Micaela&Maire

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Luciane Rangel

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Guardians – 1º Livro de Extras

Micaela & Maire

Rio de Janeiro Julho de 2012

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Agradecimentos:

A Ana Claudia Coelho, desenhista, sócia e amiga que me atura como ninguém já há uns bons anos. Sem palavras para agradecer e expressar o quanto és especial para mim.

A Déia Dias, a “culpada” por esse extra existir, por ser a leitora que tanto pedia para que eu contasse como Mic&Maire haviam se conhecido.

A Bia Carvalho. Maninha de Bienal, autora talentosa e amiga preciosa. Obrigada pelas dicas, pelo apoio... E por fazer parte da minha vida.

A Josiane Veiga, Melissa Araujo e Luísa Lopes, as maiores torcedoras de Mic&Maire e pessoas fundamentais para que Guardians chegasse onde chegou. Obrigada por tudo!

A Natallie Alcantara, Camila Araújo Moura, Vanessa Pereira, Fernanda Brandalise e Joelma Alves, queridas leitoras, que me ajudaram com a betagem deste extra. Valeu, meninas!

E por último e mais importante: a Marilza e Mailton – mamãe e papai – por me ensinarem a importância do respeito, da tolerância e do amor. E por serem meus maiores incentivadores e melhores pais do mundo. Amo vocês! [6]


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Dedicatória

Aos meus queridos leitores: amigos e apoiadores. É por vocês que persisto nesse caminho de letras. Meu eterno agradecimento por todo o carinho.

“Consideramos justa toda forma de amor” (Lulu Santos)

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Agosto – 2003 Roma – Itália ~ Micaela ~

Lembro que, desde criança, sempre mantive a postura e os discursos radicalmente feministas. Até que, pela primeira vez, fui agredida por um homem. Foi apenas um tapa. O primeiro e o último. Naquele momento, eu percebi que, em algum ponto, meu caminho havia sido completamente distorcido. Aliás, foi o momento em que eu tive a certeza. Perceber, eu já havia percebido. E foi essa percepção que me levou a dar um basta. E foi o basta que levou ao tapa. Leonardo foi a primeira pessoa de quem gostei na vida. Paixonite boba de infância. Cheguei a namorar outro cara antes dele, por oito meses, entre os quinze e os dezesseis anos. Depois que acabou, reencontrei Leonardo e começamos o nosso relacionamento. Eu cheguei a amá-lo, de fato... Ou a amar a pessoa que eu acreditava que ele fosse... Mas isso acabou mais rápido do que eu poderia prever. O amor deu lugar à conveniência; [11]


O namoro, à obrigação; O carinho, à rotina; A amizade... Bem, esta nunca chegou de fato a existir entre nós. Já estávamos juntos há um ano e seis meses quando eu declarei que queria terminar. Além da apatia da relação, houve um motivo: descobri que ele estava tendo um caso com a secretária do pai dele. Não, não gastarei linhas e mais linhas para descrever a dita cuja. Mesmo porque, para ser bem sincera, eu não me lembro nem se ela era loira ou morena, muito menos se era mais bonita ou mais feia do que eu. Não teci comparações. Não houve escândalos da minha parte. Nem ao menos lágrimas. Não senti tristeza, apenas aquela sensação de orgulho ferido e alívio. Sim, alívio, por enfim ter encontrado o motivo concreto que precisava para por um fim a tudo. O problema de ter uma mente racional é que ela me impedia de perceber a irracionalidade que existia em viver uma relação sem amor. De alguma forma muito fria e estúpida, eu achava que isso era normal. Ele era três anos mais velho que eu, vinha de uma ótima família amiga da minha, possuía uma excelente situação financeira, tínhamos um plano de vida em comum e – eu acreditava – ele era fiel. Quebrada uma dessas regras de perfeição, eu sentia que poderia dar um fim a tudo. Essa era a lógica. Então, eu disse que tudo estava terminado e ele me bateu. Nem mesmo o meu pai nunca havia levantado a mão para mim. Como aquele homem poderia se sentir nesse direito? Mas, como eu disse, aquela foi a primeira e a última vez na minha vida que eu permiti que alguém me julgasse como uma posse e ousasse me ferir. Jurei, ali mesmo, que aquilo jamais voltaria a ocorrer. A minha reação? Não tive ânimo para reagir, apesar de saber que, se quisesse, poderia até mesmo matá-lo, e nem precisaria de energia Guardiã para isso. Treinava artes marciais desde criança e tinha muito mais força física do que aquele fracote. Porém, simplesmente, não quis reagir. Senti-me subitamente fraca e cansada demais para isso. Então, apenas peguei a minha bolsa e saí do apartamento dele, ignorando os gritos nervosos, que logo deram lugar a pedidos de desculpa e súplicas para que eu não o deixasse. Dei apenas o meu silêncio como resposta e fui para casa. Não contei aos meus pais sobre a traição, muito menos sobre o tapa. Tive vergonha de expor que a filha que criaram para ser uma Guardiã, tão forte e cheia de valores e orgulho próprio, tivesse passado por algo assim. Apenas disse que meu namoro havia chegado ao fim, e eles lamentaram pela perda do genro dos sonhos. Achei que seria menos triste do que lamentarem a vergonha da filha. E então, com a mente e os sentimentos bagunçados, decidi que queria uma mudança radical de ares, de rotina, de endereço... De vida. E foi assim que, meses depois, Maire surgiria em meu caminho. [12]


Parte 1 - Strada facendo -

Abril – 2004. Madrid – Espanha. ~ Micaela ~

A primeira mudança tinha sido um corte de cabelo. Mas nada que se descreveria como radical. Certo que antes eles batiam na cintura e agora estavam pouco abaixo dos ombros, mas ainda assim poderiam ser classificados como compridos. Não foi muito por vaidade, mas também afirmo que não foi por pirraça como a minha mãe imaginou, já que meu ex[13]


namorado passara todo o um ano e meio do relacionamento dizendo que adorava meus cabelos longos e pedindo para que eu não os cortasse. Não, garanto, não sou dada a essas atitudes passionais. Cortei porque estava de saco cheio da minha própria aparência e daquele cabelo enorme que só servia para dar trabalho e incomodar no calor. A segunda mudança: a inscrição no vestibular. Não tentei em Roma. Arrisquei poucas universidades dentro da Itália, apenas por desencargo de consciência para o caso de não passar na que focava. Besteira, pois passei em todas. Inclusive na focada: a Universidad de Madrid. Motivos: é renomada, tem um excelente curso de Engenharia da Computação, e, principalmente, fica a quase dois mil quilômetros de casa. Disse que queria mudar de ares, não é? Um ar mais diferente que aquele, só se eu fosse, sei lá... pra América. Fui para Madrid durante as férias, para organizar a futura moradia. Um mês depois, voltei, dessa vez para ficar. Cheguei num domingo à noite, na véspera do primeiro dia de aula. Na segunda de manhã, o telefone recéminstalado tocou. Não precisei de identificador de chamada para saber quem era. ─ Diga, papa1. – atendi, apanhando o aparelho sem fio que ficava em cima da bancada que dividia a cozinha da sala. ─ Sua mãe quer saber se já está na nova casa. Achei graça da pergunta. Afinal, ela me ligara na noite anterior, para o meu celular, quando eu disse que estava entrando no estacionamento do prédio. Será que achou que eu tivesse me perdido no elevador? ─ Acalme a sua esposa. Eu estou bem e em casa. ─ E como vão as coisas por aí? ─ Bagunçadas. – dei uma boa olhada ao meu redor. O chão estava cheio de caixas, coisas da mudança que eu ainda não havia organizado. Minhas três malas, ainda fechadas, encontravam-se num canto da sala – Mas logo tudo se ajeita. Eu ri. Um riso leve, contido. Nunca fui o tipo de pessoa que sorri com facilidade, mas meu pai era um dos poucos que conseguiam me fazer sentirme completamente à vontade em alguma conversa, por mais banal que fosse. Dávamo-nos muito bem. Não que eu tivesse qualquer problema com a minha mãe, mas acredito que, por sermos tão parecidas, era difícil uma conseguir “quebrar o gelo” da outra. Já o meu pai, era um doce de pessoa e, apesar das personalidades diferentes, tínhamos muitos gostos em comum e nunca ficávamos sem assunto. ─ Já começamos a sentir a sua falta. – ele declarou.

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papai

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─ Papa, não é como se eu tivesse ido para o outro lado do mundo. A Espanha não fica tão longe. Vou para a Itália visitá-los uma vez ao mês, não prometi? ─ Você é tão jovem, Mic. Acho muito precoce essa sua ideia de se mudar para tão longe e morar sozinha... E nessa opinião dele, certamente tinha muito da influência superprotetora da minha mãe. ─ Já tenho dezenove anos, pai. Adiei meu ingresso na faculdade em um ano... Não poderia continuar deixando o tempo passar. Em quatro anos, estarei voltando para a Itália. ─ Quatro anos é muito tempo. Muita coisa pode acontecer em quatro anos. Pensei no exagero daquela declaração. Tirando a possibilidade da barreira que nos separa do mundo youkai2 vir a se abrir, não conseguia imaginar nada de significativo que pudesse ocorrer naquele espaço de tempo. Apenas me formaria e, com o diploma em mãos, voltaria para meu país, onde conseguiria um emprego e, aí sim, minha vida mudaria em alguma coisa. Optei por trocar de assunto: ─ E minha mãe, como está? ─ Está aqui ao meu lado e quer falar com você. Enquanto aguardava minha mãe assumir a ligação, abaixei-me atrás da mesa do computador, começando a conectar os fios. Todo o restante da arrumação poderia ficar para o dia seguinte, mas o meu PC seria a primeira coisa a ser posta para funcionar. Continuei com o trabalho, mesmo quando ouvi a voz autoritária do outro lado da linha telefônica: ─ Mic, volte para casa. – Gabrielle Angeli sabia ser direta. ─ Oi, mãe. Eu estou bem, e a senhora? – sim, e eu sabia ser irônica. ─ Volte para a Itália. Suspirei, cansada. Não conseguia acreditar que teríamos aquela discussão mais uma vez. ─ Mãe, me esforcei muito para conseguir uma vaga na Universidade de Madrid. Não me obrigue a jogar tudo para o alto. ─ Precisava ter terminado seu namoro por causa disso? Ainda que você insistisse em ir para a Espanha, vocês passariam a se ver menos, mas o amor de vocês iria sobreviver a isso. 2

Demônio, monstro ou criatura sobrenatural. Figura da mitologia japonesa, presente na série Guardians.

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Na cabeça da minha mãe, o motivo do término do meu namoro havia sido a faculdade. Bem, na verdade, foi a desculpa que eu dei: não queria continuar num relacionamento, pois pretendia me dedicar aos estudos. Conhecendo como ninguém as minhas lógicas racionais, foi fácil para ela acreditar nisso. Porém, acreditar não era sinônimo de concordar. Então, sempre que podia, ela voltava a bater na mesma tecla e a insistir para que eu repensasse e desse uma segunda chance a Leonardo. Terminando de plugar o último cabo na CPU, eu pedi: ─ Deixe-me ser feliz, mamma3. Por favor. Houve um breve silêncio e eu não estranhei isso. Por mais que eu soubesse que ela logo retornaria ao assunto, também tinha a consciência de que, para acabar com aquilo por ora, era apenas uma questão de usar os melhores argumentos. E nenhum poderia ser melhor do que aquele. Afinal, por mais divergências que pudéssemos ter, eu sempre soube que não haveria nada que minha mãe não fosse capaz de fazer pela minha felicidade. Com o tempo, eu descobri que isso, como tudo na vida, também era relativo. A noção de “felicidade” que ela tinha era bem divergente da minha. ─ Pense bem em tudo isso, filha. – ela voltou a falar – Para não se arrepender no futuro. Você sabe que será muito difícil encontrar outro rapaz como o... ─ Mamma – eu a interrompi – Eu estou feliz com essa nova fase da minha vida, de verdade. Por favor, me deixe viver isso. Mais um breve silêncio. Até que ela, enfim, deu-se por vencida: ─ Boa sorte na nova faculdade. Novamente, eu sorri. Agradecida e aliviada. Mudamos de assunto e conversamos por mais alguns minutos, mas logo fui obrigada a me despedir e desligar. Era o primeiro dia de aula, e seria bom chegar cedo para confirmar a grade de disciplinas e procurar as salas. Nunca gostei de atrasos. Assim, peguei minha mochila, as chaves do carro e saí. Jamais poderia imaginar que aquele dia mudaria toda a minha vida.

***** ~ Maire ~

─ O que você pode fazer para retardar o aquecimento global? 3

Mamãe

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─ Ligar o ar-condicionado? Juro que nunca gostei de insultar as pessoas. Porém, foi impossível evitar fazer a associação do adjetivo “idiota” com aquele garoto à minha frente. Pelos livros que trazia em mãos, parecia se tratar de um estudante de algum dos cursos de Ciências Exatas, além de se vestir no estilo mais nerd possível. Eu simplesmente não poderia crer que alguém com aquele perfil pudesse dar uma resposta tão... desculpe... idiota! Não havia outro adjetivo. Não mesmo. Eu juro que tentei pensar em outro, mas não consegui. Aliás, todas as repostas de todos os alunos que abordei em frente ao prédio do setor de Exatas foram neste nível. Bem que me alertaram que seria bem mais eficaz continuar a panfletar no Setor de Biológicas ou no de Humanas, mas... Acabei sendo seduzida pelo desafio. E não estava gostando do resultado. Tentando me desvencilhar dos pensamentos negativos, entreguei um dos panfletos ao rapaz... desculpe mais uma vez... idiota, e fiz a minha propaganda: ─ Venha assistir a nossa palestra, dia 25 do mês que vem, no auditório do Curso de Biologia. Debateremos sobre as formas com que nós, cidadãos comuns, podemos contribuir para reverter esse quadro. ─ ...Ah... Valeu. Ele não pareceu muito interessado no tema. Se eu já havia desconfiado disso, tive a confirmação quando o vi, enquanto andava, amassar o papel e arremessá-lo em direção a uma lixeira. E nem percebeu que errou o alvo e o panfleto foi parar no chão. Ao menos, mandei fazer aqueles flyers em papel reciclado. Minha consciência pesava um pouco menos ao ver tantos deles tendo o mesmo destino: o lixo. Como já havia feito outras vezes, fui até lá e apanhei o papel amassado, jogando-o na lixeira. Assim, voltei ao meu trabalho, distribuindo mais alguns panfletos, embora percebesse que ninguém ali demonstrava qualquer interesse real naquilo. Fica difícil melhorar o mundo dessa forma. De repente, sofri um leve susto ao ver uma mão se aproximar repentinamente, puxando um dos papéis. Virei-me para ver quem era e sorri. Era Pablo, um amigo meu. Estudávamos na mesma turma. Ele tinha a minha idade – dezoito anos – e era um cara que chamava bastante a atenção. Não por ser lindo de morrer. Era bonito, sem dúvidas, mas nada muito extraordinário: moreno, estatura mediana, olhos verdes, nem gordo nem magro... Mas o charme dele estava na simpatia. [17]


Ah, sim... E era atualmente o meu único amigo hetero. Já mencionei que sou lésbica? Bem... Se sem mencionar, ninguém deu muita atenção aos meus panfletos... imagine se tivesse mencionado! Madrid não é Amsterdã. ─ Palestra sobre o aquecimento global? – ele franziu a testa, enquanto lia o panfleto. ─ Vai me prestigiar? – pisquei um dos olhos e notei que Pablo ficou levemente corado diante disso. Será que a brincadeira tinha dado resultado? Contudo, no instante seguinte ele fez bico e rebateu: ─ Não adianta fazer charme pra me convencer. Sabe que eu sei que você joga no mesmo time que eu. Eu ri. Bem que tentei, mas não teria como enganar um amigo, afinal. ─ No dia em que eu mudar de ideia, você será o primeiro na minha lista. ─ Não estou certo de que as pessoas “mudem de ideia” sobre essas coisas. Mas sinto-me lisonjeado por sequer fazer parte de sua lista. Já que é notório que você está na lista do Campus inteiro. Seja na lista negra, ou na de sonhos de consumo. ─ Não exagere! ─ Não é exagero, gata. As mulheres homo te idolatram. As hetero te invejam mortalmente, porque sabem que os namorados delas arrastam um caminhão por você. Voltei a rir e optei por mudar de assunto. Vi ali a esperança de ao menos uma boa alma dar alguma atenção à minha causa. ─ E você, o que faz para reverter o aquecimento global? ─ O que você me sugere? ─ Você sempre vem de carro, certo? Mas mora a dez minutos daqui. Poderia começar a vir para a Faculdade a pé, ou de bicicleta. O meio ambiente iria agradecer, e a sua saúde também. ─ Minha saúde está ótima! Nisso, outra voz foi ouvida. Dessa vez, feminina: ─ É mesmo um egoísta! Olhei para a direção em que o som vinha e avistei duas amigas minhas se aproximando. E também notei que Pablo havia fechado a cara. Não era para menos, ele não gostava muito delas. A antipatia era mútua, aliás. [18]


Alicia e Paloma eram namoradas, já há uns dois ou três anos. Conheceram-se no colégio e optaram pela mesma Universidade, numa forma de continuarem juntas. Paloma estudava Biologia comigo, enquanto Alicia era do curso de História. ─ O tempo fechou, gata! – declarou Pablo, dando-me um beijo na bochecha – estou indo nessa. Despedi-me e aguardei até que se afastasse, para poder bronquear com as meninas: ─ Por que sempre o tratam desse jeito? ─ Não gosto de caras hetero. – respondeu Alicia, irritada. Ela tinha um estilo mais masculino, estava sempre de jeans largo e tênis e os cabelos, negros e ondulados que batiam pouco abaixo dos ombros, estavam constantemente presos – Ou melhor, nada contra os heteros “normais”. Meu problema é com os idiotas, como esse cara. Paloma concordou: ─ É, Maire... Você anda com uns tipos estranhos. Acho que faz isso pra disfarçar. – ao contrário da parceira, Paloma era mais feminina. Usava sempre vestidos, além de fivelas nos cabelos castanhos, lisos e curtos. ─ Por que eu disfarçaria? – indaguei, confusa – O campus todo já sabe. ─ Mas a sua família não. – disse Alicia – Na boa, lindinha, quando vai resolver se assumir? Não me incomodei com a pergunta. ─ Enquanto for só curtição, não tenho porque assumir nada pra ninguém. E, quanto ao Pablo, parem de implicar com ele. É um cara legal. ─ Ele não tem consciência ecológica, você viu! Pode deixar que nós iremos em sua palestra, e vamos levar a nossa galera. Pensei em dizer que sabia que Pablo também iria, mas resolvi deixar isso de lado. Apenas agradeci e observei enquanto elas se afastavam, indo cada uma em direção ao prédio onde estudava. Novamente sozinha, resolvi voltar a fazer minha propaganda, mas tive a atenção voltada para um grupo de garotos – uns quinze ou mais – que atravessavam o pátio, fazendo baderna. Andavam rápido, aos risos e gritos, e volta e meia esbarravam em alguém propositalmente. Peço desculpas novamente, mas... que coisa mais... idiota! Senti que aquele prédio de Ciências Exatas não me fazia bem. Por isso, resolvi desistir da panfletagem e ir embora. Só que outra coisa me chamou a atenção. Vi quando uma estudante loira atravessou o portão, apressada, e acabou trombando com os baderneiros, com isso deixando cair os óculos de seu rosto, que foram pisoteados pelos rapazes. Eles passaram direto sem ao menos oferecerem ajuda à pobre moça. [19]


─ Trogloditas... – resmunguei, antes de correr para ajudar a aluna. Ao me aproximar, fiquei curiosa ao ver que a garota não parecia notar a minha presença. Estava aflita, enquanto apalpava o chão à procura de seus óculos. ─ Caspita! Dov’è? Dio, Dov’è4? – ela resmungava. Senti minha testa franzir, num misto de surpresa e incredulidade. Esqueci-me dos arruaceiros e, até mesmo, da minha intenção de ajudá-la. Estava assombrada com o que via preso ao pescoço daquela loira. Era um pingente... De um Guardião. De verdade, quais eram as chances daquilo estar acontecendo? Apenas doze indivíduos no mundo tinham aquele colar. No mundo! Sabe, com todos aqueles milhões... ou bilhões, trilhões, sei lá... Números nunca foram e nunca serão o meu forte... de pessoas. Um deles era eu. E outro, coincidentemente, estava ali, bem à minha frente, na Espanha, estudando na mesma universidade que eu. Repito: quais as chances disso? Ainda examinei melhor o pingente, pra ter certeza de que não estava enganada. Mas não havia engano algum. Eu estava diante da Guardiã de Gêmeos. Por fim, achei graça da forma como duas Guardiãs se encontravam. A expressão “mundo pequeno” caía como uma luva à situação. Lembrando que precisava ajudá-la, abaixei-me e apanhei os óculos. Ou o que restava deles. ─ Ecco5. – disse, assim que entreguei os óculos à minha colega Guardiã. Como percebi que ela parecia ter certo problema com o espanhol, continuei falando em italiano – Mas estão quebrados. Não vai dar pra usálos. ─ Caspita6! – ela rosnou, irritada. Quando levantou o rosto, notei que estreitou os olhos tentando me enxergar. Pela expressão, parecia não estar vendo nada além de borrões – Gracias7. – E aquele espanhol foi tão forçado e carregado de sotaque que não tive como deixar de rir. Apesar da expressão perdida, notei que os olhos dela eram bonitos. Eram grandes, expressivos e de cor verde-água. Sim, foi a primeira coisa que notei fisicamente nela.

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Droga! Onde está? Deus, onde está?

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Aqui Droga 7 Obrigada 6

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Certo, a segunda se levarmos em consideração que notei que ela era loira. Mas digo “notar” num sentido mais detalhista. De... Admirar. Talvez essa seja a palavra certa. ─ Vem, meu carro está logo ali. – eu disse, ainda em italiano – Vou te levar a uma ótica pra ver se dá pra consertar isso. ─ Não precisa. Estou de carro também. – vencida, ela também optou por abandonar o espanhol. ─ Sei... Não consegue nem me enxergar. Seria loucura tentar dirigir cega desse jeito. Anda, vem! Não dei escolhas para ela. Ajudei-a a se levantar e segui puxando-a rumo ao estacionamento da Faculdade. Nem havia me dado conta. Mas, hoje, acho que naquele primeiro momento, eu já gostei um pouquinho dela. Quando percebi, comecei a praticar o esforço inútil de não deixar que aquele “pouquinho” crescesse. Um esforço completamente inútil.

*****

Na sala de espera da ótica, minha atenção foi detida por um lindo garotinho de uns cinco ou seis anos que devorava um pacote de salgadinho, enquanto a mãe conversava com um atendente da loja. Não posso negar que sempre tive adoração por crianças e, olhando para o menino, lembrei dos meus irmãos quando tinham aquela idade, o que já fazia muito tempo. Afinal, o do meio já tinha catorze anos e a caçula doze. Sentia saudades deles... Ah, claro, e também sonhava em ter filhos. No mínimo, uns três: dois biológicos e um adotado. Mas não gostava de ficar pensando nisso, já que me fazia lembrar que eu precisava dar um rumo na minha vida. Sabe, deixar disso de sair com garotas e me apaixonar por algum cara legal, com quem eu possa casar e ter a minha própria família. Certo, como eu disse: não gostava de pensar sobre isso. Então vamos voltar ao assunto do garotinho na sala de espera. O motivo de olhá-lo não era meramente por ser uma criança bonitinha. O meu foco era o pacote nas mãos dele. Perguntava-me o que ele faria com aquilo depois que acabasse de comer. Conhecendo crianças como eu conhecia e notando a distração da mãe, já previa o fim que teria aquele lixo. E não deu outra! [21]


Ao terminar de comer, o menino largou a embalagem vazia no chão e a mãe, distraída, quando encerrou seu assunto com o atendente apenas puxou o filho pela mão, para fora da loja. Apressei-me em pegar o pacote e jogá-lo na lixeira e, quando virei-me, percebi que o encarregado da limpeza me olhava com espanto. Acho que, talvez, eu seja um pouco assustadora com essa mania. Ia dizer algo a ele, mas nesse momento a Guardiã de Gêmeos retornou, já com uma nova armação de óculos. Vibrei ao ver que tudo tinha acabado bem: ─ Ah, conseguiu consertar! Ela me olhou de um jeito estranho. Ou melhor: do jeito que se olha para gente estranha. E respondeu, sem muita empolgação: ─ É, as lentes estavam intactas. Foi só trocar a armação. ─ Ah, que bom!

~ Micaela ~

Tudo o que eu conseguia pensar era no quanto aquela ruiva era estranha. Muita alegria, simpatia e empolgação sem motivos para uma pessoa só. Quando ela abriu outro sorriso, perguntei-me se ela não cansava de mostrar tanto aqueles dentes. Pois é, quando a vi (de verdade, dessa vez) pela primeira vez, não reparei que fosse bonita, simpática ou elegante. Apenas que era estranha, de uma forma que, na ocasião, eu não conseguiria descrever, mas que hoje classificaria como adorável. É, ela era adoravelmente estranha. ─ Podemos ir agora? – questionei, da minha forma nada elegante, simpática, tampouco adorável. Mas o sorriso dela não se abalou. Seguimos caminhando ao estacionamento, e, no trajeto, a ruiva parou duas ou três apanhar algum papel no chão, e aí voltava correndo até uma seguida correndo novamente para me alcançar. Diante daquela vi-me obrigada a perguntar: ─ Sempre faz isso? ─ Isso o quê? ─ Recolher lixos.

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em direção vezes para lixeira, em estranheza,


─ Poluição é algo que me incomoda. O mundo não estaria o caos que está, se as pessoas não o sujassem tanto. Modo um tanto simplista de apontar a principal causa do caos no mundo. Mais simplista ainda, era a forma como ela tentava contornar aquilo. ─ E de que adianta você pegar um papel ou outro? ─ Estou fazendo a minha parte. ─ Hunf, você não vai salvar o mundo. ─ Como não? Salvar o mundo é exatamente a minha missão. E a sua também, Angeli. Meus pés travaram no chão, devido ao choque diante do que eu ouvia. Enquanto a encarava, minha mente pareceu processar um milhão de informações por segundo, numa forma de tentar descobrir como aquela total estranha poderia saber o meu nome. A coisa permaneceu confusa quando ela estendeu a mão e se apresentou: ─ Sou Maire Goldsmith. Goldsmith. O sobrenome soava vagamente familiar. Contudo, ainda assim não consegui me recordar de onde o conhecia. Memória para números: ótima. Para nomes: péssima. A situação só foi fazer sentido quando ela puxou um colar de dentro da blusa e eu reconheci o pingente. Era idêntico ao meu, porém com o símbolo de Libra desenhado ao centro. Enfim, reconheci o sobrenome. ─ Filha de Brigite Goldsmith? – ainda assim, senti-me confusa. E odiava me sentir assim! – Mas sua mãe não era irlandesa? ─ É, eu também sou. Vim pra Madrid há seis meses, por causa da faculdade. ─ Então, você é a atual Guardiã de Libra? ─ Não é uma incrível coincidência? “Coincidência”... Aquela era uma palavra que, definitivamente, não fazia parte do meu vocabulário. E muito menos seria a mais adequada à situação. Sabia bem que no decorrer da História sempre foi comum o encontro “casual” entre os Guardiões antes mesmo do grupo se unir para lacrar a barreira. Mesmo em gerações que nunca chegaram a se unir, esses encontros aconteciam. Um exemplo atual era o dos antigos Guardiões de Peixes e Virgem, que eram casados e tinham dois filhos. Por consequência, os atuais representantes desses signos eram irmãos. Segundo a minha mãe, dizia-se que existia uma forte ligação capaz de unir os doze Guardiões. [23]


Tanto que, ainda que fossem tão diferentes entre si, de alguma maneira estranha eles se completavam. Coincidência, magia, destino ou casualidade... Seja lá que nome deveria dar aquilo, parecia ser real. Caso não fosse, nada mais explicaria o fato de eu estar naquele momento diante de outra Guardiã, ambas fora de nossos países, estudando na mesma Universidade. E uma grande Universidade, aliás. Encontrar uma pessoa específica ali dentro era como procurar por um determinado bit dentro de um HD de um TeraByte. Ou uma agulha num palheiro, para ser mais simplista. ─ Estaria mentindo se negasse que também estou assombrada. – eu respondi, por fim. Entretanto, meu senso de praticidade me impedia de continuar discutindo sobre a tal grandiosidade daquela pseudo-coincidência. Por isso, simplesmente voltei a caminhar em direção ao carro. Ela me seguiu e, enfim, decidiu por manter o silêncio. Comentou uma ou outra coisa durante o trajeto de volta à universidade, mas, como eu não me mostrei disposta a manter qualquer assunto, ela acabou desistindo. Eu nunca disse que simpatia era o meu forte. Aliás, por que eu diria?

***** ~ Maire ~

Dois dias haviam se passado desde o nosso primeiro encontro, e nesse meio tempo eu não voltei a vê-la. Meus dias seguiram na mesma normalidade de sempre. Naquela quarta-feira, após a aula, eu, como de costume, segui para a academia onde praticava minha carga obrigatória de atividades físicas. Não que eu não gostasse, muito pelo contrário, exercitar o corpo sempre foi algo prazeroso para mim. Só que, ao mesmo tempo, era melancólico, por agora se tratar da atividade mais solitária do meu dia a dia. Por mais que muita gente notoriamente não gostasse de mim, eu era respeitada em sala de aula, por estar sempre envolvida em projetos e pesquisas. Por conta disso, mesmo os alunos mais preconceituosos viam-se obrigados a conviver pacificamente comigo. E eu também inspirava certo respeito nos grupos de preservação ambiental dos quais fazia parte, por ser bastante ativa na causa e estar sempre promovendo manifestos, passeatas e petições. E, claro, também tinha meu grupo de amigos, onde eu era absolutamente aceita e compreendida. [24]


Contudo, naquele mundinho da academia, eu era uma estranha. As notícias corriam rápido e todos sabiam das minhas preferências sexuais, o que fazia com que homem nenhum perdesse tempo tentando se aproximar e afastasse definitivamente as mulheres que, na certa, morriam de medo de que eu me atrevesse a tentar algo com elas. É, como se eu fosse uma maníaca. Não vou me classificar como “santa”, pois isso eu nunca fui. Porém, confesso, sempre fui um tanto careta pra muita coisa. Não bebia, não fumava, jamais usei drogas... E nunca dei em cima de uma hetero. Pelo menos até aquele momento, isso nunca tinha acontecido. Enfim, voltando... Era uma homossexual “certinha”, bem mais do que muitas daquelas hetero que me apontavam os dedos, como se eu fosse a mais leviana das criaturas. Era namoradeira, não nego. Apesar de não ter namoros sérios no currículo (não com mulheres, ao menos), estava sempre com algum casinho “fixo”, que em geral durava alguns poucos meses. Nunca fui de ficar com várias pessoas numa única noite. E, repito: jamais agarraria uma hetero. (E, repito novamente: não até aquele momento!) Logo que cheguei à academia, fui iniciar meu aquecimento em uma esteira. Como de costume, a do lado mantinha-se vazia durante todo o tempo do meu exercício. Até que, pelo canto dos olhos, percebi que alguém subia na esteira ao lado e na hora percebi que se tratava de alguma novata. Já conhecia o roteiro: ela puxaria algum assunto, conversaríamos um pouco e, no final da aula, alguém a advertiria para que ficasse longe de mim, já que eu era uma criatura “perigosa”. E ela não me dirigiria mais a palavra, a não ser um ou outro “boa noite” educado quando nos esbarrássemos e fosse inevitável fingir que não tinha me visto. Comportamento padrão, eu não me importava. Tá... Me importava sim. Não vou levantar a bandeira do “eu não ligo para o que os outros pensam sobre mim”, porque, no fundo, eu ligava, sim. Às vezes acho que todo mundo liga, embora seja muito mais legal mostrar-se forte o bastante para não se incomodar. Apenas por curiosidade, resolvi olhar para a pessoa que fazia o aquecimento ao meu lado. E minha surpresa ao reconhecê-la foi tão grande que eu praticamente gritei: ─ Você!

~ Micaela ~

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Olhei para a criatura que havia gritado no meu ouvido e reconheci a alegre ambientalista fanática. A que era Guardiã do signo de Libra. Eu não lembrava o primeiro nome dela. Enfim... Qualquer coisa Goldsmith. ─ Ah... Oi. – cumprimentei, meio de saco cheio. Não gostava de conversar enquanto malhava. Pra começar, eu já nem gostava de malhar... Nem de conversar. Por que a união dessas duas coisas seria do meu agrado? Acionei a esteira para o tempo e a velocidade que queria, e iniciei meu aquecimento. Como esperado, eu não iria conseguir fazer aquilo em silêncio. ─ Que surpresa nos esbarrarmos de novo, e justo num lugar desses. ─ Nem tanto. – respondi sem olhá-la. ─ Não acha que é uma incrível coincidência? Lá vem essa palavra de novo. Ela estudava para ser Bióloga... Não dava pra saber que essa besteira de coincidência não existia? ─ Não. Nós duas somos Guardiãs e, por estarmos longe de nossa rotina de treinamento, precisamos nos exercitar regularmente para não perdermos o condicionamento físico. Além do mais, essa é a academia mais próxima da faculdade e, como a maioria dos cursos é em período integral, é racional frequentarmos o mesmo local, num horário parecido. ─ Ainda acho que seja uma coincidência. Sério, o que ensinavam no curso de Biologia? ─ Não existem coincidências. Existem probabilidades e estatísticas. ─ Sei... E será que existe alguma probabilidade de estarmos inscritas nas mesmas atividades físicas, além da musculação? ─ Pouco provável. ─ Bem... Além de musculação, faço dança e luta. E você? ─ Apenas musculação e luta. – minhas respostas saíam no automático, sem dar realmente atenção à conversa. ─ Está vendo! E você disse que a probabilidade era pequena! ─ Devem existir no mínimo umas vinte modalidades diferentes de luta por aqui. ─ Isso é verdade. Bem, atualmente, optei por algo mais leve. Já fiz karate e kung fu, mas agora pratico Tai Chi Chuan. Sabe, gosto muito de toda a filosofia que cerca a maioria das artes marciais orientais. O ‘tai chi’, por exemplo, visa muito a interação com elementos naturais. – até conhecer [26]


a Hikari8, eu nunca havia encontrado nenhuma outra criatura que conseguisse falar mais do que a Maire. – E você, se matriculou em qual luta? ─ Oriental também. ─ Oh, verdade? Qual? ─ Boxe Tailandês.

~ Maire ~

Certo, Boxe Tailandês não me parecia ser bem uma modalidade de luta das mais filosóficas. Sei que eu parecia uma tagarela ao lado dela, mas qualquer um pareceria. Ela não era de muitas palavras e confesso que aquilo me incomodava um bocado. Sentia uma forte necessidade de me aproximar, mas isso parecia ser uma tarefa quase impossível. E, não, não é a esse tipo de aproximação que me refiro. Ao menos, não por enquanto. Queria que fôssemos amigas. Afinal, éramos duas Guardiãs, e este era um laço forte demais para ser ignorado. Contudo, como eu disse, a tarefa era difícil. Quanto mais a conhecia, mais percebia que tínhamos gostos e visões bem opostas sobre diversos temas. Nossas personalidades, em si, já eram conflitantes demais. Talvez as únicas coisas em comum fossem o fato de sermos Guardiãs, de estudarmos na mesma Universidade... E de sermos “vizinhas” de esteiras naquela aula de musculação. Após alguns minutos de um silêncio perturbador (ao menos para mim. Para ela parecia bem confortável), tentei puxar outro assunto: ─ Então, Angeli... Sei que estuda no prédio de Ciências Exatas. Mas o que faz, exatamente? ─ Engenharia da Computação. – a resposta, como todas até então, foi seca e automática. ─ Nossa! Deve ser muito difícil. ─ Não acho. ─ Digo isso porque passei minha vida inteira fugindo de números e computadores. Prefiro lidar com vidas, por isso escolhi a Biologia. Pela primeira vez, ela teve alguma reação. Olhou-me com o canto dos olhos e, parecendo curiosa, comentou: ─ Achei que fizesse Medicina. 8

Personagem da trilogia Guardians. A Guardiã de Áries.

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Sorri pelo fato dela, enfim, ter mostrado algum interesse pela conversa. ─ Mesmo? E por que achou isso? ─ Acho que ouvi minha mãe contar que Brigite Goldsmith fosse médica. ─ E é. Assim como o meu pai. Mas digamos que eu tenha quebrado a tradição da família. Ela resmungou um som de concordância e parou a esteira. Surpresa, perguntei, enquanto ela saía: ─ Apenas cinco minutos de aquecimento? ─ Faço o mínimo, por obrigação. Malhar nunca foi um prazer para mim. Dito isso, ela se afastou, indo para outro aparelho. E, na extensão da academia, nós não voltamos a nos “esbarrar”.

