Geografia: dinâmicas, conflitos e proposições

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Geografia Dinâmicas, Conflitos e Proposições

Organizadores Luís Alberto Basso Nina Simone Vilaverde Moura Tânia Marques Strohaecker

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Edição: William Moreno Boenavides Todos os direitos desta edição reservados aos organizadores. Conselho editorial Dr. Alexander Goulart (PUCRS), Dr. Ítalo Oligari (ULBRA), Dr. Marcelo Spalding (Metamorfose), Dra. Márcia Ivana de Lima e Silva (UFRGS).

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Geografia: dinâmica, conflitos e proposições [ livro eletrônico] / organizado por Luís Alberto Basso, Nina Simone Vilaverde Moura e Tânia Marques Strohaecker – Dados eletrônicos Porto Alegre: wwlivros, 2017. 274 p: il. - Modo de acesso: World Wide Web: - ISBN: 978-85-93384-11-0

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1. Geografia 2.Meio ambiente 3. Urbanização 4. Dinâmica socioespacial I. Título. II. Basso, Luís Alberto, org III. Moura, Nina Simone Vilaverde, org IV. Strohaecker, Tânia Marques, org. CDD 910 Bibliotecária Alexandra Naymayer Corso - CRB10/1099


GEOGRAFIA: DINÂMICAS, CONFLITOS E PROPOSIÇÕES

Organizadores Luís Alberto Basso Nina Simone Vilaverde Moura Tânia Marques Strohaecker

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Apresentação O livro Geografia: dinâmicas, conflitos e proposições reúne textos que abordam temáticas relevantes da ciência geográfica, em especial sobre a urbanização, a dinâmica socioespacial e problemas ambientais. Os textos selecionados representam parte da produção empreendida junto ao Programa de Pós-Graduação em Geografia (POSGEA) e ao Departamento de Geografia, no âmbito do ensino, pesquisa e extensão, por professores e orientandos vinculados ao Instituto de Geociências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Compreender o espaço geográfico e suas dinâmicas em diferentes abordagens -ambiental, social, econômica e cultural - bem como os conflitos inerentes ao embate frente os múltiplos interesses dos diversos atores sociais, é condição essencial para nele atuarmos enquanto cidadãos, profissionais e representantes da sociedade, a fim de propor ideias, debates e subsídios para a implementação de políticas públicas. A diversidade das abordagens presentes neste livro permite agrupar os capítulos em três blocos temáticos, buscando afinidades entre eles, fazendo com que se complementem ou dialoguem entre si, indicando uma tessitura de conhecimentos do espaço geográfico como um processo interativo e complexo entre a natureza e a sociedade contemporânea. O primeiro bloco temático denominado Processos geomorfológicos, intervenções antrópicas e mudanças no uso e na ocupação da terra nos ambientes urbanos refere-se a um conjunto de trabalhos elaborados a partir de proposições metodológicas que permitem realizar uma análise integrada, na qual a natureza e a sociedade fundemse numa totalidade, a fim de compreender os principais problemas ambientais, especialmente nas áreas urbanas brasileiras. A análise da dinâmica natural refere-se aos estudos relacionados aos elementos geológicos, geomorfológicos, climatológicos, hidrológicos, entre outros. A análise das mudanças da cobertura vegetal e do uso da terra permite avaliar as transformações ocorridas no ambiente natural, a partir de uma análise do modo como a sociedade se articulou com a natureza, mediante as determinações da sociedade e da dinâmica natural. O primeiro capítulo intitulado “Problemas ambientais urbanos: questões metodológicas nos estudos geográficos com ênfase na análise geomorfológica e nas mudanças do uso da terra” apresenta alguns dos principais procedimentos metodológicos e operacionais utilizados em diversas pesquisas que buscam interpretar os problemas ambientais a partir das relações sociais sobre o meio físico,

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tendo como ponto de partida a análise e mapeamento geomorfológicos e as intervenções antrópicas que se configuram pelos diferentes padrões de uso e ocupação da terra. O segundo capítulo denominado “Impactos Ambientais Urbanos: O caso do Setor Norte do Litoral Gaúcho” procura interpretar os problemas ambientais na orla do Litoral Norte do Rio Grande do Sul considerando as diferentes formas de intervenções antrópicas em cada compartimento geomorfológico identificado na área. Nessa região encontram-se as maiores taxas de crescimento populacional do estado, contudo a ocupação no território não é uniforme e os problemas ambientais dependem do tipo de ocupação e da morfodinâmica de cada padrão de formas de relevo. O capítulo “Análise das fragilidades ambientais em sistemas fluviais e de vertentes: bacias hidrográficas dos arroios Santa Isabel e Pelotas, e na área urbana de Santa Maria-RS” aplica uma metodologia, amplamente utilizada em várias regiões brasileiras, em três localidades com características geomorfológicas distintas (encostas e planícies) tanto em áreas urbanas como rurais. Essa aplicação metodológica proporcionou reflexões, adaptações e avanços que merecem ser compartilhados entre estudantes e profissionais da temática ambiental, pois a análise das fragilidades permite uma valiosa interpretação da intensidade das intervenções sociais nos elementos da natureza. O capítulo “Evolução Urbana sobre os Compartimentos de Relevo: municípios de Porto Alegre e Sapucaia do Sul-RS” procura identificar as fases históricas da ocupação sobre os compartimentos de relevo, considerando a expansão da mancha urbana e a retração dos espaços rurais em Porto Alegre e em Sapucaia do Sul, gerando mapas geomorfológicos e de evolução urbana. Tal análise permite compreender que muitos dos eventos de inundação, alagamentos, processos erosivos, entre outros, foram intensificados pela urbanização em áreas com suscetibilidades naturais aos referidos processos. O último capítulo desse bloco temático intitulado “Análise das intervenções na morfologia original e na dinâmica geomorfológica em áreas alagáveis do município de Porto Alegre – RS” realiza uma análise geomorfológica com base numa cartografia retrospectiva para representar a morfologia original de áreas com grande recorrência de eventos de inundação e alagamento no município de Porto Alegre. O estudo evidencia que as intervenções realizadas acarretaram mudanças na morfologia original que interferiram na dinâmica superficial, especialmente no que se refere ao escoamento das águas pluviais, intensificando os eventos de alagamento e inundações.

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Considera-se que o meio-físico e, em especial o relevo, é a base inicial para o assentamento humano e formação do espaço geográfico. A ocupação urbana expande-se sobre diferentes formas de relevo ao longo de diferentes períodos do processo de ocupação, alterando a forma original, criando novas feições de relevo, materiais e processos geomorfológicos. A análise integrada dos fatores naturais e sociais procura compreender os problemas ambientais de forma integrada utilizandose do mapeamento geomorfológico e do mapa da cobertura vegetal e do uso da terra. Os capítulos referentes ao segundo bloco temático denominado Bacias hidrográficas: qualidade da água, inundações e gestão, deixa evidente, já no título, a área de análise, ou seja, as bacias hidrográficas. Nas últimas décadas esta unidade de análise adquiriu importância substancial nos estudos socioambientais, especialmente devido à crescente demanda pelos recursos hídricos para satisfazer as mais diversas atividades econômicas. Essa busca pelo recurso água foi acompanhada por problemas de quantidade e qualidade: várias regiões do planeta enfrentam escassez quantitativa, muitas vezes agravada pela baixa qualidade da água. A legislação brasileira, assim como boa parte das normas hídricas internacionais estabeleceram que a bacia hidrográfica é a unidade mais adequada para análise e planejamento ambiental. Dois capítulos versam especificamente sobre a relação uso e ocupação do solo e qualidade da água de cursos fluviais urbano e rural. No primeiro, intitulado “A qualidade da água e suas relações com o uso e a ocupação do solo na bacia hidrográfica do arroio Cavalhada, Porto Alegre-RS”, aplicou-se o Índice da Qualidade da Água (IQA) que foi relacionado às tipologias de uso e ocupação do solo, detectadas na cartografia temática, através de imagens de satélite. O outro capítulo, denominado “Qualidade da água associada ao cultivo de banana na sub-bacia hidrográfica do rio das Pacas – RS”, destacou a importância econômica desse cultivo para a região e para o sustento de diversas famílias, onde coexistem os sistemas orgânico e convencional, esse último com reconhecida utilização de agrotóxicos. Em ambos os estudos, os órgãos de controle ambientais e comitês de bacias têm disponíveis dados importantes sobre a qualidade da água, que fica comprometida no caso do arroio urbano, fundamentalmente pelos despejos de esgotos domésticos sem tratamento. Enquanto na pesquisa rural, a qualidade da água é bastante razoável, podendo ficar prejudicada pela aplicação de agrotóxicos pelos produtores, alguns deles conscientes sobre os impactos que esses produtos podem causar ao ambiente. O terceiro capítulo, “Uma base teórica para metodologias de risco a inundações graduais”, apresenta relevantes fundamentos metodológicos para análise de risco à inundação em áreas urbanas localizadas em bacias hidrográficas de grandes dimensões. Nesse sentido, é importante ter a noção do risco ou dos tempos de retorno

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da inundação no tempo e no espaço, assim como esses aspectos afetam a vida dos moradores dessas áreas. A combinação entre esses fatores permite a elaboração de mapas de risco, produto fundamental para auxiliar os órgãos responsáveis pelos planos de proteção civil na prevenção dos efeitos das inundações sobre as populações atingidas. O último capítulo, intitulado “A composição e a representatividade dos diferentes segmentos sociais no Comitê de Bacia Hidrográfica do rio TaquariAntas/Rio Grande do Sul”, analisa essa instância criada para gerenciar o uso dos recursos hídricos de forma integrada e descentralizada, com a participação da sociedade. Mais especificamente, avalia de que maneira é executada a representação concreta da sociedade nessa instância deliberativa e normativa. A participação da sociedade é garantida por lei na gestão dos recursos hídricos, mas com frequência surgem indagações acerca da garantia da representação efetiva da sociedade dentro dos comitês. Em síntese, as temáticas discutidas nessa parte da obra versam sobre temas atuais e relevantes para aprimorar a gestão dos recursos hídricos, pois abordam conteúdos sobre uso e ocupação do solo, monitoramento da qualidade da água e participação social na gestão dos recursos hídricos. Por fim, o terceiro bloco intitulado Urbanização e suas dinâmicas: processos, agentes e gestão – apresenta cinco artigos que tratam de temas essenciais no campo da geografia urbana como os processos e as formas espaciais, as representações e os recortes espaciais mediados por diferentes agentes modeladores do espaço urbano na (re)produção da cidade, além de questões teórico-metodológicas empreendidas na análise de determinados recortes espaciais da metrópole Porto Alegre e as consequências desse padrão de urbanização difusa. Esse bloco tem como primeiro texto a pesquisa intitulada “O processo de verticalização no Centro Histórico de Porto Alegre (1930-1960)”, cujo foco é o ideário da modernização do centro através da análise de três perspectivas concomitantes: a econômica, a demográfica e a simbólica. A paisagem resultante desse embate entre diferentes agentes sociais no referido período, reforça a necessidade de um olhar diferenciado, na atualidade, para as formas espaciais pretéritas em um dos recortes espaciais mais representativos e importantes da cidade, o Centro Histórico, enquanto patrimônio cultural. A seguir, no texto “A transição demográfica e a produção do espaço urbano em Porto Alegre”, empreende-se um estudo que procura associar a análise da transição demográfica à dinâmica imobiliária no período intercensitário (2000-2010), indicando que a prática de (re)valorização de segmentos do espaço urbano é condicionada, entre outros fatores, pela atuação de promotores imobiliários

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e proprietários fundiários, mediada pelo Estado através da legislação municipal, viabilizando uma urbanização fragmentada, difusa e segregadora. O terceiro texto, intitulado “Análise da acessibilidade a equipamentos públicos de ensino utilizando técnicas de geoprocessamento na bacia hidrográfica do Arroio do Salso em Porto Alegre/RS”, propõe identificar o grau de acessibilidade espacial à rede escolar de ensino básico contemplando os níveis de ensino infantil, fundamental e médio, presentes na bacia hidrográfica do Arroio do Salso, área de expansão da urbanização na zona sul do município de Porto Alegre. O trabalho investigatório de caráter analítico-operacional visa contribuir com subsídios para o planejamento e gestão de redes escolares em escala municipal. Por fim, tem-se dois trabalhos de caráter analítico-propositivo, o primeiro intitulado “Transformações no padrão de habitação do 40 Distrito de Porto Alegre”, que aborda o processo de requalificação urbana da antiga área industrial da metrópole, com a finalidade de identificar os principais agentes envolvidos no processo, analisar a dinâmica socioespacial dessa transformação e suas implicações na reestruturação da metrópole. O outro texto, intitulado “Desafios e propostas para o desenvolvimento socioespacial no espaço periurbano fragmentado”, aborda a dinâmica socioespacial do distrito urbano de Águas Claras, no município de Viamão, na região metropolitana de Porto Alegre, que se caracteriza pela segregação socioespacial e fragmentação do tecido periurbano. Assim, a identificação desses processos e a discussão acerca de suas consequências são necessárias para subsidiar a proposição de ações mitigatórias. Em síntese, os capítulos que constituem esse bloco temático têm como diretriz a tríade metodológica - observação-análise-proposição - a partir de abordagens diversas da dinâmica dos processos espaciais e atuação dos agentes sociais na valorização diferenciada dos espaços urbanos na contemporaneidade. Portanto, os textos que congregam os três blocos temáticos referendam o próprio título do livro Geografia: dinâmicas, conflitos e proposições. Boa leitura!

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SUMÁRIO Parte I Processos geomorfológicos, intervenções antrópicas e mudanças no uso e na ocupação da terra nos ambientes urbanos Capítulo 1 Problemas Ambientais Urbanos: questões metodológicas nos estudos geográficos com ênfase na análise geomorfológica e nas mudanças do uso da Terra Nina Simone Vilaverde Moura Emilio F. Moran Capítulo 2 Impactos Ambientais Urbanos: o caso do setor norte do litoral gaúcho Aline Vicente Kunst Nina Simone Vilaverde Moura Capítulo 3 Análise das fragilidades ambientais em sistemas fluviais e de vertentes: bacias hidrográficas dos arroios Santa Isabel e Pelotas, e na área urbana de Santa Maria-RS Nina Simone Vilaverde Moura Marilene Dias do Nascimento Erica Insaurriaga Megiato Jonathan Duarte Marth Capítulo 4 Evolução Urbana sobre os Compartimentos de Relevo: municípios de Porto Alegre e Sapucaia do Sul-RS Nina Simone Vilaverde Moura Felipe de Sousa Gonçalves Tielle Soares Dias Capítulo 5 Análise das intervenções na morfologia original e na dinâmica geomorfológica em áreas alagáveis do município de Porto Alegre – RS Tielle Soares Dias Nina Simone Vilaverde Moura

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Parte II Bacias hidrográficas: qualidade da água, inundações e gestão Capítulo 1 A Qualidade da Água e suas Relações com o Uso e a Ocupação do Solo na Bacia Hidrográfica do arroio Cavalhada, Porto Alegre-RS Luís Alberto Basso Eléia Righi Daniela Santos da Rocha Capítulo 2 Qualidade da Água Associada ao Cultivo de Banana na Sub-Bacia Hidrográfica do Rio das Pacas - RS Sumire da Silva Hinata Luís Alberto Basso Capítulo 3 Uma Base Teórica para Metodologias de Risco a Inundações Graduais Eléia Righi Luís Alberto Basso Capítulo 4 A Composição e a Representatividade dos Diferentes Segmentos Sociais no Comitê de Bacia Hidrográfica do Rio Taquari - Antas/Rio Grande Do Sul Mara Alini Meier Luís Alberto Basso

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Parte III Urbanização e suas Dinâmicas: processos, agentes e gestão Capítulo 1 O Processo de Verticalização no Centro Histórico de Porto Alegre (1930-1960) Ronell da Cunha Tânia Marques Strohaecker Capítulo 2 A Transição Demográfica e a Produção do Espaço Urbano em Porto Alegre Amanda Cabette Tânia Marques Strohaecker Capítulo 3 Análise da Acessibilidade a Equipamentos Públicos de Ensino utilizando técnicas de Geoprocessamento: bacia hidrográfica do Arroio do Salso em Porto Alegre-RS Pedro Verran Tânia Marques Strohaecker Capítulo 4 Transformações no Padrão de Habitação do 4º Distrito de Porto Alegre Pedro Toscan Pittelkow Contassot Tânia Marques Strohaecker Capítulo 5 Desafios e Propostas para o Desenvolvimento Socioespacial no Espaço Periurbano Fragmentado Samuel Martins Tânia Marques Strohaecker

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Parte I Processos geomorfológicos, intervenções antrópicas e mudanças no uso e na ocupação da terra nos ambientes urbanos



Capítulo 1 Problemas Ambientais Urbanos: questões metodológicas nos estudos geográficos com ênfase na análise geomorfológica e nas mudanças do uso da terra Nina Simone Vilaverde Moura Emilio Federico Moran

Introdução Este capítulo tem como objetivo apresentar os pressupostos metodológicos e operacionais construídos durante a elaboração de estudos relacionados às alterações ambientais decorrentes da urbanização, com base na leitura geomorfológica e nas alterações do uso da terra pelo processo de expansão urbana. Tais estudos se inserem no escopo das orientações de mestrado e doutorado conduzidas na área de Geografia Física, com ênfase no mapeamento geomorfológico, na Geomorfologia Urbana e na análise da cobertura vegetal e do uso do solo em trabalhos desenvolvidos na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), destacando-se os estudos realizados por Fujimoto (2001), Fraga (2009), Marth (2011), Dias (2013), entre outros. Os referidos autores vêm aplicando metodologias diferenciadas diante da abordagem do ambiente antrópico, notadamente urbanizados. Mais recentemente, estudos sobre a dimensão humana nas mudanças ambientais globais, desenvolvidos por Moran (2008, 2010), vêm contribuindo na análise da importância histórica das alterações nas mudanças do uso da terra e nas análises dos problemas ambientais urbanos no contexto da sustentabilidade. A proposição metodológica procura construir uma análise integrada, na qual a natureza e a sociedade fundem-se numa totalidade. A análise da dinâmica natural refere-se aos estudos relacionados aos elementos geomorfológicos, bem como geológicos, climatológicos, hidrológicos, entre outros, permitindo avaliar às suscetibilidades do ambiente aos processos naturais, tais como inundação, assoreamento, movimentos de massa, processos erosivos, tempestades, elevação do nível do mar, entre outros. A análise das mudanças da cobertura vegetal e do uso da terra permite avaliar as transformações ocorridas no ambiente natural, a partir de uma análise do modo como a sociedade se articulou com a natureza, mediante as determinações e prioridades da sociedade e da dinâmica natural. O estudo da trajetória das mudanças da cobertura vegetal e do uso da terra expressa as relações

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socioeconômicas do território, revelando a apropriação da natureza pela sociedade, suas alterações e os problemas ambientais. Essa apropriação revela o histórico do uso da terra, que reflete as prioridades sociais e culturais de uma sociedade. Esse histórico, por sua vez, é produto de como a sociedade está organizada, dos sistemas decisórios, e da participação ou não dos cidadãos na construção da sociedade. A análise da dinâmica natural, com base na Geomorfologia, consiste na identificação e mapeamento dos compartimentos de relevo determinados por fatores naturais, originados por processos climáticos passados e atuais, quando a morfologia se encontrava praticamente em situação original. As formas de relevo criadas ou induzidas pela atividade humana são reconhecidas no período em que passa a ser significativa a intervenção urbana na área de estudo. Neste sentido, a avaliação geomorfológica inclui em sua análise uma abordagem histórica das formas de relevo, do material de cobertura superficial e dos processos geomorfológicos, pois revelam as dimensões das alterações ambientais no espaço urbano (FUJIMOTO, 2001). A referida abordagem assinala o indispensável reconhecimento do sistema geomorfológico em seus múltiplos estágios de intervenção antrópica (estágios de préperturbação, perturbação ativa e pós-perturbação), onde as intervenções humanas para a construção e sustentação de ambientes urbanos são analisadas enquanto ações geomorfológicas e, por conseguinte, passíveis de serem estudadas como intervenções em formas, materiais e processos (RODRIGUES 2005). Contudo, as alterações no uso da terra revelam as formas de apropriação da natureza pela sociedade e, consequentemente, identificam os agentes sociais envolvidos nos principais problemas ambientais. Os promotores imobiliários, as lideranças municipais, os investidores de capital no setor da construção civil, entre outros, são os agentes mais relevantes que direcionam ou controlam as decisões que afetam a paisagem urbana. E a sociedade em geral é cúmplice nestas transformações, não intencionalmente, mas por não se auto-organizar para opor transformações que não são de interesse próprio. A falta de tradição em acreditar que a auto-organização pode ser efetiva e resultar em outros resultados faz parte de um problema histórico e social. Nesse sentido, esse capítulo pretende contribuir para uma análise integrada dos problemas ambientais urbanos ao abordar a dinâmica natural considerando os pressupostos dos estudos geomorfológicos e, a dinâmica social, a partir da análise das mudanças na cobertura vegetal e no uso da terra.

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Ocupação Urbana e as Alterações Ambientais A urbanização na forma de construções ou áreas pavimentadas ocupam cerca de 0,52% da superfície da Terra, mas a taxa de crescimento é muito rápida. A cobertura urbana cresce, em média, mais que o dobro da taxa de crescimento da população urbana de acordo com Angel et al (2011). Provavelmente, esse rápido crescimento continuará nas próximas décadas, paralelamente, ao crescimento da população urbana e do crescimento econômico. A urbanização ocasiona alterações significativas na cobertura vegetal e no uso da terra, além dos limites das áreas urbanas, através de suas amplas redes de influência ou teleconecções urbanas. Nos países centrais ou desenvolvidos, as aglomerações urbanas e extensos assentamentos periféricos fragmentam as paisagens rurais, diminuindo a rentabilidade das atividades agrícolas. Nos países periféricos ou menos desenvolvidos, a urbanização se sobrepõe a todos os outros usos da terra adjacentes à cidade, incluindo, principalmente, terras cultivadas por agricultura intensiva. Resultados preliminares sugerem que, em média, metade da área projetada para a expansão urbana ocupará o lugar de terras cultivadas. Isto, provavelmente, ocorrerá em lugares onde, principalmente, existiam atividades agrícolas localizadas em planícies costeiras e em planícies fluviais (Lambin e Meyfroidt, 2013). O crescimento no número e no tamanho das cidades em diferentes países tem provocado alterações na dinâmica dos fenômenos ambientais. Tais alterações estão acelerando os resultados das mudanças ambientais globais, as quais promovem modificações no comportamento e na frequência de eventos climáticos extremos e, nesse sentido, causam um estresse adicional ao sistema ambiental e humano. A dinâmica territorial brasileira vem se caracterizando, entre outros fatores, pelos processos de urbanização, diversificação econômica e ampliação das desigualdades regionais, direcionando a ação de diferentes agentes na produção e reprodução do espaço geográfico. Neste contexto, parte-se da premissa que o conjunto de problemas ambientais urbanos no Brasil é o resultado das formas predatórias de apropriação da natureza. “A questão ambiental deve ser compreendida como produto da intervenção da sociedade sobre a natureza”(...)”caracterizada pelo incessante uso dos recursos naturais sem possibilidade de reposição” (RODRIGUES, 1998:13). Os problemas ambientais referem-se às relações homem/natureza e às relações dos homens entre si, pois dizem respeito às formas como o homem em sociedade se apropria dos elementos naturais. É necessário, portanto, compreender seus diversos componentes de forma integrada, dentro de uma perspectiva espacial e temporal, que expresse a organização do espaço geográfico.

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Contudo, para apreender todos os elementos inseridos numa análise ambiental deve-se passar por diferentes níveis escalares. A importância de um determinado evento no espaço será distinta para cada nível de análise. Cada ponto no espaço e cada dimensão espacial analisada equivalem a uma realidade, pois determinados fenômenos observados em uma escala não podem ser apreendidos em outras. A mudança de escala corresponde a uma transformação no nível de análise (FUJIMOTO, 2001). A urbanização apresenta-se como um desafio para muitos pesquisadores, pois a concentração humana e as atividades a ela relacionadas provocam uma ruptura do funcionamento do ambiente natural. Para melhor compreender os problemas ambientais urbanos, é preciso analisar as alterações nos elementos naturais decorrentes das intervenções humanas e do processo de uso e ocupação, considerando as características intrínsecas à dinâmica natural e às mudanças proporcionadas pela intervenção humana e pelo uso da terra. Nesse sentido, devese ter a preocupação de encontrar formas sustentáveis de crescimento urbano, nas quais os sistemas humanos e ambientais possam coexistir de maneira equilibrada. Contudo, pode-se questionar se, em algum momento da história, os sistemas urbanos foram sustentáveis. Existem cidades que têm sobrevivido a um custo alto, em função de sua importância regional em transações econômicas ou como centro de concentração política e social. Também existem, hoje, pequenas cidades, como na Inglaterra, que dão a aparência de serem sustentáveis, porém a análise quantitativa nunca foi realizada. Atualmente, dada a preocupação com o crescimento urbano e com as macrocidades como Shangai, Beijing, Tokyo, São Paulo e outras, será necessário começar a avaliar se existem condições para a vida humana em tais cidades. Na medida da necessidade, talvez se deva incentivar o crescimento de cidades médias mais adequadas à habitação humana e com possibilidade de autogestão a partir do uso de sistemas energéticos renováveis, reciclagem do lixo e da água, e outras formas mais sustentáveis. As diferentes formas de apropriação da natureza pela sociedade desencadearam uma ocupação desordenada e muitas vezes irracional do espaço geográfico, rompendo o equilíbrio entre as potencialidades ambientais e as necessidades da população, trazendo consequências negativas para a vida do homem e do ambiente. Parte do problema reflete uma incapacidade política de direcionar o crescimento de forma racional e ambientalmente correta. Neste sentido, os problemas urbanos refletem problemas mais profundos de governança na sociedade e de participação popular na construção do seu ambiente. Vê-se, dessa forma, nas últimas décadas, surgir sob todas as tendências à preocupação com as questões ambientais.

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Geografia, Geomorfologia e a Abordagem Ambiental Com a crise ambiental, muitos geógrafos passaram a se dedicar à compreensão da relação sociedade e natureza, experimentando várias proposições teóricas que têm contribuído na análise e interpretação do espaço geográfico. As proposições procuram construir uma análise integrada, na qual a natureza e a sociedade fundem-se numa totalidade. Os estudos ambientais não são novidades na Geografia, afirma Ross (1995), pois os geógrafos sempre fizeram estudos da natureza e da sociedade. Abordar diversos temas da natureza e da sociedade de forma integrada é o que se denomina análise ou estudo ambiental. Portanto, esses estudos prescindem do mesmo princípio da Geografia: entender as relações da sociedade e da natureza. A Geografia sempre foi considerada uma disciplina que procura oferecer uma síntese da complexidade de fatos de diferentes esferas do conhecimento, num dado espaço da superfície terrestre. Desde seu surgimento, a Geografia vem evoluindo sem uma exata posição epistemológica, ora nas ciências humanas, ora nas ciências da terra, entre outras, “decorrente dessa própria abrangência e pretensão de síntese” (MONTEIRO, 1995:5). Nos anos de 1960, no lado da chamada Geografia Física, houve uma reação à tendência especializante da ciência que predominava naquela ocasião. Essa reação manifestou-se em uma abordagem mais integradora, que não é uma somatória de partes, e sim uma conexão íntima entre as partes, levando em conta toda dinâmica de como ocorrem os fatos no interior de um determinado espaço geográfico. Segundo Monteiro (1995), o surgimento de um novo paradigma denominado Geossistema teve suas origens nas ciências naturais a partir da formalização da “Teoria Geral dos Sistemas” por Bertalanffy (1973), que extravasou para a ciência como um todo, incluindo a Geografia e a Geomorfologia. Nesse sentido, merecem destaque as contribuições de Bertrand (1968), Sotchava (1977) e Tricart (1977 e 1982). Nesses estudos, os autores entendem os elementos da natureza como pertencentes a uma totalidade funcional, os quais denominam de Paisagem, Geossistemas e Unidades Ecodinâmicas, respectivamente, e inserem o fator antrópico para uma melhor utilização dos recursos naturais, visto que a importância de uma análise integrada é permitir “identificar rapidamente quais vão ser as modificações indiretas desencadeadas por uma intervenção que afeta tal ou qual outro elemento do sistema” (TRICART, 1977:32). Com isso, na Geomorfologia, apesar da diversidade das posturas epistemológicas assumidas pelos geomorfólogos/geógrafos no decorrer do tempo,

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surge uma unidade conceitual que permite definir claramente o objeto de estudo, os níveis de tratamento e os métodos de investigação da Geomorfologia, quando Ab’Saber (1969) propõe incorporar na análise, elementos de natureza geológica (os reflexos da estrutura na compartimentação), pedológica (o comportamento da estrutura superficial), climática e antrópica (processos morfodinâmicos atuais). A partir da década de 1980, a Geomorfologia no Brasil começa a se caracterizar pelo enfoque ambiental de seus estudos e que tem como tema “integrar as questões sociais às análises da natureza. Devendo incorporar em suas observações e análises as relações político-econômicas, importantes na determinação dos resultados dos processos de mudanças” (CUNHA & GUERRA, 1996:341). Surge assim, uma abordagem mais ampla, capaz de relacionar fenômenos físicos e socioeconômicos de forma a possibilitar a compreensão do modelado terrestre, uma vez que a análise geomorfológica, por definição, identifica, classifica e analisa as formas da superfície terrestre, buscando compreender as relações processuais pretéritas e atuais. Esta evolução acompanha o desenvolvimento ao nível da ciência internacional dos programas de mudança ambiental global (IGBP, 1988), e das dimensões humanas de tais câmbios (IHDP, 1992), e de projetos integrativos destes dois programas internacionais, tais como o LUCC (Land Use and Land Cover Change Programme, 1995). A análise geomorfológica torna-se um importante instrumento para a compreensão racional da forma de apropriação do ambiente pelo homem, pois o estudo do relevo passa a ser uma abordagem fundamental no planejamento territorial, uma vez que estabelece categorias de avaliação conforme o grau de suscetibilidade ou fragilidade de cada ambiente, alertando sobre os problemas da influência antrópica (ROSS, 1995). Para a análise das suscetibilidades aos processos erosivos, de movimentos de massa e de inundação, a Geomorfologia tem um importante referencial metodológico, pois considera a gênese das formas e sua dinâmica atual. Conforme destaca Tricart (1977), os componentes do meio físico, selecionados para a análise, são interdependentes na avaliação morfodinâmica. Analisando-se as formas de relevo e suas características morfológicas, materiais componentes, processos atuantes, intervenções antrópicas na morfologia natural, compreende-se o funcionamento do modelado terrestre e suas condicionantes relacionadas às atividades humanas e formas de organizações espaciais. Os mapeamentos associados às análises das formas, da gênese e da dinâmica do relevo oferecem subsídios aos estudos de suscetibilidade aos processos de erosão, movimentos de massa e inundação, bem como ao estudo e/ou mapeamento da cobertura vegetal e do uso da terra, pois indicam as fragilidades dos ambientes

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naturais em função dos usos atuais e futuros, conformem podem ser observados em estudos desenvolvidos por Fujimoto (2008), Fraga (2009), Lima (2010) e Dias (2013), na Região Metropolitana de Porto Alegre. A análise das formas de relevo através da morfometria, ou seja, elementos hipsométricos e clinográficos do terreno trazem informações, principalmente, sobre a velocidade dos fluxos. A hipsometria é um indicador de energia potencial disponível para o escoamento superficial e a declividade que se refere à inclinação das vertentes em relação ao horizonte tem direta ligação com a velocidade do escoamento das águas. A análise morfométrica pode ser realizada através de técnicas de elevação digital do relevo e de extração das variáveis em Sistema de Informação Geográfica (SIG), conforme descrevem Valeriano (2008) e Florenzano (2008). Os materiais componentes relacionam-se às características geológicas e pedológicas do terreno. As características geológicas compreendem, sobretudo, o grau de coesão e dissecação das rochas que compõem as formas de relevo. Por grau de dissecação da rocha entende-se a intensidade de ligação entre os minerais ou partículas que as constituem. Nestas partículas, quando as rochas são pouco coesas, prevalecem os processos modificadores das formas de relevo e quando as rochas são bastante coesas, predominam os processos de formação dos solos, os quais favorecem a diminuição do escoamento superficial. Os solos enquanto formação superficial, geralmente, se tornam mais importantes para estudos de morfodinâmica do que o substrato geológico. Nesta variável são evidenciadas a permeabilidade e a drenagem do solo, em função das suas condições internas e intrínsecas, como sua composição mineralógica e granulométrica e suas características físicas e químicas. Para tanto, deve-se considerar a maturidade do solo, o balanço morfogênese/pedogênese, os quais são indicativos de solos rasos ou profundos e, consequentemente, sugerem a capacidade de infiltração e escoamento superficial. A análise ou mapeamento da suscetibilidade a partir dos elementos do meio físico (relevo, rochas, solos) permite inferir as áreas sujeitas aos processos geomorfológicos. O estudo e/ou mapeamento da cobertura vegetal e do uso da terra, além das características socioeconômicas da população e de infraestrutura dos domicílios indicam as moradias mais vulneráveis aos eventos de erosão, movimentos de massa e inundação, ou seja, o grau de vulnerabilidade em que uma comunidade apresenta em resposta a um processo ou fenômeno (inundação, escorregamento, entre outros), segundo Santos, Thomazielo e Weill (2007). Os estudos e as avaliações das características e funcionamento dos elementos componentes dos sistemas ambientais físicos, como no caso dos condicionantes

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geomorfológicos e hidrológicos, indicam potencialidades e fragilidades que devem ser considerados no planejamento territorial ou em programas de desenvolvimento nacional, regional e local. Geomorfologia e sua Aplicação na Análise Ambiental Urbana A análise geomorfológica aplicada ao reconhecimento do ambiente tem se baseado, predominantemente, em um estudo dos diferentes tamanhos das formas de relevo e sua dinâmica. Os mapeamentos e as análises das formas, gênese e dinâmica do relevo oferecem subsídios à avaliação do potencial de uso da terra e da suscetibilidade dos ambientes naturais em função dos usos atuais e futuros (ROSS, 1995). As formas de relevo têm intrínsecas relações com o processo dinâmico de transformação da natureza, influenciando o modo como a sociedade apropria-se dos recursos naturais. As análises e mapeamentos geomorfológicos necessitam das informações de geologia, de material de cobertura, dos climas, das águas, da cobertura vegetal e dos tipos de uso da terra. Por outro lado, os estudos de geomorfologia oferecem elementos para a identificação e análise da tipologia de rochas e do material de cobertura, das águas, da cobertura vegetal, entre outros. Para a realização de uma análise geomorfológica é necessário trabalhar em diferentes níveis escalares e temporais, podendo ter como base a proposta de estudo idealizada por Ab’Saber (1969). Os níveis de tratamento propostos pelo referido autor permitem um ordenamento nos estudos geomorfológicos e são os seguintes: compartimentação do relevo que compreende uma caracterização e descrição de todas as formas de relevo quanto possível na escala de observação; estrutura superficial da paisagem que corresponde a uma articulação entre geologia e geomorfologia de maneira a sistematizar as informações sobre cronogeomorfologia e fisiologia da paisagem que compreende a dinâmica dos processos morfoclimáticos, pedogenéticos e da ação antrópica. Em nível conceitual, esse método encara a necessidade de um conceito abrangente das formas de relevo, considerando-as como decorrentes de processos endógenos e exógenos. A ideia fundamenta-se na interação das forças endógenas e exógenas, em sendo o relevo formado a partir de suas combinações. A ação predominante das forças endógenas forma os elementos morfoestruturais que, para serem interpretados, devem ser analisados a partir dos condicionantes tectônicos. As morfoesculturas correspondem ao modelado de formas geradas sobre diferentes estruturas e sob a ação dos fatores exógenos (MESCERJAKOV, 1968). Segundo Ross (1992:40) “o conceito de morfoescultura volta-se, portanto, às feições do relevo produzidas na terra, pela ação dos climas atuais e pretéritos e que deixam marcas na superfície do terreno, específicas de cada processo dominante”. A adequação de

