusá-lo friamente numa delegacia merecia sim uma ação determinada e enérgica, mas sua primeira reação em processá-la de súbito arrefeceu-se, afinal, sobraria para as crianças. Situação extremamente difícil, delicada. E, como acontece em casos desse naipe, a notícia espalhou-se com rapidez incrível, até os amigos de sempre aceitaram sem crítica as versões estapafúrdias e falsas. Quem diria, um tipo tranquilão entrar numa fria dessas ? A maledicência corre solta, aumentar e enfeitar os fatos é típico dos que tomam partido deste ou daquele lado, distorções e até piadas grosseiras e a zombaria fazem parte e sombreiam a verdadeira face dos envolvidos: condenam inocentes, au-
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mentam as doses da culpa. Afinal, a omissão da verdade e as calúnias são o prato feito que os canalhas preparam e servem quente nos banquetes da maldade. Os amigos e colegas de trabalho mais próximos deram-lhe todo o apoio, o time dos que o conheciam e não abriam mão do crédito de André entre eles, como pessoa e como profissional; tinham ação decisiva cada vez que alguém levantava a menor suspeita de seu envolvimento nessa doidice. Poucos dias depois compareceu novamente na delegacia e ouviu do próprio Dr. Pacheco a notícia de que estava limpo e definitivamente afastado do processo, que as investigações estavam sendo conduzidas no caminho certo, breve poderia apresentar o autor, ou autores, da façanha. Tudo tinha acontecido em quatro dias, desde sua convocação pelo Cel. Veiga até aquele momento. André sentiu-se obviamente aliviado, pensou em Valéria e Paulinho, queria abraçá-los, estar com eles, afinal nunca tinha passado por ansiedade tão forte e motivada por ações tão torpes. O que fazer com Clara, ainda uma dúvida, mas certamente o episódio selou a definitiva separação, queria vê-la pelas costas. No entanto, teve despertada a curiosidade, queria rever o filme de todo o período do seu casamento. Não se convencia de sua bobeira, sempre que lhe chegavam à lembrança as cenas de ciúme, imaginava e com motivos plausíveis que era por ali, o comportamento agressivo de Clara, os inquéritos, sim, ali estavam as chaves para a descoberta do que ainda entendia como mistério. Sob esse aspecto começavam a pintar sinais, amigos e conhecidos de André levantavam, maldosamente ou não, suspeitas sobre o comportamento de Clara nas suas ausências. Alguns a tinham visto em restaurantes, acompanhada e em situação dúbia. Outros a viram em diversas situações,
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não parecia ser a mulher infeliz que lamentava a ausência freqüente do marido e pai do seus filhos. André tinha consciência de que até mesmo por simpatias ao constrangimento que passara, as pessoas tentavam aliviar a sua barra, talvez, apimentando dúvidas quanto a Clara em sua liberdade; precisava policiar-se para não entrar em esquemas falsos. Mas, com o tempo – passaram-se mais de três meses – muitas informações, a maioria delas gratuitas, tinham certo sentido, principalmente porque o delegado Pacheco tinha chegado à conclusão definitiva: uma testemunha, vizinha de Clara, viu ela mesma emporcalhar a porta de seu próprio apartamento, num provável momento de desatino; enfim, fato esclarecido e, para André, de forma arrepiante. Suas preocupações voltavam-se para seus filhos, teriam de ser preservados a todo custo, restava a resposta: como uma pessoa pode dissimular com tamanha perfeição e durante tanto tempo ? Recorreu a livros de psiquiatria, como pesquisador tinha conduta equilibrada e crítica frente a fontes de informação, quaisquer que fossem, mas assim mesmo em certos momentos quase aceitou a hipótese da dupla personalidade. Foi mais adiante. Conversou longamente com ex-colega do Colégio Santo Inácio, psiquiatra e familiarizado com questões de certa complexidade. Foi um contato tranqüilo, afinal eram dois conhecidos de longa data. Haroldo adiantou que a conversa versaria sobre conjecturas, já que a principal implicada ele conhecia superficialmente. O encontro teve saldo extremamente positivo, André saiu aliviado, chegaram à conclusão de que se tratava de comportamento atípico, mas que só poderia ser interpretado à luz de exames e do atendimento dela, se fosse o caso. E como acontece em todas as situações que envolvem o término de casamentos, separações
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e finalmente o desquite, há componentes negativos que pertencem ao comportamento de ambos, “per se” e como casal, provavelmente alguns desencadeantes desse histórico de Clara. O depoimento de André oferecia um quadro provável de desvio de personalidade, observou Haroldo, e concluiu: “o ciúme excessivo, nestas condições, com forte componente possessivo, desperta a hipótese da infidelidade do agente acusador”. No entanto, sem qualquer pretensão de mergulhar em detalhes sobre a ciência do comportamento humano, pela primeira vez em sua vida e mexido pelas circunstâncias André interessou-se pela leitura de matérias dessa área do conhecimento, por sua conta e riscos. De imediato lembrou-se de um livro que casualmente caiu em suas mãos. Desde menino gostava de histórias policiais, no curso do tempo conseguiu ler boa parte do que existe de bom em termos de qualidade sobre o tema, foi leitor assíduo da revista X-9, posteriormente evoluiu para George Simenon e Agatha Christie, Edgar Wallace e as aventuras de Arsène Lupin, quase tão rocambolescas como as do seu criador, Maurice Leblanc. No entanto, encantou-se, já adulto, com O Falcão Maltês e Sam Spade, leu o livro e assistiu o filme, com Humphrey Bogart no papel principal; a figura excêntrica do autor, Samuel Dashiell Hammett, e por ele como mais um elo de corrente a descoberta de outra, a fascinante Lillian Hellman, também escritora e sua companheira por décadas. Pois bem, a introdução de um dos livros dela aguçou-lhe a atenção. Pentimento: “A medida que o tempo passa, a tinta velha de uma tela muitas vezes se torna transparente. Quando isso acontece, é possível ver, em alguns quadros, as linhas originais através de um vestido de mulher surge uma árvore,
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uma criança dá lugar a um cachorro e um grande barco não está mais em mar aberto. Isso se chama pentimento, porque o pintor se arrependeu, mudou de idéia. Talvez se pudesse dizer que a antiga concepção, substituida por uma imagem ulterior, é uma forma de ver, e ver de novo, mais tarde ...... A tinta ficou velha, e quis ver como me pareciam antigamente, e como me parecem agora” E a partir de suas preocupações e a necessidade de saber com que tipo de pessoa conviveu tanto tempo despertou novos interesses, inéditos para ele, já que, desde sempre esteve confinado aos conhecimentos de sua carreira profissional de geólogo . Falha de sua formação, talvez, a excessiva ênfase das especializações que tolhem as pessoas e as transformam em poço de conhecimentos de determinadas áreas, mas ignorantes do todo, sobretudo os que se definem como técnicos e que desprezam as dimensões humanas. Sem dúvida fruto de certa época, a conduta estreita, conhecimentos puramente voltados para as questões concretas. Os acontecimentos e as situações surpreendentes modificaram a linha de conduta mental de André, provavelmente o tornariam uma melhor pessoa, melhor ser humano. Ainda nessa fase de estupefação passou a identificar como fonte de provocação tudo que lhe permitia acesso, numa certa intimidade com a compulsão: jornais, revistas e livros, o cinema e o teatro, com certo encantamento e exercício mental, nem sempre a partir de seus problemas, exclusivamente. Num domingo chuvoso fez algumas analogias entre o desenvolvimento da personalidade com as camadas geológicas, a partir do magma e até a superfície. Achou graça, imaginou estar com idéias fixas. Também com o universo, as pessoas estrelas, outras planetas, os tipos cometa, asteróides e por aí vai, um exercício que o divertia
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quando identificava cada amigo, pessoa conhecida, com as características de certos astros. Claro, pura distração, quem entendia disso tudo era o Haroldo, policiava-se. •
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Problema: Graciela mandou carta e em seguida falou com ele via telefone. A situação política na Argentina estava endurecendo, não apenas por comentários e especulações mas por sucessivas declarações das forças armadas e principalmente pelas informações seguras de personagens do atual governo. Ameaça aos parentes políticos atuantes, partidários, quase todos justicialistas e isso representava riscos para toda a família; o que estava acontecendo no Brasil e no Chile assim o indicava. Levante iminente dos militares, atmosfera progressivamente insuportável. O jeito, a saída, já decidida por seu pai – era órfã de mãe há muitos anos -- e , posteriormente por ela mesma, era a de se transferirem para outro país. A situação no Brasil não era nada fácil para quem tinha complicações políticas na Argentina, certamente a operação Condor estava a pleno vapor, mas seu pai e ela mesma nada tinham de aparentemente comprometedor; a mudança poderia ser justificada por um contrato de trabalho do pai com uma fundação educacional de nível superior e do governo brasileiro, com quem tinha contatos freqüentes por motivos profissionais: era professor de pecuária altamente credenciado, livros publicados e vasto relacionamento com criadores do país vizinho. Vale dizer, em grande maioria ruralistas alinhados com o governo militar brasileiro. Graciela resolveu acompanhá-lo, além dos problemas políticos tinha André na alça de mira. As negociações efetivaram-se, seu
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pai conseguiu fechar o contrato, aguardariam mais algumas semanas. Em pouco tempo estaria próxima do amor brasileiro e André também apostava nesse relacionamento, quem sabe com fôlego para traçarem um projeto de vida juntos. Ele sentia, sim, falta de uma companheira, na medida em que Clara tornava-se pouco a pouco uma estranha, cada vez mais distante. Por quê não Graciela ? Não se sentia bem na pele do desquitado, do ex-marido que passa a buscar companheiras somente para aventuras e rapidinhas; sua formação cristalizada desde a infância e reforçada na adolescência , indicava vocação de “pater família”. Não deu certo o primeiro casamento, mas isso não significava , mesmo com todos os problemas que envolveram a separação, que estivesse vacinado contra a vida em comum, a possibilidade de se dar bem com outra companheira. Por que não Graciela ? Como contraponto, por motivos compreensíveis a possibilidade de mais um casamento muitas vezes lhe dava calafrios , suas frustrações e espanto estavam ainda muito presentes, e, afinal, que tipo de pessoa é Graciela ? Quem é Graciela ? Com Clara quebrou a cara, não conseguiu estabelecer a diferença entre a autêntica e a dissimulada; na realidade jamais lhe passou pela cabeça passar por esse tipo de preocupação. Mas, aconteceu, passou e não queria repeti-lo, teria de conhecer e muito bem com quem poderia formar um casal, desta vez não seria leviano e ingênuo: o coice tinha sido muito forte. O pai de Graciela chega ao Brasil e vai diretamente para a Escola de Agronomia Luiz de Queiroz, em Piracicaba, um braço da Universidade de São Paulo; Graciela o acompanha, conseguem alugar uma casa próxima ao trabalho dele, compram os móveis e utensílios domésticos essenciais, con-
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seguem uma empregada, e duas semanas depois desembarca no Santos Dumont. Lá estava André que já havia providenciado a hospedagem dela numa pousada em Santa Teresa. A escolha não foi aleatória, esse bairro carioca era e é famoso pela concentração de artistas, sobretudo pintores, abrigou conhecida escola de formação de atores de teatro, enfim, para Graciela o ninho certo. Tratou também de organizar um jantar para apresentá-la aos amigos e, como estava também morando em hotel, contratou os serviços do La Fiorentina, restaurante na praia do Leme muito freqüentado por músicos, artistas do teatro, rádio e das TVs. Uma festa, os amigos com certa distância acompanhavam os problemas de André, sabiam da importância que uma pessoa como Graciela poderia representar na vida dele. Isso os pacientava. Foi muito bem acolhida por todos, inclusive pelas mulheres presentes, como boas cariocas convidaram imediatamente a argentina para juntar-se a elas nos programas habituais femininos, o que a surpreendeu e agradou. Sentiu-se aceita pelo grupo. As lojas de material para a pintura foram destacadas e Graciela não perdeu tempo, poucos dias depois tinha instalado no seu quarto um mini-atelier, precisava pintar, era uma necessidade orgânica, os problemas na Argentina a afastaram do seu trabalho, com muita alegria retomava o que mais gostava e sabia fazer. •
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Um ano depois e o mesmo encanto envolve o casal, o namoro. Casamento ? Não, ainda não. Um dia ocuparem o mesmo teto ? Talvez. Sem apuros, André se lembrava do mote de um anúncio que sempre aparecia na televi-
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são, “don’t worry, but don’t delay”, ótimo, era isso mesmo. Quando estava no Rio quase sempre saia do trabalho e subia a Sta. Teresa, não raro Graciela estava pintando; ficava quieto num canto, bebericando um conhaque até que ela anunciasse: fim. Rapidamente se aproximava de André, ainda com o avental borrado das tintas sentava-se em seu colo e beijavam-se longamente, sem pressa, prenúncio de uma noite amorosa. Procuravam jantar em restaurantes pouco conhecidos ou desprezados por certa classe média pedante da zona sul, muitos deles na Lapa, de onde estavam nem era necessário usar o carro para chegar até eles. Graciela estava se sentindo bem com os costumes cariocas, que pouco a pouco assimilava, não faltava bom humor e picardia, identificava no Rio de Janeiro um “savoir vivre” especial, apesar da fase de chumbo, de autoritarismo militar. André, por seu lado, jamais imaginou que pudesse incursionar por bairros da zona norte, muitos deles indicados por colegas de trabalho, onde em cada esquina um boteco oferecia alguma novidade, seja da culinária ou “canja” de músicos amadores. Só mesmo na companhia de Graciela curtiria esse lado desprezado da cultura, ela sempre curiosa e do tipo topatudo. Imaginou Clara entrando com ele no Bar do Adamastor, em Madureira, serem atendidos pela gorda Lila, sempre suada, encalorada, dona de um dos mais consagrados templos da feijoada sabatina, que tinha a sua assinatura. Nunca !!! Nem passar pela porta !! Percebeu que a guinada em sua vida pela presença desse novo amor oferecia contínuas surpresas, inclusive a de se sentir bem junto ao povão suburbano, sempre marginalizado e mal interpretado em sua cultura e hábitos. Preconceitos para o lixo, os valores humanos não obedecem a hierarquias, são constatados em suas manifestações, podem
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ser de um Silva ou qualquer sobrenome enfeitado da burguesia engravatada. André sentia-se mais gente e a presença de Graciela fortalecia esse sentimento; sempre curiosa, passou também a retratar em seus trabalhos essa face do Rio de Janeiro, ocultada aos turistas, aos estrangeiros; seus quadros passaram a ser inspirados pelos diversos matizes do povão, a visível miscigenação e a presença marcante do negro na formação da malha social e da cultura verde-e-amarela. •
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E Clara precisava encontrar-se com ele, seria para uma conversa e escolha do colégio de Valéria para o ciclo médio – disse ela --, precisavam decidir juntos. Assim foi o recado na secretária eletrônica. O que poderia ser genuíno interesse de mãe, no entanto, poderia ser mais um ardil de sua ex-mulher. André, imediatamente ligou de volta. Mais que escaldado, blindado, aceitou a idéia do encontro, mas advertiu que sua vida particular não faria parte da conversa. Clara o tranqüilizou nesse sentido. Do escritório ligou para Graciela dizendo que tinha esse encontro com a ex, não fazia idéia de quanto tempo, pretendia que fosse o mais breve possível, assim que se livrasse dela telefonaria. Marcaram no restaurante Real Astória, jantariam juntos como pessoas civilizadas, trocariam idéias sobre os filhos, enfim, não abriria a guarda para Clara, bastavam os aborrecimentos que ela já tinha causado e ponto final. Assim pensou. Ela chegou pontualmente, ele estava no segundo whisky, cumprimentam-se friamente, ela sorri, senta-se e : “Como você está bem, André. Continua fazendo ginástica, cuidando do corpo ?”. Clara está deslumbrante, os cabelos
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presos, rabo-de-cavalo, vestido vaporoso de Bali em tons de azul, combinando com seus olhos e pele claríssimos. A sua imagem de mulher bonita, insinuante, e os elogios a queima-roupa mexeram com o nosso herói. Sim, mas recuperou-se rapidamente, estimulado pelos drinques em segundos repassou sua vida pregressa e na companhia de Clara, os bons momentos, o nascimento dos filhos, enfim, são coisas difíceis de apagar; “as amargas não” , como diria o poeta Álvaro Moreyra, mas essas só o tempo se encarrega de neutralizar. André foi direto, tinha boas informações sobre colégios no Leblon e na própria Gávea, estudando mais próximo de casa Valéria teria vantagens, tempo disponível, por exemplo, menos desgaste em conduções, trânsito complicado em certas horas do dia, essas coisas. De três opções não foi difícil escolher a melhor. Com o objetivo do encontro resolvido, sobrou espaço para comentarem outros assuntos, por interesse de André quase todos envolvendo os dois filhos. Mas, na medida que o jantar avançava, Clara tentava entrar em outros temas, até que conseguiu ironicamente encaixar: “E o amor argentino, como vai ?” André não levantou os olhos do prato e simplesmente deu o jantar por encerrado. Pediu a conta, tinha o sentimento de que estava sendo pouco polido, mas os entendimentos entre ambos não poderiam passar dos limites do interesse comum deles pelos filhos. Só isso. Clara sorria, provocante. Não permitiu que ela transformasse aquele momento em baú de curiosidades, assim como não pretendia saber da vida da ex-mulher. Saíram do restaurante e alcançaram a calçada, Clara mais uma vez e menos habilidosa avançou: “Sei que você anda de cacho com uma artista argentina, já foi visto em muitos lugares com ela............ as pessoas comentam que você já foi mais
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exigente com as mulheres”, concluiu. Um lampejo de sarcasmo enfeiou seu rosto. “Você quer um taxi ?”, pergunta André, sem se importar aparentemente com estas últimas palavras de Clara. “Não”......você não vai me levar em casa?”, emendou Clara. Secamente André despede-se, apenas um tchau, entra rapidamente na primeira transversal em direção ao seu carro, sequer olha para trás. Estava irritado, sua vontade era de esganar Clara, dizer-lhe poucas e boas, mas preferiu engolir em seco. “Como pode uma pessoa ser tão desagradável, impertinente ?”, pergunta-se. Estava resolvido, encontros pessoais com Clara, se possível, nunca mais. No entanto, esse aborrecimento no restaurante seria apenas aperitivo. Tinhosa, iniciaria nova fase, nova ofensiva. Na pousada da Santa Teresa os hóspedes dispunham de um só telefone, no hall de entrada do casarão. Portanto, fazer uma ligação telefônica era complicado, exigia paciência, não raro espera, fila de duas, três pessoas, e todos sob a pressão do seu Paschoal, afinal era um telefone comercial. Receber uma ligação era mais complicado ainda, nem sempre Graciela estava convenientemente vestida, tinha de ser muito rápida, mas geralmente era André ou algum recado dele, o que compensava esse atropelo. A novidade fica por conta de chamadas freqüentes, sempre exigiam pressa e ninguém respondia no outro lado da linha. Comentou com André, que apenas ouviu as apreensões da namorada. Tinha certeza, era coisa de Clara, afinal que pessoa neste mundo ligaria para Graciela apenas para ouvir o olá com sotaque portenho? Enfim, já tinha passado algum tempo da separação e Clara parecia não ter ainda superado a questão da posse, da
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doentia dependência afetiva de André. Alegava para os amigos comuns que ele estava passando uma fase de deslumbramento, que voltaria para casa, questão de tempo. Poucos lhe davam crédito, foi se firmando a idéia de que Clara não estava suportando a ausência do ex-marido . Quando soube que já existia e mais rápido do que imaginava uma outra mulher na vida de André, a argentina Graciela, teve um piripaque, fechou-se no banheiro de casa e repetia o nome de André entre choros e resmungos, só saiu quando a empregada, D. Imelde, bateu forte na porta, berrou seu nome , temendo que pudesse acontecer alguma coisa. Felizmente as crianças estavam no colégio. Clara subitamente saiu e ignorou a presença da empregada, caminhou lentamente até seu quarto, olhar de infinito, nariz empinado, indiferença , realmente uma cena que D. Imelde teve dificuldades de transmitir para André, num telefonema às escondidas. Assim foi o início dos destemperos emocionais que tiveram nova faceta com o caso da porta coberta de palavrões e, agora, esses telefonemas idiotas. A grande, formidável preocupação de André , depois de quase um ano de separação, centrava-se nos filhos; as demonstrações e o comportamento de Clara a colocavam numa situação limite, teria de falar com o coronel Adeodato, ex-sogro, ele e D. Quitinha teriam que assumir, tomar uma medida qualquer, antes que a filha pudesse surpreender com mais uma demonstração de insanidade. Qual seria a próxima de Clara ? Para atenuar essas preocupações e aporrinhações, talvez, vemos Graciela em plena produção, feliz em seu relacionamento com André, conseguiu formar um grupo de amigos, artistas plásticos como ela e vizinhos de bairro, já em busca de um apartamento ou casa, o seu quarto na pen-
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são limitava o trabalho. Pouco a pouco tornava-se conhecida e solicitada, seu trabalho era original, criativo e a revelava como uma artista plástica de grandes possibilidades. Com esse grupo de artistas resolveu montar exposições, passou a conhecer “marchands” cariocas e de São Paulo, percebeu de imediato que o negócio de artes nessas duas cidades tinha um quê de marginalidade, mesmo nas lojas mais conhecidas e com os profissionais mais badalados. Seu primeiro contato com arquitetos de interiores também a deixou em estado de alerta, as propostas de aquisições e percentuais por fora a deixaram perplexa, sobretudo pelo escancaramento dos possíveis acertos e seus valores. Arquitetos e decoradores famosos a contatavam através de emissários, o volume dos negócios envolvia grana alta e exigia dos artistas produção acima de suas possibilidades, com severos riscos ao desvirtuamento de seu trabalho como arte. •
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O taxi para na porta do Ed. Montese, no Leme, que como o próprio nome sugere era e é habitado quase integralmente por militares, da ativa e da reserva, principalmente. O coronel Adeodato e D. Quitinha moram bem, sala ampla e de frente para a Gustavo Sampaio. Decoração discreta, estante com vários troféus e um quadro de medalhas do Exército Brasileiro e do Norte-Americano, distinções por sua participação na campanha da Itália, pela FEB. André é recebido à porta pela ex-sogra que apenas acena com a cabeça e, em seguida, some para os quartos. O coronel está sentado numa poltrona gorda, de couro, defronte da TV, tenta levantar-se mas André, num gesto com ambas as mãos sinaliza para que
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não o fizesse; aproxima-se rapidamente e cumprimentam-se. Antes de entrar no assunto Clara, falam sobre o tempo, sobre o interior do país que ambos conheciam por dever de ofício. Pouco depois o coronel eleva a voz e diz para a copa: “Loreta, Loreta, traz gelo e dois copos baixos, pega aquele whisky ali, o da garrafa comprida”. André sabia de longa data qual o preferido do coronel, Glenfiddich, realmente bom gosto etílico. Conversa complicada, difícil, pelo telefone tinha tocado no assunto, estava com grande dificuldade de entrar no objetivo mesmo de sua visita, que o coronel facilitou: “ Que é que está acontecendo entre vocês dois ? Não basta a separação Hoje em dia as pessoas casam e descasam como quem vai à praia, é um absurdo !”. André endireita-se na cadeira, coloca seu tronco à frente e bem mais próximo do seu interlocutor diz sem pressa, palavra por palavra: “ Coronel, o senhor sabe o respeito que tenho pelo senhor e D. Quitinha. Sempre nos tratamos com extrema cortesia e não poderia ser diferente. Mas o que precisamos conversar, coronel, não é sobre o casamento, esse já passou; é um problema sério que está acontecendo entre mim e Clara, entende ? Houve a separação, houve o acerto sobre a pensão alimentos, ou seja, sob o ponto de vista legal sua filha e eu estamos oficialmente desquitados. Ela passou a tratar da vida dela e eu da minha, só isso.”. O coronel ouve atentamente, avança no whisky em goles pequenos, múltiplos, alguém poderia imaginar que enquanto ouve as palavras de André maquina estratégias e táticas, como cacoete militar, mas seria equívoco; ele sabia da importância dessa conversa e pretendia participar, sim -conhecia e muito bem sua filha --, para que os problemas causados por Clara não viessem a prejudicar os netos, principalmente. São sempre os filhos, particularmente quando
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ainda crianças, os maiores prejudicados pelas atitudes extremas de seus pais, reflete para si mesmo. André prossegue, “minha presença aqui em sua casa, penso eu, é a demonstração de que estou buscando uma solução, afinal, que Clara reconheça a separação, é para valer e não é da forma como ela age que as coisas podem ter um retrocesso,” conclui. O coronel descansa o copo numa mesinha , corrige a posição da coluna e, olhando fixamente para André pede que revele a conduta de Clara, por que essa disposição dele em apenas colocar a filha como causa da discórdia. Situação difícil para o nosso herói, contar o quê, como ? Falar dos tempos de casados e de toda aquela fixação de Clara em fantasias de adultério, falar da porta com as inscrições grotescas – desta passagem com certeza o coronel tomou conhecimento --, palavrões, dos telefonemas “mudos” para Graciela, do desentendimento no restaurante Real Astória, na situação em que ela o meteu e na frente de advogados e de um juiz, com acusações absolutamente falsas. Difícil, sim , afinal estava diante do pai da ex-mulher, avô dos seus filhos, pessoa com fortes sentimentos de família, realmente uma tremenda enrascada. Procura relaxar, beberica a sua dose de whisky, endireita o corpo apoiando-o no espaldar, estica ambos os braços num rápido alongamento, e pergunta: “Depois da nossa separação, o que o senhor sabe de Clara ? Posso adiantar que com relação às crianças,”amenizou, “nossos entendimentos tem sido favoráveis, felizmente. Mas o mesmo não posso dizer do comportamento de Clara comigo e, agora, também com uma moça com quem estou saindo ..............”. Repentinamente e num desabafo: “ Coronel Adeodato, Clara precisa de atendimento médico, ela não está bem e o senhor e D. Quitinha tem de assumir o que está se
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passando com ela. Clara é filha única, só os seus pais podem nesse momento e decisivamente ajudá-la. Ela tem direito ao plano de saúde da Petrobrás, dessa parte eu tomo conta. Precisam conversar com ela, ouvir o que tem a dizer, não posso nesse momento e nem devo relatar o comportamento dela , não sou médico e muito menos juiz. Tenho consciência de que faço parte de todo esse problema, estou a disposição. É isso, só isso.” .André despercebidamente eleva a voz, com certeza D. Quitinha estava na escuta, tanto melhor. Levanta-se, acaba sua dose de whisky sob o olhar preocupado do ex-sogro, declara que sua missão está encerrada. Silêncio perturbador. O coronel estende a mão, cumprimentam-se em silêncio, a empregada surge do nada e abre a porta. Clara precisa de atendimento médico e já, mas deveria antes de mais nada conversar com os pais. Ainda no elevador teve um momento de arrependimento, quase voltou, deveria ter aberto o jogo, contado tudo o que sabia e quando saiu à rua percebeu que suava em bicas, a roupa estava empapada. Caminhou lentamente pela Gustavo Sampaio, sentiu sede e pediu cerveja no Xodó da Moça, boteco freqüentado por etílicos, alguns seus conhecidos dos tempos de futebol de praia. Mas não quer conversar, precisa de algum tempo para colocar cabeça em ordem. Muito difícil toda essa situação. O máximo que pode fazer é dar apoio; as iniciativas a seu ver, dali para diante e a partir desse encontro, são responsabilidade dos pais de Clara. Ponto final. No dia seguinte liga para seu advogado, relata seu encontro com o coronel. Caso não tomassem providências, já estava decidido e não tinha outro jeito, abriria um processo, Clara não tinha condições mentais para criar, educar seus filhos. Uma disputa difícil, desgastante, mas fazer o quê ?
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Deixar as coisas acontecerem ? Montar um esquema para driblar as manifestações de Clara ? Na noite desse mesmo dia, com a cabeça pesada, convidou Graciela para jantar, escolheu um restaurante na Barra, longe de tudo e de todos, precisavam conversar, a esta altura ela também passou a ser alvo das investidas de Clara, faria parte das decisões dali para diante. •
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Aproximadamente duas semanas após seu encontro no Ed. Montese, André é convocado para reunião de trabalho, tratava-se da implantação de uma nova unidade de prospecção no interior de Sergipe: seu nome é indicado pela diretoria técnica da Petrobrás, fará parte da equipe permanente, projeto de execução prevista em aproximadamente dois anos. Teria de mudar seu domicílio, morar em Aracaju ou até mesmo numa cidade mais próxima do acampamento. Na verdade a reunião apenas decidiria detalhes do projeto, em estado adiantado e pronto para a execução, e obviamente a indicação de cada um dos responsáveis por esta etapa. Surpresa e desagradável, sair do Rio naquele momento representava o abandono de um momento importante de sua vida, afastamento de Graciela, e igualmente teria de acompanhar à distância o eventual processo para tirar seus filhos da guarda de Clara, se uma decisão judicial assim o determinasse. Percebeu que essa indicação vinha com o carimbo de decisão irrevogável, afinal a Petrobrás como empresa do Estado se comportava de acordo com as práticas vigentes que, em certas situações e na dependência da importância de cada projeto, simplesmente decidia sobre seus empregados sem grandes pruri-
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dos de compreensão e abordagens comportamentais. Notícia bomba, Graciela estremece, estava se preparando para expor na cidade do México e em Nova York, enfim, água fria na fervura, morar fora do Rio de Janeiro e com os contatos que conseguiu, definitivos para sua carreira de artista plástica, nem pensar. André compreende seus argumentos , por várias vezes fala também de suas preocupações com essa súbita mudança, afinal como atual chefe de Divisão e lotado na matriz da empresa suas viagens tinham como objetivo basicamente o acompanhamento dos trabalhos de campo, a avaliação técnica e a supervisão de aproximadamente seis colegas geólogos; voltar aos acampamentos, mesmo numa posição de destaque, naquele momento representava retrocesso, além de simplesmente desestruturar sua vida. Pior ainda, a data de apresentação no posto de trabalho coincidia com a viagem de Graciela aos Estados Unidos, enfim, um conjunto de maldades. Vai ao Galeão despedir-se da namorada, deseja-lhe sucesso nas duas exposições, prometeram manter contato, com esse esquema apostou numa data para voltar ao Rio, vê-la, passar algum tempo juntos. Graciela percebia-se ansiosa pelo curso dos acontecimentos, esperançosa quanto ao seu trabalho e super preocupada com essa surpreendente e involuntária cisão em sua vida. Embarca movida por vários sentimentos, um misto que durante a viagem pretendia clarificar. André permaneceu calado ou monossilábico todo o tempo que aguardava o embarque de Graciela . Antes dela embarcar a presenteou com um colar de pérolas que tinha sido de sua mãe, desejou-lhe boa sorte. Uma semana depois a caminhonete da Petrobrás o apanha, junta-se com outros colegas, apresentam-se no ae-
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roporto Santos Dumont ao Diretor de Operações da empresa que foi despedir-se da equipe; felizmente conhece todos, fator altamente positivo. O Electra levantaria vôo dali a 30 minutos, a empresa já tinha providenciado o “check in” de todos, André apenas despacha sua bagagem. Eram 12 colegas de trabalho: engenheiros, geólogos, técnicos de nível médio e dois funcionários da administração. Despedem-se de suas mulheres e filhos, um momento sempre triste, principalmente para quem fica. Faz parte. Na hora marcada os passageiros embarcam sem pressa, André parece preocupado, na noite anterior ligou para os filhos, não tinha para quem se despedir com um aceno. No entanto, lá estava Clara que acompanha atentamente o bota-fora à distância e não conteve um sorriso, assim que André desapareceu entrando no avião; o coronel Adeodato aproxima-se da filha, dirigem-se ao estacionamento. “Satisfeita agora ?”, pergunta o pai para a filha. Clara apenas esboça mais sorrisos. Antes de chegarem ao carro o coronel dá uma paradinha, acende um cigarro e pede à filha que, o mais breve possível, ligasse para o coronel Macedo, poderoso Chefe do Departamento de Pessoal, quem tinha conseguido, por sua habilidade de articulação e prestígio a proeza de incluir André nesse projeto. Clara fez um sinal positivo, sim, tinha vencido esta batalha. Beijou o pai, agradecida. O que pode parecer simples artimanha é explicado em parte pelo relacionamento de Clara com seus pais. Filha única, mimada, sempre conseguiu o que queria, por sua insistência e pela atitude dos pais, sempre cordatos e submissos aos desejos da filha; tornou-se caprichosa e exigente. De criança para mulher adulta pouca alteração nesse tipo de
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conduta. Venceria a guerra quando André voltasse para ela, sua casa e os filhos: voltariam a formar uma mesma família, fantasiava. Aproximadamente três semanas depois André, hospedado no Hotel Bela Vista, em Aracaju, recebe ligação de Graciela. Confirma o que já havia relatado por carta, as exposições foram um sucesso, considerando-se que ela entrava pela primeira vez em ambos os mercados. No entanto, os contatos e o trabalho dos agentes de Nova York foram mais eficientes que os do México, além da boa divulgação nos jornais e revistas especializadas. A vernissage não atraiu muita gente, mas a crítica foi-lhe favorável, os comentários centravam-se no forte colorido de seu trabalho, quase todo ele inspirado no sol e na luz da cidade do Rio de Janeiro. Vendeu bem, sua maior surpresa ficou por conta de um jovem e promissor artista de Hollywood , Richard Gere, que adquiriu a mais cara das telas. Estava de volta, nostálgica, sentia profundamente a falta de André, pergunta quando ele voltará ao Rio, quando será o próximo encontro deles. “No final da semana seguinte”, responde André, “dia 4 , já reservei a passagem ”, conclui . Passariam sim pelo menos dois dias juntos. O cronograma do projeto indica que ele terá de permanecer por mais 22 meses e nesse período poderá viajar ao Rio pelo menos uma vez a cada trinta dias. . Era o jeito, muita paciência dos dois. Graciela anuncia que está iniciando nova fase em seus trabalhos, prosseguiria privilegiando as fortes cores mas pretendia explorar as formas, estava madura para a empreitada que iria exigir dela um esforço e cuidados maiores. Lisonjeada, enviaria por carta a cópia de um artigo do crítico de Jayme Maurício, do Correio da Manhã, que conheceu pessoalmente na vernissage de Loio-Pérsio, gale-
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ria Da Vinci de São Paulo; enfim, havia uma onda de fatos positivos, estava difícil conseguir uma casa em Sta. Teresa, quem sabe se mudaria para um bairro da zona sul ? Mas, jamais se desligaria dos seus amigos de lá , é forte sua amizade com colegas artistas plásticos, com escritores, poetas, atores, os que mais determinaram seu sucesso, eles é que batalharam para que ela fosse rapidamente conhecida e reconhecida como uma artista de valor. •
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Com André distante, chegou a hora de afastar Graciela de sua vida. Clara já sabia mais que o número do telefone da pensão, também o endereço, que freqüentava: subia Santa Teresa em horários diferentes, estacionava o carro a uma boa distância e de lá aguardava as saídas da concorrente: onde ia, quem a acompanhava, lugares que fazia as refeições, já sabia que ela trabalhava quase sempre na parte da manhã e nos finais das tardes. Havia, portanto, muito tempo de sobra , particularmente de noite, muitas vezes com dificuldade conseguia seguir a artista argentina, acompanhar o bondinho é complicado, muitas vezes enfrentava o trânsito pesado no Largo da Carioca. Depois de algum tempo não tinha dúvidas, tinha chegado à conclusão de que Graciela pulava a cerca. Teria de obter provas, quem sabe um investigador particular, fotografias, a idéia de revelar a André quem era essa sua namorada; só isso já era fonte de satisfação. Vencida essa etapa, fantasiava , estariam mais próximos da reconciliação, uma questão de tempo, de paciência. Afinal, ela era a mãe de seus filhos, o desquite é apenas uma figura legal, formal, não definitiva, na realidade ainda estavam casados.