~ Micaela ~

Em uma hora e meia, terminei minha carga de exercícios e dirigi-me ao banheiro. Lá, entrei num dos boxes para banho, soltei os cabelos, tirei a roupa e deixei que a água morna caísse sobre o meu corpo, tentando relaxar um pouco. Não que malhar fosse para mim algum suplício, afinal, já era rotina desde a infância. Mas também não era algo que eu de fato gostasse de fazer. Até porque, sempre pensava que aquele era um tempo que poderia ser melhor aproveitado em outras atividades. Ainda estava no terceiro dia de faculdade, mas já tinha uma lista considerável de trabalhos e exercícios para realizar, coisa que poderia fazer mais rápido caso não perdesse cerca de duas horas diárias com os exercícios. Sem contar que meu computador estava com defeito, o que dificultava bastante a minha situação. Situação esta que já era complicada demais pelo simples fato de eu não dominar o idioma daquele país. Idiomas não eram o meu forte. Falar não era o meu forte, aliás. Em língua nenhuma. Já começava até a pensar se não teria sido loucura aquela ideia de ir para a Espanha. A troco de quê? Uma rebeldia estúpida de querer bancar a independente... De mudar de país, numa busca idiota de encontrar a mim mesma... Ou de encontrar coisas que eu nem sabia dizer o que eram. Estava imersa em pensamentos, mas isso não me impedia de ouvir a conversa de um grupo de garotas que entrara no banheiro. Não que me esforçasse para aquilo, mas sempre tive a capacidade de prestar atenção a [28]


tudo ao meu redor, ainda que estivesse praticando qualquer atividade que requeresse concentração (o que nem era o caso no momento). Não me esforçava para compreender as palavras ditas em espanhol, porém, subitamente um nome, em meio a elas, chamou a minha atenção. “Maire Goldsmith” Estavam falando sobre a Guardiã de Libra? Forçando-me para encontrar coerência nas palavras em espanhol, fui surpreendida com o que elas diziam.

***** ~ Maire ~

Luzia Lopes Trillo. Esse era o nome do meu “casinho” da vez. Estávamos saindo há quase um mês. Ela era bem bonita. Alta, porém um pouco mais baixa do que eu (era difícil me barrar nisso. Acho que a única que conseguiu foi Micaela, com seus 1,76m, apenas um centímetro a mais do que eu). Tinha as feições delicadas, olhos castanhos e cabelos aloirados, compridos e cacheados. Era espanhola, de Barcelona, tinha dezoito anos e cursava o primeiro período de Filosofia. Tínhamos sido apresentadas por uma amiga em comum. Naquela quinta-feira, resolvi tirar o último tempo da tarde, vago para mim, para distribuir mais alguns panfletos da palestra sobre aquecimento global, que ocorreria em pouco mais de um mês. Luzia se ofereceu para me ajudar. Percorremos todo o prédio de Humanas e agora, já de noite, tentávamos repetir o feito no de Exatas. Como em todos os meus relacionamentos, eu dominava bem a arte da discrição. Na verdade, nunca gostei de trocar demonstrações de afeto em público, mesmo quando me relacionava com homens. Ok, ignore o plural. Foi um homem só. Mais pra frente conto mais sobre ele. Sendo assim, quem visse Luzia e eu caminhando aos risos pelos corredores da faculdade, no máximo deduziria que fôssemos boas amigas. Já eram quase dez da noite quando demos o trabalho do dia como encerrado. Assim, percorremos o extenso corredor do último andar, rumo aos elevadores. ─ O que vai fazer no final de semana? – indagou Luzia, em certo momento. ─ No sábado tenho aula de dança durante o dia, e à noite vou ao Cadiz com meus amigos. Não quer ir com a gente? [29]


─ Desculpe, Maire. Mas sabe, eu... Coloquei a mão em seu ombro e sorri, de forma compreensiva, enquanto decifrava sua preocupação: ─ Tem medo de que te vejam com a gente e você fique mal falada, certo? ─ Não se trata disso, Maire. ─ Luzia, não se preocupe. Entendo bem como você se sente. Incrédula, ela riu. ─ Nem vem, Maire! Você não tem problemas quanto a se mostrar. ─ Aqui, não. Porque não ligo a mínima para o que essas pessoas vão pensar de mim. – e aí entra outro daqueles momentos em que achamos que é mais bonito mostrar-se forte o suficiente para não se preocupar com a opinião dos outros. – Em compensação, eu morreria se meus pais descobrissem. Achei que ela fosse dar continuidade ao assunto, mas parecia mais interessada em marcar algo para o fim de semana. ─ E no domingo, o que fará? ─ Vejamos... De manhã eu vou à igreja e à tarde, bem... Ia completar dizendo que não teria nenhum compromisso, mas caleime quando, ao passarmos diante de um laboratório de informática, tive minha atenção desviada para além das paredes de vidro. Micaela Angeli estava lá dentro, sozinha, sentada diante de um dos computadores. Em menos de uma semana, aquela era a terceira vez que a encontrava por acaso. ─ Maire? – Luzia me chamou, arrancando-me de minha distração. Só então percebi que havia parado de andar. Olhei para ela e sorri, dando a primeira desculpa que minha mente conseguiu arranjar: ─ Acho que esqueci um livro no auditório. Nos vemos amanhã e combinamos algo para o fim de semana, tudo bem? Acho que ela não acreditou muito na história. Eu só trazia em mãos uma pasta com panfletos, não havia nenhum livro para ser esquecido. Ainda assim, ela concordou e nos despedimos com um beijo no rosto. Luzia seguiu rumo aos elevadores, enquanto eu virava e voltava na direção oposta.

***** [30]


~ Micaela ~

Após algumas horas naquele trabalho, enfim fiz uma pausa na digitação e mexi as mãos, tentando aliviar a dor nos tendões. Parecia que o esforço contínuo dos últimos dias estava fazendo a minha velha tendinite voltar a atacar. Mas não podia perder tempo com isso. Tinha muito trabalho a ser feito e não era uma dorzinha nas mãos que me atrasaria nisso. Pensando assim, preparei-me para voltar a digitar, mas fui surpreendida por um prato de refeição embalada para viagem, que surgia na mesa diante de mim, à frente do teclado. Olhei para a pessoa que se sentava ao meu lado e indaguei, confusa: ─ O que é isso? ─ Salada de legumes. – respondeu a ruiva. Notei que também trazia um prato em mãos, o qual abria e começava a comer – Ah, mas não se preocupe, na sua pedi um pedaço de carne. Apesar de ser vegetariana, sei que nem todos têm os mesmos gostos. Não era exatamente àquilo que eu me referia. Não queria saber o que havia no prato, mas sim o que aquela doida estava fazendo ali e por que diabos levara comida para mim. Apontei para a placa na parede, que informava que ali era proibido fazer refeições. Ela deu de ombros e rebateu: ─ É por uma justa causa. E não tem ninguém aqui para nos punir. Olhei para o prato dela, com uma nova dúvida surgindo em minha mente. ─ Por que é vegetariana? ─ Não gosto de comer animais, prefiro eles vivos. Mas não sou nenhuma extremista fanática, viu? Não condeno quem coma. Claro, apenas condeno quem mata animais por puro prazer ou quem usa casacos de pele. Não era extremista fanática? Ela catava lixo das ruas! Qual o nível de fanatismo disso? Porém, não senti vontade de retrucar a última colocação. Confesso que sempre achei ambientalistas insuportavelmente chatos, mas também não era nenhuma apreciadora do uso de pele animal em roupas. Ainda que fosse declaradamente uma carnívora irremediável, sempre acreditei que existia uma diferença muito grande entre matar um ser vivo para se alimentar ou meramente para suprir um capricho fútil e consumista. Além de considerar de um mau gosto extremo alguém andar com o cadáver de um bicho pendurado ao corpo. Mas essa, de fato, não era a questão do momento. [31]


─ Por que trouxe isso? – indaguei, retornando ao assunto inicial. Aguardei que ela terminasse de mastigar, para que me respondesse: ─ Achei que estivesse com fome. Já são quase dez da noite e você ainda está nessa faculdade? Está fazendo algum trabalho? ─ Programação. ─ A entrega é amanhã? ─ Daqui a uma semana. ─ Ah, então ainda tem tempo. Por que está tão empenhada nisso agora? ─ Estou com um defeito no computador de casa. ─ Já o levou a um técnico? Pela primeira vez, aquela ruiva disse algo que me fez ter vontade de rir. Eu, precisando dos serviços de um técnico de computadores? Mas eu não ri, nem comentei sobre a aberração da pergunta. Apenas expliquei: ─ Eu sei exatamente qual é o defeito. Preciso comprar uma nova placa, mas ainda não tive tempo de pesquisar lojas boas do ramo por aqui. ─ Entendo. Bem, domingo nós podemos dar uma olhada no shopping. ─ “Podemos”? ─ Sim. Eu posso te ajudar. Afinal, você não conhece muitas pessoas aqui em Madri, não é? E ela voltou a mostrar aqueles dentes. De súbito, senti-me incomodada com tudo aquilo. A simpatia, a cordialidade... Era difícil crer que tudo seria gratuito, ainda mais depois de descobrir qual era a dela. Aliás, não pude evitar fazer um comentário a respeito: ─ Ouvi falar sobre você. Ela deixou de sorrir e eu estranhamente me senti mal por ter tocado no assunto. Não era de muitas palavras, mas não costumava me arrepender das poucas que usava. ─ Sim. E qual o problema? – ela rebateu. Seu jeito suave de falar não se alterou – Acha que ficará mal falada se te virem comigo? ─ Pouco me importo com o que vão falar. Apenas não quero me envolver nisso. [32]


Novamente, quando percebi, as palavras já haviam sido despejadas. Estava sendo sincera, como sempre, mas continuava me sentindo culpada por tal sinceridade, pois percebia que os olhos de Goldsmith transpareciam certa tristeza com aquilo. O mais estranho é que nunca fui de interpretar os olhos de ninguém. Muito menos de me importar com isso. ─ Quem está pedindo pra você se envolver em algo? – ela disse. E então, desviou o olhar, passando a fitar a comida de seu prato – Sabe, mulheres têm uma forma estranha de preconceito. Elas geralmente acham que vou pular em cima delas e agarrá-las na primeira oportunidade. ─ Eu não disse isso. ─ Mas foi no que pensou. Angeli, eu não sou uma tarada e, ainda que fosse, tenho quem me queira. Não preciso agarrar ninguém. ─ Você certamente não ousaria me agarrar. Ela riu e isso me fez sentir certo alívio, apesar de não ter sido uma piada (nunca fui de fazê-las). ─ De forma alguma. Eu só quero ser sua amiga, tá? Você é uma Guardiã como eu. Isso é algo que nos une, que nos torna iguais em algum aspecto. Vamos concordar: sou Guardiã, ambientalista, vegetariana e tenho sexualidade não definida. Já me considero diferente de todos em aspectos demais. De alguma forma muito incomum, identifiquei-me com aquelas palavras. Incomum porque eu não era ambientalista, muito menos vegetariana... Porém, era muito mais fanática por máquinas e tecnologia do que qualquer outra pessoa que já tivesse conhecido. E o fato de ser uma Guardiã, por si só, já me tornava diferente demais. Minha vida girava em torno de uma missão futura e incerta, o que sempre me exigira uma rígida rotina de treinamentos, sem contar as aulas de japonês. Com relação ao terceiro ponto, eu sentia como se, meramente, não tivesse sexualidade alguma. A solidão em companhia de um bom livro de algoritmos sempre me pareceu muito mais excitante do que um encontro com um homem qualquer. Só então, atentei-me às palavras exatas que ela usara. ─ Sexualidade ‘não definida’? Achei que fosse homossexual. Ela tornou a me olhar. Dessa vez, os olhos azuis transmitiam pura determinação. ─ Mas não quero ser. E vou deixar de ser, isso é só uma fase. Então, quer que eu te leve a algumas lojas ou não? A resposta era óbvia: é claro que não! [33]


Porém, por qualquer razão bizarra, meus lábios pronunciaram outra coisa: ─ Domingo? Que horas? ─ Tem algum compromisso? Poderíamos nos encontrar pela manhã. Se bem que costumo ir à igreja. É, ela disse “igreja”. E sei que é difícil crer nisso, mas o assunto me interessou. ─ Igreja? – indaguei, curiosa. ─ Sim. Um templo protestante. Não quer ir junto? Suspirei. Não era exatamente o que eu pensara. ─ Sou católica. – respondi. ─ E daí? Não pedem comprovante de religião na entrada. – ela riu. Mas parou, quando percebeu que eu não tinha achado a menor graça. Eu não contava piadas, e também não achava graça delas – Bem, a não ser é claro que você já tenha compromissos na sua igreja. ─ Não sei onde tem igrejas por aqui. ─ Igrejas católicas? Na Espanha? Pra qualquer lado que olhe, verá uma! ─ De que adiantaria? Não compreenderia nem o pai-nosso em espanhol. Enfim, resolvi abrir a embalagem da comida, antes que esfriasse ainda mais, e peguei o garfo de plástico que a acompanhava, mexendo os pedaços de legumes cozidos com carne. Enquanto isso, pensava na solidão que começava a sentir naquele país. Realmente, não imaginei que fosse passar por isso. Sempre achei que tudo ficaria bem e que conseguiria me virar. Mas, por conta da minha dificuldade com o idioma, tudo ali, pra mim, era problemático... Desde entender as aulas até comprar comida. Sem contar que eu sentia falta de casa. Dos meus pais, dos rostos conhecidos da vizinhança, da rotina, de coisas simples como ir à missa aos domingos. De repente, me veio uma súbita vontade de voltar para casa. ─ Que horas costuma começar uma missa? – a voz da ruiva me chamou a atenção. Eu a olhei, intrigada com a pergunta. ─ Se for como na Itália, às dez da manhã. Mas pra que quer saber? Não disse que era protestante? ─ Daria tempo de irmos às duas. [34]


─ Às duas igrejas? Voltando a sorrir, ela estendeu-me a mão. ─ Serei sua intérprete; você, minha acompanhante. Não contestarei sua crença e você não contestará a minha. Fechado? Senti minha testa franzir, ainda mais abismada. Apertar a mão dela foi muito mais um ato automático do que um acordo pensado. A cada instante que passava, achava aquela garota ainda mais estranha. Mas ela era estranha de um jeito agradável e, de certa forma, encantador. Adoravelmente e encantadoramente estranha.

***** ~ Maire ~

O Cadiz era um bar bastante popular na cidade, e ficava a cerca de três quilômetros da Universidade. Por conta da proximidade, era um dos principais points dos universitários aos finais de semana e era, também, o local onde a minha ‘galera’ costumavam se reunir. Cheguei lá cedo no sábado. Tanto que, do meu grupo, só encontrei minhas amigas Alicia e Paloma. Logo que as avistei, fui até a mesa onde estavam, cumprimentei-as e sentei. Porém, não participei da conversa. Minha mente se distraiu, ainda pensando na conversa com Angeli, dois dias antes. Ela foi sincera em demonstrar sua precaução em se aproximar de mim, mas não havia sido rude. Bem, não se levar em consideração o tipo de coisa que já tive que ouvir de outras pessoas. Mas eu mentiria se dissesse que não me entristeci com aquilo. Certo, não haveria motivo real para isso, já que, como eu disse, aquela não foi nem de perto a coisa mais rude que já ouvi. Mas me chateava, por ter vindo dela. Oras, podíamos não ser amigas ainda, nem nada do tipo... Mas, de alguma forma, era uma pessoa próxima. Ninguém pode ser considerado mais próximo de um Guardião do que outro Guardião, já dizia a minha mãe. E esse sentimento de tristeza me dava medo do que poderia acontecer caso a minha família descobrisse quem eu sou de verdade. Tinha a convicta certeza de que não suportaria isso. Desapontar os meus pais e irmãos, para mim, era pior do que a morte. ─ Maire? Maire? [35]


A voz de Paloma me trouxe de volta do meu “transe”. Olhando-a, indaguei, sorrindo: ─ Sim? Alicia levantou-se, anunciando: ─ Vou pegar algo pra gente beber. O que quer, Maire? ─ Ah, traz um suco de morango pra mim, por favor? Ela fez careta, e saiu resmungando qualquer coisa no estilo “por que eu ainda perco tempo perguntando?”. Como boas colegas de universidade, elas não compreendiam muito bem o motivo de eu não curtir bebidas alcoólicas. Já Paloma, debruçou-se sobre a mesa e, de forma preocupada, perguntou: ─ Lindinha, está tudo bem com você? Suspirei, cansada. Não falei sobre Angeli. Resolvi expor outro acontecimento recente que contribuía bastante para todo aquele meu momento reflexivo: ─ Minha mãe me ligou hoje. Ela balançou a cabeça, mostrando-se compreensiva. Meus amigos mais próximos sabiam bem que eu ficava um pouco abatida quando minha família me ligava. Não havia qualquer problema com os meus pais. Eles eram maravilhosos. Atenciosos, carinhosos, dedicados... Talvez fosse isso que me fizesse me sentir tão mal. A consciência pesava todas as vezes em que diziam que se orgulhavam de mim, ou que perguntavam se eu estava namorando algum garoto da faculdade. ─ Contou pra ela? – Paloma perguntou, como perguntava sempre, embora soubesse qual seria a resposta. Eu sempre estive determinada a nunca contar. Ela já havia contado aos seus pais, que demoraram um pouco para aprender a respeitar essa “diferença” da filha, embora nunca tivessem de fato aceitado. ─ Na verdade, eu tomei uma decisão. – declarei. ─ Sério? Qual? ─ Estou querendo sair dessa. Como era de se esperar, Paloma riu. ─ Lindinha, não é tão simples assim. [36]


─ É claro que é. O que eu ganho ficando com garotas? Nenhum relacionamento meu vai adiante, o que prova que isso não é uma coisa concreta. ─ Eu também sempre achei que pudesse parar com isso na hora que bem entendesse, mas aí... Aí eu conheci a Alicia e vi que ela era a pessoa que me faria enfrentar tudo. ─ Enfrentar tudo? ─ É. Foi por ela que resolvi enfrentar a sociedade, a minha família... Enfrentar o mundo. Se quer mesmo sair dessa e tentar fingir pra si mesma e para o mundo que é hetero, sua única chance é agora, enquanto ainda não encontrou essa pessoa especial. É, eu não havia encontrado. Então podia haver uma chance para mim, né? ─ Mas e aquela menina com quem você anda ficando? – Paloma indagou. Tomei fôlego para responder, mas, nesse momento, Alicia retornou trazendo as bebidas e contando, de um jeito sacana: ─ Já viram que temos uma novata no espaço? ─ Novata? – repeti, intrigada. ─ É. E certamente veio procurando pela Senhorita Perfeição Maire Goldsmith. Intrigada, olhei para a direção em que Alicia apontava. Quando vi a pessoa a quem ela se referia, levantei-me, incrédula de que ela estivesse mesmo ali. Acha que é a Angeli? Mas é claro que não! Por que ela estaria ali? Eu disse que fiquei surpresa, mas nem tanto assim. Na verdade, era a Luzia, que, ao me avistar, começou a se aproximar. Apressei-me em alcançá-la e paramos bem no meio do salão do bar, uma diante da outra. ─ E aí, gostou da surpresa? – ela questionou, sorrindo. E aquele sorriso fez a minha consciência pesar. Sei que ela não gostaria de ter ido até ali, mas tinha ido apenas para me encontrar. Tive medo de que ela estivesse realmente começando a gostar de mim. E ela comprovou minhas suspeitas ao ter outra atitude audaciosa demais para o seu estilo: inclinou-se em minha direção, demonstrando a intenção de me beijar. Afastei-me a tempo de evitar aquilo. ─ Maire? – ela se espantou – Tudo bem? [37]


─ Luzia... Me perdoa. ─ Te perdoar pelo quê? ─ Eu não posso mais continuar com isso. Vi os olhos dela começarem a transbordar e, nisso, o peso na minha consciência duplicou. ─ O que quer dizer, Maire? ─ Que acabou. Ela virou o rosto, as lágrimas começando a escorrer pela face. Piscou algumas vezes e, ainda evitando me encarar, indagou: ─ Está terminando comigo, Maire? Respirei fundo, determinada. ─ Não. Estou terminando com tudo.

***** ~ Micaela ~

─ Eu gostei daquela parte que o padre falou... ─ Você estava dormindo. ─ Não é verdade! Admito que me deu sono algumas vezes, mas... ─ Você dormiu por meia hora. É, foi pra isso que ela me acompanhou à igreja: para dormir. Pegou no sono no meio do sermão. Além de não me ajudar a entender o que o padre dizia, ainda fez com que todos nos olhassem com expressões nada amigáveis. Bem que tentei fingir que não estava com aquela ruiva herege, mas, toda vez que despertava (ou tentava), ela apertava o meu braço, pedia desculpas e dizia que iria se concentrar... Mas não chegava a traduzir nem duas frases antes de adormecer de novo. Ainda agora, já do lado de fora da igreja, as pessoas nos olhavam com reprovação. ─ Pode não parecer, mas prestei atenção a algumas coisas. – ela continuava tentando se defender – Eu gostei muito de quando o padre disse “vão em paz e que o senhor os acompanhe!” Foi a minha parte favorita! Sentei-me num banco da praça em frente à igreja e encarei Goldsmith, fazendo-a perceber que aquilo não tinha sido NADA educado da parte dela. Parecendo se sentir mal, ela indagou: [38]


─ Eu fiz tudo errado, não é? ─ Digamos que mastigar a hóstia não tenha sido um ato bem visto. ─ Não podia mastigar? É sério que ela não sabia disso? Eu podia afirmar que tinha feito de propósito. ─ Na verdade, você nem batizada é. – expliquei – Não deveria nem ter aceitado a hóstia. ─ Então era por isso que aquelas senhoras não paravam de me olhar de cara feia? Mas, ei, peraí! E você, durante o culto? Fazer aquele sinal “estranho” depois da oração também não foi algo bem visto. ─ É a santíssima trindade. O sinal da cruz. ─ “Sinal da cruz”? Como assim “sinal da cruz”? De onde vocês inventaram isso de... – ela se calou diante do olhar furioso que lhe lancei – Tá, desculpe. Eu disse que não ia contestar. Me desculpe. Parecendo arrependida, ela sentou-se ao meu lado e ficamos em silêncio, cada uma olhando para uma direção diferente. Onde eu estava com a cabeça quando aceitei aquela proposta maluca? Era óbvio que isso jamais daria certo. Até então, eu nunca havia entrado em um templo de qualquer outra religião que não fosse a minha, e ela, notavelmente, não sabia absolutamente nada sobre Catolicismo. Pensando nisso, acho que nossas “mancadas” foram até poucas. Poderia ter sido muito pior! ─ Quer comer alguma coisa antes de irmos procurar a loja de informática? – ela perguntou. Senti que deveria dizer que não, me virar sozinha para procurar as lojas e comprar o que precisava. Porém, optei por balançar a cabeça de forma afirmativa, simplesmente porque... bem, porque eu quis. Simples assim: queria permanecer na presença dela. Queria a sua ajuda. Queria continuar a ouvir sua voz tagarelando sem parar. Escolha estranha, eu sei... Acho que estava mesmo me sentindo solitária demais, para querer coisas assim. ─ Aonde vamos, então? – ela questionou, pensativa – Bem, tem um restaurante que gosto muito. Mas é de comida vegetariana. Fiz cara de enojada. Comida vegetariana jamais faria parte da minha dieta. ─ Não teria um fast food? ─ Isso faz mal pra saúde. – ela pareceu pensar melhor e viu-se vencida, por falta de opções – Bem, podemos passar no fast food e depois irmos para o restaurante. [39]


─ Pode ser. Apesar da concordância, nenhuma de nós deu a entender que iria se levantar para sair dali. Continuamos cada uma olhando para uma direção diferente e em silêncio, o que me surpreendeu um pouco, afinal, era raro aquela ruiva ficar sem assunto. Menos de dois minutos depois, ela começou a dizer algo: ─ Sabe... – eu a olhei, aguardando que ela prosseguisse. Pelas suas feições, parecia pensar em algo triste – Se estivéssemos em meu país, há alguns anos uma amizade entre nós duas seria algo impraticável. ─ Por quê? Ela me olhou e eu, enfim, reparei em outra característica dela... além de ser estranha (ainda que de forma adorável) e falar quase tanto quanto a Hikari, ela tinha lindos olhos. Não apenas pela cor – um azul bem bonito por sinal – mas por passarem algo de bom que eu não saberia definir. Os olhos dela me acalmavam, eram um paradoxo ao meu stress costumeiro. Eram olhos que transmitiam uma paz inestimável. No entanto, logo desviei a atenção para o ombro dela, quando ela levantou a manga da camiseta, mostrando uma cicatriz antiga. ─ O que foi isso? – indaguei.

~ Maire ~

Ela pareceu assustada com o que viu. Mas isso era normal, as pessoas sempre ficavam. A cicatriz pegava meu ombro direito quase inteiro e, apesar de ter mais de doze anos, era bem feia. Respirei fundo antes de começar a contar aquela história da qual eu não gostava de recordar: ─ Eu tinha seis anos e estava saindo do colégio, quando houve uma manifestação de católicos, em represália a uma medida do governo. Eles jogavam pedras contra a minha escola... E nas crianças que saíam dela. Eu fui “premiada” com uma bem aqui no ombro. No meu país, era assim: ou você estava de um lado, ou estava de outro. Chamam isso de “Guerra Santa”. De santo, pra mim, isso não tem nada. Angeli desviou o olhar da cicatriz para o meu rosto. Parecia se sentir mal ao ouvir aquela história. ─ Não odeia católicos por isso? – ela perguntou. ─ Muitos os odeiam. E ódio é tudo o que move esses conflitos idiotas. Ódio de ambas as partes. A disputa entre protestantes e católicos na Irlanda [40]


não tem nada de religiosa. A questão é meramente política. E eu sempre achei um grande absurdo colocarem Deus como motivo de fachada para isso. Sabe, o Deus em quem acredito me ensinou a amar o próximo e a perdoar... E minha fé sempre me mostrou que o ódio é o pior sentimento que alguém pode sentir. Ela balançou a cabeça negativamente, como se custasse a acreditar em alguma coisa. Após alguns segundos, declarou: ─ Você é muito diferente de mim. Eu jamais teria essa tolerância, passando pelo que você passou. Eu sorri, falando num tom mais descontraído: ─ Oras, mas nós somos Guardiãs. Vamos ter que conviver com pessoas muito diferentes de nós, em todos os sentidos culturais possíveis. Tolerância é o mínimo que precisaremos, não é? ─ Você é incrível. Eu deixei de sorrir, pega de surpresa por aquele elogio dito de forma tão natural, por alguém que, mesmo conhecendo há tão pouco tempo, sabia que não era acostumada a distribuir palavras de agrado. Ela desviou os olhos para os pombos que ciscavam no chão à nossa frente, deixando claro que ficara sem graça diante das próprias palavras. Acho que ela própria se surpreendeu com o que disse, na certa sem pensar muito a respeito antes de falar. Já eu, voltei a sorrir. Senti-me feliz com o elogio inusitado. Principalmente por ter vindo dela. Sabe aquele “pouquinho” que eu aleguei ter gostado dela na primeira vez que a vi? Acho que, nesse momento, o “pouquinho” deu uma leve aumentada. ─ Incrível? – baixei a cabeça, pensativa. E deixei novamente de sorrir – Eu sou toda errada, isso sim. Mas estou tentando me “ajeitar”. – levantei o rosto, tornando a olhar para Micaela – Agora, definitivamente, você não vai precisar ter medo de eu te “agarrar”. Resolvi sair dessa de vez. Ela voltou a me olhar, sem entender. ─ Como assim “sair dessa”? ─ Resolvi virar uma pessoa normal. ─ Não acho que seja normal tentar ser algo que você não é. Era uma boa forma de pensar. Fiquei feliz por ela ter essa opinião, mas não deixei que isso interferisse em minha decisão. ─ Sabe, eu percebi que eu não preciso ficar com garotas. Quando beijo uma garota, tudo o que sinto é um prazer momentâneo... Depois fica o vazio e a culpa. Eu não preciso disso, entende? [41]


Sabia que ela não entendia. Até porque minhas palavras e meus sentimentos estavam tão confusos que nem eu mesma me compreendia. Mas prossegui, tentando me mostrar determinada: ─ E eu também não preciso ficar com um homem. Posso ficar sozinha por um tempo... Até eu estar mais segura de minhas decisões. Ela bufou, mostrando-se incomodada. Enfim, mostrando-se a Angeli que eu já conhecia. ─ Por que você fica me contando essas coisas? Eu não entendo nada sobre isso, sinceramente não sei o que falar. Achei graça ao perceber que o incômodo dela não era por ter que ouvir o meu desabafo... Mas por não saber como lidar com isso. Naquele momento, entendi que Angeli, na certa, não era uma pessoa de muitos amigos. ─ Não precisa falar nada se não quiser. Mas também pode se sentir à vontade para dar suas opiniões. É assim que funciona com as amigas. ─ Por que quer tanto ficar minha amiga? ─ Já te disse meus motivos. Queria que acreditasse na sinceridade deles. Ela permaneceu em silêncio por alguns instantes, ainda olhando para os pombos da praça. Por fim, levantou-se e pediu: ─ Podemos ir ao tal restaurante? Estou mesmo com fome. Eu voltei a sorrir, sentindo-me transbordar de alegria. De alguma forma, compreendi aquilo como uma sutil concordância por parte da Angeli. Enfim, vi que seria possível solidificar uma amizade com ela. E aquilo deixou-me muito feliz.

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Io ed i miei occhi scuri siamo diventati grandi insieme9 (Eu e os meus olhos sombrios formamos um grande conjunto) con l'anima smaniosa a chiedere di un posto che non c'è (Com a alma esmaecendo a pedir um lugar que não existe) tra mille mattini freschi di biciclette (Entre mil manhãs frescas de bicicleta) 9

Música: Strada Facendo. Composição: Baglioni. Intérprete: Laura Pausini.

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mille più tramonti dietro i fili del tram (Mais mil entardeceres atrás das linhas do bonde) ed una fame di sorrisi e braccia intorno a me (E uma fome de sorrisos e abraços em torno de mim) ~ Maire ~

Mais uma semana começava. Enquanto escovava os dentes, caminhava pelo apartamento dando uma olhada nos vasos de plantas e checando se estavam bem irrigadas. Abri a janela e olhei para o céu. O sol brilhava forte, anunciando que seria um ótimo dia. Espreguicei-me, respirando fundo, pensando que seria um dia bom para pedalar até a faculdade. Não precisava levar muitos livros para as aulas de segunda-feira, então resolvi que poderia dar um descanso ao carro e usar a bicicleta para ir estudar. E assim eu fiz, logo que terminei de me arrumar.

Io e i miei cassetti di ricordi e di indirizzi che ho perduto (Eu e as minhas gavetas de lembranças e de endereços que perdi) ho visto visi e voci di chi ho amato prima o poi andar via (Tenho visto rostos e vozes de quem amei, indo embora cedo ou tarde) E ho respirato un mare sconosciuto nelle ore larghe e vuote di un'estate di città (E tenho respirado um mar desconhecido nas horas longas e vazias de um verão urbano) Accanto alla mia ombra nuda di malinconia (Junto a minha sombra nua de melancolia)

~ Micaela ~

As caixas de mudança ainda estavam lá, a maioria intocadas. Não havia tido tempo para terminar de me organizar na nova casa. No momento, remexia uma delas, à procura de um livro de cálculos. Mas, ao invés disso, acabei encontrando um porta-retratos vazio, acima de um álbum de fotografias. Assim que abri este último, deparei-me com uma foto da minha [43]


formatura do colégio, ao lado dos meus pais. Aquilo me fez esquecer temporariamente do que eu procurava. Abri o porta-retratos e coloquei nele aquela fotografia que permaneci fitando, saudosa. Parecia mentira que estava sentindo tanto a falta deles. Imaginei que iria sentir saudades, mas jamais pensei que fosse tanta.

Io e le mie tante sere chiuse come chiudere un ombrello (Eu e minhas tantas noites ensimesmadas, como guarda-chuvas que se fecham) col viso sopra al petto a leggermi i dolori ed i miei guai (Com o rosto sobre o peito a ler-me as dores e as mágoas) Ho camminato quelle vie che curvano seguendo il vento (Tenho caminhado naquelas ruas cujas curvas acompanham o vento) E dentro a un senso di inutilità... (E, por dentro, uma sensação de inutilidade...) E fragile e violento mi son detto tu vedrai (E frágil e violenta, disse a mim mesma: você verá) Vedrai, vedrai... (Verá, verá...)

Deixando o porta-retrato em cima de um móvel na sala, voltei a procurar pelo livro e, logo que o encontrei, guardei-o na mochila, peguei as chaves do carro e sai. Enquanto dirigia, olhava para as árvores, casas e pessoas pelo caminho. Notando seus sorrisos, eu me perguntava que motivos teriam para tanta felicidade. Eu jamais fui adepta aos sorrisos vazios ou figurativos. Sorria nos momentos que sentia vontade, com pessoas que me proporcionavam isso... E que não eram muitas. Em geral, apenas os meus pais... Muito mais o meu pai do que a minha mãe. De repente, senti um leve solavanco na porta ao meu lado. Ao olhar, mal pude crer no que via: aquela louca da Goldsmith, de bicicleta, seguravase na janela de meu carro enquanto tirava os pés dos pedais. E, além disso, ainda ria!

Strada facendo vedrai [44]


(Percorrendo a estrada verá) che non sei più da solo (Que você não está mais sozinha) strada facendo troverai (Percorrendo a estrada você encontrará) un gancio in mezzo al cielo (O seu lugar no céu) e sentirai la strada far battere il tuo cuore (E sentirá a estrada fazer seu coração bater) vedrai più amore, vedrai (Verá mais amor, verá)

─ Bom dia! – ela cumprimentou, sorrindo como se aquilo fosse algo perfeitamente corriqueiro. ─ Você é doida? – gritei, enquanto reduzia a velocidade para não causar um acidente. ─ Um pouco... Talvez. – ela gargalhou, como uma criança arteira – Não acha que está um lindo dia? Eu apenas pisquei, intrigada com as atitudes daquela garota louca. ─ Seu carro é a gasolina? – ela questionou. Que espécie de pergunta seria aquela? ─ Sim. – respondi. ─ Poderia comprar uma bicicleta também, o que acha? O meio ambiente agradeceria! Voltei a piscar, ainda mais intrigada do que antes.

Io troppo piccolo tra tutta questa gente che c'è al mondo (Eu, tão pequena no meio de tanta gente que há no mundo) io che ho sognato sopra un treno che non è partito mai (Eu que tenho sonhado com um trem que não partiu jamais) e ho corso in mezzo ai prati bianchi di luna [45]


(E corri em meio ao pranto branco da lua) Per strappare ancora un giorno alla mia ingenuità (Para dar mais um dia à minha ingenuidade) E giovane e violento mi son detto tu vedrai (E, jovem e de forma brusca, disse a mim mesma: você verá) Vedrai, vedrai (Verá, verá)

─ Vai pra academia hoje? – ela perguntou, parecendo não se cansar de pegar “carona” no meu carro. ─ Certamente. ─ Nos vemos lá, então. – desviou os olhos numa outra direção – Até mais! – e largou a janela do carro, fazendo um retorno com a bicicleta. Ao olhar pelo retrovisor, mal pude acreditar no que via: ela havia voltado para apanhar uma lata de refrigerante que avistou jogada na calçada e levá-la até uma lixeira com o símbolo de reciclagem. Goldsmith era alguém bem incomum. Realmente se empenhava em seus ideais de vida, apesar de nunca condenar ninguém por pensar de forma diferente. Como poderia existir uma pessoa assim? ─ Doida... – Resmunguei, ainda com os olhos fixos no retrovisor.

Strada facendo vedrai (Percorrendo a estrada verá) che non sei più da solo (Que você não está mais sozinha) strada facendo troverai (Percorrendo a estrada encontrará) Anche tu, un gancio in mezzo al cielo (Você também, o seu lugar no céu) e sentirai la strada far battere il tuo cuore (E sentirá a estrada fazer seu coração bater) vedrai più amore, vedrai [46]


(Verá mais amor, verá)

~ Maire ~

Já era noite quando eu a vi entrando na academia e dirigindo-se a uma esteira vazia. Porém, ao olhar mais adiante e me avistar, ela simplesmente optou por se “instalar” no equipamento livre, ao lado do que eu usava em meu aquecimento. Tive vontade de vibrar pela escolha dela, mas contive-me e apenas a cumprimentei quando ela se aproximou. Passados dois ou três minutos, ela fez uma observação: ─ Está todo mundo olhando pra mim. Olhei ao redor e confirmei, sentindo-me à vontade para fazer uma brincadeira: ─ Acho que pensam que vou te agarrar a qualquer momento. ─ Não seria louca de tentar isso. ─ Certo. Depois dessa ameaça, tentarei me controlar.

Vedrai... (Verá...)

E, para minha surpresa ela riu. Foi algo leve, quase imperceptível, mas que não passou despercebido por mim. Vi-me paralisada com aquilo... Era a primeira vez que a via sorrir. Porém, quando ela me olhou, na certa notando que estava sendo observada por mim, eu disfarcei: ─ Ei, o que acha de uma corrida? ─ Como assim corrid... – ela foi pega de surpresa quando eu lancei a mão no painel da esteira dela, aumentando a velocidade – Está louca? ─ É divertido! – eu ri, também ajustando o meu aparelho para a velocidade máxima – Vamos ver quem chega primeiro? ─ Aonde? ─ Aonde quisermos chegar.

e una canzone neanche questa potrà mai cambiar la vita (E nem mesmo esta canção será um dia capaz de mudar a vida) [47]


À noite, depois de um banho, eu me joguei na cama. Os cabelos, molhados, caindo pelo meu rosto.

ma che cos'è che ci fa andare avanti e dire che non è finita (Mas há algo que nos faz ir adiante e dizer que não terminou)

~ Micaela ~

Em meu apartamento, sentei ao lado do computador, para finalmente instalar a placa que havia comprado no dia anterior.

cos'è che ci spezza il cuore tra canzoni e amore (Algo que nos divide o coração entre canções e amor)

~ Maire ~

Abri um livro. Precisava estudar para uma prova que teria em dois dias.

che ci fa cantare e amare sempre più (Que nos faz cantar e amar cada vez mais)

~ Micaela ~

Mas minha mente, geralmente tão focada, distraiu-se em pensamentos.

perché domani sia migliore, perché domani tu (Porque amanhã será melhor, porque amanhã você...)