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escalas têmporo-espaciais, como propõe Tricart e Cailleux (1965), são fundamentais para apreender as diversidades de feições na superfície terrestre. O relevo possui diferentes ordens de grandeza e sua elaboração depende de cada arranjo na relação estrutura/escultura. As formas de relevo são criadas por processos endógenos e por processos exógenos, que correspondem às superfícies de erosão e acumulação. Com isso, uma classificação passa pela concepção de se expressar cartograficamente o relevo baseada na conceituação de morfoestrutura, para as unidades maiores, e de morfoescultura para as formas e tipos de relevo contidos em cada morfoestrutura existente. A fim de aprimorar a taxonomia das formas de relevo e sua representação cartográfica, Ross (1992) propõe uma classificação baseada nas ideias postuladas por Penck (1953), Guerasimov (1980), Mescerjakov (1968), Demek (1967) e Tricart e Cailleux (1965), sistematizando e propondo uma classificação inspirada nesses autores. Tal classificação pretende preencher a lacuna entre as propostas de cartografar as formas de relevo e as taxonomias existentes, tendo em vista as dificuldades entre a representação dos fatos através dos táxons e a realidade do terreno. Segundo Ross (1992:23), “classificação é calcada fundamentalmente no aspecto fisionômico que cada tamanho de forma de relevo apresenta, não interessando a rigidez da extensão em km2, mas sim o significado morfogenético e as influências estruturais e esculturais no modelado”. As interferências urbanas são elementos importantes para a definição dos graus de intervenção e também para a caracterização dos novos processos geomorfológicos gerados a partir das atividades humanas no meio físico. Nesse sentido, a tipologia e o grau de intervenção urbana na morfologia original auxiliam, segundo Lima (1990), na compreensão dos fatores que definem os novos processos morfodinâmicos. As intervenções antrópicas são geradas para se obter superfície planas para posterior incremento topográfico por construções ou edificações. Essas intervenções implicam basicamente em corte e/ou aterros desenvolvidos na morfologia original, provocando o remanejamento dos materiais superficiais. Para Douglas (1983), novas formas de relevo são criadas em áreas urbanas através da acumulação de detritos urbanos ou pela extração de materiais e são denominadas de formas de relevo por acumulação ou formas de relevo por remoção, respectivamente. Algumas atividades envolvem os processos de extração e de acumulação simultaneamente, ou ainda, de extração em um determinado lugar e deposição em outro. A partir dos trabalhos de Ross (1992), Douglas (1983), Lima (1990) e Fujimoto (2001), as formas de processos atuais podem ser classificadas em formas criadas ou

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construídas e formas induzidas pela atividade humana. As formas criadas ou construídas podem ser formadas por processos de retirada e/ou acumulação de material, e as formas induzidas podem ser formadas por processos de saída de material ou por processos de deposição de material. Na concepção de Peloggia (2005), a ocupação urbana e a expansão periférica introduzem elementos perturbadores na topografia, decorrentes da apropriação indevida desse “novo ambiente”, o qual sofre transformações diante de sua originalidade. As intervenções humanas sobre o ambiente natural, potencializadas pela técnica, deixam registros na paisagem evidenciando a maneira pela qual as sociedades vêm, ao longo da sua evolução, apropriando-se da natureza. Desta maneira, o ambiente transformado pela ação humana aliada à técnica produz alterações distintas daquelas de origem natural, indicando a capacidade humana de criar morfologias artificiais em curtos períodos de tempo, nem sempre com uma adequada compreensão da sustentabilidade dessas construções por não tomar em consideração os fatores geomorfológicos ou ambientais que podem comprometer a segurança e a qualidade das construções urbanas. As novas morfologias nos levam a refletir sobre a inserção de elementos no ambiente. Estas têm origem tecnogênica e, em tempo próprio, transfiguram a paisagem e remodelam o relevo. Desta maneira, a partir da transfiguração constante dos objetos reais e concretos, o meio natural transformado se apresenta como forma antroponatural, que, conforme Rodriguez et al (2007), consiste em um sistema territorial composto por elementos naturais e antropotecnogênicos condicionados socialmente que modificam e transformam as propriedades das paisagens naturais originais. As intervenções promovem alterações geomorfológicas, devendo a ação antrópica ser percebida como um conjugado de modalidades de intervenções. Fujimoto (2005:78) afirma que “a modificação do relevo promove a criação, indução, intensificação ou modificação dos processos geomorfológicos”. Desta maneira, é presumível delinear tipologias e os estágios de alterações de algumas atividades antrópicas, as quais geram novos padrões de comportamento morfodinâmico. Fujimoto (2005) descreve: a eliminação da cobertura vegetal e as modificações através de cortes e aterros elaborados para a execução de arruamentos e moradias, os quais ao serem construídos cortam e direcionam os cursos d’água gerando padrões de drenagem não existentes; a impermeabilização altera o fluxo da água, tanto em superfície quanto em profundidade; as canalizações de águas pluviais existentes nas moradias acabam por mudar a direção do fluxo natural das águas das chuvas ou das águas servidas; os aterros recobrem a vegetação original e os materiais de cobertura superficial de formação natural, criando áreas de

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descontinuidades entre materiais heterogêneos, além de modificar a declividade da superfície original. Dessa maneira, a interpretação geomorfológica do espaço urbano não se limita a entender e dimensionar intervenções urbanas, no que se referem aos processos, materiais e formas, mas também em reconhecer várias modalidades de intervenção urbana e situações de instabilidade a elas associadas, assim, ao dimensionar as intervenções morfológicas urbanas abre-se a possibilidade de classificá-las em categorias de intervenção para melhor apreendê-las (RODRIGUES, 2004). As sociedades humanas enquanto agentes transformadores do ambiente remontam à sua própria existência. As intervenções humanas sobre este meio, potencializadas pelo avanço técnico-científico, deixam registros na paisagem evidenciando a maneira pela qual o homem vem, ao longo da sua evolução, apropriando-se da natureza. Desta maneira, o ambiente transformado pela ação humana aliada à técnica produz alterações distintas daquelas de origem natural, evidenciando a capacidade humana de criar morfologias artificiais em um curto período de tempo. Para melhor entender e dimensionar as intervenções urbanas, existe uma classificação de categoria de intervenção, chamada “primeiro grupo de intervenções”, que são intervenções morfológicas ou intervenções de primeira ordem, das quais a urbanização e a retirada da cobertura original são algumas das principais. Destacam-se ainda como intervenções de primeira ordem a mineração, as intervenções lineares de sistema viário ou as intervenções por uso agrícola. De acordo com Rodrigues (2005), a categoria de intervenções urbanas de primeira ordem pode ser detalhada por padrão de arruamento, por densidade de edificações, densidade de lotes ou por fases de consolidação urbana. Pode ser ainda mais detalhada de acordo com a extensão, profundidade, densidade dessas novas formas ou pelo volume de remanejamento ou substituição de materiais superficiais originais (RODRIGUES, 2005, p. 103). Ainda conforme Rodrigues (2005), além do tratamento por categoria de intervenções é necessária uma abordagem histórica dos processos naturais e das formas dessas intervenções, que não se limitam ao “antes ou depois”, mas também atingem o “durante”. Igualmente, a abordagem histórica irá favorecer o estudo através da temporalidade das intervenções ou temporalidade das perturbações, podendo ser classificadas estas temporalidades em períodos de pré-perturbação, perturbação ativa e pós-perturbação. Desta forma, Moura (2011) considera que os condicionantes antrópicos devem ser incluídos dentro dos sistemas naturais, devendo ser analisados a partir

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da apreensão daquilo que se solidifica na paisagem, com efeito, a cobertura vegetal, os usos agrícolas, as edificações, represas, aterros, sendo necessário também “considerar que as expressões concretas na paisagem são dinamizadas por forças processuais que estão inseridas na causalidade socioeconômica” (Moura, 2011, p. 180). Análise das Mudanças na Cobertura Vegetal e no Uso da Terra As sociedades, movida por interesses e necessidades, muitas vezes alteram significativamente o equilíbrio do sistema natural modificando a conformação do ambiente onde vivem. Dessa maneira, a história do desenvolvimento humano produziu um espaço diferenciado a partir das relações conflitantes entre sociedade e natureza. O resultado dessa relação é o espaço geográfico, ou seja, o meio natural modificado, alterado e transformado pela ação antrópica. Para Santos (1985, p. 49), “o espaço constitui uma realidade objetiva, um produto social em permanente processo de transformação”. O autor coloca que o espaço impõe sua própria realidade e, para isso, é preciso estudar a relação deste com a sociedade, pois através dessa relação é possível identificar-se os processos que permitem compreender a forma, a função e a estrutura e, a partir destas, a compreensão da produção do espaço urbano. Sempre que a sociedade sofre mudanças nas formas ou nos objetos geográficos assume novas funções, criando uma nova organização espacial (Santos, 1985). Esta nova organização espacial se modifica constantemente no espaço refletindo uma nova realidade, formando um conjunto de novos elementos e formas (reais e concretos), que, num dado momento, traduz as heranças que representam as sucessivas relações entre a sociedade e a natureza sobre a superfície. É a materialização do espaço geográfico em diferentes tempos, em sendo nas cidades, que as alterações e modificações se apresentam de maneira mais visível. A dinâmica social deve ser analisada a partir do processo de ocupação e da dinâmica populacional; da caracterização socioeconômica e dos aspectos institucionais, além de um mapeamento de cobertura vegetal e uso da terra. Os problemas ambientais surgem a partir das formas de apropriação que a sociedade estabelece com a natureza. Para tanto, os aspectos sociais, econômicos e institucionais são variáveis fundamentais no estudo ambiental, pois possibilitam uma análise de quem produz e como se produz o espaço geográfico e como, neste contexto, surgem os problemas ambientais. O estudo sobre o processo de ocupação e da dinâmica populacional deve apreender os fatores que proporcionam o crescimento e o desenvolvimento da ocupação ao longo de sua história. A análise deve tratar dos fatores sociais,

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econômicos e populacionais que atuaram sobre a área de estudo, sua região e demais regiões em cada período da sua história, em particular no momento em que o processo de ocupação adquire um ritmo mais acelerado. Nesta análise, destacam-se as funções econômicas e as mudanças no uso da terra correlacionando-as com as alterações na estrutura social e econômica da região. A análise da evolução da cobertura vegetal e uso da terra permitem avaliar as transformações ocorridas no espaço urbano ou rural, a partir de uma análise do modo como a sociedade se articulou com a natureza, mediante as determinações da sociedade e das imposições do quadro natural. Os registros históricos que revelam a evolução da cobertura vegetal e uso da terra são uma expressão das relações socioeconômicas do território, pois revelam a apropriação da natureza pela sociedade e suas alterações, podendo indicar um retrato das condições e da qualidade ambiental. A análise dos aspectos institucionais compreende uma avaliação da legislação territorial e ambiental na esfera municipal, estadual e federal na organização espacial. A legislação brasileira dispõe sobre o uso, ocupação e a utilização do território, determinando normas, limites e penalidades para proporcionar uma adequada utilização do território por todos os cidadãos brasileiros. A análise da regulamentação jurídica deve procurar avaliar a participação político-institucional na produção do espaço geográfico face à relevância desse fator na organização espacial. Neste sentido, deve ser estabelecida uma relação entre a legislação, enquanto instrumento governamental de ordenamento do uso da terra, em contraposição à realidade da dinâmica do meio físico e da dinâmica da sociedade. A incapacidade das instituições brasileiras em garantir que as leis ambientais sejam cumpridas tem sido sempre uma das questões centrais neste tema, como pode ser constatado no aumento das ocupações irregulares e no desmatamento de áreas protegidas. Esse cenário de impunidade reflete problemas mais amplos na sociedade. Perspectivas na Análise das Mudanças do Uso da Terra De acordo com Lambin e Meyfroidt (2013), o século 21 será caracterizado pela aceleração simultânea de mudanças de alcance global: aumento na informação e na comunicação; investimento em larga escala; migração rural para urbana e outras mudanças ambientais. Ao mesmo tempo, investimentos internacionais em serviços relacionados aos ecossistemas e à produção imobiliária urbana estão mudando as características do uso da terra. De acordo com Seto e Reenberg (2013), existem três tendências atuais que estão causando mudanças no uso da terra ao nível local e

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global: a urbanização, o crescimento integrado da economia e o surgimento de novos agentes no uso da terra. As mudanças a partir das tendências atuais já podem ser observadas com o surgimento de vários conflitos em função do crescimento populacional e da pressão sobre o uso e a degradação da terra. Algumas demandas por produtos da terra, bem como a conservação da natureza criam aumento da competição pela terra. A competição pela terra tem muitas causas que ocorrem sob diferentes formas e pode ter significativas implicações nos ecossistemas e no bem-estar da sociedade. De acordo com Haberl et al (2013), a competição é definida num contexto entre diferentes propósitos ou funções, no qual uma porção de terra ou recurso é usada ou poderia ser usada. Essa competição envolve resultados de cobertura da terra e serviços provenientes do uso da terra, bem como o uso de produtos produzidos pela terra. Essa perspectiva vai além das abordagens típicas de mudanças de uso da terra, a principal análise inserida na competição se refere às relações entre vários usos da terra. A competição pelo uso da terra é o maior fenômeno que comanda as mudanças na ocupação do solo. Os estudos sobre essa temática devem permitir construir um futuro sustentável entre os sistemas de uso da terra e a produção em relação aos desafios da diminuição da biodiversidade e das mudanças climáticas, bem como alimentação e recursos energéticos. Nesse sentido, os estudos devem incluir na análise o mapeamento dos padrões de vários tipos de competição; a identificação dos autores envolvidos na competição; o reconhecimento das regiões afetadas ou com tendências à intensa competição; a análise da dinâmica espacial, social e ambiental que envolve as competições; o aprimoramento da habilidade de prever tipos futuros de competição e o local onde ocorrerá e promover a criação de políticas que diminua ou elimine a competição. Em geral, mapear a competição do uso do solo requer dois tipos de dados de escala detalhada: parcelas ou unidades administrativas. Primeiro, são necessárias informações sobre o uso da terra (extensão, tipo e intensidade do uso, etc.). Neste contexto, informações sobre todos os usos da terra são importantes, incluindo as áreas protegidas ou territórios indígenas, etc. Em segundo lugar, informações sobre as características do sistema terra são requeridas em termos de recursos e atributos socioeconômicos do local e da região que influencia o tipo e a intensidade da competição. Além disso, caso os impactos sejam avaliados, informações sobre o ambiente natural e os resultados das intervenções antrópicas são necessárias. De acordo com os principais tipos de competição, Haberl et al (2013) identificam uma série de impactos classificados em diretos e indiretos. Os impactos diretos se referem às consequências da competição ao nível local e, os indiretos, são

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impactos com maior abrangência espacial (regional, nacional, etc.) e temporal. Na competição entre o uso do solo agrícola e urbano os principais impactos diretos ao nível ambiental e socioeconômico são: aumento da superfície impermeável e do escoamento superficial, escasso potencial da terra devido ao abandono dos residentes rurais, redução do escoamento agrícola, perda de atributos ecossistêmicos, menor versatilidade no uso da terra, perda do estilo de vida rural e cultural, aumento da renda para proprietários rurais que vendem as terras, entre outros. Os impactos ambientais e socioeconômicos indiretos se referem ao aumento das temperaturas quanto ao nível de microclima e das preocupações sobre segurança alimentar, respectivamente. De acordo com Moran (2010), os inúmeros estudos de caso sobre as mudanças no uso da terra indicam que o processo é dominado por vários agentes, diversos padrões de usos da terra, múltiplas respostas sociais, climáticas e ecológicas, em várias escalas têmporo-espaciais e com variadas consequências no espaço geográfico e nas relações sociais e com a natureza. Neste sentido, existem elementos naturais ou físicos e sociais que influenciam as mudanças no uso da terra. O Projeto Land Use and Land Cover Change (LUCC), relacionado ao International Geosphere Biosphere Programme (IGBP) e ao International Human Dimensions Programme on Global Environmental Change (IHDP), propõe uma diferenciação entre dois conceitos fundamentais para a compreensão da dinâmica das mudanças no uso da terra, que são: land use (uso da terra) e land cover (cobertura natural). O land use refere-se ao propósito pelo qual o homem explora a land cover que, por sua vez, corresponde aos atributos da superfície da terra e da subsuperfície, incluindo biota, solo, topografia, superfície, água subterrânea e estruturas humanas (principalmente construídas), conforme Gutman et al (2004) e Lambin et al (2006). As atividades humanas ou as causas que ocasionam a exploração do land cover envolvem ações imediatas e subjacentes. As ações imediatas ou diretas envolvem uma ação física no land cover e são limitadas por conjunto de atividades como a agricultura, silvicultura e infraestrutura urbana (land use). Geralmente, referem-se a forças motrizes diretas de mudanças nos ecossistemas que operam na escala local. As ações subjacentes ou indiretas são forças fundamentais que estão na base das ações diretas e que operam de maneira difusa (à distância), muitas vezes alterando uma ou mais causas diretas. As causas subjacentes são formadas por um complexo conjunto de variáveis que se encontram sustentadas nas relações humanas e naturais e que podem originar ações no âmbito regional e nacional e, muitas vezes, globais com interações complexas entre os níveis de organização. Os fatores diretos e subjacentes que causam as mudanças no uso da terra podem atuar em diferentes níveis de escala de influência ou velocidades (lentos,

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gradativos e rápidos). Os fatores que causam são variados e dependentes e podem desencadear ou amortecer mudanças no land use/land cover. Algumas mudanças alteram completamente a configuração do land cover, pois ultrapassam as condições de manutenção ou resiliência. No entanto, nem todas as variáveis são importantes para explicar as mudanças que ocorrem no land cover/land use. Nesse sentido, a partir de vários estudos de caso, os autores encontraram uma combinação de causas de alto nível de fundamentação, que são: pressão (população que utiliza os recursos, disponibilidade de mão de obra, quantidade e suscetibilidade dos recursos), oportunidades (preço de mercado, custo do produto, custo do transporte e tecnologia), políticas (subsídios, impostos, direito de propriedade, infraestrutura e governança), vulnerabilidade (exposição à perturbação externa, sensibilidade e capacidade de enfrentamento) e organização social (acesso a recursos, distribuição de renda, recursos domésticos e interação urbano-rural), de acordo com Geist et al (2006). Estabelecer o caminho ou a trajetória das relações entre os fatores que causam as mudanças no land cover/land use é a proposta de vários estudos que procuram compreender a dinâmica das mudanças da cobertura vegetal e do uso da terra e suas consequências em diferentes problemas ambientais. Para tanto, é necessário identificar os fatores, sua velocidade, sua escala de abrangência e repercussão, o grau de alteração e seu nível de desequilíbrio ou alteração na paisagem. Considerações Finais As reflexões apresentadas resultam de experiências em estudos realizados nos últimos anos em diferentes ambientes, principalmente urbanos, e que tiveram como resultado final um documento cartográfico de síntese. Em geral, são mapas que procuram expressar os dados ambientais adquiridos e produzidos ao longo do trabalho, além das modificações ocorridas no espaço e as respostas deste espaço às intervenções sofridas. Por isso, podem conter uma classificação quanto sua maior ou menor potencialidade, suscetibilidade ou vulnerabilidade aos processos de natureza erosiva, de movimentos de massa, inundações, assoreamentos, entre outros. Esses mapas de síntese podem ser elaborados a partir dos elementos identificados e delimitados nos mapas geomorfológicos e de cobertura vegetal e uso da terra e de outros dados ambientais adquiridos, tais como a qualidade das águas superficiais e ocupações que transgridem a legislação brasileira. O mapeamento geomorfológico constituiu-se em um instrumento de análise da pesquisa com informações morfológicas, morfométricas, morfogenéticas, morfodinâmicas e morfocronológica. No primeiro momento de sua elaboração,

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identifica-se a área de interesse e seu entorno de forma dinâmica, ou seja, contextualizada no âmbito regional. Em seguida, deve ser realizada a etapa da compartimentação espacial (táxons) tanto quanto possível do todo em partes, ligada ao plano horizontal, através das propriedades das partes e da articulação entre elas. Posteriormente, uma análise pormenorizada da estrutura vertical através da qual se procura compreender as inter-relações que definem as articulações das propriedades das partes entre si, incluindo-se as alterações humanas. As inclusões das formas de processos atuais classificados em criados e induzidos pelas atividades humanas permitem a identificação do grau de intervenção e de sua tipologia. Para tanto, é necessário a recuperação de informações sobre as características naturais das formas, processos e materiais para correlacionálas às informações obtidas sobre as interferências humanas diretas e derivadas, incluindo os materiais tecnogênicos. Também é fundamental a utilização da cartografia temática, de fotografias e de documentos antigos; a análise do material de cobertura superficial, bem como as entrevistas com os moradores locais para apreender informações sobre processos, formas e materiais naturais e derivados do ambiente modificado, bem como as formas de governança que organizam a população humana. Referências AB'SABER, A.N. Um conceito de Geomorfologia a Serviço das Pesquisas sobre o Quaternário. Geomorfologia, 18, São Paulo: IGEOG-USP, 1969 ANGEL, S; PARENT, J; CIVCO, D. L. BLEI, A. e POTERE, D. The Dimensions of Global Urban Expansion: Estimates and Projections for all Countries, 2000–2050. Progress in Planning 75, 2011, 53-107p. BARTALANFFY, l.V. Teoria Geral dos Sistemas. Petrópolis: Vozes, 1973, 351p. BERTRAND, G. Paysage et Géographie Physique Globale: esquisse méthodologique. Rev. Géogr. Dês Pynrenées et Du Sud-ouest (Tolouse), v.39, n.3, 1968, 249-272p. BLACKBURN, S. & MARQUES, C. Mega-urbanisation on the Coast: Global Context and Key trnds in the Twenty-first Century. In: PELLING, M. and BLACKBURN, S. Megacities and The Coast. Routledge, Taylor & Francis Group, London and New York, 2013, 1-21p. CUNHA, S.B. & GUERRA, J.A.T. Degradação Ambiental. In: GUERRA, J.A.T & CUNHA, S.B. (org.) Geomorfologia e Meio Ambiente. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1996, 337379p. FLORENZANO, T. G. Cartografia. In: FLORENZANO, T. (org.). Geomorfologia: Conceitos e Tecnologias Atuais. São Paulo. Oficina de Textos, 2008, 105-128p. FRAGA, J. M. L. Características da Ocupação na Área de Preservação Permanente-APP do Arroio Pitangueiras no Município de Santo Antônio da Patrulha - RS. Dissertação de Mestrado em Geografia. Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2005, 193p.

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Capítulo 2 Impactos Ambientais: o caso do setor norte do litoral gaúcho Aline Vicente Kunst Nina Simone Vilaverde Moura Introdução As áreas litorâneas representam um grande atrativo populacional. No Brasil, 26% da população vivem em municípios litorâneos, sendo que 50,7 milhões de habitantes ocupam 463 dos 5.565 municípios brasileiros. Além disso, o litoral brasileiro abriga grandes metrópoles e importantes capitais do Brasil. A densidade de ocupação dessas áreas traz consigo uma diversidade de usos, esses podem ser conflitantes entre si e com as formas de ocupação que a população estabelece. As consequências desses conflitos têm gerado graves impactos ambientais e a desestruturação das comunidades tradicionais. No Setor Norte do Litoral do Rio Grande do Sul também se percebe a tendência de maior ocupação, maior diversidade de usos e valorização das áreas costeiras, principalmente visando uma segunda residência para o período de veraneio. Segundo Moraes (2007: 21), o litoral particulariza-se, modernamente, “por uma apropriação cultural que o identifica como um espaço de lazer, por excelência”, sendo agregados valores conforme o tipo de atividades que este espaço proporciona. O Setor Norte do Litoral Gaúcho localiza-se na porção leste do Rio Grande do Sul (Figura 1), é composto por 10 municípios: Arroio do Sal, Balneário Pinhal, Capão da Canoa, Cidreira, Imbé, Osório, Terra de Areia, Torres, Tramandaí, e Xangri-Lá. Esses municípios apresentam processo de conurbação e fazem parte da Aglomeração Urbana do Litoral Norte. Possuem população urbana com densidade demográfica significativa, além da intensa articulação econômica e grande fluxo populacional (STROHAECKER, 2002). O acesso à região é através do transporte rodoviário, com destaque para a BR101, que atravessa o país de norte a sul e, a RS-389, conhecida como Estrada do Mar, que faz a ligação entre os municípios de Osório a Torres. A Rota do Sol (BR-453) é outro acesso importante para a região, liga o litoral aos municípios do Planalto Meridional do Rio Grande do Sul, no norte do estado. A construção desta rodovia facilitou a chegada de moradores da região norte e nordeste do estado ao litoral, sem a necessidade de percorrer a Freeway (BR-290), que liga Porto Alegre (a capital do estado) ao litoral. O Setor Norte do Litoral Gaúcho é, atualmente, uma das regiões do

Dinâmicas, conflitos e proposições 32


estado que apresenta grande crescimento urbano associado à grande prosperidade econômica.

Figura 1: Localização dos municípios do Setor Norte do Litoral Gaúcho. Fonte: Elaboração de Carina Petch e Aline Vicente Kunst.

O desenvolvimento de estudos que possam fornecer maior conhecimento da região é de extrema importância, em função do processo recente de urbanização sobre diferentes ambientes, como: planícies arenosas, campos de dunas móveis, banhados, vegetação nativa e o rosário de lagoas costeiras. Além disso, os recursos hídricos e ambientais da região são preciosos para o conhecimento das dinâmicas ambientais pretéritas e futuras. Compreender as dinâmicas ambientais das áreas de planícies marinhas e lagunares, os diferentes tipos de ocupação e uso em cada compartimento, bem como sua evolução nas últimas décadas, possibilita a compreensão dos impactos ambientais que atingem o Setor Norte do Litoral Gaúcho.

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A compartimentação do Setor Norte do Litoral Gaúcho em Planície Marinha e Planície Lagunar A Planície Costeira do Rio Grande do Sul (PCRS) apresenta uma configuração plana em função do sistema múltiplo complexo Laguna-Barreira, com alterações no nível do mar (avanços e regressões), deixando marcas na configuração do relevo. Estende-se desde o município de Torres, foz do Rio Mampituba, ao norte, até o município de Santa Vitória do Palmar, ao sul, na desembocadura do Arroio Chuí. Com uma orientação de NE-SW, a PCRS é a mais ampla do país, com aproximadamente 620 km de extensão. Os ventos têm importante papel na dinâmica de transporte dos sedimentos que compõem a PCRS, onde a direção predominante dos ventos é do quadrante NE, chamado localmente de Nordestão, no período de inverno atua também o vento de quadrante SW, conhecido como Minuano. Esses ventos são de alta energia e responsáveis pelo constante transporte de sedimentos, ou seja, das areias depositadas nas praias, essas podem ficar acumuladas no formato de dunas que são remobilizadas pela ação dos ventos. É importante destacar que além das dunas, as lagoas costeiras têm orientação concordante com a direção dominante dos ventos. Os impactos ambientais no Setor Norte do Litoral Gaúcho foram analisados considerando a classificação geomorfológica em dois compartimentos: a planície marinha e a planície lagunar. Na Figura 2 pode ser observada a disposição de diferentes depósitos de origem marinha e de origem lagunar.

Figura 2: Perfil geológico transversal da Planície Costeira recente do Rio Grande do Sul. Fonte: FARION, 2006 adaptado de GIOVANNINI, 1995, p.12.

A planície marinha é submetida à ação de fatores marinhos e eólicos. É uma área onde predominam os terraços marinhos e os modelados eólicos. Possui

Dinâmicas, conflitos e proposições 34


alternância de formas topográficas desde a faixa da praia até o limite da planície lagunar. A descrição da planície marinha compreende locais com pequenas elevações (até 5 metros de altura) constituídos por dunas frontais e dunas livres e, cristas de cordões litorâneos regressivos. Além de depressões interdunas e cavas de cordões litorâneos regressivos e, finalmente, locais elevados de depósitos eólicos subatuais (paleodunas), com altitudes de até 10,0 metros (JUNGBLUT, 1995). A rede de drenagem da planície marinha é escassa com pequenas lagoas em depressões que ficam permanente ou periodicamente alagadas, pois o nível do lençol freático é alto. Nestas áreas permanentemente inundadas formam-se banhados, que em períodos de maior pluviosidade, transbordam e drenam para outras áreas, ou mesmo para o oceano, através dos sangradouros (pequenos cursos de água que drenam a região de intercordões litorâneos em direção ao oceano). Modificações no sistema praial podem deslocar os sangradouros e causar erosão das dunas frontais, ou mesmo, gerar maior aporte de água e sedimentos nos sangradouros. Ao longo de toda a planície marinha são encontradas áreas úmidas e esses ambientes são ocupados por vegetações que se adaptam à salinidade e aos ventos que varrem a região. Observa-se a presença de uma comunidade herbácea e associações de plantas adaptadas ao ambiente. E ao longo da linha de praia existe uma vegetação rala, com poucas espécies halófilas (exemplo: a capotiragua). Em função das diferentes feições geomorfológicas encontradas na planície marinha, observamos, ainda, xerófilas associadas a ambientes secos (exemplos: capim-das-dunas e margarida-das-dunas), em ambientes mais úmidos a vegetação higrófila (exemplo: capim-sepé) e em ambientes alagados a limnófila (exemplo: aguapé) (TEIXEIRA, 1995). A planície marinha é constituída de solos arenosos e inconsolidados, com grande permeabilidade e lençol freático subaflorante. Como os cursos de água são recarregados diretamente pela infiltração, pode aumentar a velocidade que os poluentes atingem as águas litorâneas. As areias marinhas apresentam-se saturadas em água e compactadas, gerando alta resistência, fator que levou à grande urbanização sobre esses terrenos sedimentares. Somadas às condições de solo favoráveis à ocupação, à proximidade do mar e à beleza cênica que a vista para o mar proporcionam, tornam a área ainda mais atrativa. Apesar das áreas de planície marinha apresentarem-se mais urbanizadas e verticalizadas, ainda estão presentes, em áreas não ocupadas, as areias eólicas. Estas são quartzosas, finas, inconsolidadas e muito permeáveis, apresentam pouca compactação e geram terrenos inconsolidados que dificultam a construção de grandes estruturas (JUNGBLUT, 1995). A planície lagunar, localizada entre a planície marinha e a escarpa do Planalto Meridional, é uma área homogênea, plana, sem

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dissecações no relevo, onde predominam os processos de acumulação de sedimentos. A rede hidrográfica da planície lagunar é constituída por um grande número de lagoas com variados tamanhos e profundidades. Muitas dessas lagoas são interligadas por pequenos cursos de água. É comum, na planície lagunar, a presença de banhados. Esses banhados são áreas permanentemente inundadas por apresentarem declividades muito fracas (02º) e cotas altimétricas pouco mais altas do que as das lagoas vizinhas. Observa-se também a presença de uma série de antigos canais meandrantes já colmatados em meio aos quais aparecem terrenos pouco mais altos, com a forma de faixas e largura variável. Em alguns casos, as antigas matas que recobriam esses terraços ainda resistem às ações antrópicas (JUNGBLUT, 1995). A planície lagunar era parcialmente alagada até começarem os processos de drenagem para o aproveitamento agrícola. Atualmente, essas áreas sofrem com alagamentos, no período de inverno, entre junho e outubro, quando ocorre o maior período de chuvas na face leste da escarpa do planalto, a qual drena para o litoral. Assim, as águas dos rios Três Forquilhas e Maquiné elevam o nível da lagoa dos Quadros. A drenagem destas águas ocorre lentamente, por meio de canais, até a lagoa do Passo, seguindo pelo rio Tramandaí, até chegar ao Oceano Atlântico (TEIXEIRA, 1995). A vegetação da planície lagunar apresenta uma variedade maior de espécies em comparação com a planície marinha, pois, apresentam ambientes menos hostis para o desenvolvimento da vegetação. Podem-se observar espécies adaptadas aos ambientes secos e encharcados, além de espécies arbustivas, como o Sarandi, e espécies arbóreas, como as figueiras, sobre os cordões arenosos há a formação de matas ralas. Os sedimentos encontrados na planície lagunar são provenientes do assoreamento das lagoas costeiras. Estas são preenchidas por sedimentos muito finos como silte e argila, além de areia muito fina trazida em suspensão pelas águas continentais. Ocorre presença de turfa, em função da grande quantidade de água, que são formadas por húmus e celulose parcialmente decomposta da vegetação das margens das lagoas. As áreas de turfas apresentam grande fertilidade e água disponível, elas são muito utilizadas para a agricultura e a pecuária. Atualmente, esse compartimento de relevo recebe significativo número de condomínios horizontais voltados para a ocupação de segunda residência em busca de lazer e recreação. O processo de formação da PCRS deixou uma série de registros na paisagem, um destes foi o rosário de lagoas presente no Setor Norte do Litoral Gaúcho, sendo o ambiente lagunar muito valorizado por empreendimentos imobiliários e de lazer destinados à população de média e alta renda, gerando forte segregação

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socioespacial. As populações de média e alta renda ocupam as áreas junto à orla marítima e às lagoas, restando para a população de baixa renda as áreas impróprias para a ocupação, como os banhados e/ou os locais sem saneamento básico. A Ocupação do Setor Norte do Litoral Gaúcho Um dos fatores que impulsionou o crescimento e a urbanização do Setor do Litoral Gaúcho foi uma série de emancipações ocorridas na região. Até 1965 eram apenas três os municípios na região, esses se desmembraram em novos municípios ao longo das décadas de 1980 e 1990, conforme apresenta a Figura 3. Os processos emancipatórios modificaram a dinâmica demográfica regional e atraíram investimentos públicos e privados, principalmente nas áreas urbanas.

Figura 3: Evolução dos municípios do Litoral Norte do RS. Fonte: Modificado de STROHAECKER et al., 2006.

Os processos de ocupação do litoral e, mais recentemente, de emancipações municipais modificaram o perfil do Setor Norte do Litoral Gaúcho. Inicialmente, os domicílios eram ocupados pela população rural e por uns poucos veranistas e, ao longo do processo de ocupação, ampliou-se a construção de casas de veraneio. A emancipação de Tramandaí, em 1965, marca a procura da região para fins de turismo e lazer sazonal, e este município passa a exercer o papel de “segunda residência”. A ocupação do Setor Norte do Litoral Gaúcho é impulsionada pela tendência de valorização dos espaços litorâneos e dos atrativos ambientais que esses espaços proporcionam. Nas décadas de 1960, 1970 e 1980 observa-se a forte ocupação da orla, principalmente com a construção de casas para fins de segunda residência. Já nas décadas de 1990 e 2000, verificasse a ocupação das áreas de entorno das lagoas e, atualmente, a ampliação da exploração das áreas próximas às lagoas e a substituição

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das edificações de décadas anteriores por modernos edifícios com muitos andares ocupando a orla, principalmente em municípios que exercem centralidade na região. Ao analisar a ocupação do Setor Norte do Litoral Gaúcho é necessário observar as características de sua população. Constata-se um grande crescimento demográfico em quase todos os municípios (Tabela 1).

Municípios

População População Total Urbana (2000) (2000)

Grau de Urbanização (%) 2000

Grau de Urbanização Taxa de (%) Crescimento 2010 População População Demográfico Total Urbana (%) 2000 - 2010 (2010) (2010)

Arroio do Sal

5.240

5.007

95,55

7.740

7.509

97,02

3,92

Balneário Pinhal

7.445

7.114

95,55

10.856

10.743

98,96

3,83

Capão da Canoa

30.383

30.219

99,46

42.040

41.787

99,40

3,26

8.858

8.510

96,07

12.668

12.260

96,82

3,60

Imbé

12.243

11.908

97,26

17.670

17.661

99,95

3,74

Osório

36.084

30.618

84,85

40.906

37.917

92,70

1,26

Terra de Areia

11.453

5.072

44,28

9.878

5.195

52,59

-1,47

Torres

30.877

27.554

89,26

34.656

33.340

96,20

1,16

Tramandaí

30.908

29.541

95,56

41.585

40.577

97,59

2,99

Xangri-Lá

8.208

7.635

93,00

12.434

12.379

99,56

4,23

Cidreira

Rio Grande do 10.181.749 8.312.388 81,64 10.695.532 9.100.291 85,09 Sul Tabela 1: População, Grau de Urbanização e Taxa de Crescimento Demográfico. Fonte: IBGE, Censos Demográficos 2000 e 2010.

