Espasmos de Alegria no Cotidiano Lucrécio de Souza 1ª edição
Copyright © 2014 Lucrécio de Souza. Todos os direitos reservados. Projeto gráfico de capa e miolo: AJ Produções – www.ajweb.com.br Este livro é uma obra de ficção. Os personagens, os acontecimentos e os diálogos são fruto da imaginação do autor e não devem ser interpretados como reais. Qualquer semelhança com fatos ou pessoas reais, vivas ou mortas, é mera coincidência.
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Dedicado com carinho a quem possa interessar.
Credo quia absurdum, “Creio porque é absurdo.” Tertuliano
Sumário Entorpecidos, 9 Sobreviverei, 13 Odeio esses filhos da puta românticos, 16 Endemoniado, 19 A primeira vez, 22 Lições paternas, 26 Brincar na chuva, 27 Marcela, 32 Cinderela puta da vida, 37 Nunca aposte seu cu com o Diabo, 44 Conto de fadas revoltante, 48 A putinha magrela e o castigo na Sexta-feira Santa, 49 O Bom Samaritano, 54 O triste fim do Chevette do meu pai, 58 O problema de ser feio, 61 Experiência fora do corpo, 64 Uma noite de sexo escatológico, 69
Entorpecidos Uma das poucas tradições da minha família era jantar na sala no horário do jornal. Meu pai e minha mãe ocupavam o sofá de três lugares, minha irmã ficava no sofá menor e eu sentava no chão. Todos com o prato no colo, devorando a comida requentada sem desgrudar os olhos da televisão. O homem obeso de terno que apresentava o jornal estava dramatizando o caso de uma idosa que havia se engasgado com uma azeitona e acabou morrendo porque a ambulância demorou em chegar. O gordo estava discutindo com um especialista a fim de decidir quem seria o maior culpado disso ter acontecido; se era o sistema de saúde ou o departamento de trânsito. Aproveitaram para fazer uma enquete. - Eu acho que a culpa é do governo – disse minha mãe, tirando uma carne de frango presa entre os dentes. - Mãe, o que é o governo? - minha irmã perguntou. - Você não sabe o que é o governo? Tá na escola pra quê, menina, só pra ficar paquerando? – minha mãe respondeu brava. Eu também queria saber o que era o governo, mas minha mãe não explicou. E aí o homem começou a espernear e berrar na tevê: - Para tudo. Para tudo, que tem notícia URGENTE! - Olha lá, olha lá! Coisa urgente! O que será que aconteceu agora? meu pai perguntou. - Se você calar essa sua boca a gente vai poder ouvir o que aconteceu! - retrucou minha mãe. Apareceu na tela uma repórter loira com cara de cansada de frente para a câmera, arrumando os cabelos. Atrás dela havia uma casa
desabada. Quando alguém lhe deu o sinal, ela balançou a cabeça afirmativamente e começou a falar: - Finalmente terminou o resgate da família que ficou presa por 72 horas sob os escombros da casa que desmoronou na Zona Sul! - Fala, Joana! – disse o apresentador – Você e sua equipe ficaram aí de plantão durante as 72 horas esperando alguma coisa acontecer. Com exclusividade, quais são as novidades? Algum sobrevivente? - Sim, Luís! – ela respondeu – Há sobreviventes! Um homem e uma mulher. Eles passam bem. Mas infelizmente também temos uma notícia gravíssima. - Que será que aconteceu? Porra, não enrola mulher! – berrou meu pai para a tevê, entre arrotos, enquanto a repórter continuava a relatar: - Para conseguir sobreviver todo esse tempo sob os escombros, o casal acabou devorando seu bebê de apenas três meses. - Mas que porra é essa? – urrou meu pai, roendo uma coxa de frango desesperadamente. - Me deixa ouvir! – minha mãe xingou, com a boca cheia de comida. - Sim, Luís! – continuou a repórter – Eles comeram o bebê, ali está a ossada. Filma a ossada, João. Eles deixaram os ossos e... - Que barbaridade! Que absurdo! Que insanos! – interrompeu o apresentador – Cadeia pra esses desgraçados! Onde já se viu? Mas me diga uma coisa, Joana, vê se pergunta para o encarregado aí, se é possível que tenha havido violência sexual. Pergunta aí pra mim. Pergunta. Estou desconfiado de que esses criminosos... - Porra, mas como vão saber isso? Eles comeram a criança inteira, caralho! – meu pai agitava o osso da coxa de frango com indignação enquanto gritava, cuspindo arroz com frango para a TV. - Não fala palavrão na frente das crianças! – minha mãe gritou.
Enquanto isso, o apresentador encerrava o jornal com uma enquete. As pessoas tinham que ligar para os números que apareciam na tela para votar se achavam que houve violência sexual no bebê devorado pelos pais. O jornal acabou e passou um comercial com um casal tirando a roupa, a mulher tinha uns peitos enormes e estava subindo em cima de um velho bigodudo. - Olha aí, a novela vai começar! – minha mãe disse – Crianças desocupem a sala, vocês não podem ver esse tipo de coisa, é hora de ir dormir. Tem escola cedo amanhã. Tchau. Tchau! Eu fui para o quarto, minha irmã foi escovar os dentes antes, depois ela veio também. Minha mãe apareceu rapidamente para nos dar boa noite, apagou a luz e fechou a porta. Ficamos ali deitados no escuro, soltei alguns peidos para irritar a minha irmã, o sono não vinha de jeito algum. Do quarto ainda podíamos ouvir a TV ligada na sala, com o barulho de gemidos e MPB da novela. Depois de um tempo meus pais também foram para o quarto deles. Ainda sem sono, tive que ouvir a cama deles rangendo, minha mãe gritando, soltando um gemido meio fingido, até a cama parar quieta. Dava para ouvir tudo, não sei se eles não sabiam ou não ligavam. Minha irmã já estava roncando e eu ainda estava olhando para a escuridão. Quando eu estava começando a pegar no sono, meus pais começaram a conversar lá no quarto deles: - Bem? Bem? Que coisa horrível esse negócio dos pais que comeram o neném, não acha? – minha mãe perguntou, com a voz meio enrolada de sono. - É, horrível. – respondeu meu pai, também com sono aparente.
- Benhê. – minha mãe novamente – se um dia a gente estivesse na mesma situação, Deus nos livre, e a gente tivesse que comer... Qual dos dois você acha que a gente deveria comer? Meu pai demorou um pouco para responder: - Acho que o Juninho, que é mais gordinho. - É mesmo. Boa noite, bem. - Boa noite. Eu fechei os olhos e tentei dormir.
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