~ Maire ~ [48]


Pela janela aberta, desviei a atenção, olhando para o céu estrelado.

Strada facendo vedrai (Percorrendo a estrada verá...) perché domani sia migliore, perché domani tu (Porque amanhã será melhor, porque amanhã você...)

~ Micaela ~

Olhando as estrelas através da janela, não era capaz de definir ao certo o sentimento que me invadiu.

Strada facendo vedrai (Percorrendo a estrada verá...) che non sei più da solo (Que você já não está sozinha)

~ Maire ~

Eu só sabia que sentia algo reconfortante, o oposto da sensação de ‘estranheza’ que me acompanhava desde que saí do meu país.

Strada facendo vedrai (Percorrendo a estrada verá...)

~ Micaela ~

Era como se eu estivesse de novo em casa.

~ Maire ~ [49]


Era como se, de alguma forma...

~ Micaela ~

De alguma forma muito il처gica... Era como se, ainda que na solid찾o aparente daquele apartamento no Centro de Madrid...

~ Micaela&Maire ~

...Eu n찾o estivesse mais sozinha.

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Janeiro – 2003 Dublin – Irlanda ~ Maire ~

Eu sempre fui diferente. E, o pior: eu sempre soube disso. As pessoas não percebiam. Aos olhos dos meus pais, eu era apenas uma garota como todas as outras: gostava de brincar de bonecas, de pegar as roupas da minha mãe, de me maquiar, de acessórios cor-de-rosa... Mas o que eles não sabiam é que, mesmo gostando de tudo isso, eu também gostava de meninas. Eu tive um namorado. Um carinha bonito, carinhoso, dedicado, inteligente... que só tinha um defeito: gostar de alguém que nunca conseguiria corresponder corretamente a isso. Mas ele logo percebeu isso... E os motivos disso também. Passamos umas três ou quatro horas na sala do apartamento que ele havia acabado de alugar com o dinheiro de seu primeiro emprego, no intuito de ser o lar do casal de noivos que planejava se casar dentro de um ou, no máximo, dois anos. Longas horas, de uma conversa dura, mas definitiva. Três ou quatro horas em que rimos, choramos, nos abraçamos e até levantamos o tom de voz duas ou três vezes. Lembro que a confusão na minha mente era tanta, que alternei nossa conversa com frases paradoxais como “A gente pode tentar” e “Eu não quero continuar te enganando”. Eu realmente queria tentar, porque, de fato, eu o amava. E ainda o amo, mas não como uma mulher deve amar um homem com quem planeja construir um futuro. Não como um homem maravilhoso como ele merecia ser amado. Mas, exatamente por saber que ele merecia muito mais do que eu tinha a oferecer, é que me convenci de que não poderia condená-lo àquilo. E, assim, nós terminamos o noivado. Ele foi muito mais forte do que eu, que caí no choro. Quando me abraçou, disse ao meu ouvido que tudo ficaria bem, que torcia por mim e sabia que eu iria encontrar a pessoa certa e que seria feliz. Disse que eu deveria parar de tentar negar quem eu era. E eu decidi que por um tempo, só por um tempo, iria seguir esse conselho. Mas, pra isso, fui para longe... Fui estudar em outro país, pra conseguir viver a liberdade de saber que, lá, talvez eu pudesse ser eu mesma. Lá, onde ninguém me conhecia. Onde ninguém teria qualquer direito de me julgar.

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Parte 2 - Vivimi –

Madrid – Espanha Maio - 2004 ~ Micaela ~

Eu tinha acabado de acordar quando a campainha tocou. Fazia uns dez minutos que eu havia ligado o computador para concluir um trabalho antes de sair para a faculdade. Enquanto caminhava até a porta, perguntava-me quem poderia ser. Além de não ter parente algum da Espanha, não costumava receber visitas de colegas. Pensei logo que só poderia ser algum vizinho ou um vendedor tentando me importunar com algum produto inútil. Se estivesse mais distraída, teria até me assustado quando, ao abrir a porta, quase fui atropelada pela ruiva que adentrou o meu apartamento. ─ Bom dia! – e ela sorria, pra variar. Como alguém poderia ser tão feliz às sete da manhã? Permaneci parada junto à porta, olhando abismada para a invasora. Também não fiz cerimônia para perguntar: ─ O que está fazendo aqui? ─ Vim conhecer a sua casa. – ela respondeu, enquanto olhava ao redor, como uma criança curiosa – E te contar as novidades. Falei para a minha mãe que te conheci. Continuei olhando-a, perguntando-me qual a relevância daquele diálogo. ─ E? – indaguei. ─ Oh, ela ficou radiante! Disse que ela e sua mãe eram ótimas amigas e que faz bom grado que eu faça amizade com a “pequena Mic”. ─ “Mic”? Certo, aquilo sim era estranho. Na verdade, era até um choque ouvir alguém me chamando daquele jeito, que não fosse a minha família. Na [52]


infância, eu era apenas “Micaela” para colegas e professores, e, depois que cresci, passei a ser a “Angeli”. Era “Mic” apenas para meus pais, ninguém mais. Mesmo meus ex-namorados me chamavam pelo primeiro nome, sem apelidos ou diminutivos. ─ Mas isso não é tudo! – ela prosseguiu, empolgada – Contei isso a ela ontem de tarde, e hoje pela manhã ela me ligou novamente para contar que... – calou-se, sendo interrompida pelo toque do telefone. Certo... visita e telefone. Aquela manhã estava muito mais tumultuada do que o habitual. Atendi o telefone, ouvindo uma voz feminina: ─ Bom dia, Mic. Ao menos dessa vez era alguém da minha família. ─ Diga, mamma. ─ Como está? ─ Numa manhã agitada, eu diria. – sentei-me no sofá, de costas para a ruiva que ainda analisava o meu apartamento. ─ Brigite me ligou ontem, contando que você e a pequena Maire haviam se conhecido. “Pequena”? Será que era típico de mães falarem daquele jeito? ─ Sim. Ao que tudo indica, estudamos na mesma faculdade. ─ Uma incrível coincidência. De novo aquela palavra. Até a minha mãe parecia estar sendo contaminada por essa crendice popular. Ela continuou: ─ Seu pai e eu ficamos muito felizes com isso, Mic. Assim podemos nos sentir mais tranquilos por saber que você não estará mais tão sozinha aí em Madrid. ─ Mamma, eu não vejo problema algum em ficar... – calei-me quando, ao me virar, avistei Goldsmith remexendo a minha geladeira. – Mamma, preciso desligar. Mais tarde eu te ligo. Joguei o telefone sem fio sobre o sofá e corri até a cozinha. ─ O que está fazendo? Aquela doida me olhou, ainda com a porta do refrigerador aberta. ─ Não tem comida aqui? ─ No freezer. – nem sei por que respondi. [53]


Ela abriu a porta de cima da geladeira e fez uma cara desanimadora. ─ Comida congelada? Isso faz mal, Angeli. ─ Ah, é? Por quê? Por serem derivados de animais? Ela fechou a porta do freezer e virou-se de frente para mim, começando com seus discursos certinhos: ─ Olha, eu não me importo se você opta por se alimentar de animais, é uma escolha individual de cada um. Mas me importo por você simplesmente não se alimentar. Tem noção de quanta química tem nessas comidas semiprontas? ─ Não tenho tempo nem paciência para cozinhar. – E nem sabia cozinhar, pra falar a verdade. ─ Bem... Ao menos você poderia tentar equilibrar com frutas ou saladas cruas, que são muito fáceis de preparar. Mas não tem nada disso por aqui. Suspirei, cansada de toda aquela “bronca”. ─ Goldsmith, por que está tentando controlar a minha alimentação? – a pergunta deveria ser: “que diabos você tem a ver com a minha vida?”, mas Goldsmith estava começando a me fazer ter uma educação e paciência que definitivamente não eram do meu perfil. ─ Era o que eu ia dizer antes do seu telefone tocar. Sua mãe pediu a minha mãe que me pedisse para cuidar de você. Eu quase caí pra trás diante daquela ideia absurda e estúpida. Onde a minha mãe estava com a cabeça? ─ Cuidar de mim? E com que direito? ─ Ué... Somos amigas. Éramos? ─ Nos conhecemos há menos de um mês. Não é como se fôssemos amigas de infância! Ela cruzou os braços, parecendo tentar fingir uma pose autoritária, e indagou: ─ E tem, em Madrid, alguma amizade mais antiga que a minha? Certo... Ponto pra ela. Não tinha mesmo. Nem em Madrid, nem na Itália, nem em lugar algum. Tinha colegas, conhecidas... Mas não amigas. Nunca me preocupei em ter, aliás. Parecendo ler os meus pensamentos, a ruiva completou: [54]


─ Então, eu vou cuidar de você e assunto encerrado. Devo fazer compras essa semana e trarei algumas coisinhas para você também. ─ Eu não preciso que você... Ela me interrompeu, olhando para o relógio e exclamando: ─ Nossa, está na minha hora. Hoje pego cedo na Faculdade. Nos vemos à noite na academia, certo? Tchau! E sem aguardar por respostas, ela virou-se e saiu na mesma velocidade com que tinha entrado. Já eu, ainda fiquei parada por alguns instantes, estática, completamente abismada com a situação. Pensava no quanto aquela garota, além de estranha, era metida. Que direito achava que tinha para se meter na minha vida daquela forma? Eu deveria dar um basta naquilo, definitivamente. Porém, pensando um pouco melhor, eu não saberia dizer se, de fato, gostaria de me ver livre disso. A grande verdade é que me sentia confortável na presença da Goldsmith. Ela era uma boa companhia, afinal. Ainda que às vezes visse a intromissão dela como algo irritante, no fundo não era uma irritação real. A lembrança de que eu ainda tinha um trabalho pra concluir me livrou daquela ‘paralisia’ e eu voltei para perto do computador. Mas nem cheguei a sentar na cadeira quando a campainha tocou. ─ De novo? – resmunguei, estando certa de que seria novamente aquela ruiva, que deveria ter esquecido alguma recomendação. Porém, eu estava enganada. Soube disso quando abri a porta e, subitamente, senti o ar me faltar ao ver quem era. Jamais imaginaria vê-lo ali.

*****

Existem momentos que fantasmas do passado resolvem retornar para nos atormentar. Alguns, em forma de lembranças e situações... Outros, infelizmente, surgem em carne e osso. E ali estava o meu pior fantasma. Qualquer uma diria que aquele era o homem dos sonhos. Alto, cabelos negros que contrastavam com os olhos tão azuis quanto o céu; um tórax definido, escondido por trás de ternos elegantes e finos; um sorriso simpático e o olhar de um galanteador. O cara perfeito? Não, apenas um cara com a embalagem perfeita. Sem contar que ele nutria um elevado padrão de vida, mas nada conquistado por esforço próprio (mesmo porque, duvidava muito que ele sequer soubesse o significado da palavra “esforço”): seu pai tinha um [55]


cargo elevadíssimo em uma grande empresa automobilística... Era o superior direto do meu pai. Podem me chamar de anormal, mas, em muito pouco tempo de convivência, eu passei a não enxergar mais beleza alguma ali. Apenas um playboy arrogante, uma casca sem qualquer caráter ou conteúdo. Nós mal tínhamos assuntos ou gostos em comum. Tanto que, a despeito do que meus pais imaginavam, em poucos meses eu passei a sentir o nosso namoro como algo completamente estranho e incômodo. Às vezes, eu me pegava me perguntando o que é que eu tinha visto nele. Havíamos nos conhecido ainda crianças, e eu o achava um garoto sério e introspectivo, e essas características em comum com as minhas me chamaram a atenção. Perdemos o contato por alguns anos e quando nos reencontramos, já na adolescência, acho que meus hormônios falaram mais alto e fizeram com que eu me encantasse pelo homem bonito que ele havia se tornado. Pois é, até a criatura mais racional é às vezes sacaneada pelos hormônios. Mas, agora, eu não sentia mais nada. Não havia amor, carinho, atração ou mesmo qualquer simpatia por ele. Nem ódio, na verdade. Apenas indiferença. Achei que nem tão cedo voltaria a vê-lo, e jamais imaginei que ele viesse a bater à porta do meu apartamento em Madrid e, ainda, insistir para me levar até a faculdade. O curto trajeto foi feito em total silêncio e, apenas quando o carro parou em frente a um dos prédios da Universidade, Leonardo puxou o assunto que tinha ido tratar: ─ Acho que precisamos conversar. Eu sequer o olhei antes de retrucar: ─ Que parte do “acabou” você não entendeu? ─ Não pode jogar no lixo um ano e meio de relacionamento. ─ Pessoas jogam “no lixo” anos de casamento. Um ano e seis meses de um namoro de fachada não são nada. Ele se exaltou, aumentando um pouco o tom de voz: ─ De onde tirou isso de “fachada”? Eu não soube responder. Talvez o problema fosse apenas meu por não ter sentido aquele namoro como algo verdadeiro. Podia dizer que, nos últimos meses, os dois ou três dias da semana em que nos víamos eram considerados, por mim, como uma grande chatice. Estar com ele era como uma obrigação, algo feito sem o menor prazer. Percebendo que não obteria resposta, ele mudou a abordagem, voltando a falar com a voz mais mansa: [56]


─ Eu sei que errei, mas já pedi perdão. Por que não para com essa palhaçada de estudar na Espanha e volta pra Itália, pra tentarmos novamente? Pela primeira vez desde que entramos naquele carro, eu o olhei, já levemente irritada. ─ Palhaçada? Acha que os meus estudos são uma palhaçada? ─ Existem faculdades na Itália, sabia? ─ Mas eu consegui a bolsa na de Madri. ─ Bolsa? Para que bolsa? Aliás, para que faculdade? Seu pai tem um emprego invejável. Mal podia acreditar que estivesse ouvindo um argumento como aquele. ─ Acha que vou passar o resto da vida dependendo do meu pai? ─ Mesmo depois que ele morrer, a sua parte na herança deve dar para você viver confortavelmente por toda a vida. Pensei que aquilo devia ser uma piada de mau gosto, não haveria outra explicação. ─ Notou que está falando do meu pai? ─ Não seja hipócrita, todos morrem algum dia. Por outro lado, sabe que, casando-se comigo, nem vai precisar mexer nesse dinheiro. ─ Quer saber? Você é ridículo! Já muito mais revoltada do que achei que ficaria, abri a porta do carro e comecei a sair, mas fui detida pela mão que agarrou-se fortemente ao meu braço. Ao voltar a olhá-lo, vi fúria em seus olhos, a mesma que vi no dia em que anunciei o término do nosso namoro. Por um instante, reparei que os olhos dele tinham o mesmo tom de azul dos da Goldsmith. Porém, os olhares, em si, eram completamente opostos. ─ Você é minha, Micaela! – ele esbravejou, apertando o meu braço com mais força – E vai voltar comigo para a Itália. Nesse momento, a indiferença que sentia deu lugar à raiva. Ele já havia me ferido uma vez, mas eu não deixaria que isso acontecesse de novo. E também não me permitiria baixar os olhos diante de tamanha presunção. ─ Não sou uma coisa para pertencer a você. Dito isso, puxei o braço e me soltei, finalmente saindo do carro. Segui para a faculdade, sem olhar para trás. [57]


***** ~ Maire ~

Faltavam poucos dias para a minha palestra e, por isso, eu novamente havia saído pelos arredores da Universidade, distribuindo os meus panfletos. Tinha parado um pouco diante do prédio de exatas quando, por acaso, foquei num carro que estava parado ali perto e minha atenção foi detida por reconhecer a pessoa no banco do carona. Pra falar a verdade, eu ainda demorei um pouco para acreditar nos meus próprios olhos, afinal, sabia que Micaela não tinha amizades em Madrid e, por isso, não conseguia entender o que ela fazia dentro de um carro ao lado daquele rapaz. Aliás, não pude deixar de notar que era um rapaz bem bonito. Quando ela tentou sair, ele a segurou pelo braço e, pelo jeito com que se olharam, era notório que havia algo entre eles. Algo não muito bem sucedido, já que pareciam discutir... Mas, ainda assim, algo. Afinal, não se entra num carro e discute com um cara bonito que mal se conhece, não é? Fiquei intrigada e, ao mesmo tempo, incomodada. De alguma forma, a proximidade dos dois me feriu. Ela saiu do carro e seguiu tão apressada para o prédio que sequer me viu. Já eu, continuei olhando para o rapaz do carro. Vi que ele seguia Micaela com os olhos e, então, tive ainda mais certeza de que existia algo entre os dois. Teria ele vindo da Itália? A placa do carro era de Madrid, mas poderia ser um veículo alugado, afinal, nem todo mundo tinha disposição para dirigir quase vinte horas de Roma até a Espanha como a Angeli gostava de fazer. Em alguns minutos, ele foi embora. E eu segui o veículo com os olhos, até que ele sumisse ao virar em uma rua. Durante o restante do dia eu não consegui deixar de pensar naquilo. Não consegui me concentrar em nenhuma aula, e passei todo o tempo controlando o relógio, ansiosa para que chegasse logo a noite e eu pudesse encontrá-la na academia. Foi o que aconteceu por volta das dezoito horas, quando cheguei ao local. Micaela já estava lá, fazendo seu aquecimento em uma esteira. Parei, ainda perto da porta, recapitulando tudo pela milésima vez. A cena vista pela manhã se repetia na minha mente, ao mesmo tempo em que eu me corroía de curiosidade em saber quem era aquele homem. Seria um namorado de Angeli? Mas ela nunca havia mencionado o fato de ser comprometida com alguém. Seria um caso novo, então? Talvez fosse mesmo um espanhol. Um ‘ficante’ ou coisa do gênero. ─ Mas por que estou pensando nisso? – murmurei, sozinha. [58]


De fato, por que estava tão interessada naquele assunto? Aliás, “interessada” não seria a palavra ideal. Eu estava incomodada. Mas se a Micaela, de fato, tivesse um namorado e fosse feliz com ele, não seria uma ótima notícia? Como amiga, eu deveria me sentir feliz também com isso, certo? É claro que deveria! E, tentando me convencer disso, enfim adentrei o salão da academia, caminhando, como de costume, até a esteira vaga ao lado de Micaela. ─ Olá! – eu a cumprimentei, sorrindo como sempre fazia. E, também como de costume, ela respondeu apenas com um leve aceno de cabeça. Preciso confessar que essa era outra coisa que me incomodava. Gostava quando ela falava comigo, ainda que daquele jeito meio seco. Adorava a voz dela Nesse momento percebi que estava adorando coisas demais nela. E isso não estava certo, assim como não era nada certo eu ficar incomodada com a situação que presenciei pela manhã. Afinal, qual era o problema se a Micaela havia chegado à faculdade acompanhada por um homem? Ela era livre, solteira e hetero. E isso, definitivamente, não era da minha conta, nem devia me afetar em nada. Eu disse a ela que éramos amigas e, nesse papel, eu deveria me sentir feliz caso ela estivesse saindo com alguém, certo? Por isso, eu jurei que não comentaria nada a respeito. Mas essa determinação não durou nem dois minutos e, quando me dei conta, já estava forçando um sorriso e dizendo: ─ Te vi chegando à Universidade com um rapaz. Seu namorado? – tão sutil quanto um elefante! Porém, não havia mal algum em perguntar, não é? Éramos amigas e seria normal ter tal curiosidade. O problema é que, no fundo, eu sabia que uma resposta positiva não me empolgaria, como uma amiga deveria se empolgar em uma situação daquelas. A resposta, contudo, foi negativa. Mas eu não senti alívio. Ao contrário, o que senti foi tristeza ao notar a expressão de abalo no rosto da Angeli, quando ela respondeu: ─ Não. É apenas um conhecido. ─ Sério? É que, olhando à distância, me pareceu que... ─ Foi só uma falsa impressão. Visivelmente incomodada com o assunto, ela saiu da esteira e seguiu para outro aparelho. Eu a acompanhei com os olhos, odiando-me pela minha indiscrição. [59]


E odiando-me, também, ao perceber os sentimentos que começavam a brotar dentro de mim. Por tudo que é mais sagrado, como eu quis me livrar daquilo!

***** ~ Micaela ~

Mais uma semana se passou e, enfim, chegou o sábado, dia pelo qual eu esperava ansiosamente. Não por qualquer compromisso em especial, mas, ironicamente, porque eu queria estar em casa para estudar. Uma prova importante se aproximava e, durante a semana, eu não tinha tempo para se focar no estudo específico para aquilo. Eram nove da manhã e eu já estava sentada diante do computador quando a campainha tocou. Estranhamente, não fiquei furiosa por estar sendo interrompida, já que logo imaginei quem estaria ali, afinal, só havia uma pessoa que me visitava, mesmo sem ser convidada. Eu não me importava mais e, no fundo, já me sentia bem à vontade na presença de Maire Goldsmith. Porém, pela segunda vez cometi o mesmo engano. Ao abrir a porta, não foi Goldsmith que encontrei, mas, novamente, o idiota do meu ex, que não aguardou por qualquer convite para adentrar o meu apartamento. ─ Ainda não foi embora? – indaguei, furiosa. Ele parou próximo à bancada que separava a sala da cozinha e me encarou. ─ Já disse que só vou levando você junto. O tom de voz dele se alterou, mesclando a irritação com algo que deveria soar como o discurso de um conquistador barato. Ele me conhecia há tanto tempo, e ainda achava que eu era boba e fácil como as vadias com quem me traía. É, eu tinha certeza de que tinha sido mais de uma. Deixando a porta aberta, eu me aproximei, parando diante dele. ─ Nem o meu pai tentou me obrigar a voltar para a Itália. Quem você pensa que é para ter essa autoridade sobre mim? ─ Seu futuro marido. Eu quase ri diante daquela presunção. ─ Você não é nada meu. Acabou, eu já disse. Mas ele parecia não concordar com isso. [60]


─ Eu não aceito perder você, Micaela. – insistiu, ficando a cada instante mais nervoso – Quero, e exijo, que você volte comigo para a Itália. O nível da presunção estava aumentando. Quem ele achava que era para se meter a exigir algo de mim? Ainda mais nervosa, passei a gritar: ─ Pra quê? Já tem as suas outras mulheres. Sempre teve! Acha que sou tão tola para acreditar que aquela secretária foi a única? ─ Se eu te traí, a culpa foi toda sua! – ele também gritou – Eu não precisaria recorrer a isso. Mas você nunca me satisfez por completo. Não passa de uma nerd frígida. Ao mesmo tempo em que a última frase foi dita, ouvi um barulho próximo à porta. Olhar para lá e ver quem havia chegado me fez sentir ainda mais forte o peso da humilhação naquelas palavras.

~ Maire ~

Eu mal acreditei na cena que encontrei. A vergonha de perceber que havia chegado num péssimo momento e presenciado uma discussão pessoal só não foi mais forte do que o aperto que senti no peito ao ver Micaela sendo ofendida daquela maneira. Quando ela me olhou e pude ver a humilhação estampada em seu rosto, tive vontade de correr para abraçá-la e de colocar aquele sujeito pra fora, de forma nada educada. Eu odiava violência, então isso mostra o quanto eu fiquei indignada com a situação. Quem aquele homem achava que era para falar com Mic dessa maneira? Aquela era uma das formas mais cruéis de se atingir uma mulher: por em cheque sua feminilidade. É, e eu não precisava ser heterossexual para entender disso. Contudo, mesmo revoltava, eu não sabia como deveria agir. Simplesmente fiquei parada, próxima à porta, sem qualquer reação. Foi Mic quem reagiu, como deveria ser. Tornou a encarar o sujeito e ordenou: ─ Vá embora! Você não tem qualquer direito de entrar na minha casa para me dar ordens ou tentar me humilhar. Ele pareceu nem ter notado a minha presença. ─ Já disse que só saio daqui com você junto. O que ocorreu a seguir foi rápido e inusitado. Tomada pela raiva, Micaela fez um rápido movimento com a mão e apanhou uma faca de pão que estava sobre o balcão, apontando-a para o pescoço daquele cara. Confesso que senti um certo prazer ao ver os olhos dele se arregalaram [61]


diante da ação, enquanto ainda tentava manter a pose de “homem que manda”. ─ Abaixa essa faca, Micaela. Ela obedeceu, o que me fez rir por dentro. A lâmina que antes apontava para o pescoço, agora ameaçava outra parte do corpo dele. Mais embaixo, se é que me entende. Foi ele quem mandou abaixar, não foi? ─ Ou você volta sozinho e inteiro para as suas vadias da Itália, - ela alertou, encarando-o – ou tenta me arrastar junto e um pedaço de você... Um pedaço bastante estimado, diga-se de passagem... Ficará aqui em Madri. ─ Você enlouqueceu. – Ele murmurou, e pude até ver algumas gotículas de suor brotarem em sua testa. O macho viril pareceu desaparecer diante de uma mísera faquinha de pão. ─ Vai pagar pra ver até que ponto vai a minha “loucura”? – Ela indagou. E ele, lógico, não pagou. Em silêncio, deu meia-volta e saiu. Eu o segui com os olhos até avistá-lo entrar no elevador e, em seguida, voltei a olhar para Micaela. O aperto no meu peito voltou quando a vi se jogar no sofá e abaixar a cabeça, visivelmente constrangida e transtornada. Fechei a porta e, devagar, me aproximei. ─ Mic... – comecei a falar, mas fui cortada. ─ Você não devia ter visto isso. ─ Desculpe. Ela não respondeu e um silêncio perturbador invadiu a sala. Mesmo com o rosto abaixado, vi que Micaela estava completamente tomada pela vergonha e pela humilhação. Decidi que, mesmo que nada daquilo fosse da minha conta, eu precisava interferir. ─ Sabe que ele estava mentindo, não é?! ─ Como você pode saber? – ela retrucou, ainda com o rosto abaixado. ─ Porque, só pelo jeito dele, já deu para notar que é um insensível incompetente, incapaz de fazer qualquer mulher realmente feliz. ─ Talvez mulheres de verdade. ─ E quem disse que você não é uma mulher de verdade? No fundo, nós mulheres somos todas iguais, sabia? Nós só desejamos ser amadas, nada mais. É uma lógica tão simples, mas a maioria deles simplesmente não consegue entender. [62]


Na verdade, eu já nem sabia exatamente do que estava falando. Não tinha qualquer problema com homens (não gostava deles, mas, juro, não era nada pessoal!). Meus amigos eram caras legais, meu pai era um marido maravilhoso, e o único namorado que tive sempre me tratou como uma princesa, mesmo quando nós terminamos. Talvez por isso eu tenha ficado tão chocada com a cena. Mic não merecia, de forma alguma, ser tratada daquela maneira e, ainda que eu nunca tivesse passado por algo assim, conseguia fazer ideia do que ela estaria sentindo. Pensava em algo mais para dizer (e que fosse algo que prestasse, dessa vez!), mas fui surpreendida quando a Mic se adiantou em desabafar: ─ Eu cheguei a gostar dele. – a voz dela estava baixa e carregada de uma fragilidade que eu nunca pensaria encontrar nela. Meu peito apertou ainda mais – Mas isso não resistiu por muito tempo depois que começamos a nos relacionar. Com o anterior a ele, aconteceu a mesma coisa. Ela fez uma pausa, e eu tomei a liberdade de expor uma curiosidade: ─ E por que não terminou há mais tempo? ─ Conveniência, eu acho. Estava certa de que não encontraria outra pessoa. Demorei pra perceber que eu me sentia muito melhor sozinha do que ao lado dele ou de qualquer outro idiota. Eu fico bem solitária. ─ Tudo bem estar sozinha, mas... Ser solitária é algo muito triste. ─ Estou acostumada. ─ Então desacostume-se.

~ Micaela ~

Ouvir aquilo me fez, enfim, tomar coragem para encará-la depois de toda aquela situação vergonhosa. Foi só então que reparei algumas sacolas de compras próximas à porta. Na certa aquela louca tinha mesmo resolvido comprar “comida de verdade” para mim. Olhando-a no rosto, vi que ela sorria e aquilo, apenas aquilo, foi todo o consolo que eu precisava. Apenas um sorriso, e eu me senti em paz. ─ Eu não vou te deixar em paz, Mic. – ela garantiu. Eu não soube o que dizer. Aquilo era tão incomum... tão surreal. Por que alguém que me conhecia há tão pouco tempo se importava tanto comigo? Eu estava acostumada a receber demonstrações de preocupação de meus pais, apenas. Minha família, meu sangue... Como era possível que alguém que surgira do nada em minha vida, de repente começasse a assumir um lugar de importância quase vital? Importância vital. [63]


Só então me dei conta de que gostava dela. Apenas ainda não sabia como nem quanto. Ela tomou fôlego para dizer alguma coisa, mas, aí, interrompeu-se, colocou a mão diante da boca e espirrou. Aquilo, sim, foi inusitado. ─ A senhorita ‘perfeição-natureza-e-saúde’ está gripada? – questionei, irônica. Após coçar o nariz, ela rebateu: ─ Que nada! É só uma alergia boba. Vou fazer algo para nós comermos, o que acha? Ela não aguardou por qualquer resposta, e foi para a cozinha, levando as sacolas de compras. Relembrei o quanto aquela ruiva era metida. ─ Vai à igreja amanhã? – Ela indagou, enquanto guardava as compras na geladeira. Será que ela achava mesmo que eu ia comer aquele monte de coisas verdes? – Podemos ir juntas de novo, o que acha? ─ Não. – eu respondi – Acho melhor ficar em casa, tenho uma prova importante segunda. ─ Verdade? Bem, então vou orar para que você vá bem nessa prova. Não devo vir aqui amanhã, então. À tarde tenho uma manifestação de ativistas e, de noite, combinei com o pessoal no Cadiz. Não lhe convido para ir junto porque você tem prova segunda, não é? Mas o que acha de ir no próximo final de semana? ─ Pode ser. – nem eu entendi porque tinha aceitado o convite. Ir a bares, definitivamente, não era o tipo de programa que eu apreciava. Notei que ela sorriu com a minha concordância, então resolvi não voltar atrás. Mas foi só dar um pouquinho de liberdade, que os convites continuaram: ─ E na segunda, o que acha de irmos juntas para a faculdade? Tenho alguns livros para levar e não dá pra ir de bicicleta. Então, como precisarei ir de carro, posso passar por aqui e te dar uma carona. Um carro a menos nas ruas contribui para a redução do nível de poluição. Eu não me importava muito com a poluição, mas não vi motivos para negar a carona. Eu já não rejeitava mais a ideia de passar mais tempo na companhia dela. Por isso, concordei. E Goldsmith continuou empenhada em preparar o almoço.

***** ~ Maire ~ [64]


Em pouco mais de uma hora, após almoçarmos, eu fui embora para que a Mic pudesse estudar. Estava bem aliviada por ela já estar visivelmente melhor e, com isso, eu podia ir embora tranquila. Logo que cheguei à calçada, no entanto, percebi que o assunto ainda não estava definitivamente encerrado. Aliás, o “assunto” estava bem ali, dentro de um carro importado, estacionado diante do prédio e com os olhos fixos na janela do 12º andar. Pensei rápido no que iria fazer e logo agi. Após dar uma rápida ajeitada nos cabelos e estampar um ar de sorriso no rosto, eu me aproximei, fazendo uso do charme que todos alegavam que eu tinha. ─ Complicado, né? – eu disse, apoiando os braços na janela ao lado dele. Ele me encarou, confuso. ─ O quê? ─ Angeli. – respondi, apontado para o prédio. Ele manteve-se sério, na certa me reconhecendo. ─ É amiga dela, não é? ─ Não exatamente. – sorri e pisquei um dos olhos, usando um pouco da sedução que meus amigos diziam que eu tinha. E pareceu funcionar, pois a expressão no rosto dele se tranquilizou. ─ Muito, muito complicado. Você viu como ela me tratou, não viu? ─ É, eu vi. Pobrezinho! Tudo o que você queria era uma segunda chance. – dei uma rápida olhada para o veículo, antes de voltar a fitá-lo – Bonito carro. É seu? Ele sorriu, parecendo orgulhoso. Notei que os olhos dele desviaram descaradamente para o decote do meu vestido, mas fingi ter me sentido envaidecida. ─ É bonito, mas não é meu. É alugado. Meus carros ficaram em Roma. Notou o plural? ─ Nossa, mas deve ter sido um aluguel bem caro. ─ Não abro mão do melhor. Além do mais, pra que economizar? ─ Sei. Deve ter um bom emprego. ─ Algumas pessoas não precisam disso. A empresa do meu velho pode me pagar essas mordomias.

[65]


Era apenas onde eu queria chegar. Sabia que alguma informação valiosa viria, mas não imaginei que seria tão rápido. Debrucei-me um pouco mais, chegando meu rosto mais próximo ao dele. Num tom sacana, indaguei: ─ Então, quer dizer que a Angeli é uma frígida? ─ Fria como uma geleira. – ele respondeu, se divertindo com a situação e me devorando com os olhos. ─ Compreendo. ─ Compreende a minha situação? ─ Não. Compreendo que não dá mesmo para ter qualquer prazer com um imbecil como você. Suspendi o corpo, tirando a visão que ele tinha dos meus seios, além de deixá-lo nitidamente confuso com a minha última fala. ─ Como é? ─ Fique longe dela. – ordenei, deixando o tal charme de lado para falar num tom de autoridade que não me era comum – Fique bem longe dela. ─ Mas quem você pensa que é? ─ Ah, não sou ninguém importante. Só uma pessoa comum, que pode escrever uma carta para a diretoria da empresa do “seu velho” para comunicar um certo desvio de verba para que um playboy filho de um dos funcionários possa desfilar de carro importado em outros países. Os olhos dele arregalaram e eu sorri pensando que, daquele jeito, ele já não parecia mais tão bonito quanto achei que fosse na primeira vez que o vi. Virei para ir embora, mas parei quando ele gritou: ─ Sua vadia! Disse que não era amiga dela! Virei-me para ele e, sem tirar o sorriso de vitória do rosto, expliquei: ─ E não sou. Não sou uma amiga; sou a melhor amiga da Mic. Se ousar se aproximar dela de novo, eu transformo a sua vida num inferno. Peguei minha bicicleta, que estava presa na calçada, e fui embora, sem me preocupar se aquele sujeito iria me seguir. Mas ele não o fez, certamente a ameaça o havia assustado o suficiente para ele resolver ir embora. Estúpido, desonesto e covarde. Ele, definitivamente, não merecia a Micaela.