0,49

Verifica-se que os municípios que exercem maior centralidade na região, como é o caso de Osório, Capão da Canoa, Tramandaí e Torres, são os que apresentam maior população e significativo grau de urbanização. São municípios de constituição mais antiga e que apresentam economias mais consolidadas, sem depender, essencialmente, da população de veranistas que ocupa a região no período de dezembro a março. Os diferentes usos do Setor Norte do Litoral Gaúcho Considerando a população e as características socioeconômicas dos municípios do Setor Norte do Litoral Gaúcho, identificam-se dois grupos cujo tipo de uso do solo se relaciona com as áreas de planície marinha e lagunar em seus

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territórios. Os municípios com maior centralidade, Capão da Canoa, Osório, Tramandaí e Torres, apresentam o perfil de municípios urbanos com população permanente. Já os municípios de Arroio do Sal, Balneário Pinhal, Cidreira, Imbé e Xangri-Lá são municípios urbanos de segunda residência (FUJIMOTO, et. al., 2005). O município de Terra de Areia, mesmo sendo rural, está incluído na área de estudo, pois apresenta área conurbada com os outros municípios tanta na planície marinha quanto na lagunar (Figura 4). A maior procura para as atividades de turismo e lazer está relacionada aos atrativos naturais da região, seja na busca das áreas junto à orla marítima ou às lagoas. Esta procura faz com que essas áreas sejam mais valorizadas e apresentem maior grau de urbanização, sendo suas atividades econômicas mais voltadas ao comércio e serviços que atendam à população permanente e à população sazonal. Há uma grande pressão populacional, durante o período de veraneio, nas áreas de planície marinha e a planície lagunar. Para atender a essa demanda é necessário que os gestores municipais ampliem as infraestruturas, desta forma os impactos ambientais da ocupação dessas áreas podem ser reduzidos. Na medida do possível, é interessante que os usos do solo sejam diversificados para que a população não necessite de grandes deslocamentos em busca de diferentes nichos de comércio e serviços. Dentro dessa lógica, observa-se o crescimento significativo das estruturas de atendimento aos turistas, como pousadas, hotéis e o mercado de aluguéis, o mesmo ocorre com as estruturas de lazer temporárias, geralmente instaladas ao longo da planície marinha durante a alta temporada e removidas no inverno. No Setor Norte do Litoral Gaúcho há a presença de unidades de conservação que visam à preservação dos diferentes ecossistemas presentes. São ao todo sete unidades de conservação, dessas quatro estão localizadas no município de Torres (duas unidades de conservação são de proteção integral e as outras duas de uso sustentável) (CASTRO & MELLO, 2013).

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Figura 4: Perfil da População Permanente, de Segunda Residência e Rural. Elaborado por Aline Kunst e Carina Petsch, adaptado de FUJIMOTO et. al., 2005.

Ao longo do Setor Norte do Litoral Gaúcho observa-se a expansão dos parques eólicos, essa atividade industrial traz benefícios para a região como a produção de energia limpa e geração de tributos. Aparentemente, não há grandes conflitos entre

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este uso e a população, pois os aerogeradores estão localizados a grandes distâncias das áreas mais urbanizadas. Contudo, as infraestruturas construídas para a instalação e manutenção dos parques eólicos podem alterar, em certa medida, a dinâmica das áreas alagáveis utilizadas para a agricultura e pecuária (KUNST, 2014). As atividades agropecuárias também fazem parte dos diferentes usos do solo presentes no Setor Norte do Litoral Gaúcho. Ao longo da planície lagunar, é praticada, em médias e grandes propriedades, a pecuária bovina extensiva, principalmente no município de Osório. Esta atividade divide espaço com o cultivo de arroz irrigado, também praticado em médias e grandes propriedades, utilizando uma grande quantidade de água e significativo volume de agroquímicos (KUNST, 2014). Outro uso industrial de grande arrecadação para a região, porém de grande preocupação ambiental é o Terminal da Transpetro. O terminal oceânico, localizado próximo à costa do município de Tramandaí, é abastecido por dois sistemas de monoboias instaladas em mar aberto e projetadas para a amarração de navios nas operações de carga e descarga de petróleo e derivados. O petróleo e seus derivados são transportados por oleodutos até o município de Osório. O terminal atende à Refinaria Alberto Pasqualini através do gasoduto Osório-Canoas. Alguns acidentes no processo de transbordo de petróleo já ocorreram, com vazamento de óleo gerando enormes manchas escuras no mar e, algumas vezes, atingindo as praias do município de Tramandaí. Existem grandes carências de infraestruturas no Setor Norte do Litoral Gaúcho, apesar dos avanços observados nos últimos anos, ainda faltam maiores investimentos em abastecimento de água; destinação do esgoto cloacal; destinação dos resíduos sólidos; pavimentação de ruas e avenidas com adequada rede de coleta das águas pluviais; além de equipamentos e recursos humanos nos setores de saúde e educação. Mais investimentos são necessários para atender à população permanente e sazonal, favorecendo o aumento da atratividade turística da região. Os impactos ambientais do Setor Norte do Litoral Gaúcho Para analisar os diferentes impactos ambientais presentes no Setor Norte do Litoral Gaúcho, levou-se em consideração a compartimentação da região em planície marinha e planície lagunar. No entanto, é importante destacar que alguns impactos ambientais atingem os dois compartimentos, porém de maneira distinta, tanto no que se refere à temporalidade quanto à intensidade. Planície Marinha

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1. Crescente verticalização As áreas próximas da orla são as mais densamente ocupadas, principalmente no que se refere à substituição de antigas casas de veraneio por modernos edifícios com muitos pavimentos (Foto 1). Há uma alta taxa de ocupação dos terrenos e, consequentemente, significativa impermeabilização dos solos através do uso de revestimentos impermeáveis, dificultando a infiltração das águas pluviais. Essa situação proporciona, em períodos de chuvas, o acúmulo de água nas vias, gerando problemas no trânsito e na circulação de pedestres. Contudo, a verticalização, além de modificar a paisagem, interfere no processo de transporte sedimentar (eólico e marinho), provoca desequilíbrio no balanço sedimentar e instabilidade na linha de costa.

Foto 1: Verticalização da orla no município de Capão da Canoa. Fonte: Aline Kunst, em 29/06/2014.

2. Alteração do ambiente próximo à linha de costa Em decorrência da ocupação da planície marinha, muitas modificações ambientais foram realizadas, entre elas, a retirada das dunas. Todas as modificações repercutem na morfodinâmica praial da região, com menor ou maior intensidade. A retirada das dunas frontais para a construção de calçadões (Foto 2), ou para a construção de casas e edifícios contribui para aumentar a erosão das praias. A intensificação dos efeitos das marés meteorológicas (ressacas de inverno) na praia,

Dinâmicas, conflitos e proposições 42


no pós-praia, nas áreas de calçadão e nas primeiras vias paralelas à linha de praia, também é uma consequência da retirada das dunas, causando prejuízos à área urbanizada.

Foto 2: Calçadão sobre as dunas frontais no município de Cidreira. Fonte: Aline Kunst, em 28/06/2014.

3. Contaminação das águas por efluentes líquidos A questão da presença de rede coletora de esgoto cloacal e estações de tratamento de esgoto ainda é bastante precária no Setor Norte do Litoral Gaúcho. Grande parte dos domicílios utiliza fossas sépticas ou rudimentares, que podem extravasar e causar grandes prejuízos aos corpos hídricos e aos lençóis freáticos aflorantes da região. O problema da poluição das águas subterrâneas é agravado pela má construção e falta de manutenção das fossas sépticas, além da abertura indiscriminada de poços artesianos para abastecimento de água na região. Essas construções podem causar o rebaixamento do lençol freático e o aumento da contaminação das águas, pois, muitas vezes, os poços estão localizados muito

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próximos das fossas sépticas. A saúde da população e a balneabilidade das praias e lagoas da região podem ser comprometidas por essas práticas irregulares. 4. Destinação inadequada dos resíduos sólidos A destinação dos resíduos sólidos preocupa as prefeituras do Setor Norte do Litoral Gaúcho. Os municípios possuem sistema de coleta de lixo, porém grande parte deles não conseguiu implantar de forma eficiente a coleta seletiva. Além disso, faltam locais adequados para a construção de aterros sanitários. A construção civil é uma atividade econômica de grande importância na região, contudo gera muitos resíduos, e esses, na maioria das vezes, não recebem o tratamento correto. Parte do resíduo produzido é utilizada para aterrar banhados, comprometendo a função ecológica dessas áreas. Essa prática causa mudanças na dinâmica de reabastecimento do lençol freático e provoca a contaminação das águas. 5. Problemas com a balneabilidade O maior atrativo da planície marinha, fortemente ocupada por veranistas todos os anos, é o mar e as possibilidades de lazer e esporte que esse contato pode proporcionar. Para que ocorra contato direto com as águas do mar, é necessário que as praias tenham boas condições de balneabilidade. A balneabilidade é mensurada através da quantidade de coliformes fecais presentes nas amostras de água coletadas. Segundo o percentual de bactérias encontradas, a água é classificada como própria ou imprópria para banho de acordo com Fundação Estadual de Proteção Ambiental Henrique Luiz Roessler (FEPAM). Ao se analisar os dados disponibilizados pela FEPAM, observa-se que quase todos os pontos da planície marinha onde a água foi coletada e analisada o resultado foi positivo, ou seja, são águas próprias para banho. O único ponto que apresentou águas impróprias para banho foi em Torres, a 200 metros da foz do rio Mampituba. Torres é um município de população urbana permanente, com um total de 34.656 habitantes, em 2010, segundo o IBGE. Essa característica, somada à falta de tratamento adequado dos efluentes líquidos produzidos pela população, compromete a qualidade da água. Planície Lagunar A planície lagunar possui ocupação mais recente, pois permanecia, até meados da década de 1990, com suas características naturais mais preservadas. Contudo, apresenta-se na atualidade com um número maior de tipos de usos, bem como um maior número de habitantes sazonais e permanentes.

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6. A urbanização e as alterações no ambiente O ambiente é fortemente alterado com o processo de urbanização. Na área que compreende a planície lagunar, grande parte da urbanização visa ao atendimento de veranistas de alto poder aquisitivo, que utilizarão as residências construídas apenas em curtos períodos do ano, para fins de lazer. A urbanização de mais áreas da planície lagunar modifica o padrão da vegetação, o regime das águas, a dinâmica dos ventos e a fauna ali existente. Além disso, essa forma de ocupação traz prejuízos sociais, pois faz com que o preço da terra aumente de forma considerável no entorno dos novos empreendimentos e na região como um todo, expulsando, consequentemente, o pequeno produtor rural que não consegue arcar com os custos da terra. Somada a essa expulsão, ocorre a privação do acesso de grande parcela da população às lagoas. Ocorre a privatização do bem público; e os empreendimentos de alto padrão têm seu valor aumentado em função dos atrativos naturais – que são um bem público. Para que a ocupação seja realizada, são inseridos novos materiais, no frágil ecossistema, para a construção e a melhoria das vias de acesso. Geralmente, a construção das vias de acesso responde pela redução da vegetação nativa, seja ela composta de espécies herbáceas, arbustivas ou arbóreas, reduzindo a biota do solo. Observa-se a mortalidade de espécies animais pela perda de habitat, e pela geração de barreiras para fauna, o que reduz ainda mais a variedade de espécies. 7. Conflitos entre a agricultura e a urbanização A planície lagunar do Setor Norte do Litoral Gaúcho apresenta grande potencial agrícola: são áreas agricultáveis, planas, com grande disponibilidade de água e solos pouco degradados. E, são essas áreas agricultáveis, tidas como grande atrativo natural em função de suas lagoas com água de boa qualidade, que passam a ser exploradas pela urbanização. Além do aumento do preço da terra que a urbanização gera, a construção de vias para atender aos novos empreendimentos imobiliários modifica a dinâmica hídrica da planície lagunar. As vias construídas acabam, também, por prejudicar a irrigação das lavouras existentes na região. De um lado, têm-se a facilidade ao acesso e ao escoamento de bens e mercadorias; de outro, dependendo das técnicas utilizadas, a construção de vias pode formar diques e gerar grandes impactos ao ambiente. Muitas terras de grande potencial agrícola ou para criação de gado são destinadas a empreendimentos imobiliários, para atender a veranistas que buscam lazer na beira das lagoas. Para viabilização dessas construções, por vezes, áreas de banhados são aterradas, áreas de agricultura e pecuária são modificadas, e ainda, o acesso a lagoas é proibido.

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8. Conflitos entre as Unidades de Conservação (UC) e os novos e antigos usos do solo O Setor Norte do Litoral Gaúcho conta com sete Unidades de Conservação (UC), localizadas em parte na planície lagunar e na planície marinha, sendo quatro dessas UCs de proteção integral e três de uso sustentável. Essas UCs apresentam dificuldades em relação à sua preservação, sofrem com a falta de infraestruturas como sedes administrativas, equipamentos e veículos; além da falta de recursos humanos, itens indispensáveis para a boa gestão. A urbanização, aliada à expansão de novos empreendimentos imobiliários, faz com que as UCs sofram grande ocupação na sua área de entorno (Foto 3). Em alguns casos, as construções, em geral ilegais, invadem as áreas das UC. A ocupação das áreas de entorno das UCs causa impactos na dinâmica do ambiente, seja modificando a alimentação de um campo de dunas, seja prejudicando a vida silvestre. O turismo deve ser uma atividade organizada de forma que a população local e os turistas consigam estabelecer uma relação de pertencimento com a UC, buscando a preservação do ambiente. Enquanto atividade econômica, o turismo pode gerar emprego e renda para a população local e, ao mesmo tempo, coibir usos que causem danos ao ambiente.

Foto 3: Verticalização das construções nas proximidades do Parque Estadual de Itapeva, município de Torres. Fonte: Aline Kunst, em 29/06/2014.

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9. A contaminação e as mudanças na morfodinâmica das lagoas A planície lagunar apresenta lençol freático aflorante em muitos pontos, juntamente com grande número de lagoas, características que geram grandes preocupações quanto à contaminação das águas por efluentes domésticos. Com a expansão do processo de urbanização e a utilização de fossas e sumidouros em grande parte dos domicílios, observa-se um grande aumento da contaminação das águas superficiais e sub-superficiais. A morfodinâmica do sistema lagunar sofre com a extração de areias do entorno das lagoas e dos cursos de água. A areia retirada, muitas vezes ilegalmente, é utilizada para atender a demanda por materiais utilizados no aterramento dos terrenos e na construção civil como um todo. É importante levar em conta que a planície lagunar é um ambiente deposicional e que em função desta característica, a evolução dos corpos lagunares passaria por três etapas: laguna – lago – pântano costeiro (VILLWOCK & TOMAZELLI, 1995). Devido aos processos de colmatação e às ações antrópicas, esta dinâmica natural pode ser acelerada, trazendo grandes prejuízos aos ecossistemas da região. O Setor Norte do Litoral Gaúcho apresenta problemas de contaminação de suas águas, tanto na planície lagunar, quanto na planície marinha. Essa contaminação ocorre em diferentes graus de intensidades e pode ter como causas o lançamento de efluentes domésticos sem tratamento ou o uso de insumos agrícolas oriundos da agricultura local. 10. Os impactos causados pelos efluentes líquidos Parte significativa dos efluentes líquidos produzidos na planície lagunar não recebe tratamento adequado e são lançados sem o tratamento adequado nos corpos hídricos, abundantes neste compartimento. A questão é bastante grave, pois, muitas lagoas que recebem efluentes líquidos também são utilizadas para a irrigação e para a captação de água destinada ao abastecimento da população. Além disso, parte dos efluentes líquidos domésticos produzidos nesta área tem como destinação final as fossas, que por sua situação muitas vezes rudimentar, contaminam o lençol freático. Agravando ainda mais o problema, muitas áreas possuem esgoto a céu aberto, intensificando os danos ao ambiente e à saúde da população. Conclusões Percebe-se que a temática ambiental, principalmente no que se refere à zona costeira, está representada por uma série de conflitos que se modificam ao longo do tempo e, em cada período, impõem novas formas de uso e ocupação que agravam ou

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geram novos impactos ao ambiente. Os diversos fatores e dinâmicas se conectam e se conflitam, causando modificações e alterações no espaço e no modo de vida dos seus habitantes. Essas complexas e contraditórias relações causam impactos aos ambientes e severas desigualdades sociais ao longo do processo de ocupação urbana. Os impactos ambientais fazem parte dos processos de mudanças sociais, econômicas e ecológicas, portanto, estão em constante movimento. Ao estudar os impactos ambientais, é possível fazer um retrato das condições do ambiente em um determinado momento. Em síntese, observou-se que os impactos ambientais que atingem a Planície Marinha e a Planície Lagunar do Setor Norte do Litoral Gaúcho não atingem o ambiente de forma pontual no tempo e no espaço, mas tem suas consequências dispersas no espaço, além dos dados que serão percebidos em curto, médio e longo prazo. Por fim, entende-se que é papel dos gestores, juntamente com a participação dos diversos segmentos sociais, ações que visem o atendimento das principais demandas da região. São necessários maiores investimentos em saneamento básico, destinação dos resíduos, saúde e educação, além da diversificação de atividades econômicas que possam gerar mais empregos e renda na região. Referências AB’SÁBER, Aziz Nassib. Litoral do Brasil. São Paulo: Metalivros, 2005. BAPTISTA NETO, J. A., PONZI, V. R. A. & SICHEL, S.E. (orgs.) Introdução à Geologia Marinha. Rio de Janeiro: Interciência, 2004. BERTÊ, Ana Maria de Aveline. Problemas ambientais no Rio Grande do Sul: uma tentativa de aproximação. In: VERDUM, R; BASSO, L. A. e SUERTEGARAY, D. M. A. (Orgs). Rio Grande do Sul: paisagens e territórios em transformação. Porto Alegre: Editora da UFRGS, p. 71-83, 2004. BRACK, Paulo. Vegetação e Paisagem do Litoral Norte do Rio Grande do Sul: patrimônio desconhecido e ameaçado. In: Livro de Resumos do II Encontro Socioambiental do Litoral Norte do RS, 2006: ecossistemas e sustentabilidade. Imbé: CECLIMAR – UFRGS, p. 46-71. BRASIL. Censo demográfico 2010. Rio de Janeiro: IBGE, 2010. ‹http://www.ibge.gov.br›. CARLOS, Ana Fani Alessandrini. A cidade. 6. ed. São Paulo: Contexto, 2001. CASTRO, D. de & MELLO, R. S. P (orgs.) Atlas Ambiental da Bacia Hidrográfica do Rio Tramandaí. Porto Alegre: Via Sapiens, 2013. COELHO, Maria Cecília Nunes. Impactos ambientais em áreas urbanas – teorias, conceitos e métodos de pesquisa. In: GUERRA, Antonio José Teixeira & CUNHA, Sandra Baptista da. (orgs.) Impactos ambientais urbanos no Brasil. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. CORRÊA, Roberto Lobato. O espaço urbano. São Paulo: Ática, 2002.

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Capítulo 3 Análise das fragilidades ambientais em sistemas fluviais e de vertentes: bacias hidrográficas dos arroios Santa Isabel e Pelotas e na área urbana de Santa Maria-RS Nina Simone Vilaverde Moura Jonathan Duarte Marth Marilene Dias do Nascimento Erica Insaurriaga Megiato Introdução

O espaço geográfico é construído historicamente e socialmente. Este representa o resultado processual e cumulativo de intervenções humanas e relações socioeconômicas estabelecidas em cada momento histórico. Ao construir e reproduzir seu espaço o homem torna-o adequado às suas exigências. Alterações nas morfologias espaciais acompanham as mudanças e interesses da história social e econômica de uma determinada região. Os impactos ambientais produzidos por essas modificações, principalmente em locais de forte instabilidade ambiental são, ao mesmo tempo, produto e processo de transformações dinâmicas e recíprocas da natureza e da sociedade. O aumento dos desastres naturais derivados dos processos exógenos de dinâmica superficial (movimentos de massa) e de dinâmica fluvial (alagamentos, inundações, enchentes) aumenta em número e em gravidade e, as suas consequências serão maiores quanto maior for a vulnerabilidade social da população envolvida (TUCCI, 2005). Nessa perspectiva, Ross (1990, p. 14–15) argumenta que “toda a ação humana sobre o ambiente natural ou alterado causa algum impacto em diferentes níveis, gerando alterações com graus diversos de agressão, levando às vezes as condições ambientais a processos até mesmo irreversíveis”. Nesse sentido, todas as modificações inseridas pelo homem no ambiente natural alteram o equilíbrio dinâmico e harmonioso da natureza, quando não afetada pela ação antrópica. Ross (1994) afirma que o planejamento ambiental do território, quer em níveis de município, estado, federação ou bacias hidrográficas é imprescindível, pois as intervenções humanas devem ser planejadas com objetivos precisos de ordenamento, tomando-se como premissa as potencialidades dos recursos naturais e humanos e, em contrapartida, a fragilidade dos ambientes naturais e antropizados.

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Sendo assim, inclui-se a Geomorfologia como área do conhecimento que possibilita, através do seu instrumental técnico e teórico, fornecer informações de relevante interesse para o planejamento e ordenamento do território, onde é necessário analisar o relevo como elemento de suporte da atuação antrópica e, principalmente, compreender as relações de reciprocidade existentes entre tal atuação e os processos geomorfológicos. Na década de 1980, Penteado (1981) já afirmava que o homem tem capacidade de alterar os processos de elaboração do relevo, modificando solos, suprimindo vegetação, modificando redes hidrográficas e provocando erosões. Tais modificações, introduzidas no sistema morfológico, conduzem ao desequilíbrio e colapso. Argumentava que o conhecimento geomorfológico pode ser usado para reabilitar a paisagem danificada e, se utilizado como planejamento prévio, para prevenir a deterioração ambiental. Estudos geomorfológicos visando diagnósticos ambientais, dentro da perspectiva do planejamento socioeconômico-ambiental têm sido cada vez mais difundidos. Estes passam por uma série de mecanismos operacionais que possibilitam atingir resultados interpretativos, produtos da pesquisa técnicocientífica desenvolvidos a partir do aproveitamento de estudos teóricos e métodos de análise aplicados em Geomorfologia. Entre os estudos geomorfológicos utilizados para a análise ambiental, destacase a proposta de Ross (1994) para o estudo das fragilidades ambientais potenciais e emergentes dos ambientes naturais e antropizados, que permite o reconhecimento na paisagem, tanto de suas potencialidades como de suas restrições. Ross (1994) considera que o conhecimento das potencialidades dos recursos naturais e das fragilidades ambientais passa pelo conhecimento integrado de todos os componentes do estrato geográfico que dão suporte à vida humana e animal . O método de pesquisa aplicado à determinação dos graus de fragilidades ambientais através do mapeamento da área em Unidades Ecodinâmicas Estáveis e Instáveis permite a análise das fragilidades ambientais dos processos superficiais vinculados tanto à dinâmica das vertentes quanto vinculados à dinâmica fluvial. Dessa forma, com a aplicação do método de mapeamento das fragilidades ambientais proposto por Ross (1994) e suas adaptações, realizada pelos presentes autores, este estudo propõe a verificação das fragilidades ambientais oriundas dos sistemas de vertentes e dos sistemas fluviais em três áreas distintas: as bacias hidrográficas do Arroio Santa Isabel-RS e do Arroio Pelotas-RS e em área urbana do município de Santa Maria-RS.

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O estudo das fragilidades ambientais: importância e métodos A aplicação dos conhecimentos geomorfológicos, bem como das metodologias de análise são apontados por diversos autores, como Tricart (1977); Grigoriev (1968); Ab’Saber (1969); Christofoletti, (1974); Penteado (1981), Ross (1985, 1990, 1992, 1994), Guerra (2006) e Crepani et al. (2008), como possibilidade para estudos ambientais integrados, uma vez que a Geomorfologia é uma ciência capaz de relacionar fenômenos físicos e socioeconômicos de forma a possibilitar a compreensão do modelado terrestre, pois, por definição, identifica, classifica e analisa as formas da superfície terrestre, buscando compreender as relações processuais pretéritas e atuais. Com a finalidade de gerir o território, compreender e racionalizar as formas de exploração dos recursos naturais, métodos e técnicas de análise dos ambientes naturais e antropizados têm sido desenvolvidos por diversos pesquisadores em Geomorfologia. Ross (1994, p.64) argumenta que: em função de todos os problemas ambientais decorrentes das práticas econômicas predatórias (...) e que obviamente tem implicações para a sociedade a médio e longo prazos, face ao desperdício dos recursos naturais e a degradação generalizada com perda de qualidade ambiental e de vida, é que torna-se cada vez mais urgente o Planejamento Físico Territorial, não só com a perspectiva econômicosocial mas também ambiental.

O estudo das fragilidades ambientais potenciais e emergentes dos ambientes naturais e antropizados, de acordo com Ross (1994), tem como base as concepções de Tricart (1977) referente à classificação dos ambientes, que resultou em três grandes tipos de meios morfodinâmicos em função da intensidade, frequência e interação dos processos morfodinâmicos atuais, são eles: "meios estáveis", "meios intergrades" e "meios fortemente instáveis", possibilitando uma abordagem dialética da paisagem. Os "meios estáveis" de Tricart (1977) têm, em termos gerais, a pedogênese como processo de maior expressão, decorrente de uma "proteção" que Tricart denomina Fitoestasia, por ser a cobertura vegetal a responsável por este fenômeno. Nestes meios o modelado evolui lentamente, muitas vezes de maneira imperceptível; os processos mecânicos atuam pouco e de modo lento; a cobertura vegetal é densa e a dissecação é moderada. Os "meios fortemente instáveis", segundo a classificação de Tricart (1977 p. 51), são aqueles em que "a morfogênese é o elemento predominante na dinâmica natural, e fator determinante do sistema natural, no qual outros elementos estão

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subordinados". Este fenômeno pode ser desencadeado por paroxismos naturais como tectonismo e vulcanismo, ou pela degradação antrópica, especialmente com a retirada da cobertura vegetal. Nestes meios as condições bioclimáticas são agressivas, com ocorrências de variações fortes e irregulares de ventos e chuvas, o relevo apresenta vigorosa dissecação, há presença de solos rasos, inexistência de cobertura vegetal densa, as planícies e fundos de vales estão sujeitos a inundações e a geodinâmica interna é intensa. Tricart (1977) considera que há uma passagem gradual entre um meio estável e um meio instável. Para isto tomou emprestado do vocabulário dos geólogos o termo intergrade. Os meios que ele denominou de "intergrades" asseguram essa passagem gradual entre os outros dois meios, pois segundo o autor, "não existe nenhum corte; ao contrário, estamos na presença de um contínuo". Os "meios intergrades" são caracterizados, de acordo com Tricart (1977, p. 47), pela "interferência permanente da morfogênese e pedogênese, exercendo-se de maneira concorrente sobre um mesmo espaço". São meios delicados e suscetíveis a fenômenos de amplificação, podendo tornar-se meios instáveis. Como produto síntese de sua metodologia, Ross (1994) criou a carta de Unidades Ecodinâmicas de Instabilidade Potencial e a carta de Unidades Ecodinâmicas de Instabilidade Emergente, sendo a primeira ligada às áreas onde o ambiente encontra-se com suas características naturais intactas ou pouco alteradas, e a segunda representando as áreas que apresentam atividades humanas, responsáveis pela alteração do ambiente natural através do desmatamento e práticas de atividades econômicas diversas. Neste sentido, os mapas de fragilidade ambiental podem ser considerados como produtos cartográficos necessários para a análise e planejamento ambiental. A metodologia da fragilidade empírica proposta por Ross (1994) fundamentase no princípio de que a natureza apresenta funcionalidade intrínseca entre suas componentes físicas e bióticas. Os procedimentos operacionais para a sua construção exigem, num primeiro instante, estudos básicos do relevo, solo, geologia, clima, uso da terra e cobertura vegetal. Os mapeamentos e análises das formas, gêneses e dinâmicas do relevo, segundo Ross (1994), subsidiam a avaliação das fragilidades dos ambientes e do potencial de uso da terra, tornando os mapas geomorfológicos essenciais para os estudos de fragilidade. O mapa geomorfológico permite representar a gênese das formas do relevo e suas relações com a estrutura e processos, bem como com a própria dinâmica dos processos, considerando suas particularidades (Casseti, 2005). Dessa forma é possível diferenciar os diferentes processos que ocorrem no sistema de vertentes e no sistema

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fluvial, que consequentemente possuem diferentes fatores condicionantes de fragilidade. Diante dos diferentes estados de equilíbrio e desequilíbrio que o ambiente está submetido, Ross (1994) sistematizou uma hierarquia nominal de fragilidade representada por códigos: muito fraca (1), fraca (2), média (3), forte (4) e muito forte (5) para cada uma das variáveis consideradas imprescindíveis no estudo da fragilidade ambiental, quais sejam: as declividades, a morfologia e a morfometria do relevo; os tipos de solos; a cobertura vegetal oferecem diferentes graus de proteção aos solos e os diferentes usos da terra. Estas categorias expressam, espacialmente, a fragilidade do ambiente em relação aos processos ocasionados pelo escoamento superficial difuso e concentrado das águas pluviais. Qualquer mudança em uma das variáveis envolvidas no equilíbrio dinâmico provoca a sua ruptura, forçando a natureza procurar uma nova forma de equilíbrio. Assim, para os estudos de fragilidade dos ambientes, é necessária a adoção de uma metodologia de trabalho baseada na compreensão das características e da dinâmica do ambiente natural e do meio socioeconômico, buscando a integração das diversas áreas, por meio de uma síntese do conhecimento acerca da realidade pesquisada. As classes de fragilidade associadas às declividades consistem em intervalos já consagrados nos estudos de capacidade de uso/aptidão agrícola associados com valores limites críticos da geotecnia. As classes apresentadas por Ross (1994) estão sintetizadas na tabela 1:

Tabela 1 – Categorias hierárquicas das declividades

Fragilidade

Intervalos de declividades

1 - Muito fraca

<6%

2 – Fraca

6 a 12%

3 – Média

12 a 20%

4 – Forte

20 a 30%

5 - Muito forte

>30%

Fonte: Adaptado de Ross (1994).

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No que se refere ao referencial morfométrico, Ross (1994) utiliza a Matriz do Índice de Dissecação (Tabela 2), que está fundamentada nas relações de densidade de drenagem/dimensão interfluvial média para a dissecação no plano horizontal e nos graus de entalhamento dos canais de drenagem para a dissecação no plano vertical. Tabela 2 – Índice de Dissecação do Relevo Dimensão interfluvial média Grau de entalhamento dos vales

Muito Fraca (1) > 3750m

Fraca (2) 1750 a 3750m

Média (3) 750 a 1750m

Forte (4) 250 a 750m

Muito Forte (5) < 250m

Muito Fraco (1) < 20m

11

12

13

14

15

Fraco (2) 20 a 40m

21

22

23

24

25

Médio (3) 40 a 80m

31

32

33

34

35

Forte (4) 80 a 160m

41

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43

44

45

Muito Forte (5) >160m

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Fonte: Adaptado de Ross (1994).

Os critérios utilizados, por Ross (1994), para a variável solo, passam pelas características de textura, estrutura, plasticidade, grau de coesão das partículas e profundidade/espessura dos horizontes superficiais. Estas características estão diretamente relacionadas com o relevo, litologia, clima, elementos motores da pedogênese e, fatores determinantes das características físicas e químicas dos solos. A Tabela 3 apresenta as classes de fragilidade ou de erodibilidade dos solos, considerando o escoamento superficial difuso e concentrado das águas pluviais.

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Tabela 3 – Classes de fragilidades dos solos Classes de Fragilidade 1. Muito Fraca

Tipos de Solos Latossolo Roxo, Latossolo Vermelho escuro e Vermelho Amarelo textura argilosa

2. Fraca

Latossolo Amarelo e Vermelho Amarelo textura média/argilosa

3. Média

Latossolo Vermelho Amarelo, Nitossolos* (Terra Roxa), Luvissolos* (Terra Bruna, Argissolo* Vermelho – amarelo textura média argilosa (Podzólico VermelhoAmarelo)

4. Forte

Argissolo* Vermelho-amarelo textura média/argilosa, cambissolos*

5. Muito Forte

Argissolo* com cascalho, Litólicos e Areias Quartzosas*

Fonte: Ross (1994). *Adaptado à nova nomenclatura de solos proposta pela EMBRAPA (2006)

Para Ross (1994), a cobertura vegetal oferece diferentes graus de proteção aos solos e, consequentemente, diminui a fragilidade ambiental. Dessa forma, citam-se os principais tipos de proteção: -As florestas/matas naturais, florestas cultivadas com biodiversidade imprimem um grau de proteção muito alto ao ambiente; -As formações arbustivas naturais com estrato herbáceo denso, formações arbustivas densas (mata secundária, cerrado denso, capoeira densa), mata homogênea de pinus densa, pastagens cultivadas com baixo pastoreio de gado e cultivos de ciclo longo imprimem um grau alto de proteção; -Cultivos de ciclo longo em curvas de nível/terraceamento como café, laranja com forrageiras, pastagens com baixo pisoteio e silviculturas de eucaliptos com subbosque de nativas imprimem grau de proteção médio aos ambientes; -Culturas de ciclo longo de baixa densidade, com solos expostos e culturas de ciclo curto em curvas de nível/terraceamento causam um grau de proteção baixa ao ambiente e, -As áreas desmatadas e queimadas, solo exposto por arado, gradeação, solo exposto ao longo de caminhos e estradas, terraplanagens e culturas de ciclo curto sem práticas conservacionistas imprimem um grau de proteção muito baixo ou nulo ao ambiente.

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A fragilidade do ambiente está associada aos processos geodinâmicos exógenos, denominados processos de dinâmica superficial do relevo, que podem ser desencadeados pela dinâmica das encostas (processos erosivos-deposicionais) como: movimentos de massa (rastejo, quedas e rolamentos, corridas e escorregamentos), erosão hídrica, subsidência por adensamento, colapso de solos, subsidência e colapso devido a cavidades subterrâneas e expansão de terrenos e pela dinâmica fluvial como inundações, alagamentos e enchentes. Apesar de Ross (1994) ter considerado em sua metodologia a suscetibilidade à erosão como o fator de fragilidade do ambiente, alguns autores como Fujimoto (2001) tratam também a suscetibilidade à inundação como uma fragilidade do ambiente, porém associada ao sistema fluvial. Fujimoto (2001) considerou como fatores potencializadores dos eventos de inundação na sub-bacia hidrográfica do Arroio Dilúvio (Porto Alegre – RS) os condicionantes geomorfológicos, as características do material de cobertura, os condicionantes climáticos e os condicionantes relacionados ao uso e ocupação da terra e intervenções nos canais fluviais (barramentos). A autora conseguiu dividir em três classes as suscetibilidades à inundação nessa bacia hidrográfica urbana, que variam entre alta e baixa, conforme as características acima citadas. As áreas de alta suscetibilidade consistem em áreas planas com material de cobertura superficial com grande presença de argila e silte e com o lençol freático elevado e por vezes aflorante. Estas áreas são cercadas por vertentes de elevadas altitudes e declividades. Devido à colmatação e elevação do nível de base destas áreas, em consequência do material oriundo das vertentes, essas planícies flúviolacustres tornam-se mais susceptíveis às inundações. A classe de média suscetibilidade trata de áreas planas associadas aos canais principais e suas respectivas planícies de inundação, principalmente nas desembocaduras destes canais, que são formadas por material predominantemente arenoso. Devido ao aumento do escoamento superficial oriundo da urbanização, ao assoreamento dos canais e aos estrangulamentos artificiais dos leitos fluviais, essas áreas ficam sujeitas ao transbordamento das águas dos canais durante os eventos de chuva. As classes de baixa suscetibilidade à inundação estão relacionadas a áreas planas elevadas nas adjacências de vales em forma de V. Possuem uma boa capacidade de escoamento fluvial quando comparadas às outras duas classes, mas eventualmente podem ser inundadas. No que se refere às áreas urbanizadas, Ross (1994, p. 68) argumenta que é preciso “distinguir os padrões de urbanização quanto à impermeabilização, as áreas

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verdes, a infraestrutura como canalização das águas pluviais, asfaltamento, guias e sarjetas, padrões das edificações, entre outros”. Assim, para os estudos de fragilidade dos ambientes, é necessária a adoção de uma metodologia de trabalho baseada na compreensão das características e da dinâmica do ambiente natural e do meio socioeconômico, buscando a integração das diversas áreas, por meio de uma síntese do conhecimento acerca da realidade pesquisada. Dessa forma, para realizar estudos de fragilidade ambiental, é necessário que se tenha conhecimento dos solos, do relevo, da geologia e do clima da área estudada, além do uso da terra e da cobertura vegetal (ROSS, 1996), considerando a gênese dos processos, os quais podem ser de denudação e de agradação. A fragilidade do ambiente deve ser analisada considerando tanto os processos que ocorrem nos sistemas de vertentes como nos sistemas fluviais. 1º Caso: o estudo das fragilidades ambientais da sub-bacia hidrográfica do Arroio Santa Isabel-RS Para mapear a fragilidade ambiental na área da bacia hidrográfica foi aplicada a metodologia de fragilidade dos ambientes naturais e antropizados de Ross (1994), contudo foi necessário distinguir a análise entre as áreas dominadas pelos sistemas de interflúvios e vertentes das áreas onde predominam os processos fluviais. Para o mapeamento da fragilidade ambiental dos interflúvios e sistema de vertente combinou-se a declividade do terreno com os tipos de solos e a cobertura vegetal da sub-bacia. Assim, os três mapas foram classificados individualmente conforme suas fragilidades. Após, estes mapas foram sobrepostos gerando áreas combinadas, relativas às fragilidades das temáticas. Com relação à fragilidade do sistema fluvial foram utilizados os dados de precipitação para a sub-bacia hidrográfica do Arroio Santa Isabel (SbHASI) em um período de 46 anos. Os valores pluviométricos analisados foram divididos em dois tipos: os correspondentes a eventos acumulados de chuvas (166 eventos) e aos eventos extremos (253 eventos). Realizouse também pesquisa de imagens que pudessem dar a dimensão da lâmina d’água que extravasa do leito menor para a planície de inundação, que englobou as imagens Landsat 5 disponíveis, sendo que somente três imagens (01/06/1986, 27/09/2000 e 23/03/2007) apresentaram aumento da lâmina d’água. Com o auxílio do mapa geomorfológico e das informações referentes aos solos, ao modelo numérico do terreno e as imagens citadas, construiu-se um mapa contendo classes hierárquicas de suscetibilidade às inundações do sistema fluvial.