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Clara tinha recebido recado da secretária do coronel Macedo, a esta altura sua colaboradora, de que André viajaria ao Rio naquele fim de semana. Onze da manhã e lá estava ela no lugar de suas observações, de onde podia ver a fachada da pensão, a movimentação dos hóspedes, sem o risco de ser descoberta. André desce do taxi, meia hora depois sai com Graciela e pegam o bondinho em direção ao centro. Clara os segue até certa altura, depois os perde de vista . Lamenta-se, volta para casa, esta ela perdeu. Pouco importa, movida por impulso irrefreável voltaria a seu posto de observação logo depois do almoço. Nada feito, nada de André e a namorada. Pretendia apenas observar os dois, mas a sua cabeça fervia quando imaginava o casal em cenas de sexo, nisso era fértil, sabia dos encantos do ex-marido, nesses momentos solitários tinha crises de choro e angústia. Clara sofria e muito. • E a situação toda atingia frontalmente o Cel. Adeodato e D. Quitinha, eles acompanhavam na medida do possível os passos de Clara. D. Imelde estava sendo fiel colaboradora nesse sentido. Conheciam e muito bem a filha. Mas, quedavam-se estupefatos num o quê fazer ? Como interferir, ajudar ? Suas preocupações tinham tudo a ver com a formação de Clara, o que os submetia a sentimentos de culpa. Mais que Clara, preocupava-os os netos......desgraça. • E o inevitável aconteceu: Graciela e André foram num domingo ao Lamas, onde sempre encontravam pessoas co-
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nhecidas e curiosas do rádio e da TV, intelectuais, músicos e certa juventude ligada nos movimentos culturais, muitos identificados como de esquerda, provavelmente a festiva, enfim, até mesmo esquerdófilos empregados em organizações colaboradoras do regime militar: a TV Globo, por exemplo. Chegaram cedo, o restaurante era concorrido mas àquela hora estava parcialmente tomado. Ótimo, assim o atendimento seria melhor, poderiam até conversar sem ter de elevar a voz. Surpresa ! Pouco depois entra Clara sozinha e belíssima, seu tipo original sempre mexe com a platéia, qualquer que seja, enfim, como diria Lima Barreto, “... o olhar cobiçoso dos homens e o de inveja das mulheres ....” que fortaleciam o seu ego. Olhares furtivos dos homens, mulheres controlando a irritação. Mal estar, Graciela e André silenciam, olham-se, é como se estivessem sendo flagrados em situação pecaminosa. Em segundos recompõem-se. André sugere que se mudem de mesa ou busquem outro restaurante. Graciela aperta sua mão direita, fixa seus olhos nos dele e diz a meia voz: “Nada disso, vamos ficar aqui mesmo, com ou sem ela. Chega com essa mulher, chega “.....repete com firmeza. André, mesmo considerando não ser a melhor opção faz sinal de acordo. Procuram ignorar a presença de Clara, que estava a menos de 5 metros deles e os mirava com impertinência, desafiadora, comprando briga. Enfim, um almoço que se transformara, de repente, em calvário, maldição. Quantas vezes mais essa situação se repetirá ? Reflete Gaciela. E mais uma surpreende o casal: entra afobado no restaurante, respirando forte, nada menos que o Cel. Adeodato. Senta-se ao lado da filha e fala continuamente colado aos ouvidos de Clara, que não move um só dos seus múscu-
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los da face. Sorri. A partir daí a situação se complica. Iminência de barraco. Graciela incontinenti concorda com André, sim, sem outra saída pedem a conta, pagam, saem rapidamente. Clara se levanta, os persegue, ainda dentro do restaurante começa a falar, cada vez mais alto, diz impropérios contra Graciela, de vagabunda para baixo. Alcançada pelo pai que a segura com dificuldades pelo braço, fala e mais desordenadamente; o que as pessoas conseguiam entender, já na calçada era “....esse homem é meu, ordinária....., é meu marido...”, que repete e repete. Seu rosto se contrái num misto de sofrimento e ódio, os cabelos desalinham-se. Um conhecido crítico de cinema que naquele momento estava entrando no Lamas, com ironia, graça e afetação, diz para seu companheiro: “Deve ser síndrome de Anna Magnani”. André e Graciela atiram-se à frente de um taxi, desaparecem pela Marquês de Abrantes em direção à praia de Botafogo. André aliviado, Graciela possessa, indignada, mas ambos percebem que a fuga foi providencial, um pequeno atraso e as mulheres se pegariam em fúria. Teria sido cena ridícula e dispensável. Depois de almoçarem em Ipanema, voltam para Sta. Teresa. No quarto olham a paisagem pela imensa janela do casarão até onde a vista alcança. Permanecem mudos, quietos, no máximo monossilábicos. Num dado momento Graciela explode: “Desaforo !!! “. No entanto, sabia ela como mulher que um incidente como esse, sobretudo desagradável, pode ter consequências positivas: mais um ponto para que a ex-mulher de André suma do mapa. Quantas vezes e no silêncio deste mesmo quarto admitiu para si mesma que André poderia, a despeito de tudo que aconteceu, reviver os laços de afetividade, voltar para Clara, para os fi-
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lhos, quantos casos ela conhecia e que terminaram assim; e a amante, a companheira dos momentos amargos e das alegrias ocasionais, essa ia para o espaço sumariamente descartada. “Não”, em seguida negava, seria loucura, mas, este nosso mundo não é mesmo um teatro de insanos ? Nessa mesma tarde e no apartamento do Cel. Adeodato o clima estava tenso. Clara recebeu forte descompustura do pai, com reforço de D. Quitinha, estava cabisbaixa, entristecida, frustrada, mas seus olhos tinham um brilho estranho, acusavam a mente perturbada que aos poucos maquinava um novo lance. As coisas não ficariam só nisso, matuscou Clara. Pela primeira vez passou por sua cabeça a possibilidade de eliminar André ou Graciela, arrasar o casal de vez. Esse romance teria um fim trágico, e o Cel. Adeodato, por um processo inexplicável, percebeu que a filha ruminava alguma coisa, prontamente tratou de esconder suas duas armas. Conhecia a filha, sabia de seus sentimentos radicais, que poderiam levá-la a um ato impensado, uma desgraça. A esta altura ele e D. Quitinha já tinham tomado conhecimento de quase todas as investidas da filha, até mesmo o episódio dos palavrões na porta do apartamento , através do seu colega Cel. Veiga. Portanto, pouco a pouco se convencia de que André estava certo quando recomendou tratamento médico para Clara. Os fatos eram tremendamente convincentes. No entanto, no final da tarde sugeriu um passeio pelo calçadão da praia, os três, como antigamente: pai, mãe e filha. Tarde lindíssima, à medida que caminhavam encontravam sentados batendo papo e mesmo andando em sentido contrário amigos de longa data, pessoas que conheciam Clara desde menininha. Os cumprimentos, recíprocos, eram em voz alta, como se estivessem comemorando alguma coisa.
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Bem ao jeito carioca. À medida que avançavam pelo calçadão cruzavam com pessoas famosas, como o dramaturgo Nelson Rodrigues, mal de saúde, andava amparado por uma enfermeira, assim parecia, era figura fácil naquela hora. Mais adiante, na esquina da rua Pe. Antonio Vieira, um grupo de rapazes deliciava-se com as histórias do Guilherme de Páschoa, aparentemente o mais velho deles, conhecido como filósofo urbano e prefeito do Leme, por conta própria. Na porta da Taberna Atlântica o garçom Antuneca estava a postos para receber os primeiros clientes do jantar. Enfim, a vida parecia estar cor-de-rosa para tanta gente, até mesmo para os que padeciam de problemas de saúde, para os que teriam de enfrentar dura jornada de trabalho, sem contar com os rapazes que juntos curtiam o prazer do encontro, da amizade. A beleza da praia no ocaso do dia pode ter o mágico poder de atenuar sofrimentos, a dureza do trabalho pesado, mas para Clara, com seu sorriso padrão, permanente, disso tudo passava despercebida. Vivia seu mundo interior, perturbado por idéias obsessivas e em pé de guerra. Seu comportamento bizarro já era do conhecimento de vizinhos, amigos e conhecidos, com o agravante de receberem condimentos os mais picantes, deformantes, em corrente , como sempre acontece em situações como a dela. • André ligou para o seu advogado, queria saber quais os entraves para libertar as crianças de Clara. Poderia, sim, mandá-las para a casa dos seus pais em Petrópolis, onde moram desde a aposentadoria do velho, eles tinham condições de oferecer às crianças uma vida saudável, colégio de
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boa qualidade, enfim, o mais importante, tirá-las da influência de Clara. Para facilitar D.Imelde também iria com eles, ela os conhecia desde muito pequenos, seria sim tremendo quebra-galho para os avós e a garantia, para André, de que as crianças teriam o necessário atendimento para uma vida normal. Difícil, complicado, mas possível, concluiu o advogado. Tomaria a iniciativa de conversar Com o Cel. Adeodato e D. Quitinha, o aval e o apoio deles era sumamente importante. Um fato novo surgiu e foi defintivo como reforço dos argumentos do advogado e, finalmente, a decisão judicial: madrugada de uma quarta-feira. As crianças estavam em Petrópolis, onde permaneceriam até o final de suas férias. Clara tinha apenas a companhia de D. Imelde, que foi despertada por gritos de sua patroa. Embriagada, Clara tratava de quebrar os móveis e os ornamentos da sala de estar, abriu os armários da cozinha e jogou ao solo panelas e pratos, enfim, uma cena infernal, assustadora. D. Imelde corre ao telefone, liga para o Cel. Adeodato, vinte minutos depois uma ambulância conduz Clara para a Casa de Saúde Dr. Eiras. Teve também o cuidado de se comunicar com André, que felizmente estava no Rio. Claro, o tumulto invadiu todo o prédio, grande parte dos vizinhos teve conhecimento da proeza, as tais mensagens na porta do apartamento de Clara e sua autora, há muito esperavam que alguma coisa pudesse acontecer por parte dela. Doidaça. O pior momento foi quando Clara foi carregada para a ambulância, em camisa de força, gritando como podia um discurso inintelegível e rico em palavrões. Esse surto de Clara facilitou os planos de André. Dispunha de fatos e de testemunhas, o que precisava para afastar as crianças de Clara, já diagnosticada em seus desvios de
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personalidade. Seu advogado agiu rápido, dois dias depois e com a documentação requerida o juiz senteciou, concordando com a tese. A partir daquela data os avós paternos seriam os tutores das crianças. Essa decisão levou mais uma vez Clara à fúria, teve de ser medicada e permaneceu internada mais uma semana. André e Graciela, no entanto, não festejaram estas últimas medidas: pelo contrário, todo o episódio os tornou tristes, a situação das crianças estava resolvida satisfatoriamente, mas, sabiam que Clara, assim que pudesse, tornaria a confrontá-los, a infernizar suas existências. Afinal, a doença mental instalada tende, nesses casos, a progressivo comprometimento. Dois meses depois André tinha chegado de Sergipe. Semana pesada, trabalhou junto às equipes de campo, sujeito ao extremo calor do sertão nordestino. Chegar ao Rio, nesta manhã de sábado, significava mais que a volta ao paraíso, aos braços de Graciela, ao encontro com os amigos, significava um prêmio para compensar não só a aridez das condições do seu trabalho mas também tudo o que vinha acontecendo em sua vida nestes últimos meses. A barra tinha sido pesada. Merecia. Passou pelo apart-hotel, uma ducha regeneradora foi o início deste dia que pintava ser de relaxamento e amor. Ligou para Graciela, trocaram gracinhas e carícias, iriam encontrar-se à uma tarde, passaria na pousada para apanhá-la. Era um almoço com alguns casais que ambos conheciam, quase todos colegas da Petrobrás, a comemoração do aniversário de um deles. Enfim, quem sabe, um sábado normal, descontraído, alegre.
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Pouco antes da uma da tarde Graciela sai da pousada e espera André na calçada, sabia que ele era pontual. Aquela rua de Sta. Teresa, tranqüila, pouco movimento, raramente passavam pessoas ou automóveis. Surge um veículo na esquina de baixo que subitamente acelera, quando se aproxima de Graciela reduz a velocidade. Da janela trazeira um vulto detona arma de fogo, foram três tiros, um deles acerta mortalmente Graciela. O carro desaparece na primeira curva. André chega minutos depois, desce do taxi e se depara com a cena horrenda; alguns hóspedes e seu Paschoal, atraídos pelo barulho da arma de fogo, correram para a porta da pousada, alguém chamou a ambulância do Souza Aguiar; inútil, Graciela estava morta. Duas semanas depois, André tremendamente abalado com a morte de sua namorada, recebe recado do Cel. Veiga, quer falar com ele. Naquela mesma salinha da Petrobrás, na qual foi informado anos atrás e pelo mesmo militar sobre as porcarias na porta do apartamento de sua ex-mulher. Acomoda-se e em seguida entra o militar. Até aquele momento a única notícia sobre o andamento das investigações era a de que os três disparos sobre Graciela partiram de uma mesma arma, de calibre 45, exclusiva das forças armadas. Quem sabe o cel. Veiga tem mais informações, sobretudo depois de identificado o tipo da arma usada no crime. Será ? O Cel. senta-se frente a André e diz que compreende seus sentimentos, estima que ele se recupere de tremendo abalo. André não se move. Em seguida pergunta a André como conheceu Graciela. Precisava do seu depoimento, até mesmo para livrá-lo de eventual envolvimento político com a ex-namorada. André se põe em alerta, indigna-se com as palavras do coronel, em outras condições teria voado em cima do seu pescoço, enchi-
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do ele de pancada. Mas, além de super-controlado, passou a se interessar pelas investigações que provavelmente tinham a assinatura do SNI, até onde pode chegar a obsessão dos milicos. Não se recusou a prestar informações, não tinha culpa em nenhum cartório, em poucas palavras contou de sua viagem a Buenos Aires e onde conheceu Graciela. Lembrou que à época já estava desquitado , portanto, moralmente desimpedido para conhecer e se relacionar com eventuais parceiras. Omitiu sobre os problemas gerados por Clara, esse depoimento deixaria para a polícia civil , mesmo porque o Cel. Veiga já deveria estar a par de tudo ou quase tudo. Num dado momento o coronel abre uma pasta , dela saca documentos e recortes, fotos, onde Graciela figura e aparece, algumas em demonstrações cívicas de apoio aos justicialistas, na Argentina. André informa que ignorava os antecedentes de sua ex-namorada, não teve o menor interesse em saber do seu passado, quer político, quer sentimental. E pergunta ao coronel onde ele quer chegar, o que ele tem a ver com tudo isso ? Cel. Veiga sorri com o canto da boca, fecha a pasta e diz pausadamente: “Minha missão nesta ASI é a de preservar a Petrobrás de qualquer ameaça anti-revolucionária. Não me preocupam os acontecimentos em si mas o que pode haver por trás deles, como é caso da morte da senhorita Graciela. Ela foi ativista justicialista, veio para o Brasll às vésperas da queda da presidente Isabelita, pode ser coincidência mas pode não ser. Conhece alto funcionário da mais importante empresa estatal, de objetivos estratégicos para o país, enfim, que interesses teria essa argentina ? Seria apenas um caso de amor ? Um namoro ?”. André respira fundo, olha fixamente para o Cel. Veiga e sem pressa lhe diz: “ Coronel, não me tome por idiota ou ingênuo. Até este momento ouvi
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do senhor, pacientemente, uma história de ficção, cheia de tolices, de dúvidas escabrosas. Jamais li um conto policial tão pouco criativo. O pior é que sou um dos seus personagens. Não aceito essa hipótese maluca, com veemência, não aceito e recorrerei à justiça, vou buscar o melhor advogado para me defender dessa infâmia. Se o senhor pretende investigar hipóteses políticas que supostamente envolvem a morte de Graciela, problema seu. Não tente me colocar na posição de colaborador, em suas iniciativas paranóicas”. É possível que em toda a experiência do coronel na ASI jamais tenha enfrentado uma situação tão embaraçosa, uma pessoa tão determinada e quase ofensiva; afinal, ninguém se atreveria, com essa determinação , contrapor-se e até mesmo desafiar uma das mais fortes e temíveis caixas pretas do governo militar, o famigerado SNI. O coronel se ajeita na cadeira, sente-se obviamente desconfortável. Olha fixamente para André , eleva a voz e emenda: “ Meu trabalho não é criminal, sou o responsável, repito, por eventuais ameaças que possam colocar em risco uma empresa do Estado. A morte dessa moça pode ter sim conotações políticas, até o momento em que fatos e depoimentos convincentes determinarem o contrário. Se isso acontecer, Dr. André, abandono as investigações, terminam minhas preocupações, darei o caso por encerrado”. Pede a compreensão de André. Despedem-se. No final daquela mesma tarde André está recostado no sofá, saleta do apart-hotel. Rumina e procura levantar as suas hipóteses sobre a morte de Graciela. A quem interessaria , quais os motivos ? Algum grupo da extrema direita, da esquerda ? Clara ? O coronel Adeodato ? Enigma, a polícia civil com amplo rol de dúvidas tinha poucos indícios para nortear as investigações. A evidência é a de que Graciela
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foi vítima de um atirador profissional. Nas condições que foi morta somente uma pessoa do ramo poderia ter sido o agente , com tanta precisão. Os eventuais suspeitos Clara e o coronel Adeodato, fora de cogitação, naquele sábado estavam todos, D. Quitinha também, na Casa de Saúde. Na realidade o entristecia enormemente a ausência da namorada, um sentimento mais forte que o sentido das investigações sobre sua morte. Sim , seu sonho e também projeto de formar um casal, uma segunda oportunidade em sua vida e com boas perspectivas de dar certo, tudo por água abaixo, com cicatrizes que por muito tempo impediriam o nosso herói de encontrar uma eventual nova parceira. • Correm os meses, no Rio de janeiro o clima se altera, do calor insuportável passa para o mês de maio com dias belíssimos, temperatura agradável, civilizada. No entanto, em Sergipe prossegue o trabalho extenuante, embrutecido pelo extremo de calor. André, envolvido pela áurea de tristeza, passou a culpar-se indiretamente pela morte de sua namorada. Despreza as regras da correta alimentação, bebe demais e com freqüência, perde o mínimo da vaidade pessoal necessária à preservação da saúde e da boa aparência. Estava rapidamente transformando-se numa pessoa amarga e com poucas defesas para a integridade, amarrado a idéias pessimistas, derrotistas quanto ao próprio destino. Arrasado. Somente o seu trabalho merecia atenção, mergulhado nele curtia alguns momentos de satisfação, o projeto estava dando certo, resultados plenamente satisfatórios. A seriedade de sua postura profissional indicava o sentido do caminho para
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sua reabilitação como pessoa. Quando volta ao Rio imediatamente sobe a serra, seus filhos e o contato com seus pais eram os maiores motivos para momentos de satisfação afetiva, uma alegria que conseguia desvincular das desgraças havidas e sentidas. Seu advogado o mantinha informado sobre o andamento das investigações, mas em todo esse período o progresso era desestimulante. Um carro passa e dele alguém atira, em seguida some, desaparece, sem que alguém tenha anotado alguma informação, realmente é um caso de elevado nível de dificuldades para os investigadores. •
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Rolava o mês de novembro, 1978. Num bar do Realengo um grupo de amigos bebia e conversava; bermudão, chinelo de dedo e sem camisa, calor infernal. Todos militares, à vontade, pertenciam à mesma agremiação carnavalesca que no ano seguinte desfilaria pela Av. Rio Branco. O momento era, portanto, de relaxamento, até que um deles comentou sobre a troca dos presidentes, de Geisel para Figueiredo. Eram todos cabos ou sargentos do Exército, o assunto subitamente tornou séria a conversa, o bate-papo. O que resultaria nessa mudança, que trazia como mensagem principal mais abertura política ? Como ficaria a situação dos militares como eles, já que os oficiais teriam toda a proteção, prevista num projeto de anistia, que quase todos conheciam. Um deles, surpreso, elevando a voz levanta a dúvida: “ Afinal, o Figueiredo para a abertura, logo ele que foi do SNI, linha duríssima?”Um outro acrescenta :” Vai sobrar pra nós, vão pintar os processos contra a repressão, e como é que a gente fica ?” Mais adiante, o mais cínico deles sorri e apela: “
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Quem não tiver bom padrinho vai dançar. Estou tranquilo, o meu é forte, intocável, não vai deixar me envolverem em porra nenhuma, não me abandonará, alguém tem alguma dúvida ?” Risada geral, todos sabiam das coisas de cada um, assim também o porquê daquela bazófia. • 1984, bairro de Corrêas, Petrópolis, o pai e seus filhos, Valéria e Paulo, tomam o café da manhã. A filha desceria ao Rio, tinha no período da tarde cursinho preparatório para o vestibular, pretendia ingressar na Escola de Engenharia da PUC no semestre seguinte. Paulo iria para o colégio, como acontecia em quase todas as manhãs era o pai quem levava e, em seguida deixaria Valéria na rodoviária. Depois de cumprida essa missão, que se repetia nos dias úteis quando ele estava em casa, André se entregaria ao trabalho que o ocupava no momento: o aproveitamento do xisto betuminoso como combustível. Tinha recentemente reunido material para o preparo de tese, com o apoio de colegas químicos industriais, resultado de suas recentes viagens pela Petrobrás, especificamente à cidade de S. Mateus do Sul, no Paraná. Em casa sentou-se à frente de um PC, abriu, começou a registrar dados e informações, altamente motivado pela perspectiva de realizar trabalho com elevado nível de pertinência técnica e economicamente viável. Fisicamente pouco sobrara do André atleta da praia. Aos 48 anos de idade e às vésperas de conseguir aposentadoria especial tornara-se pesadão, os cabelos rareando com rapidez; mas a diferença maior para quem o conheceu dez anos atrás estava no seu semblante, a marca de suas frustrações, a vida marcada pela tragédia.
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A mãe dos seus filhos suicidara-se, assim que obteve alta da Casa de Saúde, de onde saiu encharcada de drogas e remédios fortes, demolidores. Saiu pior que entrou, comentaram. Estava sendo atendida por conceituado psiquiatra do Rio de Janeiro, Dr. José Leme Lopes, mas nem esse atendimento impediu o gesto extremo. Foi um tiro na boca, no apartamento do Leme, com uma das armas do seu pai, uma pistola Colt 45. Quando recebeu a notícia André teve mais um choque emocional, mais um. Estava na casa dos seus pais, jogou-se num sofá e chorou convulsivamente. A figura de Clara aparecia em seus devaneios, mas quando ainda adolescente, cheia de vida e apontando a mulher maravilhosa que viria a ser. Seu temperamento exuberante era a tônica das lembranças. A Clara problemática e suicida nada tinha a ver com essas imagens, tornara-se pessoa insuportável, porque doente, nem seus pais conseguiam, nos últimos momentos e antes de sua internação, um relacionamento que poderia ser classificado de satisfatório com ela. Era a evidência da implantação de insanidade mórbida, crônica. Como contraponto surgia igualmente a imagem de Graciela, a mulher que lhe acenou a felicidade, bárbara e covardemente assassinada. Em muitos momentos André sentiu-se entrando num processo que poderia – admitu ele mesmo para seu amigo Haroldo – configurar como fraqueza mental e a possibilidade de se enquadrar numa doença mental, também. Passou por perto, seguramente, salvou-o o interesse pelo futuro dos filhos e sua obstinação e interesse pelo trabalho profissional. Sobre a morte de Graciela, teve a informação de que a polícia recuou ante a hipótese do crime ter sido cometido por motivos políticos; nesse caso as investigações teriam seguimento pelo
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DOPS e as forças armadas, como insinuou uma reportagem de O Globo, jornal sempre simpático com o governo militar. Inconsolável, André pagou do próprio bolso policiais para que investigassem paralelamente, dinheiro gasto inutilmente. Nada feito. • De volta do sul, em sua última viagem, o avião aterrissou no aeroporto do Galeão. André sentiu total sentimento de solidão. Foi o último passageiro a apanhar a bagagem na esteira. O relógio cravava onze e meia da noite. Caminhando em direção ao serviço de taxis ouvia os próprios passos, a própria respiração. Nessa noite dormiu num hotel de Copacabana, subir a serra àquela hora da noite, nem pensar. Deitou-se e como de hábito, custou a pegar no sono. Mas, assim mesmo sonhou com ele mesmo, estava diante de uma livraria, no aeroporto Affonso Penna, S. José dos Pinhais, e sua imagem refletida numa vitrine estava absolutamente azul, da cabeça aos pés, ..........assim como a sua alma, esta cianocongelada, concluiu. Na rodoviária de Petrópolis pegou um taxi. Chovia fininho e a habitual neblina petropolitana anunciava um sábado sem sol. Assim que o carro estacionou frente á sua casa, pagou a corrida, desceu e percebeu que alguém se dirigia a passos rápidos em sua direção. Era uma de suas vizinhas, a conhecia de vista, apenas cumprimentavam-se. Ela se aproximou, sorriu, estendeu a mão e disse: “Sonia, sou a Sonia, há tempos quero me aproximar de você, desculpe o mau jeito mas hoje criei coragem”. Sorriu. “Moro sozinha, trabalho na Hortolândia, hoje é meu dia de folga, trouxe para você
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estas flores, quem sabe o vermelho das rosas enfeitem este dia cinzento”. André ouvia a jovem petrificado pela surpresa, não conseguia dizer palavra. Em segundos voltou à consciência, percebia Sonia como uma mulher madurona, bonita, seu atrevimento talvez estivesse marcando um momento mágico. Aceitou e agradeceu o buquê , sorriu, olhou sua vizinha bem nos olhos e a convidou para um lanche no final da tarde, quem sabe na Confeitaria D’Angelo? “Que tal às cinco e meia, passo pela sua casa e buzino, OK ?” Sonia também sorriu, parecia uma menina em idade escolar, aceitou o convite. Em curta fração de tempo os dois se colocaram numa situação de pré-romance, marcado simbolicamente pela beleza das rosas vermelhas.
That’s all folks
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Outono em Nova York
Tarde fria. O casal sai do carro; elegante manobrista toma a direção e o conduz ao estacionamento do hotel. Entram no vestíbulo, entregam seus agasalhos à recepcionista e dirigem-se ao salão do restaurante. Ana quase tem um surto de deslumbramento, consegue conter-se com esforço: o ambiente lembra o dos filmes musicais da Metro do seu tempo de adolescente, talvez o Delmonico’s da década de vinte. Um conjunto toca Cole Porter com a discrição conveniente. Sentam-se próximos a imensa janela, enfeitada por cortina em camadas e na cor chocolate, dégradé. Pedem coquetéis, o maître o trata pelo sobrenome com certa reverência e, assim que se afasta, sim, o casal olha-se de frente, examinam-se em silêncio, sorriem. Richard sobriamente trajado, terno cinza risca-de-giz, camisa azul clara e gravata bordô; tem os cabelos castanho claro anelados e cheios, é mais bonito e atraente que nas telas dos cinemas; seu nariz é grande mas há harmonia em seus traços e no conjunto do rosto. Ana, impecável, o vestido comprado às pressas naquela manhã caiu bem e valoriza seu físico mignon. Os cabelos puxados para trás num coque, maquiagem suave, pequenina e graciosa bem representa o Uruguai, sua terra natal; descendente de italianos é uma sul-americana de carnes rijas e pele colorida pelo sol de
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Punta del Este. Richard dispensa comentários, é tido e reconhecido como um dos bonitões de Hollywood, seus filmes fazem sucesso de bilheteria e de crítica, apesar de estar ainda em início de carreira. Ana é uma de suas admiradoras, no nível do fascínio, um acontecimento mágico estar na frente dele naquele momento. Foram apresentados na noite anterior, vernissage de uma prima argentina, Graciela, que tinha conquistado belo filão nas elites novaiorquinas, gente endinheirada, cada exposição pública do seu trabalho transformava-se numa festa divertida com convidados dos diversos matizes da fauna humana. Ambos tem dificuldades de comunicação verbal, até certo ponto, já que Ana não fala inglês e Richard muito menos o espanhol. Mas, quando o clima é o da aproximação, de simpatia recíproca, essa dificuldade é sempre contornada, há a linguagem universal dos sinais, os olhares e ainda a expressão facial. Portanto, foi assim que o casal combinou esse encontro e estava muito claro que não se limitaria ao almoço; Richard, otimista, já tinha reservado uma suíte para eles nesse mesmo hotel. Depois dos drinques, mais soltos. Ana sentia certa leveza e excitação, estava com sua auto-estima a mil. Richard, esbanjando charme, tinha a situação sob controle, esforça-se para dizer alguma coisa, quebrar o gelo, puxar conversa. Não tinha saída, teria que ser em inglês. Iú noumi, mai neim is Richard bat iu mei colmi Dick, ov corsssssss Pisca com exagero, faz parte. Ana repara naquele momento que o nariz dele não é tão grande assim, como parece ser nas telas dos cinemas e mesmo em fotos.