*****

[66]


─ Maire! – o grito que meus três amigos deram, em uníssono, fez os meus ouvidos doerem. Já não bastava Pablo, que tinha feito o mesmo minutos antes, quando o encontrei ainda na porta do Cadiz? O motivo? Nada demais. Eu estava apenas encharcada, da cabeça aos pés. Pingando e molhando, também, o chão do bar. Nem sei como me deixaram entrar, vai ver tiveram pena. Ah, sim... Preciso explicar como cheguei a essa situação, não é? Pois bem, fui a um manifesto, pelo fechamento de uma multinacional poluidora que se instalara na cidade. A passeata tinha sido numa das praças centrais de Madrid, o que, óbvio, ocasionou um certo tumultuo... O que atraiu a polícia... e o que causou um certo choque de ânimos. Tudo terminou com policiais jogando água nos manifestantes, para conter o que chamaram de “bagunça”. Então, fui direto para o bar e encontrei com o Pablo ainda na porta. Ele me acompanhou, preocupado, levando-me até a mesa onde meus amigos estavam. E os três o encararam de forma reprovadora, logo começando uma briga por acharem que ele tinha algo a ver com isso. Quando eu enfim consegui explicar a situação, Pablo me deu um beijo na testa e voltou para perto do grupo dele. ─ Você tem uns amigos estranhos, Maire. – Resmungou Diego, assim que Pablo se afastou. Ainda não o apresentei, não é? Pois bem, ironicamente, apesar da frase usada, o Diego era a pessoa mais excêntrica que eu conhecia. Tinha os cabelos compridos, com mechas multicor, além de trejeitos femininos, maquiagem carregada e roupas góticas. ─ É... Sabe que todo mundo diz isso? – comentei, brincalhona. Mas logo voltei a ficar séria e me sentei, começando a contar, num tom de revolta: ─ Sabem o que estará na capa de todos os jornais amanhã? Que nosso manifesto foi violento, e não foi verdade! Os policiais já chegaram com arrogância e por causa de um ou outro que iniciaram uma briga, tudo virou uma bagunça generalizada. Essa polícia não respeita ninguém! Aliás, ninguém respeita mais ninguém hoje em dia. – furiosa, peguei o primeiro copo que vi sobre a mesa e o virei goela abaixo, num gole só. Senti o líquido queimando em minha garganta e fiz careta – Isso tem álcool! Arg! ─ Era a minha bebida, Maire. – anunciou Alicia, calmamente. Paloma suspirou, antes de perguntar: ─ Lindinha, o que está acontecendo com você? Debrucei-me sobre a mesa (molhando a toalha que a cobria, mas ninguém pareceu se importar), e resmunguei: ─ Não sei. Acho que ando tensa demais. [67]


─ Está apaixonada? – intuiu Paloma. Levei um susto com a pergunta. ─ Por que acha isso? ─ Outro dia você estava com um discurso pronto de que ia “sair dessa vida errada”. Desde então, não tem ficado com ninguém, o que prova que você está decidida... Agora, você aparece irritada e estressada... E como você é tão perfeitinha que parece ser imune até a TPM, só posso supor que está gostando de alguma garota. ─ E nem ia nos contar, metida! – Resmungou Diego, fazendo bico. ─ Não tem garota nenhuma! – eu me defendi – Já falei que isso é passado. Vou me corrigir, já disse! ─ Acha mesmo que é fácil? – indagou Alicia. ─ Lógico que é. – rebati. ─ Então vejamos... – Alicia insistiu – Será que consegue sentir atração por homens? ─ Claro que consigo! ─ Então diga um! Revirei os olhos, pensando sobre o assunto. Após alguns segundos, respondi, hesitante: ─ Leonardo DiCaprio? Mas a Alicia não aceitou a minha resposta. ─ Algum que seja um pouco mais acessível. Acessível? Bem, então apontei para o único homem da mesa. ─ O Diego é um gato! Achei super fofo quando ele sorriu, sentindo-se orgulhoso pelo elogio. Já Alicia e Paloma se entreolharam e suspiraram, em desânimo. A segunda comentou: ─ Gosta de homens inatingíveis... E de homens que parecem mulheres. É... Você é lésbica e sempre será, aceite! Sentindo-me cansada, eu abaixei a cabeça, escondendo o rosto entre os braços debruçados sobre a mesa. Era óbvio que eu não me mostrava disposta a aceitar aquilo. Estava determinada a me “corrigir”, e faria isso logo, antes que acontecesse o que Paloma dissera e eu acabasse me apaixonando realmente por alguma garota. Se deixasse isso acontecer, tudo estaria perdido. [68]


Levantei o rosto ao ouvir que meus amigos cochichavam algo e, então, pude perceber o motivo: havia um rapaz duas mesas adiante, que não parava de nos olhar. Prestando mais atenção, percebi que era eu o foco dele. Se restava qualquer dúvida, tive certeza quando ele se levantou, começando a vir em minha direção. Aquela era a minha chance. E uma chance de ouro! Um rapaz bonito, flertando comigo em um bar! Bem que poderia ser o primeiro passo para a minha “cura”... ou ao menos para provar pra todos ali que eu poderia mudar. Porém, verdade seja dita: eu estava apavorada. Minhas pernas tremiam, como se eu tivesse voltado a ter doze anos, e a ser uma menininha insegura. Mas eu não iria fraquejar em minha decisão! E apenas para aumentar minha coragem, apanhei outro copo sobre a mesa e bebi seu conteúdo num gole só. Dessa vez foi Diego quem reclamou: ─ Essa bebida era minha! ─ Foi mal! – desculpei-me, sem tirar os olhos do homem que se aproximava. – Preciso disso pra tomar coragem. ─ Precisa de coragem pra beijar um bofe lindo daqueles? – Diego indagou. Beijar? Eu nem tinha pensado nessa parte e já estava apavorada. Agora a coisa tinha piorado. Já fazia quase um ano que eu não sabia o que era beijar um homem, desde meu último namorado. E era uma situação completamente diferente, nós ficamos juntos por mais de um ano. Havia confiança e cumplicidade entre nós, não era um mero estranho. Mas eu já havia ficado com garotas em bares ou festas, então, não seria diferente ficar com garotos também... Afinal, agora eu ia voltar a ser hetero. É... Ignore o “voltar”. Eu nunca fui mesmo. Pra tomar mais coragem, apanhei o último drink da mesa e o engoli, controlando-me para não fazer uma careta (aquele era bem forte. Como meus amigos conseguiam gostar daquilo?). Enfim, ele chegou mais perto e eu pude repará-lo melhor. Tinha um lindo sorriso e olhos negros... Ou eram castanhos? Ou verdes? Minha visão ficou um pouco turva, não sabia se devido ao álcool ou ao nervosismo. ─ Oi! – ele me cumprimentou. Forcei um sorrido e respondi: ─ Oi. ─ Quer dançar? [69]


Aceitei e deixei que ele me segurasse pela mão, puxando-me até o centro do salão. Dançar não era, nunca foi, um problema para mim. Praticava dança desde a infância, fui a típica menininha que cresceu fazendo aulas de balé. Me saía bem em qualquer ritmo, e não foi diferente com o que tocava no momento: All the things she said música que tinha figurado no ano anterior entre as mais tocadas, e que parecia ter sido colocada pra tocar naquele momento por algum sádico leitor de mentes. Enquanto dançávamos separados, tudo estava bem. O problema veio quando a mão dele tocou o meu rosto. Senti que o momento chegara e não podia mais ser adiado. Fechei os olhos, deixando que ele fizesse o “serviço”. Naquela expectativa de receber um beijo a qualquer momento, a imagem de Micaela apareceu nítida em minha mente. Então, eu soube: estava tudo perdido. Sempre tive um ótimo senso de equilíbrio e, por isso, a tonteira que senti me fez perceber que eu estava muito mais tensa do que imaginava. A cabeça pesava como chumbo e o estômago revirou tão rápido que, quando os lábios daquele homem estavam prestes a tocar nos meus, apressei-me em empurrá-lo, evitando, dessa forma, que o vômito que me escapou viesse a sujá-lo. Ouvi as pessoas ao meu redor gritarem, enojadas, e vi que se afastaram, temendo que eu continuasse a vomitar e, dessa forma, sujasse seus pés. Aquele foi o momento mais constrangedor da minha vida. Por sorte, eu estava me sentindo mal o suficiente para sequer pensar na vergonha. ─ Mas o que deu em você? – perguntou o cara com quem eu dançava, enojado. Eu não consegui sequer olhá-lo. E, não, não foi por vergonha, foi porque eu realmente estava me sentindo muito mal. A dor na minha cabeça aumentou, ao mesmo tempo em que meu corpo foi cortado por um calafrio. Certamente era a gripe que me acompanhava desde o dia anterior e que, provavelmente, havia piorado com o “banho ao ar livre” durante o manifesto. Uma forte tontura me fez pensar que iria cair. Senti várias mãos me amparando e me guiando de volta à cadeira. Ao abrir os olhos, notei que meus amigos estavam ali, inclusive Pablo, me olhando com expressões preocupadas, todos perguntando ao mesmo tempo se eu estava bem. Eu não estava. Definitivamente, nem um pouco. E não era apenas o vômito ou a bebida... Ou a gripe. Minha mente estava confusa. Minha alma estava confusa. Por que eu não conseguia parar de pensar na Micaela? Ainda nessa situação, eu queria que ela estivesse lá ao meu lado, cuidando de mim. Que raios de sentimentos seriam aqueles? Eu não podia estar apaixonada! Não podia aceitar isso! Seria a pior coisa que poderia me acontecer. Eu tinha [70]


feito uma promessa a mim mesma, de que iria mudar e me “ajustar à sociedade”. Mas, pensando nisso, lembrei do que Paloma me disse há algumas semanas, sobre encontrar alguém por quem seria capaz de enfrentar a família ou o mundo inteiro, se fosse necessário. Soube, então, que Micaela era essa pessoa... Isso estava tão claro quanto água. Mas também tinha consciência de que tal sentimento só me faria sofrer. Micaela não era homossexual. Por que eu tinha que me sentir dessa maneira justamente por alguém que jamais poderia corresponder aos meus sentimentos? Aquilo não poderia ter acontecido, de forma alguma! ─ Eu não tô bem... – consegui, enfim, responder. ─ Sua louca! – esbravejou Paloma, visivelmente irritada – Não está habituada a beber, e já começa misturando bebidas diferentes. É lógico que seu estômago ia reclamar! ─ Não é isso... – aleguei, ainda com a cabeça abaixada. Senti uma mão encostar-se à minha testa. Era de Pablo. ─ Você está com febre. – ele murmurou – Vem, vou te levar pra casa. ─ Não precisa, Pablo. ─ Precisa, sim! Acha que tem condições para dirigir desse jeito? Dirigir? Quem seria louco o suficiente para dirigir daquele jeito? É claro que não! ─ Estou com minha bicicleta. Eles rebateram ainda mais, me chamando de louca. Mas não dei atenção. Garanti que ficaria bem e, após me despedir, fui embora. Por ainda estar tonta, optei por ir caminhando, empurrando a bicicleta ao meu lado. Meu apartamento ficava a cerca de quarenta minutos dali, a pé, mas eu não me importava. Seria um tempo para pensar e tentar organizar as ideias. O frio da noite, ameno para qualquer um em situações normais, para mim parecia cortar a minha pele, como lâminas afiadas. Mas não me importei. Talvez fosse um castigo, para punir meus sentimentos tão incorretos. A punição por eu ser tão errada.

***** ~ Micaela ~

Quando terminei de dar a última revisada na matéria da prova, olhei para o relógio no canto da tela do computador. Já passava das oito da manhã de segunda-feira e minha prova começaria às nove. Goldmith me garantiu [71]


que passaria no meu apartamento para que fôssemos juntas para a faculdade. Algo estava errado, sem dúvidas. Aquela ruiva, além de sorridente, tagarela e estranha, também era radicalmente pontual. Aquele atraso não era normal. Nunca fui de intuições, mas senti que algo estava acontecendo. Fui até o telefone e procurei pelo número dela, o que não foi difícil, já que eu tinha menos de dez números salvos na memória (sendo que uns cinco deles eram de restaurantes de entrega a domicílio). Ao apertar a tecla de discagem, ouvi vários toques, até que a ligação caiu. Tentei novamente e, vários toques depois, enfim uma voz me atendeu. Uma voz baixa e rouca. ─ Alô. ─ Goldsmith? – quase não a reconheci. ─ Mic! Me desculpe, você está me esperando, não é? Realmente, algo estava muito errado ali. ─ O que aconteceu? – perguntei. ─ Nada. Eu apenas estou um pouco resfriada, por isso estou meio lenta para me arrumar. Mas já estou saindo. ─ Está bem para sair de casa? ─ Claro! Combinei com você, não foi? ─ Não há problema algum em eu ir sozinha. Se não está se sentindo bem, fique em casa. ─ Não. Eu faço questão de... – a linha ficou muda. ─ Goldsmith? – chamei, sem obter respostas. Segundos depois, ouvi um estrondo, como se alguma coisa tivesse caído. ─ Goldsmith? Está me ouvindo? Goldsmith? Aflita, agarrei minha bolsa, as chaves do casso e saí do apartamento, correndo o máximo que conseguia.

*****

Freei o carro bruscamente em frente a um prédio residencial, e não tive qualquer preocupação se seria ou não permitido estacionar ali. Apenas saí do veículo e entrei, apressada, no prédio. Parei na portaria, ao me dar conta de que não sabia qual era o apartamento de Goldsmith. ─ Posso ajudá-la? – perguntou, em espanhol, um senhor que trabalhava como porteiro do prédio. [72]


Eu o olhei, aflita. ─ Goldsmith! Ele sorriu e disse algo que eu não entendi, mas o vi levar o dedo a um dos botões do interfone, onde tinha o número 903. Aquilo era tudo que eu precisava saber. Corri até os elevadores, dando a sorte de encontrar um parado na portaria. Entrei, assustando-me com minhas próprias atitudes. Sempre achei ridículas aquelas pessoas que, tomadas por pressa ou impaciência, apertam inúmeras vezes os botões de um elevador na esperança de que, assim, chegarão mais rápido ao seu destino... E, agora, via-me fazendo o mesmo. Quando a porta enfim se fechou e eu senti começar a subir, mantive meus olhos fixos no visor que indicava os andares... 1º, 2º, 3º... Pareceu uma eternidade até que, finalmente, chegasse ao nono andar. Quando chegou, corri em disparada até a porta do apartamento 903 e comecei a apertar insistentemente a campainha. Logo surgiram alguns vizinhos, certamente assustados com a violência e o desespero dos meus atos. Mas o susto deles triplicou quando eu, percebendo que Goldsmith não responderia, afastei-me e dei um forte chute contra a porta, arrombando-a. Ouvi os gritos tentando me deter, mas ignorei-os por completo, adentrando o apartamento. Logo na sala encontrei-a caída no chão e corri até ela, abaixando-me ao seu lado. Num primeiro momento, tive certa dificuldade para controlar a minha própria respiração. Goldsmith parecia morta e tal ideia me desesperou. Contudo, forcei minha racionalidade a voltar à ação. Afastei os cabelos vermelhos que cobriam o seu rosto e pus a mão próxima aos lábios entreabertos dela. Com isso, pude me tranquilizar ao sentir o ar quente saindo e comprovar que ela estava viva. A confirmação, junto com o meu total alívio, veio quando a ruiva abriu as pálpebras e me olhou. ─ Você está bem? – perguntei, surpreendendo-me com minha própria voz absurdamente trêmula. Sabia que perguntar a alguém naquela situação se estava bem era o tipo de pergunta retórica mais idiota e cretina que poderia existir. Mas indagar aquilo foi quase como um instinto automático. A voz dela saiu praticamente sussurrada: ─ Eu enfrentaria o mundo por você... Franzi a testa, confusa. ─ Do que está falando, sua louca? Ela voltou a fechar os olhos e não tive tempo para insistir na pergunta. Um morador do prédio, que logo descobri ser médico, se aproximou e pediu para que eu me afastasse. Mais uma vez tive que forçar minha racionalidade para conseguir obedecer à ordem. Não queria ter que me afastar, mas era necessário. Levantei-me e recuei alguns passos, só então percebendo que havia mais de dez pessoas na entrada do apartamento. Foi aí que me dei conta das atitudes que havia tomado... Invadi um prédio, arrombei a porta de [73]


um dos apartamentos... nem sei como não chamaram a polícia! Perguntei-me o que teria me levado a agir de forma tão irracional. Irracional. Jamais imaginaria usar tal palavra para me referir a mim mesma. Porém, não perdi muito tempo pensando a respeito disso. Tudo o que me importava naquele momento era que Maire Goldsmith ficasse bem.

*****

A comunicação com o médico foi algo bem difícil. No final de todas as recomendações ditas em espanhol, compreendi que Goldsmith deveria tomar um remédio descrito num receituário (os quais uma vizinha, notando minha dificuldade com o idioma, se prontificou em comprar pra mim numa farmácia em frente ao prédio) e qualquer coisa sobre ela estar com uma forte virose e precisar de repouso, muito líquido e se alimentar bem. Coisas de praxe. Graças a Deus, não era nada mais sério. Após a saída do médico e de todos os demais vizinhos curiosos, voltei ao quarto onde ela dormia. Num canto próximo à janela, tinha uma escrivaninha, onde puxei a cadeira e me sentei, olhando para a paciente adormecida sobre a cama. Assim como eu, já tinha ouvido outras pessoas se referirem a Goldsmith como “senhorita perfeição”, e os motivos disso não poderiam ser mais evidentes. Ela parecia surreal de tão perfeita, algo que poderia ser classificado, até mesmo, como irritante. Por dentro, ela tinha uma índole de aço e um caráter invejável, além de ser insuportavelmente simpática, atenciosa, paciente e meiga. Exteriormente, tinha um rosto lindo, de traços delicados, onde até as sardas da face, que muitos classificariam como uma imperfeição, pareciam ter sido cuidadosamente desenhadas. Sem contar os olhos, tão azuis quanto os dos anjos exibidos nas pinturas que eu costumava ver nas igrejas barrocas que frequentava em meu país. Os cabelos ruivos e compridos eram um charme à parte, assim como o corpo, de proporções e curvas delineadas. É, ela era perfeita. Que outro adjetivo a classificaria melhor? Mesmo os defeitos, como o jeito às vezes “sem noção” de se comportar (fazendo coisas estúpidas como se agarrar a janelas de carros em movimento, quando está andando de bicicleta pelas ruas) ou o extremismo em suas convicções (que a faziam ir a toda e qualquer manifestação ativista em defesa de animais ou do meio-ambiente; ou sair catando o lixo das ruas) serviam apenas para transformá-la numa pessoa única. E o que foi mais incrível nessa minha reflexão? O fato de eu nunca ter tido o costume de analisar as pessoas. Nem mesmo meus dois únicos [74]


namorados nunca foram tão minuciosamente analisados por mim. O que era uma pena porque, caso fossem, eu certamente nunca teria iniciado qualquer relacionamento com eles. No entanto, eu não me questionava sobre os motivos daquele interesse especial pela ruiva. Era algo que, estranhamente, parecia ocorrer de forma suave e natural. Eu já tinha me dado conta de que Maire tinha uma importância vital em minha vida, e me preocupava realmente com a saúde e o bem estar dela. Vê-la sorrir me fazia um bem indescritível. Contudo, naquele momento, enquanto observava minha nova amiga dormir, alguma coisa dentro de mim parecia querer algo mais. Um “algo” que, por mais que tentasse, eu não conseguia entender ou identificar. Passou-se mais de uma hora, até que ela acordasse.

~ Maire ~

Ao abrir os olhos, tive a ligeira impressão de que estava tendo um sonho. Nada mais explicaria o fato de encontrar Micaela em meu quarto, sentada ao lado da minha cama e velando o meu sono. Lembrei que, no bar, tinha desejado que ela estivesse lá para cuidar de mim. Teria tido a sorte de alguma estrela-cadente cruzar o céu bem naquela hora? ─ Mic? – murmurei, ainda em dúvida. Ela pareceu preocupada e se levantou, aproximando-se mais da cama. ─ Está melhor? É, não era um sonho. Eu daria um grito de alegria, se minha garganta não estivesse doendo tanto. ─ Estou bem... Eu acho. – Uma forte dor na cabeça me obrigou a fechar os olhos. Ali estava mais uma prova de que não era um sonho. A dor era bem real. Porém, ainda assim, eu sorri, sentindo-me estranhamente feliz. Pensei que até a doença era válida, pelo fato de Mic estar ali, cuidando de mim. Espera... Mic estava ali? Que horas deviam ser? ─ Mic! – eu disse, assustada, enquanto sentava-me na cama, aflita por enfim dar-me conta da realidade – Por que está aqui? Você tem uma prova hoje! Anda, corre! Precisa ir para a faculdade. Ela suspirou. Pela expressão em seu rosto, percebi que havia se esquecido daquilo. [75]


─ Já passa das dez da manhã, Maire. Não dá mais tempo. Ela me chamou de Maire! ─ Mas... Era uma prova importante! – que se dane, ela me chamou de Maire! – Não devia ter vindo pra cá! E agora, o que vai fazer? Eu estava realmente preocupada com ela. Só por isso não levantei e nem sai dando pulinhos por ela ter me chamado de Maire! Ela apenas respondeu, com sua praticidade natural: ─ Existem provas de recuperação ao final do semestre. Se eu conseguir notas boas nas outras disciplinas, o meu coeficiente de rendimento não ficará tão baixo assim. Minha consciência pesou tanto, que até deixei de lado a alegria por ela ter me chamado de Maire. ─ Aposto que nunca teve que fazer alguma prova de recuperação na vida! – comentei, culpada. ─ Eu não sou nenhum gênio. – havia constrangimento na voz dela – Fiquei em recuperação no meu último ano de colégio. A princípio, achei que fosse uma piada. Mas logo descartei a ideia, afinal, Mic nunca conta piadas. ─ Não posso acreditar numa coisa dessas. – rebati. Ela respirou fundo, como se tivesse uma criminosa confissão a fazer. ─ Acredite. Eu sempre odiei Biologia. Tive que rir com aquilo. ─ Ficou em recuperação em Biologia? Percebe a ironia disso? Nós duas somos mesmo completamente opostas em tudo. Eu, particularmente, odeio Matemática. ─ Matemática é prática. É uma coisa simples de entender. Foi a minha vez de fazer uma confissão, com a voz sussurrada: ─ Eu nunca decorei nem tabuada! E então, foi a Mic quem riu. Daquele jeito dela, claro. Leve, contida, suave. E, como na primeira vez que vi o seu riso, fiquei encantada. Quis que aquele momento durasse para sempre. Ficamos em silêncio por alguns segundos, até que meus olhos batessem no calçado que ela usava. ─ Essa sua bota é de couro? – indaguei. Ela pareceu não entender a relevância da pergunta. [76]


─ Sim. Por quê? Fiquei triste com a resposta, e expliquei: ─ Um animal morreu para você usar isso. A testa dela franziu. ─ E o que sugere? Que eu ande descalça? ─ De forma alguma! Existem no mercado materiais sintéticos de qualidade. Percebi que você gosta muito de botas... Vou te levar a uma loja que só trabalha com produtos sintéticos e tem botas maravilhosas! Ela bufou. ─ Alguém já lhe disse que você é bastante extremista? ─ Apenas não gosto de matar animais. ─ E se fosse uma situação de desespero? ─ O que seria tão desesperador para me obrigar a matar um animal? ─ Se você estivesse no meio de um deserto, esfomeada, e aparecesse um coelho na sua frente, o que você faria? Ela pegou no ponto certo. Sempre as perguntas sobre sobrevivência da espécie, o argumento perfeito. Vencida, respondi: ─ É bem provável que eu matasse o coelho... De fome, porque comeria todo o matinho dele! A cara dela foi engraçada. ─ Mato? – indagou – E quem disse que teria mato? ─ Oras, se houvesse um coelho vivo por lá, certamente também haveria alimento para ele. ─ Não há mato num deserto! ─ Nem coelhos! Ela me fuzilou com os olhos e eu me segurei para não rir. Adorava os raros sorrisos dela, mas aquela carinha de brava também era fofa demais! ─ Não está se colocando numa situação de desespero. – ela rebateu. ─ E você? Se estivesse num deserto e desse de cara comigo, comeria a minha carne pra sobreviver? Ela pensou por alguns instantes e respondeu: ─ Depende. Se você já estivesse morta... Voltei a rir, vitoriosa. [77]


─ Ótimo! Sou bem grande, tenho um metro e setenta e cinco, você teria carne suficiente para se alimentar por dias, e assim não precisaria perseguir o pobre coelhinho do deserto. Micaela fez careta ao imaginar tal hipótese. ─ Essa é a conversa mais estranha da minha vida. ─ Você sabia que a carne de um pinguim não pode ser ingerida? Ela é extremamente oleosa. Lembre-se disso se algum dia estiver no meio de uma geleira e eu não estiver por perto para servir-lhe de alimento. Bufando, ela retrucou, de forma irônica: ─ Farei o possível para lembrar. De qualquer forma, vou querer conhecer a tal loja de calçados sintéticos. Além de me chamar de Maire, ela ainda tinha optado por não usar mais couro animal! Não era linda? Mas aí eu me lembrei que ela era minha linda amiga hetero e tentei baixar um pouco a empolgação. ─ Tenho certeza de que você vai adorar! Fico tão feliz por estar fazendo você mudar sua forma de pensar com relação aos animais. ─ Mas nunca me convencerá a virar vegetariana. ─ Tudo bem. De qualquer forma, fico feliz por você não ser mais responsável pela matança de animais por pura vaidade. ─ Como se isso fosse salvar o mundo. ─- Tem uma frase de Gandhi que eu gosto muito, que diz assim: “seja a transformação que você deseja para o mundo”. Não sei se minhas atitudes mudarão alguma coisa, mas me sinto realizada em estar fazendo a minha parte.

~ Micaela ~

Era uma bela frase. Não sabia muito sobre Gandhi, mas senti curiosidade de pesquisar a respeito. Fiz isso alguns dias depois. Estava gostando da conversa, mas não poderia me prender nisso o dia inteiro. Estava ali para cuidar da irlandesa, e era o que faria. ─ Acho melhor eu fazer algo para você comer. – eu falei. Ela pareceu temerosa da ideia. Não a culpo por isso. ─ Melhor não, Mic. Você mesma disse outro dia que não sabe cozinhar. Não quero correr o risco de pegar fogo em minha cozinha. [78]


─ Não exagere! Não sei fazer pratos sofisticados, mas coisas simples qualquer um faz. O que é bom para uma pessoa doente? Uma canja de galinha, talvez? Ela sorriu, compreensiva. E explicou: ─ Eu não como carne, Mic. Ah, é. Frangos também tinham carne. Sei que é meio óbvio, mas nunca me liguei muito nisso de ser vegetariano. ─ Então... Uma sopa de legumes? Isso eu sei que você come. ─ Eu não quero te dar trabalho. Além do mais... Sabe mesmo fazer sopa? ─ Qualquer um pode fazer isso. Se qualquer um poderia fazer, não seria eu que não poderia, não é? Sendo assim, não aguardei por qualquer resposta e saí do quarto. Quando cheguei à sala, parei, dando-me conta de que não era qualquer uma. Definitivamente, não fazia a menor ideia de como se fazia uma sopa. Mas, como tudo no mundo, eu sabia que para isso havia uma solução muito simples. Vi um computador no canto da sala. Um velho amigo, que poderia me ensinar absolutamente qualquer coisa. Isso, claro, se ele tivesse acesso à internet.

***** ~ Maire ~

Foi com certo esforço que eu consegui sair da cama. Apesar de já estar bem melhor, o corpo ainda doía muito, e o efeito dos remédios me deixava com bastante sono. Mas a curiosidade falou mais alto, e resolvi checar como Mic estava se saindo. E, claro, se minha cozinha ainda estava inteira. A passos lentos e cuidadosos para não fazer barulho, fui até a entrada da cozinha e ali parei, não conseguindo evitar sorrir diante da cena tão inusitada. Quem diria que Micaela Angeli estivesse mesmo cozinhando? Senti um certo orgulho ao pensar que era por mim que ela fazia aquilo. A cada instante que passava, mais certeza eu tinha de que estava apaixonada. Mas também sabia que deveria manter tal sentimento bem guardado. Não iria arriscar o que já tinha, por algo que jamais daria certo. Não iria perder a amizade dela. Já que não poderia tê-la ao meu lado como gostaria, eu ao menos teria sua presença, de algum modo. Não sei o que seria de mim se perdesse isso.

[79]


Ela desligou o fogo e virou-se para arrumar a mesa, flagrando-me a observá-la. Senti-me envergonhada, mas ela não percebeu e apenas perguntou: ─ Por que saiu da cama? ─ Já estou um pouco melhor. E faminta. – grandes mentiras. Eu sentia um gosto amargo na boca e meu estômago parecia revirar. Mas era a melhor desculpa para eu ter ido até lá. ─ Já está pronto. Onde você guarda os pratos? ─ Eu te ajudo a pôr a mesa! Animada, arrumei a mesa. E nós nos sentamos, uma diante da outra. Adiantei-me em servir um pouco da sopa em meu prato e provar a primeira colherada. ─ Está ótima! – elogiei. ─ Sério? – ela não pareceu muito convencida. ─ Sim. Onde aprendeu a fazer sopa? ─ Na internet. Eu quase engasguei, começando a rir. ─ Internet? ─ A propósito, seu sistema está lento, acredito que esteja infectado. Instalei um novo antivírus e sugiro que faça um scaneamento completo ao menos uma vez por semana. ─ Sim, senhora! – eu continuava a rir – Eu, muito mal, uso a internet para pesquisas. Não levo jeito com máquinas. É bom ter uma amiga que me ajude nesses casos. – apontei para a panela de sopa – Está uma delícia. Por que não come um pouco também?

~ Micaela ~

Resolvi seguir a sugestão. Primeiro, porque estava com fome. Segundo, porque estava curiosa sobre a primeira comida de verdade que eu preparava na vida. Como Maire disse que estava boa, provei a primeira colher, confiante. Mas tive vontade de cuspir de volta para o prato. Que diabos era aquilo? ─ Que coisa... doce! – eu praticamente gritei. Maire gargalhou. Aquela filha da mãe tinha mentido pra mim! [80]


─ E você ainda diz que está bom? – reclamei. Peguei o saleiro da mesa e comecei a tentar melhorar o gosto daquela coisa! ─ Eu gostei. – ela garantiu – É sério, Mic! Para de pôr tanto sal. Isso não faz bem pra saúde. ─ Como pude esquecer de colocar sal na comida? – eu não me perdoava por aquilo. Que eu esquecesse de qualquer legume ou até da água... mas nunca, jamais do sal! ─ Acontece, Mic. Ai, você está me deixando nervosa. Me dá esse saleiro! Para com isso ou vai morrer de hipertensão! Num movimento rápido (até demais para uma pessoa doente), Maire apanhou o saleiro da minha mão. Levantei-me da cadeira, tentando pegar aquele pó sagrado de volta. Qual é? Algumas pessoas são viciadas em pós muito mais maléficos que aquele! Fui logo contagiada pelo riso dela, enquanto nos divertíamos naquela disputa pela posse do saleiro. Mas as risadas cessaram por completo, quando consegui agarrar a mão dela. Ela deveria se soltar e continuar a lutar pelo saleiro, mas não o fez. Levantei o rosto ao mesmo tempo que ela e nossos olhos se encontraram. Foi então que algo muito estranho aconteceu. Meu coração acelerou, como nunca havia acelerado antes. Quando minha energia guardiã despertou, quando Leonardo me pediu em namoro, ou quando recebi a carta de aprovação na Universidade de Madrid, meu coração também tinha acelerado. Mas nunca tanto assim. Tentando fugir daquela sensação, apressei-me em soltar a mão dela e voltar a olhar para a comida, disfarçando: ─ Acho que chega de sal. Um silêncio constrangedor se instalou naquela cozinha, sendo cortado apenas pelo som das colheres batendo nos fundos dos pratos, enquanto almoçávamos. Levou alguns minutos até que Maire puxasse um assunto: ─ Sabe que ontem eu quase fiquei com um garoto? Eu a olhei, curiosa, embora um tanto desanimada. Ela prosseguiu: ─ Mas não ficamos, porque eu meio que... vomitei quando ele ia me beijar. Larguei a colher, pasma com o que ouvia. ─ Vomitou? ─ Pois é. Na hora foi vergonhoso, mas... Pensando melhor, agora até que parece engraçado. Não é? [81]


─ Não se você realmente queria ficar com ele. ─ Não queria. Ele nem era o Leonardo DiCaprio! Por qualquer razão, o tom de voz de Maire ao dizer aquilo soou engraçado e nós rimos. Rir, aliás, estava se tornando um hábito bem mais comum pra mim. Ela continuou a contar sobre suas aventuras no dia anterior, desde a manifestação ativista até o constrangimento no bar. Ouvi a tudo com uma especial atenção.

***** ~ Maire ~

A semana praticamente voou. Mic ainda me visitou no dia seguinte, mas, depois disso, só voltamos a nos ver duas vezes, rapidamente, na academia. Em dois dias eu já me sentia bem melhor, e voltei para a minha rotina. Enfim, chegara a noite de sábado, esperada ansiosamente por mim. Mic tinha concordado em ir comigo ao Cadiz e eu, claro, estava radiante. Como de costume, cheguei cedo demais, mas meus amigos já estavam lá. Quando cheguei à mesa, Diego, Paloma e Alicia seguraram seus copos, protegendo-os com as mãos para que a ‘ruiva louca’ aqui não desse outro ‘surto alcoólatra’ como tinha feito no fim de semana anterior. ─ Relaxem, hoje ficarei apenas com o suco de morango. ─ eu anunciei, sorrindo. E sentei-me, atacando algumas batatas-fritas. Notei que os três se entreolharam, intrigados. ─ Lindinha... – chamou Paloma – O que tá rolando? ─ Por quê? – perguntei, ainda comendo as batatas. ─ Você está muito... “iluminada”. – Diego explicou. ─ Ah, preciso contar a vocês! Convidei uma amiga para vir aqui hoje. Eles riram, me deixando intrigada. ─ Amiga, é? – Alicia brincou – Sei! E aquele discurso de “virar heterossexual”? ─ Realmente, é apenas uma amiga. Mesmo porque... Ela é hetero. Ao ouvirem aquilo, eles automaticamente pararam de rir.

[82]


─ É assim que começa. – Diego choramingou – Mal muda a orientação sexual, e já começa a mudar os amigos também. Achei graça. ─ Não sejam bobos! Não se ‘muda’ de amigos. Vocês são meus amigos para sempre. Ainda que eu mude de orientação sexual ou... Sei lá... Vá para o Japão lutar contra monstros. Eles franziram as testas. Tive medo de ter falado demais, deixado escapar meu segredinho de ser uma Guardiã (não é algo que se conte para qualquer um, né?). ─ Impossível! – Paloma retrucou – Impossível alguém “mudar” a orientação sexual. Acredito mais até nessa historinha de monstros aí! Que bom que meu segredo é algo que ninguém acredita. Facilitava, no caso de deixar escapar algo. Ainda rindo, tomei fôlego para responder, mas fui interrompida pela voz feminina que ouvi atrás de mim: ─ Maire? Virei-me para ver quem era. A surpresa foi grande. ─ Luzia? Não imaginei que tão cedo voltaria a vê-la. Mas ela estava ali mais uma vez, e certamente por minha causa. ─ A gente pode conversar? Fiz que sim com a cabeça e, após pedir licença aos meus amigos, me levantei e segui Luzia até outra mesa vazia. Mas não chegamos a nos sentar. Permanecemos de pé, uma diante da outra. Ela parecia tomar coragem para dizer alguma coisa, e foram necessários alguns segundos para que conseguisse: ─ Quero te pedir mais uma chance. Suspirei, triste por aquilo estar acontecendo. ─ Escute, Luzia... ─ Eu sei que tenho muito que amadurecer – ela me cortou, aflita – Temos a mesma idade, mas você é mil vezes mais segura de si do que eu. Fico com medo do que as pessoas vão pensar, quando, na verdade, isso nada importa! ─ Luzia, me escute, por favor... Mas ela insistiu: ─ Eu quero ficar com você, Maire! E é só o que me importa. Você me fez entender que... [83]


─ Fiz você entender o quê, Luzia? – eu a interrompi, passando a falar de forma enérgica – Que é legal ser como eu? Acha que minha popularidade vem disso, e quer se espelhar em mim? Sabe, você tem razão: é imatura, sim! Está querendo ser diferente, bancar a rebelde... Numa forma muito estranha de tentar se encontrar. Quando fiz uma pausa, notei que os olhos dela já começavam a transbordar e me senti péssima por isso, mas não via alternativa. Já havia percebido qual era a daquela garota e precisava fazê-la perceber também. Pelo bem dela. Porém, quando voltei a falar, amansei um pouco a voz: ─ Acha mesmo que eu gosto de ser assim, Luzia? Não foi uma mera opção minha, porque, se eu pudesse escolher, seria igual à maioria das pessoas. Mas você pode! Não está segura ainda, isso é evidente. Sei que acha que gosta de mim, mas, na verdade, você gosta do que eu represento. ─ Não é verdade! – ela choramingou – Eu amo você! ─ Não, Luzia. Por favor, não torne isso mais difícil. A reação dela veio por meio de uma atitude que me pegou completamente de surpresa. Afoita, ela colou os lábios dela aos meus. Foi apenas alguns segundos, o tempo necessário para que eu conseguisse empurrá-la, afastando-a de mim. Ainda a segurava pelos ombros quando fui tomada por uma familiar sensação. Não saberia explicar como, mas senti que alguém nos observava. Quando, por instinto, olhei para o lado, fiquei em choque diante da confirmação. A poucos metros de nós, Micaela estava parada, estática, olhando para mim. E eu fiquei apavorada. Quis dizer alguma coisa, mas ela não esperou por isso. Deu meiavolta, andando apressada em direção à saída do bar. ─ Meu Deus... – sussurrei, agoniada – Mic, espera! Larguei Luzia sozinha e corri atrás de Micaela. Fui alcançá-la já do lado de fora. Segurei-a pelo braço, obrigando-a a parar. ─ Mic, me escuta... – comecei. Mas ela puxou violentamente o braço, afastando-se de mim.

~ Micaela ~

O que ela achou que poderia me dizer depois de tudo aquilo? Eu tinha sido uma completa burra. O que eu esperava encontrar naquele bar? Não poderia ser nada menos do que um antro de promiscuidade, como a cena que havia acabado de presenciar. [84]


Burra! Mil vezes burra! ─ Foi pra isso que pediu para que eu viesse? – indaguei, encarando-a – Não é porque eu aceitei tolerar a sua companhia que sou obrigada a presenciar esse tipo de cena.

~ Maire ~

Aquela frase me fez sentir-me sem ar. “tolerar a sua companhia”? Micaela estava mesmo falando assim comigo? Eu já havia aprendido a encarar demonstrações de preconceito de inúmeras pessoas, mas... Não de Mic. Ela não era assim. Ela não me tratava assim. Por que estava falando comigo daquela forma? E ela continuou. A cada palavra, uma nova facada. ─ Isso é indecente, é imoral... É ridículo! ─ Sou ridícula por ser homossexual? – apesar de estar despedaçada, fui firme em minha pergunta. ─ É ridícula por ter beijado aquela garota. ─ Foi ela que me beijou. Eu a empurrei, será que não viu? ─ Vai dizer que não estava gostando? ─ Se estivesse, não a teria empurrado! ─ Vocês me pareceram muito íntimas. Se não fosse assim, ela não tomaria tal liberdade. Ela elevou o tom de voz e eu fiz o mesmo. Não me preocupava com as pessoas que passavam por ali no momento. ─ É claro que ela se sente íntima. Ficamos juntas por um mês e meio! ─ Um mês e meio! Como se isso fosse muito tempo! Aposto que até foi pra cama com ela! ─ Se eu tiver ido, isso não é da sua conta! – mas eu não fui, que isso fique bem claro.