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A análise das fragilidades do ambiente resultou em um mapa contendo as fragilidades emergentes e potenciais na SbHASI (Figura 1). Neste mapa o sistema de vertentes e interflúvios tem área de 264,91 km², apresentando as suscetibilidades à erosão, e o sistema fluvial apresenta uma área de 29,36 km², que mostra as suscetibilidades à inundação. Figura 1: Mapa final das fragilidades do ambiente na SbHASI

No setor de vertentes e interflúvios foram encontradas três classes hierárquicas de fragilidade: fraca (34,26%), média (61,26%) e forte (4,51%). Os processos erosivos ocorrem até mesmo em unidades com médias e fracas fragilidades. Isto evidencia o papel antrópico na instabilidade das unidades ecodinâmicas. As classes encontradas são de fragilidades médias e isto se deve principalmente ao relevo pouco dissecado de colinas, que predominam na SbHASI, e a prevalência de solos com suscetibilidades médias aos processos erosivos (Argissolos). A classe de fragilidade fraca está associada principalmente às áreas com declividades menores que 30% e com presença de vegetação nativa nas unidades de

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colinas, apresentando predominantemente Argissolos. Esta unidade apresenta algum processo erosivo, geralmente em decorrência da ação antrópica, como aterro, retirada de material para manutenção de estradas e construção de taipas (barragens). A classe de fragilidade média predomina nas áreas de terraços lagunares e colúvioaluvionares, aparecendo ainda nas baixas vertentes das unidades de colinas. A média fragilidade atribuída a esta classe deve-se à interação de fatores sem fortes suscetibilidades, como as áreas com vegetação de gramíneas e de declividades baixas, que amenizam as suscetibilidades de solos como Planossolos e Gleissolos em relação aos processos erosivos. A classe de fragilidade forte encontra-se geralmente nos setores de altas e médias vertentes das unidades de colinas. Foram mapeadas duas unidades em áreas de terraço lagunar, devido principalmente aos Neossolos sem cobertura vegetal. As áreas mapeadas nas colinas possuem altas declividades, solos mais rasos e com horizonte superficial arenoso, os quais indicam, por vezes, processos erosivos em estágio avançado (Figura 2). Figura 2: Processo erosivo em estágio avançado em alta vertente das colinas de interflúvios estreitos (21/12/2011).

No sistema fluvial encontraram-se cinco classes hierárquicas de fragilidade: muito fraca (21,52 %), fraca (4,43 %), média (35,56 %), forte (13,39 %) e muito forte (25,10 %). De maneira geral os fatores que tiveram maior peso na definição das classes de suscetibilidade à inundação foram: amplitude do relevo, confluência de corpos hídricos e ação antrópica. A ação antrópica se dá principalmente através do controle da vazão, seja através da construção de barragens ou de canais de irrigação.

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A classe de fragilidade muito fraca está associada a setores da planície de inundação, que devido às altas elevações em comparação às áreas adjacentes e ao próprio leito menor dos arroios, dificilmente são inundadas. As áreas correspondentes à classe de fragilidade fraca situam-se em um setor onde o canal do arroio Santa Isabel está encaixado na planície de inundação e esta encontra-se confinada pelo terraço colúvio-aluvionar, sendo estreita e possuindo poucos pontos de extravasamento das águas do leito menor. A classe de fragilidade média é a de maior extensão do sistema fluvial e localiza-se no alto e médio curso do arroio principal e em dois afluentes de sua margem direita. No alto curso, esta unidade é caracterizada por áreas planas com situação topográfica deprimida em relação às colinas dissecadas. Nesta unidade também são mais comuns as enxurradas, pois em eventos pluviométricos intensos tais áreas não têm capacidade de drenar os fluxos superficiais vindos das vertentes adjacentes. No médio curso, a mesma unidade caracteriza-se por ser rebaixada em relação aos terraços colúvio-aluvionares, que não possuem gradientes altos de elevação. Os solos correspondentes são do tipo Gleissolo e Planossolo. Os canais de irrigação têm papel fundamental no caráter médio de suscetibilidade dessas unidades, pois estas drenagens artificiais auxiliam no escoamento das águas pluviais. Ainda assim, estas áreas podem ser inundadas devido a eventos acumulados, que são comuns na área de estudo. Nos afluentes da margem direita, o fator que condiciona a suscetibilidade é a relação entre as áreas de vertentes e a planície de inundação destes canais. Apesar de os solos serem rasos do tipo Gleissolos Húmicos, as vertentes são suavizadas e com rampas compridas, que acabam por dar esse caráter médio a essas áreas que não possuem vegetação no entorno dos cursos fluviais. A classe de fragilidade forte consiste em áreas rebaixadas ao longo da planície de inundação do arroio Santa Isabel, posteriores a barragem. Também pertence à classe de forte fragilidade um trecho de um afluente da margem direita do arroio Santa Isabel, que se encontra sobre sedimentos colúvio-aluvionares e está associado a solos mal drenados (Gleissolos). Neste trecho há a confluência de vários canais de 2ª e 3ª ordem, o que faz com que esta área não consiga drenar as águas pluviais das vertentes adjacentes quando ocorrem eventos de chuva. A classe de fragilidade muito forte está relacionada às áreas muito planas, que constantemente são inundadas. Há na sub-bacia três setores pertencentes a esta unidade: (1) o segmento anterior à barragem no arroio principal da sub-bacia possui relevo rebaixado em relação aos terraços colúvio-aluvionares adjacentes. Pelo controle da vazão feito pela barragem, em eventos de precipitação, este é o primeiro

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setor a ser inundado; (2) o trecho em curva acentuada do arroio principal, onde a planície de inundação encontra-se rebaixada e confinada à esquerda pelo terraço lagunar e à direita por colinas, é condicionado ao aumento da vazão devido às chuvas. O condicionante aqui é geomorfológico e, por fim, o setor (3)(Figura 3), que consiste em uma faixa extensa e ampla junto a foz da SbHASI, que sofre forte influência do rio Camaquã, podendo ser inundada mesmo em eventos de baixa magnitude, simplesmente pela retenção da vazão devido ao aporte de águas do Camaquã. Figura 3: Foz do arroio Santa Isabel no rio Camaquã. Imagem Landsat de 01/06/1986.

O histórico de ocupação da SbHASI se deu através de dois tipos principais: o primeiro ligado aos portugueses, a partir da metade do século XVIII, ocupando através do sistema de sesmarias e o segundo associado aos pomeranos, que vieram após a lei das terras e ocuparam basicamente as áreas do planalto, com pequenas propriedades, que contrastaram com as grandes propriedades do primeiro tipo de ocupação. Esta diferença refletiu nos impactos gerados ao meio ambiente, havendo nas grandes propriedades um desgaste dos solos e modificações no sistema fluvial (canais de irrigação) através do plantio de arroz, soja e pecuária extensiva e, nas áreas de pequenas propriedades, o desmatamento, devido principalmente à ocupação inicial e, atualmente, a uma deterioração dos solos pela intensificação da cultura do fumo.

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2º Caso: o estudo da fragilidade ambiental na Bacia do Arroio Pelotas - RS Para a realização do mapeamento e análise da fragilidade ambiental da Bacia Hidrográfica do Arroio Pelotas (BHAP), que se estende pelos municípios de Pelotas, Canguçu, Morro Redondo e Arroio do Padre, foram utilizados mapeamentos temáticos e levantamentos sobre geologia, geomorfologia, declividades, solos e uso do solo e cobertura vegetal, os quais permitiram a elaboração do produto síntese: o mapa de fragilidade ambiental, que contém informações importantes sobre as potencialidades e fragilidades dos ambientes. Para a avaliação dos graus de fragilidade ambiental foram consideradas a Fragilidade Potencial dos ambientes (Unidades Ecodinâmicas de Instabilidade Potencial) e a Fragilidade Emergente (Unidades Ecodinâmicas de Fragilidade Emergente), de acordo com Ross (1994). A fragilidade potencial foi analisada a partir do mapa de solos, do mapa geomorfológico e das classes de declividades. A fragilidade emergente foi caracterizada a partir da fragilidade potencial e a análise do tipo de uso do solo, tendo como resultado um único mapa síntese que mostra as classes de Fragilidade Ambiental. Na metodologia utilizada por Ross (1994), a fragilidade ambiental é analisada a partir dos processos erosivos que ocorrem nas áreas de denudação. Na área de estudo, estes processos verificam-se no Planalto Uruguaio Sul-rio-grandense. No entanto, existem outros aspectos de fragilidade que devem ser levados em consideração que não estão diretamente associados aos processos erosivos e que acontecem nas áreas planas, como os que se observam na porção da Planície Costeira na Bacia Hidrográfica do Arroio Pelotas, bem como nas planícies de inundação dos cursos d’água da BHAP. Estes outros aspectos da fragilidade ambiental que foram incluídos no mapa de fragilidade ambiental, estão associados aos processos de inundação, os quais representam a fragilidade potencial dos ambientes localizados na Planície Costeira. Sendo assim, a fragilidade ambiental foi analisada quanto aos processos erosivos e também quanto aos ambientes, que, através de eventos climáticos extremos podem sofrer enxurradas, aumento do nível de água e processos de inundação. Nesse sentido, o mapa de fragilidade apresenta as classes de fragilidade relacionadas aos processos erosivos e as classes de fragilidade relacionadas aos processos de inundação. Quanto aos processos erosivos, o mapa de fragilidade ambiental (Figura 4) apresentou três classes de fragilidade distintas: fraca, média e forte. As áreas de fragilidade fraca estão localizadas no Planalto Uruguaio Sul-rio-grandense, incluindo as áreas de mata nativa, vegetação secundária e algumas áreas de campos que possuem declividades fracas a fortes, com solos predominantes do tipo Argissolos

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Bruno-acinzentado. A mata nativa nessas áreas localiza-se na margem dos cursos d’água da bacia (mata ciliar) e também nos topos e encostas dos Morros de Topos Convexos com Vertentes Suaves e dos Morros de Topos Convexos com Vertentes Íngremes, bem como nas áreas de Morros com Topos Planos e Colinas com Topos Convexos. Esta classe ocupa 23% da área de estudo e apresenta alto grau de proteção dos solos em relação aos processos erosivos causados pelo impacto das gotas das chuvas nos solos. Figura 4: Mapa de Fragilidade Ambiental da Bacia hidrográfica do Arroio Pelotas.

As áreas identificadas com a classe de fragilidade média relacionada aos processos erosivos localizam-se no Planalto Uruguaio Sul-rio-grandense. São áreas com declividades médias predominantes, onde as formas de relevo são os Morros com Topos Convexos e Vertentes Suaves, as Colinas com Topos Convexos e os Morros com Topos Planos. Os tipos de solos são os Argissolos Bruno- acinzentado, Argissolos Vermelho-amarelo e pequenas porções onde ocorrem os Cambissolos. O tipo de uso do solo dessas áreas é misto, são pequenas propriedades com cultivos de fumo, feijão, batata, pastagens e pecuária, entre outros. Essas áreas ocupam 42% da área de estudo. A classe de fragilidade ambiental forte relacionada aos processos erosivos localiza-se também no Planalto Uruguaio Sul-rio-grandense. São áreas que possuem

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declividades de fortes a muito fortes, com solos predominantes do tipo Neossolos Litólicos associados com afloramentos rochosos e os Cambissolos. O tipo de uso do solo identificado para esta classe foram áreas com solo exposto e agropecuário (uso misto). Os principais fatores que caracterizam a fragilidade forte desses setores é a geomorfologia, sendo áreas com Morros com Topos Convexos e Vertentes Íngremes, onde as declividades são superiores a 20% com solos suscetíveis à erosão. Essa classe representa 8% da área total da BHAP. As porções com fragilidade ambiental frente aos processos de inundação ocorrem nas áreas da Planície Costeira e nas áreas de Planície Fluvio-coluvionar no Planalto Uruguaio Sulrio-grandense e apresentam-se nas seguintes classes: fragilidade muito fraca, fragilidade fraca, fragilidade média, fragilidade forte e fragilidade muito forte. As áreas de fragilidade muito fraca correspondem a uma porção de Planície Lagunar que apresenta altitudes acima dos 20 metros. São áreas que têm os Argissolos Vermelhoamarelo como solos predominantes. Estes tipos de solo são bem drenados, o que caracteriza a fragilidade muito fraca em relação aos processos de inundação. Outro fator importante para caracterização da classe é a altitude do terreno. Esta classe ocupa um total de 3% da área de estudo. As porções de planície classificadas com grau de fragilidade fraca frente aos processos de inundação, correspondem às áreas de Planície Lagunar e as áreas de depósitos da Barreira Pleistocênica. São terrenos que possuem altitudes que variam de 8 a 16 metros. Incluem as áreas de dunas com solos do tipo Neossolos Quartzarênicos e, também, os Planossolos e Argissolos Bruno-acinzentados com características de drenagem que variam de mal drenados a moderadamente drenados. Esta classe ocupa também 3% da BHAP. A classe de fragilidade média associada aos riscos de inundação foi identificada na Planície Costeira. São áreas planas, com declividades inferiores a 6% e com altitudes inferiores aos 20 metros. Quanto à geomorfologia, são áreas de Planície Lagunar e de Planície Lagunar e Eólica. Os tipos de solos são associações de Planossolos Háplicos moderadamente drenados com Gleissolos mal drenados. De acordo com o Sistema Brasileiro de Classificação dos Solos (2006), esses solos possuem textura argilosa no horizonte B, tornando o seu processo de drenagem lento, acumulando água na superfície. Devido a suas características, tais solos são utilizados para o plantio de arroz, o que os acaba tornando mais impermeáveis e alagadiços. Esta classe ocupa 10% da área da BHAP. As áreas de fragilidade forte em relação aos processos de inundação foram identificadas na Planície Costeira em porções de Planície Lagunar e no Planalto Uruguaio Sulriograndense em áreas de Planície Fluvial do arroio Pelotas e de alguns

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de seus tributários. Os solos característicos são Planossolos Háplicos moderadamente drenados e Gleissolos mal drenados, estando situados próximos às planícies de inundação dos cursos d’água e com altitudes inferiores às áreas de fragilidade média. O uso do solo é variado, sendo que na Planície Costeira são principalmente áreas com cultivos de arroz, áreas de campo com pecuária e áreas urbanizadas. No Planalto Uruguaio Sul-rio-grandense, os tipos de uso de solo encontrados são: a agropecuária, campos, florestamento e áreas com solo exposto. Representa 8% da área de estudo. Os graus de fragilidade muito forte também foram identificados nos dois compartimentos morfoesculturais da BHAP. São áreas de Planície Flúvio Lagunar na Planície Costeira e áreas de Planície Fluvial no Planalto Uruguaio Sul-rio-grandense. São as áreas mais próximas aos cursos d’água, caracterizadas por serem planícies de inundação dos mesmos em períodos de elevada precipitação. Os solos destas áreas são principalmente associações de Neossolos Flúvicos, Gleissolos e Planossolos mal drenados. Os tipos de uso de solo e cobertura vegetal incluem a mata ciliar ao redor dos cursos d’água, áreas de banhados, áreas de plantio de arroz, campos com pecuária, além de áreas urbanizadas, como é o caso de residências de classe média e alta localizadas às margens do arroio Pelotas. A classe ocupa 3% do total da Bacia Hidrográfica do Arroio Pelotas. 3º Caso: o estudo da fragilidade ambiental emergente da cidade de Santa Maria - RS O mapa de Fragilidade Ambiental Emergente foi elaborado a partir da combinação dos graus de fragilidade dos elementos físicos (litologias, formas de relevo, solos e declividades), e dos graus de proteção atribuídos pelo uso da terra e cobertura vegetal. Essas fragilidades estão relacionadas tanto aos processos oriundos da dinâmica das encostas como da dinâmica fluvial. O mapa foi desenvolvido através da linguagem de programação LEGAL (Linguagem Espacial de Geoprocessamento Algébrico Linear) do programa SPRING 4.3 e hierarquizado em cinco classes de fragilidade: muito fraca - peso 1, fraca - peso 2, média - peso 3, forte - peso 4 e muito forte - peso 5 (Tabela 4).

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Tabela 4 – Graus de fragilidade ambiental dos elementos físicos e antrópicos

As classes de fragilidade ambiental emergente encontradas na cidade de Santa Maria foram: Muito Fraca (10,13%), Fraca (42,09%), Média (30,90%), Forte (14,57%) e Muito Forte (2,31%), as quais são resultados da fragilidade potencial e do grau de proteção decorrente do uso do solo e da cobertura vegetal (Tabela 5). Tabela 5 - Classes de fragilidade ambiental emergente Fragilidade Ambiental EmergenteÁrea (km2)

Área (%)

Muito Fraca

12,78

10,13

Fraca

53,10

42,09

Média

38,98

30,90

Forte

18,38

14,57

Muito Forte

2,92

2,31

126,16

100

Total: Organização dos autores (2013).

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A cobertura vegetal mais densa de florestas contribuiu para a fragilidade emergente muito fraca e fraca, enquanto o uso urbano favoreceu para a passagem da posição de fragilidade ambiental potencial fraca e média para uma fragilidade ambiental emergente forte a muito forte. Ocupações antrópicas em locais inapropriados, como encostas dos morros e planícies fluviais, contribuíram para transformar uma fragilidade ambiental potencial forte para uma fragilidade ambiental emergente muito forte. A partir da análise do Mapa de Fragilidade Ambiental Emergente da cidade de Santa Maria/RS (Figura 5) verifica-se que a classe de fragilidade ambiental emergente mais representativa é a classe Fraca (2), que ocorre em 42,09% da área total. Essa classe está distribuída principalmente nos setores oeste, sul e leste, os quais se configuram os vetores de crescimento urbano da cidade de Santa Maria, cuja mancha urbana ainda encontra-se pouco adensada, apresentando vários vazios urbanos recobertos com vegetação em diferentes estágios e no setor norte, cuja vegetação florestal é densa e a urbanização é pouco adensada, embora esteja avançando nas encostas basais dos morros. Figura 5: Mapa de Fragilidade Ambiental Emergente da cidade de Santa Maria/RS

Fonte: Sobreposição dos mapas de Fragilidade Ambiental Potencial e de Uso da Terra e Cobertura Vegetal. Organização dos autores (2013).

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Outra classe de fragilidade ambiental emergente representativa na área de estudo é a fragilidade média (3) que ocorre em 30,90% da área total. Essa classe desenvolve-se, predominantemente, nos setores leste, central e oeste da cidade, em relevos com topografias suaves a suave-onduladas, resultante dos lamitos da Formação Santa Maria, Membro Alemoa, que apresentam declividades inferiores a 6% e altitudes que não ultrapassam os 100 metros. Os principais usos da terra nesses locais são: vegetação campestre e urbanização concentrada, cuja impermeabilização praticamente neutraliza a ação dos processos morfodinâmicos. A classe de fragilidade ambiental emergente considerada como muito fraca representa 10,13%, e está associada, basicamente, à significativa presença da vegetação arbórea densa, com formações superficiais espessas, formas de relevo em colinas suaves e planas, com declividades inferiores a 6% e a pouca urbanização. Está relacionada a locais que ainda mantêm-se preservados da ação antrópica. A classe de fragilidade emergente forte representa 14,57% da área. Ocorre em todos os setores, sendo mais presente, porém, nos locais em que a urbanização é mais concentrada e a presença de vegetação é quase nula, como no centro urbano, leste e oeste da área de estudo. As declividades desses locais variam entre 6 e 20%. No setor norte os locais de fragilidade emergente forte são as encostas inferiores dos morros que já se encontram urbanizados. A classe de fragilidade ambiental emergente muito forte está presente em 2,31% da área. Apesar de pouco representativa essas áreas são muito preocupantes em termos ambientais e de riscos geomorfológicos, pois estão associadas às áreas em que a ocupação humana está instalada em locais inapropriados, como nas planícies de inundações dos rios e nas áreas de relevo de morros caracterizados por vertentes retilíneas, com grande presença de solo exposto e ausência de vegetação arbórea densa. Os locais com muito forte fragilidade ambiental emergente, situados em áreas íngremes, com alta energia de relevo e na meia encosta das formas de relevo de morros, estão vulneráveis, principalmente, aos riscos geomorfológicos decorrentes dos processos da dinâmica de encostas como movimentos de massa (escorregamentos, deslizamentos e queda de blocos) e erosões superficiais de solo. Nas áreas de encosta dos morros, no setor norte da área de estudo, as fragilidades estão associadas, além dos aspectos físicos da paisagem, como declividades do terreno acima dos 20%, formas de relevo de morros, solos do tipo Neossolos, às intervenções antrópicas realizadas nesses locais, como no setor Sudoeste do morro Cechela, Vila Bela Vista, no Bairro Itararé e na Vila Bilibio, no Bairro Km3.

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Os locais definidos como de fragilidade emergente muito forte, situados em relevo de planícies fluviais, muito próximo à rede de drenagem dos arroios Vacacaí Mirim e Cadena, estão vulneráveis aos processos geomorfológicos da dinâmica fluvial como inundações, enchentes, alagamentos e erosão de margens. As planícies fluviais desses locais são áreas relativamente planas e baixas que recebem os excessos de água que extravasam do canal de drenagem em ocasiões de cheias dos rios. Nas planícies de inundação foram identificadas fragilidade emergente muito forte, principalmente nas margens do arroio Cadena, região central e sul e nas margens do arroio Vacacaí Mirim, região leste. Essas fragilidades estão associadas às mudanças na paisagem decorrentes do uso inapropriado do solo, o qual altera a dinâmica fluvial. O desmatamento e o crescimento da área urbana reduzem a capacidade de infiltração e aumentam o escoamento superficial, fornecendo maior volume de sedimentos para o canal fluvial em ocasiões de chuvas intensas e acumuladas, comuns na cidade de Santa Maria, o que resulta no assoreamento do leito principal dos arroios e enchentes nas planícies de inundação. As precipitações intensas ocorrem geralmente com tempo de duração de algumas horas e as acumuladas podem permanecer durante dias. Dessa forma, constatou-se que na cidade de Santa Maria/RS existem diversos graus de fragilidades ambientais desencadeados tanto pela dinâmica das vertentes como pela dinâmica fluvial. Essas fragilidades variam desde o muito fraco até o muito forte, em razão das características dos elementos físicos que compõem a paisagem e tornam-se emergentes, em diferentes graus, desde o muito fraco até o muito forte, conforme o nível de alteração introduzido na paisagem pelas atividades antrópicas, decorrentes da ocupação e da urbanização e dos graus de proteção conferidos pela vegetação. Considerações finais Os estudos de fragilidade ambiental permitem o conhecimento dos aspectos físicos e socioeconômicos das áreas analisadas segundo essa proposta de análise. Os produtos de síntese, que são os mapas de fragilidades ambientais, proporcionam a visualização das áreas de potencialidades e de fragilidades dos ambientes, possibilitando o uso adequado destas áreas, de acordo com suas características físico-ambientais. Este método de pesquisa é adequado a pesquisas ambientais, pois envolve tanto a investigação sobre os aspectos físicos da área quanto aos aspectos decorrentes da ação antrópica.

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Em cada estudo de caso abordado neste capítulo, foi utilizada a metodologia de avaliação da fragilidade ambiental proposta por Ross (1994), sendo que para cada área de estudo foram feitas adaptações necessárias devido às particularidades dos ambientes em questão. Os resultados obtidos com a aplicação da metodologia mostram que ela é um importante instrumento de ordenamento territorial, pois possuem grande confiabilidade nas classes encontradas, condizente com a realidade observada nos trabalhos de campo, bem como com os dados coletados durante a sua execução. Ross (1994), em seus estudos de fragilidades geomorfológicas dos ambientes naturais e antropizados considerou, basicamente, os processos desencadeados pela dinâmica das vertentes (processos erosivos e movimentos de massa) como principais responsáveis pelos desequilíbrios ambientais. No presente estudo foram considerados e analisados os processos oriundos tanto da dinâmica das vertentes como da dinâmica fluvial (inundações, alagamentos e enchentes) de forma integrada, considerando a inter-relação entre a dinâmica das vertentes e a dinâmica fluvial que permite constantes trocas de causa e efeito entre seus elementos. Mudanças no uso do solo das encostas influenciam os processos erosivos que podem promover a alteração da dinâmica fluvial. No Brasil, a maior parte dos acidentes e riscos geomorfológicos está associada aos processos de dinâmica superficial do relevo, que podem ser desencadeados tanto pela dinâmica das encostas como pela dinâmica fluvial. Os desequilíbrios que se registram nas encostas decorrem da influência do clima e das características das encostas que incluem a topografia, a geologia, o grau de intemperismo do solo e o tipo de ocupação. Os desequilíbrios causados pela dinâmica fluvial acontecem principalmente em planícies de inundação, nas cabeceiras de drenagem, nas bacias de forma circular com alta densidade de drenagem e baixa capacidade de escoamento. As chuvas intensas e acumuladas representam o principal elemento climático relacionado com os desequilíbrios que se registram tanto nas encostas como nas planícies. Os processos e riscos, nessas condições, são desencadeados e/ou intensificados pelas intervenções antrópicas como eliminação da cobertura vegetal, cortes de taludes instabilizados, lançamento de resíduos sólidos e uso e manejo inadequado do solo que aceleram a erosão superficial ao longo do tempo. Desta forma, torna-se essencial a abordagem dos processos geomorfológicos no planejamento ambiental e territorial, uma vez que dentre os fenômenos relacionados aos desastres naturais, os eventos de inundações são os que mais produzem perdas econômicas e impactos à saúde pública e, os movimentos de massa, geram o maior número de vítimas fatais.

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Capítulo 4 Evolução urbana sobre os compartimentos de relevo: municípios de Porto Alegre e Sapucaia do Sul-RS Nina Simone Vilaverde Moura Felipe de Sousa Gonçalves Tielle Soares Dias Introdução As cidades não são compostas apenas de ruas, casas, prédios e pessoas. Elas são sim o reflexo de ideologias que demarcam território à medida que os interesses econômicos são favoráveis. Quando Harvey, citado por Munhoz (2005), afirma que o ambiente não é natural, mas algo construído socialmente como uma arena de conflitos sociais, de espaço de reprodução do capital em suas múltiplas formas, vê-se que a expansão capitalista trouxe consequências em nome do desenvolvimento em regiões outrora pacatas. Aumentava cada vez mais o controle real do uso do solo nos núcleos urbanos e metropolitanos mais importantes do país, resultando, em última análise, em segregação espacial. As áreas urbanas mais centrais, mais acessíveis e melhor servidas por atividades urbanísticas passaram a ser as mais disputadas pelas atividades de produção mais fortes e pelos usos de consumo mais “nobres”. (MUNHOZ, 2005, p. 11)

Com esta nova dinâmica, as áreas centrais das cidades começaram a ter um novo tipo de valorização e as administrações públicas ficaram coniventes ao absterem-se de suas atribuições fiscalizatórias. Esse comportamento abriu espaço para a especulação imobiliária, levando a uma valorização excessiva de áreas centrais e empurrando o crescimento da mancha urbana para regiões periféricas desses centros. Todo esse processo ocorre num período especial para a dinâmica populacional brasileira. Por volta dos anos 1970, acentua-se a redistribuição espacial da população. As características desse movimento foram intensos fluxos migratórios, principalmente campo-cidade, e em direção às fronteiras agrícolas, levando a uma

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concentração da população em cidades que, a cada ano, ficavam maiores, desenvolvendo áreas de conurbações. Ao estudar a expansão urbana de uma cidade sobre o relevo, sobretudo sobre os aspectos da forma que ocorreu essa expansão, surge uma complexidade de fatores que envolvem outras áreas da Geografia para que se possam explicar determinados fenômenos ambientais. Para isso, o entendimento da dinâmica do relevo, segundo Ross (2005), interessa diretamente ao homem como ser social, e passa a ser parte integrante da Geografia. Para o autor, negar que o entendimento do relevo é fundamental para os problemas da expansão dos sítios urbanos, instalação de núcleos de colonização, implantação de polos industriais, entre outros, é negar a própria Geografia. Isto nos diz que, sendo a Geografia a ciência que estuda o homem e a natureza, conforme Tricart (1977), quando se refere ao ecossistema, vê-se a importância de um estudo relacionado à ocupação humana/social sobre o relevo/ambiente. A partir de algumas diretrizes técnicas, seria possível definir intervenções práticas no cotidiano da cidade a fim de minimizar futuros problemas da urbanização que estariam condicionados ao relevo. Baseando-se em Tricart (1977), Rodrigues (2006) considera que os mapas geomorfológicos podem definir unidades físicas e geográficas que servirão de base para o preparo de planos de desenvolvimento. Isto levaria a um considerável aumento de eficiência mediante a eliminação de unidades que são de pouco ou nenhum valor. (RODRIGUES, 2006, p. 07)

Segundo a autora, Tricart identifica a necessidade da utilização do conhecimento gerado pelo estudo dos processos formadores do relevo para a prevenção de riscos e planejamento ambiental e a avaliação de impactos. Jorge (2011) diz que o relevo e seu modelado representam o fruto da dinamicidade entre os processos físicos e os agentes sociais atuantes. Isso ocorre devido ao “modo contraditório e dialético a partir da análise integrada das relações processuais de uma escala de tempo geológica para a escala histórica ou humana”. Segundo a autora há essa possibilidade, uma vez que se pode inferir que a ação humana sobre o relevo está fazendo o tempo geológico adaptar-se ao tempo do ser humano, modificando o relevo dentro desse período. Diante disso, Rezende (2003) defende que

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o alargamento da preocupação ambiental explicaria em parte a aproximação entre os campos urbano e ambiental, objeto de nossa reflexão. A tentativa de uso da expressão meio ambiente urbano tentaria, por outro lado, unir aspectos físicos, naturais e construídos do espaço urbano com aspectos de qualidade de vida urbana, entendida como o fundamento e uma síntese entre o bem-estar individual, o equilíbrio ambiental e o desenvolvimento econômico. (REZENDE, 2003, p. 141)

No Brasil são encontrados muitos exemplos de que a relação entre natureza e sociedade pode ser uma trágica combinação. Percebe-se, diante de tragédias urbanas, que não houve planejamento na ocupação dessas áreas e tampouco foram identificadas, evidenciando a ausência do Estado naquilo que é de sua responsabilidade. Para conhecer as regiões que são suscetíveis às dinâmicas do meio físico os mapeamentos são peças fundamentais para que se possa ter a conjuntura regional com as informações necessárias para o devido estabelecimento de diretrizes de trabalho. No caso da Geomorfologia, o mapeamento identifica áreas que são mais suscetíveis a desastres ou que são os melhores sítios a serem ocupados. O entendimento da dinâmica do relevo, nesta conjuntura social, é relevante, haja vista o crescimento vertiginoso das cidades. A tendência é que tais ocupações não considerem as limitações ambientais, informações essas que podem ser encontradas em trabalhos geomorfológicos. Diante dos fatores levantados, cita-se Swyngedouw (2009), que salienta o seguinte: a cidade e o processo urbano são uma rede de processos entrelaçados a um só tempo humanos e naturais, reais e ficcionais, mecânicos e orgânicos. Não há nada “puramente” social ou natural na cidade, e ainda menos antissocial ou antinatural; a cidade é, ao mesmo tempo, natural e social, real e fictícia. Na cidade, sociedade e natureza, representação e ser são inseparáveis, mutuamente integrados, infinitamente ligados e simultâneos; essa “coisa” híbrida socialnatural chamada “cidade” é cheia de contradições, tensões e conflitos. (SWYNGEDOUW, 2009, p. 100)

Para exemplificar a importância desses estudos, foram elaborados mapeamentos geomorfológicos dos municípios de Porto Alegre e de Sapucaia do Sul, a partir dos quais é possível analisar o relevo e identificar a dinâmica urbana sobre a natureza.

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Referencial teórico As aglomerações urbanas representam corpos complexos em processo de expansão espacial permanente. O relevo constitui a expressão física das condições de equilíbrio na litosfera, isto é, no substrato de todos os equipamentos implantados pelo ser humano. O preço pago pela inobservância das mínimas regras impostas pela natureza tem sido muito caro às populações e administrações públicas. Além dos desastres ambientais, as consequências estendem-se muitas vezes a perdas de vidas e patrimônios. Ao estudar a organização do relevo, a constituição geológica, suas formas de evolução e condições de equilíbrio, a geomorfologia permite estabelecer prognósticos sobre as potencialidades ofertadas ao uso urbano, bem como sobre as limitações impostas ao mesmo. Além disso, os agentes antrópicos devem ser inseridos, tratando-os como parte do sistema que proporciona alterações importantes na paisagem. Os mapeamentos geomorfológicos, cuja análise associa-se às formas, gênese e dinâmica do relevo, indicam as possíveis fragilidades dos ambientes naturais em função dos usos atuais e futuros. Segundo Moura (2011), as interferências urbanas são elementos importantes para a definição dos graus de intervenção e também para a caracterização dos novos processos geomorfológicos gerados a partir das atividades humanas no meio físico. Conforme a autora, o mapeamento deve proporcionar uma avaliação da distribuição das diversas categorias de uso da terra, distinguindo as áreas onde a intervenção antrópica ainda não alterou o ambiente de forma mais intensa daquelas onde a intervenção humana causou transformações consideráveis. Isso é de fundamental importância na identificação dos processos que podem potencializar a ocorrência de movimentos de massa, processos erosivos e inundações, face às modificações que provocam na forma original do relevo e das condições da ocupação que podem ser determinantes de situações de risco ou de surgimento de espaços com elevado comprometimento da qualidade ambiental. (MOURA, 2011, p. 178-179)

A compreensão dos fatores que definem os processos morfodinâmicos passa inclusive pelo conhecimento das intervenções antrópicas que, geralmente, estão associadas a corte e/ou aterros sobre a morfologia original, remanejando os materiais superficiais com o objetivo de obter superfícies de forma que possa receber incrementos topográficos por construções ou edificações.