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Ana sorri--- Si Dick, no me pasô por la cabeça jamarte mister Gere. Estica o braço direito por cima da mesa, Richard enlaça sua mão com seus dedos enormes, aperta, o sistema hormonal dos dois entra em franca evolução. Olhos nos olhos, fixos, quase dramáticos, bastaria um clique e ambos desprezariam o almoço, sem dúvida. Controlam-se, dois garçons se aproximam com os pedidos. Ana es mi nombre, mi. -- Aponta com seu indicador o próprio peito, ---- asi me jamam em família, familí, en toda parte. Solamente Ana i basta !!!!, concluí. O basta saiu forte, decisivo e cantado, como costumam se expressar nuestras hermanas del cono sur. Ela sabia que se tratava de uma aventura, certamente rara, maravilhosa. Muita gente duvidará, é certo.............. pouca importa, viver o momento é o que vale, quantas mulheres gostariam de estar no seu lugar, conclui para si mesma. Tinha consciência também que Richard estava a fim de curtir uma novidade, mulher que recém-conhecia, tipo exótico, talvez, de um lugar, de uma região distante e totalmente desconhecida dele. Ambos continuam tentando a comunicação, insistem em falar o próprio idioma e parecem se entender. -- Adonde vives ? Aqui o en Califórnia ? Califórnia, you haus, home --- acentuou Ana, buscando algumas palavras que faziam parte de seu pequeno vocabulário em inglês. --- Oooooooohhhhh ! --- balbucia Richard e abafa um arrotinho com a mão --- Oooooooohhhhh ! Ai liv in everiuere, ai uorc rardli, uondei rear, anoderdai in Calcutá, it depends ov decontrats, its cliar for iú ? Bat ai rev a haus in Califórnia, ies, andiú, uere iú queim from, live, iú arr from Uruguai, Paraguai ? Iés ?
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--- Si, comprendo, uorc, trabajo, si mutchas viahens siempre, iu nou. Jo vivo en Montevidéo, trabaho, uork, trabajo como traductora francês-espanhol, soi traductora, libros, bucs ---- arrematou Ana. --- Vivo en Montevidéo bat ai love Punta del Este, plaja, bitx, me encanta el sol, samar, indesamar, OK ? Iu anderstand, comprende ? --- Ooooooohhhhhh, ies, Copacabana ? Copacabana bitx, ies ? --- Complementa Richard. --- Nooooooooooo, es Punta del Este, Uruguai, no Rio, no bracil, boludito, corrige Ana sorrindo. E assim vão se entendendo, ela arriscando algumas palavras em inglês, ele como ator faz cara de quem está presta atenção e compreende. Na realidade para ambos as mensagens são razoavelmente captadas. Afinal não estavam ali, naquele momento, num esforço pan-americano para a aproximação de seus respectivos países de origem, por supuesto. E o almoço termina sem sobremesa, Richard pede conhaque para os dois, a bebida sela a etapa. Dali em diante outros prazeres tomariam conta do simpático casal. De repente ambos percebem certo frisson no ambiente, alguma coisa acontecia no vestíbulo do restaurante. Sim, meia dúzia de pessoas entram no salão, gente do cinema como o diretor Oskar Garlic, o compositor e cantor Roy Orbison e a atriz Júlia Roberts, quase todos do círculo de amizades de Richard, que, imediatamente pede licença à sua parceira eventual, levanta-se e vai ao encontro deles. Inacreditável. Ana permanece estática, estupefata, aquele acontecimento estava simplesmente borrando o clima, ela e Richard. Borrou mesmo, sem dúvida. O grupo vai para um dos cantos do restaurante, lugar
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com poucos clientes. O maître se aproxima de Ana. Cordialmente informa que a conta está paga, que Mr. Gere pede desculpas por ter-se ausentado de maneira repentina, coloca discretamente uma nota de 50 dólares debaixo do guardanapo à frente dela, diz que um taxi está à sua disposição na frente do hotel e se afasta. Mas, seu sangue latino não iria deixar a situação terminar desse jeito. Injuriada e possessa vai até onde se encontram os amigos de Richard, aponta o indicador para o rosto dele, que recua, surpreso , e diz em voz alta: “--- Maricón, me cago em la leche de tu madre. Cabrón ! “. Joga a nota de 50 dólares no chão, cospe e pisa em cima. Afasta-se como fera enjaulada, esbarra nas mesas, apanha seu casaco na recepção e desaparece pela tarde fria do outono de Nova York
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Caminhos diferentes, destinos semelhantes
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Rua Marquês de Abrantes, bairro do Flamengo, Rio de Janeiro. Primavera ainda e o calor carioca empapa a roupa das pessoas, aumenta o consumo de bebidas, lota as praias até o sol desaparecer. O Andrade acomoda-se numa das mesinhas da calçada, pede um chope. No caminho para o boteco comprou o último número de Realidade. Precisava ler alguma coisa. A leitura sempre foi uma saída para desviá-lo dos problemas, também motivo de satisfação pessoal, necessidade de isolamento e em alguns casos de fuga. O pior, ............ já era. Passado. Mas, mesmo assim, sente-se nervoso, agitado, ansioso, transpiração forte, o suor desce pelas costas e chega ao rego das nádegas, empapa a cueca. O tão esperado telefonema, quatro meses desempregado, a conta bancária cada dia mais magra, os olhares compreensivos mas preocupados de sua mulher, noites insones. Finalmente Oskar, Garlic (auditores) S/C e a notícia de sua aprovação; fará parte de uma equipe altamente prestigiada nesse campo de atividades. Folheia a revista, se detém numa reportagem sobre as mulheres de Roger Vadim Lindas. Mais adiante as fotos
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ensaiadas e o sorriso cínico do ministro Jarbas Passarinho, candidato potencial à presidência da República. Caramba , depois deste Médici qualquer milico serve, diz para seus botões. Dessa leitura lembra-se de uma conversa sobre o poder, com o Padilha. O maldito poder, câncer da sociedade, as vantagens imediatas e a qualquer custo, na marra, as ambições, o egoísmo, o dinheiro, a posse da mulher, o péssimo uso do poder. Pecados capitais de uma cultura voltada para a competição, quase sempre injusta, o machismo, a busca obsessiva do sucesso pessoal, disse o amigo. Que se dane a ética ! Dane-se o Padilha ! Chega de fantasias e poesia, de lirismo, esta é a vida, o mundo em que vivemos, é a realidade, os puristas que falem para os ventos, guerra é guerra. Nas relações do trabalho não há amigos mas interesses. Quem não luta para chegar ao poder está fadado a morrer com a boca cheia de formiga, vira mero servidor, pessoa de segunda classe, diz para si mesmo. Além disso o poder é afrodisíaco, dizem. Num lance pensou em mulheres, todas lindas, as mulheres de Vadim, maravilhosas. Achou graça de si mesmo Cedo ainda , os amigos do chope costumam chegar em torno das seis da tarde. Ótimo, tempo de sobra para colocar a cabeça em ordem, quer ensaiar a notícia da novidade para eles. Empresa multinacional, devem esfolar mas pagam bem, mais as possibilidades de carreira, chegar a “partner”, quem sabe ? Terá comportamento exemplar e de acordo com a expectativa dos gringos, o idioma inglês que domina é fator altamente positivo, a boca sempre fechada, olhos e ouvidos atentos. Aliás, é o que se espera de um auditor. Deita a revista na mesa, pede mais um chope. Um
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gole, outro em seguida e percebe que a mulher se aproxima e fixa nele olhos tristes. Veste-se modestamente, tem os cabelos grisalhos em desalinho, sem capricho. Pede para sentar-se mas não espera a resposta: senta-se em seguida. Diz que não quer incomodar, era só por alguns minutos. Ele oferece gentilmente uma bebida -- um guaraná ? --, ela recusa. Coloca sobre uma das cadeiras um saco com pães e abre a conversa. Ele se sente desconfortável mas a surpresa desperta curiosidade, sim. Moro perto daqui, na rua Paissandu, sempre que venho na padaria vejo vocês todos na maior animação, conversando, fazendo troças, todos amigos e gente alegre. Minha vida era assim, antes de enviuvar. Meu marido gostava de uma cervejinha, meus filhos levavam colegas para a nossa casa, o clima era muito bom, um pouco bagunçado mas bom, eu gostava. Tudo isso acabou. Hoje vivo do meu silêncio e do barulho dos outros. A companhia de uma senhora e nessas condições não lhe parecia a mais apropriada para o seu momento, aquele momento; daria atenção até certo ponto e fim de papo. Sou do interior de Minas, família grande, gente simples, meu marido trabalhava nos Correios e veio transferido para o Rio. Foi promovido. Morreu moço demais da conta, me deixou sozinha e com dois filhos para criar, eles já estão com suas vidas resolvidas, moram em São Paulo, foi muito duro criar os dois. Passo a maior parte do tempo dentro de casa vendo televisão, saio à tardinha para algumas compras e só. Hoje criei coragem e vim chatear o senhor com minhas histórias, não é mesmo ? Esboça um sorriso. Andrade num gesto disse que está tudo bem, mas na verdade seu desejo é que ela se mande, suma. Não faz per-
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guntas, o que provavelmente desestimula a senhora, afinal, não há conversa em via única, sentencia para dentro de si. Difícil viver em cidade grande, lá no prédio onde moro os vizinhos mal se cumprimentam, brigam nas reuniões de condomínio, ruim mesmo. Não tenho como me acostumar, já pensei em voltar para Caratinga, não tenho coragem. É um problema mesmo. Acho que não me darei bem por lá também, eu mudei muito estes últimos anos, a cidade e as pessoas de lá também mudaram, poderei enfrentar talvez mais problemas dos que os que enfrento hoje, estes pelo menos sei como contornar e não tenho mais idade para me ajustar, me adaptar novamente aos costumes e o jeito de viver de uma cidade pequena. É sim um dilema. Pensei em dar aulas particulares, sou professora de matemática para o curso ginasial, procurar um grupo de pessoas da minha idade, isso só para me desviar dos sentimentos de solidão, mas apenas penso, me falta alguma coisa para ir em frente, sabe ? Andrade começa a intranqüilizar-se, não tem a menor vocação para a assistência social, mas como pessoa educada finge algum interesse nos problemas da senhora, que, num repente pergunta : - O senhor não tem medo de ficar sozinho no futuro ? E emenda: --isso pode acontecer a qualquer um, não podemos desprezar essa possibilidade, o nosso destino pertence a Deus e ele não antecipa nada, não é mesmo ? Andrade tem até vontade de retrucar sobre essa hipótese mas teria de explicar qual a sua situação de pai de duas meninas e marido de uma mulher e mãe exemplar, enfim, não estava disposto a se abrir com uma estranha, estimularia a permanência dela, seria afastar um fantasma que não faz parte de suas preocupações, enxugar gelo. Sinaliza dúvida
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apenas com uma expressão facial, a esta altura percebe que tem de fazer alguma coisa para terminar aquele papo não previsto e já incômodo. A mulher se aquieta.. Olhar de infinito para a rua e as pessoas que circulam pela calçada, vira-se para o Andrade, e em seguida: - Bem, vou embora, já ocupei demais seu tempo e sua atenção. Foi bom ter encontrado o senhor aqui, desculpe, não quero abusar. Levanta-se, esbarra na mesa que estremece, apanha o saco de pães e o acomoda num dos braços. Com a mão livre arruma saia a e a blusa, se despede do Andrade com um sorriso, afasta-se lentamente. Andrade faz sinal para que o garçom lhe sirva mais um chope. Observa a senhora que caminha sem pressa, com dificuldade, sem firmeza, os cabelos em desalinho, sem capricho, os saltos dos sapatos gastos e, trôpega, desaparece rapidamente no meio das pessoas. Futuro? Como será ? Claro, será programado, com um bom emprego e conhecimentos atuariais poderei ter uma vida folgada e certamente pouparei para chegar à aposentadoria, com boas garantias econômicas e financeiras, pensa conclusivamente. Quem não se previne, como esta senhora, chega à velhice com problemas até mesmo de relacionamento, afinal quem quer se relacionar com uma pessoa infeliz ? O dinheiro é sim a segurança maior, sem dinheiro qualquer um é zé ninguém, escória da sociedade. E é a situação financeira que permite um círculo de pessoas de um mesmo nível social, claro. Os pé rapados que me perdoem. Está no terceiro chope quando chega o Padilha. Na-
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quele dia o amigo saiu mais cedo da repartição – era funcionário da prefeitura do Rio – para um exame médico, coisa de rotina, mas estava preocupado com o volume de exames requerido pelo clínico geral. Enfim, na hora do chope e da descontração não cabe pensar em coisas ruins. Senta-se à frente do Andrade, cumprimenta o amigo com um sorriso, chama o garçom , explica rapidamente sobre os exames e partem para outros assuntos, que nunca escasseavam, ambos bem informadas conversam sobre política ou futebol, enfim, o que pinta no momento. Andrade fala da tal mulher, mal começa, muda de idéia, Padilha não lhe dá atenção e não era a hora das desgraças. Fala da novidade, de sua aprovação na empresa de auditoria, das perspectivas; Padilha ouve o amigo com justificada atenção, ele também estava preocupado com as dificuldades do Andrade em conseguir emprego. Essa boa, essa ótima notícia foi motivo para que comemorassem e, como não poderia deixar de ser, também algumas recomendações e conselhos quase paternais do Padilha, apelo ao juízo, coisa de amigo do peito mesmo. • 1992
Noticiavam no rádio um resumo sobre a renúncia do presidente Fernando Collor, escândalo de grandes proporções envolvendo gente graúda de Brasília, dinheiro do tesouro nacional para o ralo ou conta bancária dos apaniguados do ex-presidente, por aí. Andrade com dificuldade se mexe na cama, desliga o rádio. Quer sair, ir até o boteco de antigamente , quem sabe encontrar algum velho amigo velho. Quem sabe ? Há
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anos sumiu do Flamengo, depois de algum tempo e já empregado da Oskar, Garlic passou a se relacionar quase exclusivamente com pessoas ligadas ao seu trabalho, fazia dos momentos sociais uma extensão dos interesses. Na situação de trabalho tornara-se uma pessoa fechada e percebia cada colega como concorrente. Não há como confiar neles , os mais confiáveis são os que mais rapidamente nos surpreendem: a traiçoeira facada nas costas, concluía. Como supervisor, depois “manager”, foi implacável na cobrança de seus subordinados, o que lhe garantiu a fama de durão, mas justo quanto às decisões, quer institucionais e relacionadas ao trabalho ou quanto a circunstâncias que envolviam o pessoal sob sua responsabilidade. O Padilha, único do boteco com quem conservou amizade, certa feita observou ironicamente: -- É, auditores e banqueiros tem em comum a falta do coração. Busca a bengala com dificuldade, apoiado nela levanta-se. O jeito é suportar as seqüelas do avc. Tomar cuidados consigo mesmo, está sozinho, apenas a presença de uma faxineira para manter o pequeno apartamento em ordem e limpo quebrava sua solidão, isso uma vez por semana. A fisioterapeuta, cara para o que recebe como aposentado, atende não muito longe de onde mora, mas sempre ocupada com muitos pacientes pouco tempo tinha para um bate-papo, não sobrava tempo para ela clarificar todas as suas dúvidas. Não eram poucas. Dieta saudável, nada de álcool, sim, ele entende as restrições para a sua recuperação, até os limites dessa possibilidade. No início, assim que saiu do hospital, sua movimentação dentro do apartamento muitas vezes o levou ao desânimo. Tomar banho, enfim, as coisas mais simples eram
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verdadeiros desafios. Do corpo atlético restou pouca coisa para a idade madura, sentia-se um traste. Evitava o espelho. Não deu atenção ao amigo Padilha, que afirmava ser o trabalho apenas meio de sobrevivência, quem sabe em alguns casos de satisfação profissional. Provavelmente racionalizava sua situação de funcionário público, em geral pessoas que não incorporam o trabalho como fator da maior importância para a vida pensam dessa forma, não deixa de ser um alívio, por desempenharem funções muitas vezes absolutamente desinteressantes. Mas, a esta altura dos acontecimentos, Andrade reconhecia que ambos pecaram pelo extremo. Outras conversas, antes dele assumir o emprego da Oskar, Garlic, versaram sobre as circunstâncias de qualquer trabalho, sobretudo dos empregos; numa delas Padilha foi enfático: “O sucesso é embriagador, sobretudo quando o dinheiro passa a rolar rapidamente e de forma imprevista. Há formação de novos círculos profissionais e as mulheres aparecem misteriosamente, com seus poderes de sedução querem participar das coisas boas que o dinheiro dos homens pode pagar. Algumas vão se declarar apaixonadas, outras se apresentam simplesmente como fontes de prazer e há outras ainda que surgem como conselheiras, muitas vezes são as preferidas, nelas os homens depositam dose excessiva de confiança: geralmente se tornam hostis competidoras da mulher “oficial”, da matriz, e não raro ganham a parada, concluía o Padilha. Ah, as mulheres.........!!! Foi exatamente com uma dessas que Andrade se encantou: era a secretária da divisão de auditores, tinha certa dotação física que agradava a quase todos os homens, sobretudo os empregados brasileiros: Adriana possuía torneado
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traseiro, que exibia com roupas justas e pouco pudor. Mas era tida e reconhecida como mulher difícil, resistia a monumentais cantadas, comentava-se a boca pequena que apenas um inglês, transferido dos Estados Unidos e com rápida passagem pelo Brasil, teve o prazer de ver, tocar e usar aquele monumento carnal. Mas, enfim, foi o nosso herói que recebeu, assim que se conheceram, as simpatias de Adriana; três semanas depois que o Andrade assumiu suas funções já se encontravam furtivamente, quase sempre no apartamento dela, em Botafogo. Realmente o Padilha, que nada tinha de profeta, nesta acertou e na mosca. Sua vida em casa, com a mulher e as filhas, nada sofria com essa pulada de cerca. Estavam todos alegres e felizes, em pouco tempo iriam morar em Ipanema, eram os efeitos positivos do novo emprego do pai. No entanto, aproximadamente quatro meses depois dessa mudança sua mulher recebeu objetivo recado anônimo na secretária eletrônica, uma voz estranha que dizia simplesmente o seguinte: “seu marido está traindo você com a secretária Adriana”. Claro, bomba, sobretudo para uma mulher dedicada ao lar e à educação das filhas. - Não é justo ! Disse , apontando para o marido. Andrade não teve saída. Numa conversa que durou um bom par de horas acertaram a separação, ela inflexivelmente queria o desquite e o quanto antes. Nem a promessa dele de acabar com o romance pontual a convenceu, estava ferida mortalmente. Nesse momento, sim, veio à cabeça de Andrade as observações do amigo Padilha, tinha realmente sucumbido a uma mudança excessivamente rápida em sua vida, sobretudo os ganhos e sua meteórica ascenção no escalão hierárquico da Oskar, Garlic. Felizmente seus problemas
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domésticos não tiveram qualquer repercussão na empresa, enfim, , seu chefe imediato sugeriu a melhor solução e Adriana foi sumariamente demitida. Mais uma confirmação da óbvia sabedoria popular: a corda rompe sempre em sua parta mais fraca. Surgiram outras adrianas, Andrade passou a viver a nova situação de “solteiro”, desimpedido, freqüentando festas e bares de encontros; fugia da ameaça de novo casamento, seu salário gordo permitia viagens aos exterior e fins de semana em hotéis de luxo, sem esquecer a pensão para as filhas, que estudavam em colégio próximo de onde moravam, na rua Barão da Torre; sua mulher tinha garantido a posse do apartamento nas negociações do desquite, sem qualquer resistência do Andrade. Veste-se, alinha os cabelos e sai do apartamento, dirige-se ao boteco, o de antigamente. Tarde quente para o mês de setembro. Caminha lentamente, apóia-se na bengala, desvia-se como pode dos desníveis da calçada. Rio de Janeiro, as piores calçadas do mundo !! , vocifera em voz baixa. Passa pela porta do restaurante Lamas, que freqüentou muito nos bons tempinhos, atravessa a rua Tucumã, sua direção é o início da Senador Vergueiro. No trajeto imagina a mudança: será que ainda são os mesmos donos ? Domina-lhe o sentimento da nostalgia. Sim, as mesmas mesas na calçada, surpreendentemente o boteco tinha a mesma aparência, o mesmo layout, as pessoas, sim, eram outras; o garçom Mathias provavelmente estaria aposentado, ou morto, quem sabe ? Um grupo de rapazes barulhentos encaravam garrafas de cerveja, muitas, voltavam da praia, estavam todos de short ou sunga, os pés calçados em sandálias de dedo pareciam à milaneza. Eram já
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cinco da tarde e nada dos amigos de antigamente. Andrade sentou-se numa mesa próxima à entrada do boteco, de onde estava podia ver-se refletido no vidro do balcão frigorifico. Um caco ! Como estariam os outros ? Será que vamos nos reconhecer ? Pede água mineral. Perde-se em pensamentos. Está confuso. As pessoas passam apressadas, os ônibus lançam fumaça preta no ar, os carros buzinam, motoristas ouriçados com o trânsito pesado, lento. O tempo parece correr. O Palheta não faltava, era certamente o mais assíduo do grupo. Não chegaria naquele dia. Nunca mais, morreu há de dez anos. Saiu uma tarde da repartição para a eternidade. Infarto fulminante. Percebe que entre as mesas passa uma senhora bem idosa. Modestamente vestida, os cabelos brancos em desalinho, sem capricho. Olham-se num lance. Andrade a reconhece, incrível ! Com um sorriso no canto da boca ela se afasta, segura numa das mãos um saco com pães, anda com dificuldade, sem firmeza, os sapatos tortos e trôpega desaparece no meio das pessoas.
THE END
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O Arremate
Leandro, estudante do último período no curso de jornalismo, estava preocupado. Para formar-se, receber o canudo, precisava apresentar trabalho original e de sua exclusiva autoria. Tinha decidido o tema, os entrevistados já identificados, restava desenhar o roteiro, conceber a estratégia e encarar a mais difícil etapa, complicada, cheia de surpresas e tropeços: a execução da reportagem. Entendia também que além dessa exigência acadêmica o trabalho poderia representar o seu potencial como repórter; claro, também a possibilidade de não agradar os professores da comissão julgadora estava prevista, os julgamentos e avaliações nesse caso são sempre uma caixinha de surpresas. Portanto, teria de caprichar, apresentar-se como profissional . Seus colegas, individualmente ou em grupo, estavam mais avançados, sabia das coisas pelos comentários nos corredores da faculdade já que a maioria se fechava em copas, era o natural receio criado por uma competição imaginária, afinal, não se tratava de concurso. Sim, tema fascinante. Desafio. Basicamente a realidade do submundo de duas prostitutas que faziam ponto próximas a um hotel do ramo, numa rua transversal à Praça Tiradentes. Sempre juntas, conversavam sem parar e o que
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realmente chamou a atenção de Leandro e determinou a sua escolha é que uma delas apoiava-se numa muleta – faltava-lhe a perna esquerda – e sua companheira de destino era simplesmente uma anã, dessas de membros curtos, curvos e uma cabeça.enorme, desproporcional. O registro fotográfico das duas já seria bizarro, dava para imaginar os efeitos dos depoimentos, com um mínimo de edição. Impacto, certamente.. As origens, desgraças familiares, abandono, a opção para o aluguel de seus corpos, o habitual. Particularmente o que mais intrigava Leandro: a clientela. Comportamento na intimidade, desejos, compulsões e taras, como escolhiam, uma ou outra e em muitos casos, talvez a maioria, a dupla. Afinal, o que seduz um homem? Pode ser um par de pernas, um traseiro e suas dimensões, o sapato de salto alto, os pés, um certo olhar, odores, fantasias, oferta de variedades, seios à mostra e por aí vai, fora o fato de que frequentadores de prostitutas invariavelmente são homens problemáticos, cada um com o seu perfil, mas sem dúvida casos óbvios de desajuste. Forte presença também de portadores de psicopatias, está claro. E essas duas escapavam ao habitual, aí estava o fascínio do seu trabalho, desvendar os porquês. Como abordá-las? Provavelmente com dinheiro em espécie, as prostitutas trabalham muito mais pelo tempo que ficam à disposição do que pela sacanagem, os serviços prestados; para elas o tempo é que vale. A primeira vez que as viu foi por indicação do porteiro do edifício comercial onde seu pai tinha escritório, defronte onde elas faziam ponto; uma delas sempre encostada à parede, por motivos óbvios, e a baixinha, sempre agitada, inquieta.. Seu Romero é atento, conectado, esperto, sabia que naquela região do centro do Rio a barra é pesada, dia e
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noite. Observava as pessoas que entravam e saíam do prédio, também as que passavam pelas calçadas, conhecia entre elas clientes das duas mulheres e de outras também, seus horários, nem precisava de memória e atenção privilegiadas, no curso do tempo esse conhecimento surge naturalmente, é parte do ofício. Daí reunir informações bastante curiosas a respeito de muita gente e particularmente dessas duas moças de programa, com quem de vez em quando conversava. Leandro, para não confiar na memória, anotou informações preciosas, a partir delas é que se decidiu pelo tema. Seria matéria breve, concisa, de frases curtas, privilegiando o possível diálogo entre ele e as duas. Brutal desafio, sim senhor. Sem fotos, para descomplicar. Passou a fazer companhia para o seu Romero na portaria, procurava não aborrecê-lo com perguntas em excesso, pouco a pouco a idéia tomou corpo; depois de aproximadamente duas semanas criou coragem e abordou a dupla. Quando elas perceberam que não era michê imediatamente o rejeitaram, saíram de lado. Leandro, decidido, em poucas palavras esclareceu sobre o que queria , as conversas poderiam acontecer num dos quartos do hotel, elas receberiam a grana, tudo direitinho, a pedido dele seu Romero acenou da portaria para elas positivamente, era o aval necessário. Subiram, Leandro imediatamente abriu a janela para arejar. Cheiro desagradável, um misto de mofo com guimba de cigarro. A abertura da janela foi fundamental para definir que o contato com as duas tinha objetivo diferente. Com certa habilidade e utilizando o seu aprendizado nas técnicas de entrevistas, abriu a “conversa” com tema geral: perguntou onde moravam, que condução as trazia à Pça. Tiradentes. Elas responderam de imediato, moravam juntas e no centro
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do Rio, numa pensão só de “meninas” na Rua do Lavradio, ali pertinho. E Leandro percebeu, em pouco tempo, que estava senhor da situação. Não queria de forma alguma que elas se sentissem invadidas, apesar da urgência para terminar a matéria preferia ter vários encontros , sem apuros ou qualquer forma de pressão, era importante que falassem espontaneamente, as perguntas seriam não diretivas, nesse caso fator de êxito. Três semanas após e com seis encontros com Magdá e Leninha, tinha bom material para a abertura da reportagem. Descobriu de cara que ambas eram semianalfabetas, tinham os dentes mal tratados, no caso de Leninha, a anã, faltava-lhe um frontal. Sempre se apresentaram com vestidos folgados, de tecido ordinário, não usavam qualquer maquiagem e trabalhavam somente durante o dia. Quando se conheceram, há um par de anos, ambas pertenciam à noite, faziam ponto muito próximas; numa dessas as duas foram espancadas por rapazes que, sem nenhum motivo aparente, desceram de um carro, as agrediram e seguiram adiante em algazarra etílica. Vítimas, esse detalhe as aproximou, tornaram-se amigas, juraram jamais trabalhar depois das seis da tarde, resolveram formar a dupla, alugaram um só quarto na pensão. Ajudavam-se, quer na limpeza do quarto, quer na lavagem das roupas, enfim, nas demais atividades domésticas. Com permissão do português, dono do cortiço, elas mesmas preparavam suas refeições, o que sobrava do dinheiro de cada uma ia para contas diferentes mas na mesma agência da Caixa Econômica, onde um certo funcionário solícito as ajudava a movimentar os depósitos e saques. Enfim, gozavam de amizade , relacionamento afetivo e companheirismo que não
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se limitava ao trabalho diário, fazia parte da vida das duas em muitos sentidos. Apesar da rusticidade, da absoluta falta de valores cívicos, até mesmo como consequência da formação capenga de ambas, observavam limites quando discordavam, se entendiam civilizadamente, assim foi o depoimento delas sobre o relacionamento Num dado momento Leandro percebeu que estava na hora de falar da clientela, esclareceu que queria informações mais sobre os milagres que dos santos, nenhum cliente seria identificado no seu trabalho. A esta altura dominava mesmo a situação, criou espertamente um clima de confiança, tinha dificuldades para memorizar os depoimentos integralmente, pensou até que poderia anotar alguma coisa, gravar, mas preferiu prosseguir, confiante, sabia que quanto mais concentrado e atento mais fiéis seriam os registros. Imediatamente após se despedir das “meninas”, aí sim, fazia as anotações, quase sempre no balcão da portaria do prédio , onde contava com a cumplicidade de seu Romero. Clientes habituais. Sim, a maioria preferia ir para o quarto com as duas. Surpresa para Leandro: muitos sequer as tocavam, apenas observavam as duas em exibições pornográficas, como amantes em privacidade. Dependendo da “performance” e do próprio cliente – alguns se masturbavam –, a grana pintava melhor, sabiam as duas o que cada cliente, dos habituais, mais gostava, o que mais os excitava. Mas, tinha sim os que iam para a cama com uma ou com a outra, a relação era geralmente o trivial papai-e-mamãe, enfim, para descrever o que cada um gostava e fazia elas tinham dificuldades, pela limitação da linguagem, do raciocínio linear , confuso, misturavam palavras, usavam excessivamente as mãos e braços, falavam com alguns códigos e não raro se
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perdiam com o que estavam dizendo. Uma barra! Mas, no tempo previsto, os contatos com as duas mais as observações valiosíssimas do seu Romero satisfizeram Leandro. Grana cada vez mais curta, tempo para a apresentação da matéria quase esgotado, reunia já material suficiente para a reportagem. Tinha consciência de que tratava de tema apimentado, poderia ser pichado por alguns professores-avaliadores, mas sentia que estava dentro dos parâmetros do moderno jornalismo. Começou a redação. Suas motivações e até mesmo entusiasmo cresciam a cada palavra, a cada linha, a cada parágrafo, percebia que seria destaque em comparação com os habituais trabalhos acadêmicos, muitos de boa qualidade mas divorciados da realidade, particularmente desse “mondo cane”. Essa diferença para ele era fundamental. Teve avaliação boa, crédito acima da média dos colegas. Nenhuma surpresa para Leandro, tal a sua segurança. O tema poderia até receber críticas, mas o trabalho foi apresentado na medida certa. Teve momento de extrema vaidade, foi quando um dos convidados da Faculdade para a avaliação dos trabalhos, o jornalista emérito Murilo Mendes Caldeira, do Correio da Manhã, , publicamente elogiou seu trabalho, qualificando a sua matéria como a mais audaciosa de todas as apresentadas. Lembrou-se de seu Romero, assim que recebeu os resultados da avaliação. Com alegria infantil foi agradecer e destacar a importância dele em seu trabalho. Surpresa para o porteiro-colaborador. Ficaram batendo papo durante algum tempo, sempre interrompido por terceiros, prédio comercial com muito movimento, gente entrando e saindo, gente pedindo informações, por aí vai. Mas nada sombreou a satisfação de ambos com a boa notícia.
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Depois de algum tempo e nessa mesma tarde Leandro deu uma olhada para a porta do hotel: lá estavam as duas entrevistadas. Despediu-se de seu Romero, foi em direção a elas. Parou sem dizer nada, as duas sorriram – talvez mais uma sessãozinha, mais uma graninha. O silêncio foi quebrado, Leandro dirige-se decidido para Magdá, a perneta, quer ir para o quarto com ela. Sinal de positivo, dirigem-se para a recepção do hotel, ela diz alguma coisa inaudível para o português da recepção, Leandro abre a carteira, paga, sobem devagar o lance da escada, são interrompidos pela anãzinha que apressadamente pergunta: “Eu vou também?”. Leandro, volta-se para ela, faz sinal de negativo, diz-lhe quase num sussurro: “Amanhã, Leninha, amanhã é com você, tá bom assim?