~ Micaela ~

Mas é claro que tinham ido pra cama! Minha raiva triplicou por imaginar aquilo. [85]


Não em detalhes sórdidos, claro. Apenas a situação em si. E que cretina, ainda diz que isso não é da minha conta! ─ Ah, não é da minha conta, então? ─ Não! Eu nem te conhecia quando comecei a sair com ela! ─ Tem razão! – levantei os braços, como num sinal de rendição – Não é mesmo da minha conta. Faça o que você quiser da sua vida, eu não tenho nada a ver com isso! ─ Eu faço MESMO o que quero da minha vida! ─ Certo! Faça MESMO o que quiser! ─ Farei! ─ Então faça! ─ Tá bom. E ela fez. Não posso reclamar, fui eu que mandei. Mas, que diabos, como eu iria imaginar que era aquilo que ela queria? E foi tão rápido, que não deu tempo nem para o susto. Lembro de ter sentido o braço dela contornar a minha cintura e puxar-me com força, unindo meu corpo ao dela. Quando me dei conta, a boca dela já havia se apossado da minha, num beijo intenso.

~ Maire ~

Foi ela que mandou, não foi? “Faça o que quiser”. E eu fiz, fiz o que eu mais queria, desejava e precisava fazer. Eu a beijei, mandando pro inferno o bom senso. Por Deus, eu não estava meramente apaixonada. Eu a amava. E não dava mais pra contornar ou sufocar isso. Não dava para fingir que eu gostava dela apenas como amiga. Era muito mais forte do que eu poderia supor a princípio. E eu não teria qualquer outra forma mais sincera de expor isso a ela, se não fosse por aquele beijo. Nosso primeiro beijo, ocorrido em meio a uma discussão, com uma plateia de ilustres desconhecidos, na calçada de um bar e regado pelas lágrimas que escorriam pela minha face. Ainda assim, não poderia haver nada mais perfeito que aquilo.

~ Micaela ~ [86]


Ok... eu estava sendo beijada por uma mulher. “Perfeito” não seria bem o adjetivo que eu, na ocasião, daria àquilo. Por um momento, achei que o calor que corria pelo meu corpo fosse das primeiras chamas do fogo do inferno, preparando a minha chegada. Para falar a verdade, no momento eu não me preocupei verdadeiramente com isso. Preciso ser sincera: as sensações daquilo foram indescritíveis. Não conseguia me recordar de nenhum outro beijo que tivesse feito o meu corpo reagir daquela maneira. Era inebriante e, ao mesmo tempo, reconfortante. Completamente diferente de qualquer coisa que já tivesse experimentado na vida. E não era por ser uma mulher. Era por ser a Maire. Porém, meu lado racional tratou de assumir a situação. Eu estava beijando a Maire. Uma mulher, como eu! É tudo uma questão de ponto de vista. Meu corpo podia achar que era maravilhoso, mas minha mente enfatizou o quanto aquilo era errado. E, assim, eu tive forças suficientes para empurrá-la, cortando o beijo que nos unia.

~ Maire ~

Quando ela me empurrou e eu abri os olhos, senti vontade de me estapear pela minha atitude. Vi Mic recuar alguns passos, enquanto passava as costas das mãos sobre os lábios, visivelmente enojada. Meu peito doeu e minhas lágrimas começaram a escorrer mais rapidamente. Eu tinha colocado tudo a perder. ─ Mic... Mic, desculpa! Eu não devia... Ela me interrompeu, com a voz ao mesmo tempo confusa e autoritária: ─ Por que fez isso? Quem te deu o direto de fazer isso? ─ Me perdoe. Por tudo que é mais sagrado, me perdoe! Mas ela não respondeu. Apenas virou-se e foi embora. Na esquina, fez sinal para um táxi, no qual entrou e desapareceu das minhas vistas. ─ Me perdoe... – sussurrei, já sozinha. Abaixei-me, apoiando as costas na parede do bar, e cobri o rosto, completamente vencida pelo choro.

[87]


***** ~ Micaela ~

Não consegui dormir. Passei a noite em claro, em frente ao computador. Primeiro, tentei estudar, mas não consegui. Por isso, acabei inventado outros afazeres para ocupar a mente: reconfigurei o sistema, desinstalei alguns programas, atualizei outros... tudo para não pensar no ocorrido. Tudo inutilmente. Estava confusa e furiosa; muito mais do que já estivera em qualquer outro momento da minha vida. Lembrar do beijo me fazia me sentir bem e mal, pura e suja, completa e destruída... Me fazia odiar Maire, e me fazia... odiar a mim mesma, pelo que eu sequer cogitava sentir por ela. Não eram nem sete da manhã quando a campainha tocou, obrigandome a interromper minhas atividades inúteis. Por já saber quem era, pensei em simplesmente ignorar, mas algo me obrigou a ir até a porta e abri-la. Tive a confirmação: era mesmo Maire Goldsmith. Ainda usava as roupas da noite anterior, o que denunciava que ela nem havia ido para casa. Estava com olheiras profundas, os olhos inchados e vermelhos e a expressão de quem passara horas chorando. Olhado agora, ela já não parecia tão perfeita. Mas, droga, ainda era linda! ─ Oi. – ela cumprimentou, nitidamente envergonhada – Posso entrar? Minha resposta foi automática: ─ Não.

~ Maire ~

Baixei o rosto, compreensiva. Depois de tudo o que eu tinha feito, não poderia esperar por qualquer reação diferente. Eu ainda me perguntava o que é que eu tinha na cabeça para ter beijado Mic daquele jeito. ─ Vim apenas pedir desculpas. – insisti – Eu não tinha o direito de ter feito aquilo. ─ Não mesmo. ─ É irônico que, há um mês, eu... – sorri levemente, ainda com a cabeça abaixada – eu te prometi que jamais iria tentar te agarrar. Lembra disso? – aguardei que ela respondesse alguma coisa. Qualquer coisa, até que me xingasse, se quisesse. Mas como não disse nada, prossegui – Eu não devia ter feito aquilo. Foi só um impulso idiota. ─ Devia aprender a controlar seus impulsos. – ela rebateu, secamente. [88]


─ Sempre controlei. E teria me controlado com você também, se não houvesse sentimentos envolvidos.

~ Micaela ~

Sentimentos? Por alguma razão, ouvi-la dizer isso fez o meu coração bater mais acelerado. Mais do que ele já batia desde a noite anterior. Quis perguntar que sentimentos eram aqueles, mas não precisei. Ela mesma se explicou: ─ Eu não sei exatamente em que momento isso aconteceu, Mic... Mas eu comecei a gostar de você. Tentei não pensar naquilo. Apenas rebati, com a rapidez e a praticidade que me eram comuns: ─ Eu não sou lésbica. É, e isso resolvia tudo, não é? Eu não era lésbica e ponto. Ou seria? Sexualidade era bem mais complicado do que cálculos. Então, atentei-me a outra coisa: a declaração de Maire. Ela tinha dito que gostava de mim? Lembrei-me do beijo da noite anterior e um calafrio percorreu todo o meu corpo. Mas fui determinada e sensata o suficiente para não deixar isso transparecer. ─ Eu sei... – Maire respondeu. Notei que respirou profundamente, antes de voltar a me olhar – Eu tentei ao máximo lutar contra isso, mas não consegui. ─ Então continue tentando. E, até conseguir, não me procure mais.

~ Maire ~

Eu jamais poderia criticar a atitude dela. Estava certa, mais do que certa, em querer se manter o mais longe possível de mim. Teria sido tudo tão mais fácil se eu tivesse conseguido sufocar esses sentimentos, desde o início. Assim, seríamos apenas amigas... E eu seria feliz com a amizade dela.

[89]


Mas qual momento teria marcado o início? Eu não saberia precisar ao certo o que teria feito eu me apaixonar pela Mic. Sempre achei que, no dia que isso acontecesse, seria por alguém (um homem, de preferência) que tivesse os mesmos gostos, a mesma visão de mundo e os mesmos ideais que eu. Agora, via-me perdida de amor por uma mulher que era meu mais extremo oposto. Nós tínhamos gostos diferentes, opiniões diferentes, religiões diferentes... Unidas apenas pelo fato de sermos Guardiãs. Mas, ainda assim, Micaela me encantava de uma forma inexplicável. Era sincera, autêntica, determinada, tinha uma personalidade fortíssima... E os olhos mais lindos que eu já tinha visto na vida. Era isso. Mic era paradoxalmente perfeita. Porém, meu maior erro tinha sido imaginar que meus sentimentos tivessem qualquer remota chance de serem correspondidos. Quando a beijei na noite anterior, eu a senti entregue àquilo. Mas tudo não passara de uma falsa impressão. ─ Depois de amanhã é a minha palestra. – eu disse, por fim – Ficaria muito feliz se você fosse. ─ Não irei. Agora saia daqui. Já disse o que tinha para dizer. Concordei em silêncio e virei-me para ir embora. Mas travei, paralisada, quando ela disse uma frase.

~ Micaela ~

─ “Eu enfrentaria o mundo por você”. – eu disse, quando ela já se preparava para sair. Quando ela me olhou, parecendo surpresa, eu expliquei: ─ Você falou isso quando estava doente. O que quis dizer? Os olhos dela se umedeceram, o azul brilhando ainda mais devido às lágrimas. Respirando fundo novamente, ela respondeu: ─ Eu sempre preferi encarar tudo isso como uma brincadeira. Era mais fácil nutrir a falsa certeza de que conseguiria parar a qualquer momento que quisesse... como se fosse uma droga, sabe? No fundo, eu sempre quis ser... como todos dizem: “normal”. Mas uma amiga me disse, certa vez, que algum dia eu encontraria uma pessoa que me faria ter coragem para enfrentar a minha família, a sociedade... Ou o mundo todo, se fosse necessário. ─ E o que eu tenho a ver com isso? – tive medo da resposta. ─ Você é essa pessoa. [90]


Ela forçou um triste sorriso e isso me despedaçou por dentro. A raiva amenizou, dando lugar à vontade de abraçá-la e de secar aquelas lágrimas. Não era apenas isso. Lá no fundo, eu vibrei por ser “essa pessoa”. Contudo, entre esse fundo e a superfície, existiam obstáculos demais a serem transpassados. E eu não conseguiria fazer isso tão facilmente. ─ Eu já sabia disso, mas tive a confirmação ontem. – ela continuou – Depois que te beijei, eu não me senti vazia. Ao contrário, pela primeira vez na vida eu me senti completa. Eu fiquei sem palavras. Não tive qualquer reação ao vê-la ir embora. Depois que a porta foi completamente fechada, joguei-me no sofá, tentando organizar o embaralhado que se formara em minha mente. Aquela era, sem dúvidas, a situação mais esdrúxula da minha vida. Sendo sincera comigo mesma, precisava confessar que também sentia algo muito forte por Maire. Algo inexplicável e que estava longe de ser facilmente compreendido por alguém com tão escassas (e traumáticas) experiências amorosas. Minha criação jamais me permitiria encarar tal fato com naturalidade: estava apaixonada por uma mulher. O que meus pais diriam se soubessem daquilo? O que o mundo diria se soubesse daquilo?

“uma amiga me disse, certa vez, que algum dia eu encontraria uma pessoa que me faria ter coragem para enfrentar a minha família, a sociedade... Ou o mundo todo, se fosse necessário.”

E quanto a mim? Estaria também preparada para enfrentar o mundo? Após alguns minutos, vi-me obrigada a arrancar os óculos do rosto, quando senti as vistas embaçadas em consequências das lágrimas.

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~ Maire ~

O dia da minha palestra havia chegado. Mesmo tendo passado meses ansiosa pelo momento, quando ele enfim chegou, eu não me sentia nada empolgada. O auditório estava lotado, inclusive com muitas pessoas de pé por falta de cadeiras suficientes. Mas, ainda assim, eu não me animava. Que me importava toda aquela gente, se quem eu mais queria que estivesse ali, não estava? [91]


Contudo, aquele havia sido um compromisso assumido por mim e eu não poderia desistir. Dois de meus mais estimados professores estavam ali comigo, nos bastidores, felizes pelo momento. Por isso, e por todas as pessoas que tinham ido até lá para me ver, eu me via obrigada a subir no palco e dar o meu melhor. Tinha muito o que dizer para aquele público, era a minha chance de conscientizar tantas pessoas sobre a importância de preservar o mundo. Por isso, respirei fundo e, logo que meu nome foi anunciado, subi ao palco.

Non ho bisogno più di niente10 (Não preciso de mais nada) Adesso che (Agora que) Mi illumini d´amore immenso fuori e dentro (Me ilumina com imenso amor por dentro e fora) Credimi se puoi (Acredite em mim, se puder) Credimi se vuoi (Acredite em mim, se quiser) Credimi e vedrai non finirà mai (Acredite em mim e verá, nunca acabará)

~ Micaela ~

Sabia que, sentada na penúltima fileira de cadeiras, eu não poderia ser vista pela palestrante. Dessa maneira, seria bem melhor. Não queria correr o risco daquela ruiva louca ficar emocionalmente instável e, com isso, acabar se atrapalhando em seus discursos. Havia passado os dois últimos dias pensando quase que exclusivamente nessa situação. Cheguei a inúmeras conclusões coerentes... E decidi ir contra todas elas. O racional a ser feito era também óbvio: devia me afastar definitivamente de Maire. Mas optei pelo caminho inverso. Sem qualquer receio dos arrependimentos que essa decisão pudesse me trazer. 10

Música: Vivimi. Composição: Biagio Antonacci. Intérprete: Laura Pausini.

[92]


Ho desideri scritti in alto che volano (Tenho desejos escritos, que voam alto) Ogni pensiero è indipendente dal mio corpo (Cada pensamento é independente do meu corpo) Credimi se puoi (Acredite em mim, se puder) credimi perché (Acredite em mim, porque) farei del male solo e ancora a me (Só faria mal apenas a mim)

Ela palestrou durante uma hora e meia, mas isso, em momento algum, foi visto como monótono pelo público. Maire falava com simpatia e paixão pelo seu tema, o que fazia todos se apaixonarem pelas ideias. Eu até mesmo pensei que talvez fosse bom comprar uma bicicleta e deixar o carro um pouco de lado. Ela concluiu citando Gandhi, a mesma frase que tinha me dito dias antes. O feito era impressionante. Todo o auditório se levantou e, de pé, aplaudiram as suas palavras.

Qui grandi spazi e poi noi (Aqui, grandes espaços e nós) Cieli aperti che ormai (Céus abertos que agora) Non si chiudono più (Não se fecham mais) C´è bisogno di vivere da qui (É preciso viver daqui pra frente)

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Observando-a, senti o meu peito transbordar de orgulho. É, orgulho... Como o que você pode sentir de seus pais, seus filhos, seus companheiros, seus irmãos, seus amigos... De qualquer pessoa que possa chamar de “sua”. Foi ali que, pela primeira vez, senti que Maire era minha. Meu caminho e minha perdição.

Vivimi senza paura (Viva comigo sem medo) Che sia una vita o che sia un´ora (Que seja por uma vida, ou que seja por uma hora) Non lasciare libero o disperso (Não deixe livre ou disperso) Questo mio spazio adesso aperto ti prego (este meu espaço agora aberto, te peço) Vivimi senza vergogna (Viva comigo sem vergonha) Anche se hai tutto il mondo contro (Ainda que haja o mundo todo contra) Lascia l´apparenza e prendi il senso (Deixe a aparência e pegue o sentido) E Ascolta quello che ho qui dentro (E escute o que eu tenho aqui dentro)

~ Maire ~

Depois de receber os cumprimentos dos professores, saí dos bastidores, chegando ao auditório. O local já estava mais vazio, então pude vê-la, sentada em uma das cadeiras da última fileira. Senti meu coração bater forte diante daquilo, numa vontade louca de sorrir e chorar ao mesmo tempo. Segurei bravamente as lágrimas e optei por apenas sorrir. A passos tímidos, fui até Mic. Ela se levantou logo que me aproximei e ficamos em silêncio por alguns instantes, antes dela tomar a iniciativa de dizer algo:

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─ Você foi muito bem. – Ela abriu um leve sorriso, o que fez meu coração acelerar em felicidade. Logo entendi que aquela era a forma silenciosa da Mic dizer que me perdoava e que estava tudo estava bem entre nós.

Così diventi un grande quadro che dentro me (Assim vire um grande quadro, que dentro de mim) Ricopre una parete bianca un po´ anche stanca (Cubra uma parede branca um pouco cansada) Credimi se puoi (Acredite em mim se puder) Credimi perché (Acredite em mim, porque) Farei del male solo e ancora a me (Faria mal apenas a mim)

Seguimos andando rumo à saída do auditório. ─ Podemos voltar a ser amigas? – perguntei, trêmula. ─ Achei que tinha em mente algo mais que isso. Meu tremor aumentou. Meus olhos se inundaram, e me segurei para não chorar de alegria. Ela pediu, tímida: ─ Apenas tenha um pouco de paciência. Preciso de um tempo pra aprender a lidar com isso. Movi a cabeça numa afirmação, aflita. Ela prosseguiu, dessa vez um pouco brincalhona. ─ E nada de me agarrar de novo. Fiz que sim novamente.

Qui tra le cose che ho (Aqui, entre as coisas que tenho) Ho qualcosa di più [95]


(Tenho algo a mais) Che non ho avuto mai (Que nunca tive) Hai bisogno di vivermi di più (Precisa viver comigo mais)

Enquanto andávamos, toquei levemente os dedos dela com os meus e perguntei, como uma criança que teme fazer algo errado: ─ Posso ao menos segurar a sua mão? Ela bufou e tomou a iniciativa de agarrar a minha mão. ─ Também não precisa me tratar como uma donzela do século dezoito. ─ Certo. – sorri, em meio às lágrimas – Quer ir lá pra casa, pra combinarmos quais serão os termos disso? ─ Pode ser. Quer que eu cozinhe? ─ Melhor não. Faremos um termo sobre isso também. Rimos, juntas.

Vivimi senza paura (Viva comigo sem medo) Che sia una vita o che sia un´ora (Que seja por uma vida, ou que seja por uma hora) Non lasciare libero o disperso (Não deixe livre ou disperso) Questo mio spazio adesso aperto ti prego (Este meu espaço agora aberto, te peço) Vivimi senza vergogna (Viva comigo sem vergonha) Anche se hai tutto il mondo contro (Ainda que haja o mundo todo contra) Lascia l´apparenza e prendi il senso [96]


(Deixe a aparência e pegue o sentido) E Ascolta quello che ho qui dentro (E escute o que eu tenho aqui dentro)

~ Micaela ~

Desse dia em diante, passamos a ir e voltar juntas da faculdade todos os dias. Em uma dessas idas, avistamos aquela ex-se-lá-o-quê da Maire, sentada num banco, trocando beijos com aquele tal de Pablo. A cena me deixou, no mínimo, curiosa. ─ Não é aquela sua... ‘Amiga’? – Perguntei, apontando para o casal. Maire os olhou e sorriu. ─ Sim. Parece que Luzia e Pablo se entenderam bem ─ Mas ela não era... ─ Homossexual? Eu disse a ela que era só uma confusão. Talvez ela seja ‘bi’, mas achava que era ‘homo’. No fundo, estou certa de que ela sempre foi ‘hetero’. Movi a cabeça. Quem estava confusa era eu.

Hai aperto in me (Você abriu em mim) La fantasia (A fantasia) Le attese i giorni di un´illimitata gioia (A espera dos dias de uma alegria iluminada) Hai preso me (Você me pegou) Sei la regia (Você é o comando) Mi inquadri e poi mi sposti in base alla tua idea (Me muda e depois me coloca a tua ideia) [97]


~ Maire ~

─ Não entendo bem essas definições. – ela confessou. Achei graça e provoquei: ─ Talvez ainda não tenha definido o que você é. Será que gosta só de garotas? Ou de garotas e garotos? ─ Gosto de você. A frase foi dita do jeito padrão da Mic: prática, direta e sincera. Talvez por isso, tenha me emocionado tanto. ─ Tem certeza disso? – perguntei – É preciso estar bem certa de coisas assim. ─ Estou certa. Estou sempre certa. Como duas vezes oito são dezesseis. ─ Se você diz que é, eu acredito.

Vivimi senza paura (Viva comigo sem medo)

~ Micaela ~

Sabia bem o que estávamos prestes a enfrentar.

Anche se hai tutto il mondo contro (Mesmo se o mundo inteiro esteja contra)

~ Maire ~

E eu mentiria se dissesse que aquilo não me apavorava.

Lascia l´apparenza e prendi il senso (Deixe a aparência e pegue o sentido) [98]


~ Micaela ~

Mas tambĂŠm sei que o sentimento que nos unia era forte o suficiente para enfrentar tudo.

E ascolta quello che ho qui dentro (E escute o que tenho aqui dentro)

~ Micaela&Maire ~

Para sempre.

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Parte 3 - Volevo dirti che ti amo -

Madrid – Espanha Maio de 2005 ~ Micaela ~

Os raios de sol que invadiam o quarto através das frestas da cortina me despertaram, em conjunto com a voz que ouvia ao longe. Abri os olhos e, pela porta entreaberta, vi o vulto de Maire caminhando de um lado a outro pela sala enquanto falava ao telefone. A conversa era em inglês e, por isso, não entendi muita coisa. Mas deu pra compreender que ela conversava com a irmã caçula, sobre o colégio e garotos. Enrolei-me nas cobertas e peguei os óculos na mesa de cabeceira, pondo-me a observar aquele quarto tão diferente do meu. Os quadros de paisagens e a estante repleta de livros denunciavam a paixão de Maire por [100]


artes, natureza e literatura. Num canto aglomeravam-se bichos de pelúcia, e outros objetos delicados ajudavam a decorar o cômodo. Um verdadeiro contraste ao meu dormitório, onde os livros da estante eram apenas os da faculdade e o mais próximo de objetos de decoração eram pequenos aparelhos eletrônicos em cima da cabeceira. ─ Bom dia, minha princesa! – a voz de Maire invadiu o quarto, arrancando-me de minha distração. Eu nunca fui fã desses apelidos melosos e ela, sabedora disso, gostava de volta e meia usá-los para me deixar irritada ou constrangida. Incrível eu conseguir amar alguém que gostasse de fazer isso comigo. No fundo, eu já não achava isso tão ruim assim. ─ Dormiu bem? – ela indagou. Havia parado próxima à porta e fitava-me com o sorriso de sempre. Pensei em como ela conseguia estar linda de qualquer maneira, mesmo no modo confortável no qual estava vestida, com uma calça de moletom e um casaco leve por cima de uma blusa de manga. ─ Não faça perguntas retóricas. – retruquei, num leve tom de brincadeira – É claro que dormi bem ao seu lado. Nos olhamos em silêncio por alguns segundos, até que eu anunciei: ─ Eu preciso ir. Ela deixou de sorrir. ─ Tão cedo? Fique ao menos para almoçar. ─ Não posso. Tenho um trabalho importante para levar à faculdade amanhã e ainda nem o comecei. O rosto dela cobriu-se de desânimo e a minha consciência pesou. Também daria tudo para passar o dia ali, mas, infelizmente, eu tinha obrigações a cumprir. Aquilo já estava se tornando uma rotina. As noites que eu passava com ela eram maravilhosas, mas os dias seguintes eram sempre depressivos. Nos víamos a semana inteira, na entrada e saída da faculdade e também na academia. Porém, não era a mesma coisa. Se fôssemos como os casais “normais”, talvez pudéssemos aproveitar melhor a companhia uma da outra, andar de mãos dadas ou trocar qualquer uma dessas demonstrações de afeto para as quais eu nunca liguei muito antes. Ao menos, não precisaríamos fingir que éramos apenas amigas. Sendo assim, tínhamos que esperar uma semana inteira para estarmos verdadeiramente juntas mais uma vez. ─ Pelo menos vai tomar café da manhã comigo? – Maire perguntou. [101]


Olhei para o relógio de parede. Já eram quase nove horas. Pensei se conseguiria aprontar seu trabalho a tempo... Talvez, se passasse a noite em claro... ─ Certo. – quem precisa dormir, não é? – Mas não posso demorar muito. O sorriso que ela abriu naquele momento já compensaria a falta de sono. ─ Que bom! – ela vibrou, como uma criança feliz – Então, vá tomando o seu banho enquanto eu preparo um café da manhã caprichado para nós! Dito isso, ela correu para a cozinha, empolgada. Diante da cena, sorri, pensando em como Maire, às vezes, parecia ser apenas uma menina. Sabendo que não tinha muito tempo disponível, fui para o banho. Tinha algumas roupas minhas por lá, assim como tinha algumas da Maire em meu apartamento, então eu me arrumei, prendi os cabelos num rabo de cavalo, e fui para a cozinha. Lá, já encontrei a mesa pronta, cheia de frutas e produtos integrais. Como sempre, Maire também tinha preparado café para mim, já que ela própria só bebia chás. Sempre guardei para mim o comentário de que aquele café era fraco demais para o meu gosto, e apenas bebia, respondendo que sim caso fosse perguntada se havia gostado. Após sentarmos à mesa, Maire indagou: ─ Sabe que dia é amanhã? ─ Vinte e cinco. – respondi – Sei. Um ano de... – a palavra pareceu travar em minha garganta. Mesmo após um ano, eu ainda não havia me acostumado totalmente àquilo. Percebendo minha dificuldade, Maire completou: ─ Namoro, Mic. ─ É. Sabe, ainda é estranho pra mim. Esse não é bem o conceito de namoro com o qual convivi a minha vida inteira. ─ Mas é exatamente o que temos, um namoro. ─ Desculpe. Ela teria todo o direito de ter um ataque, mas apenas sorriu e segurou a minha mão por cima da mesa. ─ Não se preocupe. Eu sei que essa confusão é natural. Esqueça os conceitos pré-estabelecidos, Mic. Nós nos amamos e isso é tudo o que importa. Eu correspondi ao sorriso, sentindo-me plenamente feliz. De fato, eu a amava, e isso era tudo o que deveria importar. Minha namorada era perfeita, [102]


em todos os aspectos que eu poderia desejar. Era muito mais atenciosa, carinhosa e paciente do que os homens com os quais eu já havia me relacionado. Além de ser um poço de paciência. Com total inexperiência em um relacionamento homo-afetivo, eu tive a sorte de contar desde o início com a compreensão e a paciência de Maire. Tanto que, com quase um ano de namoro, fazia menos de dois meses que nós havíamos passado para um estágio mais “avançado” da relação e, assim, eu tinha passado a dormir naquele apartamento no mínimo uma vez por semana. Apertei a mão dela e respondi: ─ Tem razão... namorada. O sorriso dela aumentou. Como eu disse desde o início, Maire não se cansava de mostrar aqueles dentes. Só que, agora, eu achava isso muito mais adorável do que estranho. ─ E então, o que faremos para comemorar? – ela perguntou – Pensei em jantarmos juntas, o que acha? Não era jantar fora, óbvio. Logo que começamos a namorar, duas amigas de Maire (as tais Alicia e Paloma) foram expulsas de um restaurante e, pelo que disseram, não estavam fazendo nada demais, apenas foram reconhecidas por uma colega de faculdade que jantava lá no momento e reclamou com a gerência sobre a imoralidade de deixar duas lésbicas ficarem naquele local. O caso deu polícia e até saiu no jornal. Depois disso, eu, que já era caseira por natureza, decidi que não queria correr o risco de fazer Maire passar pelo mesmo. Então, nós pouco saímos. Maire gosta muito de cinema, por isso vamos uma ou, no máximo, duas vezes ao mês... Mas, fora isso, raramente saímos juntas. As opções, então, eram sempre bem limitadas: a casa dela, ou a minha. Já que estávamos na dela, resolvi variar: ─ Pode ser lá em casa? ─ Hm... Vai cozinhar pra mim? – ela provocou. Pensei no que diria caso eu respondesse “sim”, mas deixei isso de lado. ─ Que tal pedirmos num desses restaurantes vegans que você tanto gosta? – é claro que eu pediria uma pizza também. Comida de verdade! ─ Feito! Mudamos o assunto, passando a falar de qualquer coisa trivial. E, após o café, fui embora. Mas ainda conversaríamos pelo telefone por duas vezes antes daquele domingo chegar ao fim.

***** [103]


~ Maire ~

No dia seguinte, Mic foi me buscar na aula de dança e, de lá, seguimos juntas para o apartamento dela. Deveria ser um dia feliz, mas algo estava errado. Esperei chegarmos em casa para, enfim, perguntar: ─ O que está acontecendo? Não disse uma única palavra durante todo o caminho. Ela jogou as chaves sobre a mesa de centro e seguiu para a cozinha, me ignorando completamente. A pior coisa de um relacionamento entre duas mulheres é exatamente o fato de serem duas mulheres em um único relacionamento. Redundante? Deixe-me explicar melhor: são os dois lados da relação, mantendo o mesmo padrão de comportamento tipicamente feminino. Coisas como estar com raiva e achar que a outra parte tem obrigação de saber os motivos disso. Algumas vezes até dava para decifrar, mas não era a situação atual. Eu realmente não fazia ideia dos motivos que levaram Mic a ficar com raiva de mim. Até o final do nosso horário de musculação, estava tudo ótimo entre nós. Então, ela foi para a aula de boxe, eu para a dança e, quando a encontrei na saída, ela já estava com uma cara de poucos amigos. Eu a segui até a cozinha e a encontrei olhando para dentro da geladeira, notoriamente procurando por nada. Insisti: ─ Mic, eu não vou saber o que aconteceu se você não me contar. ─ A aula de dança foi boa? – foi só o que ela disse, num tom irônico, antes de fechar a porta da geladeira e voltar para a sala. Ironias e frases incompletas... Outras manias femininas. O pior é que eu sabia que não poderia condenar aquilo, afinal, eu possuía os mesmíssimos hábitos quando estava nervosa... Apesar disso não ocorrer com muita frequência. Taí um ponto em que a Mic sempre foi muito mais feminina do que eu. Respirei fundo, mantendo-me paciente (não que isso fosse muito difícil para mim, mas...) e a segui de volta até a sala, encontrando-a sentada no sofá. Sentei-me ao lado dela e respondi: ─ A aula foi como sempre. ─ “Como sempre”? – ela bufou – E desde quando você anda dançando com o professor? Voala, então esse era o problema. Ela na certa havia chegado antes do final da aula e, pelo vidro, me viu dançando com o professor. Mic não tinha [104]


problemas com o meu parceiro usual de dança, e nem poderia, já que ele era gay. ─ É o que ocorre quando nossos parceiros faltam. – respondi, ainda mantendo a calma – Qual o problema com o professor, Mic? ─ Eu percebi o jeito com que ele te olhava. Tentei me manter séria, mas foi impossível segurar um sorriso. Aquele era o meu lado feminino em ação: meu ego ia às alturas quando a Mic sentia ciúmes. E eu a achava muito fofa nessa situação. Queria explicar para ela que os olhares do tal professor faziam parte do contexto, de toda a questão cênica da dança, mas sabia que ela não iria compreender. Por isso, tentei explicar de um jeito que não deixasse mais dúvidas sobre o absurdo que era ela sentir ciúmes daquela situação: ─ Mic... Eu poderia tecer um milhão de argumentos românticos para te fazer entender que jamais ocorreria algo entre o professor de dança e eu. Mas, como sei que você entende muito melhor as coisas sob uma ótica racional, acho que o melhor argumento é esse: – fiz uma pausa e fiquei séria – Cai na real! Eu não gosto de homens!

~ Micaela ~

Tive vontade de rir da dramatização dela. Tentei relaxar, ouvindo o que ela continuou a dizer: ─ Além do mais, não tem motivos para duvidar da minha fidelidade. Eu amo você e é só com você que quero ficar pelo resto da minha vida. Eu não duvidava da fidelidade dela. Nunca, em momento algum. Mas era difícil controlar os ciúmes quando via algum cara (ou garota, como volta e meia acontecia) dando em cima dela. E como não me sentiria insegura? Maire era linda, do tipo que teria quem quisesse aos seus pés. Já eu, não me consideraria tão bonita assim. Não era feia, mas era um tipo europeu comum, sem maiores atrativos. Sem contar que minha simpatia não era bem um fator de sedução. ─ Desculpe. – pedi, constrangida pela minha própria cena – Mas é que eu fiquei com muito ódio ao ver aquele sujeito te olhando daquele jeito. ─ Ele é um profissional, Mic. Não estava me olhando com nenhuma segunda intenção. – percebendo que eu ia retrucar, ela levantou uma das mãos, cortando o assunto – Não vamos discutir mais sobre isso, por favor. Não no nosso dia especial! Ela tinha razão. Estava muito animada por aquele aniversário, e eu quase tinha posto tudo a perder. Não iria mais falar sobre o assunto. [105]


Pedi o nosso jantar e, após comermos, sentamos juntas no sofá, assistindo a um filme na tevê. Uma comédia romântica, do estilo que a Maire adorava e eu achava mais do que chato. Mantive minha mente vagando por outra coisa, mais precisamente, nas palavras que Maire usara pouco antes: “pelo resto da minha vida”. Não havíamos, até então, tocado nesse assunto. Mas, nesse momento, decidi que seria inevitável e inadiável.

~ Maire ~

Assistimos ao filme abraçadas no sofá, praticamente em silêncio. Fiz alguns poucos comentários no decorrer da história, que Mic sempre respondia tentando mostrar-se atenciosa, embora estivesse claramente distante. Ela mesma havia alugado o filme porque, há alguns dias, eu tinha comentado que estava com vontade de assisti-lo, mas não era o estilo dela. Imaginei que o distanciamento da mente dela fosse por conta disso, e que deveria estar pensando em trabalhos da faculdade ou coisa do tipo. Quando o filme chegou ao fim, eu aproximei o rosto do ouvido dela e, com a voz manhosa, pedi: ─ Vamos para o quarto? No entanto, ela se manteve séria, o que me preocupou. ─ Antes, podemos conversar um pouco? Ninguém espera ouvir isso da(o) namorada(o) bem na noite de aniversário de namoro, não é? Mas eu notei nos olhos dela que o assunto seria realmente sério. E isso me preocupou. Ajeitei-me no sofá, ficando de frente para ela, e perguntei: ─ Sobre o quê? ─ Sobre nós. – ela fez uma pausa, parecia estar procurando as melhores palavras para abordar o que queria. E, como sempre, foi bem direta ao ponto – Você sabe que nós somos Guardiãs e por isso temos a obrigação de ter filhos para passar a missão adiante. Meu peito apertou de tristeza. Já havia pensando naquilo, inúmeras vezes, quase diariamente. Mas sempre me faltou coragem para encarar os fatos e conversar sobre isso. Óbvio que, com os avanços da medicina, nada nos impediria de ter filhos. Mas, ao mesmo tempo, eu tinha muitas reservas a respeito da inseminação artificial. Não apenas reservas religiosas ou morais, mas, principalmente, a respeito da confusão que aquilo poderia causar à cabeça dessas crianças. Deveria ser difícil crescer sem saber ao certo de onde veio, sem conhecer suas origens paternas. E, no nosso caso, isso ainda se somaria ao fato de tais crianças serem criadas por duas mães. Eu conhecia o preconceito bem de perto, sentia-o na pele dia após dia... Seria justo fazer [106]


crianças inocentes passarem por isso também? Eu não queria isso para os meus filhos. E sei que Mic também não. ─ Sim, eu sei. – respondi, por fim. ─ Sabemos, mas continuamos a insistir nisso. ─ Insistimos porque nos amamos. ─ Mas não podemos fugir dos fatos.

~ Micaela ~

Maire baixou os olhos, tristemente. E isso fez a minha consciência pesar. Deveria ter deixado o assunto para o dia seguinte, ou para nunca. Eu, sinceramente, não queria ter que falar sobre aquilo. A verdade é que eu nem me importava tanto. Nunca tinha sonhado em ter filhos, mas agora já pensava que, caso os tivesse junto a Maire, não me interessava que métodos usaríamos para isso. Mas sabia que, para ela, isso importava. Quando via aqueles filmes, reparava sempre no quanto os olhos dela brilhavam diante de cenas familiares. Era tudo o que ela sempre desejara: uma família convencional e perfeita. E isso era algo que eu jamais poderia dar a ela. ─ Quer terminar tudo? – ela perguntou, com seus olhos implorando para que a resposta fosse não. E é claro que seria. ─ Não, eu sinceramente não quero. Mas tanto eu quanto você sabemos que, em algum momento, isso será inevitável. ─ Mas esse momento não é agora. Nós temos a energia guardiã, o título de atuais Guardiãs, mas não atuamos ativamente nisso. E nem sabemos se algum dia precisaremos atuar. ─ Se não formos nós, serão nossos filhos ou netos. Não podemos fugir de nossa responsabilidade, Maire. Sem contar que a barreira não foi devidamente fechada, então é quase certo de que em breve ela se abra novamente. Ela enfim levantou o rosto, tornando a olhar para mim. Notei que suas vistas estavam úmidas e isso fez a minha consciência pesar ainda mais. ─ Enquanto não estamos em missão, não somos Guardiãs. – ela disse, tentando passar convicção na voz – Por isso, até lá ficaremos juntas, vivendo dia após dia, sem pensarmos mais nisso. Certo? Um namoro com data determinada para o fim. Qual o nível de absurdo disso? Era um trato que não possuía a menor lógica. No entanto, se o fim era [107]


inevitável, eu desejava prorrogar isso ao máximo que pudesse. Queria ficar ao lado de Maire pelo máximo de tempo possível. Mais do que querer, sentia uma necessidade vital disso. ─ Certo. – respondi. Delicadamente, passei o dedo polegar pela face de Maire, impedindo que uma lágrima continuasse a cair – Então deixe para chorar quando chegar o momento. Vamos apenas continuar juntas, sem pensar no amanhã. Ela fez algo que eu odiava: tirou os óculos do meu rosto. Com isso, percebeu que meus olhos também ameaçavam transbordar. ─ Não chore também. – ela me pediu, num sussurro. Em seguida, segurou a minha mão e encostou sua testa a minha. Fechamos os nossos olhos, num silêncio carregado de cumplicidade. Ficamos assim por minutos, até que eu tomasse coragem para iniciar outro assunto: ─ Tem uma coisa que quero te pedir. ─ Diga, amor. ─ Não vai embora. Abri meus olhos e vi que ela manteve os dela fechados, mas sorriu, docemente, parecendo não entender bem o que eu quis dizer. ─ Claro que não, sua boba. Vou passar a noite com você. ─ Eu sei. – tentei explicar melhor – Mas não quero que vá embora amanhã, nem depois... entende o que quero dizer? Ela deixou de sorrir, pega de surpresa, e, enfim, abriu os olhos, afastando o rosto do meu. ─ Está me pedindo para vir morar com você? ─ É, eu estou. – apesar do medo da resposta, insisti – Meu apartamento é maior do que o seu e tem dois quartos. Maire voltou a sorrir. ─ Pra que dois quartos, sua boba? Minha explicação foi séria: ─ Para podermos explicar aos nossos pais que estamos dividindo o apartamento com “uma amiga”, é muito mais convincente e traz menos desconfiança se for num apartamento com dois quartos. ─ Nós duas morando juntas? – os olhos dela brilhavam e ela sorria, exibindo felicidade e empolgação – Isso seria maravilhoso, Mic. Eu... Eu nem sei o que dizer! [108]


─ Diga que sim. Melhor do que com palavras, Maire respondeu com um forte abraço. O ano que se seguiu não poderia ter sido mais maravilhoso... e olha que eu nem sou de usar essa palavra. Foi o alívio que precisávamos, para termos força para encarar o que viria depois.