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Mescerjakov (1968), ao empregar os conceitos de morfoestrutura e de morfoescultura, escreveu que a cartografia geomorfológica seria o melhor meio de estabelecer uma classificação geomorfológica, uma vez que permite distinguir, entre a diversidade das formas do relevo, os grupos genéticos mais importantes. O grande potencial na aplicação de mapeamentos geomorfológicos está na sua interface com os projetos de planejamento da ocupação humana, com vistas à economia dos recursos investidos, mediante a prevenção de problemas futuros. Sobre a representação cartográfica, Ross (2005) afirma que a identificação e classificação das formas (gênese, idade, processos morfogenéticos) são importantes instrumentos na pesquisa do relevo. O autor admite que os mapas geomorfológicos tenham um elevado grau de complexidade. Segundo ele, esta complexidade decorre da dificuldade de se apreender e representar uma realidade abstrata – as formas de relevo, sua dinâmica e gênese. E ainda segue: “no caso dos mapas geomorfológicos, os fatos concretos a serem representados são as formas do relevo de diferentes dimensões (vertente, colina, morro, serra, etc.)”. As transformações na superfície causadas pela ação antrópica devem ser entendidas e estudadas como ações geomorfológicas, independente da natureza de determinada ação. Por meio do mapa geomorfológico, é possível estudar a gênese e a evolução das formas a partir de uma investigação que consiste no reconhecimento das ações humanas na dinâmica natural preexistente. Metodologia Os mapas geomorfológicos que compõem esta pesquisa foram elaborados através da análise dos elementos altimétricos e de declividades (mapas clinográficos e hipsométricos) que, por sua vez, contribuíram para a identificação dos elementos do relevo. Além disso, foram interpretadas, em estereoscopia, fotografias aéreas de 1970, disponibilizadas pela Fundação Estadual de Planejamento Metropolitano e Regional do Rio Grande do Sul (Metroplan), que recobrem os territórios de Porto Alegre e de Sapucaia do Sul, em uma escala de 1:40.000. Para a interpretação das fotografias, usou-se um guia denominado de chave da fotointerpretação com o qual se identificam as características fotográficas. Essas chaves são baseadas em descrições e ilustrações tópicas de objetos de uma determinada categoria. Também utilizaram-se como chave de interpretação os cursos d’água, a cor e a textura, os quais sobressaem as feições de relevo. A partir desta interpretação, foram elaborados os mapas de elementos do relevo das áreas de estudo, que originaram os mapas geomorfológicos conforme proposta de Ross (1992) na escala 1:50.000, combinando as informações analisadas nos mapas hipsométricos e clinográficos com os padrões de relevo identificados nas

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fotografias aéreas. Por fim, a finalização dos mapas foi realizada com o auxílio do software ArcGIS Map 10. Concomitante à elaboração dos mapas foram realizadas saídas de campo nos municípios para checar as interpretações e aprofundar a análise dos resultados. Para o ordenamento das informações nos mapas geomorfológicos, conforme metodologia de Ross (1992), foram checadas e corrigidas as informações dos mapas gerados em gabinete, após trabalhos de campo, identificando os diferentes padrões, tipos e formas de relevo; realizaram-se registros fotográficos dos elementos de relevo observados e; analisaram-se as formas de relevo e a hidrografia para, então, definir os padrões de formas semelhantes. Quanto à ocupação urbana do município de Porto Alegre, foram analisados diferentes períodos da expansão urbana (1772 a 2010), sendo utilizadas principalmente as fases estabelecidas por Souza e Müller (2007). Estes estudos apresentavam manchas urbanas que foram utilizadas conjuntamente com as manchas urbanas de períodos mais recentes obtidas com base nas imagens de satélites disponíveis (Quickbird, 2001) e mosaico de imagens do software Google Earth (2009/2010). Junto à Prefeitura Municipal de Sapucaia do Sul, pesquisou-se todo o arquivo da Secretaria Municipal de Planejamento Urbano com o intuito de identificar a evolução da ocupação urbana mediante os registros dos loteamentos na cidade, assim como a criação dos bairros. Algumas das plantas desses loteamentos ainda eram da época em que Sapucaia do Sul pertencia ao Município de São Leopoldo. Com o objetivo de identificar tendências de crescimento do município de Sapucaia do Sul, foram visitados locais de vazios urbanos e regiões de expansão atual, identificados por mapas nos Planos Diretores, avaliando as reais condições para futuros assentamentos em saídas de campo com finalidade específica. Porto Alegre O município de Porto Alegre, capital político-administrativa do Rio Grande do Sul, situa-se no leste do Estado. O oeste e o sudoeste do município são banhados pelo lago Guaíba; ao leste, faz divisa com os municípios de Viamão e Alvorada; e ao norte o rio Gravataí o divide dos municípios de Canoas e Cachoeirinha. Porto Alegre situa-se, aproximadamente, na latitude 30° sul e na longitude 51° oeste, possuindo uma área total de 476,30 km². Sua superfície abrange áreas continentais internas (431,85 km²) e ilhas (44,45km²), localizadas no delta do rio Jacuí. A população no ano de 2010 era de 1.409.351 habitantes (IBGE, 2015), o que representa uma densidade média no município de 2.958 habitantes/km².

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O sítio de Porto Alegre é uma área de contato entre diferentes compartimentos do relevo do Estado do Rio Grande do Sul. De acordo com a compartimentação do relevo proposta por Suertegaray e Fujimoto (2004) em Porto Alegre evidenciam-se o Planalto Uruguaio Sul-riograndense e a Planície e/ou Terras Baixas Costeiras. Esses compartimentos se refletem em termos paisagísticos no município, possibilitando encontrar áreas de morros, colinas e extensas áreas planas junto aos cursos d’água. O mapeamento geomorfológico de Porto Alegre elaborado por Moura e Dias (2010) identificou diferentes padrões de relevo inseridos entre as duas unidades morfoesculturais mencionadas. O Planalto Uruguaio Sul-rio-grandense está representado predominantemente por rochas ígneas e metamórficas datadas do Pré Cambriano e de sedimentos provenientes das suas alterações sobre a morfoestrutura do Cráton Rio de La Plata e do Cinturão Orogênico Dom Feliciano. Apresenta-se com uma diversidade morfológica marcadamente em formas de morros e colinas de dimensões variadas. No município de Porto Alegre, o Planalto está representado por Padrões de Formas Semelhantes que são: Padrão em forma de morros, Padrão em forma de morros associados com colinas, Padrão em forma de morros isolados e Padrão em forma de colinas. Esses compartimentos situam-se predominantemente na parte central e no limite leste do município e apresentam as maiores altitudes e declividades de Porto Alegre. No geral os morros possuem topos convexos, ocorrendo isoladamente morros de topos aguçados configurando cristas. As vertentes são íngremes, apresentando manto de alteração pouco espesso e algumas áreas de rocha exposta. Devido à influência estrutural-litológica possuem linhas de falha e a presença de suítes graníticas. A Planície e Terras Baixas Costeiras representam a parte emersa da Bacia Sedimentar de Pelotas, unidade morfoestrutural formada durante os eventos geotectônicos que deram origem ao Atlântico Sul. A Planície se desenvolveu ao longo do Quaternário através do acúmulo de sedimentos provenientes das terras altas adjacentes e de sistemas deposicionais marinhos, os quais foram retrabalhados em ambientes transicionais. O relevo da Planície e Terras Baixas Costeiras está associado, predominantemente, à deposição marinha e lagunar, configurando-se em uma área plana, homogênea, sem dissecação, onde dominam os modelados de acumulação representados predominantemente pelas planícies e terraços. A Planície está representada em Porto Alegre por padrões de formas semelhantes que são: Padrão em forma de colinas isoladas, Padrão em forma de patamares planos, Padrão em forma de planícies flúvio-lagunares, Padrão em forma de planícies flúviolagunares com banhados, Padrão em forma de planícies flúvio-lagunares com cristas arenosas,

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Padrão em forma de planícies fluviais, Padrão em forma de planícies deltaicas e Padrão em forma de superfícies planas tecnogênicas. Tais compartimentos possuem baixa altitude e pequena declividade e localizam-se predominantemente nos limites norte, sul e oeste do município. A partir do Mapeamento Geomorfológico de Porto Alegre (MOURA e DIAS, 2012) é possível conhecer os mecanismos de funcionamento dos diversos compartimentos do relevo, com intuito de contextualizá-los com a expansão urbana do município. Para fins de análise, os padrões de relevo foram divididos como modelados de dissecação e de acumulação. O modelado de dissecação inclui os padrões em forma de morros e colinas e o modelado de acumulação inclui os padrões em forma de planícies e patamares planos (Mapa 1).

Mapa 1: Ocupação Urbana de Porto Alegre de 2001 a 2010.

Entende-se por modelados de dissecação aqueles nos quais predomina a morfodinâmica erosiva e modelados de acumulação aqueles nos quais ocorre predominantemente a morfodinâmica de deposição de sedimentos. A morfodinâmica natural dos modelados de dissecação denota processos nos quais o escoamento superficial predomina em relação à infiltração (FUJIMOTO, 2008). Quando alterada pela urbanização a morfodinâmica passa a ser antropogênica,

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essa intensifica os processos que já ocorriam de forma natural e interfere naqueles que eram predominantes. Quando ocupadas, essas áreas sofrem o redirecionamento da drenagem, com diminuição significativa da capacidade de infiltração, em virtude da impermeabilização do solo. O escoamento superficial difuso é reduzido, intensificando o escoamento superficial concentrado, principalmente nas baixas vertentes. A morfodinâmica natural dos modelados de acumulação tem predomínio dos processos de infiltração e escoamento subsuperficial. A ocupação dessas áreas promove a edificação e pavimentação e a consequente impermeabilização da superfície. Essas ações diminuem a capacidade de infiltração, acelerando o processo de escoamento superficial neste modelado. Dessa forma passa a ocorrer de forma mais intensa o transporte de materiais. Junto aos cursos d’água podem ocorrer solapamentos das margens e o transporte dos sedimentos que formarão bancos de deposição nas áreas mais baixas e nos fundos dos vales, interferindo na dinâmica fluvial. Ao longo do processo de expansão urbana do município de Porto Alegre diversos compartimentos do relevo foram ocupados, conforme houvesse a necessidade de novas áreas e técnicas que permitissem sua ocupação. Nesse sentido, acompanhando o crescimento do número de indivíduos na população, a extensão da ocupação também aumentou, sendo possível verificar sobre quais modelados do relevo foi predominante em cada período, bem como as principais consequências para a morfodinâmica dessas áreas. Ao se analisar a expansão da ocupação urbana no município, se percebe que ela ocorre do centro para a periferia de forma radial, sendo em alguns períodos freada pelo lineamento de morros que divide as zonas sul e norte de Porto Alegre. Por essa característica a zona norte do município é mais densamente ocupada, enquanto a zona sul apresenta uma urbanização que iniciou de forma dispersa, ocorrendo em alguns núcleos, mas que atualmente apresenta um avanço considerável, gerando um adensamento dessas áreas nos anos mais recentes. De forma geral os modelados de dissecação são aqueles onde há e sempre houve o predomínio da ocupação de Porto Alegre. São as áreas onde dominam os padrões em forma de colinas, incluindo aquelas associadas com morros, somando praticamente 30% da área do município. Outros dois compartimentos de significativa relevância na distribuição municipal são os morros com 23,62% e as planícies flúviolagunares em torno de 18% da área municipal A ocupação efetiva do modelado de dissecação no ano de 2010 correspondia a 28,94% da área do município e 61,66% do total das áreas ocupadas. As intervenções realizadas sobre essas áreas redirecionam o fluxo em função da drenagem urbana,

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com destaque para a impermeabilização do solo e o consequente aumento do escoamento superficial. Os degraus de cortes efetuados nas vertentes para a construção e a impermeabilização são as principais alterações evidenciadas, ocasionando uma mudança no padrão de drenagem e um aumento dos processos erosivos, uma vez que as instalações retiram a cobertura original e suas demais ações aumentam a velocidade do escoamento superficial, facilitando o transporte de materiais e fazendo com que cheguem mais rapidamente às áreas de acumulação.

Em cada período histórico analisado há o incremento de áreas ocupadas, mantendo relativamente a proporção entre os modelados. O crescente avanço da ocupação sobre os modelados de acumulação acentua as modificações nos processos morfodinâmicos naturais. O processo de ocupação, através das construções, compactação e consequente impermeabilização do solo dificultam a infiltração, aumentando o escoamento superficial. O redirecionamento dos fluxos hídricos ocasionado pelos cortes, aterros e canalizações nas formas de relevo, modifica o padrão de drenagem, aumentando o escoamento superficial já que há a diminuição da infiltração e do escoamento difuso.

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Destaca-se o crescimento da ocupação de áreas de acumulação do relevo na zona sul de Porto Alegre que, durante muito tempo, permaneceu segregada e predominantemente destinada às atividades rurais. Trata-se de uma área com acesso dificultado pela linha de morros que a separa da zona norte (mais densamente ocupada) e pela distância do centro do município. As facilidades de acesso existentes atualmente e as iniciativas governamentais e empresariais incentivam a ocupação desse setor do município que é formado, em sua maior parte, por planícies. Dentre as iniciativas que contribuem para o aumento da ocupação da zona sul destacam-se as políticas assistencialistas do governo, principalmente os programas de moradia, que visam à obtenção de casas próprias e incentivam a construção de conjuntos habitacionais em áreas onde o valor dos lotes seja baixo; também a realocação de diversas comunidades, antes residentes em áreas de interesse para o município e que são realocadas para a zona sul, ficando muitas vezes afastadas dos lugares onde moravam; e a construção de condomínios horizontais, atrelados a uma propaganda de proximidade com a natureza e qualidade de vida (MOURA et al, 2012, MOURA e DIAS, 2012). As intervenções antrópicas ocasionadas pelo processo de expansão urbana estão modificando os processos morfodinâmicos do município. Cabe salientar que algumas áreas de planície possuem características naturais que favorecem a inundação, as alterações causadas pelo processo de urbanização devem contemplar técnicas de drenagem urbana que minimizem tais características, pois ao contrário, intensificarão a suscetibilidade aos processos de inundação nas referidas áreas. Sapucaia do Sul O Município de Sapucaia do Sul está inserido na Região Metropolitana de Porto Alegre e conta com 130.988 habitantes (apenas 488 na zona rural), distribuídos em 58,644 km², conforme o Censo do IBGE (2010). Localizado à 25 km ao norte da capital do Estado do Rio Grande do Sul, Sapucaia do Sul faz divisa ao norte com Novo Hamburgo e São Leopoldo, a leste com Gravataí e Cachoeirinha, ao sul com Esteio e a oeste com Nova Santa Rita e Portão. A paisagem na região é marcada por extensas áreas de planícies pertencentes à morfoescultura da Depressão Periférica, com presença de morros testemunhos, caracterizando uma área transicional com o Planalto Meridional, assim como os morros graníticos de Porto Alegre em relação à morfoescultura do Planalto Uruguaio Sul-riograndense. No setor oeste da área delimitada de Sapucaia do Sul, surgem os sedimentos cenozoicos e recentes relacionados à planície de inundação do rio dos Sinos e drenagens de maior porte associados.

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Com relação à geomorfologia regional, a área de trabalho situa-se dentro da unidade morfoescultural da Depressão Periférica, constituindo-se pelos Patamares da Serra Geral e em grande parte pela planície fluvial do rio Jacuí e pelas planícies alúvio-coluvionares dos rios dos Sinos e do Caí. Ainda assim, é possível perceber unidades representativas do Escudo Uruguaiosul-riograndense, as quais estão associadas os morros graníticos da região de Porto Alegre. Basicamente a metade do território de Sapucaia do Sul apresenta uma altitude de até 50m, destacando os pontos mais elevados, que vão desde a Coxilha Janjão Pereira com 138m, o Morro das Pedreiras com 190m, o Morro das Cabras com 287m, o Morro de Sapucaia com 289m até atingir o Morro do Paula com seus 306m acima do nível do mar. As áreas de maior altitude e declividade no município ainda não estão ocupadas densamente, visto que pertencem a área do perímetro rural. Conforme se observa no mapa 2, o município de Sapucaia do Sul caracterizase por três padrões de formas de relevo: Padrão em Formas de Planícies, Padrão em Forma de Colinas e Padrão em Formas de Morros. Todas essas formas estão inseridas na Depressão Periférica do Rio Grande do Sul.

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Mapa 2 - Mapa de Usos e Ocupação Urbana sobre o Relevo em Sapucaia do Sul – 2010. Elaboração: Felipe de Sousa Gonçalves.

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Em decorrência da ocupação, não foi possível detectar com precisão áreas de dinâmicas atuais em alguns pontos do município. Entretanto, nas áreas rurais, onde a ocupação é rarefeita, identificaram-se intervenções antrópicas, como aterros sanitários, mineração de argila e de arenitos, bem como algumas unidades de encosta como topos dos morros e rampas coluviais associadas aos morros. Observa-se um relevo com processo erosivo, em áreas junto aos morros e às colinas que, consequentemente, contribuem para o assoreamento dos cursos hídricos situados nas planícies fluviais. Com altitude média de 10m, ocupando 15,4% do território do município de Sapucaia do Sul, sendo 33,88% urbanizado, o padrão em formas de Planícies, constitui-se de aluviões e materiais depositados no canal fluvial, nesse caso, associado aos leitos do rio dos Sinos e do arroio José Joaquim. Essa área é plana e homogênea, sem dissecação e ocorre sobre sedimentos do Quaternário. São frequentes nessa região as inundações decorrentes do extravasamento dos arroios José Joaquim e Mem de Sá, juntamente com o rio dos Sinos, uma vez que há baixa declividade e drenabilidade. Por estar associada às planícies fluviais, a dinâmica apresenta forte instabilidade, uma vez que se registra ocorrência de processos erosivos nas margens dos cursos d’água relacionados às inundações. As Planícies sofrem diretamente as consequências das cheias, que, no entanto, não causam grandes transtornos urbanos, apesar da proximidade com o rio dos Sinos. Encontram-se neste relevo grandes indústrias do município, que promovem e mantém alguns pontos de preservação, como o caso da Gerdau, somado às áreas do Parque Zoológico. Corresponde ao Padrão em Forma de Colinas, com variação de 20 a 70m de altitude, a área onde a cidade mais se desenvolveu, alcançando 40,98% do território municipal. Pode-se considerar que, em boa parte, esse relevo está impermeabilizado, uma vez que 81,20% encontram-se urbanizados. As colinas são consideradas de fraca dissecação, característica predominante na Depressão Periférica. Nas áreas de erosão acelerada, devido à ação antrópica, predomina a ocorrência de sulcos e ravinas, além de pontos de alagamentos na cidade. Onde ainda se preserva a vegetação natural, predomina o escoamento difuso e a infiltração. Nesse padrão de relevo estão assentados alguns dos principais equipamentos urbanos de Sapucaia do Sul: o hospital municipal, os dois cemitérios, dois principais templos religiosos, a prefeitura e o quartel militar. Nesse padrão de relevo, além da nascente do arroio Mem de Sá, há também o arroio José Joaquim, o maior do município. O Padrão em Formas de Morros está basicamente na Zona Rural e, nesse, encontram-se os morros Sapucaia, das Cabras e do Paula com altitudes acima de

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120m, ocupa 43,62% do território do município e 31,25% de sua área urbanizada. O Padrão de Morros apresenta uma maior dissecação do que as demais formas de relevo e se constitui da Formação Botucatu e mesmo possua altitudes maiores em relação ao restante do município, bem como pontos de declividade acentuada, já possui uma considerável ocupação urbana. Apesar da ocupação já existir, ainda não se observam movimentos de massa que ofereçam riscos à população, haja vista que as áreas com declividade acentuada são aquelas em que configuram os paredões dos morros testemunhos no município. No entanto, em alguns pontos surgem ocupações situadas em áreas com potencialidade aos processos erosivos e movimentos de massa, que necessitam de monitoramento a fim de que tal ocupação não se transforme em problemas futuros. As condições originais do morro Sapucaia são oferecidas por Rambo (1956): o tipo de tabuleiros desta região é o Morro de Sapucaia. Coroando as coxilhas campestres, cercado de um colar de mata virgem, limitado de paredões de todos os lados, esta truculenta fortaleza de arenito constitui um dos marcos mais inconfundíveis da borda da serra. Este morro é um museu natural contendo todos os elementos essenciais da geologia, vegetação e formas individuais do arenito da depressão central, a capa melarífica do topo já desapareceu por completo. (RAMBO, 1956, p. 199)

Já nesse relato, Rambo lastima a exploração e desgaste das encostas do principal morro do município. Além disso, é uma breve descrição da paisagem e da geomorfologia em Sapucaia do Sul. Sapucaia do Sul cresceu e se urbaniza inserida no processo de expansão de desenvolvimento metropolitano. Na década de 1960, outros centros industriais, além dos já consolidados (Porto Alegre, Novo Hamburgo e São Leopoldo), começam a se destacar. Canoas disputa posição com Novo Hamburgo, e Sapucaia do Sul e Esteio em menor peso. Inicialmente, é possível identificar que, até 1950 os loteamentos foram realizados no Padrão em Formas de Colinas. Em 1980 os loteamentos são implantados em direção ao rio dos Sinos e à região oeste da cidade, ensaiando uma pequena ocupação das áreas de morro. Com a expansão do perímetro urbano a partir da década de 1990, e consequente diminuição da área rural, inicia-se uma nova tendência de ocupação das áreas de morros. Como grande parte da cidade está assentada no Padrão em Formas de Colinas, não existem grandes problemas relacionados aos processos de encostas que possam prejudicar o ambiente urbano, desde que sejam tomadas as medidas necessárias para

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que a ocupação ocorra de forma adequada. Contudo, a tendência de expansão urbana em direção aos morros poderá proporcionar o surgimento de erosão e de movimentos de massa. Conclusões A contribuição dos mapas geomorfológicos para as cidades, passa pela identificação das formas de relevo no contexto regional e também àquelas existentes no território municipal e, assim, fornece orientações ao ordenamento territorial. Para as regiões metropolitanas brasileiras, que vêm recebendo políticas públicas de habitação popular, ressalta-se a utilidade desses mapas, tendo em vista a identificação de áreas passíveis de ocupação urbana em relação a configuração do relevo e suas fragilidades à ocupação. Nem sempre áreas que ainda não estão ocupadas nas cidades devem ser disponibilizadas para o parcelamento urbano, uma vez que as suas características podem não ser adequadas. É necessário critério para “Ocupar onde está vazio”, caso contrário se ampliarão os problemas relacionados ao déficit habitacional. Em Porto Alegre a ocupação recorrente de áreas mais elevadas do relevo reflete o medo histórico das enchentes no município, evidenciando que sem o devido saneamento as áreas mais baixas eram difíceis de serem ocupadas, seguidamente acarretando em perdas. A expansão pelos diferentes modelados foi exigindo a melhoria das infraestruturas, com destaque para o saneamento e para as obras viárias, que interligaram o município e permitiram que sua ocupação fosse efetiva. As alterações que o processo de urbanização acarretou ao relevo de Porto Alegre são, na escala de análise, pontuais. No entanto, atualmente, o aumento da expansão nos compartimentos de planície, em especial na zona sul e no extremo norte do município podem ocasionar modificações em áreas até então preservadas. Infelizmente, o processo de construção da nova cidade não tem considerado aspectos que serão, mais tarde, fundamentais para uma boa dinâmica citadina. No caso de Sapucaia do Sul, até os anos 1970, ainda como herança de São Leopoldo, a administração municipal manteve uma política de ordenamento e de urbanização da cidade. No entanto, com o inchaço populacional e intervenções dos governos estadual e federal, além do apelo da opinião pública, os gestores municipais não tem conseguido enfrentar as pressões e o planejamento territorial tem se mostrado desarticulados das questões ambientais. Nesse sentido, restou ao município de Sapucaia do Sul aceitar os equipamentos públicos, como a nova linha de trem, a Trensurb, e novos conjuntos habitacionais, como a COHAB; além da flexibilização na legislação e ausência de fiscalização no intuito de facilitar a ocupação do território

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atendendo a interesses privados. A evidência disso é a forma como a dinâmica social foi se comportando, surgindo loteamentos irregulares. Conforme foi descrito, grande parte da cidade hoje está assentada ou em Planícies ou em Formas de Colinas. O que acontece são inundações próximas ao rio dos Sinos e aos arroios do município, causando transtornos à população. As áreas sem ocupação urbana ficam em áreas onde predomina as Formas de Morros. Ocupações mal realizadas nestas regiões poderão levar a situações de perigo aos movimentos de massa e ou aos processos erosivos, como outras regiões do País. Dessa forma, a complexidade de uma cidade não está só nas relações socioeconômicas que se estabelecem sobre o uso do solo, mas na forma como ocorreu sua ocupação sobre as formas de relevo. A compreensão das alterações urbanas atreladas ao conhecimento do ambiente deve integrar os estudos de urbanistas e de administradores, pois as formas de relevo geradas e modificadas pela ação humana podem trazer benefícios e prejuízos à sociedade em geral. Referências BRASIL. Lei n.º 10.257, de 10 de julho de 2001. Regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal que estabelece diretrizes da política urbana e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 11 jul. 2001. BRASIL. Lei n.º 12.651, de 25 de maio de 2012. Estabelece normas gerais sobre a proteção da vegetação, áreas de Preservação Permanente e as áreas de Reserva Legal; a exploração florestal, o suprimento de matéria-prima florestal, o controle da origem dos produtos florestais e o controle e prevenção dos incêndios florestais, e prevê instrumentos econômicos e financeiros para o alcance de seus objetivos. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 28 mai. 2012. BRASIL. Radambrasil: Folha SH22 - Porto Alegre. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Rio de Janeiro, 1986. 791p. CASSETI, Valter. Ambiente e Apropriação do Relevo. São Paulo: Contexto, 1991. DIAS, Tielle Soares. A Expansão da Ocupação Urbana sobre o Relevo do Município de Porto Alegre - RS. Trabalho de Graduação – Instituto de Geociências, Departamento de Geografia. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2011. GONÇALVES, F. S. A Expansão Urbana Sobre o Relevo do Município de Sapucaia do Sul. 2013. 162 f. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Instituto de Geociências, Programa de PósGraduação em Geografia. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2013. GONÇALVES, Felipe de Sousa. Mapeamento Geomorfológico como Subsídio à Análise Socioambiental do Município de Sapucaia do Sul – RS. Trabalho de Conclusão de Curso – Instituto de Geociências, Departamento de Geografia. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2013.

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Capítulo 5 Análise das intervenções na morfologia original e na dinâmica geomorfológica em áreas alagáveis do município de Porto Alegre – RS Tielle Soares Dias Nina Simone Vilaverde Moura Introdução A crescente expansão das áreas urbanas responde a concepção de desenvolvimento atualmente difundida, da qual o crescimento econômico e o consumo são os pilares de sustentação (SANTOS e SILVEIRA, 2008). Nas décadas recentes, a população urbana do Brasil cresceu consideravelmente, em 1970, mais da metade da população vivia nas áreas urbanas, em 1980, esse percentual era de 68%. Em 1991, a população urbana do país passava dos 70%, sendo que no ano de 2000 ultrapassou a marca dos 80%. A partir dos dados censitários de 2010, esse percentual aproxima-se dos 85% (IBGE, 2013). Para o município de Porto Alegre, desde a década de 1970 o grau de urbanização era superior aos 90%. Deve-se considerar que a ocupação efetiva do município pode ser datada a partir do século XVIII, se expandindo desde então em área ocupada, embora nos anos recentes o número de habitantes apresentou uma estabilização. Essa expansão ocorre em um sítio cuja dinâmica natural é modificada pelas atividades intrínsecas ao processo de urbanização. A abertura de vias, os loteamentos e as modificações dos corpos d’água, bem como os aterros de áreas alagadiças e os cortes realizados no terreno transformam o ambiente, no qual novas dinâmicas passam a ser identificadas. O crescimento urbano de Porto Alegre ocorreu aproveitando as vantagens que o meio físico lhe ofereceu, como um ponto estratégico para o porto e, posteriormente, o traçado de suas vias seguindo as planícies. Sabe-se, no entanto, que a atividade humana modifica os aspectos naturais dos ambientes que ocupa, adaptando o espaço às suas necessidades na medida em que existam possibilidades técnicas para tal, buscando utilizar o máximo possível os elementos que o meio físico oferece (HAUSMAN, 1963). A consolidação da ocupação urbana acarreta diferentes alterações na morfologia original e na dinâmica geomorfológica no ambiente urbano, sejam elas areolares, através das impermeabilizações, cortes, aterros, ou lineares, através das canalizações e retificações dos cursos d’água e da estruturação das vias. Os tipos de

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intervenções realizadas pelo processo de uso e ocupação da terra, bem como sua intensidade, podem acarretar alterações na dinâmica natural local. Em Porto Alegre, o acúmulo de água nos leitos das vias, quando da ocorrência de eventos pluviométricos, está intrinsecamente relacionado com essas intervenções. Assim, os efeitos de concentração e densidade urbana e as práticas de urbanismos sem considerar a dinâmica natural do meio ativam as fragilidades do sítio sobre o qual a população está assentada (THOURET, 2007). Portanto, analisar as intervenções realizadas pelo uso e ocupação da terra em áreas onde são identificados os eventos de inundação ou alagamento no município de Porto Alegre pode auxiliar no planejamento e na gestão do espaço urbano. Concepções teóricas para o desenvolvimento da análise Com objetivo de analisar os processos, materiais e formas produzidas a partir da ocupação dos ambientes naturais pela sociedade, diversos estudos têm sido desenvolvidos, buscando identificar e mapear as alterações no ambiente que resultem da presença e da intervenção antrópica no meio natural (RODRIGUES, 2005). A intervenção humana, ocasionada a partir do processo de ocupação, pode modificar as propriedades e a localização dos materiais superficiais, bem como interferir nos processos e gerar novas morfologias (MOURA, 2008). A localização e categorização dessas novas formas resultam em mapeamentos da morfologia antropogênica. Para isso, observar as ações humanas como ações geomorfológicas consiste em destacar as transformações da superfície por elas ocasionadas. Assim, recorre-se ao reconhecimento da gênese e evolução das formas (informações que podem ser obtidas através do mapeamento geomorfológico), à investigação das ações humanas e às modificações por elas geradas, como modo de avaliar o tipo de interferência ocasionada na dinâmica preexistente. Segundo Rodrigues (2005), a cartografia geomorfológica, quando apoiada no estudo das formas, materiais e processos da superfície terrestre, permite a obtenção de produtos retrospectivos ou evolutivos. Nos estudos de Rodrigues (1999, 2004) são propostas orientações para as pesquisas da intervenção antrópica no meio físico. Dentre elas cabe destacar: a observação das ações humanas como ações geomorfológicas; a investigação nas ações humanas de padrões significativos para a morfodinâmica e; a investigação da dinâmica e da história cumulativa das intervenções humanas. A investigação da dinâmica e da história cumulativa das intervenções humanas propõe a reconstituição da morfologia original da área, a partir da análise das intervenções que ocorreram na superfície, identificando formas que sofreram

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modificações em sua dinâmica. Podendo com isso identificar a situação anterior a elas; o período em que as modificações ocorreram e; a dinâmica instaurada após as modificações do relevo (MOURA, 2008). Com esses aspectos pode-se ter um melhor discernimento sobre a influência que a ocupação exerce sobre o espaço e a importância em incluí-la como um agente de modificação ambiental. Etapas Metodológicas e Operacionais no Desenvolvimento da Pesquisa Para o desenvolvimento desta pesquisa foi realizada a análise da expansão urbana do município de Porto Alegre; o mapeamento dos pontos de alagamento e inundação; o mapeamento da morfologia original; a análise do uso e ocupação da terra e o mapeamento da morfologia antropogênica da área de estudo. Primeiramente foi realizado o levantamento de informações existentes sobre o município de Porto Alegre no contexto a ser analisado; a pesquisa e seleção dos materiais cartográficos disponíveis; a revisão bibliográfica dos materiais e aos conceitos e temas pertinentes à pesquisa; bem como a busca e seleção de dados junto às instituições de referência. Foram retomados trabalhos já realizados sobre essa temática como base referencial para caracterizar como, historicamente, a população de Porto Alegre ocupa as áreas do município. Como obras de referência foram utilizadas as publicações de Souza e Müller (2007); Hausman (1963), Franco (2006); Souza (2010) e Ab’Saber (1965), dentre outras obras de destacada relevância. Os arquivos disponibilizados pela administração municipal foram também avaliados, tais como materiais iconográficos e cartográficos, os planos diretores anteriores e o atual, e demais materiais encontrados ao longo do trabalho que auxiliaram na pesquisa. Para a determinação dos pontos de alagamento e inundação no município de Porto Alegre, já que esses são a especificidade das áreas do município a serem estudadas, foi considerada sua ocorrência sobre vias públicas e sua concentração em área. Sendo primeiramente analisados os anos com maiores índices pluviométricos, selecionado o ano no qual poderiam ser obtidos os registros de alagamento, listados os meses e dias que tiveram índices pluviométricos significativos, a partir dos dados disponibilizados pelo Instituto Nacional de Meteorologia (INMET) e a Prefeitura Municipal de Porto Alegre, em especial o Projeto Metroclima- Sistema de Vigilância Meteorológica de Porto Alegre. A partir da definição das datas nas quais ocorreram esses eventos, foi contatada a Gerência de Fiscalização de Trânsito da Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC), a qual registra diariamente as ações realizadas. O dado disponibilizado por essa gerência refere-se a quais vias (e em que ponto da via), nas datas de referência, tiveram transtornos no trânsito por razão de alagamento na pista.

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A morfologia original foi mapeada apenas nas áreas selecionadas, onde há concentração dos eventos de inundação e alagamentos. A geomorfologia (MOURA e DIAS, 2012), bem como a morfologia original do município de Porto Alegre (DIAS, 2011), já mapeadas, foram utilizadas como material base para essa pesquisa, sendo aprimoradas a partir do detalhamento das informações, com o aumento da escala de análise. Para caracterização do uso e ocupação das áreas do entorno das vias selecionadas foram utilizados o Mapa de Uso e Ocupação do Solo (HASENACK, 2008), disponível em arquivo shapefile; e imagens de satélite de alta resolução, através do software Google Earth Pro. Foram utilizados também materiais iconográficos disponíveis nos diversos canais de comunicação. Para o processamento dos dados e elaboração de mapas foram relacionados tecnicamente os dados obtidos e gerados os documentos que permitiram a análise posterior, tais como mapas, gráficos e tabelas. Alagamentos e inundações urbanas Porto Alegre possui um clima subtropical úmido, segundo a classificação de Köppen (AYOADE, 1991), caracterizado por registrar valores de temperatura média no mês mais quente superior a 22°C e chuvas bem distribuídas durante o ano. Segundo Livi (1998), uma das características marcantes do clima em Porto Alegre é a intensa variabilidade dos elementos do tempo meteorológico ao longo do ano. Isso se deve ao fato de o município estar localizado em uma zona de transição climática em que massas de ar tropical marítimo (mT) alternam-se com massas de ar polar marítimo (mP), uma mais frequente no verão, outra no inverno, respectivamente. Em razão das variações apresentadas pelos elementos do tempo meteorológico, dentre eles a precipitação, Porto Alegre está entre as cidades do Brasil que possuem um clima complexo, com frequentes alterações das condições atmosféricas. Grandes enchentes já provocaram calamidade, com a expansão da urbanização, os alagamentos e as inundações provocados por chuva intensa se tornaram a maior preocupação (METROCLIMA, 2012). Segundo Tucci (2003), as inundações urbanas são ocorrências tão antigas quanto qualquer aglomeração urbana. O conceito de inundação (BRASIL, IPT, 2007) está relacionado ao extravasamento da água para as áreas marginais ao leito de escoamento, normalmente não ocupadas pelas águas, isso ocorre durante a enchente, quando as vazões aumentam de forma que a calha do curso d’água não tem capacidade de descarga. A área marginal, que periodicamente recebe esses excessos de água denomina-se planície de inundação, várzea ou leito maior. Quando a população utiliza essas áreas marginais ao leito de escoamento das águas para

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moradia, transporte e circulação (ruas, rodovias e passeios), recreação, comércio, indústria, entre outros usos e atividades, as inundações passam a ocorrem em áreas urbanas. Segundo Tucci, (2003) estes eventos podem ocorrer devido ao comportamento natural dos rios ou serem intensificados pelo efeito de alteração ocasionada no meio físico durante o processo de urbanização, especialmente pela impermeabilização das superfícies e a canalização dos cursos d’água. Para a identificação das áreas onde se concentram os eventos de alagamento e/ou inundação que causam transtornos ao trânsito de veículos e pessoas em Porto Alegre foram primeiramente analisados os períodos de chuva no município. Para complementar a análise, foi considerado um período histórico a partir do qual é possível visualizar padrões de ocorrências de inundação ou alagamentos, bem como relacionar esses eventos com outros eventos da série histórica em questão. Para a avaliação da precipitação foram utilizados dados da estação meteorológica de Porto Alegre do INMET – 8º DISME (Instituto Nacional de Meteorologia – 8º Distrito de Meteorologia). O total diário de precipitação da estação do INMET corresponde à soma das leituras das 18h00min UTC do dia anterior à observação, até às 12h00min UTC do dia informado (BRASIL, 1999). Os dados foram obtidos a partir do BDMEP - Banco de Dados Meteorológicos para Ensino e Pesquisa (INMET, 2013). São dados diários que foram analisados desde o ano de 1970 até o ano de 2012. Os meses nos quais havia alguma falha no registro foram complementados com os dados fornecidos pelo Laboratório de Geografia Física do Departamento de Geografia da UFRGS, obtidos diretamente do 8º DISME. Com os dados obtidos foram selecionados os seis anos com maiores volumes de precipitação acumulados, são eles: 1972, 1986, 1987, 2002, 2009 e 2012. Nesses, observa-se que o mês de setembro está entre os quatro meses mais chuvosos em cinco dos seis anos selecionados. Com base nos dados analisados, a ocorrência de eventos pluviométricos é constante, apresentando médias mensais elevadas nos meses mais chuvosos, e eventos concentrados recorrentes. Dessa forma, a distribuição das chuvas no município é um fator capaz de gerar inundações e/ou alagamentos na área urbana, uma vez que ocorrem em abundância e frequentemente. Por essa razão, sabe-se que os eventos de inundação e/ou alagamento podem ocorrer devido a vários dias de chuvas consecutivos ou a dias com totais pluviométricos elevados. Podem ocorrer ainda inundações e alagamentos causados pela ocorrência conjunta desses dois eventos: prolongados e concentrados, conforme descrito anteriormente por Fujimoto (2001). O ano de 2012 selecionado pela existência e organização dos dados de trânsito disponibilizados pela Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC), para

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compatibilização na pesquisa, teve uma análise pluviométrica mais detalhada, com intuito de identificar a ocorrência de dias com índice pluviométrico superior a 30 mm (limite a partir do qual inicia a recorrência de registros, tanto na mídia quanto nos dados de trânsito) e períodos com dias de chuva consecutivos cujo volume total superasse o limite dos 30 mm. Considerando-se os dias, no ano de 2012, que tiveram índice pluviométrico superior a 30 mm, foram obtidas 14 datas, destas 9 estavam vinculadas a chuvas prolongadas. Para a determinação dos pontos de alagamento no município de Porto Alegre, foi considerada a ocorrência desse fenômeno em vias públicas durante os eventos pluviométricos concentrados e prolongados identificados no ano de 2012. Atualmente, eventos desse tipo interferem diretamente no fluxo de veículos no ambiente urbano sendo registrados pelas equipes de fiscalização de trânsito da Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC). Por se tratar de um estudo baseado nas interferências antrópicas sobre os elementos do meio físico e por ser a dinâmica hidrológica um dos importantes pontos da pesquisa, para a determinação das áreas, foi considerado o entorno dos pontos identificados como a bacia hidrográfica na qual os pontos estão inseridos (Mapa 1). Para fins de visualização, tendo em vista a sobreposição dos pontos de alagamento registrados, foi estimada a densidade dos registros de alagamento utilizando-se o estimador por Kernel. O raio considerado foi de 1 km e a ocorrência de alagamentos registrados pelas equipes de fiscalização de trânsito da EPTC foi apresentada, através da escala de cinza exposta no mapa de concentração. Combinados os 338 registros de alagamento realizados no ano de 2012 com os limites das bacias hidrográficas do município, obteve-se como resultado que a concentração desses eventos está na bacia do arroio Almirante Tamandaré, que concentrou 33,4% das ocorrências registradas no período. Considerando-se as áreas totais das bacias hidrográficas identificadas no município de Porto Alegre, elegeu-se como área prioritária de análise a sub-bacia onde os registros de alagamento estivessem concentrados. O limite da sub-bacia foi obtido junto ao Departamento de Esgotos Pluviais – DEP, Prefeitura Municipal de Porto Alegre, decorrentes de estudos realizados por essa autarquia para subsidiar os Planos Diretores de Drenagem Urbana (DEP, 2005). Dessa forma, para análise das intervenções na morfologia das áreas onde há concentração dos registros de alagamento, foi selecionada a bacia hidrográfica com maior recorrência do fenômeno, no ano em questão e delimitada como área de estudo a sub-bacia com maior incidência de registros de alagamento das vias. A sub-bacia

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pertencente à bacia do arroio Almirante Tamandaré selecionada concentrou 26,0% das ocorrências de alagamento de vias, no ano de 2012, sua área total é de 2,83km².