The End Fazenda Itaúna, Itu – SP, 2011 cf-requiao@bol.com.br
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Aconteceu no Leblon “Se tem bartolomeu tem de ter bartoloteu” Do saudoso amigo do Leme, frasista e filósofo urbano, Guilherme de Páschoa
Corre a segunda metade da década de 80. Arnaldo despede-se do motorista. Olha-se no espelho do elevador, está pálido, sombras no rosto denunciam velhice precoce. Afinal, tem apenas 55 anos de idade. Fiel aos seus hábitos toma uma ducha, veste roupa leve, liga o toca-discos, música de boa qualidade, um ou dois whiskies antes do jantar, enfim, seus pequenos prazeres. Sozinho e na penumbra se entrega totalmente ao relax. No entanto, naquele dia um fato novo alteraria esses bons momentos: Telma tinha ligado, deixou recado com a empregada, iria visitá-lo pelas dez da noite. Desde a separação, há cinco anos, não mais trocaram palavras, sequer souberam um do outro. Assim que o juiz sacramentou o divórcio cada um foi para o seu canto. Pouca alteração na vida de Arnaldo. Telma embarcou dias depois com seu novo companheiro para a Europa, onde ele vivia; não exigiu nada, mesmo porque o casal não adquiriu nenhum bem, nem filhos tiveram. Página virada em grande estilo e civilidade na vida de ambos, portanto, até a notícia por um amigo comum de que ela estava de volta ao Rio, solteiríssima. A informação pouco mexeu com Arnaldo. Telma no Rio ou na Capadócia, a mes-
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ma coisa. Mas, claro, a dúvida quanto aos motivos dessa visita o incomodavam. Entendia até como uma impertinência : permaneciam vivos, sim, os acontecimentos que precederam a separação, ela tinha sido leviana, irresponsável, tinha-lhe posto um belo par de chifres. Desde sempre o último a saber. Conheceram-se na casa de amigos, reunião informal, na realidade um dos casais tinha urdido o plano: apresentar Telma a Arnaldo. Ele já quarentão, com várias experiências amorosas e nenhum compromisso. Em algumas chegou a juntar as roupas íntimas, mas sempre pintava um bode qualquer, as coisas não davam certo. A condição de solteirão não batia bem com os amigos, quase todos do tempo da faculdade, era o único que comparecia às reuniões sem companhia. Telma tinha vinte e poucos anos, mas, de cabeça curada, o que diminuía, supunham, a diferença de idade entre eles; bacharel em história, trabalhava no Museu do Índio desde sua formatura, gostava da boa música, com freqüência assistia os espetáculos do Teatro Municipal, sinalizava gostos e interesses bastante próximos aos de Arnaldo. Sinais importantes, sabemos. Sim, começaram o namoro como pessoas independentes e desimpedidas, rapidamente chegaram aos entreveros da sexualidade. Casamento à vista ? Por que não? E aconteceu. E agora, caramba, o que ela quer ? A pergunta fica no ar e pontualmente às dez Telma é anunciada pelo porteiro. Arnaldo vai recebê-la no hall, o incômodo não afetou a sua elegância no trato com as pessoas, mesmo em situações desagradáveis como essa não poderia ser diferente. Cumprimentam-se secamente, se examinam, cinco anos são mais que semanas ou meses, encaminham-se para a sala de estar. Arnaldo diminui o som do toca-discos, ofere-
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ce uma bebida, sentam-se vis-à-vis. Aparentemente ela está mais tensa, esfrega as mãos, em pouco tempo toma a iniciativa da conversa. Fala de amenidades, das mudanças no Rio nesse período em que esteve fora e até mesmo da passagem do poder federal para mãos civis. Quebra-gelo. Em seguida pergunta por ele, como iam as coisas, pelos amigos também. Depois do primeiro whisky, magicamente, ambos mais soltos, o sentimento de que apenas velhos conhecidos estavam se encontrando.. Será ? Mas, os motivos de Telma são repentinamente solicitados: “Ok, Telma, você não veio me ver somente para um whisquinho, certo? Quem sabe vamos ao principal. Estou curioso”. O tom foi amistoso, não agressivo, mas desconcertante para Telma. “Bem”, anunciou, “há muito tempo venho imaginando esta possibilidade, falar com você, de levantar algumas coisas que me incomodam, já me incomodavam quando vivíamos juntos, estou com dificuldades de começar, só isso”, lamentou. Arnaldo estava mudo e assim permaneceu, afinal ela marcou o encontro, ela está inquieta com coisas do passado de ambos, ela que adiante a conversa. Gostaria que o encontro não se estendesse por horas. “O que quero dizer começou mesmo antes de nos conhecermos”, lançou, “com 19 anos de idade, uma menina ainda, engravidei de um namorado, fiz aborto, essas coisas, enfim, não foi fácil e me marcou muito. Esse namorado sequer reconheceu ser o pai, simplesmente sumiu, desapareceu. Hoje em dia reconheço que foi melhor assim, uma amiga me ajudou, arranjou um médico, essas coisas”, arrematou. “Portanto, Arnaldo, quando nos conhecemos não era virgem, o mesmo médico deu um jeito, digo isso porque essa omissão pode ter pesado e muito em nossa convivência, pelo menos na minha : não é agradável suportar uma mentira quando
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se deseja ter um relacionamento aberto, transparente, adulto, enfim, ‘legal’sob todos os pontos de vista. Tinha, sim, muito medo de perdê-lo”.Surpresa? Sim, mas Arnaldo não solicitou sequer um dos seus neurôneos .Para ele estavam os dois perdendo tempo em confidências absolutamente dispensáveis. Se ela pretendia que ele também entrasse nessa de confissões, que tirasse o cavalinho da chuva. E prosseguiu Telma: “Pode parecer da menor importância e de fato é a esta altura , mas ter sido omissa , isto sim, teve conseqüências danosas, já que rompeu o mais importante dos vínculos de um casal que é a confiança”. Arnaldo fez um assentimento com a cabeça, deixou que ela prosseguisse; a partir dessa sentença o assunto parecia assumir novo colorido, ter desdobramentos. “Onde ela quer chegar ?”, pergunta-se. “.........O Zé Roberto, quando nos conhecemos, desde a primeira conversa jurei a mim mesma que não esconderia absolutamente nada. Falei desse meu aborto, falei da cirurgia dos ovários, dos meus encontros clandestinos, claro, durante o casamento com você, falei de tudo, tudo, e tive uma sensação de alívio, de leveza, com toda a certeza essa minha abertura foi o motivo maior, pelo menos da minha parte, para que resolvêssemos viver juntos. Com você estava insuportável, me sentia mal na sua presença, cada vez que você me dirigia a palavra, em qualquer situação, parecia ter uma ponta de recriminação e apontava uma culpa, como se você soubesse de tudo. Muitas vezes odiei estar casada com você. Odiava a sua indiferença. Uma perseguição. E você se lembra, resolvi ir a um analista, com ele me abri totalmente, a situação, o relacionamento analista-cliente, enfim, poderia encontrar uma saída, quem sabe, se você e eu tivéssemos esta conversa de hoje há seis, sete anos, talvez a nossa situação pudesse ser outra, dife-
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rente. Mas tinha medo, muito medo, Arnaldo. De fato todo o tratamento com o psicanalista apontava para a separação”. Aliás, desconhece-se reconciliações quando um dos cônjuges recorre a psicanalistas. Dizem até que a busca desse profissional é apenas um recurso da racionalização. Pode ser. Arnaldo serenamente ouviu o vomitório, tinha sido contrariado quando ela resolveu recorrer ao Dr. Madruga; tanto psicanalista e logo esse, figura contraditória, um vaselina, usava a sua condição de psicoterapeuta para a sedução das clientes, isso corria solto pela boca dos seus detratores. Além de tudo caríssimo, cada sessão era uma fortuna. Tinham conversado, sim, ainda que superficialmente, ele recomendou que ela primeiramente consultasse um clínico geral ou um ginecologista, o fato de ter sido ovariotomizada poderia causar transtornos de conduta, exaltações da libido, naquela época pouco se falava em reposição hormonal, talvez um absurdo numa mulher com menos de trinta anos. Foi voto vencido. E Telma, prosseguindo, imaginou que Arnaldo se morderia de indignação, poderia até reagir de forma brusca. Sim, poderia, mas o clima da conversa, a atenção dele a estimulava. “Não quero me estender, você está sendo atencioso, acho que está entendendo. Com esta recente separação do Zé Roberto, a volta para o Brasil, enfim, queria colocar as coisas em pratos limpos, uma dívida comigo mesma”. Arnaldo ofereceu mais um whisky. Enquanto preparava as bebidas virou-se para ela: “Pode ser a saideira, ou você tem mais alguma coisa para dizer ?”. Emendando, “veja bem, não estou mandando você embora mas imagino que o principal esteja esclarecido, e agradeço pela preocupação em vir falar comigo, embora a gente saiba que as coisas do passado pouca importância têm, ou será que estou equivocado? Saber dos seus sentimentos, das suas angústias, isso tudo não altera o
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que aconteceu, os motivos foram e são óbvios; poderia clarificar dúvidas, se as tivesse. Quando você me disse que queria acabar com o nosso casamento, que tinha outros interesses etc e tal, decisão tomada, só me restou procurar absorver a pancada, enfim, tratar da minha vida. Foi isso que fiz. Da sua parte, desculpe a franqueza, pouco me importei. Você foi, sim, desde o início do namoro e até o último dia do nosso casamento motivo de toda a minha atenção. Acho que em certas circunstâncias exagerei, provavelmente a diferença de idade fez com que eu a tratasse mais como filha adotiva. É possível. Acho que já falamos o suficiente”. Definitivo, Arnaldo estava convencido que a conversa já tinha resolvido as inquietações de Telma. Ele, sim estava se inquietando. Totalmente dispensável entrar nos casos extraconjugais dela, isso sim poderia criar de repente mal estar entre ambos. As puladas de cerca da ex-mulher poderiam ser compreendidas como compensações de suas deficiências orgânicas, sim, mas entrar nesse detalhe estava decididamente fora de cogitação. Arnaldo era e é pessoa reservada mas jamais fechou os canais de comunicação com a mulher. “Tarde demais”, resmunga para si mesmo. Telma acomoda-se melhor na poltrona, indica claramente que gostaria de esticar o contato.. Sim, esta abertura parecia ter tirado um peso em sua alma. Para ela faltava o depoimento dele, afinal raramente um casal se desfaz por motivos, sejam eles quais forem, de uma só das partes.. Quem sabe, uma outra ocasião. Telma despede-se, Arnaldo a acompanha até o hall do elevador. Sozinho, repentinamente tem um surto nostálgico, um sentimento apertando o coração. Troca de roupa, desce
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para a garagem, de carro rompe na contramão todo o trecho da Rita Ludolf que vai da praia até a San Martin, dobra a esquerda. Na Visc. de Albuquerque faz o contorno e entra na .Ataulfo de Paiva. Reduz a marcha quando passa defronte do restaurante Real Astória, quase sempre o destino deles, quando casados, e dos casais amigos, aos sábados esticavam o programa depois do cinema ou teatro. Sempre conversa solta, gozações, uma terapia limpa e bem sucedida para os fins-de-semana. Mais adiante o Álvaro’s, outro ambiente, geralmente o freqüentava quando Telma estava viajando ou não podia sair de casa, por um ou outro motivo. O clima nesse restaurante era da liberalidade, as mulheres na década de setenta, início da oitenta, mais soltas, comunicativas, menos defensivas, muitas vezes afrontando os machos com iniciativas que terminavam num quarto de motel. Defronte o Degrau, com sua cozinha boa e preços módicos, garçons rápidos e mal educados, mas era realmente um lugar único, abrigava gente do teatro, das letras e da TV, era fácil esbarrar num artista, num compositor, enfim, muito barulhento, era mais um espaço para o encontro, saciar a gula, menos para conversar, a não ser que os distintos clientes subissem para o mezanino. Beirando o Jardim de Alá, lá estava o Alpino, o que sobrou do original que durante décadas enfeitou a praia do Leme, com seu “teleférico” que levava o chope da copa para os músicos. Enfim, por aí é que Arnaldo passou os bons momentos do seu casamento. Fins de semana em Angra, Cabo Frio ou na região serrana, estes eram os programas preferidos do casal, deles e também dos amigos próximos. Este passeio da saudade, de certa forma, atenua os sentimentos negativos que ainda nutre por Telma, uma forma de compensar os desvios da vida com os caminhos de anos atrás.
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Arnaldo sentia-se bem nesse “tour”, deu uma esticada até o Leme na expectativa de encontrar algum amigo ou conhecido ainda bebericando àquela hora. Sentia-se bem sozinho mas não queria voltar para casa , quem sabe um bate-papo sobre qualquer assunto resolveria a situação. No Bar Escadinha, um boteco mal cheiroso mas bem frequentado, encontrou não só uma pá de amigos e conhecidos como também amigas, uma delas, Irene, ex-namorada, tinha sumido da sua agenda há décadas; com Eva sempre conversavam pelo telefone, mas pessoalmente há muito não tinham contato. Muito papo atrasado, claro, os três se afastaram dos demais, num momento surgiu o convite de Arnaldo: “Que tal comer alguma coisa no Shirley ?” Um ok geral e foram a pé até ao restaurante, que costumava fechar mais tarde que os concorrentes. Inevitável, o assunto ainda quente na cabeça de Arnaldo, Eva, de quem era amigo íntimo, sempre trocavam impressões quando Arnaldo se envolvia num caso amoroso. Tinha sido na época de sua separação com Telma o apoio de que precisava;. Irene, mais contida,, limitou-se a ouvir os dois papearem enquanto bebericava um vinho espanhol. Pediram mariscos e arroz à moda, duas porções para os três, Irene estava em pleno regime, comer àquela hora e longe da dieta, só mesmo uns beliscos. Arnaldo procurou passar por alto a visita de Telma, ainda não digerida, e a conversa seguiu, fluindo sobre as pessoas que faziam parte da memória afetiva dos três e que sumiram do mapa. Fulanos e sicranos, muitos, a cada nome parecia que a memória dos três se apurava e surgiam mais nomes, em cascata, quase sempre com breve história de cada um, algumas picantes, outras pueris, como sempre acontece nesses momentos. Mas, enfim, divertiam-se, prometeram um outro encontro breve, dar uma
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esticada nesse papo, era sempre muito bom relembrar uma época não melhor mas diferente dos tempos atuais, em que os três tinham menos de trinta anos, para início de conversa. No entanto, só com a Eva ele se abria de fato, conversa de irmãos, sempre via telefone, conversas freqüentes. A partir dessa noite houve alteração nos hábitos de Arnaldo ; a visita de Telma, o encontro com os velhos amigos do Leme, particularmente Eva e Irene. Passou a sair mais à noite, frequentar alguns points, já conhecidos e novidades, um agito que faz bem a saúde Estava virando ostra, uma vida de casa para o trabalho, vice-versa, nada bom para o espírito. Madurão e curtido pela vida sabia triar as pessoas que começavam a plasmar o novo círculo de amizades. Como resultado o efeito do halo, já que essa abertura não se limitava às saídas noturnas mas também quanto às relações com pessoas do seu trabalho. Um outro Arnaldo nasceu depois do encontro com Telma e a esticada no Shirley com suas amigas., sim. Fênix. Abriu seu apartamento, quase todos os sábados, antes dos programas que pintavam a rodo, seus amigos apareciam para uma prévia alcoólica. Não raro traziam bebidas de presente, livros também, formavam com Arnaldo um grupo bastante homogêneo, não eram pessoas sofisticadas, mas com certo refinamento intelectual, também nos hábitos e costumes, como o anfitrião sabatino. E, como acontece com as pessoas sadias, adultas e desimpedidas, os casos de curta duração, nem sempre satisfatórios. Pairava na atmosfera desses relacionamentos a recíproca vontade de que tudo terminasse antes de pintar qualquer sinal de ameaça à liberdade. Bastava o namoro, um momento. Casamento? Nem pensar, No entanto, os exageros foram sendo afastados, Arnaldo atingiu um ponto ótimo, combinando e bem a vida social
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puramente hedonista com a necessidade de isolamento, de enriquecer sua vida interior, um retorno à boa literatura, à música e o conforto de sua sala de estar, os whisquinhos tranquilizantes. Estava no escritório atendendo o diretor de marketing, a secretária interrompe, um telefonema da Sra. Telma. Arnaldo pede que ela anote o número do telefone , ligaria assim que pudesse. Meia hora depois Telma atendeu, queria encontrar-se mais uma vez com ele, seria apenas para um bate-papo. Arnaldo, francamente desinteressado apenas compromete-se a marcar um dia qualquer e assim terminou a conversa. À noite telefona para Eva, fala da novidade e pediu que ela, como mulher, levantasse suspeita desse súbito interesse de Telma. Eva , macaca velha, atendeu prontamente: “Está a fim de você, meu querido”, soltou uma risadinha entre gozadora e irônica. Em seguida emendou: “E você, seu pateta, vai entrar nessa? Telma quebrou a cara, assumiu o risco de ir viver com um sujeito que mal conhecia, e longe para caramba, nada diferente de uma Emma Bovary suburbana, só isso. Caiu na real, só isso, sinal de que você deve ter sido um bom companheiro ou um bom amante e está fazendo falta. Ou está na pior, lançando mão talvez da única pessoa que a atendeu como um gentleman neste nosso mundo cafajeste, entende? E não me pergunte o que fazer, daqui para diante é só o que posso dizer, por pura intuição, já que fui consultada, pateta! Agora, bater um papo não ofende, não compromete ninguém, quem sabe até termina num amorzinho tipo hoje só". Mais uma risadinha entre irônica e gozadora. “OK, OK, sua bruxa, já entendi,”, anunciou Arnaldo. O telefonema poderia durar uma eternidade mas o que queria saber já
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estava mais que suficiente. E, com ironia, suturou Eva: “o problema, meu amigo, é que as mulheres são geralmente conduzidas pela dopamina e pela serotonina e vocês homens pela testosterona. Quando uma mulher entra no jogo de vocês as coisas complicam”. De certa forma ficou combinado, teria mais contatos com Eva, sempre crua e sincera, uma amigona mesmo; e clarificou muita coisa com meia dúzia de palavras. A bola estava com ele — o que fazer? — a esta altura percebia que um motivo qualquer indicava que o tal encontro estava cada vez mais possível, mais uma vez sentia-se pressionado pela curiosidade. O que seria agora ? Eva terá acertado? Nada melhor que uma escapadela vez por outra, tanto para homens como para as mulheres, todos liberados, independentes, mas ainda funciona a vida em comum, a vida do casal, mesmo que isso represente muitas vezes um certo freio para os impulsos, afinal a vida a dois exige o cumprimento de certos códigos. Pesos e medidas, prós e contras para ambos os casos, é uma questão de valores e maturidade. Portanto, Arnaldo também entendia que esse interesse de Telma poderia ter como motivo último a verificação da possibilidade de um novo acerto entre ambos. Sentenciou, para si mesmo: “ Comigo não ! Estou blindado !!!” Quer dizer, mais uma vez viverem juntos? Negativo! Mas, quem sabe, matar as saudades num motel............. até pode ser. Muitas vezes e até acompanhado sentia falta do cheiro de Telma, inconfundível, comparava com outras e a ex sempre levava a melhor. Mas, claro, não é motivo suficiente para apagar tudo que tinha acontecido. Apenas um detalhe. Na verdade, à medida que se aproximava o dia do encontro, Arnaldo entra em ansiedade, nada patológico mas desconfortável. Teve ímpetos de desmarcar e quando essa idéia lhe
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passava pela cabeça a ansiedade simplesmente desaparecia. No entanto, percebia igualmente que desmarcar o encontro significava supervalorizar Telma, ou seja, pintava a impressão de que ela o estava ameaçando, coisa do gênero. Finalmente decidiu: ligou para Telma, tinha imaginado certo dia da semana, um dia neutro, a varanda do Iate Clube estaria vazia, pouco movimento, poderiam conversar à vontade e sem vizinhos de mesa, menos testemunhas também. Nos tempos de casados frequentavam o clube, sempre tinha um programa, um passeio de barco , o bom restaurante e todo o clima era extremamente agradável Foi uma ligação rápida, combinaram encontrar-se dentro do clube, ele deixaria o nome dela na portaria, isso lá pelas nove da noite. E assim aconteceu. Arnaldo chegou uma hora antes, escolheu uma mesa no final da varanda, próxima do Bar Inglês; àquela hora e naquele dia só passariam os habituais frequentadores etílicos, quase todos seus amigos e gente de poucas falas. Alcovitagem? Nem pensar, havia uma espécie de código entre os frequentadores do bar. Ninguém vê ninguém. Chamou o garçom, queria puro malte, “cow-boy”, água mineral com gás à parte. Teria tempo de refletir um pouco sobre sua vida com Telma. Tinha consciência de que não existe separação, seja de que tipo for, na qual ambos não estejam envolvidos, sejam atores do mesmo roteiro. Méritos para um e para o outro, culpas também de parte a parte, fora as variáveis intervenientes que sempre surpreendem, principalmente numa cidade como o Rio, onde a atmosfera recomenda a luxúria, as pessoas são e estão expostas mais que em outras megacidades. Claro, não foi somente Telma quem pulou a cerca. Arnaldo não era santo, pelo contrário, mas em suas escapa-
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das com mulheres, particularmente as oferecidas e que não exigem cantada; jamais ultrapassou os limites de uma simples e oportuna “rapidinha”. Do lugar onde estava Arnaldo tinha perfeita visão das pessoas que chegavam ao clube, entravam na varanda. Num dado momento surge Telma. Da distância em que estava , mais ou menos 30 metros, a ex-mulher podia ser confundida com uma aparição: vestido branco, esvoaçante e que a cada passo levantava uma parte do tecido, fino e leve, um tipo de figurino comum às apresentadoras do prêmio Oscar. Telma dirigiu-se para onde estava o ex-marido sem pressa, passos obviamente estudados, faziam parte do ritual de sedução. Certamente. Arnaldo, levanta-se à medida que ela se aproxima, aponta a cadeira do outro lado da mesa, assim a conversa seria olho no olho, como lhe convinha. Cumprimentam-se com um “oi”, ele já no segundo drinque oferece uma bebida e pede ao garçom um terceiro para ele. Telma prefere o gim- tônica. “Interessante”, diz Telma iniciando o bate-papo, “poucas vezes em todo o nosso casamento tivemos uma conversa tratando de assuntos que só interessavam a nós dois. Como a de outro dia em sua casa e esta de hoje”, emendou. Arnaldo apenas demonstra estar atento, prefere que ela indique o rumo da conversa, estava disposto, sim, a tocar em qualquer assunto mas de forma defensiva, como era do seu hábito. Continuou Telma, “Acho que faltou e muito certa abertura entre nós dois, estávamos casados mas não nos comportávamos como um casal, apenas como duas pessoas vivendo juntas. Você concorda com isso ?”. Óbvio que Telma havia ensaiado o que dizer, como dizer, ela que falasse, no curso do que diria Arnaldo ficaria sabendo, supunha, até onde ela
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desejava chegar. “No início”, prosseguiu Telma, “foi tudo ótimo, não tive dificuldades em me ajustar ao papel de mulher casada. No entanto, com o tempo percebi que você me colocava quase sempre numa posição de segunda importância: primeiro o trabalho, segundo o seu barco, os compromissos sociais com os amigos ou com pessoas da área do seu trabalho, tudo bem, mas eu a reboque, insignificante, ou não foi assim? Foi sim, foi assim mesmo”, categórica, olhando fixamente para Arnaldo, “não é uma acusação é uma constatação. Poderia, como disse, falar de todas as minhas dúvidas, ansiedades, no momento próprio mas você não me dava abertura, simplesmente contornava, desviava e desqualificava o que eu estava sentindo, se é que percebia alguma coisa”. Arnaldo ajeita-se melhor na cadeira e reflete: “se não tocamos nos assuntos que lhe incomodavam naquela época, por que esse discurso ?” Dá uma bicadinha no whisky e “quem sabe falamos de outras coisas, se você não se importa, fale um pouco de sua estada em Paris, se viajou pela Europa, frugalidades, uma conversa que deveria ter com seu psicanalista não combina com este momento, só isso !!”. Telma, quase agressiva, “Bem, está na cara que não tenho mesmo nenhuma chance, essa nossa conversa, quem sabe , até ajuda você com suas namoradinhas, todas as mulheres esperam um diálogo sobre os sentimentos de ambos, certo?”. Arnaldo faz cara de que não está gostando e interrompe: “Olha, vamos fazer o seguinte, se você não se importa! Encerramos esse papo que não vai dar em nada e confraternizamos. Nada como um bom jantar para colocarmos uma pedra em cima disso tudo”. Ou seja, tira o dele da reta. Telma aceita, constrangida, dirigem-se para o restaurante com poucas mesas ocupadas. O maître anota os pedidos prontamente. Arnaldo
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era figura presente e simpática, generoso nas gorgetas. Durante o jantar trocam figurinhas sobre conhecidos comuns, os casais que costumavam acompanhá-los quando casados, os programas juntos. Para Telma muita novidade. Ficou só nisso. Saem do restaurante, Arnaldo oferece carona que é aceita no ato. Entram no carro, ele imediatamente sente, pela proximidade dos dois, o fino perfume de Telma, na realidade uma mistura com o cheiro natural dela que tanto o encantou no período de namoro e no rápido noivado. Sim, pintou imediatamente, nos dois, um clima de sensualidade, beijam-se sem pressa, Arnaldo desabotoa a braguilha, faz leve pressão na nuca de Telma. Nenhuma supresa para ela e enorme prazer para ele. Simbolicamente e na prática essa bocada de Telma , pelo menos para ela, significava melhor entendimento com Arnaldo: quem sabe, o reinício de uma relação amorosa? Depois de algum tempo Arnaldo se refaz, beija carinhosamente os cabelos da ex-mulher e vai levá-la em casa. No caminho, depois de longo silêncio, Telma interrompe: “ Você está tendo algum caso, tem alguém na sua vida?” Arnaldo sabia que essa pergunta seria inevitável, ou teria de refazer todos os seus conceitos sobre as mulheres. “Não”, disse secamente, “não tenho nada com ninguém e acho que preciso primeiro organizar a minha cabeça, não estou em condições de namorar firme ninguém”. “Ninguém?”, rebateu Telma em cima do lance. Nem a Irene? Arnaldo dá uma olhada para ela e confirma: “ninguém, até segunda ordem, também sou filho de Deus e não sei como fazer essa previsão, entende? O dia de amanhã, Telma, só amanhã”. Ela entende, na sua intuição, que ali estava a abertura que precisa, a chave para uma próxima etapa”. Cá entre nós, Eva acertou na mosca!
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Arnaldo para na porta do edifício, Telma mora num prédio baixo e antigo na Ataulfo de Paiva, inicia a despedida. Sabia que Telma tentaria esticar, ganhar mais tempo.. “Bem,” — disse ele — “parece que superamos a fase inicial para um bom entendimento, certo?”. Telma crispa o rosto, procura olhar fundo nos olhos dele, encaram-se.” Que negócio é esse de entendimento? A coisa vai ficar assim, vou para casa, daqui a dois meses ligo para você, vamos conversar, tomar alguma coisa, quem sabe jantar, depois um motel e fica tudo por isso mesmo? É isso mesmo? Entendimento!!!!! “.Arnaldo não esperava por essa reação, não estava no script, precisou de alguns segundos para colocar a cabeça em ordem, estudou algumas palavras, não queria criar animosidade mas teria de ser firme. Um programa com a ex-mulher ou qualquer outra, bate-papo e bebidinhas, não davam a nenhuma o direito de exigir compromissos. Ridículo! “Bem” — admite quase cordialmente — “ a gente pode, claro, se encontrar tantas vezes quantas quisermos, mas não posso neste momento dizer a você que vamos almoçar amanhã, que ligarei às dez horas, enfim, penso que passamos um bom par de horas agradáveis, no início imaginei que você tomaria satisfações tipo colocar em pratos limpos o que lhe estava incomodando, enfim, Telma, vamos nos despedir, vamos pensar um pouco mais nesse nosso reatamento amistoso, mas posso adiantar que a possibilidade de nos acertarmos mesmo mais uma vez está fora de cogitação”. Telma estremece, dá a impressão de que foi tomada por pesada decepção, abre a porta do carro e sai incontinenti; bate a porta com força exagerada e diz à distância: “Vamos pensar, sim, eu vou e é melhor que você pense também” Tchau rápido e se dirige para a porta do edifício. Arnaldo a observa. Subitamente ela volta, entra no carro, senta-se, torce o corpo,
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de frente para ele, empinada e disposta a tirar mais vantagens do encontro. Sabia que Arnaldo andava de mulher em mulher, cada semana com uma diferente, estava disposta a não ser mais uma; afinal, tinham sido marido e mulher por dez anos, será que isso não conta como diferença? Tinhosa, sim, estuda uma nova entrada de conversa. Na realidade o que tenta demonstrar para o ex-marido era que ele não deve confundi-la com a Telma de dez anos atrás. Sentia-se madura, quarentona, vivida e resolvida a ter uma chance com ele. Claro, reconhecia os deslizes dos tempos de casada, as aventuras que se encaixariam melhor numa adolescente, marcaram profundamente e concorreram decisivamente para o desenlace com Arnaldo. Com o Zé Roberto, loucura em dose maior, assumiu o risco de ir viver com um desconhecido, quem sabe uma tentativa de superação dos próprios sentimentos, já que com Arnaldo houve em quase todo o período do casamento muito pouca afetividade manifesta, sem carinhos físicos, ele sem iniciativas, ela idem.. Arnaldo resolve encerrar a noite naquele momento, sai do carro, abre a porta do carona e faz uma reverência, nada mais que um “convite” para que Telma se despeça de fato. Assim acontece. A acompanha até a porta do prédio, espera que ela a abra, beijinhos na face e só. Volta para o carro, liga o motor e rapidamente se afasta. Telma vê o carro se distanciando, dirige-se ao elevador: “Segundo round”, diz para si mesma. Mais ou menos uma semana depois a secretária de Arnaldo entra em seu escritório e coloca sobre sua mesa um envelope. Tinha dado uma olhada no remetente: Telma. Seria a primeira coisa que Arnaldo veria assim que chegasse, não só a secretária mas as demais moças da contabilidade já sabem que ela retornou e que estava assediando o chefe. Coisa de novela das oito. Sabem também que Arnaldo troca
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frequentemente as namoradas, um mistério, era um caso para o Inspetor Poirot; provavelmente a secretária, que tinha acesso à correspondência do chefe e também era quem atendia as ligações telefônicas. Enfim,....................... dizem até que as secretárias sabem mais da vida de seus chefes que suas próprias mulheres. Pode ser. Pelas nove Arnaldo chega, a secretária furtivamente observa ele abrir o envelope, percebe que é um cartão desses que a gente encontra em livrarias, papelarias e até em bancas de jornais, com mensagens prontas, para aniversários, datas festivas etc.. Arnaldo lê sem pressa a mensagem, sorrí, guarda o envelope em sua pasta, começa o seu dia de trabalho examinando os relatórios da produção. Desta Eva precisa saber. Quando chega em casa, à noitinha, antes mesmo da chuveirada liga para a amiga. “Criatura”. Disse, assim que ela atendeu, “novidade”. Claro, Eva sabia do que se tratava, curiosa como todas as mulheres nesses casos foi direto ao assunto: “Desembucha, Arnaldinho, fala logo”. Arnaldo acomodou-se na poltrona de leitura, preparou a voz e leu. “Atenção sua bruxa, vou ler uma vez, depois vai para o lixo, preste atenção”. Pausadamente e com voz estudada, diz: Meu amor Adoro me enroscar no teu corpo Adoro me sentir tua toda nua. Adoro sentir teu suor na minha pele, teus pelos nos meus, teu calor dentro de mim vibrando, vibrando, roçando, roçando até ao final do amor Tua Telma me liga, tá ?