***** Maio de 2006. ~ Maire ~

─ Cheguei. – como de costume, anunciei, adentrando o apartamento que, agora, era o meu lar junto a Mic. Antes de ir morar lá, costumava achar aquele apartamento extremamente frio e impessoal. Porém, depois de um ano eu finalmente tinha dado um jeito no ambiente, tornando-o mais aconchegante. A maior mostra disso era o fato de, agora, a geladeira possuir comida de verdade. Chegando ao quarto, encontrei Mic, como de costume, diante do computador. Sem desviar os olhos da tela, ela perguntou: ─ Como foi o trabalho de campo? Ainda parada próxima à porta, eu respondi, empolgada: ─ Foi bom. Insetos me fascinam. Ela sorriu levemente, antes de comentar: ─ É bem incomum alguém declarar isso. Mic odiava insetos. Poderia ficar sem comida em casa, mas nunca, jamais ficava sem inseticida. ─ Não é tão incomum no meio de Biólogos. – expliquei – Agora preciso de um bom banho. Não que eu não adore cheiro de mato e terra, mas não gosto que esteja em mim. – ri. Mas um riso breve, que logo deu lugar à seriedade. Dessa vez era eu que tinha um assunto importante para tratar – Mic, a gente pode conversar? ─ Claro. – ela não parou de digitar, mas eu sabia que poderia falar, pois teria a atenção dela. Sentei-me na ponta da nossa cama, ficando bem atrás de Mic. Tomando coragem, iniciei o assunto: [109]


─ Minha mãe me ligou. ─ Sim... ─ Ela me achou muito feliz e me perguntou se eu estava namorando alguém. Ela parou de digitar e permaneceu olhando para o monitor, embora já não prestasse mais qualquer atenção às codificações escritas ali.

~ Micaela ~

Certo, não era uma boa situação. Maire não mentia para os pais... omitia bastante coisa, era verdade... mas não mentia. Eu também não mentia para os meus, mas também, não precisava. Minha mãe jamais me perguntaria algo daquele tipo. Ela não cogitava a hipótese de eu namorar alguém por dois motivos: o primeiro era que ela, mesmo depois de tanto tempo, ainda sonhava que eu voltasse com Leonardo. E o segundo era que... bem, ela me conhecia, né? ─ E o que você respondeu? – indaguei. ─ A verdade. Então, eu me desesperei por completo. Girei a cadeira, ficando de frente para Maire. ─ Disse a verdade para a sua mãe? ─ Omiti isso para ela durante os últimos dois anos, mas não consegui negar quando ela me perguntou diretamente. Disse que sim, que estou namorando uma pessoa. ─ Apenas isso? E ela não fez mais perguntas? ─ Oh, sim. Fez várias! Então, eu achei que fosse o momento, me enchi de coragem e disse a ela que precisava contar algo muito importante sobre a “pessoa” que estou namorando. ─ E aí? ─ E aí que eu contei que essa “pessoa” na verdade é... Pausa. Meu sangue gelou. Maire não podia ter feito aquilo... Não podia! Ela fechou os olhos e soltou lentamente o ar dos pulmões, completando: ─ Católica. Tive que me segurar na cadeira para não cair. [110]


─ Católica? – indaguei, beirando a revolta pelo susto que ela me deu. ─ Isso representa um problema para muitas pessoas, sabia? ─ Seria simples se nosso “problema” maior fosse esse! – bufei, numa mistura de revolta e alívio. Porém, recordei-me das histórias que Maire me contava sobre sua infância em meio aos conflitos religiosos na Irlanda do Norte, onde nasceu e viveu os primeiros anos de sua vida. Voltei a ficar tensa – E como sua mãe reagiu? ─ Ela não viu problema nisso. Apenas disse: “tudo bem, ninguém é perfeito”. Que bom que ela aceitava esse meu “defeito”, não é? ─ A questão, Mic, – Maire prosseguiu – é que eu não aguento mais viver mentindo para a minha família. Eu sei que minto há muitos anos sobre a minha sexualidade, mas era diferente! Antes eu sentia que estava fazendo algo errado e ruim, mas desde que te conheci não me sinto mais dessa forma. A gente se ama de verdade... E eu não consigo ver nada de errado nisso. Eu não quero mais te esconder da minha família. Não quero mais mentir. ─ Entendo. – suspirei, cansada – Eu também penso muito sobre isso e acho que já passou da hora de abrir o jogo pros meus pais. Ela segurou a minha mão. ─ Não precisa fazer isso se não quiser, Mic. ─ Eu não quero, mas sei que preciso. Também me sinto sufocada vivendo numa mentira. Percebi que os olhos azuis começavam a inundar, o que me angustiava mais do que qualquer outra coisa nesse mundo. Sentei-me ao lado dela na cama e a puxei para junto de mim, abraçando-a. Em alguns segundos, ouvi sua voz baixa e insegura: ─ Vai dar tudo certo, não vai? Tudo vai acabar bem, não vai? ─ Vai. – respondi, tentando passar uma confiança que, no fundo, eu não possuía – Enquanto estivermos juntas, tudo ficará bem. Ela me abraçou, com força, e percebi que tentou acreditar em minhas palavras. Eu também queria.

***** Junho de 2006. ~ Maire ~ [111]


Mic parou o carro diante de uma das entradas do Aeroporto Internacional de Madrid. Fazia bastante calor nesse dia, o que, para mim, soava como um bom sinal, de que tudo daria certo. Sempre amei o verão, minha estação preferida, e nunca consegui entender a fixação que Mic tinha por ar-condicionado e temperaturas glaciais. Era só entrar no carro dela, e aquele ar era ligado, no nível mais gelado. Mas ela odiava o calor, assim como eu odiava o frio... Era o nosso padrão: ter gostos opostos. ─ Chegamos. – ela anunciou, desligando a chave do carro. Olhei para o banco de trás, onde estavam as nossas malas. Apenas duas, uma de cada. Havíamos separado apenas o indispensável, já que os locais para onde iríamos já tinham muitos pertences nossos. Tonei a olhar para Mic e perguntei, pela milésima vez: ─ Tem certeza de que quer ir dirigindo até a Itália? Por que não faz como eu e pega um voo? Mic não tinha nenhum trauma, medo ou sequer receio de andar de avião. Mas amava dirigir. Se houvesse uma ponte ligando a Europa ao Japão, era bem capaz dela ter ido para lá de carro. ─ Não vejo necessidade para isso. São apenas quinze ou dezesseis horas de estrada. Terei tempo de refletir bastante sobre que palavras usarei para contar tudo isso aos meus pais. Por mais que achasse isso arriscado demais, eu compreendi e aceitei. Dirigir era um dos hobbies preferidos da Mic. E seria bom ela relaxar antes de chegar em casa. ─ Está certo. Mas tenha cuidado na estrada e me ligue quando chegar. ─ Você também, não deixe de dar notícias quando chegar a Dublin. Nos despedimos com um forte abraço e, quando nos soltamos, declarei em italiano: ─ Ti amo. Mic respondeu no mesmo idioma: ─ Anche io. Mic raramente dizia “eu te amo” e eu respeitava isso. Seu “eu também”, para mim, já tinha um enorme significado. O espanhol dela já estava bem melhor do que quando chegou a Madrid, mas, ainda assim, continuávamos conversando sempre em italiano, a não ser que estivéssemos em alguma conversa em grupo, com outras pessoas. Gostava disso, dessa forma nossa de nos comunicarmos, mais uma singularidade daquele mundinho só nosso... Do mundinho protegido onde vivíamos quando estávamos a sós.

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Sem mais palavras, peguei minha mala no banco de trás e saí do carro, entrando no aeroporto. Não olhei para trás. Tive medo de desistir.

***** Horas depois Dublin – Irlanda.

Dublin não era a minha cidade natal. Nasci na Irlanda do Norte, e apenas me mudei para a capital irlandesa aos sete anos de idade. Mas foi ali que vivi a maior parte da minha vida. Parada na calçada, olhando para a casa do outro lado da rua, eu me perdia em lembranças. Aquele era o lar da minha adolescência e da maior parte da minha infância. Tinha boas recordações dali. Parecia que até o cheiro do bairro era diferente. Tinha cheiro de lar, de família... de felicidade. Eu jamais poderia reclamar da vida que tive. Muito pelo contrário, era grata a Deus por tudo o que tinha. Meus pais eram maravilhosos e meus irmãos eram ótimas “crianças”. Sempre fui muito amada. Acredito que, exatamente por isso, não tinha ainda tido a coragem necessária para ser completamente sincera com eles. Por conta disso, vivi afogada em mentiras que fizeram com que eu me mudasse para outro país com o pretexto de estudar numa renomada universidade, quando na verdade apenas queria fugir de tudo aquilo. O celular tocou, arrancando-me de minhas divagações. Nem precisei olhar o visor para saber quem era. ─ Que bom que me ligou. Já estava com saudades. – disse, ao atender. ─ Queria saber se chegou bem. ─ Sim. Também estava preocupada com você, mas me segurei para não te ligar. Sabe que não gosto que atenda o celular enquanto dirige, é perigoso. ─ Não se preocupe, agora não estou dirigindo. Parei para comer alguma coisa. ─ Comida de verdade, eu espero. ─ Claro que sim. Preferi não comentar que sabia que ela estava mentindo. Seria capaz de apostar tudo o que tinha que minha nada saudável namorada estava em algum fast food na beira da estrada, comendo porcarias gordurosas altamente calóricas. [113]


─ E você? – ela sabiamente desviou o assunto – Já está em casa? ─ Quase. Para ser exata, estou bem em frente a ela. ─ Há quanto tempo? ─ Uns trinta ou quarenta minutos. Estava pensando em tantas coisas... E criando coragem para entrar. ─ É melhor não pensar muito e encarar logo a situação. ─ Farei isso. Nos vemos novamente em uma semana, em nossa casa. ─ Certo. Cuide-se, e... – Mic fez uma pausa – Boa sorte. ─ Para nós duas. Após guardar o celular na bolsa, respirei fundo algumas vezes, tentando criar coragem para entrar. Mas antes que desse o primeiro passo fui detida por uma voz feminina que me chamava pelo nome. Ao me virar, deparei-me com uma adolescente de uniforme escolar. ─ Kelly... – sussurrei, emocionada. Larguei a mala no chão e abri os braços para receber a garota que correu até mim, abraçando-me fortemente. Ela estava enorme! Devia ter quase um metro e setenta e, por ter apenas treze anos, na certa cresceria ainda mais. E estava linda também, os cabelos castanho-claros e lisos bem mais compridos do que da última vez que a vi, o que já tinha alguns meses. Pensei em fazer essas observações típicas de irmãs mais velhas, mas me controlei. Sabia que adolescentes não gostavam disso. E minha irmãzinha já era uma adolescente! Quem diria! ─ Eu não acredito! – ela exclamou – Por que não disse que vinha? ─ Quis fazer uma surpresa. – respondi. ─ Mamãe terá um troço de alegria! Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, mais uma pessoa uniu-se a nós. Desta vez, um garoto de dezesseis anos, também de uniforme. Aproximou-se tão rápido que nos assustou. Passado o susto inicial, eu o abracei, enquanto Kelly reclamava: ─ Idiota! Não podia se aproximar civilizadamente? Ignorando-a, ele afastou-se de mim e vibrou: ─ Nossa, nem acredito que você tá aqui. Quando chegou? Só pra constar: meu irmãozinho também era lindo. Tinha os mesmos olhos castanhos da Kelly – que ambos herdaram do nosso pai – mas seus cabelos eram levemente aloirados. [114]


─ Agora a pouco. – respondi, ainda emocionada por revê-los. Estavam enormes, não paravam de crescer! Mas continuei guardando esse comentário para mim. ─ Não está vendo a mala dela? – implicou Kelly. Mostrando a língua para a nossa caçula, Keegan tornou a me olhar. ─ Então a mamãe ainda não te viu? Ela vai ter um troço. ─ Foi o que eu disse. – informou Kelly. Estavam enormes, mas ainda brigavam como duas crianças. Sorri, observando a cena e pensando no quanto era bom estar em casa, com a minha família.

*****

Ao contrário do que os meus irmãos disseram, mamãe não teve um “troço” quando me viu. Mas chegou bem perto disso. Abraçou-me com tanta força que cheguei a pensar que seria esmagada; beijou-me o rosto várias vezes e repetiu compulsivamente as frases “Meu Deus!”, “Não acredito!” e “Que bom que está aqui.” Quando finalmente se afastou para me bombardear com perguntas sobre minha saúde e se eu andava me alimentando bem, aproveitei para também olhá-la. Com quarenta e cinco anos e três filhos, dona Brigite ainda era uma bela mulher. Os cabelos ondulados e castanho-claros que manteve longos durante toda a juventude, agora tinham um comprimento mediano à altura dos ombros, e seus olhos eram tão azuis quanto os meus. E não era apenas nos olhos que nós éramos parecidas. Tirando a cor dos cabelos, eu poderia ser considerada uma cópia fiel da minha mãe aos vinte e poucos anos, tanto nas feições quanto nas formas do corpo. Mesmo com o passar do tempo, mamãe não mudara muito, tanto que poderíamos facilmente compartilhar inúmeras peças de roupas – o que, aliás, ocorria com frequência quando morávamos juntas. E, além das semelhanças físicas, também dividíamos gostos e estilo bem parecidos. ─ Estou te achando mais magra. Anda se alimentando direito? – e, finalmente, mamãe fez a sua costumeira pergunta. Não pude evitar sorrir. Nesses momentos, sempre me perguntava se algum dia seria uma mãe tão zelosa e preocupada quanto a minha. ─ Não estou mais magra, mãe. Mantenho o mesmo peso desde a última vez que nos vimos. ─ Mamãe é sempre paranoica. – informou Kelly. Ela e Keegan já haviam sentado no sofá da sala. [115]


─ Só entenderão quando tiverem filhos. – a mencionada se defendeu. Mas continuou empolgada com minha visita – Como conseguiu vir pra cá em pleno mês de julho? Não vai atrapalhar seus estudos? ─ Não se preocupe, não terei aula por alguns dias. Estamos na semana acadêmica. Mas ela, com razão, não se convenceu com a resposta: ─ E você não vai apresentar nada esse ano? Está sempre tão empenhada em palestras e projetos. ─ É, mas esse ano resolvi pegar uma folga. Precisava muito vir ver vocês. – minha última frase soou séria, mas ninguém percebeu. Segurando as minhas mãos, mamãe me puxou até outro sofá, onde nos sentamos. Ela ainda estava empolgada com o assunto da conversa que tivemos ao telefone um mês antes. ─ Então me conte tudo. – pediu – Como vai a sua vida na Espanha? ─ E vá direto ao ponto. – Kelly entrou na conversa – Mamãe contou que você está namorando. Eu já sabia que esse assunto fatalmente iria surgir, o que me daria brechas para fazer a confissão tão adiada. Contudo, aquele ainda não era o momento, já que meu pai não estava presente. Pelo horário, ainda deveria estar no serviço. ─ Fiquei tão feliz com a notícia! – declarou a minha mãe, sorridente – Temia que você demorasse a superar o seu término com Nolan. Na verdade, não havia o que ser superado. Nolan e eu ficamos juntos numa tentativa minha de viver uma “vida normal”. Mas não foi algo forçado ou traumático, muito menos algo do qual eu me arrependia. Eu gostava dele, de verdade. Talvez não como uma mulher devesse amar um homem com quem planejasse construir uma vida em comum, mas ele era inegavelmente um ótimo amigo e um companheiro fiel, além de termos inúmeros interesses em comum. Mesmo o término do relacionamento foi com um acordo mútuo. Nolan me conhecia bem o suficiente para saber dos segredos que eu escondia da minha família e foi o maior incentivador para que eu parasse de fingir ser alguém que não era e perseguisse minha felicidade. Entretanto, aos olhos dos nossos familiares, um noivado cheio de planos não tinha como terminar sem deixar qualquer trauma. ─ Parece que superei. – respondi, por fim. Mas o assunto não morreu ali. Minha mãe e irmã continuaram a insistir, visivelmente interessadas nesse meu novo “namorado”. ─ Por que ele não veio com você? – indagou Kelly. Minha mãe se adiantou em responder: [116]


─ Certamente deve estar ocupado, não é? Disse que ele estuda na sua faculdade, é de qual curso? ─ Ele é bonito? – disparou Kelly. ─ Como se chama? ─ Quantos anos tem? ─ Conhece a família dele? ─ Vocês estão morando juntos, mana? Minha mãe encarou Kelly de modo assustado. Morar junto antes do casamento, para minha família, era algo inconcebível. Eu solucionaria isso casando com a Mic, se deixassem... ─ É claro que não, Kelly. – mamãe retrucou –Maire nos contaria algo tão importante. Além do mais, ela está dividindo o apartamento com uma amiga. Aliás, e a Mic, como está? Finalmente, uma pergunta que eu poderia responder: ─ Ela foi pra Itália ver os pais. ─ Esqueça a Mic! – pediu a minha irmã – Vamos falar sobre o seu gato! Suspirei, cansada de tudo aquilo. Adoraria que minha situação com a Mic fosse aceita e, assim, eu pudesse falar sobre ela com a minha família, responder aquelas perguntas e contar, com orgulho, sobre o quanto ela era maravilhosa. Mas eu não podia. Precisava contar a eles, mas ainda não era o momento. Meu pai deveria estar presente. E, ao menos por enquanto, queria poder poupar os meus irmãos. Eram ainda muito jovens e eu sentia que teriam um choque ao descobrirem a verdade. Minha mãe tocou o meu ombro e, ao olhá-la, vi que ela havia percebido que tinha algo acontecendo. Sorrindo de forma compreensiva, ela sugeriu: ─ Querida, por que não vai se deitar um pouco? Deve estar cansada da viagem. Mais tarde conversamos. Sorri, aceitando a sugestão. Meu quarto ainda estava como eu o deixei na última vez que estive ali. As paredes em cor marfim, a pequena estante com meus livros, os portaretratos sobre a cômoda, as bonecas preferidas guardadas desde a infância, os bichos de pelúcia... tudo exatamente do jeito que deixei. Era reconfortante saber que, mesmo já tendo minha própria vida e morando em outro país, ainda tinha o meu espaço naquela casa... E, consequentemente, em minha família.

[117]


Tive medo de que isso mudasse quando a verdade viesse à tona. Mais do que isso, de alguma forma eu sabia que mudaria. Vencida pelo cansaço, deitei-me na cama, começando a passar levemente os dedos sobre o pingente do meu colar, enquanto meu pensamento ia longe. Mais precisamente à Itália, em Micaela. Estava ansiosa para ter notícias. Apesar da preocupação, estava cansada demais e, com isso, em poucos minutos acabei pegando no sono.

***** Roma – Itália ~ Micaela ~

Já era noite quando cheguei em casa. Do quintal, olhei pela janela da sala e avistei meus pais, sentados juntos, assistindo alguma coisa na tevê. Bem, na verdade, meu pai assistia tevê. Minha mãe folheava uma revista. Mesmo à distância, podia ter certeza de que a televisão transmitia algum evento automobilístico, e que a revista era de eletrônica ou informática. Não sei se meus pais eram muito previsíveis, ou se eu é que os conhecia bem demais. Tomando coragem, peguei minha chave e abri a porta, finalmente entrando. Eles levantaram e vieram rápido em minha direção, nitidamente felizes. E me abraçaram, ao mesmo tempo. Sentia falta daquele abraço e da sensação boa que tinha em família. Apesar da promessa que havia feito a eles logo que entrei para a faculdade, de ir visitá-los todos os meses, minha visitas começaram a ficar cada vez mais espaçadas desde que Maire e eu começamos a namorar. Era julho e eu não os via desde as festas de fim de ano. Queria que esta minha visita fosse baseada apenas nesses bons momentos. Mas já sabia que não seria assim ─ Por que não contou que vinha? – minha mãe perguntou – Iríamos te buscar no aeroporto. ─ Vim dirigindo. – respondi. E já sabia que reação ela teria àquilo. ─ Dirigindo desde Madrid? Por que faz essas coisas? Você é louca? Por algum motivo, minha mãe não gostava que eu fizesse aquela viagem de carro. Qualquer besteira sobre o perigo de dirigir tantas horas, o risco de acidente nas estradas... eu, sinceramente, não tinha esse tipo de preocupação. [118]


Ajeitando os óculos, expliquei, tentando tranquilizá-la: ─ Peguei a estrada assim que o sol nasceu, a pista estava livre, fiz poucas paradas... Acho que nunca fiz esse caminho tão rápido. Certo... o “rápido” equivalia a exatas dezessete horas de viagem. Nada que fosse humanamente impossível. ─ Enzo, você não fala nada? – ela questionou ao meu pai. E ficou chocada ao olhá-lo e ver que ele sorria. ─ E como estava a A-2? – foi o que ele disse, empolgado. Um pouco de compreensão, enfim. ─ Incrivelmente sem retenções. ─ Tem tantos anos que não dirijo por lá. – meu pai estava saudoso. Pensei que gostaria de fazer essa viagem com ele, qualquer hora. Queria ter tido essa oportunidade. Já a minha mãe, mal conseguia acreditar no que ouvia. ─ Enzo, não deveria incentivar isso! Meu pai e eu nos olhamos e sorrimos, cúmplices. Sabíamos que minha mãe jamais compreenderia a paixão que nós tínhamos por dirigir. No entanto, eu não poderia negar que aquela viagem era cansativa demais. Sei que tinha um assunto sério para tratar, mas isso teria que esperar até o dia seguinte. Ou algumas horas, já que já passava da meia-noite. ─ Preciso de um bom banho e cair na cama. – confessei. ─ Ficará por quanto tempo? – minha mãe perguntou. ─ Uma semana, no máximo. ─ Que pena que ficará tão pouco. – ela lamentou. Eu também sabia que aquele tempo era curto. Curto demais para criar coragem para a revelação que precisaria fazer. Mas deixaria para pensar naquilo em outro momento. Meus pais me acompanharam ao meu velho quarto. Após dar um beijo de boa noite em cada um, tomei um banho e deitei-me para dormir. Antes de pegar no sono, no entanto, apanhei meu celular e enviei uma mensagem para Maire.

***** Dublin - Irlanda ~ Maire ~ [119]


Eu agradecia aos céus pelo fato de ter um pai extremamente ciumento. Graças a isso, consegui ter um jantar em família sem os questionamentos da minha mãe e irmã a respeito de meu “novo namorado”. Quando acordei do meu cochilo e saí do quarto, meu pai já havia chegado do hospital onde trabalhava. Por sorte, não faria plantão naquela noite e poderia jantar com a gente. Eu aproveitaria um pouco a minha família completa. Ou quase completa. Faltava a Mic para que eu tivesse com as pessoas que mais amo próximas a mim. Pensava se algum dia isso viria a acontecer. Após o jantar, nos reunimos na sala, onde conversamos por horas. Às vezes, minha mãe e eu acabávamos isolando o restante da família quando começávamos nossos assuntos relacionados ao meio-ambiente. Naquela casa, éramos as únicas vegetarianas e participantes de grupos ativistas. Já era bem tarde quando todos resolvemos ir dormir. Logo que entrei no quarto, encontrei o meu celular vibrando sobre a cama. Corri para ver do que se tratava e sorri ao constatar que Mic havia me mandado uma mensagem.

Já estou em casa. Pretendo contar td p/ eles amanhã. Sdds.

Digitei a resposta. Sem abreviações. Ao contrário da Mic, eu não era amiga da tecnologia, nem conhecedora das praticidades dela. Escrevia uma mensagem como escreveria um texto à mão.

Tudo dará certo. Também estou morrendo de saudades. Beijos, te amo. =)

Certo, apenas uma carinha feliz ao final, para quebrar um pouco a frieza daquele método moderno de comunicação. Após o envio, deitei-me na cama e fiquei fitando o teto, pensativa. Tentava buscar na mente as melhores palavras para iniciar a tão adiada conversa com meus pais. Mas era difícil demais chegar a qualquer conclusão. Em alguns minutos, o celular vibrou novamente. Ao apanhá-lo, vi uma pequena mensagem de apenas duas palavras em italiano:

Anche io

Tão típico da Mic! E paradoxalmente fofo. [120]


Abracei o aparelho e fechei os olhos. Dessa vez, demorei um bocado para conseguir pegar no sono.

***** Roma – Itália ~ Micaela ~

Na manhã seguinte, saí do quarto seguindo os sons que vinham do quintal. Desci as escadas e caminhei por toda a extensão da sala, parando na porta no exato momento em que meu pai arremessava uma bola de basquete diretamente na cesta. ─ Bravo, papà. – eu disse, chamando para mim a atenção dele. Ele me olhou e sorriu. ─ Buon giorno11. - Buon giorno. – desci os dois degraus da varanda, aproximando-me um pouco mais – Não foi trabalhar hoje? ─ Não. Já liguei e mandei avisar que não vou aparecer por lá essa semana. Quero aproveitar o tempo com a família completa, já que isso tem sido tão raro nesses últimos anos. Sem dar tempo para que eu respondesse qualquer coisa, meu pai apanhou a bola do chão e a arremessou para mim. Agarrando-a no ar, tentei repetir o feito dele. No entanto, a bola bateu no aro e foi ao chão sem passar pela cesta. ─ Que coisa. Não andou treinando? – meu pai pegou a bola novamente. ─ Como, papà? Moro em apartamento, não dá pra ter uma tabela de basquete. ─ Não tem esse tipo de atividades na Universidade? ─ Não tenho tempo pra essas coisas. Além do mais, o senhor sabe que eu não sou muito fã de esportes. ─ É uma pena. Você é alta, tem porte... Daria uma ótima jogadora profissional. ─ Desculpe desapontá-lo nesse ponto. Ele riu. Após arremessar (e acertar) novamente a bola na cesta, respondeu: 11

Bom dia.

[121]


─ Você me desapontar seria impossível. Não dá pra um pai ter mais orgulho de um filho do que eu tenho de você. Senti minhas vistas umedecerem, pensando em até que ponto aquele orgulho iria sobreviver depois que eu revelasse meu segredo. Meus pensamentos foram bruscamente interrompidos quando avistei a bola de basquete novamente sendo arremessada para mim. Após apanhá-la, joguei-a em direção à tabela. A bola girou no aro e caiu, atravessando a cesta. ─ Bravo, Mic! – papà vibrou – Anda, vai tirar esses óculos e colocar suas lentes. Vamos jogar um pouco enquanto sua mãe não chega do mercado com nosso café da manhã. Eu concordei.

***** Dublin – Irlanda ~ Maire ~

O dia seguinte à minha chegada também foi marcado por um ótimo clima familiar. Dormi até tarde, então passei poucas horas sozinha até que meus irmãos retornassem da escola. Meus pais só chegariam no final da tarde, pois ambos tinham cirurgias marcadas naquele dia. Fiz um almoço caprichado e almocei com meus irmãos, enquanto me atualizava sobre as novidades deles. Keegan estava montando uma banda com os amigos, e me pediu conselhos sobre como “chegar” em uma menina de quem estava “de olho”. Já Kelly, me confidenciou que estava escondendo o boletim dos nossos pais, para que eles não soubessem que ela tinha tirando notas vermelhas em... Adivinhe? Biologia! Prometi ajudá-la na matéria e tentei não ficar desolada com o fato da minha irmãzinha não gostar de uma área tão encantadora. Quando nossos pais chegaram, nós cinco assistimos alguns filmes. Depois mamãe preparou o nosso jantar e, após comermos, meus irmãos foram (obrigados pelos nossos pais) para seus quartos fazerem as lições escolares que estavam atrasadas desde o dia anterior, por conta da minha chegada. Enfim ficando a sós com meus pais, decidi que aquele seria o momento. Então anunciei: ─ Tenho algo importante a contar. Percebendo que eu estava tensa, mamãe sorriu carinhosamente e informou: [122]


─ Pode dizer, querida. Seja o que for, nós somos os seus pais. Te amamos e vamos compreender. Eu sabia que ela só dizia aquilo por não ter a menor ideia do que eu iria dizer. ─ Sei que vão se desapontar comigo. – continuei, sentando-me num sofá de frente para o que os dois estavam – Mas quero que saibam que eu amo muito vocês e preciso lhes contar isso porque estou cansada de mentir. ─ Mentir para nós? – mamãe parecia incrédula e eu compreendia os motivos disso. Tirando meu maior segredo, sempre conversamos sobre tudo. ─ O que aconteceu, Maire? – indagou papai, já completamente sério. Ele já havia compreendido que a coisa era grave. E eu, pela primeira, vez, senti medo do tom de voz do meu pai. ─ Aconteceram muitas coisas que venho escondendo de vocês. – confessei – Mas isso se tornou mais forte quando fui pra Espanha. Lá eu conheci alguém, e... ─ Está grávida? – mamãe me cortou, aflita. Seria algo grave, sem dúvidas. Mas a verdade era algo que ficava num completo extremo daquela possibilidade. ─ Não, mamãe. Mas ela não parou com suas suposições. ─ Então, Kelly estava certa, não estava? Você está morando com aquele seu namorado. Papai ficou chocado. ─ Morando com um homem que nós sequer conhecemos? Tentei desmentir, mas meus pais insistiram: ─ Como pôde nos esconder algo assim, Maire? – minha mãe indagou. Papai respirou fundo e tentou manter a calma. ─ Não é o que sonhamos pra você, Maire. Queríamos te ver casando na igreja e não simplesmente se ‘juntando’ a alguém. Mas também somos capazes de entender que os tempos são outros. Teríamos compreendido se você nos contasse antes. Se nos apresentasse a esse rapaz. Por que ele não veio com você? ─ Por que não há rapaz nenhum. – eu o cortei. ─ Como não? – mamãe estranhou – Você nos disse que...

[123]


─ Não há rapaz nenhum. – repeti. Respirei fundo, reunindo toda a coragem que possuía – Eu estou dividindo o apartamento, sim. Com a Mic. Micaela Angeli, a Guardiã de Gêmeos. Meu pai ficou ainda mais sério, pareceu começar a compreender o que eu queria dizer. Já a minha mãe, apenas ficou aliviada por saber que eu não estava morando com o tal namorado. ─ Isso nós já sabíamos, querida. – ela sorriu. ─ O que quero que vocês entendam é que a Mic é mais do que uma simples colega de apartamento. ─ Eu sei. – minha mãe afirmou – Vocês são amigas. Já me contou isso também. Levantei-me, inquieta. ─ Não, mamãe! Ou melhor... Nós somos amigas, sim. É claro! Mic é a melhor amiga que já tive na vida. Mas não é apenas isso, entendem? Por alguns segundos, houve um crucial silêncio naquela sala, cortado por uma voz masculina vinda do corredor: ─ Minha irmã é lésbica? Virei-me em direção a voz e senti como se meu coração tivesse parado de bater. Lá estavam meus irmãos, Keegan e Kelly, parados próximos ao corredor. E eles me olhavam com seus rostinhos confusos, transtornados. ─ Isso é algum tipo de brincadeira, Maire? – Keegan perguntou, em choque. Nessa hora, eu não consegui mais conter as lágrimas. Não podia ter acontecido daquele jeito, meus irmãos não podiam ter sido envolvidos naquilo, não naquele primeiro momento. Quis dizer algo, mas não consegui. As palavras travaram na minha garganta, sufocadas diante do olhar de reprovação que eles me lançavam. Papai levantou-se do sofá e ordenou: ─ Vocês dois, para o quarto. Agora! Keegan foi o primeiro a acatar a ordem e se dirigir em direção ao quarto. Kelly ainda ficou parada por alguns segundos, encarando-me antes de declarar com repulsa: ─ Eu tenho nojo de você! E correu, seguindo os passos do nosso irmão. Queria segui-los, conversar com eles, pedir perdão... Mas não dei um único passo. Sabia que o assunto com meus pais ainda estava longe de chegar ao fim. Voltei a focar minha atenção neles... mamãe vagava os olhos pelo nada, confusa. Já o meu pai, continuava a me encarar e, quando eu também o olhei, ele perguntou, de forma enérgica: [124]


─ Há quanto tempo? Queria que o chão se abrisse naquele momento, para eu me esconder e não ter que enfrentar aquele olhar do meu pai, nem que responder àquelas perguntas. Mas agora não havia volta. A bomba tinha sido jogada e eu precisava ir até o fim. ─ Com a Mic, dois anos. ─ Ela foi a primeira? Baixei o rosto e movi a cabeça negativamente. Papai insistiu: ─ Desde quando? ─ Desde sempre. Ele bufou, visivelmente furioso. Andou de um lado a outro na sala, parecendo pensar no que fazer ou dizer. Até que parou e voltou-se para a minha mãe, perguntando: ─ Brigite, tem o telefone do Doutor Sean? Ligue para ele e peça para atender Maire o mais rápido que puder. Enquanto mamãe corria para o telefone, eu questionei: ─ Quem é doutor Sean? Papai respondeu sem olhar para mim: ─ Um colega nosso. Psiquiatra. Ele vai te tratar. Demorei alguns instantes para processar a informação e compreender o que ele estava propondo. ─ Me tratar? – repeti, incrédula – Pai, eu não preciso de um psiquiatra. ─ Eu digo do que você precisa. – ele voltou a me encarar, parecendo se controlar para não elevar ainda mais a voz – Isso é um distúrbio, que será curado se você colaborar. ─ Eu não contei isso procurando me tratar. Tudo o que peço é o apoio de vocês. ─ E terá o nosso apoio. Pra se curar disso. Abri a boca para prosseguir a discussão, mas a voz da minha mãe me interrompeu: ─ O doutor Sean está com a agenda lotada até o final do mês, mas disse que poderá atender a Maire na terça.