Mapa 1– Concentração dos pontos de alagamento registrados pela EPTC no ano de 2012 em Porto Alegre. Elaboração: Tielle Soares Dias, 2013.

A morfologia original Considerando que a ocupação humana, através das intervenções realizadas sobre o sítio, modifica a morfologia original e a dinâmica geomorfológica (FUJIMOTO, 2002), é imprescindível identificar as condições anteriores ao processo de urbanização (GOUVEIA, 2010). Dessa forma, foram realizados o mapeamento e a caracterização das morfologias originais ou pré-intervenção. A descrição da compartimentação das formas de relevo está fundamentada na proposta taxonômica de Ross (1992). No âmbito da morfoestrutura, o município de Porto Alegre apresenta duas unidades: o Escudo Uruguaio Sul-rio-grandense que tem como unidade mofoescultural o Planalto Uruguaio Sul-rio-grandense e; a Bacia Sedimentar de Pelotas, representada pela morfoescultura denominada Planície e/ou Terras Baixas Costeiras (MOURA e DIAS, 2012).

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O Planalto Uruguaio Sul-rio-grandense destaca-se pelos caracteres tectônicos e litológicos de sua formação e por seus diferentes graus de dissecação, cujas altitudes médias na região metropolitana de Porto Alegre estão predominantemente em torno de 50m a 100m. Apresenta-se com uma diversidade morfológica em grande parte em formas de morros e colinas de dimensões variadas situados no centro do município, formando uma faixa alongada de direção NE-SW predominantemente. No geral, os morros possuem topos convexos, ocorrendo isoladamente morros de topos aguçados configurando cristas. As vertentes são íngremes, apresentando manto de alteração pouco espesso e algumas áreas de rocha exposta. Devido à influência estrutural-litológica, possuem linhas de falha e a presença de suítes graníticas. As áreas da Planície ou Terras Baixas Costeiras representam a parte emersa da Bacia Sedimentar de Pelotas, unidade morfoestrutural formada durante os eventos geotectônicos que deram origem ao Atlântico Sul. A Planície se desenvolveu ao longo do Quaternário, através do acúmulo de sedimentos provenientes das terras altas adjacentes e de sistemas deposicionais marinhos, os quais foram retrabalhados em ambientes transicionais. O relevo da Planície e Terras Baixas Costeiras está associado, predominantemente, à deposição marinha e lagunar, configurando-se em uma área plana, homogênea, sem dissecação, onde dominam os modelados de acumulação representados de modo geral pelas planícies, patamares planos e terraços. Tais compartimentos possuem baixa altitude e pequena declividade e localizam-se, predominantemente, nos limites norte, sul e oeste do município. A sub-bacia hidrográfica em estudo está localizada nas proximidades da foz do rio Gravataí e margeada, em sua morfologia original, pelo lago Guaíba. Essa proximidade com os corpos d’água que drenam áreas mais elevadas do estado, no caso do Gravataí, e que recebem grandes quantidades de água vinda dos rios que nele deságuam, no caso do Guaíba, aliada à configuração de um relevo plano faz com que a área de estudo seja frequentemente mencionada em textos históricos como uma área de inundação. Atualmente, a área de estudo está localizada entre os bairros Navegantes, São João, São Geraldo e Marcilio Dias. Observa-se tanto nas representações cartográficas quanto no discurso à época, a inexistência de menções à presença de cursos d’água superficiais na região, afora o Gravataí e o Guaíba. No entanto, são sempre mencionados episódios de inundações e alagamentos e as tratativas por melhorias no saneamento e drenagem dessa área (MELLO, 2008). O Mapa da Geomorfologia Original (Mapa 2) elaborado é datado como referente ao início do século XIX uma vez que as intensas alterações que ocasionaram

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mudanças no relevo passaram a ser implantadas a partir desse período. Os compartimentos do relevo identificados no mapeamento da sub-bacia hidrográfica da bacia do arroio Almirante Tamandaré foram: padrão em forma de colinas relativo às áreas morfoesculturais do Planalto Uruguaio Sul-riograndense, e padrão em forma de planícies flúvio-lagunares com banhado, relativo às áreas morfoesculturais da Planície e Terras Baixas Costeiras. Quase a totalidade da área de estudo é composta por áreas planas correspondentes ao padrão de planícies e com baixas altitudes.

Mapa 2– Morfologia Original da Sub-bacia Hidrográfica da Bacia do Arroio Almirante Tamandaré selecionada para estudo. Elaboração: Tielle Soares Dias, 2013.

O Planalto está representado na sub-bacia hidrográfica da bacia do arroio Almirante Tamandaré pelo padrão em forma de colina. O padrão em forma de colinas é formado por rochas graníticas da formação Granito Independência, de estrutura maciça, esse granito pode apresentar, na área de estudo, cobertura dos sedimentos quaternários da bacia do rio Gravataí (HASENACK, 2008). Os solos são classificados como Argissolos Vermelhos e Argissolos Vermelhoamarelos, caracterizados como solos profundos que apresentam horizontes A, B e C, de ocorrência predominante em relevo ondulado ou levemente ondulado. De idade

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Cenozoica este padrão é formado por colinas de topos convexos e vertentes com segmento predominantemente convexo-côncavo. Embora a área de estudo contenha apenas colinas, pode-se identificar que essas se configuram como colinas de interflúvios amplos e vales abertos (em fundo chato). Apresentam altitudes predominantes entre 5 e 25 metros e declividades entre 10 a 20%. A área de colinas corresponde a 3,6% da área total atual da sub-bacia hidrográfica em estudo. A Planície está representada na sub-bacia hidrográfica da bacia do arroio Almirante Tamandaré pelo padrão em forma de planícies flúviolagunares com banhado. Quanto à formação, o padrão em forma de planícies flúvio-lagunares com banhados foi isolado em depressão pelo sistema deposicional Laguna-barreira IV, ficando representado pelo Sistema Lagunar Guaíba-Gravataí. A posterior sedimentação trazida pelos rios transformou essa depressão em um ambiente de sedimentação fluvial, lagunar e paludal e, posteriormente, importantes depósitos turfáceos se desenvolveram. Este conjunto de formas de relevo é constituído por depósitos do Sistema laguna-barreira IV, caracterizado como depósitos de planície associado a canais fluviais, apresenta areias grossas e conglomeráticas. Os solos são classificados como Gleissolos e Planossolos, localizados em áreas de acumulação, são caracterizados como um ambiente que evidencia a ausência de oxigênio propiciando processos de acumulação de material orgânico e intensa redução química (MENEGAT, 1998). De idade Holocênica este padrão configura-se em uma extensa área plana, apresentando predominância de cotas altimétricas inferiores aos 5 m e com declividades menores que 2%. A rede de drenagem é representada pelos banhados. Esse compartimento representa cerca de 90% da área da sub-bacia hidrográfica em estudo. Com a presença de banhados, essa área era originalmente encharcada com água parada podendo, periodicamente, apresentar-se seca (GUERRA e GUERRA, 2005). É uma área mal drenada, com pontos de acumulação e retenção de água, influenciada pelos eventos de cheia dos cursos e corpos d’água do entorno: rio Gravataí e lago Guaíba. A partir do mapeamento da morfologia original da área de estudo, pode-se observar que a maior parte da sub-bacia hidrográfica em análise apresenta compartimentos de relevo nos quais dominam a dinâmica de acumulação, representados pelo padrão em forma de planície. Em menor proporção estão as áreas de modelado de dissecação do relevo, representadas pelo padrão em colinas. O

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conjunto dos compartimentos não totaliza a área atual da sub-bacia hidrográfica, por terem sido acrescidas áreas de aterros ao longo do processo de ocupação. Ocupação urbana e a morfologia antropogênica Quanto à ocupação desta área, estima-se que existam 5.364 domicílios particulares permanentes e uma população de 13.652 habitantes (IBGE, 2010). Com base no número de domicílios e na população da área, pode-se afirmar que a densidade de ocupação dos domicílios é de 2,5 habitantes por domicílio, valor esse inferior à média do município de Porto Alegre que é 2,8. Segundo Hasenack (2008), a ocupação da área da sub-bacia hidrográfica da bacia do arroio Almirante Tamandaré é predominantemente de ocupações antrópicas do tipo pavilhões (comercial atacadista, industrial e de serviços urbanos), seguido pelas áreas pavimentadas (vias). Em menor proporção foram identificadas áreas de solo exposto, uso residencial com edifícios e casas, campo manejado e áreas de uso residencial com edifícios. A partir da reclassificação e atualização do uso da terra realizado para essa área do município de Porto Alegre, é possível afirmar que o predomínio dentre os tipos de ocupação que abrangem áreas edificadas é de áreas densamente construídas, as quais os lotes apresentamse praticamente impermeabilizados, representando 40,9% do total da sub-bacia (Tabela 1). TIPO DE OCUPAÇÃO

PERCENTUAL EM RELAÇÃO À ÁREA TOTAL DA SUB-BACIA

Área densamente construída

40,9%

Área densamente construída com áreas verdes no interior dos lotes

35,1%

Malha viária

20,0%

Área vegetada

2,5%

Solo exposto

1,5%

Tabela 1: Distribuição dos tipos de ocupação na sub-bacia hidrográfica da bacia do arroio Almirante Tamandaré.

O mapeamento das alterações geradas pela intervenção antrópica sobre o zelevo segue as orientações metodológicas definidas em diversas pesquisas, tais como Rodrigues (1999 e 2005), Fujimoto (2001 e 2002), Gouveia (2010). Em todas as referências é mencionada a necessidade de superação das análises que enfatizam

Dinâmicas, conflitos e proposições 106


exclusivamente os elementos naturais e colocam a importância de serem analisadas as intervenções antrópicas. Segundo Fujimoto (2001), morfologia antropogênica são as superfícies que sofreram intervenções antrópicas de forma total ou generalizada. Fazem parte dessa categoria as superfícies com formas de processo atuais criadas pelas atividades humanas, podendo ser classificadas como alterações areolares ou lineares. A partir das atividades humanas, são verificadas mudanças nos atributos das formas, mudança nas propriedades e posicionamento dos materiais e também nas taxas, balanços magnitude, frequência e localização de processos superficiais (RODRIGUES, 2004). As modificações criadas na morfologia original podem ser definidas como formas de processos atuais que foram criadas ou construídas em decorrência da atividade humana, as quais são possíveis de serem mapeadas e representadas cartograficamente, na escala adotada na pesquisa. Dessa forma as ações quando concentradas ou efetivadas em formas visíveis e passíveis de mapeamento tornam-se os elementos da morfologia antropogênica. Para a questão das inundações e alagamentos, é importante destacar que “as mudanças antropogênicas decorrentes da urbanização, quer sejam através da modificação das formas ou da substituição de materiais superficiais, modificam de maneira radical e irreversível o ciclo hidrológico e, consequentemente, os processos morfodinâmicos no sistema físico [...]” (GOUVEIA, 2010: 273). Assim, o mapeamento das intervenções antrópicas existentes nas áreas com ocorrência de alagamentos e/ou inundações podem indicar as modificações no padrão de escoamento das águas que proporcionam o aprisionamento das mesmas em locais sem potencialidade natural a esses processos. De acordo com Tucci (1999), as enchentes, e considerando a área de estudo, também os alagamentos, aumentam a sua frequência e magnitude devido à ocupação do solo com superfícies impermeáveis e rede de condutos de escoamentos. As alterações mencionadas pelo autor são intervenções antrópicas sobre o relevo, sendo mencionadas ainda, pelo mesmo os aterros, pontes, condutos e drenagens inadequadas como atividades que podem obstruir o escoamento das águas. Assim, são apresentadas as principais morfologias antropogênicas mapeadas nas áreas de estudo, buscando a relação entre a forma identificada e a alteração na morfodinâmica gerada por esta. A análise fundamental dessa pesquisa refere-se à questão dos alagamentos e inundações, no entanto, sabe-se que diversas outras interpretações sobre cada alteração antrópica evidenciada no relevo poderiam ser elencadas. Os elementos da morfologia antropogênica identificados na área de estudo são elementos areolares como: degraus de corte e aterros, superfícies planas, áreas

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rebaixadas alagáveis e superfícies impermeáveis e elementos lineares tais como: arruamento, dique, canais de drenagem e degraus de corte (Mapa 3). Dentre os elementos areolares mapeados, destacam-se as superfícies impermeáveis, criadas a partir da impermeabilização do solo pela ocupação humana, através de áreas densamente construídas. Essa intervenção decorrente da compactação e da edificação das superfícies originais pode acarretar no acréscimo de escoamento superficial e na sua aceleração pela redução das rugosidades naturais da superfície. Uma das principais consequências da criação de superfícies impermeáveis é o aumento da velocidade de escoamento dos fluxos e da quantidade de água em superfície que chega às áreas mais rebaixadas do terreno durante eventos de precipitação. A água, impossibilitada de se infiltrar no solo, tende a escoar mais rapidamente pela superfície e como não há a mesma capacidade de infiltração, a quantidade de água que chega às áreas mais rebaixadas será maior. Os cortes e aterros foram considerados no mapeamento em dois elementos distintos: degraus de cortes e aterros nos lotes e superfície plana tecnogênica. O primeiro, degraus de cortes e aterros nos lotes, refere-se às modificações feitas nos perfis de vertentes das áreas de colinas decorrentes da ocupação humana. São elementos evidenciados em áreas residenciais e de serviços, as quais, para sua instalação efetuam cortes na vertente da colina e criam patamares planos no lote para a construção das edificações. Esses lotes aplainados e com degrau entre um e outro no sentido do topo para a base da colina tendem a modificar o padrão de escoamento das águas. Essas áreas são também impermeabilizadas, portanto, há o favorecimento do escoamento superficial. As superfícies planas tecnogênicas mapeadas na área de estudo referem-se a uma forma construída a partir do aterramento e retilinização da orla. As áreas de aterro, abrangidas pela Avenida Voluntários da Pátria até a área do Cais do Porto, inclusive, foram construídas pela

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Mapa 3– Morfologia Antropogênica da Sub-bacia Hidrográfica da Bacia do Arroio Almirante Tamandaré selecionada para estudo. Elaboração: Tielle Soares Dias, 2013.

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deposição de material e pelo remanejamento de material do próprio local. A sua construção teve início em 1888 com algumas pequenas faixas de terra e concluídas na década de 1950. Este elemento da morfologia antropogênica é composto por uma alongada faixa plana construída, constituída por depósitos tecnogênicos (predominantemente de depósitos arenosos). As áreas rebaixadas alagáveis são pequenas diferenças de nível encontradas no terreno, associadas à malha viária. Essas áreas configuram-se como pequenas depressões, em função das altitudes mais elevadas ao seu entorno. Estes pontos estão demarcados em algumas vias do município que têm cruzamento com vias arteriais localizadas em cota mais elevada, tendo visível diferença de nível entre elas. Também a ocupação dos lotes do entorno é mais elevada, deixando uma área rebaixada. Por estarem em uma cota mais baixa, essas áreas recebem a água do escoamento superficial do entorno e dependem da capacidade da rede de drenagem para escoar com eficiência, pois estão totalmente impermeabilizadas. Dessa forma, são frequentemente elencadas como pontos de alagamento, decorrente da retenção e da dificuldade de escoamento das águas durante eventos pluviais. Os elementos lineares da morfologia antropogênica mapeados na área de estudo foram o arruamento, o dique, os canais de drenagem subsuperficiais e os degraus de corte. O arruamento é entendido como uma morfologia antropogênica por influenciar o comportamento hidromorfodinâmico, quando concentra no leito carroçável das vias os fluxos de água. Devido à existência de sistema de drenagem das águas pluviais, as vias em geral possuem o leito carroçável abaloado com presença de sarjetas para concentrar o escoamento da água. Nas áreas mais elevadas da sub-bacia hidrográfica, caracterizadas como áreas de colinas, é verificado o predomínio de vias que acompanham o declive da vertente, desrespeitando as curvas de nível e deixando cortes e aterros no terreno para sua execução. Essas vias tendem a permitir o acelerado escoamento superficial das águas, que neste caso ao chegar à Avenida Benjamin Constant, localizada na base da colina, desacelera e acumula, sendo frequentes os eventos de alagamento e inundações neste ponto. O Dique Navegantes, localizado na área de estudo, faz parte do Sistema de Proteção Contra as Cheias de Porto Alegre, em sua totalidade esse sistema de proteção é composto por 68 quilômetros de diques, sendo integrado pela Avenida da Legalidade e da Democracia – parte que compõe a área de estudo – e as avenidas Edvaldo Pereira Paiva e Diário de Notícias, na zona sul do município. Esses diques são ligados pelo Muro da Mauá, estrutura em concreto armado com 3 metros de altura e outros 3 metros de profundidade que resguarda a área central de Porto Alegre.

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Os diques impedem não só as possíveis inundações decorrentes da elevação do nível das águas do Guaíba como também de parte do escoamento das águas do município para o lago. Dessa forma, existem ao longo da orla de Porto Alegre casas de bombas responsáveis pelo bombeamento das águas para o lago Guaíba. Na área específica de estudo, a casa de bombas 4 é a responsável por toda a drenagem da área, devido à inexistência de canais superficiais. Os canais de drenagem, embora localizados em subsuperfície, são considerados como elementos da morfologia antropogênica uma vez que correspondem à única forma de escoamento das águas. Esses canais, conectados à rede coletora, drenam a água para fora da bacia através da casa de bombas 4, localizada junto ao Dique na Avenida da Legalidade e da Democracia. Segundo o DEP (2005), essa casa de bombas opera no limite de sua capacidade, considerando-se somente a água que consegue chegar ao poço de entrada. Os degraus de corte são lineamentos decorrentes do corte do relevo para instalação de edificações e/ou outras intervenções antrópicas. Na bacia hidrográfica esses lineamentos são encontrados na área de colinas e estão no interior das quadras ocupadas pelas edificações. Esses degraus geram mudanças no perfil das vertentes, acarretando diversos processos associados a essas alterações, dentre eles, no padrão de escoamento das águas em superfície. Considerações finais Atualmente, os alagamentos e as inundações fazem parte do cotidiano das grandes cidades. A maneira de conduzir, tratar e resolver esse impacto depende das medidas tomadas pela esfera pública e da conscientização da população em relação ao problema. O desenvolvimento dessa pesquisa permitiu compreender os eventos de inundação e alagamento considerando a relação entre a concentração de alagamentos no município com as do conjunto de transformações pelas quais o município o passou ao longo do seu processo de urbanização. Para tanto, se analisou as intervenções realizadas pelo uso e ocupação da terra na morfologia original e na dinâmica geomorfológica em áreas alagáveis do município de Porto Alegre. Com a definição da área de estudo, a partir da distribuição dos pontos de alagamento registrados pela fiscalização de trânsito da EPTC, delimitou-se uma área na zona norte do município com relevo já propício à ocorrência de alagamentos e que apresentou ao longo de sua história de ocupação a recorrência desses eventos e a adaptação da população para conviver com essa realidade. Os alagamentos registrados nessa área do município, especialmente nas proximidades dos acessos à ponte do Guaíba e ao longo da Avenida Sertório, são responsáveis por grandes transtornos para o deslocamento da população. São áreas naturalmente mal drenadas e atualmente dependentes de estruturas e equipamentos Geografia

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de drenagem artificial, que, segundo o Plano Diretor de Drenagem Urbana, já se encontram no limite de sua capacidade. Como no momento da pesquisa não existia uma perspectiva de ampliação do sistema de drenagem da área em curto prazo, é necessário o monitoramento dos eventos de alagamento e inundação nessa área. O poder público, em especial, precisa estar ciente da ocorrência desses eventos para a tomada de decisões antecipada, como desvio do trânsito, por exemplo, evitando maiores transtornos à população. O município de Porto Alegre apresenta uma positiva posição em relação ao tema, uma vez que já foi desenvolvido o Plano Diretor de Drenagem Urbana para a área de estudo, incluindo de forma mais abrangente, toda a bacia hidrográfica e não apenas a sub-bacia analisada nesta pesquisa. Nesse plano foram desenvolvidos diagnósticos para as áreas mais suscetíveis, com projeções futuras, as quais apontaram a necessidade de intervenções devido à capacidade da rede atual estar quase no limite. A bacia do arroio Almirante Tamandaré opera atualmente no limite da capacidade e tem uma área consolidada, amplamente ocupada e impermeabilizada. As alternativas estruturais futuras apresentadas no Plano Diretor de Drenagem Urbana envolvem basicamente o incremento da rede de drenagem. As alternativas não estruturais apresentadas pelo plano envolvem a obrigatoriedade do cumprimento do que consta no Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano e Ambiental de Porto Alegre (PDDUA) quanto à redução das taxas de vazão, aplicando medidas de retenção de águas no lote ou nos loteamentos. Além de medidas de conscientização a respeito do efeito da deposição inadequada de resíduos sólidos para o funcionamento da rede de drenagem e das casas de bombas. A compreensão da dinâmica natural, dos elementos do meio físico, associados às transformações causadas pela ocupação urbana, pode gerar resultados satisfatórios através de construções menos impactantes para a drenagem das áreas, como por exemplo, adaptando as construções ao relevo e não o oposto, garantindo a retenção de água no lote ou nos loteamentos, através da manutenção de áreas permeáveis ou mesmo de detenção. Na esfera pública, por já existir a compreensão técnica desses fenômenos e o diagnóstico da situação atual e perspectiva futura para diversas áreas do município, espera-se o cumprimento dessas diretrizes e das intervenções propostas. Além da manutenção constante e de medidas em curto prazo, enquanto as grandes intervenções estruturais não podem ser colocadas em prática. Diante do exposto e das projeções futuras, as alterações realizadas pelo uso e ocupação da terra na morfologia original e na dinâmica geomorfológica mostram-se intrinsecamente relacionadas à ocorrência de alagamentos e inundações nas áreas de estudo.

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Parte II Bacias hidrográficas: qualidade da água, inundações e gestão



Capítulo 1 A qualidade da água e suas relações com o uso e a ocupação do solo na bacia hidrográfica do Arroio Cavalhada, Porto Alegre-RS Luís Alberto Basso Eléia Righi Daniela Santos da Rocha Introdução O projeto desenvolvido no Departamento de Geografia do Instituto de Geociências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) intitulado “Avaliação da Qualidade de Água de Bacias Hidrográficas da Região Metropolitana de Porto Alegre RS” tem por objetivo central determinar a qualidade das águas de bacias hidrográficas localizadas em municípios que integram a Região Metropolitana de Porto Alegre (RMPA), a partir de análises de parâmetros físicos, químicos e bacteriológicos, bem como de variáveis pluvio e fluviométricas. Também, pretende mapear a qualidade da água e relacioná-la com as categorias de uso e ocupação do solo das bacias hidrográficas da RMPA. A área selecionada para o início do projeto foi à bacia hidrográfica do arroio Cavalhada (BHAC), localizada na zona sul de Porto Alegre. Aspecto importante para esta escolha foi à implantação do Programa Socioambiental de Porto Alegre (PISA), da qual a BHAC faz parte. A principal meta do PISA é ampliar a capacidade de tratamento de esgoto do município de 27% para 80%. Na bacia realizaram-se obras de drenagem, viárias e de remoção de famílias em situação de risco às margens do arroio Cavalhada. Todas essas iniciativas de alguma maneira afetam a qualidade da água da bacia. Trabalhos que associam dados de qualidade da água com a cartografia de uso e ocupação da terra são importantes para o planejamento e ordenamento territorial de bacias hidrográficas, pois revelam que determinadas áreas, mais degradadas ambientalmente ou com uso inadequado do solo, há aporte maior de sedimentos, nutrientes ou outros elementos contaminantes que alteram significativamente a qualidade das águas da rede de drenagem e do sistema receptor. Assim, as informações obtidas com esse tipo de pesquisa são relevantes, pois fornecem importantes subsídios aos órgãos interessados em melhorar as condições ambientais das bacias hidrográficas e, consequentemente, da qualidade de vida da população que habita as regiões metropolitanas (TUCCI & MENDES, 2006).

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Área de Estudo: a Bacia Hidrográfica do Arroio Cavalhada A bacia tem superfície de 24 km², seu principal curso fluvial, o arroio Cavalhada percorre uma distância de aproximadamente 10,4 km de extensão das nascentes até a desembocadura, no Lago Guaíba (Figura 1). De acordo com Midugno & Roisenberg (2013), a BHAC possui grau de urbanização elevado, com 4.476 hab/km2

Figura 1: Mapa de localização do município de Porto Alegre.

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Aspectos Metodológicos As atividades do projeto foram desenvolvidas a partir de duas etapas metodológicas fundamentais para o alcance dos objetivos propostos: a cartografia do uso e ocupação do solo e o cálculo do Índice de Qualidade da Água (IQA). Inicialmente delimitou-se a área da BHAC e das sub-bacias hidrográficas contribuintes utilizando o software ESRI ArcGis® 2010. Também, foram demarcadas e quantificadas as diferentes categorias de uso e ocupação do solo presentes na bacia utilizando-se os softwares Google Earth® (a partir das melhores imagens do ano de 2013) e ESRI Arc-Gis 2010. O mapa final de uso e ocupação do solo da BHAC foi elaborado em escala aproximada de 1:30.000. A qualidade da água foi determinada a partir de análises físico-químicas e bacteriológicas realizadas no Laboratório Quimioambiental de Porto Alegre, que segue as metodologias analíticas do Standard Methods for the Examination of Water and Wastewater, 21ª edição (APHA, 2005) e da Associação Brasileira de Normas Técnicas (NBR/ABNT). Os parâmetros analisados integram o IQA mais utilizado pelos órgãos de controle ambiental brasileiros. São eles: temperatura, turbidez, pH, oxigênio dissolvido (OD), demanda bioquímica de oxigênio (DBO), coliformes termotolerantes (E. coli), nitrogênio total, fosfato total e sólidos totais. Além deles, também foi analisada a condutividade elétrica (CE). Porto (1991) destaca que os Índices de Qualidade da Água são bastante úteis para transmitir informação a respeito da qualidade da água ao público em geral, pois permitem verificar a tendência de sua evolução ao longo do tempo, além de proporcionar comparação entre os diferentes cursos d’água. Logo, trata-se de uma metodologia facilitadora, de simples entendimento que tem aceitação em instituições nacionais responsáveis pelo monitoramento da qualidade das águas, que permite ao cidadão leigo comparar a qualidade da água em diferentes pontos dos cursos d'água ou bacias hidrográficas. O IQA aplicado no projeto foi desenvolvido pela National Sanitation Foundation (NSF) dos Estados Unidos, com as modificações propostas pelos técnicos da Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental do Estado de São Paulo (CETESB). Calculou-se pelo produto ponderado das notas atribuídas a cada parâmetro de qualidade de água: 1) Oxigênio Dissolvido (OD); 2) pH; 3) Demanda Bioquímica de Oxigênio (DBO); 4) Coliformes Termotolerantes; 5) Nitrogênio Total; 6) Fosfato Total; 7) Turbidez; 8) Sólidos Totais; 9) Temperatura. Para calcular o IQA acessouse http://sobreasaguas.info/iqa_cetesb.aspx, onde há uma rotina que executa o cálculo. A fórmula utilizada para o cálculo do IQA foi a seguinte: 9

IQA =

q

iwi

i9

Dinâmicas, conflitos e proposições 120


onde: IQA = um número entre 0 e 100. Π = produtório. wi = peso relativo ou ponderal do parâmetro ou variável. qi = qualidade relativa do parâmetro, obtido na respectiva “curva média de variação de qualidade” em função de sua concentração ou medida; um número entre 0 e 100. O Quadro 1 apresenta os parâmetros que compõem o IQA e seus respectivos pesos relativos. Parâmetro

Peso relativo

Oxigênio Dissolvido

0,17

Coliformes Fecais ou Termotolerantes

0,15

pH

0,12

Demanda Bioquímica de Oxigênio

0,10

Fosfato Total

0,10

Temperatura

0,10

Nitrogênio Total

0,10

Turbidez

0,08

Sólidos Totais Quadro 1 – Pesos relativos das variáveis do IQA.

0,08

A interpretação do cálculo do IQA foi realizada dentro das faixas de qualidade de água, conforme o Quadro 2, a seguir. Classificação do IQA

Ponderação

ÓTIMA

79 < IQA ≤ 100

BOA

51 < IQA ≤79

REGULAR

36 < IQA ≤ 51

RUIM

19 < IQA ≤ 36

PÉSSIMA

IQA ≤ 19

Quadro 2 - Faixas de qualidade do IQA. Fonte: CETESB-SP. Geografia

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As amostras de água, coletadas manualmente através de frascos adequados à determinação de cada parâmetro, foram realizadas nas seguintes datas: 19/08/2013, 16/09/2013, 17/10/2013, 18/11/2013, 16/12/2013 e 16/01/2014. Os pontos de monitoramento localizamse ao longo do arroio Cavalhada. O ponto 1 (P1) localiza-se na Estrada João Passuelo, próximo às nascentes; o ponto 2 (P2) fica na Estrada João Vedana, em ponto intermediário entre nascente e foz e o terceiro ponto (P3) situa-se na Av. Icaraí próximo à foz, em área bastante urbanizada. Posteriormente, em 02/04/2014 e 09/05/2014, coletaram-se amostras de água de três afluentes do arroio Cavalhada. O ponto 4 (P4) localiza-se no arroio Passo Fundo nas imediações da Av. Campos Velho em área urbanizada; o ponto 5 (P5) situa-se no arroio Teresópolis, próximo da Rua Gramado e Av. Otto Niemeyer em área igualmente urbanizada e o ponto 6 (P6) fica no arroio Manresa, na Estrada João Passuelo, próximo ao P1 (nascente do arroio Cavalhada). Essas duas campanhas tiveram como objetivo avaliar a influência desses tributários na qualidade da água do curso principal e ampliar os dados analíticos para a confecção do mapa final da qualidade da água da BHAC O produto final consiste em mapa de qualidade da água, através do cálculo do IQA nos pontos de coleta, elaborado com base no software ESRI ArcGis ® 2010. Também, compararam-se os dados das concentrações dos parâmetros de qualidade com os limites estipulados pela Resolução 357/2005 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA), que estabelece as diretrizes básicas para classificar as águas do território nacional e relacioná-las com os seus usos preponderantes. Os gráficos que mostram a evolução das concentrações dos parâmetros foram elaborados com o auxílio do software Microsoft Office Excel® 2007. Uso e Ocupação do Solo da BHAC As áreas urbanas experimentam continuamente um processo de transformação do uso e ocupação do solo, principalmente em função da ampliação da infraestrutura e equipamento urbanos, bem como da construção de edificações destinadas ao comércio, serviços e residências. A inadequação do uso e ocupação do solo urbano produz resultados desastrosos para a qualidade da água de cursos fluviais urbanos. Tucci (2008) alerta que o desenvolvimento urbano tem produzido um ciclo de contaminação, gerado pelos efluentes da população urbana, que constituem o esgoto doméstico, industrial e pluvial. Esse processo ocorre em razão de vários fatores: despejos dos esgotos sanitários sem tratamento; esgoto pluvial com grande quantidade de matéria orgânica e metais; contaminação das águas subterrâneas por esgotos industriais e domésticos, por meio das fossas sépticas, vazamento dos sistemas de esgoto sanitário e pluvial; depósitos de resíduos sólidos urbanos e, a ocupação do solo urbano sem controle do seu impacto sobre o sistema hídrico. Dinâmicas, conflitos e proposições 122


Na BHAC a situação é algo semelhante à descrita acima. A Figura 2 apresenta as classes de uso e ocupação do solo presentes na bacia, assim como os pontos de monitoramento da qualidade da água. É possível visualizar que a maioria dos pontos de coleta localiza-se nos trechos inferiores dos cursos fluviais, exceto o P1 e P2. Portanto, os resultados das análises da qualidade da água refletem a totalidade de ações e usos que ocorrem nas sub-bacias. Ademais, a delimitação da área correspondente a cada classe de uso/ocupação é retratada no Quadro 3.

Geografia

123


Figura 2: Mapa de uso e ocupação do solo da bacia hidrográfica do arroio Cavalhada.

Dinâmicas, conflitos e proposições 124


Sub-bacia 1

Sub-bacia 2

Sub-bacia 3

Sub-bacia 4

Sub-bacia 5

Sub-bacia 6

km2

%

km2

%

km2

%

km2

%

km2

%

km2

%

Água (açudes)

0,005

0,11%

0,004

0,06%

0,012

0,09%

_

_

_

_

0,003

0,10%

Áreas agrícolas (cultivos)

0,076

1,66%

0,007

0,12%

0,070

0,53%

_

_

0,070

2,32%

_

_

Campo

0,601 13,13% 0,527

8,61%

0,798

6,08%

0,252

7,05%

CLASSE DE USO

Indústrias

0,360 11,95% 0,371 13,78%

_

_

0,060

0,98%

0,076

0,58%

_

_

_

_

_

_

Institucional (hospitais, escolas,...)