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Eva solta uma gargalhada e em seguida adverte: “Olhaí, meu caro, prepare-se, guerra à vista. Você deu a primeira chance agora agüente !!! Não vai ser fácil, quem viver, verá”. Arnaldo também acha graça, no íntimo no íntimo a mensagem e seus termos massageiam seu ego. Lembra-se de bilhete e mensagem semelhantes que recebeu dela mesma, Telma, pouco depois do casamento. E respondeu à advertência. “Querida, ela pode vir com todos os seus poderes que estou frio, gelado ”, gracejou. Eva, ponderando, “Vamos então aguardar o próximo capítulo, qual será a próxima investida ” e ironizando,“talvez saudoso de um amorzinho ardente, isso também acontece com ex-casados, meu caro.”. Na defensiva, Arnaldo mais uma vez diz de suas garantias: tem muita mulher neste mundo, por que haveria de se meter exatamente com Telma, depois de tudo o que aconteceu? “Veremos, veremos” responde Eva e antes de desligar: “Irene perguntou por você. Quem sabe mais uma na fila das pretendentes?” Ambos desligam ..Arnaldo guarda a mensagem amorosa em sua agenda de mesa. Essa ultima de Eva deixou-o intrigado. Se não tivesse outros motivos, mais que uma simples pergunta, Eva nem tocaria nesse detalhe. Conhecia e bem a sua amiga, alguma ela estava tramando. Claro, o que vinha de Eva só poderia ser coisa boa, mas era de sua feição jogar dúvidas no ar. Nesse caso, como Irene e ela eram muito amigas e de longa data, é possível que seja uma espécie de estímulo tipo pode dar certo. Na realidade Arnaldo estava numa ótima, saia com suas recentes amizades e sem a preocupação de cobranças; fora do casulo e isso ele devia em boa parte a Telma. Irene, ou qualquer outra, está fora de sua agenda sentimental. Admite, sim, que um belo dia pode pintar alguém que venha a
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despertar seus interesses amorosos além da conta, mas neste momento em que busca apenas a diversão e os bons momentos que o dinheiro pode pagar: nada feito, nada de Irene. Numa quarta-feira foi apanhar uma de suas amigas funcionais no prédio em que ela morava. Parou o carro junto ao meio fio, tinham combinado que se encontrariam às dez da noite. Pontualíssimo, como sempre, esperou alguns minutos. Observou que atrás dele, a uma certa distância, um carro estacionou, desligou as lanternas e os faróis. Ninguém saiu do veículo. Onde estava era e é uma avenida larga, residencial, com pouquíssimo movimento de noite, daí Arnaldo estar esperto; no Rio de Janeiro ainda dava para esperar alguém no carro naquela época, mas assim mesmo ele sabia que rio que tem piranha jacaré nada de costas, como certa vez transpirou o filósofo urbano Ponte Preta. Não dava para ver quem estava no tal carro, a iluminação até que era boa mas não dava conta desse detalhe. A amiga desce as escadarias do edifício, cheirando a perfume francês e muito bem vestida; não era uma mulher feia mas estava longe de ser uma miss. O que mais agradava Arnaldo nela era o bom papo. Núbia tinha se formado em história na PUC, sabia das coisas e trabalhava como redatora numa agência de notícias bem situada no mercado. Mas, esses encontros sempre começavam com drinques num barzinho qualquer da moda, jantar num bom restaurante e raramente a noite não terminava num motel ou mesmo em seu apartamento. Arnaldo sai do carro, beijinhos beijinhos, abre a porta como convém a uma pessoa normalmente educada, Núbia entra, ele também e o carro movimenta-se em direção à Praça Gal. Osório: resolveram rapidamente jantar no The Fox. Quando o carro cruzava a Ataulfo de Paiva, Arnaldo notou que o mesmo carro que viu esta-
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cionar há minutos vinha também na mesma direção, quase colado na traseira do seu. Enfim, pode ser, seguiu em frente, ultrapassou dois ou três e estava aguardando para entrar na Delfim Moreira; o mesmo carro, colado na sua traseira, e não havia condição de identificar quem o estava dirigindo. Dobrou à esquerda, arrancou e rapidamente se distanciou de todos os outros, manteve boa velocidade até entrar na rua que dava acesso ao restaurante. Esperou algum tempo no bar por uma mesa, chegaram dois casais conhecidos do Iate Clube, depois de dois drinques a conversa engrenou, o que seria um simples jantar transformou-se num encontro agradável e, sobretudo, alegre, descontraído. Lá pelas tantas, já madrugada, saíram os três casais, despediram-se. Arnaldo foi levar sua companheira de noite em casa. Não deu outra, lá estava o tal carro, era um modelo comum mas tinha um par de faróis de neblina, assim foi possível que Arnaldo o identificasse. Meio cabreiro foi para casa, tinha de trabalhar no dia seguinte, que começaria com uma reunião importante: duas empresas estrangeiras estavam interessadas em comprar a sua fábrica. Quando chegou no escritório a secretária avisa que a Sra. Telma tinha telefonado, queria falar-lhe. Arnaldo não deu importância ao recado: as rádios, os noticiários na TV e os jornais anunciavam que o Plano Cruzado estava fazendo água. Notícia bomba mas previsível, certamente iria alterar os planos de sua fábrica, quem sabe até os interesses dos que fariam em breve propostas para a sua compra. Telma era assunto secundário naquele momento, que esperasse, suas atenções estavam dirigidas só para seus negócios. E com irritação lembrou-se das cenas numa das TV’s, o lançamento desse plano econômico com direito à aparição da economista Maria da Conceição Tavares, mui-
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to feia, mais feia ainda chorando, emocionada. Puro teatro, pura encenação, não dava para acreditar em políticos, muito menos políticos da área econômica, lembrou-se de Delfim Netto. Canalhas!!! Nesse dia de intensas atividades, reuniões seguidas com seus auxiliares diretos, esqueceu-se até de almoçar. À noitinha, chegando em casa, mais um recado de Telma. Irritado, ligou. Telma, com a voz aveludada, sabia que era ele, deu um sonoro alô, e imediatamente iniciou o diálogo: “Muito bem, de namoradinha nova, jantando no Fox, por que ela e não eu?”. Arnaldo, de saco cheio, frontalmente alegou que não estava disposto a entrar nesse tipo de assunto, que ligaria outro dia e aí, sim, poderiam conversar, mas de cara anunciou clara e firmemente: “Telma, meta-se com a sua vida, eu trato da minha, saio com quem bem entender, entende ?” Telma não se atrapalhou e rebateu: “Arnaldo, tudo bem, mas pelo menos arranja aí nas suas mulheres as que sejam melhores que eu. Essa de ontem, meu querido, um tremendo bagulho, velhusca....”, ironizou. “Pare, vamos ficar por aqui mesmo, tchau, depois a gente se fala, tchau”. Irritado Arnaldo desliga o aparelho. Em seguida concluiu: sim, aquele carro, só ela teria no momento motivos para segui-lo. E Telma sumiu do mapa, por dois meses e picos. Nenhuma notícia dela. Na realidade Arnaldo acreditava que o último contato telefônico dos dois seria estímulo para Telma voltar a ligar, tinhosa que era e cada vez mais inconveniente, inoportuna. Comentou com Eva. “Meu caro” disse a amiga “pode se tranqüilizar, essa mulher não vai sair do seu pé tão cedo. Surgirá de repente como uma flor depois da hibernação, mais decidida que nunca, ou esqueço tudo o que sei a respeito das mulheres. É uma determinada e você é a vítima.
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Fique calmo, esqueça a Telma que ela mesma se encarregará de reaparecer” Claro, não deu outra. Arnaldo estava em seu escritório, as negociações para a venda da fábrica estavam em bom andamento. Além da venda seria contratado como consultor da firma compradora. Tinha crescido mexendo com embalagens, a empresa começou com seu avô, passou pelo pai e Arnaldo só assumiu o controle quando ele morreu. Finalmente, beirando os cinquentinha, teria mais tempo, menos preocupações, tinha a segurança de que o seu trabalho como consultor era fundamental para o êxito da empresa. Os gringos chegavam com um aporte técnico fantástico, investimentos pesados, mas pouco conheciam do mercado, da legislação pertinente, da cultura sindical e por aí segue, o que tornava Arnaldo imprescindível, pelo menos nos primeiros anos após a troca de mãos. E parte dos vencimentos bem aplicada também no exterior, oferecia a Arnaldo o sentimento da segurança. Assim aconteceu. Realmente passou a administrar seu tempo com outras coordenadas, chegava no escritório mais tarde, saia mais cedo e quando não pretendia aparecer apenas telefonava avisando. Os novos proprietários eram craques na parte industrial, a fábrica estava precisando de equipamentos com mais recursos, fizeram investimentos salgados em maquinaria e na contratação de empregados melhor qualificados, sem o pudor de “roubá-los” de empresas concorrentes. Arnaldo centrou suas atividades no Iate Clube, passou a frequentá-lo quase todos os dias, mandou seu veleiro arpège foi para o estaleiro, quem sabe faria breve um cruzeiro pelo nordeste, realização de um velho sonho. Quanto ao social tudo muito bom, tudo muito bem, além dos amigos de sempre tinha um grupo no próprio clube, os interesses comuns
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os uniam, não faltavam companhias femininas para as esticadas noturnas. No entanto, a falta de uma companheira, uma parceira permanente o incomodava, tinha sido criado em família bem estruturada e ter a sua própria esteve sempre em cogitação. Com Telma não deu certo, com a maioria das companheiras de noitadas, ....... nem pensar. Num final de tarde chegou no clube, dirigiu-se ao bar inglês, ainda estava fechado. Acomodou-se na varanda, pediu um drink e abriu o jornal matutino que ainda não lera. Pelas sete da noite sua mesa já tinha mais dois amigos, a conversa solta versava predominantemente sobre mulheres, muitas piadas, principalmente envolvendo mancadas de sócios novos. E, gado novo, sócias. Mas conversavam também sobre embarcações, sobre os mais abonados que empenhavam fortunas em lanchas sofisticadas, na época Angra dos Reis pintava como point de badalação; vários empreendimentos imobiliários ligados às atividades no mar estavam atraindo lancheiros, pessoal da pesca e velejadores, a Rio-Santos progressivamente aumentava o movimento de carros. No entanto, nessa conversa uma preocupação de Arnaldo, a reforma do arpège estava consumindo boa parte de sua reserva financeira, o orçamento já tinha estourado há tempos. Comentou com os amigos, todos, unânimes, não dava para entender o custo da manutenção, os estaleiros cobravam fortunas, o argumento de sempre, esporte náutico é para quem tem grana. Dias depois, chegando de carro na fábrica, a surpresa: sua vaga interna havia sido ocupada por um novo diretor, recém-chegado dos “states”. Estacionou na rua, disposto a tomar satisfações de alguém, mas comedido como sempre resolveu usar linguagem diplomática com o que tinha me-
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lhor relacionamento. Não deu outra, soube que seu trabalho estava sendo avaliado sob o ponto de vista da pertinência pela diretoria, provavelmente seria descartado, com bons argumentos., como sempre acontece nessas ocasiões E foi isso que aconteceu. Bomba!!! Exatamente num momento que lhe pesavam muitas despesas, inadiáveis, uma pessoa do nível dele, com muito prestígio no mercado e nas associações de classe, poderia ter esse perfil profissional maculado, bastava que as más línguas interpretassem essa “demissão”como decorrência de uma inconveniência qualquer. Nunca faltam essas línguas, particularmente para cima dos que sempre tiveram sucesso profissional, fizeram sombras em seus concorrentes, enfim, é uma característica da sociedade e dos valores que regem o empresariado nacional, ainda mesquinho e pleno de sentimentos pouco elevados. Portanto, estava mais que na hora de apertar o cinto. Resolveu, depois de excelente oferta vender o apartamento do Leblon, partiu para um mais modesto no mesmo bairro, de vizinhança discutível sob o ponto de vista do comportamento civilizado. O veleiro não teve outro destino, foi simplesmente “torrado”, uma beleza de embarcação, sonho de muito amante da vela; mas, mercado difícil, ganham somente os atravessadores, intermediários, como sempre. Continuou sócio do Iate Clube, mas essas coisas, como qualquer notícia ruim, correm a boca pequena e pouco a pouco deixou de ter a identidade de empresário e velejador, seus pares naturalmente o afastaram dos grupos de festejados. Fase braba, Arnaldo ainda tinha segura reserva financeira mas a satisfação do trabalho a cada dia se tornava mais impossível. As empresas gráficas de embalagem se concentravam mais ao sul do país, deixar o Rio de Janeiro nem
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pensar. Enfim, o jeito era o de administrar e bem os “salvados do incêndio”, percebia corretamente que sua vida teria de dar mais uma reviravolta, desta vez no sentido da simplicidade, o ciclo dos gastos vazios tinha expirado. Ponto final, sem pompas, sem circunstâncias. E Telma ligou. Caramba, como é que essa mulher descobriu o número deste meu telefone?, indagou-se. Nem precisou consultar Eva, habilmente Telma deve ter inventado alguma notícia urgente, tinha de falar comigo, um desses babacas lá do Iate Clube já meio de porre entregou direitinho. O início da conversa foi civilizado. Arnaldo a esta altura de sua vida se tornara amargo e debochado, uma combinação terrível para arquitetar ofensas veladas. Telma disse que sempre se lembrava dele, afinal um casamento de tantos anos ninguém consegue simplesmente apagar na memória etc etc etc. Arnaldo teve dificuldades em captar as intenções de sua ardilosa ex-mulher, mas quando ela disse estar vivendo com o Rebouças, aquele gordo ricaço e criador de cavalos no Vale das Videiras, não resistiu e soltou sonora risada. “De que você está rindo, qual a graça ? Pensou que eu iria ficar correndo atrás de você a vida toda ? E posso dizer que estamos nos dando muito bem, o Rebouças é ótima criatura, é generoso e me trata como se eu fosse uma rainha, que pode uma mulher esperar de melhor nessa vida?”. Arnaldo se contém, mas curioso pergunta o porquê do telefonema, o que é que ele tinha a ver com as histórias, a situação, as satisfações dela? A resposta foi curta e áspera:” Para provar a você que existem muitos homens dignos, tão bons ou melhores que você, esse é o motivo deste telefonema. É para abaixar a sua crista de arrogante. Digo mais, de toda a minha vida o que
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mais me arrependo é não ter acabado com o nosso casamento antes, agüentei quase vinte anos. Certamente mais moça teria muito mais chances de conhecer gente interessante, mas covardemente me sujeitei a ser apenas a mulher de um industrial abonado, como um acessório social. Provocou, quer ouvir, agora ouça.!! E tem mais, estou fazendo e farei o possível e o impossível para ser uma mulher correta, quero formar com o Rebouças uma parceria feliz, entende? Foi o que não consegui como sua mulher, vê se entende”. Arnaldo já estava começando a se aborrecer, este último parágrafo foi definitivo. “Vá à merda, dona Telma, fique mesmo pelas bandas de Petrópolis com esse gordo horroroso, agora que desopilou o fígado em cima de mim, se manda, suma, desapareça!!!!!” Desliga o aparelho. Telma não tornou a ligar. Na verdade não deu mais o ar de sua graça.. A esta altura a vida de Arnaldo dera uma guinada. Continuava a freqüentar o Iate Clube, ainda tinha amigos por lá, essa frequência representava o retiro que precisava para se controlar, mas restringiu as bebidas e as noitadas. Com amigos do Leblon diariamente dava caminhadas até o Arpoador, ida e volta, no incío eram cansativas e o esgotavam mas depois de certo tempo tornaram-se um hábito, que não mais dependia da companhia dos outros. Sentia-se fisicamente melhor, estava namorando uma vizinha de bairro, desquitada há anos, ambos formavam um par simpático. Casamento? Nem pensar. Cada um na sua casa, cada um na sua, só se encontravam para as coisas boas que ambos gostavam, como assistir espetáculos no Teatro Municipal, geralmente a apresentação de orquestras de excelente qualidade, não perdiam as óperas. Permutavam livros, comentavam e discutiam o que liam, nem sempre concordavam mas esse é exatamente
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o tempero da conversa inteligente, do respeito à opinião do outro, fatores de grande aproximação de ambos como casal Uma manhã como qualquer outra. Toca o telefone, era Eva. Arnaldo nota que sua voz está diferente, fala com dificuldade, e só quando Eva começa a dizer das novidades ele também se abala. “Arnaldo, vou ser curta.................. Telma morreu”. Ele é tomado de sensações estranhas, o sangue lhe falta à cabeça................ se recompõe, depois de um lapso de silêncio pede que ela dê os detalhes tipo o que foi que aconteceu? “Arnaldo, tinha de acontecer um dia, estava escrito. O Rebouças descobriu que ela estava se encontrando com um dos tratadores do haras e no apartamento deles no Leblon, deve ter ficado alucinado, uma união recente, nem dois anos e a mulher pula a cerca. Até parece que ela fez questão que ele soubesse, tal o descaramento. E ninguém poderia sequer imaginar que o Rebouças, um cara, uma pessoa extremamente tranqüila, de bem com a vida, ajeitando as coisas para viver como qualquer casal, pudesse descarregar quatro tiros: três na Telma, mortais, o quarto foi para o amante que saiu ileso, conseguiu fugir. “ Arnaldo estava na poltrona de leitura, afundou, apoiou a cabeça com as mãos e soltou, “que barbaridade !!!” . “E tem mais, Arnaldo, quem entregou a Telma, ligou para o Rebouças dando todas as coordenadas dos encontros foi......... pasme..........., Irene, nossa amiga. Ela mora num prédio vizinho, não teve dificuldades em ver o rapaz entrar no prédio da Telma várias vezes, o porteiro é quem, na realidade, entregou o casal e o adultério. Telma dispensava as empregadas e entrava no prédio com o rapaz, folgadamente. Dali, Arnaldo, ela ligar para o Rebouças foi uma questão de horas”. Muito estranho este nosso mundo, não?” Arnaldo agradece a informação, uma formalidade que
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poderia dar sentido a uma “belle indiférence”, mas estava profundamente sensibilizado. Antes de desligar, pergunta: “Não dá para entender, Eva, por que a Irene, qual a intenção dela,, de repente tornou-se membro de uma liga anti-sexo? O que tinha ela a ver com a vida da Telma, ou do Rebouças?”. Eva, sem perder a ironia procurar intrigar Arnaldo: “Meu caro, se você tem boa memória vai se lembrar que antes de se casar com a Telma sua última namorada foi Irene, certo? Penso que uma explicação pode partir de você mesmo.”Desligam os aparelhos. Arnaldo arrasado levanta-se com esforço, serve-se de whisky, pede dois cubos de gelo à empregada, só dois, fecha as cortinas da sala e liga o toca-discos, precisava ouvir Bach, um cravo bem temperado.
“.....a bem dizer, ela não gostava de homem, mas de homens; as exigências de sua imaginação, mais do que a sua carne, eram para a poliandria....” Lima Barreto, Um e outro, 1913
THE END Angra dos Reis, 2010 cf-requiao@bol.com.br
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O Opala azul-marinho SS, duas portas, modelo 1972 “...o automóvel, aquela magnífica máquina, que passava pelas ruas que nem um triunfador, era bem a beleza do homem que o guiava; e, quando ela o tinha nos braços, não era bem ele que a abraçava, era a beleza daquela máquina que punha nela ebriedade, sonho e a alegria singular da velocidade.....” Lima Barreto (1881-1922)
Ronaldo estava desconfiado e tinha lá seus motivos. Ameaça à vista. O novo vizinho, casa do lado, mais moço que ele, sempre bem vestido, desquitado, advogado de conhecido escritório de São Paulo e ainda por cima dono de um belo Opala azul-marinho SS, duas portas, modelo recém-lançado no mercado. Marlene, como a maioria das mulheres, casadas ou não, estava ouriçada com a novidade, até que enfim a população da vila melhorou de nível, costumava comentar com as vizinhas; e, morar ao lado dele, a brindava com o privilégio de observar seus movimentos: a hora que saia para o trabalho, que voltava e, até, se chegava em casa acompanhado. Fácil de concluir que Ronaldo no mínimo sentia-se desconfortável, com muita freqüência flagrava a mulher espionando o vizinho pela janela da sala, protegida pela penumbra e pelas cortinas. Desagradável, uma merda!
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No entanto, atribuía essa conduta de Marlene como característica feminina, a curiosidade, sobretudo, ........“isso passa”, concluía para si mesmo. Não raro ela se pendurava no telefone, eram as amigas, quase todas excitadas quando o assunto versava sobre as companhias noturnas do vizinho do Opala, aventuras do dândi paulistano. Um contagiante frenesi. E Marlene, de repente, passou a cuidar do jardim, coincidentemente nos momentos que o vizinho tirava o carro da garage, quando saía para o trabalho. Dessa Ronaldo não sabia, como gerente de um escritório de contabilidade saía cedo, tinha o hábito de chegar antes dos seus subordinados.. Claro, o impecável vizinho e Marlene cruzaram os olhares, primeiro foi um cordial “bom dia”, depois algumas frases pouco criativas sobre o tempo, o sol, as plantas. Enfim, qualquer bobagem valia. E assim surgiu o interesse recíproco para uma aproximação física, obviamente clandestina. Nem precisavam mais trocar palavras, bastava um olhar, um sinal, e assim Marlene iniciou sua carreira de adúltera e Ronaldo passou a ostentar um simbólico par de chifres. E o tempo correu. Tudo parecia estar mais calmo, raramente o casal se referia ao vizinho. Numa noitel assistiam TV, sugeriu Marlene: “ Por que não trocamos de carro? Nossa Variant já está meio usada, não dá não?” Ronaldo, sonolento, respondeu que o carro tinha apenas dois anos de uso, ótimo carro, um novo agora poderia mexer com suas reservas financeiras, enfim, desarticulou a mulher. E, surpreendendo Marlene, perguntou de chofre, movido pela intuição: “Você está tendo algum caso com nosso vizinho? Bomba.! A mulher gaguejou, tentou indignar-se, mas a pergunta a pegou como tiro certeiro. “Não, não tenho, mas bem poderia ter” e, elevando a voz,
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agressiva: “Seria a mulher mais sortuda aqui da vila, se interessa saber”. Ronaldo, com a tranqüilidade que deve ter-lhe custado elevação da pressão arterial, levantou-se, dirigiu-se à sala de visitas, ligou o toca-discos , uma composição de Brahms, serviu-se de whisky e gelo, foi uma noite insone. A idéia da corneação o perseguia, duro de engolir, a possibilidade de ser verdade..E ainda por cima a maldita pílula ! No dia seguinte saiu sem o café da manhã. Chegando no trabalho procurou na lista telefônica os anúncios de detetives particulares, entrou em contato com um deles. Um mês depois, pagando caro pelo serviço, o relatório do investigador não comprometia Marlene em nada. Mas, as investigações prosseguiram. Por outro lado, o casal parecia ter esquecido o péssimo diálogo “daquela noite”. As coisas simplesmente voltaram à normalidade. No entanto, passados mais alguns dias eis que chega a confirmação de adultério, não só os dias, as horas e o período em que os amantes passaram nos motéis, mais as fotos, definitivas. Foi sim como se Ronaldo tivesse sido atropelado por uma locomotiva, pior que isso, seria o rompimento e de forma brutal, de um casamento de dez anos. Erro de pessoa? Difícil de acreditar, muito menos aceitar passivamente. Não tinha outro jeito, depois de longa conversa com a mulher, que durou toda uma noite, Marlene não resistiu a pressão e as provas, espalhadas em cima da mesa de jantar; resolveram pela separação imediata. Ronaldo iria para um hotel e, na cabeça dele, ela ficaria ainda mais livre para se divertir com o vizinho. Prometeram que não haveria escândalo, ele iniciaria o processo do desquite, alegariam o tão usado, manjado, desgastado pretexto: a incompatibilidade de gênios. No entanto, a separação não estava sendo tão fácil como
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ambos supunham. Ronaldo, acostumado com sua casa, o conforto, seus livros e discos, enfim, quem já passou por isso sabe do que se trata. Quem não passou, ainda, que faça uso de sua imaginação. Marlene, por seu lado, logo de início sentiu alívio. Livre, finalmente sem culpas, angústias.......... Mas para sua surpresa e indignação o vizinho amante a jogou para escanteio, assim que soube da separação. E fim de papo. Suas amigas tomaram conhecimento do que aconteceu, quase tudo, e Marlene passou a ser uma ameaça na vila, disposta a buscar suas satisfações, de toda ordem, o jeito foi marginalizá-la. Os maridos passaram a ser melhor vigiados.. Precisavam conversar sobre o andamento do processo. Algumas semanas se passaram, marcaram encontro numa determinada quarta-feira, jantariam juntos como pessoas civilizadas. Ronaldo foi apanhá-la com seu carro novo, tinha também comprado roupas, destaque para seus ternos, capricho no mais famoso alfaiate de São Paulo, o Zago, os sapatos eram do Petrika’s, enfim, um novo Ronaldo.. E assim aconteceu, depois do jantar esticaram para um motel, tiveram uma noite de namorados, arrebatadora. Lá pelas tantas da noite, assim que Marlene saiu do carro — Ronaldo a acompanhou até a porta da casa — , disse para ele, olhando firme e docemente, olhos nos olhos: “Adorei nosso encontro, quem sabe entramos numa nova fase de relacionamento, seu carro novo é lindo! É um Opala , não é mesmo? ” “Sim”, a resposta pronta, seca. Ronaldo elegantemente beijou suas mãos, seus lábios, despediram-se. No dia seguinte, manchete na primeira página do jornal Ultima Hora: “corpo do advogado desaparecido no domingo foi encontrado boiando no Rio Tietê” 171
Um certo palacete da Al. Santos
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Dr Godoy Gomide para o carro frente ao portão de sua casa — Alameda Santos, um projeto de Ramos de Azevedo —, buzina. Seu João, jardineiro e pau pra toda obra, apressa-se em abri-la. O possante La Salle entra com dignidade, passa pelo bem tratado canteiro de flores, o gramado e estaciona na enorme garagem. Dr. Olavo Egidio Godoy Gomide entra na casa pela porta lateral, verifica se há correspondência na bandeja de prata, que descansa em cima de um móvel importado da Itália pelo seu avô. Em seguida sobe as escadas, dirige-se para o seu quarto. Precisava de uma chuveirada, dia quente em São Paulo; passou horas a fio no Fórum resolvendo pepinos de seus clientes. Ducha renovadora. De banho tomado veste roupão atoalhado, penteia seus raros cabelos com cuidado cirúrgico, um pouco de gomalina para os fios que ainda resistem. Olha-se mais uma vez no espelho, de frente, de lado, reconhece que está acima do peso, assim denunciam a papada que une a ponta do queixo com as bases do pescoço e a cintura grossa, igualzinho ao seu pai, igualzinho ao avô. O jantar aconteceria rigorosamente às sete , tinha ainda uma boa meia hora para se vestir. Sua avó, que residia nessa mesma casa — aliás, casa dela —, inflexível com horários, não permitia que o neto sentasse à mesa com roupas
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impróprias, tinha de ser sempre de camisa social e paletó, a gravata ela liberou; sua dama de companhia e muitas vezes enfermeira, fraulein Käfer, também participava das refeições: tomava conta de D. Permínia há mais de 15 anos, desde a época da morte do Dr. Arthur Gomide. Era elemento chave para todos, status de pessoa grata. Depois do jantar, servido quase sempre à francesa, Olavinho sai de carro. Às quartas-feiras tinha compromissos na Sociedade Harmonia de Tênis, onde se reunia com amigos para um carteado a leite-de-pato. Valia o bate-papo, se conheciam há anos, muitos cursaram o mesmo Dante Alighieri, outros a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, todos da abonada elite paulistana. Os temas das conversas eram os mais variados, desde política passando por literatura e depois de alguns whiskies........ mulheres. Não raro alguns esticavam nesta mesma noite até o Clube de Paris, casa noturna na moda, nem que fosse para um drink e ato de presença. Poucos eram solteiros, participavam de programas mais picantes. Com os casados as puladinhas de cerca representavam mais um componente da cultura machista que de traição de fato. No entanto, Olavinho, solteiríssimo aos 28 anos de idade, invariavelmente voltava direto para casa. Não escapava da observação e das piadas sobre eventual falta de apetite sexual, desinteresse por frequentar lugares que permitiam encontros, injustificável para um jovem paulistano endinheirado, quebrando o padrão de comportamento que identificavam como normal na sociedade urbana da capital. Olavo Egídio percebia, pelas piadinhas e insistências que era objeto de maledicência, claro, mas pouco se importava; seguro de si e por uma questão de princípios só fazia e acontecia o que lhe dava na telha.