[125]


─ Eu volto pra Espanha no domingo. – eu informei, deixando claro que, ainda que topasse aquela loucura, não seria compatível com meu planejamento. Mas meu pai foi seco e direto ao anunciar: ─ Você não volta mais para a Espanha. Foi a vez de eu entrar em choque. Não conseguia conceber que estava sendo tratada daquela maneira. ─ Não pode decidir isso assim, pai. Eu tenho a minha vida em Madrid, estou quase no final do meu curso de Biologia. ─ Tranque a matrícula e conclua em alguma universidade daqui. ─ Não pode me proibir de voltar pra Espanha. ─ Posso, sim. Ainda sou o seu pai. E minha obrigação é cuidar de você. Nem que pra isso tenha que te trancar dentro dessa casa ou te internar em um hospício. Não tive mais palavras. Sentia-me como se tivesse sido jogada em alguma realidade paralela, onde meu pai me gritava ameaças, enquanto minha mãe me olhava com olhos de sofrimento por acreditar que eu estivesse terrivelmente doente. Definitivamente, eu não estava doente. Doença parecia ser aquilo que acontecia ali. A doença da incompreensão, em seu estado mais crônico. Quando o primeiro soluço me escapou, meu pai baixou o rosto para não ter que continuar a me encarar, e disse: ─ O assunto está encerrado por hoje. Vá para o seu quarto. Eu não retruquei a ordem. Estava fraca demais para isso. E, mesmo que não estivesse, sabia que de nada adiantaria insistir na briga. No estado em que ele estava, eu não teria condições de fazê-lo mudar de opinião. Assim, segui a passos rápidos até o meu quarto e me joguei na cama, afundando o rosto no travesseiro e, enfim, deixando vir todo o choro à tona. Havia imaginado mil reações diferentes dos meus pais, mas nenhuma, nem mesmo a pior delas, chegava aos pés do que acontecia ali. Nunca em minha vida havia presenciado qualquer demonstração de preconceito vinda de meus pais. Foram eles que me ensinaram a respeitar as diferenças, a amar o próximo, fosse quem fosse... ─ Posso entrar? – a doce voz da minha mãe me arrancou de meus pensamentos. Olhei para ela, que me observava através de uma fresta na porta. Sem aguardar por respostas, ela entrou. Quando sentou-se ao meu lado, eu me joguei nos braços dela, continuando a chorar. [126]


─ Calma, meu amor. – ela pediu, passado as mãos sobre os meus cabelos – Acalme-se, tudo ficará bem. O doutor Sean é um ótimo profissional, tenho certeza de que ele poderá te ajudar. O acalento dos carinhos dela foi destruído por aquelas palavras. Afastei-me bruscamente, olhando-a de forma incrédula. ─ Também pensa como o papai? – minha voz quase não saía – Também acha que estou doente? ─ Sabe que isso não é normal, querida. Você é uma menina tão inteligente, tão bonita... ─ E por ser inteligente e bonita eu não posso gostar de outra mulher? Mamãe pareceu pensar melhor nas palavras que usaria. ─ Você está estudando para ser Bióloga, Maire. Sabe melhor do que eu que essa sua “opção” vai contra todas as leis naturais da vida, não é? ─ Não estamos falando sobre reprodução, mamãe. Estamos falando de amor. ─ Isso não é amor. É um distúrbio, uma patologia. ─ Eu também achava que tinha um distúrbio, mamãe. Quando tudo era só físico, achei que poderia me curar a qualquer momento. Mas aí eu conheci a Mic... E me apaixonei. De verdade. É por isso que não aceito que digam que o que sinto por ela possa ser uma doença, porque é o sentimento mais lindo que já senti na vida, e... Não consegui continuar. Minha voz falhou por completo e tive que respirar fundo algumas vezes, enquanto passava as mãos sobre o rosto para secar as lágrimas, até que conseguisse voltar a falar: ─ Sabe o que é amar e ser amada, não é mamãe? Sabe que não há nada no mundo que consiga descrever isso, não é? E que é maravilhoso poder dormir e acordar todos os dias ao lado daquela pessoa. Quando nos beijamos ou nos tocamos, é como se o mundo fosse apenas nós duas. A Mic me compreende melhor do que ninguém. E eu também, consigo decifrar cada olhar, cada gesto ou cada mínimo sorriso dela. Nós duas nos amamos, nos completamos, somos felizes juntas. Como é possível que algo que só traz coisas boas seja uma doença? Sei que mamãe compreendeu a verdade das minhas palavras, pois seus lábios tremeram ao mesmo tempo em que os olhos ameaçaram transbordar. Mas ela se conteve e passou uma das mãos levemente pelo meu rosto, acariciando-o. ─ Tudo o que menos quero no mundo é que você sofra, meu amor. – ela disse, com a voz baixa – Seu pai também. Por isso insistimos para que você faça um tratamento. Você não faz ideia do sofrimento que te espera caso você insista nisso. O mundo é cruel para quem vai contra as regras. [127]


─ Eu sei. Mas nem todas as regras são justas. E a senhora sempre me ensinou a lutar pelo que acreditamos e sentimos. Lembra que me contou sobre a amiguinha católica que você teve na infância? As famílias não apoiavam isso, mas vocês continuavam se encontrando escondidas. Acabaram se afastando depois de alguns anos, quando ela se mudou pra outra cidade, mas ainda se falam pelo telefone até hoje. Foi até madrinha do casamento dela! As regras diziam que vocês duas não poderiam ser amigas, mas lutaram contra isso. ─ É diferente, Maire. – ela sussurrou. Mas eu prossegui: ─ E quando resolveu que não comeria mais animais? Sua família teve medo de que você ficasse doente por isso, todos te achavam uma adolescente estranha. E quando conheceu o papai? Três anos mais novo que você, um verdadeiro absurdo para uma família tão rígida e tradicional quanto a sua. Mas você sempre lutou pelos seus ideais e pelo seu amor. Eu também quero, e preciso, ter esse direito! O choro dela, enfim, veio à tona. Eu me odiei por fazê-la chorar. Abraçamo-nos novamente, chorando juntas. Após alguns minutos, finalmente algo foi dito por ela: ─ Você e seus irmãos são as coisas mais importantes da minha vida, Maire. E você... Por Deus, você me enche de orgulho! Em meio ao sofrimento, eu achei um motivo para sorrir. Era reconfortante ouvir aquilo depois de todo aquele momento de revelação. ─ Mesmo com essa minha “opção”? – indaguei. ─ Sei que vou levar algum tempo para digerir isso, mas nada altera o amor que sinto por você. Por favor, aceite o conselho de seu pai. ─ Quer que eu desista do meu amor e da minha faculdade? ─ Não. A princípio, tranque apenas por um semestre. Dedique esse tempo para fazer uma terapia. ─ E a Mic? ─ Se o amor de vocês é forte como você afirma, vai sobreviver a isso. Mas eu ainda acredito que depois desse tempo sem contato com ela e se tratando com um bom profissional, você vai conseguir superar isso. Toda a minha esperança de obter alguma compreensão foi por água abaixo. Afinal, minha mãe não conseguia acreditar na força e na verdade de meus sentimentos pela Mic e continuava a encarar minha homossexualidade como uma doença. Porém, sentia certo conforto de ver que ao menos ela não me condenava completamente. Ao menos, não havia deixado de me amar. Nos braços da minha mãe, continuei a chorar, pensando no que faria para obter a aceitação total da minha família. [128]


*****

Minha mãe havia me entupido de chás e calmantes naturais para que eu conseguisse relaxar, mas de nada adiantou. Dormi por poucas horas, um sono tenso e entrecortado por pesadelos. Acordei antes do sol nascer, mas ainda rolei na cama por algum tempo antes de ter coragem para levantar e sair do quarto. Quis ter certeza de que meus pais já tivessem saído para o trabalho e, meus irmãos, para a escola. Quis ligar para Mic, mas logo descartei a ideia. Poderia prejudicá-la caso também já tivesse conversado com os pais. Afinal, naquele momento, certamente a última coisa que o casal Angeli iria querer é ver sua filha atendendo a um telefonema da namorada causadora de tudo. Seria melhor esperar mais alguns dias antes de tentar entrar em contato. Por outro lado, aquilo já estava ficando insuportável. Estava louca para falar com Mic, ouvir sua voz, saber como andavam as coisas na Itália e contar a ela sobre minha conversa com os meus pais. Estar passando por um momento tão difícil e não poder compartilhar isso com a minha namorada e melhor amiga era algo angustiante demais. Foi numa tentativa de me distrair que eu saí do quarto. Queria ir para a varanda, pegar um pouco do sol da manhã e respirar ar fresco para tentar arejar um pouco a mente. Atravessei a sala e parei diante da porta. Ao tentar abri-la, constatei que estava trancada. Estranhando o fato, olhei para o portachaves na parede. Intriguei-me ainda mais ao verificar que estava vazio. As minhas chaves não estavam ali. ─ Bom dia. – cumprimentou uma voz atrás de mim. Dei meia-volta, deparando-me com a minha mãe parada na entrada da cozinha. ─ Bom dia. – respondi. Num primeiro momento, nem reparei o fato dela estar em casa, pois continuava intrigada com o sumiço das chaves – Deixei minhas chaves aqui assim que cheguei. Sabe onde estão, mamãe? Ela respondeu de forma séria: ─ Seu pai as pegou. ─ Ele perdeu as dele? – podia parecer inocência da minha parte, mas eu simplesmente custava a acreditar na primeira ideia que me veio à mente. Mas, infelizmente, minha mãe a confirmou: ─ Não. Ele quis garantir que você ficaria em casa. Ainda levei alguns segundos para processar aquilo. Quando a ficha caiu, eu explodi, irritada: [129]


─ Ele realmente quer me manter trancada em casa? Mãe, eu não sou uma criminosa, não mereço passar por isso! ─ Sinto muito, querida. Mas é pelo seu bem. ─ Pelo meu bem? E a senhora, por que não foi para o hospital? ─ Desmarquei algumas consultas e passei as cirurgias desta semana para uma colega. ─ Pra ficar me vigiando? Mamãe forçou um doce sorriso e tentou desviar o assunto: ─ Estou preparando aquela torta de limão que você adora. Não quer me ajudar? – e voltou para a cozinha. Eu a segui, desnorteada. ─ Mãe, pelo amor de Deus! Eu tenho vinte anos, não sou mais uma criança. Vocês não podem me tratar dessa maneira! ─ Sei que seu pai está sendo meio extremo nisso, mas estou certa de que em alguns dias ele irá pegar mais leve. – ela se dirigiu até a pia, onde começou a bater a massa – Vamos, tome seu café da manhã. Puxei uma cadeira e sentei-me diante da mesa, mas sequer olhei para a comida. A raiva voltou a dar espaço para a tristeza. ─ E meus irmãos? – perguntei – Devem estar me odiando, não é? ─ Conversei com eles ontem à noite. Ainda estão confusos, mas sei que com o tempo irão compreender. ─ Compreender o que, mamãe? Também disse a eles que estou doente e preciso de tratamento? ─ É o que eu acho e fui sincera com eles. Mas não voltarão para casa hoje. Vão passar alguns dias na casa da Ailis. Lembra dela? Eu me lembrava. Era uma senhora, amiga de igreja da minha mãe. Tinha um casal de filhos das mesmas idades de Kelly e Keegan e que também eram amigos destes. De início, fiquei revoltada com a atitude dos meus pais, achando que só mandaram os filhos passar alguns dias fora para livrá-los da presença ameaçadora da irmã. Contudo, ao pensar melhor a respeito, compreendi. Afinal, eles eram apenas dois adolescentes e estavam confusos. Seria bom passarem algum tempo próximos a amigos e longe de toda aquela confusão na família. Deixando a torta de lado, mamãe serviu um pouco de chá quente em uma xícara e a colocou sobre a mesa diante de mim. Meu estômago revirou só com o cheiro. Havia sido entupida de chá na noite anterior, não queria mais beber nem uma gota daquilo. [130]


─ Vamos, coma alguma coisa. – ela insistiu – Sei que perde a fome quando fica abalada por algo, mas precisa se alimentar para não acabar doente. ─ Mais do que já estou? – ironizei, sem obter resposta. Passei os olhos pela mesa e apanhei um pacote de biscoito integral. Mas não queria comêlos. Apenas me trouxeram uma lembrança que expus em voz alta ─ Sempre que venho pra Irlanda levo alguns desses pra Madrid. Mamãe me olhou, curiosa. ─ É, eu reparei nisso. São os seus favoritos. ─ Os da Mic também. E olha que ela odeia coisas integrais. Percebi que mamãe soltou um suspiro, nitidamente incomodada pela minha menção ao nome de Mic. Após alguns instantes, ela comentou: ─ Não acredito que Gabi tenha aceitado essa conduta da filha. ─ Ela ainda não sabe. Talvez já esteja sabendo agora. Mic foi para a Itália contar aos pais. ─ Que Deus ajude essa menina. Olhei para a minha mãe, assustada com a frase. O fato dela mostrar-se preocupada com Mic, naquela situação, não parecia ser um bom sinal. ─ Mãe, por que está falando assim? ─ Gabrielle é uma das pessoas mais difíceis que já conheci. ─ É, Mic sempre diz que a mãe é um tanto intolerante. ─ Talvez preconceituosa fosse a palavra mais adequada a ela. ─ A senhora tinha me contado sobre isso. Mas disse que ela mudou muito com a convivência no grupo de Guardiões. ─ Isso é verdade. Mas não acredito que tenha mudado tanto a ponto de aceitar uma coisa dessas. ─ Acha que ela vai reagir como o papai? ─ Conhecendo a Gabi como conheço, não acredito que seja tão tolerante. Meu peito apertou e minhas mãos começaram a tremer. Fiquei absurdamente tensa, preocupada com Mic. Precisava saber como estavam as coisas na Itália.

***** [131]


Roma – Itália ~ Micaela ~

Após almoçarmos fora, passei horas ao lado do meu pai na garagem, onde trabalhamos juntos na reforma da mais nova aquisição dele: uma Ferrari 288 GTO, ano 84. Algum tempo depois, minha mãe juntou-se a nós, olhando-nos com uma cara de pura incompreensão. ─ Ainda estão nisso? – ela indagou, sentando-se no banco num canto da grande garagem que comportava mais seis carros além daquele, sendo três deles antiguidades. ─ Você vai entender quando eu conseguir deixar essa belezinha como nova! – declarou o meu pai, empolgado. Mas tal argumento não a convenceu. ─ Por que não comprou um carro novo, então? ─ Carros novos não têm graça. Diga a ela por quê, Mic! Achando graça, eu expliquei usando as palavras que sempre ouvia do meu pai: ─ Não há o que ser consertado neles. Deixando aquilo de lado, minha mãe mudou de assunto: ─ No restaurante você nos disse que veio a Roma ter uma conversa séria conosco. Confesso que a felicidade proporcionada por aquelas horas junto ao meu pai me fizeram esquecer do motivo da minha visita ali. Mas não dava mais para adiar aquilo. Nunca gostei de fazer rodeios com as palavras. Sempre fui direta no que precisava ser dito, e não seria agora que eu iria agir de outra forma. Pedi para que meu pai se sentasse e ele assim o fez, no mesmo banco onde minha mãe já estava. Permaneci de pé e, tomando fôlego, declarei: ─ Eu estou com uma pessoa. Achei que, talvez, fosse o suficiente para eles entenderem. Foi a Maire que me explicou sobre essa “linguagem interna”: alguém hetero sempre diz que está com uma mulher ou um homem, nunca que está com uma “pessoa”. Mas meus pais não eram “do meio”, então, obviamente, não entenderam a mensagem. Ao contrário, os dois sorriram, e minha mãe vibrou: [132]


─ Já era hora! ─ Não precisa falar assim, Gabi. – meu pai pediu, temendo que ela me deixasse sem graça. ─ Como não? Ela já está há quase três anos sozinha, desde que abandonou o Leonardo, coisa que eu nunca conseguirei entender! ─ Não é apenas isso. – eu informei, tentando fazê-los entender a situação – Contei a vocês que estou dividindo apartamento com uma garota, certo? ─ Sim, com a filha de Brigite. – minha mãe lembrou. ─ É isso. Não há outra forma de dizer. – respirei fundo e despejei a verdade, de forma clara e direta – Maire e eu nos amamos e estamos juntas. Eles deixaram de sorrir e ficaram em silêncio. Um silêncio perturbador, que deve ter durado mais de um minuto... Os sessenta e tantos segundos mais longos da minha vida. Por fim, minha mãe riu, de forma nervosa. ─ Que brincadeira é essa, Mic? ─ Não é brincadeira nenhuma, mamma. – respondi, séria. ─ Mas isso seria o mesmo que dizer que você é uma... – ela parou de rir, adquirindo uma expressão de choque. Meu pai se levantou e deu um passo à frente, ficando bem diante de mim. ─ Diga que isso é uma brincadeira, Micaela. Diga que não está nos dando um desgosto como esse. Diante daquele olhar e das palavras frias, eu senti meu corpo inteiro estremecer. Era a primeira vez que via ódio naqueles olhos azuis... E um ódio dirigido mim. Esforcei-me para me manter firme. ─ Não é uma brincadeira. Maire e eu estamos juntas há dois anos. Eu só não sabia como contar isso a vocês. Meu pai levou a mão ao peito, parecendo sentir alguma dor. E se afastou, indo apoiar-se sobre o capô do carro. Fiquei preocupada, mas minha atenção logo se desviou para minha mãe, que se levantou e me encarou com o mesmo olhar de ódio do meu pai. ─ Por que está fazendo isso conosco, Micaela? Por quê? ─ Eu não escolhi isso, mãe. Eu amo a Maire, é mais forte do que eu. Ela passou a gritar, histérica: ─ Não repita mais o nome daquela sem-vergonha na minha presença! [133]


Eu nunca antes havia elevado o tom de voz para os meus pais. Mas ouvir minha mãe insultando Maire daquela forma me tirou completamente o controle. ─ Não se refira a ela dessa maneira! O nome dela é Maire e é a mulher que eu amo, quer a senhora queira ou não! Nem mesmo vi como aquilo aconteceu. Quando percebi, já sentia o forte impacto da mão da minha mãe se chocando contra a minha face. Mais que apenas a dor física, minha alma pareceu doer com o que aquela atitude representava. Em vinte e um anos, era a primeira vez que sentia o peso da mão de minha mãe. ─ Cale a boca! – ela gritou, em fúria – Pare de exibir essa pouca vergonha! Pare de chamar de amor essa coisa depravada e abominável que você anda vivendo! Antes que eu pudesse sequer pensar em alguma resposta, tive minha atenção desviada para um forte gemido de dor que ouvi. Virei o rosto e avistei seu pai apoiando-se no carro com uma das mãos, enquanto a outra apertava o peito, parecendo sentir fortes dores. ─ Papà! – eu o chamei, preocupada. Mas meu foco voltou a minha mãe, quando ela começou a gritar: ─ Madonna mia, onde foi que eu errei? Não coloquei uma filha no mundo pra se tornar essa aberração! Eu preferia mil vezes que ela tivesse morrido. Mil vezes! ─ Mamma... ─ Não me chame mais assim! Eu não tenho mais filha alguma! Se eu achava que o tapa havia doído, a dor de agora era ainda mais forte. De todas as reações que esperava de meus pais, nenhuma era tão extrema quanto aquela. Há menos de dez minutos, eu era a filha que os enchia de orgulho; agora, como num passe de mágica, tornava-me a pior coisa que um pai e uma mãe poderiam desejar. Quis chorar, mas a tensão do momento me deixara estranhamente firme diante da situação. Talvez estivesse chocada demais para conseguir derramar alguma lágrima. Novamente, a voz do meu pai foi ouvida. Dessa vez, fraco, chamava pela esposa: ─ Gabi... Finalmente olhando-o, minha mãe se desesperou ao ver que ele parecia não estar nada bem. ─ Enzo... – sussurrou, assustada. Correu até ele, amparando-o – Meu amor, o que está sentindo? Fale comigo, por favor! – mas ele não conseguia [134]


responder. Tentei me aproximar, mas minha mãe me olhou e ordenou – Ligue para o doutor Sangalli, rápido! Não rebati a ordem. Corri até a sala e agarrei o telefone, buscando na memória pelo nome do tal médico. Minhas mãos tremiam como nunca, tanto que, em determinado momento, o fone escapou, indo cair no chão. Por um instante, pensei que poderia ser considerada uma patética Guardiã por ter tanta dificuldade para realizar uma simples ligação. Ao mesmo tempo, sabia que daquilo dependia a vida de meu pai e estava certa de que se algo acontecesse a ele, carregaria essa culpa pelo que restasse da minha vida. Finalmente, consegui realizar o telefonema. Aflita, expliquei com poucas palavras o que estava acontecendo.

***** Dublin – Irlanda ~ Maire ~

Eu estava em uma prisão. Não havia palavra que descrevesse melhor a situação que eu vivia. Trancafiada em minha própria casa, como uma criminosa. Para evitar mais conflitos com meu pai, fui para o quarto assim que ele chegou e lá fiquei. Minha mãe me levou o jantar e tentou mais uma vez me convencer que a melhor coisa para mim seria fazer um tratamento psiquiátrico. Se eles continuassem me enlouquecendo daquele jeito, era bem capaz de eu realmente precisar disso. Estava deitada na cama, fitando o teto e tentando organizar a mente. Meus pensamentos, no entanto, sempre terminavam no mesmo ponto: Mic. As palavras da minha mãe me deixaram aflita, precisava saber como estava sendo com a família dela. Mas temia ligar num momento inadequado, por isso me limitava a aguardar por algum contato dela. Porém, a necessidade de falar com ela era forte, então ao menos enviei uma mensagem de texto pelo celular. Um simples “eu te amo”, para mandar um sinal de vida e para que ela soubesse que, mesmo longe, eu estava com meus pensamentos nela. Passou uma hora e não houve resposta, então enviei novamente. Mais quarenta minutos e nada. Minha agonia aumentou, ao mesmo tempo em que um mau pressentimento dominava o meu peito e meus pensamentos. Precisava falar com Mic, ouvir a voz dela, saber que estava bem. Então, não mais me controlei e acabei discando o número. Após vários toques, uma voz baixa e seca me atendeu. [135]


─ Pronto. Quase não a reconheci. ─ Mic? É você? ─ Sí. Tive medo de ela estar ao lado dos pais no momento. Por isso perguntei: ─ Pode falar agora? ─ Sí. A cada instante, mais preocupada eu ficava. Mic estava estranha. Alguma coisa havia acontecido. Teria também sofrido pressão dos pais para continuar na Itália? Teria cedido a tal pressão? No breve momento que ficamos em silêncio, reparei o som de muitas vozes, denunciando que ela estava em um local público. ─ Onde está? – perguntei. ─ Hospital. Minha preocupação triplicou. ─ Hospital? O que aconteceu? A resposta veio no mesmo tom seco e baixo: ─ Meu pai teve um ataque cardíaco quando contei sobre nós. ─ Deus... – sussurrei, assustada. Sabia que algo havia acontecido, mas não imaginei que fosse tão sério – E como ele está? ─ Mal, eu acho. Não me dão muitas informações por aqui. ─ Me diga qual é o hospital, Mic. Eu vou pra Roma o mais rápido possível. Após anotar o nome e o endereço do hospital, desliguei o celular. Sem perder tempo, corri até o guarda-roupa, peguei minha mala, onde coloquei as poucas roupas que havia levado, e sai do quarto, como uma flecha. Ao chegar à sala, encontrei meus pais sentados num sofá e anunciei, aflita: ─ Eu preciso ir agora. Papai se levantou, indignado. ─ Eu já disse que você não volta para a Espanha! ─ Não vou pra Espanha. Vou pra Itália. – olhei para a minha mãe e expliquei – O pai da Mic teve um ataque cardíaco e está no hospital. Eu não posso e não vou ficar longe dela num momento como esse. [136]


Mamãe ficou assustada com a notícia. Já o meu pai, continuou focado em me manter presa em casa e o mais longe possível de Mic. ─ Você não vai a lugar algum. Pela primeira vez na vida, encarei o meu pai de forma desafiadora. ─ Perdão, pai. Mas o senhor não pode me manter presa aqui. Dei-lhe as costas e fui até a porta. A chave dele encontrava-se no porta-chaves e eu a usei para abrir a porta. Estava prestes a sair quando ouvi: ─ Se você sair por essa porta, não precisa mais voltar. Não será mais considerada parte da família. Por alguns segundos eu refleti sobre a ameaça. Meu pai estava me impondo uma escolha. Estava me fazendo escolher entre minha família e minha namorada... Entre as pessoas que eu mais amava no mundo. Mic jamais me exigiria tal barbaridade, nunca me colocaria naquela situação. E foi isso que me fez escolhê-la sem qualquer pesar na consciência. Saí de casa, sabendo que a porta estaria definitivamente fechada para mim. Joguei as chaves no jardim. Não precisaria mais delas.

***** Roma – Itália ~ Micaela ~

Pelo relógio na parede branca do corredor, soube que já era manhã. Mas eu não senti a noite passar. O tempo parecia correr de forma estranha, enquanto minha mente relembrava os últimos fatos em um looping infinito. Apesar de ser verão, a temperatura havia caído consideravelmente durante a noite, mas eu parecia não sentir o frio. Não sentia nada. Estava há horas sentada na mesma posição: os cotovelos apoiados sobre as pernas e a cabeça abaixada, fitando ora os meus pés, ora o relógio de parede. Apenas alterava essa sequencia quando algum médico passava, à espera de alguma informação. Mas ninguém me informava nada. Todos se dirigiam diretamente a minha mãe, que estava sentada ao final do mesmo corredor, a uma distância segura de mim. Sua única companhia era o Padre Antoine, um sacerdote de quarenta e poucos anos, amigo da família já há mais de duas décadas. E ele era o único que, volta e meia, se dirigia a mim. Veio até mim umas quatro ou cinco vezes, me perguntando se eu estava bem ou se queria comer alguma coisa. Apesar do respeito e do carinho que tinha por ele, sequer conseguia olhá-lo para responder, sempre de forma seca e monossilábica. Ele me viu crescer e, naquele momento, na certa já sabia o [137]


meu antigo segredo, que havia levado meu pai a ter um ataque cardíaco. Também devia sentir vergonha de mim, mas seu dever cristão o fazia ter piedade e, ainda assim, tentar zelar pelo meu bem estar. Eram nove e trinta e cinco da manhã quando um dos médicos foi até a minha mãe e lhe deu a notícia fatídica. Mesmo com a distância que me impedia de ouvir as palavras do doutor, não foi difícil compreender o acontecido ao ver o choro incontrolável da minha mãe. Então eu soube: meu pai estava morto. Eu o havia matado. Foi bem nesse momento que, ainda olhando na direção em que minha mãe estava, avistei a porta de um dos elevadores se abrir e por ela sair Maire.

~ Maire ~

Logo que saí do elevador, tive minha atenção voltada para uma mulher que chorava descontroladamente, sendo amparada por um senhor de batina, na certa um padre. Pelo desespero dela, estava clara a situação: havia perdido algum ente querido. Senti pena dela, mas não podia me deter àquilo, precisava encontrar Mic. Voltei meus olhos para o lado oposto do corredor e a avistei, sentada num banco. A forma como me olhava me remeteu à imagem de uma boneca: um rosto limpo de qualquer emoção. Fui até ela e abaixei-me à sua frente, segurando suas mãos junto às minhas. Os dedos estavam frios e só então notei que lábios dela estavam levemente arroxeados. Fazia frio e ela estava vestida com uma calça de tecido fino e uma blusinha sem manga. ─ Mic, eu demorei pra conseguir um vôo, mas vim o mais depressa que pude. – expliquei, aflita – Como o seu pai está? Mic olhou para a mulher que chorava e eu segui os olhos na mesma direção. ─ Aquela é a minha mãe. – ela anunciou, com uma voz que, como seu rosto, não expressava emoção alguma. Então, compreendi o que tinha acontecido. Sem ter palavras certas para o momento, apenas a abracei, com força, e sussurrei ao seu ouvido que eu estava ali com ela. Percebi que meu abraço não foi correspondido. Ela parecia não ter forças para isso.

*****

[138]


Não era um hotel de luxo, mas era confortável e mais do que suficiente para passarmos duas ou três noites antes de voltarmos para Madrid. Eu não queria apressar as coisas. Sabia que Mic precisaria ir ao enterro do pai no dia seguinte e, depois disso, seria bom que ela descansasse um pouco antes de pegarmos a estrada rumo a Espanha. Logo que entramos no quarto, deixei minha mala no chão, enquanto Mic foi diretamente para a cama de casal, onde se sentou. O silêncio crucial que nos acompanhava desde a saída do hospital foi quebrado por mim: ─ Vou pedir algo para você comer. ─ Estou sem fome. – ela respondeu, com a cabeça abaixada. Suspirando, eu me aproximei, sentando-me ao lado dela. ─ Então descanse um pouco. Quando você acordar eu peço algo, tudo bem? Ela ficou calada por alguns instantes, até que perguntou, ainda sem me olhar: ─ Como foi com os seus pais? Novamente, soltei um longo e cansado suspiro. Se antes eu estava louca para falar com Mic e contar-lhe tudo o que aconteceu, agora sentia que era um péssimo momento para isso. Mas contei, de forma resumida: ─ Eles acham que estou doente e que preciso de um psiquiatra para me curar. Minha mãe foi um pouco mais compreensiva, apesar de deixar claro que não aceita a minha conduta. Já o meu pai me proibiu de voltar para Madrid. Disse que se eu saísse de casa, não precisava mais voltar. ─ E ainda assim você saiu? ─ Eu jamais te deixaria sozinha num momento como esse, Mic. Ela não disse mais nada e eu respeitei isso. Forcei-me a sorrir, para passar força a ela, e deslizei os dedos pelas pontas dos cabelos loiros dela, que, aliás, estavam enormes, quase a altura da cintura. ─ Agora descanse, Mic. Passou a noite em claro no hospital, precisa dormir um pouco. Em silêncio, ela aceitou a sugestão e deitou-se. Com cuidado, tirei as botas de cano curto que ela usava e a cobri, em seguida deitando-me ao seu lado. Comecei a acariciar levemente os seus cabelos, velando-lhe o sono. Apenas quando percebi que Mic finalmente havia adormecido, foi que me permiti deixar que algumas lágrimas escapassem. Meu rompimento com minha família, agora, já nem parecia um problema tão grave. Imaginava a dor que minha namorada deveria estar carregando pela perda do pai que ela tanto estimava. [139]


Mais do que isso, sentia-me angustiada pela falta absoluta de reações dela.

***** ~ Micaela ~

Como num respeito pelo meu luto, o dia seguinte amanheceu cinza, nublado e com uma temperatura atípica para um dia de verão em Roma. Eu continuava apática, e Maire cuidava de mim com um zelo indescritível. Emprestou-me algumas roupas suas (já que eu havia saído de casa sem levar nada além de uma bolsa com celular, chaves, cartões e documentos) e, com certo jeito e muita paciência, conseguiu fazer com que eu comesse alguma coisa, mesmo contra a minha vontade. E foi Maire, também, que dirigiu o meu carro, levando-me até o cemitério onde o corpo do meu pai seria enterrado. O corpo do meu pai. Repeti essas palavras mentalmente, para ver se conseguia processar aquela informação. Mas não conseguia. Havia em mim algum estranho bloqueio, que parecia impedir a entrada de informações ou a saída de sentimentos. Tudo em mim era meramente mecânico, dos passos à respiração. Uma máquina programada para meramente sobreviver. Não sentia mais vida em mim. Saímos do carro e adentramos o cemitério, caminhando lado a lado. Ao avistarmos a capela onde o corpo estava sendo velado, Maire parou, eu parando em seguida ao ser travada pela mão dela, que segurava a minha. Quando a olhei, ela disse: ─ Talvez cause algum tumultuo se aparecer comigo. É melhor ir sozinha. – fiz que sim e ela apertou a minha mão com mais força – Eu estarei bem aqui te esperando. Seja forte, mas não muito. Chorar vai te fazer bem. Eu não me sentia nada forte, mas também não queria chorar. Como já disse, estava tudo bloqueado, incluindo as lágrimas. Soltando a mão, fui até a capela.

~ Maire ~

Enquanto observava Mic se afastar, sentia uma angústia cada vez maior invadir o meu peito. Ela estava sendo forte. Muito mais do que suportava. Tudo o que eu desejava naquele momento era ver alguma reação em Mic, fosse choro, raiva, revolta... Qualquer coisa que a fizesse extravasar a dor que estava sentindo. Aquela apatia, definitivamente, não era um bom sinal. [140]


Apoiei as costas em uma árvore, passando a olhar o ambiente ao meu redor. Era um local arborizado, com seus túmulos repletos de esculturas e imagens sacras. Para mim, independente da arquitetura ou cultura do local, cemitérios eram sempre lugares tristes. Apesar de não encarar a morte como o fim de tudo, era inegável o sofrimento dos que perdiam algum ente querido. Não sentia tristeza pelos que iam, mas pelos que ficavam. Continuei a observar, até que ouvi gritos femininos vindos da capela para a qual Mic havia ido. Sem pensar duas vezes, corri até lá. A cena que encontrei, num primeiro momento, deixou-me atônita: a autora dos gritos era a viúva Gabrielle Angeli, que estava sendo segurada por um casal de amigos enquanto tentava avançar contra Mic, para quem despejava insultos: ─ Sua maldita, sem-vergonha! Era pra ser você dentro desse caixão e não ele! Mic, por sua vez, permanecia estática, com seus olhos focando ora o corpo inerte no interior do caixão, ora a sua mãe. Contudo, era um olhar vago, evitando encará-la nos olhos. E a megera (e que Mic nunca soubesse que me referi mentalmente dessa forma à mãe dela) continuou: ─ Ela foi a causadora de tudo isso! Enzo era um homem honesto, íntegro... Não merecia um fim desses! Meu marido, meu companheiro, o amor da minha vida... Minha paciência esgotou-se por completo. Da entrada da capela, eu gritei, chamando para mim a atenção de todos: ─ E ela é sua filha! – fui até Mic, parando ao seu lado, ainda olhando para a viúva histérica – Ela é a sua única filha! Gabrielle estava tão atordoada que pareceu não me reconhecer. Sequer me olhou, na verdade. Seus olhos continuavam cravados na filha. Apenas gritou, em resposta: ─ A filha que eu amava morreu para mim. Eu prefiro uma filha morta a uma filha... lésbica! A última palavra causou um imenso burburinho entre os presentes, dos que finalmente compreenderam o motivo daquele escândalo. Irritada, dei um passo à frente, já tomando fôlego para defender Mic, mas esta me segurou pelo braço, detendo-me. Ao olhá-la, compreendi que tudo o que ela menos queria naquele momento era que alguém agredisse verbalmente a sua mãe, que, mesmo sendo uma megera (repito: que Mic não saiba que eu disse isso!), era a mãe que ela amava e que já se encontrava debilitada demais com a perda do marido. Como toda boa filha, Mic amava sua mãe e, por isso, aceitava tais ofensas como uma forma dela despejar todo o sofrimento e rancor que estava [141]


sentindo. Apenas por isso, eu me contive. Assim, a única forma que encontrei de protegê-la foi tirá-la daquele lugar. Apenas quando retornamos ao hotel, comecei a tentar dizer algo para tranquilizá-la: ─ Sua mãe está perturbada, não leve a sério o que ela disse. Acredito que ela vai voltar atrás e te procurar. Mic, no entanto, não dava muitos sinais de precisar de qualquer consolo. Se não a conhecesse bem e não soubesse que aquele silêncio estava além do normal, eu diria que os últimos acontecimentos não a haviam afetado em nada. Não derramara uma única lágrima, não fizera um único comentário... Simplesmente não esboçava reação alguma. Pensei que talvez estivesse agindo de forma errada ao deixá-la livre para falar de seus sentimentos. Talvez precisasse ser mais direta para fazê-la finalmente desabafar. Assim, sentei-me na cama, ao lado dela, e perguntei diretamente: ─ Como está se sentindo, amor? Pausa. Silêncio absoluto. Mic continuava a fitar o nada, com um olhar vago. Toquei a mão dela com a minha e insisti: ─ Não pode continuar assim, Mic. Desabafe, diga alguma coisa... você não está sozinha nisso, eu estou ao seu lado. Sabe disso. Novamente, o silêncio como resposta. Já não suportando mais a agonia causada por aquele estado apático, eu me levantei e, numa irritação que não me era comum, esbravejei: ─ Pelo amor de Deus, diga alguma coisa! Chore, grite, xinge... Mas tenha alguma reação! Se quiser me culpar pelo que ocorreu, culpe! Mas por favor, Mic, deixe-me saber o que você está sentindo. Você precisa desabafar. Eu não vou deixar que guarde tudo isso e sofra sozinha! Enfim, houve um movimento. Mic levantou o rosto e olhou para mim. Durante o tempo que esse olhar durou, eu esperava, aflita, por qualquer palavra. Mas antes que esta fosse dita, o toque de um celular a interrompeu. Apesar de amaldiçoar mentalmente tal interrupção, eu não poderia deixar de atender. Apressei-me em apanhar o telefone e meu coração acelerou quando vi no visor o número de minha casa. Atendi, ansiosa: ─ Alô? ─ Filha? A voz da minha mãe fez o meu coração acelerar ainda mais. Sentei-me novamente e, com os olhos imersos em lágrimas, continuei a conversa: ─ Mamãe, que bom ouvir a sua voz! Tive tanto medo de que a senhora estivesse me odiando pelo que eu fiz. [142]


─ Como posso te odiar, Maire? – a voz doce dela fez o meu choro aumentar – Você é minha filha e nada altera isso. Me diga, onde você está? ─ Em Roma. ─ E o marido de Gabrielle? Se recuperou? Eu não gostaria de responder aquilo diante de Mic. Por isso, fui vaga em minha resposta: ─ Não são boas as notícias, mãe. Apesar da resposta indireta, mamãe compreendeu o ocorrido: ─ Oh, meu Deus... Como a minha amiga deve estar? Eu gostaria de ligar para ela nesse momento, mas... não tenho coragem depois de... você sabe. Eu sabia. Mas apenas naquele momento percebi que meu romance com Mic não só afetara o nosso relacionamento com nossas famílias, como também o de duas velhas amigas. ─ Desculpe, mamãe... mas eu não gostaria de falar mais sobre isso. ─ Entendo. “Ela” está com você agora? Senti a ênfase no “ela”, mas fingi não perceber. ─ Está, sim. ─ Onde? ─ Tivemos que nos hospedar em um hotel. ─ Em quartos separados, não é? Apesar da tensão do momento, achei graça da pergunta e do modo ingênuo com que minha mãe se forçava a encarar tudo aquilo. Mas fui sincera na resposta: ─ Não, mamãe. Estamos no mesmo quarto. ─ Em camas separadas? ─ Mamãe, por favor! Eu entendo que não seja fácil para a senhora, mas precisa encarar os fatos. Mic e eu somos duas mulheres adultas que se amam. ─ Isso é estranho demais para eu aceitar de uma hora para a outra, Maire. ─ Não precisa aceitar agora. Apenas respeite a minha decisão, por favor. ─ É o que eu tenho feito. Mas também quero te pedir para que pense bem em tudo isso. Volte para casa, por favor. [143]


─ Eu não posso voltar. Papai foi bem claro quanto a isso. ─ Estou certa de que ele vai reconsiderar tudo o que disse se você voltar. ─ Perdoe-me, mamãe. Mas eu não vou voltar. Se o preço para que o meu pai reconsidere e volte a me aceitar na família for eu me afastar da Mic, eu não estou disposta a pagar. ─ Apenas pense mais sobre isso. ─ Não há o que ser pensado. É a minha resposta final. ─ Que Deus a proteja, minha filha. E ilumine sua mente, para que você perceba o que está fazendo com a sua vida. Eu preciso desligar. Não quero que seu pai saiba que andei falando com você. Não imaginei que isso ainda fosse possível, mas a minha tristeza aumentou ao descobrir que minha mãe estava me ligando escondida. Como uma criminosa ligando para outra. Mas não expus isso. Sentia-me reconfortada por ela ainda se importar comigo. ─ Certo. – respondi, por fim – Eu te amo. ─ Eu te amo também, filha. Ao desligar o celular, olhei para o lado e surpreendi-me ao constatar que Mic não estava mais lá. Vagando os olhos pelo quarto, fui encontrá-la levando minha mala para próximo à porta.