0,059

1,3%

0,055

0,89%

0,338

2,57%

0,063

1,75%

_

_

_

_

Mata

3,002 65,60% 2,921 47,73% 2,865 21,83% 0,549 15,36% 1,433 47,54% 1,715 63,70%

Misto (edifícios e casas)

_

_

0,028

0,46%

1,581 12,05% 0,717 20,06% 0,003

Multifamiliar (edifícios)

_

_

0,199

3,26%

0,696

5,30%

0,103

2,88%

Praças e parques

_

_

0,025

0,42%

0,166

1,27%

0,048

Serviços e comércio

0,061

1,33%

0,178

2,92%

0,922

7,03%

Sítios e chácaras

0,108

2,37%

0,142

2,32%

0,179

Solo exposto

0,021

0,46%

0,065

1,06%

Submoradias 0,155

3,38%

0,187

3,06%

Unifamiliar (casas)

0,401

8,76%

1,477 24,13% 3,210 24,46% 0,887 24,82% 0,737 24,46% 0,293 10,89%

Viário

0,088

1,91%

0,244

3,98%

1,106

8,42%

0,332

9,29%

0,095

3,15%

0,045

1,66%

Total

4,577

100%

6,120

100%

13,1

100%

3,572

100%

3,015

100%

2,693

100%

0,10%

_

_

_

_

_

_

1,34%

0,010

0,32%

_

_

0,139

3,90%

0,029

0,95%

0,025

0,95%

1,37%

_

_

0,152

5,03%

0,068

2,54%

0,228

1,74%

0,007

0,20%

0,098

3,24%

0,027

1,00%

0,876

6,67%

0,477 13,35% 0,028

0,94%

0,145

5,39%

Quadro 3 - Uso e ocupação do solo na bacia hidrográfica do arroio Cavalhada. Também, verifica-se que a rede viária da BHAC é bem expressiva, aspecto que denota expressiva urbanização. Nesse sentido, vale relembrar que a bacia possui grau de urbanização elevado de, aproximadamente, 4.476 hab/km², o qual reflete o padrão da qualidade das suas águas. Geografia

125


A análise da Figura 2 e Quadro 3 permite afirmar que o uso e a ocupação do solo da BHAC é variável, conforme as sub-bacias. Há importante predomínio de áreas de campo e mata na sub-bacia 1, onde situam-se algumas das nascentes do arroio Cavalhada. Nesta sub-bacia as classes de uso “mata”, “campo” e “praças e parques” correspondem a 78% da sua área total. Esse percentual diminui para 56% na sub-bacia 2 e para 29% na subbacia 3. Em relação às sub-bacias dos tributários do arroio Cavalhada a situação é similar, pois na do Manresa, onde se localizam outras das nascentes, 77% da sua área total consistem em áreas vegetadas (mata, campo e parques e praças), enquanto nas demais a proporção decresce para 59% na sub-bacia Teresópolis e para apenas 24% na do arroio Passo Fundo, esta situada em área bem urbanizada, já na porção final da BHAC. Pelo contrário, a proporção de áreas construídas (usos econômicos e residenciais) e malha viária é maior justamente nas sub-bacias com os menores percentuais de áreas vegetadas. Assim, na sub-bacia 1 há apenas 18% de área construída, ao passo que nas subbacias 2 e 3 os valores aumentam para 42% e 68%, respectivamente. Nas sub-bacias dos tributários ocorre algo parecido: o percentual de área construída e malha viária na subbacia do Passo Fundo corresponde a 76% de sua área total, enquanto na do Teresópolis é de 35% e na do Manresa é 21%. Os setores dos cursos médio e inferior do arroio Cavalhada, onde se localizam os pontos 4 e 5, são os mais urbanizados com maior extensão de espaços construídos, ao contrário da porção superior da BHAC, onde predominam as áreas de campo e mata, com aparência de área rural. O Índice de Qualidade da Água O Quadro 4 expressa a qualidade da água superficial da BHAC, estimada pelo IQA calculado para o período do estudo: agosto de 2013 a abril de 2014. PONTO DE COLETA

IQA 2013

2014

Ago

Set

Out

Nov

Dez

Jan

Abr

Mai

P1

53,8 BOA

57,5 BOA

51,5 BOA

64,7 BOA

56,6 BOA

56,6 BOA

-

-

P2

32,3 RUIM

40,7 REGULAR

38,9 REGULAR

42,4 REGULAR

19,6 RUIM

32,2 RUIM

-

-

P3

21,8 RUIM

23,6 RUIM

37,4 REGULAR

33,6 RUIM

17,7 PESSIMA

32,6 RUIM

-

-

P4

-

-

-

-

-

-

24,0 RUIM

36,8 REGULAR

P5

-

-

-

-

-

-

24,5 RUIM

23,2 RUIM

P6

-

-

-

-

-

-

32,8 RUIM

25,2 RUIM

Quadro 4 – Índice de Qualidade de Água na Bacia Hidrográfica do Arroio Cavalhada.

Dinâmicas, conflitos e proposições 126


Analisando-o é possível afirmar que há deterioração da qualidade da água das nascentes em direção ao exutório da bacia. O P1, localizado a montante da BHAC, teve sempre IQA bom, enquanto o P2 e P3 foram classificados majoritariamente com IQA ruim e/ou regular, inclusive na amostragem de 16/12/2013 o P3 teve água considerada péssima: IQA com valor 18. Em relação aos arroios afluentes do arroio Cavalhada, a situação é semelhante: em 83% das amostragens realizadas o IQA obteve conceito ruim. Isto evidencia a contribuição desses cursos fluviais na degradação da qualidade da água do principal arroio da bacia. A Figura 3 expressa à média do IQA para todo o período do estudo: de agosto 2013 a maio de 2014. Fica comprovada a degradação das águas superficiais da BHAC, onde apenas o P1 teve IQA considerado bom, enquanto os demais pontos foram classificados como ruim. O valor médio do IQA da BHAC foi 33,8, ou seja, ruim.

Figura 3: Mapa do IQA médio da Bacia Hidrográfica do Arroio Cavalhada, período: agosto 2013 a maio de 2014. Observa-se que apenas pequeno trecho do curso principal da bacia, próximo às nascentes tem qualidade boa. O arroio Cavalhada ao receber as águas do arroio Manresa, de qualidade ruim, modifica a sua para conceito regular e não logra percorrer 2,5 km até alterá-la para ruim (IQA = 34,4). A partir do seu curso médio, a degradação da qualidade do arroio Cavalhada se intensifica, especialmente em função dos aportes dos arroios tributários Teresópolis e Passo Fundo. A qualidade se mantém ruim e nas proximidades da sua foz no Guaíba, ele atinge a nota 27,8 do IQA. Geografia

127


Relação entre o Uso e Ocupação do Solo e a Qualidade da Água Superficial Ao relacionar a qualidade da água com o uso e ocupação do solo da BHAC comprova-se que os melhores resultados do IQA (bom para todas as coletas) foram alcançados na sub-bacia do P1, onde 79% da sua área correspondem à categoria “áreas vegetadas” (campo, mata, parques e praças). O contrário ocorre nas sub-bacias do P2 e P3. Na do P2, metade das campanhas tiveram conceito do IQA regular e a outra metade ruim. Nessa sub-bacia o percentual de área vegetada decresce para 56,8% e o de “área construída” (uso residencial e uso econômico) é de 38% e o uso viário de 4%. A sub-bacia do P3 apresenta 29% do total de sua superfície ocupada por vegetação, enquanto o percentual de área construída e de uso viário sobe para 60% e 8,4%, respectivamente, do total da área da sub-bacia. Os IQAs no P3 foram majoritariamente considerados “ruim” e em uma campanha, inclusive, o IQA foi “péssimo”. Quanto aos afluentes, todos apresentaram valores baixos de IQA, em média foram classificados como ruim. Os percentuais de “área construída” para as sub-bacias do arroio Passo Fundo (P4), Teresópolis (P5) e Manresa (P6) foram 76%, 35% e 21%, respectivamente. Como são cursos fluviais pequenos, com pouca vazão, a relação entre uso/ocupação do solo e qualidade da água não foi tão evidente, pois mesmo com uma proporção razoável de “área vegetada” (em torno de 75% do total de sua área), o P6 teve sempre o seu IQA ruim, o mesmo valendo para o P5. Nesses três afluentes há lançamentos de esgotos domésticos, tornando-os verdadeiros valões a céu aberto. Os despejos nesses arroios, sem nenhum tipo de tratamento, são os principais responsáveis pela piora da qualidade da água. Evolução dos Parâmetros de Qualidade As Figuras 4 a 12 apresentam as concentrações de cada parâmetro de qualidade para cada um dos pontos de amostragem. A Figura 4 mostra a evolução da DBO, onde se observa o comprometimento por esgoto que é despejado na rede de drenagem da bacia, tendo em vista os valores elevados de DBO. Apenas o P1, próximo às nascentes teve a maioria das amostras classificadas como classe 2 de acordo com a Resolução 357/2005 do CONAMA. Importante ressaltar que esta Resolução classifica os corpos hídricos nacionais e quanto maior o número da classe, menos nobres são os usos destinados à água, assim os padrões ambientais de qualidade da água serão menos exigentes. A maior parte das amostras teve valores elevadíssimos, alcançando valores acima de 100 mg L-1. Benetti (2005) afirma que águas seriamente poluídas apresentam DBO maior que 10 mg L1 e que altos índices podem gerar a diminuição e até a eliminação do oxigênio presente nas águas gerando alterações substanciais no ecossistema. Nessas condições, os processos aeróbicos de degradação orgânica podem ser substituídos pelos anaeróbicos, ocasionando eutrofização e inclusive extinção das formas de vida Dinâmicas, conflitos e proposições 128


aeróbicas. A alta DBO encontrada por Ucker et al., (2009) em uma bacia hidrográfica de Santa Maria/RS demonstrou que a elevada presença de matéria orgânica contribuiu significativamente para a deterioração da qualidade da água.

Figura 4: Demanda Bioquímica de Oxigênio (mg O₂ L-1). O oxigênio dissolvido é um fator importante para a manutenção da vida aquática. Quando a matéria orgânica está sendo degradada, as bactérias usam oxigênio em seus processos respiratórios reduzindo a concentração do oxigênio no meio. Essa redução pode acarretar na mortandade de peixes, o valor mínimo para a preservação da vida aquática estabelecido pela Resolução 357/2005 do CONAMA é de 5,0 mg L-1 A Figura 5 apresenta as concentrações de OD e percebe-se que as águas da BHAC têm valores baixos desse parâmetro. Apenas o P1 teve concentrações adequadas para a vida aquática, com concentrações em todas as amostragens acima de 5 mg L-1. Na foz do arroio Cavalhada (P3) a situação foi crítica em agosto, setembro e dezembro de 2013, com concentrações de 2,0 mg L-1, 2,0 mg L-1 e 0,5 mg L-1, respectivamente, concentrações bem abaixo de 5,0 mg L-1. Em relação aos limites de OD estabelecidos pela Resolução 357/2005 do CONAMA para as classes 1 (≥ 6 mg L-1), 2 (≥ 5 mg L-1), 3 (≥ 4 mg L-1) e 4 (≥ 2 mg L-1), verifica-se que todas as amostras do P1 foram classe 1, enquanto o P2 teve uma amostra de classe 3 e o P4 duas de classe 4, inclusive ambos tiveram amostras “sem classe” pois as concentrações de OD ficaram abaixo de 2,0 mg L-1. Assim, as águas principalmente do P3 são adequadas apenas para os usos menos nobres: navegação e harmonia paisagística. Em síntese, as concentrações de OD na bacia são baixas, devido ao lançamento de esgotos domésticos sem tratamento nos cursos d’água. Os tributários

Geografia

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do arroio Cavalhada também têm águas com valores baixos de OD, especialmente o P5, arroio Teresópolis. Nesse sentido, Silveira et al. (2007) observaram concentrações de OD inferiores aquelas exigidas pela Resolução 357/2005 do CONAMA. A baixa quantidade de OD está associada ao lançamento de esgoto sem tratamento nos corpos d’água de microbacias hidrográficas urbanizadas, semelhantes às do presente estudo.

Figura 5: Oxigênio Dissolvido (mg O₂ L-1). A Figura 6 apresenta as elevadas concentrações de fósforo na rede de drenagem. Isso decorre dos esgotos domésticos lançados sem qualquer tipo de tratamento diretamente nos cursos fluviais. Todas as amostras superaram o valores limites para as classes 2 (0,1 mg L-1) e 3 (0,15 mg L-1). Trabalhos como o de Borges et al. (2003) observaram uma piora da qualidade química da água de dois córregos de Jaboticabal (SP) em função da variação no teor de fósforo de 0,01 a 0,07 mg L-1 devido ao aumento da quantidade de fósforo que também ultrapassou o limite indicado na legislação.

Dinâmicas, conflitos e proposições 130


Figura 6: Fósforo Total (mg L-1 PO₄). A Figura 7 apresenta a evolução das concentrações de nitrogênio total na BHAC. Observa-se o incremento da concentração de nitrogênio nas águas quanto mais próximas da foz do arroio Cavalhada. A maior parte do nitrogênio total encontrado corresponde às formas reduzidas (nitrogênio amoniacal e orgânico). As concentrações de nitrogênio amoniacal foram elevadas, onde a maioria das amostras alcançou valores acima de 5,0 mg L-1, a partir do qual muitas espécies de peixes começam a ter problemas para a sua sobrevivência. A predominância de nitrogênio amoniacal indica também focos de poluição bastante próximos, ou seja, lançamentos de esgoto não tratado. Ao considerar os limites estabelecidos pela Resolução 357/2005 do CONAMA, verifica-se que no P1 todas as amostras foram incluídas como classes 1 e 2, enquanto no P3 a maioria foi classe 3 e sem classe (usos menos nobres). Assim, os resultados evidenciam despejos de esgotos sanitários ou efluentes industriais, o que juntamente com outros nutrientes pode provocar o enriquecimento do meio tornando-o fértil e aumentando a população de algas. Grandes concentrações de algas podem prejudicar os diferentes usos da água e especialmente o abastecimento público.

Geografia

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Figura 7: Nitrogênio Total (mg L-1 N). A Figura 8 mostra que o pH variou de 6,8 a 7,8, mas a grande maioria das amostras tiveram valores próximos de 7,4. Os valores estão dentro dos limites da Resolução 357/2005 do CONAMA (entre 6,0 e 9,0).

Figura 8: pH. As concentrações de sólidos aumentaram em direção ao exutório da bacia (Figura 9), o que indica aumento da poluição hídrica das nascentes em direção à foz no Lago Guaíba. Os valores estão dentro dos limites para as classes 1, 2 e 3 da Resolução 357/2005 do CONAMA, que é de 500 mg L-1 para jusante

Dinâmicas, conflitos e proposições 132


Figura 9: Sólidos Totais (mg L-1).

A temperatura é um fator importante principalmente em questões de controle do meio aquático e influencia diferentes variáveis físico-químicas. Além disso, ela está relacionada à vida dos organismos aquáticos que têm diferentes limites de temperatura para suas atividades como crescimento, desova, migração e incubação de seus ovos. O aumento da temperatura em corpos d’água geralmente está associado a despejos de efluentes industriais. Os valores da temperatura da água da rede de drenagem da BHAC estiveram dentro dos padrões normais (Figura 10).

Figura 10: Temperatura (oC). Em relação à turbidez das águas, todas as amostras foram incluídas na Classe 1, pois os valores foram menores que 40 UNT (Figura 11). Mesmo assim, percebe-se a degradação das águas em direção à foz do arroio, pois a turbidez foi maior no P3 (foz) em quase todas as amostragens e menor no P1 (nascentes).

Geografia

133


Figura 11: Turbidez (NTU). A presença da E.coli em água ou alimentos é indicativa de contaminação com fezes humanas (ou mais raramente de outros animais). O número de coliformes termotolerantes (Escherichia coli) foi bastante variável nas águas da bacia. A partir da Figura 12 fica evidente que nas nascentes (P1) os valores foram bem menores que nos demais pontos. Nesse local, duas amostras foram compreendidas na classe 3 e as demais foram consideradas “sem classe”, pois os valores superaram os 4000 NMP/100mL. Nos pontos 2 e 3 o número de E. coli foi bem maior e apenas uma amostra foi classificada como classe 3 (2300 NMP/100mL em outubro 2013 no P3). As elevadas concentrações de E. coli indicam contaminação por esgoto doméstico e, portanto, a ocorrência desses microrganismos evidencia a contaminação da água por microrganismos patogênicos, especialmente aqueles responsáveis por infecções intestinais.

Dinâmicas, conflitos e proposições 134


Figura 12: Coliformes Fecais - E. coli (NMP/100 ml). Considerações Finais Os resultados do estudo mostraram com clareza que a qualidade das águas da BHAC precisa melhorar. Nesse sentido, é fundamental dar continuidade às melhorias de saneamento básico, controlar a poluição industrial, minimizar as alterações hidrológicas e morfológicas da bacia hidrográfica, assim como evitar a ocupação em áreas de risco. O valor médio do IQA para todas as amostragens foi 33,8, conceito “ruim”. A degradação ambiental do arroio Cavalhada aumenta em direção à foz, no lago Guaíba, principalmente pelo lançamento de esgotos domésticos não tratados e, em menor medida, pelos efluentes industriais despejados nas suas águas. Também, os seus principais afluentes recebem uma carga importante de esgotos domésticos que contribuem para a deterioração das águas superficiais da BHAC. A principal constatação, decorrente da relação entre os dados de qualidade da água com a cartografia de uso e cobertura do solo, é que nas áreas da BHAC situadas mais próximas das nascentes, setor com maior extensão de mata, a qualidade da água é melhor que nos pontos localizados onde há predomínio de áreas construídas (usos residencial e econômico). Este aspecto evidenciou a influência de determinadas categorias de uso e ocupação do solo na melhora ou deterioração da qualidade da água. Outro ponto de destaque da pesquisa é que ela poderá ser referência para futuro monitoramento da qualidade da água da BHAC, tendo em vista a recente implantação das melhorias de saneamento advindas com o Projeto Integrado Socioambiental de Geografia

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Porto Alegre (PISA). É imprescindível monitorar a qualidade da água, pois ele é um dos principais instrumentos de gestão ambiental. A análise da evolução dos parâmetros de qualidade de água é uma prática científica que pode modificar e transformar atitudes e comportamentos em relação aos rios e arroios. Referências AMERICAN PUBLIC HEALTH ASSOCIATION. Standard Methods for the Examination of Water and Wastewater. 21st Edition. Washington, APHA, AWWA, WEF, 2005. BENETTI, A. O meio ambiente e os recursos hídricos. In. TUCCI, C. E. M. (Org.) Hidrologia: ciência e aplicação. 2. ed. Porto Alegre: UFRGS/ABRH, p.651-658. 2005. BORGES, M. J.; GALBIATI, J. A.; FERRAUDO, A. S. Monitoramento da qualidade hídrica e interferência de esgotos em cursos d’água urbanos da bacia hidrográfica do Jaboticabal. Revista Brasileira de Recursos Hídricos. Porto Alegre, v. 8, n. 2, p. 161-171, 2003. BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. Resolução CONAMA nº 357/2005. Disponível em: <http://www.mma.gov.br/port/conama/res/res05/res35705.pdf> Acesso em: 20 de julho de 2014. CARVALHO, A. R.; SCHLITTLER, F. H. M.; TORNISIELO, V. L. Relações da atividade agropecuária com parâmetros físico-químicos da água. Química Nova 23 (5). p. 618-622. 2000. COMITESINOS. Utilização de um índice de qualidade da água para o rio dos Sinos. Programa integrado de monitoramento da qualidade da água do rio dos Sinos e seus afluentes. 33p. 1990. COMPANHIA AMBIENTAL DO ESTADO DE SÃO PAULO. IQA – Índice de qualidade da água. Disponível em: http://www.cetesb.sp.gov.br/agua. Acesso em: 8 de julho de 2014. CRUZ, J. C.; TUCCI, C. E. M. Estimativa da disponibilidade hídrica através da curva de permanência. RBRH – Revista Brasileira de Recursos Hídricos. v.13, n.1, p.111-124. 2008. SILVA, G. V.; JARDIM, W. de F. Um novo índice de qualidade das águas para proteção da vida aquática aplicado ao Rio Atibaia, Região de Campinas/Paulínia-SP. Química Nova 29 (4): 689694. 2006. FARIA, B. V.; CAVINATTO, V. As Bacias hidrográficas do Estado. In: EMPAER. Manual técnico de microbacias hidrográficas. Cuiabá, 339p. 2000. HASENACK, H. Diagnóstico ambiental de Porto Alegre. 1. Edição, Secretaria Municipal de Meio Ambiente. Porto Alegre, 2008. MIDUGNO, R. & Ari ROISENBERG, A. Hidrogeoquímica de cursos de água: influência da ocupação humana sobre parâmetros físico-químicos no Município de Porto Alegre, RS Pesquisas em Geociências, 40 (1): 51-60, jan/abr 2013. PORTO, R.L.L. (Org.). Hidrologia ambiental. São Paulo: Edusp: ABRH, 1991. SILVEIRA, A. N.; SILVA, D. R.; RUBIO, J. III Workshop Gestão e Reuso de Água - Técnicas para tratamento e aproveitamento de águas. Anais. 22 a 24 de novembro de 2007. Florianópolis, Santa Catarina, Brasil. 2007. TUCCI, C.E.M.; MENDES, C. A. Avaliação ambiental integrada de bacia hidrográfica. Ministério do Meio Ambiente / SQA. – Brasília: MMA, 2006. Dinâmicas, conflitos e proposições 136


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Capítulo 2 Qualidade da água associada ao cultivo de banana na sub-bacia hidrográfica do Rio das Pacas – RS Sumire da Silva Hinata Luís Alberto Basso Introdução A água tem função primordial para o desenvolvimento da sociedade, pois está diretamente relacionada ao abastecimento humano, usos na agricultura e na indústria, saneamento, geração de energia elétrica, navegação, aquicultura, recreação e lazer, harmonia paisagística, diluição e transporte de despejos, controle de cheias e de alterações climáticas, e demais usos inerentes a uma bacia hidrográfica. Diante das inúmeras possibilidades de uso, a demanda pelos recursos hídricos cresce proporcionalmente à necessidade de mais energia e maior produção de alimentos impostas pela sociedade. Os efeitos combinados da urbanização e das demais atividades antropogênicas, associadas ao rápido crescimento populacional das últimas décadas são facilmente visualizados nos ecossistemas (THORNE; WILLIAMS, 1997; POMPEU; ALVES; CALLISTO, 2005). Para os ecossistemas, a preservação da flora, da fauna e da biota aquática, a água tem função vital. Os impactos causados aos ecossistemas aquáticos caracterizam-se pelo aumento dos níveis de nutrientes na água (especialmente fósforo e nitrogênio), alterações no sabor e odor e presença de toxinas liberadas pela floração de alguns tipos de algas. Além dos efeitos atribuídos aos nutrientes sobre os recursos hídricos, oriundos das mais diversas fontes - inclusive de processos naturais - deve-se considerar o impacto dos agrotóxicos utilizados na agricultura. Especialmente após a controversa Revolução Verde, a escala e intensidade de uso dos agrotóxicos disseminou-se amplamente nos países em desenvolvimento, tendo como objetivo aumentar a produção e melhorá-la qualitativamente, elevando assim os lucros sobre sua comercialização. O setor agrícola torna-se dependente dos agrotóxicos, pois sofre pressão para abastecer o meio urbano e atender suas exigências quanto ao aspecto dos produtos, situação observada no cultivo de banana na sub-bacia hidrográfica do Rio das Pacas, onde foram selecionados pontos de monitoramento para a avaliação da qualidade da água entre os cultivos convencional e orgânico. Somados aos impactos na saúde da população exposta à poluição, os agrotóxicos causam também transtornos pela disseminação de doenças, eliminação da flora e fauna aquática, sem considerar os custos ambientais que serão contabilizados Dinâmicas, conflitos e proposições 138


no futuro (BANCO MUNDIAL, 2000). Para Laurent e Ruelland (2011) reduzir a poluição causada pelas atividades agrícolas é o maior desafio a ser enfrentado em muitas bacias hidrográficas cuja sustentabilidade dos ecossistemas e os usos da água estão comprometidos pela agricultura intensiva. A sub-bacia hidrográfica do Rio das Pacas A área selecionada para o monitoramento da qualidade da água é a sub-bacia hidrográfica do rio das Pacas, localizada no extremo sul da bacia hidrográfica do rio Mampituba, na parte pertencente ao estado do Rio Grande do Sul, entre as coordenadas 29°04’ a 29°26’ de latitude Sul e 49º42’ a 50°12’ de longitude Oeste. Possui área aproximada de 33 km², e abriga partes dos municípios de Morrinhos do Sul, Três Cachoeiras e Três Forquilhas. A escolha da bacia hidrográfica como unidade de análise em estudos ambientais deve-se à sua capacidade de integrar os elementos presentes na natureza, incluindo o homem, e revelar os resultados das ações praticadas dentro de seus limites. Além disso, a bacia hidrográfica tem reconhecida aceitação na literatura e é objeto de planejamento e gerenciamento instituído pela Lei Nº 9.433 (BRASIL, 1997). A bacia hidrográfica do rio Mampituba, como um todo, possui uma rede de drenagem abundante, associada a numerosas vertentes e olhos d’água que abastecem diversos arroios, que se unem para formar banhados e auxiliar na fertilização do solo para vários tipos de culturas, além de drenar áreas intensamente cultivadas com banana. Nos morros com encostas declivosas ocorrem processos intensos de escoamento superficial e lavagem de material até o leito dos cursos d’água. As unidades geomorfológicas presentes são a Planície Marinha e o Planalto dos Campos Gerais com predomínio da formação Serra Geral (IBGE, 1986). O clima na sub-bacia do Rio das Pacas está sob influência dos tipos climáticos Subtropical IVa - Muito Úmido com inverno fresco e verão quente e Subtropical IVb Muito úmido com inverno frio e verão fresco, pertencentes ao tipo Subtropical IV Muito Úmido, conforme classificação proposta por Rossato (2011). A sub-bacia é ocupada predominantemente por vegetação arbustiva e lavoura permanente com predomínio do cultivo convencional de banana, além de áreas destinada a pastagem de rebanhos e manchas de área residencial. O cultivo de banana é a produção por excelência do município de Três Cachoeiras (98,88%) e em grande parte da bacia do rio Mampituba, e representa a principal fonte do aporte de material para o leito do arroio, que também recebe carga proveniente da pecuária (em menor escala) e de outros cultivos.

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Etapas metodológicas associadas à avaliação da qualidade da água Em estudos de avaliação da qualidade da água, alguns procedimentos metodológicos são elementares. Inicialmente deve ser feita a pesquisa em dados secundários e identificação da área objeto de análise. Posteriormente, procede-se à caracterização e cartografia do uso e ocupação do solo, pois as condições qualitativas da água dependem essencialmente do meio físico e das atividades antrópicas predominantes na área da bacia. Logo após, empreende-se o trabalho de campo, com destaque à investigação sobre as práticas agrícolas adotadas, sendo o instrumento adotado para este fim a aplicação de entrevistas com os produtores locais. Por fim, ocorre a seleção dos pontos de monitoramento ao longo do curso fluvial, com a posterior determinação dos parâmetros de qualidade da água. Entrevistas com os produtores locais A diferenciação quanto ao tipo de cultivo na sub-bacia do rio das Pacas foi efetivada através de entrevistas com produtores locais estratégicos, em função do plantio de banana realizado em suas propriedades adjacentes ao rio das Pacas e arroio Paraíso, e também através da cartografia do uso e ocupação do solo. A identificação do tipo de cultivo praticado – orgânico ou convencional – deu-se através de visitas à localidade de Morro Azul, no município de Três Cachoeiras/RS. Os principais pontos abordados nesta etapa foram: o tipo de lavoura predominante nas propriedades; a época do ano na qual prepara-se o solo; tratos culturais, colheita e aplicação de agrotóxicos; orientação quanto ao uso de agrotóxicos; destino de embalagens vazias de agrotóxicos; comercialização da produção. Dentre os produtores entrevistados, a maioria adota como prática o cultivo convencional de banana, ainda que sejam resistentes em afirmar que utilizam produtos agrotóxicos. Preponderantemente, responderam que utilizam óleos minerais e outros produtos que não são “perigosos ao meio ambiente”, e que os aplicam de forma controlada. Afirmaram que, sem o uso de herbicidas, fungicidas e fertilizantes, a lavoura não fica adequada para produzir um fruto de qualidade, que possa atingir valor suficiente para venda, e o produtor acaba tendo prejuízos financeiros. Dentre aqueles que reconheceram o uso dos agrotóxicos, sua aplicação ocorre predominantemente de dezembro a fevereiro, época de maior manifestação de pragas e ervas daninhas. Ao serem questionados sobre o destino das embalagens vazias dos agrotóxicos, a maior parte deles respondeu que é realizada coleta semestral pela prefeitura, e que todos descartam no local indicado. Em contrapartida, aqueles que optam pelo plantio orgânico visam tanto uma produção de banana, através de práticas agroecológicas que causem menor dano ao meio ambiente e à saúde humana, quanto atender a um segmento de mercado que Dinâmicas, conflitos e proposições 140


demanda o alimento orgânico, garantindo assim a manutenção do agricultor e sua reprodução e sustentabilidade no campo. Dentre os produtores entrevistados, tanto orgânicos quanto convencionais, todos têm o plantio de banana como principal fonte de renda da família. Além disso, a maior parte pretende continuar com a produção atual ou aumentá-la. Observou-se, entretanto, maior participação e engajamento, em algum momento do processo produtivo, entre as famílias produtoras de orgânicos, especialmente entre os mais jovens, o que favorece a fixação destes no campo com novos empregos e diminuição do êxodo rural. Quanto à percepção geral sobre a qualidade da água na região, a maioria respondeu que ao longo dos anos houve uma diminuição da quantidade de peixes. Também percebem que no verão, a estiagem torna a água mais suja. Monitoramento da qualidade da água As práticas relacionadas ao monitoramento da qualidade da água incluem a coleta de dados e amostras de água em pontos representativos do local (georreferenciados), de modo a gerar informações que possibilitem definir as condições presentes de qualidade da água. Foram selecionados três pontos na subbacia do rio das Pacas, dentro do município de Três Cachoeiras, em função das atividades e usos do solo. O primeiro ponto situa-se no arroio Paraíso, afluente do rio das Pacas. O segundo ponto encontra-se no rio das Pacas, em local a jusante da área de maior concentração de casas da localidade Morro Azul. O terceiro ponto, também no rio das Pacas, localiza-se no exutório da sub-bacia, próximo a ponte que dá acesso a localidade. Os três pontos recebem as águas provenientes do escoamento superficial difuso das encostas onde ocorre o cultivo de banana. As coletas de amostras de água foram realizadas em duas campanhas: em 11 de agosto de 2013 e 19 de janeiro de 2014. A definição das campanhas de coleta de água foi estabelecida em função da diferenciação dos períodos de aplicação de agrotóxicos, que ocorre geralmente com maior intensidade no início do mês de dezembro. A Figura 1 apresenta os pontos de coleta de água na sub-bacia do rio das Pacas, contextualizados ao uso e ocupação do solo.

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Figura 1 - Pontos de monitoramento e uso e ocupação do solo da sub-bacia do rio das Pacas.

Parâmetros de qualidade de água Um dos principais desafios na análise de águas para fins de monitoramento consiste na dificuldade de obtenção de dados, considerando-se as escassas redes de monitoramento, inadequadas quanto à frequência das amostras, parâmetros e representatividade do número de pontos de amostragem. Os parâmetros físicos, químicos e bacteriológicos (coliformes termotolerantes) selecionados para a determinação do Índice de Qualidade da Água - IQA são os mesmos utilizados no cálculo do IQA realizado pela Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental (CETESB/SP). A utilização deste IQA é amplamente difundida por sua capacidade de comunicar aos atores institucionais da bacia a situação da qualidade da água no corpo hídrico, para que seja possível identificar potenciais fontes que estejam alterando e diminuindo a capacidade de regeneração de um determinado curso d’água. Através dos parâmetros selecionados para o cálculo do IQA/CETESB, tem-se uma visão geral da qualidade da água, resultante da análise sobre elementos fundamentais para inferir a realidade mais próxima dos usos adotados na bacia, neste caso a agricultura. O monitoramento das águas superficiais contemplou os agrotóxicos carbofurano, mancozebe, picloran, propiconazol e tiofanato metílico, selecionados com base nas entrevistas com os produtores locais. O glifosato também foi analisado, sendo um dos poucos agrotóxicos que apresentam limites estabelecidos pela Resolução CONAMA Nº 357, de 17 de março de 2005 (CONAMA, 2005). Esta Resolução dispõe sobre a classificação dos corpos de água Dinâmicas, conflitos e proposições 142


e diretrizes ambientais para o seu enquadramento, e apresenta uma classificação para as águas doces, salobras e salinas, segundo seus usos preponderantes (para as águas doces, estabelece cinco classes). O enquadramento em um determinado corpo hídrico numa dessas classes deverá respeitar os limites e condições estabelecidos pela própria Resolução, e será procedido pelo Ibama para as águas federais e pelos órgãos estaduais competentes, no tocante as águas estaduais (RIOS e IRIGARAY, 2005). A qualidade das águas superficiais Precipitação e vazão Os fatores climáticos foram determinantes para a dinâmica hidrológica da subbacia e condicionantes das práticas agrícolas adotadas em função do ciclo de crescimento do bananal e das ervas daninhas. As chuvas observadas na região favorecem os processos de escoamento superficial difuso, intensificado pela declividade acentuada das encostas dos morros. A estação convencional de Torres do Banco de Dados Meteorológicos para Ensino e Pesquisa - BDMEP do Instituto Nacional de Meteorologia - INMET registrou 140 mm de precipitação nos 30 dias anteriores à data da coleta (11 de agosto de 2013), sendo 57 mm no dia imediatamente anterior. O aumento pluviométrico promoveu maior aporte de sedimentos e elevou significativamente o volume de água no rio das Pacas. Na segunda campanha, realizada em 19 de janeiro de 2014, o BDMEP/INMET registrou 150 mm de precipitação nos 30 dias anteriores à data da coleta. Em 13 de janeiro foi registrado o maior volume de precipitação do mês (64,9 mm). A quantidade de chuva influencia diretamente a vazão, e esta atua sobre a diluição ou concentração de poluentes na água. Práticas agrícolas Segundo a EMBRAPA (2012) as principais diferenças entre o cultivo de banana convencional e a orgânica residem no âmbito do campo e do suprimento de nutrientes. No cultivo de banana orgânica basicamente o manejo do solo é mais sustentável, com menos revolvimento, menos uso de máquinas e, assim, com menos degradação ambiental na sua implantação. No suprimento dos nutrientes, não há uso de insumos químicos, privilegiando os insumos orgânicos disponíveis próximos à área de cultivo e a utilização de adubos verdes e biomassa vegetal. Além do uso do controle biológico no manejo das pragas. Informações não científicas constataram frutos menores e mais saborosos no cultivo orgânico, indicando maior concentração dos sólidos solúveis totais e açúcares. Acredita-se que as variedades desenvolvidas pelo melhoramento tradicional, que Geografia

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produzem frutos muito grandes no sistema convencional, sejam promissoras nos cultivos orgânicos. A produção de alimentos orgânicos requer maior tempo dispendido no plantio e, portanto, acarreta menor quantidade de banana produzida, além da menor oferta e alto custo da mão de obra no campo. Na maior parte dos casos, o agricultor trabalha sozinho na sua roça. Desta maneira, o produto final agrega maior valor, com preço mais elevado e é comercializado em feiras específicas de produtos orgânicos, ou em setores distintos nas redes de supermercado. Na produção orgânica, as plantas recebem somente os tratos culturais, sem acréscimo de produtos agrotóxicos. Observase que a cobertura vegetal se mantém melhor preservada, protegendo os solos da ação erosiva das chuvas. Os impactos ecológicos, econômicos e sociais negativos produzidos pela agricultura convencional levaram a surgir correntes defendendo práticas agrícolas ambientalmente equilibradas e saudáveis à humanidade. Nesse contexto, está inserida a agricultura orgânica. A Lei Nº 10.831 (BRASIL, 2003), regulamenta a produção orgânica de alimentos e estabelece como sistema orgânico de produção agropecuária todo aquele em que se adotam técnicas específicas, mediante a otimização do uso dos recursos naturais e socioeconômicos disponíveis e o respeito à integridade cultural das comunidades rurais. O sistema orgânico tem por objetivo a sustentabilidade econômica e ecológica, a maximização dos benefícios sociais, a minimização da dependência de energia não renovável, e emprega, sempre que possível, métodos culturais, biológicos e mecânicos, em contraposição ao uso de materiais sintéticos. Ainda, a eliminação do uso de organismos geneticamente modificados e radiações ionizantes, em qualquer fase do processo de produção, processamento, armazenamento, distribuição e comercialização, e a proteção do meio ambiente. A ênfase na diferenciação dos cultivos orgânico e convencional teve como premissa a valorização da prática orgânica, que busca a sustentabilidade ecológica e econômica, com maior aproveitamento de métodos naturais, eximindo o produtor da dependência da indústria dos agrotóxicos e da degradação da água, dos solos e do meio ambiente de maneira geral. Os agrotóxicos selecionados para o monitoramento são reconhecidamente utilizados pelos produtores convencionais, ainda que haja resistência entre a maioria em confirmar a utilização desses produtos para exterminar as pragas existentes na plantação de banana ou evitar ervas daninhas. Estes agrotóxicos são classificados pelo Sistema de Agrotóxicos Fitossanitários - AGROFIT do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento - MAPA desde pouco tóxicos a extremamente tóxicos, com classificações ambientais ‘Produto Muito Perigoso ao Meio Ambiente’ e ‘Produto Perigoso ao Meio Ambiente’. Ainda, o princípio ativo picloran foi categorizado como Dinâmicas, conflitos e proposições 144


‘grande potencial de contaminação das águas superficiais’, enquanto o propiconazol constitui-se em um ‘produto altamente persistente no meio ambiente e altamente tóxico para microscrustáceos’. A distinção da área das propriedades entre o cultivo orgânico ou convencional não foi possível em função da dificuldade de associá-los a um ponto específico do curso d’água, marcado pelo escoamento superficial difuso e pela contiguidade entre um cultivo e outro. A água que escorre dessas vertentes mistura-se a outros sedimentos e outras fontes e atinge o leito do arroio indistintamente. Parâmetros de qualidade e agrotóxicos e sua relação com os limites estabelecidos pela Resolução 357/2005 do CONAMA A Tabela 2 mostra os resultados dos parâmetros analisados na primeira e segunda campanhas efetuadas na sub-bacia do rio das Pacas. Na sequência, apresentase uma análise por pontos de monitoramento, ressaltando os resultados mais importantes dos parâmetros de qualidade avaliados. Cabe salientar que em nenhum dos locais monitorados foi detectado nitrito, e o pH manteve-se próximo à condição neutra e dentro dos limites estabelecidos pelas normas legais. Ressalta-se que as vertentes da sub-bacia apresentam pouca proteção das margens, têm uso intensivo do solo para a agropecuária e práticas agrícolas redominantemente convencionais com uso de agrotóxicos.