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Voltava pelas 23 horas, ele mesmo tratava de abrir o portão, a esta altura seu João estava entregue aos braços de Morfeu: no dia seguinte a alvorada para ele era às 5 da matina. Depois do carro abrigado na garagem, Olavo Egídio entra em casa, de imediato sobe para o seu quarto. Despe-se, sai do banheiro com o suave aroma de água de Köln, veste o pijama, deita-se na cama e aguarda com paciência que ela apareça e lhe faça companhia. Dito e feito, minutos depois fraulein Käfer entra com suavidade no quarto, também usa roupa de dormir, deita-se ao seu lado; beijam-se e fazem amor sem pressa, afinal a noite toda era somente deles. 1937
Fraulein Anneliese Käfer chega no Brasil, 23 anos de idade. Veio sozinha num navio misto de carga e passageiros, de Frankfurt para Santos, com escala na cidade de Colón, Panamá. Uma senhora da “colônia” alemã e ligada ao Consulado da Alemanha na capital a recepciona no cais do porto. Quando passam pela aduana a senhora a apresenta ao Dr. Arthur Gomide, avô paterno de Olavinho, que casualmente estava nesse desembarque: alta personalidade e figura importante junto às autoridades portuárias. O figurão encanta-se por fraulein Käfer e, após conversarem em francês sobre as expectativas da jovem, imediatamente a convida para servir como dama de companhia de sua mulher, D. Permínia, na época com a saúde abalada: tinha problema de diabetes, circulação e outras conseqüências. No mesmo dia Dr. Gomide e fraulein sobem para a capital, direto para o palacete da Alameda Santos. D. Permínia que há tempos reclamava por uma pessoa que a ajudasse, lhe fizesse companhia, teve imediata simpatia por fraulein Käfer, com reciprocidade; se enten-
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deram também em francês, língua que ambas dominavam. E assim começou a nova vida da alemazinha que veio para o Brasil com a perspectiva de realizar alguns sonhos, como o de casar, ter filhos e também exercer livremente uma profissão: era formada no que hoje conhecemos como assistência social. Portanto, cuidar de uma senhora enferma não estava no seu projeto, mas reconheceu que esse trabalho facilitaria sua integração ao Brasil. Precisava de tempo para saber das coisas e colocar a cabeça em ordem. Nenhum problema. E foi quando conheceu Olavinho, então com 14 anos de idade. O menino Olavinho, como acontece muitas vezes com filhos únicos de famílias abastadas, tinha em casa comportamento arredio, reservado, fechava-se em seu mundo interior e tinha lá suas razões. No entanto, o que era uma característica dentro de casa não tinha paralelo quando estava no colégio; no Dante Alighieri dava-se bem com todos os colegas e professores, sempre elogiado por ser bom aluno, com fortes tendências à intelectualidade e extrema curiosidade para a literatura. Em grupos discutia história e filosofia, aproveitava ao máximo as aulas de línguas estrangeiras, ainda no ginásio conseguia ler sem embaraços livros em inglês, francês e italiano. O ônibus do colégio o deixava na porta de casa em horários que poderiam variar pelas atividades pedagógicas, mas nunca depois das dezoito horas; soube da presença de fraulein Käfer pelo seu João. Num primeiro momento não gostou, mais uma estranha na sua casa, não bastavam os quatro empregados ? Entrou e por uma fresta da porta da copa viu pela primeira vez a fraulein. Minutos depois estavam apresentados pelo motorista, seu Marques, o desconforto simplesmente desapareceu. Quando soube que era alemã e falava vários idiomas, que poderia entender-se com ela em francês, aí sim
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tudo melhorou; além das aulas no colégio era a oportunidade para praticar esse idioma em situações informais. Fraulein Käfer também teve simpatias por Olavinho, com ele poderia se inteirar melhor das coisas do Brasil: geografia, hábitos, costumes, crenças, enfim, assuntos que não faziam parte de seus diálogos com D. Permínia e sobre os quais conhecia muito pouco. Dr. Arthur Gomide morreu dois anos depois, infarto fulminante. Era pessoa forte, controladora, na sua ausência e gradualmente fraulein Käfer assumiu a administração da casa, com plena aprovação de D. Permínia que a percebia como um verdadeiro achado. Costumava dizer para suas amigas, raras, que sem freqüência a visitavam: “Essa menina caiu do céu e chegou na hora certa”. “O que seria de mim sem ela ?”, perguntava-se em tom de lamento. Para Olavinho as coisas melhoraram, sempre que voltava do colégio e antes do jantar ele e fraulein tinham um bom tempo para trocar idéias, comentar o que liam e seus autores, permutavam livros, enfim, o francês cada vez mais afinado e as relações de amizade cada vez mais estreitas. Havia mais componentes nesse relacionamento entre os dois: os pais de Olavinho eram pessoas ausentes, trocavam a noite pelo dia, bebiam sem limites, causavam confusões e embaraços em lugares “bem freqüentados”. No Harmonia não eram benquistos, receberam os apelidos de Zelda e Fitzgerald. Há muito trocaram esse clube pelo Paulistano, menos aristocrático, cultivavam um grupo de amigos de hábitos assemelhados. Adoravam Paris onde passavam pelo menos três meses por ano, muitas vezes viajavam em grupo para a Europa, ainda preferiam os navios. Nos tempos do Dr. Arthur o dinheiro era farto, corria solto, depois de
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sua morte os gastos tiveram de ser controlados, mas assim mesmo a fortuna patrimonial deixada pelo velho dava para abrigar pelo menos mais duas gerações de estróinas. D. Permínia simplesmente os ignorava, moravam todos na mesma casa, tratavam-se com civilidade, sim, mas com frieza polar. Contatos e conversas dos pais com Olavinho somente nos fins de semana, já que nos dias úteis os horários eram desencontrados; sempre os mesmos questionamentos, quase um padrão, as mesmas respostas do filho: sobre seus estudos, questões do colégio. Sobre ele mesmo, nada. Fraulein não assumiu o papel dos seus pais mas , sim, encontrou espaço que permitia no mínimo um relacionamento conveniente para ele, os nove anos que os separavam eram suficientes para que ela pudesse em muitos momentos bancar de preceptora e, não raro, confidente. 1954
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Morre D. Perminia. O advogado da família e do escritorio em Santos, Dr. Marcos Medeiros e Silva, que sempre defendeu as causas do Dr. Arthur, muitas delas cabeludas e relacionadas com suas atividades no porto — comentava-se que nenhuma importação e exportação, nada entrava nem saia do porto de Santos sem que ele recebesse percentuais altos: daí sua fortuna —, assumiu os encargos, foi ele quem tratou do inventario do Dr. Arthur, conseguiu driblar os pais de Olavinho, que poderiam complicar o bom andamento do processo. Oficializou o neto como inventariante. Realmente uma proeza de ambos. O avô e D.Perminia não deixaram testamento, mas o escritório em Santos tinha em seus arquivos e de forma organizada a relação de seus bens, tudo em dia com o fisco, os documentos ocupavam três gavetas de um arquivo
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de metal. Tudo corria normalmente, na dependência apenas dos engasgos com os órgãos públicos e alguns cartórios. E, num jantar sem a presença de fraulein, os pais de Olavinho tentaram definir o destino da fiel ex-dama de companhia de D. Permínia: sua demissão sumária. Olavinho trabalhava, desde a formatura, num escritório de conceituados advogados de São Paulo, tinha realmente conhecimento e traquejo em questões espinhosas, sabia dos direitos da fraulein, que expôs aos pais com clareza didática. Alem disso, a casa precisava ainda e muito dela, afinal, quem a administraria? No entanto, a idéia do casal era de negociar, passar o palacete nos cobres. Não foi fácil demovê-los. Argumentavam que com a morte de D. Perminia e com a valorização dos imóveis naquela região de cidade, o mais razoável seria que buscassem um apartamento amplo ou mesmo uma casa de menor valor nos Jardins, Pacaembu ou pelas bandas do Morumbi. Nada feito, Olavinho pela primeira vez em sua vida e com seus pais discordou frontal e definitivamente de ambos: tinha sido criado sob aquele teto, não havia nenhuma razão financeira para a troca de residência, muito menos para dispensar fraulein Käfer. Claro, seus motivos iam um pouco além, a esta altura ele e a alemazinha não eram simplesmente amantes genitais: um sentia pelo outro forte amizade condimentada pelo carinho, uma conquista de ambos no curso do tempo. Aliás, Olavinho somente adiava a revelação desse romance aos pais para que esse fato novo não complicasse, àquela altura, o bom andamento do inventário. E estava certo. Dr. Medeiros conseguiu acelerar com propinas a ação da justiça, Olavinho percebeu que tinha ganhado a parada, em momento oportuno e depois de definidos e enquadrados todos os bens dos avós, ai sim abriria o jogo, sem qualquer
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preocupação com eventual reação negativa dos pais. Dois meses depois de resolvidos os impasses do inventário, Olavinho pede que seus pais o ouçam. Certa cerimônia, depois do jantar os três fecham-se na biblioteca, fraulein vai para o quarto, aguarda ansiosa as conseqüências da revelação. Pouco tempo depois os pais se retiram, provavelmente para mais uma noitada alegre, Olavinho sobe as escadas sem pressa e, abraçando fraulein, diz apenas: “Tudo bem, eles terão assunto para toda essa noite com seus amigos, nos próximos dias é que reagirão de alguma forma, se é que estão se importando muito com a nossa vida”. Fraulein não contém um choro fininho, em suspense, abraçada com Olavinho sente-se segura, e quase num sussurro: “O pior passou, daqui para diante tudo dependerá de nós mesmos.........”. “Não será difícil, sempre fui para eles uma pessoa independente, um filho que existia mas não preocupava, não precisava de carinho, nada, apenas nasci e fui entregue aos cuidados da vó ”, engrenou Olavinho, aliviado.. Nessa mesma noite fraulein levou de seus pertences o que restava, para o quarto de Olavinho — agora do casal; no dia seguinte teria como missão uma conversa com os empregados. Nenhuma novidade, todos sabiam das movimentações noturnas, o casal já tinha sido flagrado várias vezes em muitos lugares da casa em atitudes comprometedoras, se tocando ou simplesmente sussurrando. Dias depois, durante o jantar, a novidade: os pais de Olavinho anunciam a compra de um apartamento na Av. São Luís. Após três meses — tempo da reforma do apartamento — mudam-se, Olavinho tratou pessoalmente de todos os detalhes com a empresa transportadora.
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A venda do palacete, portanto, assunto do passado, resolvido, não mais tocaram nessa remota possibilidade. E com a ausência dos pais Olavinho teve o sentimento, o primeiro em sua vida, de que estava morando, vivendo, na sua própria casa. Fraulein era agora somente Anneliese, ou dona Anneliese para os empregados, que receberam a “notícia” com expressões de simpatia: ela tinha sido nestes últimos anos -- mais de uma década e meia, ótima pessoa para todos os serviçais: sem intimidades, discreta , segura, exigente e polida na forma de administrar a casa e lidar com todos. A cozinheira e a arrumadeira, mais sensíveis, pessoalmente parabenizaram Anneliese, desejaram felicidades, até onde o vocabulário das pessoas mais simples permite. Seu Marques seguiu com a mudança, já que servia exclusivamente ao casal e a garagem ficou maior com a vaga deixada pelo imenso Buick. Dias depois um Chevrolet novo em folha ocupa esse espaço: presente de casamento para Anneliese. 1955
Poucos convidados, uma festa de primeira enfeitou o palacete: buffet da Fasano, a louça, os cristais e os talheres saíram dos armários do palacete, garçons empertigados em trajes escuros, o trio de músicos embalando o ambiente com temas de extremo bom gosto, enfim, uma festa de casamento que saiu nas colunas sociais apenas como uma nota sem destaque mas, para os convidados, inesquecível. Quase um conto de fadas. Anneliese com um vestido da carioca Canadá Modas, Olavo com um terno de casemira inglesa risca-de-giz, talhado no famoso Othelo, conhecido como o alfaiate dos diplomatas, também do Rio de Janeiro. Como noivo parecia um comendador, figura imperial, pelo tamanho, um
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metro e noventa de altura e porte, sem esforço lembrava a figura do Barão do Rio Branco como a conhecemos. Casamento sacramentado pela justiça, passaram a freqüentar clubes, restaurantes da moda, mesa cativa no Fasano da Barão de Itapetininga. Anneliese tinha fôlego social e em muito pouco tempo formou círculo de amizades, mulheres de gente importante, a fina flor, quando despontava na sociedade paulistana a super elegante Carmen Terezinha Solbiatti, muito menina ainda mas padrão de beleza, classe e bom gosto. Até mesmo por questões de origem Anneliese preferiu receber aulas de tênis no Clube Pinheiros; lá encontrou famílias de alemães e seus descendentes, era a oportunidade de se sentir uma germânica em solo brasileiro. Olavinho nunca teve afinidades com qualquer esporte, nos domingos a acompanhava mas ficava no varandão tomando drinks e batendo papo com conhecidos. Filhos ? Nem pensar, Anneliese estava já fora da faixa etária para a maternidade e nenhum projeto de ambos contemplava essa possibilidade. Viajavam com muita frequência , sempre escolhiam lugares que não faziam parte da programação turística dos brasileiros urbanos e endinheirados; conheceram a Argentina de cabo a rabo: encantaram-se com a Patagônia. Em outras foram ao Leste Europeu, Oriente Médio e aqui mesmo no Brasil incursionaram por muitas regiões, do sul ao nordeste, já que o extremo norte do país não apresentava condições mínimas de salubridade. A cada viagem o entendimento entre os dois cristalizava-se. Sabemos que viajando juntas as pessoas passam a conhecer-se melhor, no caso deles foram descobertas e surpresas sempre positivas, estavam superafinados como casal. E a vida corria sem incidentes, Anneliese estava regularizando seu diploma alemão para ingressar numa faculda-
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de, pretendia estender e atualizar seus conhecimentos, quem sabe utilizá-los em atividade profissional futura. Seria igualmente uma forma de diversificar o seu cotidiano, conhecer pessoas e integrar-se cada vez mais ao nosso país através do trabalho , sobretudo junto a comunidades carentes da periferia da cidade. Olavinho firmava-se como advogado, teve propostas para unir-se a outros colegas e organizar escritório próprio, mas pretendia continuar onde estava, como “partner” no Almeida, Castellani & Rodrigues, advogados; seus vencimentos eram justos e suficientes para levar uma vida de ótima qualidade, a que estava acostumado desde o berço, sem recorrer ao patrimônio herdado. 1958
Telefonema dos Diários Associados: um tal jornalista Edmundo Monteiro solicitava contato pessoal com Olavinho, provavelmente a presença também do Dr. Assis Chateaubriand e do Prof. Bardi, nos escritórios da rua Sete de Abril. Seria contato rápido mas importante e em benefício do Museu de Arte de São Paulo. Enfim, era de conhecimento público a biografia do dono dos Diários Associados, sobretudo entre os advogados. Olavinho sabia o suficiente sobre as iniciativas e comportamento antiético do Dr. Assis, na época um imperador com extraordinários poderes, sobretudo políticos , com sua máquina destrutiva: os seus jornais, uma revista de grande circulação no país e a TV Tupi. Poderes que permitiam chantagens, alimentando o insaciável e quase insano uso de pessoas ricas para garantir propósitos de aparente interesse social. O seu xodó mais divulgado tinha sido dotar os aeroclubes de equipamentos de voo, aviões CAP 4 conhecidos como Paulistinha, de treinamento básico para a
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formação de pilotos, fabricados pelos Pignatari. Seus alvos concentraram-se mais na região sudeste. Aviões “doados” à custa de pressões e ameaças de retaliação pública em seus jornais. No entanto, recentemente as meninas de seus olhos brilhavam mais intensamente quando se tratava do Museu de Arte de São Paulo. Imediatamente Olavinho liga para o Dr. Medeiros que, pelos seus conhecimentos e penetração nos meios sociais , sabia muito mais, poderia orientá-lo sobre como proceder: era notória a agressividade do Dr. Assis quando um pedido seu não era atendido, partia para perseguições e toda sorte de medidas covardes e antiéticas, de efeito desmoralizante e não raro de destruição financeira. Sob o ponto de vista da psiquiatria aproximava-se pelos sintomas de um quadro de personalidade psicopática. Claro que se tratava exatamente disso, dinheiro ou peças de arte para o Museu de Arte de São Paulo, já havia histórico a respeito: industriais, fazendeiros enfim, milionários tinham sido forçados a “participar espontaneamente” de suas campanhas filantrópicas. Usava a força da revista O Cruzeiro , tinha como instrumento o mercenário David Nasser que com seu talento e elevada capacidade de inventar realidades destruía reputações em seus envenenados artigos, convenientemente dirigidos a determinadas pessoas ou empresas, por ordem do seu patrão. Não restava outra saída, a secretária de Olavinho confirmou a reunião nos Diários Associados. Num final de tarde foi recebido na Sete de Abril pelo professor Bardi, , apresentado ao colega Dr. Cavalcanti, aguardariam algum tempo , conversa agradável mas Olavinho não escondia seu desconforto; falaram, claro, sobre artes plásticas, pintores, suas obras e do MASP. Lá pelas tantas
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uma funcionária pede licença, informa que Dr. Assis estava no Rio de Janeiro, o mau tempo não permitiu a viagem a São Paulo naquele horário e sua instrução era para que Edmundo Monteiro começasse imediatamente as negociações. O prof. Bardi vai até sua mesa e volta com um imenso catálogo, abre em determinada página, lá estão quadros de Monet. Mostra para Olavinho, apontando para um deles. Claro, é um dos que seu avô trouxe da Europa, décadas atrás; o velho Arthur Gomide não só conhecia, tinha cultura em muito bom nível, como sabia avaliar uma obra de arte, barganhar o que julgava bom investimento. O seu colega, advogado Cavalcanti, adianta-se e diz, com certo ar de bazófia e ironia: “ em sua casa está exatamente na parede da direita da biblioteca, de quem entra, certo ?”. Olavinho sente-se invadido, indignado. Mas, reequilibra-se rapidamente, toma consciência que estava lidando com gente determinada e sem qualquer cacoete ético, gente do Dr. Assis. Teria, portanto, que inicialmente aceitar as regras do jogo, depois veria como contornar as situações, precisava de tempo, precisava neste momento do Dr. Medeiros e sua experiência com esse tipo de pessoas; afinal foi ele quem livrou o Dr. Arthur de grandes complicações com a justiça e o firmou como eminência no Porto de Santos. Mais que isso, o Dr. Cavalcanti lembrou mais dois quadros que deveriam figurar no acervo do Museu de Arte, ser democratizados, expostos publicamente ; citou um Portinari e outro de Chagall, enfim, um trio de altíssimo valor em todos os sentidos. Disse exatamente onde se encontravam no palacete da Al. Santos, detalhe de horrorizar. Olavinho compromete-se a pensar no assunto, precisava conversar com seus pais, herdeiros diretos não só do
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imóvel da Al. Santos como de todos os bens que ele abriga: tinham de ser consultados, era exigência legal. Com isso , de certa forma , aliviou a sua responsabilidade, precisava ganhar tempo, tratou de colocar um empecilho no caminho dessa maldita e inevitável negociação. Despediu-se do prof. Bardi que todo o tempo permaneceu imóvel como uma esfinge, não mexeu um só músculo do rosto, nenhuma manifestação, apenas acompanhou atentamente a troca de palavras e informações entre o Dr. Cavalcanti, Olavinho e Edmundo Monteiro, de vez em quando ruminava alguma coisa ininteligível. Olavinho despede-se, sai acompanhado pelo Dr. Cavalcanti. Realmente um final de tarde cheio de surpresas, precisava imediatamente articular-se com o Dr. Medeiros, não pretendia simplesmente dispensar obras de arte que representavam patrimônio de família, muito menos de cedê-las para a satisfação de um cafajeste. Soube, posteriormente, do assédio à família Matarazzo, realmente os métodos do Dr. Assis para atender seus interesses eram assemelhados aos dos mafiosos do pior nível. Olavinho entendia a importância de um Museu de Arte em São Paulo, mas não aceitava a forma pela qual as obras de arte passavam a fazer parte de seu acervo. Uma parada ! Dr. Medeiros, já curvo pelo peso da idade, beirando os oitenta anos, acomoda-se numa das poltronas da biblioteca do palacete , aceita um brandy . Olavinho descreve em detalhes a reunião nos Diários Associados. Ouvindo atentamente o macróbio apenas interrompe Olavinho num certo momento para anotar o nome completo do Prof. Bardi, do advogado Cavalcanti e de Edmundo Monteiro, claro; levantou as sobrancelhas quando ouviu o nome deste, era já pessoa conhecida, lugar-tenente de Chateaubriand. Olavinho admi-
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tiu que teria de se comunicar com seus pais, mas declarou ao Dr. Medeiros, categoricamente, que faria todos os esforços, usaria de todos os recursos para não ceder. As últimas palavras do ancião, já de saída e no centro do belíssimo hall de entrada, foram de cautela; sabia que Olavinho tinha pleno domínio de suas emoções, era um homem tipicamente racional. Mas, observou, os negociadores dos Diários Associados levavam vantagem de saída, o primeiro round foi deles. Para complementar, Dr. Medeiros citou um acontecimento típico e bastante conhecido das pressões do Chateaubriand: Pedro Brando era o homem do Henrique Lage, diretor da costeira. Chateaubriand ligou para ele, que tinha luxuoso palacete na Vieira Souto, Rio, uma réplica da Casa dos Contos de Ouro Preto. Disse: “Faça um coquetel aí amanhã que eu preciso convidar umas pessoas ilustres.” Assim aconteceu e, no meio do coquetel, levantou-se, pediu a palavra e num breve discurso simplesmente disse: “Tenho prazer, o privilégio de anunciar aos nossos amigos o que até agora era um segredo entre o nosso homenageado e eu: ele comunicou-me que é doador do Renoir que aqui está ! “Dr.Medeiros, voltando-se para Olavinho: “Não aceite convite dessa gente para nada, invente desculpas mas não compareça, o Chateau é bem capaz de fazer o mesmo com você, percebe?” Passaram-se aproximadamente duas semanas. Olavinho sempre em permanente preocupação com a possibilidade de um novo contato com a gang dos Diários Associados, praga, dizia para si mesmo. No escritório, vida normal, os processos sob sua responsabilidade fluíam bem e só engasgavam frente à burocracia do judiciário. Num final de tarde, preparava-se para ir embora, foi chamado à sala do Dr. Almeida, o sócio de maior peso. O mais idoso também, deveria estar beirando
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os 85 anos de idade: embora ainda lúcido demonstrava fortes sinais de senilidade física. Bem humorado Dr. Almeida recebe Olavinho, manda que se sente, tem certas intimidades com ele, basta dizer que o nosso herói começou a trabalhar no escritório ainda um menino recém-formado. Faz algumas perguntas sobre a evolução dos trabalhos, num dado momento muda de expressão e pergunta : “Que quer o Edmundo Monteiro com você ?” . Olavinho mexe seu corpanzil, procura uma posição melhor, utiliza uma fração de tempo para organizar o que tem a dizer e vai direto ao assunto: “Bem”, começou, “é uma investida para que eu doe ou venda a preço módico três quadros lá de casa. Já percebi que será uma negociação difícil, estou determinado a resistir, sei que essas pessoas, Edmundo Monteiro e principalmente o Chateaubriand são elementos altamente perigosos, chantagistas; aliás isso é notório, aconteceu quanto à compra dos “paulistinhas” para os aeroclubes e está acontecendo agora para melhorar, aumentar o acervo do MASP”. Ajeitou-se na poltrona, sentia certo incômodo. Dr. Almeida o ouviu e sem esboçar qualquer alteração aparente, ele mesmo conhecia o perfil desse pessoal dos Diários Associados, particularmente de Chateaubriand. Pede a atenção de Olavinho: “ Situação difícil, compreendo. Recebi telefonema do Edmundo para interferir junto a você, nosso escritório não tem nenhum relacionamento com qualquer um deles e nem com os Diários Associados, mas podem por vias indiretas nos prejudicar, faz parte dos seus métodos, pressionar alguns clientes, quem sabe os melhores de nossa carteira......”. Olavinho, rapidamente, percebe que a situação está complicada, teria não só de enfrentar o pessoal dos Diários Associados e “mais essa agora, era só que faltava”, exclamou para si mesmo. Apenas
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encarou o Dr. Almeida, esclareceu que entendia o alcance de todo o problema, pediu tempo e lembrou a impossibilidade de decidir, já que o palacete da Al. Santos assim como todos os bens, incluído quadros e peças de arte diversas etc etc etc, pertenciam a seus pais. Assim pretendia ganhar tempo. Saiu do escritório aborrecido e preocupado, pela primeira vez sentiu que sua carreira poderia ser interrompida: desligar-se do escritório. Mudança à vista. Conhecia e muito bem o Dr. Almeida e os demais sócios, numa situação de risco obviamente ele seria descartado, não obstante a sua posição de destaque e até mesmo a possibilidade de montar o seu escritório levando a clientela que atendia há anos. Precisava identificar o jogo de forças, as próximas cartadas seriam as suas, assim entendiam o Edmundo Monteiro e, infelizmente, o Dr. Almeida. “Quem sabe alguém do Harmonia conhece esse pessoal dos Diários Associados”, perguntou para si mesmo, já em direção à sua casa. Precisava de um intermediário para as negociações futuras com Chateaubriand e sua turma, temia perder a calma Chega em casa cedo naquele dia, em vez de subir e preparar-se para o jantar vai direto à biblioteca. Minutos depois chega Anneliese, beija o marido, senta-se a seu lado. O clima está pesado, servem-se de whisky, ambos sentem que precisam conversar. Olavinho, num gesto absolutamente inédito, tira os sapados, espicha os dedos dos pés como num alongamento, passa o braço por trás das costas de sua mulher, aperta-a contra si. Relata com detalhes o que está acontecendo. Anneliese ouve com atenção, por vezes tem vontade de interromper mas recua, deixa que ele termine a história toda. Era o assunto do momento, com suas consequências. Mas a vida prossegue. E surge álibi, indesejável, mas abso-
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lutamente oportuno para Olavinho se livrar dos problemas causados pela pressão do Dr. Edmundo: seu pai é hospitalizado, situação crítica, os médicos desconfiam de câncer no pâncreas. Iniciam os exames, o velho já está em seus 65 anos de idade, ou seja, pelo menos 40 de uso diário de álcool, só mesmo um organismo formidável suportaria essa agressão. Dois dias depois chegou a notícia, até certo ponto bem vinda. Foi identificado tumor benigno, mas que não o livrou de colapso do pâncreas, enfim, estava diabético. Sua mãe surpreende, tem sua vida transformada, de acordo com as próprias resistências passa o tempo todo ao lado do marido, às vezes emendando o dia com a noite. Realmente uma surpresa que pegou Olavinho de saia justa, ele que sempre imaginou seus pais como um casal frio e ligado apenas por interesses comuns, quase sempre a vida mundana e irresponsável. Sem perda de tempo o nosso herói liga para os Diários Associados, simula simpatia e interesse na doação das três obras de arte mas comunica o impedimento acidental, a hospitalização de seu pai. A ligação telefônica e a comunicação foi com o Dr. Edmundo, que disse entender a situação mas, com a malícia dos velhacos, informa Olavinho de que alguns repórteres estavam examinando documentos e ouvindo depoimentos espontâneos sobre as atividades do seu avô no Porto de Santos. Havia dúvidas sobre a formação de sua fortuna, espirraria também na família Guinle, concessionários do porto, enfim, que o resultado desse esforço jornalístico resultará, certamente, num artigo-denúncia n’O Cruzeiro, com evidente repercussão negativa sobre toda a família Gomide. Olavinho respira fundo, era sim uma chantagem típica, depois de certo silêncio, pergunta: “Mas, Dr. Edmundo, o que me garante que, se fizermos as doações,
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essa história não seja publicada ?”. Era a pergunta que Dr. Edmundo gostaria que ele fizesse, a prova de que o jovem advogado também sabia e tinha receios que fosse revelado o histórico do enriquecimento do Dr. Arthur. “Fique tranquilo, Dr.Olavo”, emendou, ....”com as doações o caso será encerrado”. Despedem-se. Olavinho promete obter a assinatura dos pais num momento oportuno e assim ganha tempo, não só para a sua tranqüilidade mas igualmente para obter do Dr. Medeiros as instruções do como agir a partir daquela situação. No escritório e a partir da conversa com o advogado-chefe, Dr. Almeida, Olavinho perde o estímulo, a pancada foi forte demais; enfim, chegou o momento de organizar o seu próprio. Por outro lado, nas conversas diárias com Anneliese , pouco a pouco foi se cristalizando a idéia de sairem do palacete, colocá-lo à venda. Nesse final da década de 50 os imóveis da Alameda Santos, pela proximidade com o centro nervoso da cidade que se concentrava na Av. Paulista e arredores, passou por revalorização, o que representou para o casal e para seus pais como ótima a oportunidade da negociação. Seria a primeira peça do patrimônio a ser vendida, com certeza a mais valiosa de todas sob muitos aspectos.. Decisão obviamente difícil mas necessária, sob o ponto de vista pragmático. O palacete tinha sido palco de quase todos os acontecimentos na vida de Olavinho. Abandonar peça importante de sua história o entristecia, sentia como se estivesse cometendo um ato de traição.. Sem dúvida teve momentos em que quase voltou atrás, principalmente quando lhe vinham as recordações dos tempos de menino, a presença dos avós, a segurança e a beleza do projeto arquitetônico,
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E perderia de vista a biblioteca que amava e que frequentava todos os dias. Nessa casa conheceu Anneliese, que definiu sua vida em termos existenciais, afetivos, nela floresceu o amor dos dois com fortes indícios de ser união para sempre. A saída era racionalizar, decidir como se fosse um estranho. Apesar das reservas financeiras e de todo o patrimônio, de certa forma percebia a negociação como justificativa para cobrir as despesas com a internação do pai: um saco sem fundo, os médicos e os exames estavam consumindo e rapidamente quantias fantásticas de dinheiro, imprevisíveis, que em muitos momentos levaram Olavinho à reflexão de que estaria havendo abuso. Para um hospital e seus médicos a doença de uma pessoa do calibre social dos Gomide não era o trivial. Claro, a enfermidade do Dr. Ricardo era assunto sério demais para ser discutido em termos de custos e despesas, mas, no fundo no fundo tinha um quê de exagero. Olavinho cobria prontamente as despesas, mas, com o sentimento da injúria. A decisão de montar seu próprio escritório e de vender o palacete envolveu Olavinho em sentimentos os mais variados; evidente mudança radical, que exigiria dele e de Anneliese um bom período de acomodação, de ajustamentos. A despedida dos colegas do escritório, alguns tão antigos como ele, a busca de uma nova casa e a montagem do seu escritório criaram frisson inédito no casal: misto de perda, ansiedade pelo novo mas certamente a decisão de ambos, sempre em acordos, fortalecia seu relacionamento. E o problema junto aos Diários Associados perdeu sua força. Pela vida nova e principalmente por sua independência Olavinho tomou a inicativa de ligar para o Dr. Edmundo e informar que os quadros não sairiam de sua casa, ponto fi-
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nal. Que a ameaça de sujar o nome dos Gomide fosse para o inferno, ele mesmo trataria de entrar na justiça para que esse tipo de chantagem tivesse divulgação, acompanhado de um processo para os tribunais. Foi um golpe de choque da malta dos Diários Associados, certamente os surpreendeu de tal forma que decidiram “deixar de lado” essa questão, afinal outras iniciativas não lhes ofereciam resistências nem maiores problemas: suas vítimas, os assediados por Chateaubriand tinham, quase todos, telhado de vidro. Venceu a parada, os 10 anos seguintes, do início das “negociações” até o anúncio da doença que abalou e condenou à morte Assis Chateaubriand, não foi mais incomodado. Dr. Ricardo recebe alta do hospital. Foram mais de quatro meses fora de sua vida normal, de seus hábitos, e estava fisicamente debilitado. Golpe no casal, mudança radical, a presença de enfermeira, remédios e injeções com hora marcada, hemodiálise três vezes por semana, enfim, clima que jamais imaginaram que poderia acontecer. Os problemas de saúde aproximaram os pais de Olavinho a ele e Anneliese, primeiro por solidariedade e apoio mas, com o tempo, através de surpreendente vínculo afetivo jamais imaginável pelo nosso herói. Olavinho e Anneliese agora moravam numa casa no Alto da Boavista, com o conforto e a mesma infraestrutura doméstica que tiveram no palacete da Alameda Santos. Página virada. Quase todos os finais de tarde visitava o pai, sempre se encontrava com Anneliese no apartamento da São Luis e voltavam juntos para casa. Infelizmente Dr. Ricardo não tinha grandes chances de se reabilitar, a doença abrangente agrediu outros órgãos além do pâncreas. O tratamento era
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severo e em muitos momentos foi necessário hospitalizá-lo. Progressivamente encaminhava-se para o óbito, os médicos foram francos e objetivos quando advertiram Olavinho para esse destino. O tratamento alterava-se, a preocupação era de evitar o máximo possível o sofrimento do Dr. Ricardo. Morreu no dia 17 de junho, a cerimônia atraiu somente amigos próximos e parentes, não compareceu nenhum dos habituais companheiros das noitadas, a turma do whisky. Assim aconteceu e D. Maria Pia Godoy Gomide suicidou-se dois meses após o enterro do marido, ingerindo elevada dose de barbitúricos, dos quais era dependente. A imprensa, que emudeceu quanto à morte do Dr. Ricardo, lançou dúvidas as mais instigantes e maldosas sobre a morte de D. Maria Pia, particularmente os tabloides que habitualmente exploravam os casos extraordinários e escândalos, como o suicídio de dama da sociedade. Assim vendiam seus periódicos, que tinham em certas camadas da sociedade a morbidez que lhes rendia lucros. Dizem que até Nelson Rodrigues publicou no jornal Ultima Hora um dos seus “A vida como ela é” baseado na morte do casal paulistano , tendo como empréstimo de Shakespeare a história de Romeu e Julieta. Uma competente adaptação. Golpe profundo em Olavinho. Mas como evitar se ignorava e muito a personalidade de sua própria mãe, suas fraquezas e a sensibilidade que sempre tão bem conseguiu esconder não só do filho mas de todos os que a conheciam. Precisava ele também de afastamento do trabalho. Por sugestão de Anneliese subiram para Campos do Jordão. Lá seus pais mantinham uma casa, que ocupavam somente nos meses de inverno e quando voltavam da habitual viagem à França. Enfim, uma espécie de retiro espiritual, precisava