~ Micaela ~

─ O que está fazendo? – Maire indagou, confusa. Deixei a mala no chão e voltei a me aproximar dela, parando de pé a sua frente. Precisei tomar fôlego para conseguir fazer a minha voz voltar a sair. Parecia que minha fala também estava ficando meio bloqueada. ─ Quero te pedir uma coisa, Maire. ─ Claro. Pode dizer. ─ Vá embora. Os olhos de Maire se alargaram, em choque diante do pedido. Ela se levantou, encarando-me. ─ Como assim “vá embora”? ─ Volte para casa. Seu pai certamente irá reconsiderar o que disse se você se desculpar e concordar com o tal tratamento. [144]


─ Até você vai dizer que estou doente? Não. EU estava doente. Qualquer coisa não-clínica, com sintomas que nenhum médico seria capaz de compreender. Meu peito estava vazio. Minha alma parecia “solta” em um corpo ao qual não pertencia. Minha garganta ardia, mas meus olhos estavam secos. Não queria chorar, não queria sorrir... Não queria dormir, tampouco me manter acordada... Não queria viver. ─ Sei que não tem doença alguma. – virei-me de costas para Maire e caminhei alguns passos até a janela, onde parei, olhando o movimento das pessoas e dos carros lá embaixo – Disse que queria saber como eu me sinto, não é? Desculpe, mas não sou capaz de responder. A única coisa que consigo expressar, é que isso é muito pior do que qualquer coisa que eu já tenha sentido na vida. Ouvi a voz dela ainda mais aflita: ─ E acha que se eu te deixar a sua dor vai diminuir? ─ Não. – certamente iria aumentar, num nível que eu nem seria capaz de descrever. Mas guardei tal observação para mim – Mas vai impedir que você sinta o mesmo que eu estou sentindo. ─ Estamos juntas nisso, Mic. Virei-me, voltando a ficar de frente para ela. ─ Não precisamos estar. Você tem a sua família. Eles te amam e estão preocupados com você. Ainda pode ter uma vida normal. Pode vir a gostar de um homem, se casar, ter filhos... E ser feliz, sem machucar ninguém. Maire avançou mais um passo, já não conseguindo conter o choro. Como eu odiava ver aquele sofrimento no rosto dela. E me odiava por ser a causadora disso, mas sabia que era necessário. ─ Não é justo, Mic. – ela disse – E você? Olhei novamente para a rua, através da janela. ─ Eu posso tentar ter uma vida normal também. ─ Como tinha antes de me conhecer, não é? Eu não respondi, apesar de em momento algum ter pensado daquela maneira. Sabia que não tinha uma vida absolutamente normal antes de conhecer Maire. Hoje, não consideraria normal aquela ausência de sensações e sentimentos. Maire me trouxe vida e amor, além de uma felicidade que eu não conhecia antes. Jamais seria moralista a ponto de achar que ser infeliz era mais normal do que amar outra mulher. Contudo, naquele momento eu apenas guardei tais pensamentos para mim. As palavras foram novamente bloqueadas e pensei que foi bom ter sido dessa forma. Sei que meu silêncio serviu para Maire como uma confirmação de suas palavras. [145]


─ Vá embora. – eu repeti. Dessa vez, fui obedecida. Ouvi os passos e o som da porta se fechando. Da janela, vi quando Maire chegou à rua e apanhou um táxi. Embora eu continuasse apática, toda aquela “doença” que eu sentia possuir pareceu triplicar. Há até poucos minutos, acreditei que tivesse perdido toda a fé, mas naquele momento, surpresa, peguei-me pedindo a Deus para que protegesse Maire. E que, de alguma forma, ela conseguisse ser feliz.

***** ~ Maire ~

O táxi não havia ido muito longe quando eu pedi ao motorista que parasse, diante de uma grande praça. Havia saído desnorteada do hotel, feito sinal para o primeiro táxi que passou e pedido para que me levasse ao aeroporto, determinada a pegar o primeiro voo para Dublin. Porém, passados alguns minutos, percebi a insanidade daquela decisão. Não podia fazer algo tão drástico, agindo por mero impulso. Tudo o que eu havia pensado para decidir aquilo é que precisava ir para longe, para o mais longe possível de Mic. Só assim, conseguiria protegê-la do que a minha presença simbolizava, das desgraças que minha existência provocara e poderia ainda vir a provocar em sua vida. Mas, agora, eu começava a me sentir como uma fugitiva, covardemente deixando para trás a pessoa que eu mais amava no mundo. E justamente no momento em que essa pessoa sofria o maior golpe de sua vida. Mas, ao mesmo tempo, aquele fora um desejo de Mic e não meu. Não seria certo cumpri-lo? Qual era o certo a se fazer? Pedi ao taxista para que me esperasse por uns quinze minutos e saí do veículo. Atravessei a rua, indo até a praça, sentando-me em um banco. Eu não queria ir embora. Não podia ir embora. Sei que tinha sido um pedido de Mic, mas ela não estava em condições emocionais de tomar qualquer decisão desse tipo. Nós precisávamos conversar com calma. Pensando nisso, peguei meu celular e liguei para ela. Fui atendida pela mensagem eletrônica da telefonia, informando que o número encontrava-se fora da área de cobertura ou desligado. Só então, lembrei que Mic saíra de casa na noite anterior, com o carro, a bolsa e a roupa do corpo. Certamente não tinha levado o carregador e a bateria de seu celular devia ter descarregado.

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Estava ainda olhando para o aparelho, por isso me assustei ao ouvir a voz de um homem que se sentava ao meu lado. ─ Com licença, minha filha. Eu o olhei. Era um homem calvo, aparentando ter uns quarenta e poucos anos. Suas vestes denunciavam quem ele era: usava batina. Um padre. ─ Claro. – respondi, educada. Tudo o que eu menos queria naquele momento era alguém ao meu lado puxando assunto. E, ao que tudo indicava, aquele religioso tinha explicitamente essa intenção. ─ O tempo mudou de repente, não é?! – ele disse – Até anteontem fazia um sol tão agradável. Sempre foi de minha personalidade jamais deixar que meus problemas pessoais interferissem no meu tratamento para com outras pessoas. Por isso, tentei ser simpática ao responder: ─ Eu não sei. Não sou daqui, cheguei ontem. ─ Eu sei. Veio da Irlanda, estou certo? ─ Meu sotaque é tão evidente assim? ─ Não se trata disso. – Ele me olhou, de uma forma que me intrigou. Estava sério, mas não perdia a gentileza em sua voz – Não lembra de mim, não é? Movi a cabeça numa negativa. Definitivamente, não tinha de onde conhecer um padre. Pensei por um segundo que poderia ser de alguma missa que acompanhei com Mic na Espanha, mas logo descartei essa hipótese. Não me recordava de ter visto por lá nenhum padre italiano. Certo que às vezes eu me distraía ou mesmo adormecia entre um sermão e outro, mas um sotaque italiano era algo que, sem dúvidas, chamaria a minha atenção. ─ Desculpe, o senhor deve estar me confundindo com outra pessoa. ─ De forma alguma. Eu jamais esqueço um rosto. Embora, queira me perdoar, mas não sei o seu nome. Das coisas que a senhora Angeli me disse e eu posso repetir, estão apenas sua nacionalidade e seu envolvimento com Micaela. Com isso, eu me lembrei: no hospital, havia um padre ao lado de Gabrielle Angeli. Apenas nesse momento, reparei que havia uma igreja do outro lado da rua, próxima ao local onde o táxi me aguardava. O sacerdote provavelmente viu quando eu cheguei e me seguiu, já querendo conversar comigo. Perguntei-me se tal conversa incluiria mais palavras duras, lições de moral ou sugestões para a “cura” de nossa tão terrível patologia.

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Contudo, continuei a ser simpática. Afinal, ele ainda não estava me atacando... E era um padre. ─ Me chamo Maire. Maire Goldsmith. ─ Antoine. – ele também se apresentou – Me permite perguntar o que faz sozinha aqui? ─ Estava indo para o aeroporto, mas resolvi parar para pegar um ar. ─ Acho que foi Deus que te guiou, e te trouxe até aqui. Aquela era a deixa. Poderia jurar que naquele momento ele começaria com seus sermões. Não deixei espaço para isso. ─ Com todo o respeito, padre, se o senhor quer falar sobre Micaela e eu, não precisa gastar seu tempo. Eu estou voltando para o meu país e, como vê, estou sozinha. Ele certamente não esperava ouvir isso, pois ficou em silêncio por alguns instantes. Então, apontou para a igreja do outro lado da rua e explicou: ─ Micaela frequentou aquela igreja durante muitos anos, praticamente desde que nasceu. Quando criança, fez parte do coral e sempre participava do ato de natal e demais festividades. Eu quase ri ao imaginar a Mic, criança, vestida como um bichinho de presépio para alguma apresentação de natal. Adoraria ver alguma foto desses momentos. Mic deve ter sido uma menininha linda. Alheio aos meus pensamentos, o padre continuou: ─ Eu conheço Micaela desde que ela era um bebê e seria capaz de contar coisas que muitos, que apenas a conhecem de vista, não fazem ideia. Ela é uma menina doce, protetora, educada. Talvez seu maior defeito seja o fato de ser muito fechada, o que faz com que a maioria das pessoas nem faça ideia da menina abençoada que ela é. Sorri, emocionada. Pela primeira vez, via alguém descrever Micaela da forma como ela verdadeiramente era. Aquela era exatamente a Mic que eu conhecia e tanto amava. ─ Foi por isso que eu, a princípio, não acreditei quando a senhora Angeli me contou o ocorrido. – Padre Antoine completou. Ele finalmente havia chegado ao ponto. Deixei de sorrir e disse: ─ Isso não anula todas as qualidades que o senhor citou, padre. ─ Eu não disse que anulava. Apenas me surpreendi porque não imaginava que Micaela tivesse este outro lado. Para ser sincero, me decepcionei bastante. Mas, no fim das contas, eu não sou ninguém para [148]


julgá-las, minha filha. Isso cabe a Deus, apenas. E não a mim ou a qualquer outra pessoa. Aquilo, sim, foi uma surpresa. ─ Quem dera se o resto do mundo pensasse como o senhor. ─ Não interprete como se eu aceitasse tal conduta. Isso iria contra os ensinamentos de Deus. Eu não aceito, não concordo e não apoio. Mas não tenho o direito de não respeitar. – ele olhou para o taxi que me aguardava, voltando a me olhar em seguida – Estou vendo que pretende ir embora deixando Micaela aqui. ─ Ela me pediu isso. Eu sei que o senhor não entende, padre, mas eu amo a Mic. Mais do que a minha própria vida. Seria capaz de tudo por ela. E se ela acha que pode levar uma vida normal e feliz longe da minha presença, acho que preciso aceitar isso. Por mais que me doa. – baixei o rosto, ao sentir as primeiras lágrimas começarem a brotar de meus olhos – E está doendo demais. ─ Ela lhe disse que seria feliz longe da sua presença? ─ Não com essas palavras. Mic não diria algo assim. ─ Tem razão. Conheço Micaela bem o suficiente para saber que ela nunca diria algo que não sente. Voltei a olhar para o sacerdote, mal conseguindo acreditar no que eu havia ouvido. Alheio à minha surpresa, ele continuou a falar: ─ Micaela é uma menina muito solitária, sempre se bastou em sua família. Mas agora, seu pai não está mais aqui, e sua mãe... Bem, pelas palavras amargas e pelos anos em que a conheço, sinto que ela não perdoará a filha tão facilmente. Tentei aconselhá-la, mas ela está irredutível. Temo que Micaela vá se fechar ainda mais depois do ocorrido. E, agora, ela não tem mais ninguém nesse mundo, além da senhorita. Levei a mão à boca, tentando conter o primeiro dos soluços que vieram à tona. Pensei em Mic completamente sozinha e desesperei-me com a ideia. Não podia permitir aquilo. Não deixaria que ela sofresse ainda mais. Decidida, peguei novamente o celular e busquei na memória o número do hotel onde Mic estava. Fui atendida por uma recepcionista que me informou que ela havia ido embora há aproximadamente uma hora. ─ Eu a perdi. – disse ao padre, quando desliguei a ligação – Ela não está mais no hotel, para onde será que foi? Por Deus, padre, e se ela fizer alguma besteira? – apenas cogitar tal ideia me trouxe uma agonia indescritível. O religioso moveu negativamente a cabeça, tentando me tranquilizar. ─ Micaela é uma menina centrada, jamais atentaria contra a própria vida. [149]


─ Mas para onde ela pode ter ido? ─ Vejamos... – ele levou a mão ao queixo, pensativo – Talvez ela tenha algum refúgio. Um local para onde goste de ir em momentos difíceis. ─ O refúgio de Mic sempre foi o cantinho dela. – era óbvio! Só havia um lugar para onde ela poderia ter ido. Levantei-me, decidida – Padre, pode me dizer onde é a casa dela? O sacerdote afirmou e eu sorri, agradecida.

***** ~ Micaela ~

Todas as luzes estavam apagadas, o que trazia ao local um ar de abandono. Eu sabia que seria assim ainda por muito tempo. Aliás, estava certa de que aquela casa jamais voltaria a ser a mesma. Meu pai estava morto. E, quanto à minha mãe, eu poderia apostar que colocaria o imóvel à venda tão logo pudesse pensar sobre isso. Ela não tinha voltado para lá, na certa tinha ido para a casa de alguma amiga, sabendo que seu próprio lar lhe traria lembranças que a fariam sofrer ainda mais nesse momento. Mas eu, ao contrário, buscava refúgio exatamente nas lembranças. Por uma última vez, quis sentir o aconchego daquele lugar. Nos degraus da varanda, eu me via, quando criança, sentada ao lado da minha mãe, desmontando aparelhos eletrônicos. Pelo gramado, via-me com quatro ou cinco anos de idade, sentada nos ombros do meu pai, que me levava até a tabela de basquete, onde eu arremessaria a bola e comemoraria, orgulhosa pelos elogios do pai que me tratava como se eu tivesse conseguido um feito extraordinário. Extraordinária: era como ele me via. Uma visão que se distorceu completamente em questão de segundos. Será que, se tivesse sobrevivido, com o tempo ele poderia vir a me aceitar? Talvez a forma com que eu havia despejado a notícia tivesse sido bruta demais. Se eu tivesse sido mais sutil, se eu tivesse dado mais tempo... Se eu continuasse a mentir... Eram tantos “se”. A grande verdade, é que eu não tinha meios de prever os fins que a mesma situação teria caso ocorresse de outras maneiras. E, ainda que pudesse, que diferença faria? A lógica era simples: o passado não poderia ser mudado. Meu pai estava morto e esse era um fato que eu precisava assimilar e aceitar. Avistei a velha bola de basquete no chão e a apanhei. Enquanto mirava a cesta, ouvi o leve estalo do portão sendo aberto e senti que alguém se aproximava. Mas não me assustei. De uma forma que nem toda a minha lógica poderia explicar, eu soube exatamente quem era. [150]


~ Maire ~

Graças a Deus, minhas suspeitas estavam certas. Ela havia ido para casa. Fiquei aliviada ao ver que ela estava bem. Apesar do Padre Antoine ter dito que Mic jamais atentaria contra a própria vida, acho que mesmo os seres humanos mais racionais podem ser imprevisíveis diante da dor. Eu havia sido uma irresponsável por deixá-la sozinha numa situação daquelas, mas isso não iria se repetir. Aproximei-me devagar, sem fazer barulho. Mic arremessou a bola, errando a jogada, e perguntou, sem olhar para trás: ─ Como sabia que eu estava aqui? Não me surpreendi com o fato de Mic, mesmo de costas para mim, saber que eu estava ali. Calmamente, deixei minha mala no chão e respondi: ─ Apenas um palpite. Foi o primeiro lugar onde pensei em te procurar. E, para confirmar, vi seu carro parado aí na frente. Estacionado num local proibido, aliás. – brinquei, tentando aliviar um pouco o clima – Não tem medo de ganhar uma multa? ─ Achei que você tivesse voltado para sua casa. – ela disse, ainda de costas. ─ É o que mais desejo. Comecei a caminhar, passando direto por ela e indo até onde a bola de basquete havia caído. Peguei-a, começando a quicá-la contra o chão. Dessa vez, era eu que me concentrava em outro ponto, de costas para Mic. ─ O que eu mais quero é voltar para casa, Mic. – Completei – Para a nossa casa, em Madrid. Parando de bater a bola, mirei-a na cesta e arremessei. Uma jogada certeira. Então, virei-me, enfim ficando de frente para Mic. ─ Você pode dizer que não me ama. Que tudo entre nós foi um engano e que você seria feliz sem mim. Se for o que sente, pode me dizer isso agora, dessa vez com todas as palavras e olhando nos meus olhos. Aí eu volto para a Irlanda e te deixo em paz. Eu farei isso por você, se essa for a sua real vontade. Caso contrário, eu vou ficar contigo e vamos voltar juntas para o nosso lar em Madrid. Silêncio absoluto. Houve apenas uma troca de olhares onde eu, mesmo sem trocar qualquer palavra, percebi que compartilhávamos um turbilhão de emoções. Sofrimento, dor, tristeza, dúvidas... E, principalmente, o amor que [151]


nos unia e que parecia ter se fortalecido ainda mais com todas as recentes turbulências. ─ Você será mais feliz se voltar para a Irlanda. – Mic respondeu, por fim. ─ Não serei feliz em lugar nenhum longe de você. – retruquei, segura. Novamente, silêncio. Apesar da aparente apatia, eu sabia que Mic estava sentindo o mesmo que eu. Porém, temia que ela continuasse a insistir em uma separação. Racionalmente, aquela seria a decisão mais certa a ser tomada, pelo bem de nós duas. E o fato de Mic ser extremamente racional me fazia temer ainda mais que este fosse o caminho escolhido. Algum tempo depois, ela desviou os olhos para a bola de basquete caída no chão e comentou, apontando para o objeto: ─ Você é boa nisso. Aquela súbita quebra de tensão me fez soltar o ar lentamente, antes de responder, tentando retomar o bom humor: ─ Sempre gostei de esportes.

~ Micaela ~

─ Eu nunca joguei bem. – confessei – Já o meu pai, adorava. Quase todos os fins de semana nós dois tirávamos umas horas para isso. Era completamente amador, sem regras e... ruim, essa é a palavra. – sorri levemente e notei que Maire fez o mesmo – Mas nós nos divertíamos. Cada vez que eu conseguia acertar uma cesta ele vibrava: “bravo, Mic!”. Eu não sentia falta disso quando estava em Madrid, talvez porque achasse que poderíamos voltar a jogar juntos. Mas isso não vai mais acontecer, porque ele não está mais aqui. Aí, eu voltei a me calar. Nem entendi como havia conseguido falar tanto, na verdade. Acho que Maire, de tanto insistir, havia conseguido provocar uma rachadura naquele bloqueio que me dominava desde a morte do meu pai. Após me olhar em silêncio por mais alguns instantes, Maire apanhou a bola no chão e a arremessou para mim. Não compreendi tal atitude, mas agi por instinto, fazendo o que sempre fazia quando meu pai me passava a jogada. Foquei a tabela, com mais atenção do que nunca, como se aquele arremesso fosse essencial para a minha vida. Joguei a bola e, dessa vez, consegui acertar o alvo. Eu acertei, papá.

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E uma voz que não era a dele vibrou. Baixa, mas carregada de força, cumplicidade e compreensão: ─ Bravo, Mic! E foi apenas naquele momento, após tantas horas, que a dor se libertou, parecendo rasgar o meu peito ao meio. Minha visão embaçou devido às lágrimas que surgiram, incessantes, sem qualquer aviso prévio, e começaram a rolar pelo meu rosto, parecendo levar com elas a “sujeira” que se acumulava em minha alma. Fracos, meus ombros arquearam e meus braços caíram paralelos ao corpo. E antes que eu pudesse sequer refletir sobre a necessidade que tinha de um apoio, senti os braços de Maire envolverem o meu corpo. Aceitei e retribui aquele abraço, enfim permitindo-me chorar. Um choro intenso, que buscava exteriorizar tanto sofrimento guardado por dias. Meu corpo, minha cabeça e minha alma doíam. Tudo ficou claro: meu pai havia ido embora. E parecia ter levado um pedaço de mim junto. Sentiame mutilada, sufocada, perdida... Senti que iria enlouquecer. E acho que isso só não aconteceu porque ela estava ali comigo. ─ Maire? – chamei, a voz quase inaudível em meio ao choro. ─ Pode falar, Mic. – mas ela conseguia ouvir aquilo que, embora fosse apenas um sussurro, para mim era como se fosse um grito de socorro, desesperado. ─ Não me deixe. – eu supliquei. Meu corpo inteiro tremia, não sei se por frio, medo ou dor. Percebi que Maire também chorava, quando ela respondeu: ─ Não, amor. Eu estou aqui. E nós vamos juntas para o nosso cantinho em Madrid. ─ Me perdoa? ─ Eu é que tenho que te pedir perdão. Você era apenas uma garota “normal” até me conhecer. ─ Eu enfrentaria o mundo por você. – confessei. Maire se afastou, me olhou nos olhos e sorriu, daquele jeito adorável que me encantou desde que a conheci. ─ Então não tem jeito. – ela disse, passando as mãos pela minha face – Vamos enfrentá-lo juntas.

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Dal rumore del mondo12 (Pelo ruído do mundo) dalla giostra degli attimi (Pelas reviravoltas dos momentos) dalla pelle e dal profondo (Pela pele e pela profundeza) dai miei sbagli soliti (Pelos meus erros costumeiros)

Pela janela do hotel, eu observava, talvez pela última vez, a vista da cidade de Roma. Na minha opinião, aquele era o lugar mais belo que poderia existir. O inegável berço da civilização ocidental, carregado de História em cada rua, igreja, nas fachadas dos prédios e em cada um de seus muitos monumentos. Porém, mais do que os livros poderiam contar, aquela cidade carregava a minha própria história, dos dezenove anos em que morei ali mais os dois em que, mesmo vivendo em outro país, continuava a sentir que Roma era o meu lugar. Mas não seria mais. Senti que poderia pertencer a qualquer outro lugar do mundo, desde que Maire estivesse ao meu lado.

dal silenzio che ho dentro (Pelo silencio que tenho dentro de mim) e dal mio orgoglio inutile (E pelo meu orgulho inútil) da questa voglia che ho di vivere (Por essa vontade que tenho de viver)

Com a distração, acabei sendo surpreendida quando Maire me abraçou por trás, apoiando o queixo em meu ombro e também pondo-se a observar a vista. Sentindo-me segura, confessei: ─ Sempre pensei no momento que te traria para conhecer a minha terra. Queria ter te mostrado os museus, as igrejas, os lugares históricos... Não era pra ter sido dessa forma.

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Música: Volevo dirti Che ti amo. Composição: Laura Pausini/ Cheope/ Giuseppe Dati/ Eric Buffat. Intérprete: Laura Pausini.

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Volevo dirti che ti amo (Queria dizer que te amo) volevo dirti che sei mio (Queria dizer que és meu) che non ti cambio con nessuno (Que não te troco por ninguém) perché a giurarlo sono io (Porque estou jurando isso)

volevo dirti che ti amo (Queria dizer que te amo) perché sei troppo uguale a me (Porque você é muito igual a mim) quando per niente litighiamo (Quando por nada brigamos) e poi ti chiudi dentro te (E depois te fechas em ti)

~ Maire ~

─ Eu ainda acho que voltaremos a Roma. – afirmei – Porque acredito que você e sua mãe um dia irão se entender. Ela não disse nada, mas sei que não acreditou nas minhas palavras. Fomos embora na manhã seguinte, rumo ao nosso cantinho em Madrid. Dessa vez eu assumi a direção, prometendo a Mic que deixaria que ela dirigisse na segunda metade da viagem. Logo que pegamos a primeira autoestrada, puxei um assunto para quebrar o silêncio e tentar animá-la um pouco. ─ Ei, Mic. ─ Diga. ─ Quem você era no ato de natal da igreja? [155]


Mic arregalou os olhos de uma forma engraçada.

da ogni mio fallimento (Por cada fracasso meu) dal bisogno di credere (Pela necessidade de acreditar) da un telefono del centro (Por um telefonema do centro) dalle mie rivincite (Pelas minhas revanches)

dalla gioia che sento (Pela alegria que sinto) e dalla febbre che ho di te (E pela febre que tenho de ti) da quando mi hai insegnato a ridere (Por quando você me ensinou a rir)

~ Micaela ~

Mas do que aquela doida estava falando? ─ Como você sabe disso? – indaguei, incrédula. ─ Tenho minhas fontes. E descobri que durante a infância você participava todos os anos da peça de natal. Conta, quem você era? Contrariada, expliquei: ─ Aos nove anos, eu quase fui a Virgem Maria. ─ Quase? E por que não foi? Alguma menina exibida roubou o seu lugar? Maire me parecia ser o tipo que, quando criança, era exatamente a “menina exibida” que roubava os melhores papéis nas peças. Eu, ao contrário, era a pequena nerd que nem se importava com isso. [156]


─ Não. – respondi – Eu desisti porque ela tinha falas. E voltei para o meu papel habitual. ─ Qual papel? ─ Uma ovelha. – resmunguei.

volevo dirti che ti amo (Queria dizer que te amo) volevo dirti sono qui (Queria dizer-te estou aqui) anche se a volte mi allontano (Mesmo se às vezes me distancio) dietro ad un vetro di un taxi (Atrás do vidro de um táxi)

e questo dirti che ti amo (E este dizer-te que te amo) è la mia sola verita' (É a minha única verdade) tu non lasciarmi mai la mano (Não largues nunca a minha mão) anche se un giorno finira' (Mesmo se um dia terminar)

─ O quê? – eu sei que ela tinha ouvido, mas queria ouvir de novo. Pra me provocar, claro. ─ Eu era uma ovelha. Como o esperado, Maire gargalhou. ─ Uma ovelhinha? Que linda! Cruzei os braços, emburrada. Dois dias! Maire havia passado dois míseros dias em Roma e isso havia sido o suficiente para descobrir fatos embaraçosos da minha infância. [157]


─ Aliás... – ela continuou – isso me deu ideias. Eu a encarei com o canto dos olhos, desconfiada. ─ Que ideias? Entreabrindo um sorriso malicioso, Maire respondeu: ─ Que tal se vestir de ovelhinha pra mim? Sei que ela não estava falando sério. Queria me deixar sem graça, pra variar. E é óbvio que conseguiu. Senti meu rosto queimar. Mas, quando ela gargalhou, fui contagiada e acabei rindo junto.

da ogni angolo dell’anima (Por cada ângulo da alma) dalla mia fragilita' (Pela minha fragilidade) da un dolore appena spento (Por uma dor recém curada) da questa lettera….. (Por esta carta...)

Voltei a ficar séria, olhando para a pista a nossa frente através do parabrisa. Respirei fundo e disse o que queria dizer desde que Maire chegara a Itália: ─ Obrigada. ─ Pelo quê? ─ Por cuidar de mim. Pelo canto dos olhos, vi que ela sorriu. ─ Você sempre cuida de mim também. Cuidamos uma da outra. É o que fazem as pessoas que se amam.

Volevo dirti che ti amo (Queria dizer que te amo) volevo dirti che sei mio (Queria dizer que és meu) [158]


che non ti cambio con nessuno (Que não te troco por ninguém) perché a giurarlo sono io (Porque estou jurando isso)

~ Maire ~

Foi aí que Mic levantou uma questão: ─ Notou que enfrentamos tantas coisas por algo que sabemos que um dia vai terminar? Fui sincera em minha resposta: ─ Não pensei nisso em nenhum momento. ─ Eu também não. ─ Afinal, prometemos que viveríamos o nosso amor dia após dia, sem pensar no fim. ─ Fico pensando no que eu faria caso você tivesse voltado para a Irlanda. Achei graça. Não foi ela que tinha me mandado voltar? ─ Eu também não sei o que faria caso cometesse essa loucura.

volevo dirti che ti amo (Queria dizer que te amo) volevo dirti sono qui (Queria dizer-te estou aqui) anche se a volte mi allontano (Mesmo se às vezes me distancio) dietro ad un vetro di un taxi (Atrás do vidro de um táxi)

─ Mas o que é loucura e o que é sanidade nessa vida que levamos? – Mic indagou. [159]


Refleti por alguns segundos, e logo conclui: ─ Tudo o que sei, é que enlouqueceria se te perdesse agora. Foi a vez de Mic esboçar um sorriso e comentar: ─ Estive pensando... já que terei que comprar roupas novas, poderia também mudar o corte do cabelo. Era típico da Mic fazer mudanças em seu exterior, quando queria mudar algo dentro de si.

volevo dirti che ti amo (Queria dizer que te amo) volevo dirti che sei mio (Queria dizer que és meu) che non ti cambio con nessuno (Que não te troco por ninguém) perché sei troppo uguale a me (Porque você é muito igual a mim)

~ Micaela ~

Sei que Maire gostava dos meus cabelos compridos. Mas, ao contrário de Leonardo, ela apoiou tal decisão: ─ Vai ficar linda! Também farei algumas mudanças. Vou trocar o horário das aulas de dança, para você ficar mais segura com o “professor perigoso” longe de mim. ─ Sábia decisão. ─ Boba! – Maire ficou séria – E também precisamos de empregos, não teremos mais apoio familiar. Sei que ela estava com medo. Deslizei a mão pelo braço dela, tentando tranquilizá-la.

Volevo dirti che ti amo (Queria dizer que te amo) [160]


~ Maire ~

─ Vamos sobreviver. – ela disse, após tocar o meu braço. Não era a declaração mais romântica do mundo, mas fez com que eu me sentisse mais segura do que nunca. ─ Sei que vamos. Juntas.

Ti amo... (Te amo...)

~ Maire&Micaela ~

Juntas.

[161]


- Epílogo –

Oito meses depois... Tóquio – Japão ~ Micaela ~ [162]


Minha mãe já havia me contado inúmeras vezes sobre aquele lugar. Ainda assim, seria impossível não me surpreender com a estrutura construída no subsolo de um prédio erguido bem no centro da cidade mais populosa do mundo. Havíamos chegado há poucos minutos. Eu tinha ido ao banheiro e, quando regressei para o salão, vi pela primeira vez aquele sujeitinho pusilânime. “Pusilânime”... Li essa palavra num livro, certa vez, mas nunca havia tido uma ocasião – ou um alvo – para usá-la. Até aquele momento.

~ Maire ~

Quando chegamos à base, só havia mais dois Guardiões por lá. De cara, o tal Sniper levou um soco por passar uma cantada em Mic e não nos dirigiu mais a palavra (pobrezinho!). Foi para um canto, onde ficou cantarolando uma música dos Beatles. Já o outro, Li Qiang, desde o início ignorou completamente a nossa presença, e logo percebi que seria assim até o término da nossa missão. Oh, não, não era um caso de homofobia nem nada do tipo... Ele era apenas antissocial, mesmo. Sabe a Mic? Multiplique a falta de sociabilidade dela por mil, e terá o Li. Quando Mic se ausentou para ir ao banheiro, chegaram mais três Guardiões. Duas garotas: Shermmie, uma morena de estatura baixa e um tanto ranzinza e Anne, que de cara achei muito bonitinha. Sem maldade alguma, mas notei que ela parecia um pouco com a Mic. Terei sido a única a reparar nisso? Ah, e havia também um garoto, que logo se aproximou de mim, muito simpático.

~ Micaela ~

Cravei os olhos no moreno pusilânime. Não que ele tivesse qualquer atributo especial (tá, o cara era bonito, mas não reparei isso na hora), mas pelo fato de ele estar descaradamente dando em cima de Maire. Aproximei-me sem que percebessem, bem a tempo de ouvi-lo mandando a cantada mais idiota possível: ─ Libriana, né? Que coisa, acho que meu signo combina com o seu. Mil vezes IDIOTA! Tentei me controlar, mas a coisa só piorou: [163]


─ Escuta, vi que lá fora tem um café... – Ele insistiu – Não quer ir lá, para conversarmos um pouco? Maire riu, percebi que estava sem graça. ─ Hm... Acho que Mic não iria gostar. ─ Quem é Mic? Seu namorado? ─ Er... Não exatamente. ─ Então, ele não tem nada o que gostar ou não. Anda, vem comigo. Ah, ela não ia a lugar algum com aquele pusilânime! Sério, eu gostei da palavra! Caiu como uma luva para aquele brasileiro folgado. Quando ele segurou a mão dela, na intenção de levá-la para fora da base, eu puxei Maire pelo ombro, afastando-a dele. Quando o sujeito virouse para ver o que havia acontecido, foi surpreendido pelo meu punho em seu rosto, tão forte que o levou ao chão.

~ Maire ~

Após agredir o pobre rapaz, Mic passou um dos braços por cima dos meus ombros e o encarou, furiosa. ─ Maire, esse idiota estava te cantando? Senti pena dele. ─ Mic... Não precisava ter feito isso. Ele só estava tentando ser gentil. ─ Que vá ser gentil com a... ─ Mic! – eu a cortei bem a tempo. ─ Desculpe. ─ Descobriu onde é o banheiro? – eu não queria ir ao banheiro, só queria que saíssemos dali, para evitar maiores confusões. Senti que nossa convivência por ali não seria das mais fáceis. Depois de um tempo, percebi que a de nenhum dos Guardiões seria. ─ No corredor, terceira porta à esquerda. – ela respondeu – Vem, eu te acompanho... O clima aqui está péssimo. E, ainda abraçadas, nós seguimos para o corredor. Quando voltamos... Bem... [164]


~ Maire&Micaela ~

Aí já começa outra história.

- Curiosidades –

Micaela é canhota; Maire é destra.

Durante a infância, Maire de fato era a menina queridinha dos adultos, e sempre ganhava os melhores papéis nas peças e recitais escolares e da igreja.

Micaela teve dois namorados e apenas uma namorada; Maire teve um namorado e um número considerável de namoradas.

Micaela é filha única, não conheceu os avós paternos e perdeu os maternos, além de um tio – irmão de sua mãe – quando criança. Maire teve pouco contato com os avós e tios, que moravam na Irlanda do Norte.

Maire gosta da cantora italiana Laura Pausini; Micaela gosta da banda irlandesa U2.

Maire aprendeu italiano com o ex-namorado/noivo, que era descendente e a ensinou com o intuito de passarem uma temporada na Itália após se casarem, pois tinha negócios de família para assumir por lá.

Micaela nunca aprendeu a cozinhar; Maire nunca aprendeu a tabuada.

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Maire sempre gostou de comédias românticas; Micaela sempre preferiu os filmes de ação.

A “paixão hetero” de Maire era o ator Leonardo DiCaprio; Micaela preferia o George Clooney.

Apesar de não ser muito fã de bichos, Micaela simpatizava com gatos; Maire preferia os cães.

O brasileiro Maurício veio a se tornar o melhor amigo das duas.

[166]


[167]


Maire Goldsmith é irlandesa e cursa Biologia na Universidade de Madrid. Linda, delicada, simpática, agradável, extrovertida e ambientalista ferrenha... Não é a toa que é chamada pelos amigos de “garota-perfeição”. Já a italiana Micaela Angeli seria o mais completo oposto: estudante de Engenharia da Computação, extremamente racional, além de não ser de muitas palavras nem o melhor exemplo de simpatia ou delicadeza. Além de tudo isso, outro fator as difere: Maire é homossexual; já Micaela, além de hetero, acabou de sair de um relacionamento turbulento. Nas páginas do primeiro extra de Guardians, descubra como ocorreu este primeiro encontro e como iniciou-se essa amizade que evoluiu para um romance proibido.

livro-guardians.blogspot.com

lucianerangel.com

“A obra extra de Luciane Rangel é uma joia ao público em geral. Um livro carregado de sentimento, onde a autora se doa de todas formas possíveis. Espero sinceramente e profundamente que ele alcance o sucesso de Guardians. Merece. Infinitamente, merece.”

Josiane Veiga – Autora de “Rendição” e “A Insígnia de Claymor”.

“É a primeira vez que vejo Luciane escrever um romance romântico e só posso afirmar que acho que ela nasceu para isso. (...) Trata-se de uma história polêmica? Sim. Porém, contada de uma forma tão sutil que mesmo o mais preconceituoso teria que admitir que ficou encantado com o romance. É [168]


como se fosse a coisa mais natural do mundo que Mic e Maire se conhecessem e se apaixonassem, da exata forma como aconteceu.”

Bianca Carvalho – Autora de “Jardim de Escuridão”.

[169]



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