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mais que nunca de revolver em sua memória as lembranças desde a infância, como fora seu relacionamento com os pais, quais as consequências, que outros atores influenciaram sua vida. Contava com Anneliese nessa viagem interior. Sabia que somente ela poderia, com carinho e atenção, ouvir e clarificar, talvez, passagens de sua biografia que somente a partir daquele momento teriam sentido, poderiam ser compreendidas em seus significados. Na realidade, uma torrente de acontecimentos subitamente invadiu a vida de Olavinho e Anneliese, ambos tinham resistência para enfrentar essa sequencia de frustrações, ameaças, desafios e perdas, demonstravam encarar de frente e de cabeça fria, mas é óbvio que com a vida alterada dessa forma estavam pagando e pesado com forte desgaste emocional; nenhuma solução inteligente seria suficiente para simplesmente apagar todas essas vivências. Hora da verdade, claro, até onde é possível sem a presença de um interlocutor isento, fora do problema, um profissional. Tudo bem mas essa folga das atividades tinham um momento final. Dois meses foram sufucientes. Desceram para São Paulo, Olavinho retomou seu trabalho, Anneliese suas ocupações como dona-de-casa, reestabeleceu os contatos com suas amigas, enfim, o retorno à normalidade. O período em Campos do Jordão foi extremamente benéfico para o casal, reconheciam ambos que nem tudo estava esclarecido e que a vida não é construída de fatos óbvios nem comportamentos previsíveis. A esta altura pouco importavam as causas, deveriam é compreender que não há uma só delas para explicar as relações entre as pessoas, referindo-se aos seus pais e avós, a atitude do Dr. Almeida, a tentativa de chantagem para a “doação” das obras de arte; que a complexidade
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do relacionamento entre as pessoas e o mistério existente em cada um formam o condimento mais importante para tornar as nossas vivências quase aventuras, mergulhos da escuridão. Quem sabe e até mesmo motivo para que as pessoas prosseguissem com suas escolhas e decisões, sob maiores ou menores riscos. Viver é também o fio da navalha. Olavinho soube da demolição do palacete da Al. Santos, imediatamente se dirigiu até lá. Com enorme tristeza e acompanhado pelos fantasmas que coloriram toda a sua infância e adolescência, a presença em imagens de seus avós, de seus pais, dos empregados, dos que desapareceram, de seus sonhos confessados às paredes; mais a informação cínica do engenheiro responsável, ali presente, de que a demolição foi decidida e executada a toque de caixa, já que havia na prefeitura de São Paulo um grupo forte de altos funcionários, todos ligados ao patrimônio histórico da cidade, interessados em tombar o imóvel. Com certo exagero é possível levantar a hipótese de que entre os sentimentos de Olavinho, um dos mais significativos era a da perda das origens de sua própria história, materializada simbolicamente pelo palacete que naquele momento não resistia à ação dos operários e seus instrumentos de destruição. No entanto, as reais mudanças na vida do casal Anneliese e Olavinho viriam em seguida: ela por dedicar-se com um grupo de amigas e pessoas seriamente interessadas no atendimento e amparo às comunidades pobres do bairro de Santo Amaro, na época já com forte contingente de nordestinos em busca de trabalho e pessimamente mal instalados; no caso de Olavinho, com a estabilização das atividades de seu escritório de advocacia, invejável carteira de clientes, atuava apenas como dono, orientador técnico e gestor,
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contando com uma equipe de oito advogados rigorosamente selecionados; tinha o tempo que precisava para dedicar-se à literatura – um sonho que alimentava desde a infância – como colecionador de obras raras e autor de crônicas e contos com histórias tipicamente urbanas, na realidade sempre críticas à alta sociedade paulistana, que tão bem conhecia. Para iniciar-se nesse campo buscou auxílio com o industrial, bibliófilo e reconhecido “expert” José Mindlin, que o recebia em sua biblioteca e o encantava em conversas vespertinas , frequentes, com a presença também de acadêmicos e a elite da intelectualidade paulistana Década de 1970 Otavinho próximo dos 50 anos de idade, homem tranquilo, de bem com a vida, centrado e plenamente satisfeito com suas atividades profissionais e as de seu interesse pessoal genuíno. O escritório bem posicionado no mercado, ele firmando-se como autor de contos, com três livros publicados, todos com aceitação imediata de críticos e leitores. Alguns temas comprometidos intelectualmente com ideias de esquerda, retratando personagens de ficcção mas perfeitamente identificáveis com “la crème de la crème “ da sociedade paulistana, a burguesia dominante. Logo ele, que físicamente e por hábitos era um excelente representante dessa classe tão penalizada moralmente pelos esquerdófilos, sim, um típico burguesão paulistano. Curioso disparate. Como sabemos, alguns por pesquisas históricas e outros, os mais velhos, por terem vivenciado essa época do cenário brasileiro, com o presidente Médici o governo federal passou a ser mais rigoroso e agressivo com os adversários políticos. O país ingressou de fato no regime da opressão, das
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perseguições, dos abusos à cidadania, prisões , afastamentos do serviço público – principalmente nas universidades federais e estaduais --, tortura e assassinatos; a saída foi o exílio de atores que poderiam ser obstáculos ou mesmo figuras indesejáveis, estorvos aos objetivos dos detentores de plantão do poder no país. E assim foram cometidas injustiças, bastava uma delação, o chamado dedodurismo, para que uma pessoa fosse incomodada pelos agentes da polícia política ou das forças armadas, em processos inquisitoriais. Somente depois do regime de força vieram à luz pelos depoimentos de centenas de cidadãos que, por livre e espontânea vontade, contaram sobre as pressões, ameaças, coações e toda sorte de maldades dos agentes da ditadura , contrariando até mesmo leis universais de defesa dos direitos humanos. Na verdade, só mesmo o período da ditadura de Getúlio Vargas teve paralelo em selvageria e crimes contra a humanidade como os praticados de 1964 a 1985, particularmente no início da década de 70. E o círculo de amizades de Olavinho, formado a partir dos anos escolares, passando pelas suas atividades como advogado, relações sociais na vida dos clubes e ações no campo literário, não tinham cor partidária, era um conjunto de pessoas das mais variadas camadas sociais, de níveis de cultura e finesse social, que por interesse se abstinham de qualquer forma de manifestação política ou preferiam quedar-se à margem dos funestos acontecimentos dessa fase histórica.. Olavinho diferia de todos eles, acompanhava e com atenção, pelos mais variados canais de comunicação, o que estava acontecendo nos porões das instituições de segurança. Teve a ingrata revelação de que muitos perseguidos políticos tinham sido seus colegas da faculdade de direito, ou os
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conhecia pelas lides profissionais. A partir dessa consciência tomou a corajosa decisão de amparar essas pessoas, como advogado ou mesmo colaborando para que escapassem das garras dos seus detratores. Em diferentes ocasiões abrigou em sua casa pelo menos meia dúzia de pessoas, para umas conseguiu burlar a vigilância e facilitou o exílio, para outras simplesmente serviu como abrigo temporário, tão somente. A OBAN e o delegado Fleury eram a bola da vez em São Paulo, uma situação criada pelo autoritarismo e que simplesmente amarrava a justiça, os presos políticos simplesmente sumiam ou reapareciam como cadáveres de indigentes, uma realidade que só conseguiu chegar ao conhecimento público na década seguinte. Os advogados tinham poucas possibilidades de formar processos, pelas dificuldades impostas pelo regime e também porque corriam o risco de serem apontados eles mesmos como subversivos. Foram anos de chumbo e de triste memória. Olavinho procurava, com seus esforços pessoais e talento para a interpretação dessa realidade, burlar toda essa blindagem política e policial, nem sempre com resultados satisfatórios. Certamente influenciado por essa impotência passou ele a sofrer de certos problemas que o deixavam com tremendo desgaste emocional, desconforto mental e distúrbios de afetividade. Intervenção médica foi necessária e a recomendação de que se afastasse temporariamente do trabalho, se possível fora da cidade de São Paulo. Escolheu a casa de Campos do Jordão, mas sem Anneliese, que naquele momento estava assoberbada como responsável por alguns projetos sociais na favela do Carmo, local que escolheu para seu trabalho voluntário anos atrás. E assim aconteceu. Nesse exílio solitário Olavinho aplicou-se integralmente no preparo
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de um livro , tendo como pano de fundo a situação criminosa imposta pelo governo autoritário dos militares e seus colaboradores, suas consequências sociais e econômicas para cidadãos identificados como inimigos do regime, enfim, os que simplesmente foram tirados de circulação via manu militari. Alguns desapareceram, outros foram libertados mas em petição de miséria e a grande maioria continuava atrás das grades ou no exílio. Enfim, férias com dever de casa contrário à sua necessidade de relaxar, que não conseguiu, mesmo tendo como moldura o seu paraíso particular na serra da Mantiqueira. Ousadia também, Olavinho tinha consciência de que a edição desse livro não poderia acontecer às escâncaras. Percebia que estava registrando para o futuro o seu testemunho sobre as desgraças de uma etapa historicamente importante sobre os governos militares, particularmente a do atual presidente: sem dúvida o que marcou com maior agressividade a passagem dos governos militares . Passou quatro meses somente envolvido com suas histórias, todas baseadas na realidade e com condimentos ficcionais que as tornavam mais digestíveis, interessantes. Anneliese subiu nos primeiros fins de semana, somente, mas comunicavam-se quase todos os dias por telefone, com muitas dificuldades: o sistema telefônico em todo o país era precário, falho e obrigava os interessados a plantões intermináveis junto aos aparelhos. Olavinho recebia de sua mulher autênticos relatórios sobre seu trabalho junto aos pobres da favela, reconhecia no empenho de Anneliese a revelação de autêntico e progressivo interesse pelas causas sociais. Mas por vezes julgou excessivo o espírito de solidariedade de sua mulher. Depois de bom período em Campos do Jordão, o livro pronto para a revisão, estava mais que na hora de suspen-
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der seu afastamento do escritório, voltar à sua vida em São Paulo junto ao seus comandados, sua mulher e ao social que se restringia a um grupo pequeno de amigos, infelizmente cada vez menor no curso do tempo. Eram três da tarde, Olavinho tinha almoçado num restaurante na Abernéssia , acordava do habitual cochilo que sempre buscava compensar as noites insones, pois o nosso herói avançava madrugada a dentro quando lia ou escrevia. E resolveu interromper o exílio voluntário, sentia-se bem, tranquilo; chamou os empregados, fez rapidamente sua mala, desceu a serra com a habitual cautela dos prudentes, Chegou em casa pelas seis da tarde. Seu Amoroso, o jardineiro, abriu o portão, Olavinho chegou à garage por caminho ladeado de flores mas que nada lembrava os do palacete da Al. Santos: eram retos, combinando de certa forma com a arquitetura modernosa da casa, apenas uma curva permitia que os carros entrassem na garagem sem manobras. Impossível esquecer dos jardins tão bem cuidados pelo seu João, que chamava D. Permínia sempre que os botões das rosas começavam a se abrir; ela simplesmente adorava participar, ainda que como testemunha, desse encanto da natureza. Frequentes as lembranças de suas brincadeiras, com os raros colegas do Dante que convidava para ir à sua casa, as brincadeiras não aprovadas pela sua avó, sempre invadiam o espaço das flores, invariavelmente danificadas pelos pega-pega, esconde-esconde, e que lhe valiam repreensões de D. Permínia, quando sabia das coisas pelo seu João. Os porões do palacete eram sempre misteriosos, o sótão sempre trancado estimulava a imaginação de Olavinho e seus amigos sobre a existência de baús e os guardados, com documentos e fotos, como nos filmes ingleses de mistério e os livros policiais de Edgar Wallace
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e Agatha Christie. Percebia, já entrando firme na avançada idade de 50 anos, que o seu futuro seria curto em relação ao passado, momento em que as recordações assumem outro significado, cada acontecimento, cada personagem da vida real assumia em sua percepção muitos sentidos, as evocações tornavam possível entender, à distância e baseado em evidências, o que realmente aconteceu em sua história pessoal e social. Essas revelações, embora sob o filtro de sua interpretação, muitas vezes, traziam à luz insights preciosos e Olavinho anotava as passagens mais interessante para, quem sabe, torná-las base de suas histórias . Era assim que entendia o escrever, tinha especial interesse em combinar sua imaginação com fatos reais suportados nos acontecimentos que ele mesmo tinha testemunhado ou, até mesmo, vivenciado. Anneliese cada vez mais mergulhada em seu trabalho social tinha descoberto um mundo mágico mas tragicamente regado pela fome, doenças, sofrimentos, vãs esperanças , a vida de cada nordestino migrante, o seu meio social e as famílias, que lembravam de perto o que tinha acontecido em regiões sofridas pelas guerras, na Europa e em grande parte da África; um brasileiro de cara diferente, também diferente pelo uso de expressões regionais e modulação quase musical no falar, hábitos alimentares, expectativas de vida e religiosidade. E chegavam a São Paulo em condições físicas precárias, semanas de viagem sem conforto e o pior, não eram bem recebidos pelos paulistanos que os discriminavam de forma agressiva, como se a cidade estivesse sendo invadida por indesejáveis malfeitores. Eram chamados de cabeça chata, calça branca, baianos, sempre com sentido pejorativo. Poucos percebiam que a cidade se agigantava para os lados e principalmente para cima em formidáveis arranha-céus, e que era essa gente a bucha do canhão
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que as empresas construtoras precisavam para baratear o custo da produção, fato que também acontecia outros setores da economia. Desprezavam a percepção de que muitos desses migrantes, até certo ponto assemelhavam-se com os descendentes de italianos, portugueses, alemães, judeus......enfim, dos filhos e netos dos que também chegaram ao sudeste brasileiro com a bunda de fora e hoje faziam parte do colorido étnico da cidade, ganhavam gradualmente posições na hierarquia sócio-econômica da cidade. 1975
Horror, os crimes das forças da repressão estavam sendo largamente divulgados nos bastidores sociais, um deles assumiu o nível do escândalo e da indignação extremada: a morte do jornalista Herzog. Suicídio ! diziam os arautos da repressão. Enfim, mentira impossível de ser sustentada. Olavinho recebeu a notícia em seu escritório, sentiu suas pernas tremerem. Vladimir Herzog era um dos seus interlocutores culturais e suas opiniões tinham o peso de diretor de jornalismo da TV Cultura de São Paulo. Além da indignação e o estupor, embora Herzog pertencesse ao Partido Comunista, a ameaça depois desse trágico episódio poderia se estender e atingir qualquer cidadão muito mais ainda, os códigos da justiça estavam sendo escandalosamente rompidos há vários anos. Imediatamente José Mindlin renunciou ao cargo de secretário de cultura do Governo do estado de São Paulo, criando clima nada agradável para o então governador Paulo Egydio Martins, aliado dos repressores mas que se identificava como democrata e liberal. Não dava para entender. E, para complicar mais ainda a vida do nosso herói, o contato com um dos diretores do departamento de geriatria
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do Hospital das Clínicas, seu amigo Dr. Romero Dantas: Anneliese foi submetida a exames, sentia confusão mental, cefaleia, tonteiras, já não ia mais trabalhar sozinha, muito menos dirigindo seu carro, sequer ficava fora do campo de observação do seu Givaldo, motorista do casal. Apresentou meses antes perda progressiva de memória para fatos recentes, não sabia dizer onde tinha estacionado seu carro, muito menos se tinha almoçado. O diagnóstico foi incisivo, cruel: sofria de patologia relacionada à senilidade precoce, Parafrenia ou Mal de Alzheimer. Devastador para Olavinho, um baque muito forte, Anneliese sempre revelou inteligência brilhante e disposição olímpica para o trabalho, sobretudo na sua grande paixão que foi a melhoria da qualidade de vida da comunidade do Carmo. Começou com a formação de unidades sociais participativas, mesmo sem simpatias pela Igreja Católica fez parceria com seus membros, também focados nos problemas gerados pela migração nordestina e suas consequências. Anneliese foi parceira também na correção de rascunhos dos livros de Olavinho, em muitas oportunidades venceu o próprio autor para a alteração de períodos e uso de expressões, em benefício da compreensão, pureza do estilo, de melhor pertinência. Dominava o português melhor que o marido. O prognóstico da doença foi mais desanimador, já que esses quadros de demência degenerativa são progressivos, incuráveis, jamais regridem, nem à custa de medicação ou trabalho clínico-comportamental; estes atuam somente como paliativos, coadjuvantes. Ou seja, nada mais que sentença de morte lenta com data ignorada do desenlace definitivo. A primeira providência, recomendada pelo Dr. Dantas foi que contratasse enfermeira especializada no cuidado desse tipo de enfermidade, uma vez que com o tempo a paciente ten-
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deria a sérias dificuldades mesmo para as mais simples funções, como ir ao banheiro ou se alimentar. No entanto, não delegou à contratada o atendimento noturno, se fosse o caso, pretendia dormir com sua mulher na mesma cama que testemunhou o início do seu romance. Não por muito tempo. No início Anneliese tornou-se irritada com a presença de D. Hermínia; mas, entendendo-se em alemão com a paciente, a enfermeira, catarinense e filha de alemães, conquistou sua aceitação em pouco tempo, revelando em seu trabalho severa disciplina mas paciência tibetana e sensibilidade tocante. É possível afirmar que o desencanto de Olavinho com as questões políticas e suas consequências criminosas — embora o recém-eleito presidente Geisel estivesse dando sinais de abertura — tenha influenciado sua decisão de morar em Campos do Jordão, sair da metrópole. Na realidade essa mudança atendia a muitas outras necessidades como condições ambientais e sociais, enfim, manter excelente qualidade de vida com seus rendimentos e patrimônio; o escritório foi negociado com os advogados, seus subordinados até então, com o compromisso de apoio jurídico, caso necessário, sobretudo quanto a procedimentos cartoriais. Fora de São Paulo e numa cidade das dimensões de Campos do Jordão, independente da beleza de todo o ambiente serrano, poderia dedicar-se à sua formidável paixão: escrever, escrever, escrever...... 1980
Tristeza. Anneliese estava na etapa final da doença, não mais se levantava da cama, passava quase todo o tempo em posição fetal. A alimentação através de cateter, precária; dependia totalmente de D. Hermínia. Numa tarde fria, agosto, Olavinho voltava de carro de São Paulo, foi informado quando
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atravessava o jardim que Anneliese vivia seus últimos momentos. Subiu aceleradamente os dois lances da escada, entrou no quarto onde estava sua mulher, tarde demais, ela havia morrido poucos minutos antes. No dia seguinte cedo, somente ele, os empregados de sua casa e D. Hermínia acompanharam o enterro de Anneliese. De volta para casa foi envolvido por sentimento misto de horror, perda, derrota e revolta, sabia como todos os mortais que a vida tem um fim, mas não entendia como o destino pôde ser tão cruel com sua mulher. Nas raras vezes que esteve no hospital, exatamente no pavilhão destinado a pacientes com enfermidades degenerativas, orientado pelo seu amigo médico observou pacientes nas diferentes fases das doenças degenerativas. Portanto, sabia que o inevitável iria acontecer com Anneliese, mas assim mesmo sentia dificuldades de racionalizar a situação, sentia-se indefeso. Conseguiu a duras penas manter-se em equilíbrio. Se estivesse morando no palacete da Al. Santos, provavelmente teria os fantasmas do passado como apoio; quando menino recorria à biblioteca quanto tinha problemas, fechava-se e em parceria com o ambiente, as gigantescas estantes de livros, a mesa de trabalho do avô, era ali que reencontrava as próprias forças para seguir adiante, como se as peças tivessem significado e cada uma delas fosse o ponto de apoio para superar-se. Tinha um carinho extraordinário pela casa de Campos do Jordão, que também fez parte de suas vivências e fantasias de toda a sua infância e adolescência, mas não era sequer comparável nos significados com a solidez da casa dos avós. 1982 205
D. Hermínia, assim que Anneliese morreu, foi convidada por Olavinho a permanecer na casa, precisava de uma
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pessoa como ela para tomar conta das atividades domésticas. Foi difícil a decisão da alemazinha de Sta. Catarina, já que tinha se preparado anos e anos para ser enfermeira, tinha real interesse em cuidar de pessoas necessitadas, doentes e fragilizadas, mas a proposta era tentadora, na medida em que com o tempo criou raízes com a cidade de Campos do Jordão, participava até de um pequeno círculo de alemães e descendentes num bairro próximo. Além disso, o clima e a vegetação desse ponto da serra da Mantiqueira eram excelentes motivos para a sua permanência: aprendeu desde muito menina a valorizar e amar a natureza; enfim, e por outro lado voltar para São Paulo e seu agito de megalópolis, restabelecer contatos para a aproximação com eventuais pacientes, as mesmas dificuldades que já experimentara; voltar para Brusque, casa dos pais ? Nem pensar, já que tinha sido praticamente expulsa por eles duas décadas atrás, quando descobriram seu romance com um rapaz considerado pelos locais como “persona non grata”. Depois de muito pensar, num final de tarde procurou o patrão e juntos acertaram os ponteiros. Olavinho voltou à sua rotina diária, recebia amigos de São Paulo, os hospedava e a frequência com que era visitado tornava cada vez mais distante a necessidade de ir a São Paulo em busca de contatos com a civilização, com editores e livreiros; não raro acomodava em sua própria cama mulheres intelectualizadas, liberadas, a prova de que a cultura é sim afrodisíaca e libertadora, estimulava a generosidade feminina e a busca do prazer sem neuroses. Não raro também a insinuação de muitas de suas convidadas para que mais uma vez estabelecesse vínculo matrimonial, afinal era um sessentão “bem apoanhado, saudável e pessoa extremamente interes-
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sante, saudável e de boa convivência; certamente precisava de uma companheira à altura, permanente. Mas as artimanhas femininas não funcionavam com Olavinho, ele tinha a clara consciência de que a essa altura de sua existência não estava interessado em correr riscos, quaisquer que fossem. Será? Inverno rigoroso naquele ano. Curiosamente, quanto mais frio mais turistas e moradores eventuais subiam a serra. Campos do Jordão já estava caracterizada e conhecida, sobretudo no inverno, os hotéis eram integralmente ocupados, havia na atmosfera um quê de vaidade, exibicionismo e empáfia, a fina flor paulistana corretamente vestida desfilava com seus carrões de luxo, frequentava os restaurantes sofisticados e de preços elevados. Sim, Campos do Jordão era “point” de paulistanos endinheirados. Imóveis supervalorizados, em muito pouco tempo a cidade oferecia hotéis, restaurantes, enfim, comércio de alta qualidade, grifes internacionais, eventos comerciais e culturais. O festival de música dos meses frios enfeitava mais ainda a cidade e a coloria com jovens das mais diversas procedências do país, as exibições de virtuoses solos ou em formação de câmara, orquestras e maestros famosos, professores de música com aulas de aperfeiçoamento, sobretudo, enfim, todo esse conjunto e suas exibições públicas ofereciam mais atrativos à cidade, atrativos de alta qualidade. 1983
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23 horas. Olavinho guardou os papéis datilografados, fechou a máquina de escrever, levantou-se com o apoio das mãos sobre a escrivaninha. Além de estar muito acima do peso tinha passado quase duas horas e meia trabalhando sem interrupções, sentia as pernas adormecidas. Apesar do frio
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desestimulador resolveu tomar uma ducha. Subiu ao seu quarto, ligou o aquecedor, quinze minutos depois o nosso herói já estava deitado, perfumado e aquecido. Desligou o abat-jour, imediatamente o quarto todo tornou-se azulado: poderoso luar inundou todo o aposento, entrando por uma das janelas laterais. Poucos minutos depois, o barulho da maçaneta da porta do quarto chama sua atenção. Atento e de certa forma surpreso, viu entrar Anneliese, como sempre aparecia quando o romance dos dois estava ainda em segredo, lá no palacete. A figura feminina aproximou-se, para Olavinho pura alucinação. No entanto, quando sentou-se na cama ao seu lado, e em seguida meteu-se debaixo das cobertas, percebeu que se tratava de D. Hermínia. Magicamente deixou que ela se aproximasse mais ainda, colassem os corpos. Silenciosos, selaram com um beijo prolongado os seus estados de graça. Beijaram-se, despiram-se rapidamente e fizeram amor sem pressa, afinal a noite toda era somente deles. Quem sabe o futuro................ também.
ENDE MIT BESTEM GRUSS cf-requiao@bol.com.br Fazenda Itauna, Itu SP Nov. 2012
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Campo minado, apenas uma crônica
Rio de Janeiro, 1974 Seis e meia da tarde. Haroldo entra em casa, procura não fazer barulho. Percebe que Guiomar está na área de serviços cuidando das roupas. Aproxima-se, abraça a sogra pelas costas, imediatamente levanta a parte direita de sua saia , beija sua nuca úmida de suor, acaricia a coxa gorda e sedosa; sim, 45 anos de idade e a “velha” ainda conserva e muito bem seu corpo, suas formas. Tranquiliza-se, ela apenas cita seu nome num sussurro: também aguardava aquele momento com ansiedade e desejos. Claro, situação por eles tramada há muito tempo, não conseguiam mais retardar, ensandecidos pelos impulsos rústicos que os perseguiam há tempos. A decisão não foi�������������������������������������������� fácil, ������������������������������������ complicada pelas circunstâncias, tinha de partir de Haroldo que projetou esse encontro carnal com o rigor de uma pesquisa, em seus mínimos detalhes, principalmente na certeza de que Tereza, sua mulher, não os flagraria: ele sabia que casos parecidos com esse tem grandes chances de terminar em baixaria. Os sinais que Guiomar vinha emitindo, particularmente nas últimas semanas, tornaram-se fortes estímulos: olhares, sorrisos, demonstrações exageradas de simpatia, certos trejeitos, um pouco dos seios à mostra, leves encostadinhas
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sempre que estavam a sós. Ele devolvia esses estímulos com muita moderação, emudecido, manifestando para ela em expressões faciais suas preocupações, não eram poucas. Mas, sim, progressivos assentimentos, modestos mas progressivos, não raro afast������������������������������������������� ava-se da presença dela encharcado em hormônios. Cúmplices há algum tempo e, neste momento, a consagração definitiva, a prova dos nove, finalmente o prazer. Viram-se de frente, olhos nos olhos, beijam-se na boca com leves toques seguidos de intensa sofreguidão, tal qual dois amantes adolescentes em fase explosiva. Num segundo momento, seguro da absoluta aceitação de sua investida, Haroldo tenta dizer alguma coisa. Guiomar coloca dois dedos à frente de seus lábios: não era hora de conversa mas de satisfazer a loucura de ambos, a realização de sonhos, expectativas em noites insones, encanto e magia para ela; estavam absolutamente entregues à bestialidade, os suores se misturavam e empapavam suas roupas, os odores das regiões pélvicas, sobretudo o cheiro forte das virilhas subia quente, sim, os odores do sexo e incontinenti se incorporavam ao movimento dos corpos; Haroldo, em seus 35 anos de idade, nunca sentiu tanto desejo e de forma tão louca mas........... maravilhosa. A esta altura já tinham tirado boa parte das roupas, estavam na sala, deitam-se no sofá. Totalmente despidos entregam-se à devassidão de um sexo descarado, envolvendo cada centímetro de pele, tornando cada órgão agente do gozo, as bocas passeavam pelo corpo um do outro, dos seios dela à genitália dele, prazeres absolutos para os amantes. Plena satisfação, há muito tempo Haroldo não conseguia se controlar, neste momento mágico esperou que sua parceira chegasse ao ponto certo. E que diferença de sua mulher, Tereza, sempre fria e cumprindo apenas uma
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formalidade, isso desde a lua de mel. Passada a refrega, mais tranquilos, silenciosos tratam de eliminar as provas do ”crime” e, em seguida, submetem-se a purificadora chuveirada. Tereza chega em casa pelas oito da noite; três dias na semana frequentava aulas de ginástica. Saia do trabalho e se dirigia diretamente à Academia Steve Reeves, uma das primeiras do Rio com departamento feminino, exclusivamente para elas, próxima de sua casa, ali mesmo na Vinte e Quatro de Maio. No entanto, usava esse pretexto também para ocultar o romance que vinha mantendo com um dos proprietários da RealVolks, caso já com oito anos: tornaram-se amantes desde que foi por ele admitida na empresa. Tinha esse cacho, portanto, antes de conhecer e casar-se com Haroldo; entendia que seu relacionamento amoroso com Elias nada tinha a ver com a decisão em aceitar a proposta de casamento, casar. A convivência de ambas as situações, pelos seus conceitos, nada tinha de controverso ou imoral. Oito e meia da noite, Haroldo e Guiomar estão na copa; conversam, esperam Tereza para o jantar; ela chega e vai tomar uma ducha, em poucos minutos os três jantam, cena que se repete quase todos os dias naquela casa de vila, bairro do Riachuelo. Os assuntos dos três em conversa habitual não denunciam nada , são relativamente bons atores. Claro, o caso amoroso de Tereza com Elias é ignorado pelo marido e pela mãe. E, a certa altura da conversa, que geralmente trata de assuntos triviais, Guiomar lança algumas críticas sobre o trabalho da diarista Clotilde que, ultimamente, está muito relaxada, abusada, esquece suas responsabilidades, não faz direito o serviço, parece trabalhar com extrema má vontade. Emenda Tereza, “depois que passou a namorar aquele cafajeste, vigia do supermercado, perdeu a cabeça e só
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pensa nele, enfim, está tomada pelo capeta. É o que acontece com quem só pensa em sacanagem,”. Haroldo ensaia um comentário mas recua estrategicamente, engole as palavras. Guiomar serve o cafezinho, pondera que uma relação sadia, um casal que se entende em todos os sentidos, pelo contrário, leva essa satisfação não só para o trabalho mas também para quase todas os aspectos da vida. Tereza acende cigarro, solta baforada, afirma como se fosse a consultora da serviçal: “Aí é que está o problema, quando as coisas dão certo, tudo bem; no entanto no caso da Clotilde está na cara que há problemas com eles, o cara é casado, de repente pode pintar uma merda qualquer. Ela está abilolada”, sentencia. “Ou será que estou falando grego ? É gente sem estrutura, fraca”. Passam-se dias, semanas, pouca alteração nos hábitos “amorosos” desses três personagens. No entanto, como sempre acontece com o comportamento das mulheres nessa situação, Guiomar passa a se preocupar com sua pele e seus cabelos: de desalinhados, sem trato, depois de duas sessões no Salão da Marisa, ali na esquina, moldura sua beleza que ainda preserva algum viço. Claro, essa súbita mudança, não só na aparência mas também no temperamento da mãe, agora mais sorridente e em paz com a vida chama a atenção de Tereza, que a examina com certa curiosidade velada. “Será que ela viu passarinho verde ?”, pergunta para si mesma. Com Haroldo Guiomar procura se apresentar arrumada; há duas semanas ele, analista de sistemas no Banco do Brasil, tinha sido transferido para o turno da noite. As sessões amorosas aconteciam quase sempre na parte da manhã. Melhor para ambos, aumentou a impossibilidade de Tereza flagrá-los. Mas, também como consequência desse affair, iniciam-se cobranças que revelam o avanço dos aspectos
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afetivos e os sentimentos de posse, pelo menos por parte de Guiomar. Inevitável em nossa cultura. Ele, muito mais displicente quanto a essa questão, apenas preocupa-se com seu relacionamento como marido, já que na privacidade procurava Tereza com muito menos frequência. Demonstrações de carinho cada vez mais raras. Poderia ser significativo sinal para a descoberta de tudo. Nessa questão as mulheres são altamente intuitivas. Tereza já tinha comentado com ele as mudanças na mãe, levantou até a possibilidade dela estar em flerte com alguém. Depois da morte do pai num acidente de carro, uma tragédia que abalou os três dois anos atrás, a mãe desligou-se de suas amigas, chegou ao extremo de não mais arrumar-se, não saia de casa, apresentava-se com as roupas de sempre, já em estado lamentável; perdeu interesse em assistir as novelas na TV que antes tanto a encantavam. Para Guiomar o desvairado encontro sexual e seus capítulos na sequencia religaram a sua autoestima, foi um acontecimento estranho e ao mesmo tempo gratificante, fora a satisfação carnal que Haroldo, com o vigor da sua juventude, lhe proporcionava. No entanto, ambos os amantes tinham consciência dos riscos desse relacionamento, afinal Tereza estava no âmago da questão; com cada vez mais frequência Guiomar pressentia o final desse sonho, apenas um sonho repetia para si mesma, mas que surpreendentemente poderia se transformar no inferno, num pesadelo. O preço estava sendo elevado demais, se de um lado admitia com certa amargura antecipada um “the end” -- não seria possível esticar essa vida clandestina por muito tempo --, admitia igualmente que eram relações prazerosas em muitos sentidos. A perseguição de um sentimento do nunca mais após a morte do marido, fora o clima afetivo que tanto a conforta-
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va, formando uma polaridade fantástica. Voltar à situação de antes, impossível. Precisavam conversar e temia que Haroldo sugerisse que dessem um tempo. E se fossem flagrados, se Tereza aparecesse no exato momento em que estavam juntos ? E se Clotilde, de repente, abrisse a porta do quarto ? Não era só isso. Guiomar cobrava de Haroldo atenção para ela em tempo integral. Tinham conversado a respeito. Ela insistente, ele esquivo. Dilema para ambos. Haroldo tinha menos preocupações sobre toda a questão. Percebia essa cobrança gradual de Guiomar mas julgava tratar-se apenas de firulas do comportamento feminino. Sabia, tinha consciência de que não poderiam estender essa loucura por muito tempo. Fatalmente. Dos Correios para Guiomar: raramente recebia cartas, apenas informações comerciais, propaganda, eventualmente avisos sobre débitos nas raras compras a prestações. Era um envelope cor-de-rosa, lá estava corretamente o seu nome completo e, claro, da remetente, que no primeiro momento a intrigou.���������������������������������������������� Só pod��������������������������������������� ia ser algum parente do seu Elias. Monteverde, sobrenome pouco comum neste nosso mundo de Silvas , Sousas, Pereiras....... Dez da manhã, o almoço estava sendo preparado, Guiomar tira o avental, senta-se na sala defronte da televisão. Pega a tesoura que está ali do lado, na cestinha de costura, abre o envelope, começa a ler: perplexidade crescendo à medida que avança na leitura, até mesmo com alterações físicas, suor súbito e excessivo nas mãos, taquicardia, certa tremedeira. Levanta-se, corre até a copa e toma um copo de água com açúcar. Volta para o sofá, lê a carta pela segunda vez . Atenta, percebe com dificuldades o que está lendo. Mais uma vez examina o envelope, lá está a remetente, que ela
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conheceu certo fim de ano, quando a RealVolks ofereceu festa aos parentes dos funcionários: Sarah Monteverde, uma senhora idosa, talvez beirando os 50 anos. Na carta a descoberta e como aconteceu, a certeza de que sua filha Tereza mantinha um caso amoroso com Elias, até mesmo certos detalhes, flagrantes, que tornavam a descoberta irrefutável. Fora isso, a confissão do marido que, frente aos fatos, não teve condições de escapulir. Guiomar tem como primeiro impulso telefonar, conseguir o número do telefone da remetente, quem sabe marcar um encontro. Saber dos detalhes. Rapidamente desiste, afinal conversar o quê, já que nas letras o caso se estampa com todo o seu assombro. Sim, emendou para si mesma, Haroldo, Haroldo.....mas temia por uma reação adversa que desandaria certamente com a situação que estava sendo vivida pelos dois, acrescentaria mais problemas, seria mais uma desgraça, quem sabe discussões, brigas, a vizinhança se assanharia, enfim, imprevisível, preocupante demais. O que fazer, como agir, em quem se apoiaria ?. Chamar a filha e abrir o jogo, direta, procurar entender o que estava acontecendo; que tipo de relacionamento tinha Tereza com Elias ? Quem sabe juntas traçam saídas para resolver o imbróglio. Afinal, ela com menos de 30 anos de idade e ele já na segunda metade dos cinquentinha, suspirou. Ela, a filha e o genro formando um trio complicado, um problema acumulando incógnitas, e ainda por cima mais esta bomba, a família Monteverde, a RealVolks, funcionários, diretores, escândalo, o pessoal da Vila ! Guiomar por empatia sensibiliza-se pelo drama da outra esposa e mãe, tem consciência de que ela e eventualmente alguém mais de sua família, talvez, sofram essa desdita. Menos piedosa com Elias, para ela a causa de
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tudo. Como mulher e como mãe sente enorme tristeza em seu interior, precisa rever o que vem acontecendo consigo , o casamento equivocado de sua filha com Haroldo, cada problema com seu peso, com seus pecados.. Haroldo almoça às duas da tarde, ambos almoçam, clima pesado: ele sai em seguida, tem de ir ao mecânico, sempre precavido, metódico, faz com disciplina a manutenção preventiva do carro. Guiomar, subitamente, resolve falar com Elias, apostaria tudo para ver essa situação como coisa do passado, superada, resolvida sem danos. Com D. Sarah poderia ter um segundo encontro, daí e já com o envolvimento de Elias em busca de uma solução , restaria às mães alguma perspectiva, talvez o afastamento de Tereza da RealVolks como ato extremo. Ela era competente como secretária, imagem unânime na empresa e que chegou ao seu conhecimento, a busca de um outro emprego seria como a piada, a de retirar o sofá da sala, mas afastamento esse conveniente, oportuno, dependia apenas de apoio de um dos pivôs, exatamente Elias, tirar dele o compromisso de romper o relacionamento com Tereza, fim de papo. Nunca em sua vida Guiomar se deparou com questão tão complicada, dois anos antes da morte do Germano recebeu telefonema anônimo informando que ele tinha um cacho, era uma aluna do Instituto de Educação. Injuriada, ofendida em seu amor próprio, teve igualmente que se mexer para resolver as coisas mas, felizmente e de forma inusitada, descobriu que era apenas trote maldoso uma mulher com problemas mentais, uma de suas vizinhas. Praticamente impossível contato telefônico com Elias. Tereza é a sua secretária e filtro das ligações telefônicas na RealVolks: como se apresentaria ? Seria, é evidente, facil-
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mente identificada pela filha. Quem deseja falar-lhe ? Conversando com Tereza, como quem não quer nada, soube que o distinto era severo cumpridor de horários e compromissos, com hábitos inalterados há anos. Invariavelmente, com chuva ou sol, largava o trabalho às seis da tarde em ponto; antes de ir para casa encontrava-se com amigos no Clube Caiçaras onde era um dos diretores, por lá permanecia em torno de hora e meia. Exceção para os dias que, em vez de cumprir essa formalidade diária, seu compromisso era com Tereza, pelo menos duas vezes por semana, segundo a carta de Sarah. Sim, a saída. Precisava apenas de um álibi, uma explicação convincente para se ausentar exatamente na hora do jantar. Inventou consulta médica. Aliás, Tereza há tempos insistia que ela consultasse um ginecologista. Estava resolvido. Iria até o Caiçaras, faria plantão e encontraria Elias na saída do clube. Isso ! E se ele estivesse na companhia de amigos ? Assim mesmo, concluiu para si mesma; não podia em hipótese alguma perder na primeira tentativa. Assim aconteceu. À tardinha Guiomar dirigiu-se a Ipanema, fez baldeações, montou guarda pelas 7 e meia: postou-se atenta próxima à entrada principal do clube, protegida por generosa árvore , de onde podia observar com segurança as pessoas que chegavam e saiam. Lembrava-se bem do Elias, apesar de tê-lo visto apenas uma vez . Era alto e esguio, vestia-se corretamente, seus gestos quando cumprimentava as pessoas eram comedidos, algo ensaiados. Mas, sem dúvida, uma bela figura de cinquentão. Não deu outra, ele apareceu entrando na balsa às oito h������������������������������������������������������������ oras, parecia estar despreocupado; muito diferente da situação de Guiomar que se continha, o coraç������������������ ão aos saltos����� , super ansiosa, controlando-se com dificuldade. Uma só hipó-
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tese, resolver o problema falando diretamente com o amante da filha. Elias dirige-se ao seu carro, Guiomar enche-se de coragem e se aproxima. Imediatamente se identifica. Mãe de Tereza ! Surpresa , Elias para, perplexo. Não mexe um só dos músculos do rosto. --- Precisamos conversar. Tem de ser agora ! Guiomar. Definitiva. Elias sente-se exposto, estranho e desagradável sentimento de estar naquele momento sendo acuado pela mãe de Tereza; defensivo, acenou com assentimento positivo. Essa situação ele já tinha previsto quando Germano estava vivo, mas jamais poderia imaginar da parte da mãe de Tereza. Pela própria amante tinha imaginado o perfil de Guiomar como pessoa sem iniciativa, passiva e conformada, até mesmo com a morte do marido. O complicado e perturbador enfrentamento com Sarah e ainda mais essa ! Recupera-se rapidamente, cabeça fria; presunçoso permite-se supor que se tratava apenas de uma reação materna, sem consequências danosas, o pior estava em casa: prometeu a Sarah o afastamento definitivo de Tereza. Percebe que não escapa de inquérito, teria de ser habilidoso para não complicar mais ainda a situação. E foi. Sugere que entrem no carro, em seguida toma o sentido do Corte Cantagalo. Guiomar fala da carta, de suas preocupações não só com a situação dos dois amantes mas igualmente com os sentimentos de Sarah, identificando-se com ela . Elias dirige como quem está em paz com a sua alma, ouve Guiomar e não a interrompe. Claro, o assunto toma corpo quando entram no tempo desse romance, lembra que Tereza se casou e nada se alterou entre os dois, enfim um caso bastante complicado e que deve ser resolvido com um mínimo de desgastes; lembra também a situação do genro,
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tudo tem de ser agora e sem chance de regredir. Guiomar pergunta para onde estão indo, exatamente no momento que Elias diminui a marcha do carro e estaciona defronte ao Bar Lagoa, vira-se para ela: “Vamos conversar, sim senhora, não estou fugindo das minhas responsabilidades nisso tudo, mas tudo pode correr dentro de um mínimo de cortesia, equilíbrio, é assim que entendo, vamos sentar em alguma mesa e conversar”. Neste momento Guiomar percebe que Elias tem sotaque diferente. Pergunta se é estrangeiro. “Sim”, atende Elias, “Sarah e eu somos argentinos, estamos no Brasil desde 1956”, sorri, “vinte anos de Brasil, somos brasileiros de coração”, arremata. Guiomar está tranquila, felizmente tinha acertado no que vestir, não imaginava que fossem parar num restaurante da zona sul, valeu a pena caprichar. Sentam-se, é cedo ainda, o Lagoa era point conhecido pela boa cozinha alemã, chope bem tirado e garçons apressados e de mau humor. Mas, cedo ainda, Elias escolhe mesa afastada dos demais, assim poderiam conversar mais à vontade. Toma a iniciativa, tece elogios a Tereza. Era excelente profissional, trabalhavam juntos há oito anos, ela nunca faltou, nunca recusou missões muitas vezes espinhosas que competem às secretárias executivas, nunca se utilizou da intimidade com o chefe para quaisquer formas de práticas em seu benefício. Guiomar ouve atentamente, é muita novidade de uma só vez. Duas semanas atrás pouca coisa ou quase nada a tirava da rotina diária como dona de casa, entendia que eram de sua responsabilidade todas as ações para a administração da casa de seu genro e de sua filha, tinha se tornado disciplinada nos anos de convivência com Germano, que era oficial do Exército. Estar naquela hora na companhia
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do amante de sua filha e num restaurante com a lagoa Rodrigo de Freitas à sua frente, linda, parcialmente iluminada, sabia para ela como algo extraordinário, quase ficção. Mas estava de verdade, quase beliscou-se. Elias prossegue, formal e preciso: “Penso que é necessário, para uma melhor e correta compreensão desse meu relacionamento com Tereza , que eu fale um pouco da minha vida pessoal. Sarah e eu nos casamos logo que me formei em administração na Universidade de San Leon, em Buenos Aires, ela é como eu típica filha de pais judeus, tinha também terminado um curso de contabilidade, nos conhecemos na Hebraica de lá. Tinha futuro assegurado, meu pai era comerciante, uma loja de eletrodomésticos, em sociedade com seu irmão que vivia no Brasil há muitos anos e enriqueceu: tio Moisés organizou uma rede de lojas nesse ramo, em franco progresso aqui no Rio. No entanto, foram muitas as conversas com meu pai, argumentei que gostaria de trabalhar em outro negócio por interesses próprios e também porque meus dois irmãos mais velhos estavam com ele na loja. O velho era intransigente, durão, mas pragmático; depois de muitas trocas de explicações, de argumentos de um e de outro finalmente me recomendou, negociamos e concordei estagiar numa das lojas desse meu tio, aqui no Rio, seria experiência, teste. Casei com Sarah uma semana antes de viajarmos e cá estamos há quase vinte anos. Consegui trabalhar e estudar, me formei também em direito mas já tinha sido mordido pelo bicho do comércio, sem dúvida minha carreira profissional estava já contaminada, se assim posso dizer; com recursos do meu pai e mais dois sócios montamos a concessionária Volkswagem onde ela está até hoje, na Av. Maracanã. Isso já tem 12 anos.
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Guiomar mal conseguia beliscar a batata frita, que chegou com o chope, estava fascinada pela história de vida do Elias. E, claro, não foi difícil entender por que Tereza tem esse caso com ele: é homem refinado, desde a maneira de falar, como se veste e gentilezas pouco comuns nos homens de hoje em dia, concluiu. Mas, não estava ali para conhecer a biografia de Elias. Permitiu sem interrupções que ele concluísse o que estava dizendo. “ Tereza tem tudo a ver com meu casamento”, saiu com esta de surpresa. “Nos conhecemos quando Sarah já tinha contraído um doença incurável; é milagre, sim, ela estar viva até hoje.” Ajeitou-se melhor na cadeira, apoiando-se sobre os cotovelos: “câncer, já passou por três cirurgias, antes nos deu dois filhos. A partir do primeiro diagnóstico positivo e até hoje somos apenas um casal que mora na mesma casa. Tenho por ela um carinho sem limites mas na realidade não formamos um casal completo. Sarah também teve atendimento psiquiátrico, penso que a notícia maldita mexeu com sua autoestima, passou a ter comportamento oscilante entre euforia e depressão, deu trabalho. Neste momento tudo pode acontecer, já fizemos o possível e o impossível para que ela se recuperasse mas seu organismo dá sinais de esgotamento........o médico não deu esperanças, estou preparado para o pior. E Tereza tem sido impecável comigo, o seu casamento, segundo ela, atenderia a uma necessidade, seu pai, o falecido marido, Germano, a cobrava com insistência assim que ela conheceu Haroldo, forçou a barra, disse ela. E, sim, não imaginávamos que nosso relacionamento vingasse, o destino nos enganou e estamos aqui .........no meu entendimento........para resolver a questão, não é mesmo?”. Guiomar estava absolutamente sem ação, anestesiada com o drama de Elias. Conseguiu reequi-
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librar-se, olhou para ele com certa impertinência, disse estar comovida com a situação e com a enfermidade de Sarah, mas precisava resolver essa questão de Tereza. “E se Haroldo descobre.......o que pode acontecer? Ele tem temperamento imprevisível. Preciso me antecipar “. Elias baixa os olhos visivelmente embaraçado, seu caso com Tereza de repente pode assumir outra direção, muita coisa pode acontecer e em pouco tempo –- envergonha-se ao imaginar a morte de Sarah –- mas para si mesmo reconhece que não tem culpa da fatalidade e da desgraça do que estava acontecendo com ela. Claro, não iria entrar nesse detalhe com Guiomar, mas resolveu pedir tempo, se prontifica a conversar com Tereza e expor tudo, colocar tudo em pratos limpos. Guiomar sente-se aliviada, pelo menos está livre desse encargo, apenas teria de se fortalecer para enfrentar Tereza, que estava longe de ser uma pessoa dócil, provavelmente jogaria suas culpas em cima dos pais. No mínimo. Realmente situação embaraçosa mas aceitou imediatamente a sugestão de Elias. E seja o que Deus quiser, aliviada. Pediu que ele não revelasse esse encontro. Conhecia Tereza, poderia ser mais um complicador. Passa o tempo, o clima carnal sôfrego com Haroldo esfria, como quase sempre acontece nesses casos: o desejo sexual tem seus limites no desejo e na importância. Ele disse estar com sérios problemas no banco, tinham recebido equipamento novo e sua instalação exigia super esforço de todos no CPD. Guiomar está mais que nunca conectada com os problemas de Tereza, ansiosa espera a cada toque do telefone que Elias lhe transmita uma notícia boa, uma solução conveniente. Repentinamente perde interesse no brinquedo sexual e em Haroldo, está fria e esquiva como ele. E mais uma: Clotilde está com comportamento estra-
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nho, comunica-se monossilabicamente, perdeu o senso de humor contando histórias lá de Madureira, evita Guiomar, estranha, emburrada e trabalhando com má vontade. Numa sexta-feira interrompe o que a faxineira estava fazendo, disse que queria conversar s������������������������������������ ério com ela, saber o que está������ acontecendo, alguma coisa está errada, só assim poderiam encontrar uma solução; explica isso rapidamente para Clotilde. Sentam-se na copa, servem-se de café com leite, Clotilde visivelmente constrangida, em primeiro lugar alivia a barra de Guiomar, elogia a patroa, tantos anos de convivência quase diária, não era nada com ela. No meio da conversa sobre os serviços da casa, para, em seguida diz olhando para a toalha da mesa: “Estou grávida tem três meses”. Guiomar tenta aliviar: natural, quem sabe o namorado, ele a pediria em casamento, enfim, foi o que conseguiu falar no momento. Clotilde, complementa, falando mais baixo ainda: “Pode ser do seu Haroldo”. Explosão, silêncio em seguida. Guiomar precisa imediatamente de água com açúcar, sente falta de ar, percebe o mundo vindo abaixo....... dá um tempo para se recuperar. “Você tem certeza ?”, indaga à faxineira. Clotilde, bastante abalada também, o clima estava tenso, certeza absoluta não tenho mas a gente se encontra já há algum tempo, pode ser de qualquer um dos dois, é dele ou do Antenor”. Neste momento a curiosidade de Guiomar supera o clima de preocupações, quer mesmo saber como eram esses encontros e onde, lascou para cima de Clotilde, elevando a voz: “Onde é que vocês se encontravam ? Era aqui em casa mesmo ? Mas em que horas, quase não saio de casa. Há quanto tempo ? “ Clotilde sente-se senhora da situação, “ quando a senhora saia aos sábados para o Salão Marisa, ia às compras, quando D. Tereza estava ainda trabalhando, eram sempre rapidinhas
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e deu no que deu !”, concluiu. Guiomar respira fundo, a coisa estava preta e para piorar Clotilde emenda, “e esse relacionamento diminuiu quando ele passou a se encontrar com a senhora, muitas vezes cheguei aqui em sua casa, saí voltei algum tempo depois, nunca dei a perceber que estava sabendo dessas coisas. Mas isso me irritou, estava sendo trocada pela patroa, e agora ?” Bem, a esta altura Guiomar está com pressão alterada, ferve, tudo parece estar de cabeça para baixo, sob muito controle e exaustão emocional consegue manter-se sentada mas sua vontade era a de cair em sono profundo e acordar como se tudo isso fosse apenas um pesadelo. Esse filho da puta do Haroldo, aquela barbinha, cara de frei franciscano, merece mesmo ser corneado. Tanta mulher fácil por aí e veio sujar a própria casa, a casa de sua mulher, de sua sogra !! Disse para si mesma. Mas Clotilde estava ali, do outro lado da mesa e não parecia arrependida de ter revelado o que sabia entre os dois; a bomba iria estourar um dia qualquer. Surpreendentemente a revelação de certa forma a tranquiliza, naquele momento as duas estão no mesmo nível de encrencas. Dez da manhã, uma semana depois. Haroldo estava tomando café na copa, já tinha informado Tereza e Guiomar de seu interesse em ser transferido para São Paulo; dias antes o gerente do CPD da matriz tinha oferecido essa oportunidade, refletiu muito, decidiu aceitar, ocupará a posição de chefe do projeto de implantação da informática em quase todas as agências do banco, no interior de São Paulo. Sem duvida oferta irrecusável, pois será regiamente compensado com inúmeras vantagens, entre elas a salarial. Guiomar, atenta às suas preocupações domésticas, imediatamemte percebe que a solução de todo o imbróglio familiar poderia estar
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exatamente nessa decisão de Haroldo. Duvida de 1 para 100 que Tereza saísse do Rio. Com a ausência física de Haroldo o affair dele com a faxineira teria solução, Clotilde que fosse exigir seus direitos no raio que a parta.. Tereza em muito pouco tempo, pelo seu temperamento frio, reduziria todas essas questões que poderiam abalar o seio de qualquer família a cacos do passado; Haroldo poderia ser compreendido como acidente de percurso, até mesmo Elias poderia constar do seu cardápio de comida requentada,; estava tudo mais claro, se não tem remédio remediado está, como sempre repetia para a mãe. E no curso dos acontecimentos surge mais uma peça, o atual instrutor de educação física do Steve Reeves, que pintava como saída honrosa e compensadora para a perda do marido e do amante: vão-se os anéis, fiquem os dedos, racionaliza. Guiomar, a esta altura entendia que com o afastamento de Elias, uma realidade, ele cumpriu sua promessa e a dissolução do casamento de Tereza e Haroldo, enfim, os pecados recentes reduziram em intensidade, para a sua alegria e conforto. E aconteceu, Tereza deu bola¸ abertura, as simpatias e sinais positivos vinham de muito tempo, Armando teve apenas que seguir a cartilha da naturalidade, aconteceu no escritório da Academia, depois que as demais alunas já tinham se retirado. Sexo sem culpa, considerava-se descasada, o marido tinha se mandado sem satisfações, certamente o sentimento dele com relação a Tereza era bastante similar. Ambos no terreno do desinteresse, da indiferença. Ótimo final para um casamento equivocado. Tereza afasta-se da RealVolks, Elias facilita sua vida, por intervenção dele vai trabalhar como secretária de um empresário amigo, com fortes recomendações sobre suas
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qualidades profissionais . Na realidade saída honrosa, mais um gesto generoso de Elias, provavelmente o último com relação à sua ex-amante. Guiomar assistia, mais que isso, testemunhava surda e muda todas essas alterações na vida da filha. Pelas suas contas Clotilde já estava prestes a dar à luz, perdurava a dúvida de quem seria o pai, mas, a essa altura do campeonato, apenas um detalhe. Na Globo o programa TV Mulher, que Guiomar assistia diariamente, depois de arrumar a cozinha e a copa dos vestígios do café da manhã. Nove horas, toca o telefone. Involuntariamente passa as mãos pelos cabelos, como se do outro lado da linha telefônica alguém pudesse vê-la. Coisa de mulher vaidosa. Atende com voz estudada, talvez influência da atriz que, naquele momento, estava sendo entrevistada por Marília Gabriela. Era Elias, voz grave e charmosa, com seu leve sotaque . Informa Guiomar da morte de Sarah, fala rapidamente do velório em sua casa, na Tijuca; enfim, terminou seu calvário, comenta. Propõe que se encontrem, sente-se perdido sem a companheira Sarah, sem Tereza. Arrasado. Essa proposta pega Guiomar de surpresa, ela também gostaria de mais uma vez conversar com Elias, mas teriam que dar um tempo, a morte recente de Sarah não permitia, naquele momento, um novo encontro com Elias, assim entendia. Haroldo há tempos tinha se mudado para São Paulo e Tereza, de amor novo, pouco parava em casa; enfim muita mudança a deixou zonza, meio perdida e igualmente, como Elias, tremendamente só. Pediu tempo , o número do telefone de sua casa, adiou o encontro. Do outro lado da linha Elias percebeu que poderia contar com ela, as coisas não podem acontecer como a gente imagina e quer,
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sentencia para si mesmo. No mesmo dia do telefonema Guiomar chamou sua amiga Adelaide, que negociava com roupas e cosméticos a domicílio. Escolheu o que tinha de mais sóbrio para se vestir. Achava que Elias, como pessoa formal, se sentiria bem na companhia de uma mulher que igualmente tivesse gosto apurado, sóbrio: tailleur cinza, sapatos pretos, blusa branca e um lenço cor de morango que combinava com sua pele morena clara e seus olhos castanhos. Imaginou que seria melhor cortar os cabelos, a Marisa sempre insinuava que as mulheres de sua idade pareciam ser mais jovens com um penteado que as deixasse de cabeça leve. Duas semanas depois ligou para Elias. Nove da noite. Ele interrompeu a leitura de um livro e atendeu o telefone. Manifestou simpatia e atenção logo que identificou Guiomar do outro lado da linha. Sim, poderiam se encontrar, por que não no Caiçaras ? Guiomar marcou a hora, o dia, seria na quarta seguinte. Sete da noite, estaria esperando por ela na portaria do clube. Assim aconteceu. Sentaram-se na acolhedora varanda, inicialmente um pouco distantes, reticentes, logo depois já estavam falando , conversando, como se fossem velhos conhecidos. Essa habilidade de Elias era reconhecida pelos seus amigos, sempre que tinham um pepino no clube era ele que negociava, argumentava e resolvia; não foi diferente com Guiomar, principalmente porque já estava, como galanteador, prevendo alguma esticada nesse relacionamento possível com a mãe de Tereza, quem sabe, um destino bom para ambos. Mais encontros aproximaram Elias e Guiomar, iam jantar em bons restaurantes de Ipanema e do Leblon, entendimentos positivos envolviam o casal num clima que tinha um quê de poético, já que Elias e suas pretensões a escritor
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de romances revelava sob a forma de se manifestar sua maneira de viver a vida e de entender as relações de um homem com uma mulher, com tendência para o gênero felizes para sempre; foi assim com Tereza, foi assim com outros relacionamentos. Foram poucos mas todos nesse clima. Numa de suas conversas, disse para Guiomar que deveriam estreitar as relações satisfazendo também o desejo de um pelo outro, já patente, enfim, partirem para uma relação adulta completa. Guiomar inicialmente resistiu, ruminava sua frustração com Haroldo, mas em pouco tempo resolveu que nada poderia impedir que se entregasse a Elias como mulher. No entanto, o que realmente determinou que ambos dessem as mãos e se dirigissem ao Vip’s Motel foi a declaração de Elias, num hino às mulheres para que fossem mulheres. Sem levantar a voz, sentados numa mesa do restaurante Real Astoria, quando apreciavam um conhaque de boa qualidade, disse com sua voz grave: “La mujer que al amor no se asoma No merece llamarse mujer Es cuál flor que no esparse su aroma Como un lleno que no sabe arder La pasión tiene un mágico idioma Que con besos se debe aprender Puesto que una mujer Que no sabe querer No merece llamarse mujer” Guiomar não suportou a atração e ofereceu os lábios para Elia����������������������������������������������� s. Neste momento uma nova mulher estava nascendo, um milagre, a menina de família de classe média baixa,
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criada no Realengo e destinada a ser apenas mãe e dona de casa, naquele momento desabrochava para um mundo totalmente novo e mágico. Para sempre? A esta altura a situação deles todos parecia estar resolvida: Haroldo em São Paulo, sem frequência telefonava para Tereza e estava iminente o desquite, pelo menos ela já havia se manifestado nesse sentido, sem confessar seu novo relacionamento. Guiomar, num momento que julgou oportuno, contou para a filha seus encontros com Elias. Surpreendentemente Tereza pouco se importou, fria, pelo menos não demonstrou qualquer reação, apenas deu um sorriso de canto de boca, sorriso de escárnio. Acendeu um cigarro. Foi mais fácil do que pensava Guiomar, tinha portanto o caminho aberto, livre. Essa ideia a fascinava, a tornava uma nova Guiomar sob quase todos os sentidos. Tinha a vida pela frente, a possibilidade de uma relação madura, até mesmo coerência com a idade de ambos. Clotilde deu à luz, a criança não era obviamente filha de Haroldo, assim afirmou a própria mãe numa visita relâmpago a Guiomar. Abraçaram-se, mas, àquela altura dos acontecimentos seria pouco recomendável e embaraçoso que ela voltasse a trabalhar naquela casa. Sem ressentimentos despediram-se. 4 da tarde. Maio de 1975. Haroldo gira a chave lentamente, entra procurando não fazer barulho. Percebe que Guiomar está no quarto, provavelmente arrumando alguma coisa. Sobe a escada, entra no quarto sem ser visto, abraça a sogra pelas costas. Ela esboça reação mas é travada pelos braços fortes do genro, quer gritar mas Haroldo tapa-lhe a boca com sua mão direita. O corpo de Guiomar foi encontrado somente na ma-
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nhã seguinte, quando Tereza resolveu ir apanhar o que restava de sua tralha para mudança definitiva; tinha acertado com Armando morarem juntos, estava muito difícil conviver com sua mãe depois de todos os acontecidos e a situação dela com Elias. Passado o impacto que a deixou estuporada e imóvel por algum tempo, teve crise de choro, ligou para o namorado, com dificuldades descreveu a cena horrenda. Menos de vinte minutos depois Armando chega à casa junto com policiais da Delegacia mais próxima, iniciam o isolamento do local. Tereza é atendida pelo seu vizinho farmacêutico com calmante e palavras consoladoras. A Vila está em polvorosa, toda a vizinhança comenta a tragédia, várias mulheres concentram-se na porta da casa de Guiomar, o drama e a surpresa, como acontecer com uma pessoa tão cordial e simpática ? Foi assalto ? No entanto, entre elas uma já conhecida pela língua venenosa soltou essa: “Tinha de acontecer alguma coisa, Guiomar vivia toda arrumada, toda bonitona, pra cima e pra baixo com um cara que vinha apanhar ela com um carrão, voltava tarde da noite....eu hein ?”
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Carlos Felipe Requião, flash biográfico
O nosso herói é lusoteutodescendente, nasceu em Curitiba-Pr no dia 5 de outubro de 1933, filho de Ivo (Keinert) Requião e de Érica (Braun) Requião. Viveu toda a infância e adolescência no Rio de Janeiro, bairro de Copacabana e adjacências, daí seu fascínio pelo mar e tudo o que a ele se refere. Concluiu o curso primário no Colégio Mello e Souza, o ginasial no Pedro II, o científico no Colégio Guanabara e graduou-se Psicólogo Industrial na PUC-RJ, turma de 1962. Começou a trabalhar muito cedo, ensaiou vários caminhos, somente depois de formado dedicou-se ao ensino — é professor titular de Psicologia Industrial/Organizacional — e ao exercício de sua profissão. Prestou serviços em organizações privadas , do governo federal e internacionais, em unidades “staff ” e de linha. Embratel, Chase Manhattan Bank, AGGS Indústrias Gráficas, Grupo Codinco/EEE, Grupo Caemi/Icomi, LTB Páginas Amarelas, SENAC-DN, Cia Atlantic de Petroleo, Universidade Federal de Ouro Preto, PUC-RIO, Fundação Bradesco, Copacabana Palace Hotel, ....e destaca da sua vivência profissional quatro missões no exterior: Equador e Panamá, OIT; Moçambique e São Tomé e Príncipe, ONUDI — desenho e execução de projetos de assistência e cooperação técnica visando a qualificação
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e o desenvolvimento de recursos humanos, em parceria com o governo dos respectivos países. Muito cedo despertou para a leitura e os livros, recebeu forte influência de sua mãe e de seu avô materno, Otto Braun. Escrever faz parte de seus hábitos diários. Tem preferência por contos, “short stories”; arrisca artigos, crônicas, versos e frases, quase sempre em tons provocativos. A música está presente em sua vida, como elemento essencial e indispensável e, em momentos muito especiais, a lírica é a fonte de todo o seu encantamento. Dispensa a religião mas respeita os crentes e suas convicções. Costuma, no entanto, ser cáustico com as instituições — tupiniquins ou multinacionais — que exploram emocionalmente a crendice dos menos esclarecidos, a fragilidade dos aflitos, destroem culturas nativas e criminosamente enriquecem seus gestores/líderes e apaniguados. Abomina os cultos sanguinários que sacrificam animais. Cumpriu serviço militar na Aeronáutica, Base Aérea de Cumbica e depois na Cia. De Polícia do Quartel General da Quarta Zona Aérea, São Paulo. S2 QIG FI 53 40 01 092. Nesse período e como soldado raso sofreu muitos embaraços, tanto no período de treinamento como nos serviços de guarda e nas patrulhas. Não aprendeu a mandar e muito menos a obedecer, mas gravou em sua experiência de vida o sentido do companheirismo, da solidariedade, respeito aos símbolos nacionais e o que significa a segurança do país em tempos de paz e de conflitos. Envolveu-se em campanhas eleitorais e manifestações políticas muito cedo, mas só teve a correta e clara percepção dos movimentos ideológicos quando ingressou na universidade. Foi eleito duas vezes representante de turma, elegeu-se
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vice-presidente do Centro Acadêmico dos alunos do Departamento de Psicologia, desativado em abril de 1964. Hoje faz parte dos perplexos e indignados com a conduta dos políticos que mereceram o seu crédito e o seu voto, que assumiram o poder em 2003 e em nome do pragmatismo — leia fisiologismo, cooptação, alienação dos aspectos éticos, corrupção..... — têm a desfaçatez de ignorar a memória de figuras notáveis como Caio Prado Jr., Osny Duarte Pereira, Nelson Werneck Sodré, Florestan Fernandes, Octavio Ianni e tantos outros que se desdobraram e se expuseram para, direta ou indiretamente, forjar ideologicamente um partido de trabalhadores. Vale lembrar que no curso da história recente deste país muitos deram o sangue para a redemocratização, fora ofensas morais e tortura. Em 2011 saiu da presidência o bobo da corte, o fantoche, o cascagrossa, o coveiro das esquerdas e da democracia e entra D. Dilma que não surpreendeu: mudaram as moscas mas a incompetência e os esquemas corruptores continuam os mesmos. Torcedor do Botafogo, treinou natação na piscina do Mourisco — transição para a adolescência — e no Rio de Janeiro foi o primeiro Junior a disputar provas no estilo “butterfly”; em São Paulo treinou com o mestre Sato no Clube Pinheiros. Foi aluno de boxe de José Lopes — Atlas Clube —, disputou seis lutas. Posteriormente, de volta ao Rio de Janeiro, treinou remo no Clube de Natação e Regatas Sta. Luzia e foi beque central — muito ruim — do Copajunior Praia Club. Por indisciplina e inconstância jamais conseguiu tornar-se atleta competitivo. No mar aberto, enfrentando ressacas e salvando vítimas de afogamento encontrou a sua praia e passou os “anos dourados” de sua vida. Tem paixão por veleiros e motocicletas, seu avô Braun foi um dos pio-
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neiros do motociclismo no Paraná, década de 20; são raros os primos do lado alemão que não tiveram uma. Pais e irmão mais velho falecidos, o nosso herói tem um irmão vinte anos mais moço e dois sobrinhos; casou-se duas vezes, tem dois filhos do primeiro casamento, quatro netos e uma bisneta. No ano de 2001 construiu um chalé na Fazenda Itaúna, zona rural de Itu, SP, comprou uma motocicleta e a grana acabou. Aposentado, compartilha sua vida com quatro cachorros — Rebeca , Pretinha, Patolinha e Dudu —, além de livros e CD’s; pela internet, ludicamente, mantém contato com amigos — muitos de longa data — e parentes. Passa muito bem.............. obrigado.
cf-requiao@bol.com.br Itu, SP abril 2015
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