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Tabela 2 - Resultados das amostras da primeira campanha (11 de agosto/2013) e segunda campanha (19 de janeiro/2014). Parâmetro

Resolução CONAMA Nº 357/2005 (VMP¹) Classe 1

≥6 (mg/L O2) Coliformes termotolerantes 200 (NMP) (nmp/100mL) pH 6a9 DBO5,20 (mg/L O2) ≤3 Fósforo total (mg/L 0,1 P) Nitrato (mg/L N) 10,0 Nitrito (mg/L N) 1,0 3,7 mg/L N, pH ≤ 7,5 Nitrogênio amoniacal 2,0 mg/L N, 7,5< pH ≤ 8,0 1,0 mg/L N, 8,0 < pH ≤ (mg/L N) 8,5 0,5 mg/L N, pH > 8,0 Nitrogênio Total Kjeldahl (mg/L N) Temperatura da água (°C) Turbidez (UNT) ≤40 Sólidos totais (mg/L) Sólidos dissolvidos 500 totais (mg/L) Sólidos suspensos totais (mg/L) Carbofurano (µg/L) Glifosato (µg/L) 65 Mancozebe (µg/L) Picloran (µg/L) Propiconazol (µg/L) Tiofanato Oxigênio Dissolvido metílico(µg/L)

Classe 2

Classe 3

PONTO 01

Classe 4

1ª campanha

PONTO 02

2ª campanha

1ª campanha

2ª campanha

PONTO 03

1ª campanha

2ª campanha

≥5

≥4

≥2

5,5

7,6

5,7

7,4

6,0

7,6

1.000

2500

-

220

150

70

140

170

920

6a9 ≤5

6a9 ≤10

6a9 -

6,1 11

7,1 4

6,2 11

7,0 3

6,3 12

7,0 3

0,1

0,15

-

0,01

0,39

<0,01

0,66

0,01

0,01

10,0 1,0

10,0 1,0

-

0,16 ND

ND ND

0,16 ND

<0,09 ND

0,17 ND

ND ND

13,3 mg/L N, pH ≤ 7,5 5,6 mg/L N, 7,5< pH ≤ 8,0 2,2 mg/L N, 8,0 < pH ≤ 8,5 1,0 mg/L N, pH > 8,0

-

<0,1

0,7

ND

0,4

ND

0,3

-

-

-

ND

1,8

ND

0,9

ND

0,9

-

-

-

14,6

25

15,2

26

15

28

≤100 -

≤100 -

-

4,3 43

1,2 98

5,6 42

1,8 71

7,3 30

4,7 70

500

500

-

25

96

37

68

22

64

-

-

-

18

<10

<10

<10

<10

<10

65 -

280 -

-

ND ND ND ND ND

ND ND ND ND ND

ND ND ND ND ND

ND ND ND ND ND

ND ND ND ND ND

ND ND ND ND ND

-

-

-

ND

ND

ND

ND

ND

ND

3,7 mg/L N, pH ≤ 7,5 2,0 mg/L N, 7,5< pH ≤ 8,0 1,0 mg/L N, 8,0 < pH ≤ 8,5 0,5 mg/L N, pH > 8,0

Fonte: Coleta das amostras realizada na dissertação de mestrado da autora. Elaboração do laudo analítico: Bioensaios Análise e Consultoria Ambiental. ND< que o limite de detecção. ¹ Valor Máximo Permitido. Na Classe Especial deverão ser mantidas as condições naturais do corpo d’água.

Dinâmicas, conflitos e proposições 146


Ponto 01 A DBO5,20 na primeira campanha alcançou 11 mg/L O2, enquadrando-se fora da Classe 3 1 da Resolução CONAMA Nº 357/2005; este valor pode ser indicativo de contaminação orgânica, com a consequente diminuição de OD (5,5 mg/L O2, Classe 2). Na segunda campanha, a DBO5,20 diminuiu para 4 mg/L O2, elevando o OD para 7,6 mg/L O2, identificando-se como Classe 2 e Classe 1, respectivamente. Considerando-se que não existem fontes industriais ou urbanas próximas a este ponto que poderiam ocasionar poluição por matéria orgânica derivada de efluentes industriais e/ou esgotos domésticos, é possível deduzir que o valor elevado da DBO5,20 na campanha de agosto provém de um incremento da microflora, ou da alta produção de matéria orgânica oriunda da própria vegetação existente no entorno. A redução da concentração de OD na primeira campanha também pode estar associada à oxidação da matéria orgânica viva ou morta resultante da atividade de microorganismos, perdas para a atmosfera, respiração de organismos aquáticos e oxidação de íons metálicos como, por exemplo, ferro e manganês (ESTEVES & FURTADO, 2011) ou ainda pelo metabolismo das plantas. Os valores de coliformes fecais mantiveram-se próximos para ambas as campanhas, sempre inseridos dentro da Classe 1 (150 NMP/100ml) ou Classe 2 (220 NMP/100ml). Apesar do valor pouco expressivo - se confrontados com os limites estabelecidos pela Resolução CONAMA Nº 357/2005 para Água Doce, Classe 1 - os níveis de nitrato foram maiores na 1ª campanha (0,16 mg/L N) e não foram detectados na 2ª campanha. As concentrações de fósforo total foram relativamente superiores na 2ª campanha (0,39 mg/L P). Isto pode ter sua origem associada ao processo de lixiviação das rochas, organismos em decomposição, resíduos animais e fertilizantes artificiais aplicados nas lavouras, considerando-se as peculiaridades do entorno. Os resultados da turbidez nas duas campanhas são inversamente proporcionais aos de sólidos totais; na campanha de agosto a turbidez apresentou maiores valores, reflexo da menor movimentação dos sólidos totais na mesma data. Independentemente das diferenças entre a 1ª e a 2ª campanha, os resultados obtidos para o parâmetro turbidez enquadram-se na Classe 1 da Resolução CONAMA Nº 357/2005. Ponto 02 Os parâmetros DBO5,20 e OD apresentaram comportamento semelhante ao do Ponto 01. A DBO5,20 na primeira campanha atingiu 11 mg/L O2, com a consequente diminuição de OD (5,7 mg/L O2). Este ponto apresenta maior proximidade com as lavouras de banana orgânica e também com o núcleo da localidade do Morro Azul. A Resolução CONAMA 357/2005 não é clara para classificar as águas quando os valores da DBO5,20 são superiores a 10 mg/L O2. Alguns autores adotam a Classe 4. Neste estudo adotou-se a classificação ‘além da classe 3’ para valores superiores a 10 mg/L O2, de forma a não divergir do que estabelece o artigo 17 da Resolução. 1

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Assim, a DBO5,20 na campanha de agosto ficou fora da Classe 3, devido a maior produção de matéria orgânica da própria vegetação ou por alguma fonte de poluição oriunda de despejos domésticos, considerando que este ponto se encontra próximo à localidade de Morro Azul. Na campanha de janeiro, a DBO5,20 ficou na em Classe 1. As concentrações de coliformes termotolerantes ficaram dentro dos limites da Classe 1 nas duas campanhas, evidenciando uma boa qualidade em relação a esse parâmetro. O parâmetro nitrato teve concentrações superiores na primeira campanha, quando o volume de chuvas foi maior. A alta solubilidade desse elemento associada a alguma aplicação de fertilizantes em data anterior à coleta ou à decomposição celular de microorganismos, pode explicar esse aumento de concentração do elemento nas águas. Em relação ao fósforo, na 2ª campanha, obteve-se o mais alto valor entre todos os pontos e campanhas: 0,66 mg/L P, o qual pode estar vinculado ao processo de lixiviação das rochas, organismos em decomposição, resíduos animais e fertilizantes artificiais aplicados nas lavouras, considerando-se as peculiaridades do entorno, ficando assim na Classe 3. Ponto 03 O Ponto 03 situa-se próximo ao exutório da sub-bacia do rio das Pacas, local que recebe as águas e materiais provenientes dos cursos a montante. O ponto de coleta encontrasse perto da ponte de acesso à localidade de Morro Azul. Os valores de OD apresentaram comportamento semelhante aos demais pontos e em ambas campanhas inseridos na Classe 1. Na segunda campanha a concentração foi ligeiramente maior: 7,6 mg/L O2. A DBO5,20, assim como ocorreu nos demais pontos, foi superior à primeira campanha, com valor de 12 mg/L O2. Dentre os parâmetros analisados, os coliformes termotolerantes apresentaram os maiores resultados em relação às demais amostras: na 2ª campanha foi detectado 920 NMP/100mL. A presença dos coliformes pode ser indicativo da contaminação do manancial por excrementos. Segundo os limites da Resolução CONAMA Nº 357/2005 para este parâmetro, os resultados da segunda campanha indicam enquadramento na Classe 2 para Água Doce, onde não deverá ser excedido um limite de 1.000 coliformes termotolerantes por 100 mililitros em 80% ou mais de pelo menos seis amostras coletadas durante o período de um ano, com frequência bimestral. Mesmo com tal concentração, as águas ali podem ser utilizadas para a recreação de contato primário, pois obedecem ao limite de 1000 org/100 ml, estabelecido pela Resolução CONAMA Nº 274/2000, que designa como “satisfatória” a água para a balneabilidade. Em relação aos nutrientes, os valores de fósforo mantiveram-se baixos nas duas campanhas, enquanto o nitrato alcançou 0,17 mg/L N na primeira campanha, e não foi detectado na segunda.

Dinâmicas, conflitos e proposições 148


Os sólidos totais também aparecem em maior número na segunda campanha (70mg/L) e a turbidez na primeira campanha foi a maior registrada (7,3 NTU) entre todos os pontos monitorados, ainda assim permanecendo na Classe 1. A água na sub-bacia do Rio das Pacas foi enquadrada em Classe 1 para a maioria dos parâmetros, exceto DBO5,20 na primeira campanha e fósforo na segunda, que ficaram além da Classe 3. A Classe 3 é destinada ao abastecimento para consumo humano após tratamento convencional ou avançado, irrigação de culturas arbóreas, cerealíferas e forrageiras, pesca, recreação de contato secundário e dessedentação de animais, conforme apresentado na Figura 2, que relaciona as classes de enquadramento aos usos respectivos a que se destinam as águas-doces, segundo a Resolução CONAMA Nº 357/2005.

Figura 2 - Classes de enquadramento das águas doces e usos respectivos. Fonte: Portal da Qualidade das Águas – ANA.

O valor mais alto foi o do fósforo, que pode significar um aumento do aporte de fertilizantes utilizados nas lavouras, coincidente com a época do ano - meses do verão - onde a prática intensifica-se por causa da maior absorção de nutrientes pela planta nesta época do ano. Os elementos carbofurano, glifosato, mancozebe, picloran, propiconazol e tiofanato metílico apresentaram resultados menores do que o limite de detecção nas amostras realizadas. Estes princípios ativos estão presentes em agrotóxicos utilizados no cultivo convencional de banana. Apesar da negativa da maioria dos produtores entrevistados, os agrotóxicos podem estar sendo utilizados de forma desmensurada e sem controle em muitas áreas Geografia

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de cultivo de banana na sub-bacia do Rio das Pacas, e os resultados para a detecção da presença de agrotóxicos devem ser vistos com cautela. A preocupação com o uso indiscriminado de agrotóxicos tem sido normalmente divulgada através de pesquisas e orientações provenientes principalmente de órgãos governamentais. Em decorrência da significativa importância, tanto em relação à sua toxicidade quando à escala de uso no Brasil, os agrotóxicos possuem uma ampla cobertura legal no país, com um grande número de normas legais. O referencial legal mais importante é a Lei nº 7802/89 (BRASIL, 1989), que rege o processo de registro de um produto agrotóxico, regulamentada pelo Decreto nº 4074/02 (BRASIL, 2002). A não detecção desses produtos no resultado final pode significar que esses agrotóxicos não são facilmente detectados através da análise da água, ou podem ser revelados somente em cursos d’água muito próximos às lavouras de banana, ou ainda, podem ser evidentes através de outras formas de análise, como a sedimentológica, o biomonitoramento ou através da análise das águas subterrâneas. Análise do Índice de Qualidade de Água - IQA O IQA é um número que expressa a qualidade geral da água em certo local e tempo, utilizando diversos parâmetros no cálculo, que considera diferentes variáveis em um único índice de qualidade. O IQA/CETESB foi utilizado para a análise da subbacia do Rio das Pacas, e tem como parâmetros o Oxigênio Dissolvido (% saturação), coliformes fecais (NMP/100 mg L-1), pH, DBO5,20 (mg L-1), Fósforo total (mg L-1), Nitrogênio total (mg L-1), temperatura da água (ºC), turbidez (UNT) e sólidos totais (mg L-1). Tais parâmetros compõem a base de cálculo do IQA, expresso através da seguinte equação n

IQAqiwi i1

na qual, IQA é o Índice de Qualidade das Águas, um número entre 0 e 100; qi é a qualidade do i-ésimo parâmetro, um número entre 0 e 100, obtido da respectiva "curva média de variação de qualidade", em função de sua concentração ou medida; wi é o peso correspondente ao i-ésimo parâmetro, um número entre 0 e 1, atribuído em função da sua importância para a conformação global de qualidade, sendo que:

w 1

n

i

i1

na qual, n é o número de parâmetros que entram no cálculo do IQA. Os resultados das análises da água coletada foram empregados para calcular o IQA. O Quadro1 apresenta a categorização da qualidade da água conforme a faixa de IQA. Dinâmicas, conflitos e proposições 150


Quadro 1 - Interpretação do Índice de Qualidade da Água - IQA CETESB.

Faixa de IQA

Classificação qualidade da água

79 < IQA ≤ 100

Ótima

51 < IQA ≤ 79

Boa

36 < IQA≤ 51

Regular

19 < IQA≤ 36

Ruim

IQA ≤ 19

Péssima

Adverte-se que os resultados devem ser vistos com cautela, pois foram realizadas apenas duas campanhas, as quais restringem a composição de uma série histórica mais robusta. Importante salientar, também, que o IQA apresenta lacunas ao não considerar os agrotóxicos no seu cálculo. Por isso, há a necessidade de inclusão deste tipo de análise de forma isolada em trabalhos que examinam a qualidade da água em bacias hidrográficas com uso agrícola intensivo. O resultado do IQA no Ponto 1, durante a primeira campanha (agosto), atingiu valor 61, com melhor desempenho na segunda campanha (janeiro), onde alcançou valor 70, ambos situados na faixa considerada BOA. No Ponto 2, o IQA da primeira campanha atingiu valor 65, com variação na segunda campanha, onde atingiu valor 69, ambos com classificação considerada BOA. No Ponto 3, o resultado da primeira campanha totalizou valor 63 e a segunda campanha, valor 73, permanecendo também na faixa do IQA classificada como BOA. A partir desses valores constata-se que os pontos monitorados tiveram resultados muito próximos, onde as maiores semelhanças ocorreram nas campanhas efetuadas no mesmo mês, conforme demonstrado na Figura 3. Em agosto, a nota do IQA dos três pontos, foi um pouco menor do que a campanha de janeiro.

Geografia

151


Figura 3 - IQA na sub-bacia hidrográfica do Rio das Pacas.

O IQA da segunda campanha foi melhor do que o da primeira. As diferenças de valores de IQA entre as campanhas e os pontos monitorados foram mínimas, o que permite deduzir que o fator pluviométrico, nesse caso, não interferiu de forma significativa na qualidade da água. Essa diferença entre campanhas distintas pode ser evidência de uma fonte inesperada de contribuição ao leito do arroio, como uma maior demanda de oxigênio no mês de agosto originária do aporte de matéria orgânica da Floresta Ombrófila Densa e das outras formações a montante do Rio das Pacas. O Ponto 3, que representa o exutório da sub-bacia, recebe toda a carga proveniente do arroio e apresenta maior quantidade de coliformes fecais, apresentou o melhor IQA de todas as campanhas. Nesse ponto, existem ainda outros tipos de cultivos, em área muito próxima às margens, com presença de resíduos (lixo). Pode-se concluir que a qualidade das águas da sub-bacia do Rio das Pacas nos pontos monitorados, segundo os critérios do IQA CETESB, encontra-se com classificação da qualidade de água BOA. Considerações finais e sugestões Considerou-se a forte influência de fatores naturais nas análises realizadas, como o aporte de matéria orgânica proveniente da vegetação, que se revelou bem preservada nas cabeceiras do arroio, mas escassa como mata ciliar ao longo do curso d’água, principalmente no Ponto 1. Dinâmicas, conflitos e proposições 152


Os procedimentos envolveram o monitoramento das águas da sub-bacia do Rio das Pacas e seu afluente Arroio Paraíso, pertencentes à bacia hidrográfica do Rio Mampituba/RS, e a análise dos parâmetros físicos e químicos OD, coliformes termotolerantes, DBO5,20, pH, fósforo, nitrogênio total, temperatura da água, turbidez e sólidos totais, além dos princípios ativos presentes nos agrotóxicos, a saber, carbofurano, mancozebe, picloran, propiconazol e tiofanato metílico, incluindo o glifosato, que apresenta limites estabelecidos pela Resolução CONAMA Nº 357/2005. Através da metodologia de avaliação do IQA/CETESB e da verificação individualizada dos parâmetros à luz da Resolução CONAMA Nº 357/2005, tornouse possível estabelecer uma breve contextualização da qualidade das águas e da influência das atividades praticadas na sub-bacia, sendo o cultivo de banana convencional o principal deles. Ainda que os resultados das campanhas tenham manifestado a existência de alguns parâmetros enquadrados em Classe 3 da Resolução CONAMA Nº 357/2005, a sub-bacia encontra-se relativamente conservada. Todavia, pode vir a ficar comprometida pela utilização de produtos agrotóxicos, reconhecidamente utilizados pelos produtores, que têm consciência do poder da degradação dos mesmos. Dentre os entrevistados, todos alegam que depositam as embalagens utilizadas em pontos de coleta disponibilizados pelo poder público, além da confirmação da coleta através da empresa especializada de Santa Catarina. A não detecção de agrotóxicos nesses pontos monitorados pode representar que a região conta com um regime pluviométrico que favorece a rede de drenagem com vazão suficiente para a remoção de substâncias que possam causar degradação ao meio. Adverte-se para a limitação da abrangência deste monitoramento, que não contemplou o uso de todos os agrotóxicos que podem estar presentes nas águas e também no solo da sub-bacia em questão, dada a limitação do número de amostras e da quantidade de campanhas. A exemplo de outros estudos realizados, ainda que poucos, mas de grande esforço e importância para o desenvolvimento de campanhas de monitoramento e estabelecimento de políticas de gerenciamento e controle do uso de agrotóxicos, como a recente publicação do Panorama da EMBRAPA (2014) orientase o desenvolvimento de novas pesquisas que avaliem outros aspectos, considerando outras metodologias que possam apontar resultados mais precisos, como uma análise de perfil de solo, análises de sedimento de fundo do leito e bioacumulação já citadas. Outra questão de fundamental importância é o enfoque a ser dado sobre a Lagoa do Morro do Forno, que é o receptáculo de toda a água proveniente do Rio das Pacas e seus afluentes e de outros tributários do Rio Mampituba. A água que escoa dos vales adjacentes e se deposita nesta lagoa, e traz consigo o material proveniente do cultivo da banana, além do aporte de agrotóxicos e fertilizantes utilizados no cultivo intensificado da lavoura de arroz das proximidades. Nesse sentido, é altamente recomendável o estabelecimento de um ponto de monitoramento nesta Lagoa. As sugestões apresentadas apontam para a escolha do cultivo orgânico, que poderia ser Geografia

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adotado como prática não só por causa dos aspectos conservacionistas dos recursos naturais, mas como forma de fortalecer as cooperativas de produtos ecológicos, que transformam a produção em bens de consumo e aumentam o controle sobre o produto final e os benefícios para o agricultor, que pode participar da produção desde o cultivo até a comercialização final, sem a dependência imposta pela indústria produtora de agrotóxicos. Os produtores que adotaram a prática da agricultura orgânica demonstraram maior preocupação com a questão ambiental, e foi possível perceber, durante as entrevistas, maior participação e motivação dos jovens para dar continuidade ao trabalho no campo e melhor a produção. Os produtores são conscientes sobre os prejuízos para o meio ambiente com a utilização dos agrotóxicos, e alguns mencionam que a “culpa de o campo estar envenenado é da cidade”. Neste sentido, os agrotóxicos são a garantia de uma produção agrícola lucrativa para a maioria das famílias, mas deve-se contabilizar qual o preço que a fauna, a flora, os recursos hídricos e a saúde humana podem pagar. Os produtores locais podem receber maior esclarecimento sobre a agricultura orgânica, os benefícios à vitalidade e sustentabilidade do solo. Também devem receber treinamento e fiscalização adequada quanto ao uso de Equipamento de Proteção Individual (EPI) durante a aplicação, informando os malefícios do uso continuado de agrotóxicos para o produtor e para o consumidor final, que podem desenvolver distúrbios endócrinos e potenciais caso de câncer, além da acumulação e transformação dos metabólitos na água e no meio ambiente. Além da prática do cultivo orgânico, o produto da banana que é descartado - a casca - poderia ser utilizada para o tratamento da água para retirada de agrotóxicos, conforme apontam pesquisas recentes, onde essa biomassa de banana conseguiu absorver 90% dos pesticidas testados. Este estudo não se esgota aqui, visto que pode servir como instrumento de fortalecimento ao comitê do Mampituba, recém instituído pelo Decreto Nº 49.834 de 19 de novembro, orientando-o sobre quais os usos dos recursos hídricos (atuais e futuros) são pretendidos pela sociedade para o corpo d’água, qual a classe de enquadramento necessária e quais parâmetros de qualidade da água são prioritários para atender os usos pretendidos, entre outras questões, a fim de que a sociedade torne-se responsável pelas demandas da região e incentivem uma maior utilização de produtos ecológicos, ainda que o resultado das campanhas tenha demonstrado qualidade boa da água. Independentemente dos resultados negativos para a presença de agrotóxicos, permanece o alerta para a necessidade de monitoramento sistemático sobre a incidência de agrotóxicos sobre os recursos hídricos.

Dinâmicas, conflitos e proposições 154


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Dinâmicas, conflitos e proposições 156



Capítulo 3 Uma base teórica para metodologias de risco a inundações graduais Eléia Righi Luís Alberto Basso

Introdução As cidades localizadas nas margens dos rios Tigre e Eufrates, na Mesopotâmia, assim como do rio Nilo, no Egito, tiveram que desenvolver técnicas que lhes proporcionassem meios de controlar as cheias na estação chuvosa, e a irrigação das terras cultiváveis na estação seca (BRUMES, 2001). Esses agrupamentos, com as experiências passadas de geração em geração, aprenderam a conviver com os desastres apesar do risco. Pode-se até considerar como uma forma “primitiva” de risco aceitável (MARCELINO, 2008). Todavia, com o passar dos séculos, novas áreas foram povoadas e as cidades consolidaram-se. Na segunda metade do século passado já existiam densos aglomerados urbanos, fazendo com que áreas suscetíveis, como as várzeas inundáveis, fossem ocupadas, trazendo como consequência prejuízos humanos e materiais. A ocupação de áreas avaliadas como de risco pode ser associada a vários fatores, que abrangem desde o aumento populacional e a insuficiência de condições econômicas dos indivíduos para aquisição de imóveis e terrenos em locais adequados, até a carência de políticas públicas de planejamento das cidades e suas periferias (CRISTO, 2002). A resposta humana ao perigo natural varia segundo o nível de organização do território e possibilidades tecnológicas disponíveis em uma sociedade. O meio natural impõe obstáculos para a ocupação de certas áreas, mas é o meio social, ao ocupar as áreas naturalmente de perigo, que acaba desencadeando o surgimento do risco e potencializando a ocorrência de inundações (PELOGGIA, 1998). Para a determinação do risco em uma área é necessário conhecer a perigosidade do processo e a vulnerabilidade da população. Isto implica à necessidade de dispor de informações e inventários sobre a população humana e suas instalações, assim como a localização, distribuição espacial, valor real dos imóveis, entre outros fatores. A gestão e gerenciamento de riscos naturais têm sido aprimorados à medida que as perdas associadas a desastres assumem proporções insustentáveis do ponto de vista socioeconômico. As inundações são os desastres que mais provocam perdas materiais e humanas mundialmente. Segundo o Centre for Research on the Epidemiology of Disasters (CRED), desde 1995, as inundações foram responsáveis por 47% de todo os desastres ocorridos no planeta, afetando 2,3 bilhões de pessoas. O número de inundações por ano subiu para uma média de 171 no período 2005-2014, contra uma média anual de 127 na década anterior. Na América do Sul, 560.000 pessoas foram Dinâmicas, conflitos e proposições 158


afetadas pelas inundações em média a cada ano, entre 1995 e 2004. Na seguinte década (2005-2014) esse número tinha aumentado para 2,2 milhões de indivíduos, um acréscimo de quase quatro vezes. Nos primeiros oito meses de 2015, mais 820.000 cidadãos foram afetados por inundações na região (CRED, 2015). Recentes catástrofes provocadas por eventos hidrológicos em vários estados da Federação revelam a fragilidade das atuais políticas públicas para o tratamento dos problemas das inundações. A demanda por políticas orientadas ao risco, em lugar da tradicional abordagem orientada ao evento, torna-se evidente, e, as soluções encontradas concentram-se em medidas não estruturais, as quais, por sua vez, são aplicadas em toda a bacia hidrográfica. Nesse sentido, os modelos hidrológicos buscam uma representação matemática dos processos que envolvem o ciclo da água na superfície e subsuperfície, tendo normalmente como objeto de estudo a bacia hidrográfica. Os modelos matemáticos têm a vantagem de permitir a geração de resultados para diferentes situações com alta velocidade de resposta (TUCCI, 1998). Isso tem motivado amplamente o uso de modelos de simulação do escoamento também para sistemas de alerta e previsão de inundações em tempo real (MOORE et al., 2005). Juntamente com os modelos matemáticos, quantificar e qualificar as condições de vulnerabilidade da população torna-se imprescindível para a tomada de decisão em gestão e gerenciamento do risco de inundações graduais. Nesse sentido, esse trabalho objetiva definir uma base teórica para metodologias de risco a inundações graduais em áreas urbanas localizadas em grandes bacias hidrográficas. Parâmetros metodológicos Para a definição da base teórica, primeiro é importante compreender que o risco referese à probabilidade de ocorrência (tempos de retorno) do processo no tempo e no espaço, e à maneira como estes processos afetam (direta ou indiretamente) a vida humana (vulnerabilidade). Assim, previamente, necessitam-se definir os tempos de retorno (TR), ou seja, os graus de perigo, através de modelos matemáticos. A determinação desses níveis pode ser feita com inúmeros modelos. A proposta que aqui se apresenta indica o programa HEC-RAS. A rotina de trabalho pode ser obtida diretamente no site da USACE <http://www.hec.usace.army.mil/software/hec-ras/>. Caso não se possuam os dados de vazão para aplicar o programa HEC-RAS, esses podem ser auferidos com o Modelo Hidrológico de Grandes Bacias (MGB-IPH), descrito em Collischonn (2001) ou Collischonn et al. (2007), que consiste em um modelo distribuído desenvolvido para aplicações em grandes bacias com limitação de dados (maiores que 10.000 km²). A análise da vulnerabilidade por referência a um determinado território e a um dado perigo define-se levando em consideração as dimensões de ordem social. Neste Geografia

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âmbito, incluem-se parâmetros associados às características socioeconômicas, infraestrutura, doenças de veiculação hídrica e o impacto emocional (Figura 01).

Figura 01: Fluxograma da vulnerabilidade. A combinação entre os graus de perigo a inundações e a vulnerabilidade (Quadro 1), permite a construção de “Mapas de Risco”, que são de extrema importância para os planos de gestão e gerenciamento contra inundações. Quadro 01: Matriz para o cálculo do zoneamento de risco. Perigo x Vulnerabilidade

Vulnerabilidade

Perigo 1 - Alto

2 - Médio

3 - Baixo

1 - Alta

1

2

3

2 - Média

2

4

6

3 - Baixa

3

6

9

Assim, a cor mais escura indica compartimentos sujeitos a processos de inundações com alto potencial de causar danos, alta frequência de ocorrência, envolvendo setores de alta vulnerabilidade. A cor cinza-médio aponta áreas sujeitas a processos de inundações com médio potencial de causar danos e média frequência de ocorrência, e, a cor cinza claro designa um baixo risco do sistema social frente ao processo de inundação. Pressupostos teóricos A compreensão das Inundações Graduais O extravasamento da água de um rio para a planície é uma consequência natural do regime hidrológico. Durante a maior parte do tempo, o escoamento está limitado ao canal principal do curso fluvial. Em eventos de grande precipitação ocorre Dinâmicas, conflitos e proposições 160


o aumento do nível da água, fazendo que parte transborde para as áreas marginais, o que resulta em inundação. Contudo, esse fenômeno tem-se acelerado com o tempo e causado muitos danos, pois o processo de urbanização desordenado em áreas suscetíveis intensificou a duração, a magnitude e a frequência das inundações. Em função disso, tais eventos despertaram grande interesse e preocupação, especialmente de estudiosos e moradores das áreas atingidas, sendo seriamente discutidos na atualidade. Muitas vezes, eles são consequência de uma visão distorcida do controle das águas pluviais por parte da comunidade e profissionais, que ainda priorizam projetos localizados, sem uma visão geral da bacia hidrográfica e dos aspectos sociais e institucionais das cidades. Castro (2003) explica que as inundações bruscas (flash floods) ou enxurradas são provocadas por chuvas intensas e concentradas, caracterizando-se por produzirem súbitas e violentas elevações dos caudais, que escoam de forma rápida e intensa. Frequentemente, ocorrem associadas a áreas mais íngremes e em bacias de tamanho médio ou pequeno, sendo que a inclinação do terreno, ao favorecer o escoamento, contribui para intensificar a torrente e causar danos. Por outro lado, as inundações graduais podem ser entendidas como o aumento gradual do nível dos rios além da sua vazão normal, ocorrendo o transbordamento de suas águas sobre as áreas adjacentes (CASTRO, 2003). A Defesa Civil do Brasil, como órgão máximo em previsão e gestão dos riscos derivados de desastres naturais, define inundação gradual como a submersão de áreas fora dos limites normais de um curso de água em zonas que normalmente não se encontram submersas. O transbordamento ocorre de modo gradual, geralmente ocasionado por chuvas prolongadas de intensidade moderada em áreas de planície (DEFESA CIVIL DO BRASIL, 2013). Em 2011, a Secretaria Nacional de Defesa Civil e o Centro Universitário de Estudos e Pesquisas sobre Desastres (CEPED) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), publicaram o Atlas Brasileiro de Desastres Naturais. Nesse volume a definição de inundação gradual não é mais tratada como sinônimo de enchente. Assim, quando as águas extravasam a cota máxima do canal, as enchentes passam a ser chamadas de inundações, que se forem de forma paulatina e gradual poderão ser denominadas também de inundação gradual (CEPED, 2011). As inundações bruscas continuam como sinônimo de enxurrada e com a mesma definição de Castro (2003). O Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) desde 2007 utiliza essa última classificação da Defesa Civil e CEPED, empregando somente três conceitos: enxurrada, enchente/cheia e inundação (Figura 02). As enxurradas se caracterizam pelo escoamento superficial concentrado e com alta energia de transporte, as enchentes ou cheias seriam a elevação temporária do nível d’água em um canal de drenagem devido ao aumento da vazão ou descarga, e, as inundações definiriam o processo de

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extravasamento das águas do canal de drenagem para as áreas marginais de forma lenta (CARVALHO, MACEDO e OGURA, 2007).

Figura 02: Perfil esquemático do processo de enchente e inundação. Fonte: Adaptado de Carvalho, Macedo e Ogura (2007), e, Cunha (1998).

Para Kobiyama et al. (2006) a inundação, popularmente tratada como enchente, é o aumento do nível dos rios além da sua vazão normal, ocorrendo o transbordamento de suas águas sobre as áreas próximas a ele. Quando não ocorre tal extravasamento das águas, apesar do rio ficar praticamente cheio, tem-se uma enchente e não uma inundação. Por esta razão, no meio acadêmico e científico, os termos “inundação” e “enchente” devem ser usados com diferenciação. Um grande colaborador nas discussões sobre inundações no campo da Hidrologia Aplicada é Carlos Eduardo Morelli Tucci. Nas suas publicações (1993, 1997, 2001 e 2003), ele ressalta que as inundações graduais dos leitos maiores dos rios são um processo natural. Quando a população ocupa o leito maior, que são áreas de risco, os impactos ambientais negativos são frequentes. Essas condições ocorrem, em geral, devido às seguintes ações: inexistência no Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano de grande parte dos municípios, de qualquer restrição quanto à ocupação das áreas de risco de inundação e a sequência de anos sem inundações é razão suficiente para que promotores judiciários e imobiliários desmembrem estas áreas para ocupação urbana;

Dinâmicas, conflitos e proposições 162


invasão de áreas ribeirinhas, que pertencem ao poder público, pela população de baixa renda; ocupação de áreas de risco médio, que são atingidas com frequência menor, mas que quando o são, sofrem prejuízos significativos. Neste sentido, a gestão e o gerenciamento das áreas de risco a inundações graduais são estratégias relevantes e convenientes, que podem contribuir de forma eficaz para evitar perdas de vidas humanas e tampouco permitir que o desenvolvimento de um município retroceda quando da ocorrência de catástrofes ou calamidades naturais de grande magnitude. O Perigo, a Vulnerabilidade e o Risco É comum que os termos risco e perigo (do inglês risk e hazard, respectivamente) sejam confundidos na linguagem cotidiana. Ainda que esses conceitos estejam de fato relacionados, eles não devem ser utilizados como sinônimos na terminologia técnica. O perigo refere-se à situação que tem potencial para causar danos e ameaça a existência ou aos interesses de pessoas, propriedades ou meio ambiente (CETESB, 2003). Conforme a conceituação proposta pelo Ministério da Integração Nacional e apresentada no Plano Nacional de Defesa Civil (BRASIL, 2000) o perigo pode ser a estimativa de ocorrência e magnitude de um evento adverso, expresso em termos de probabilidade estatística de concretização do evento e da provável magnitude de sua manifestação. A probabilidade de ocorrência de inundações pode ser associada ao conceito de tempo de recorrência (TR) da chuva que dá origem à inundação. O tempo de recorrência de uma precipitação (medido em anos) designa o intervalo de tempo médio em que este evento é igualado ou superado. É, também, o inverso da frequência anual com que a precipitação é equiparada ou suplantada. Dessa forma, o TR relaciona-se a uma altura máxima de chuva, que, por sua vez, determinará características específicas da inundação, tais como altura, área, velocidade e sua duração. Tobin e Montz (1997) conseguiram determinar o tamanho aproximado de uma inundação de 100 anos de TR e estimar a probabilidade dos eventos que poderão ocorrer em qualquer ano. Embora, esta informação seja útil para avaliar o perigo técnico, não indica o número populacional exposto a um perigo ou as perdas esperadas por um evento específico. Assim, para ter-se uma avaliação correta do risco, os detalhes da vulnerabilidade devem ser incorporados nessa apreciação. Os estudos sobre vulnerabilidade ganharam maior atenção no fim da década de 1980 e na década de 1990. Marandola e Hogan (2005) explicam que as pesquisas deixam de se ocupar apenas com os perigos naturais, passando a enfocar também os perigos sociais e os tecnológicos. Além disso, os “naturais” passam a ser vistos como ambientais, o que implica que a sua compreensão deve levar em conta o contexto natural e as formas que a sociedade tem-se apropriado da natureza (JONES, 1993). Geografia

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Alcântara Ayala (2002) ressalta que a ocorrência de inundações está ligada não somente à suscetibilidade das mesmas às características geoambientais, mas também à vulnerabilidade do sistema da sociedade, isto é, o sistema econômico, social, político e cultural. A vulnerabilidade é essencialmente uma condição humana, uma característica da estrutura social e um produto histórico de processos sociais (LAVELL, 1997). Dando maior ênfase a vulnerabilidade social, Ramalho (1999) insere em sua discussão esse conceito defendendo a argumentação que os mais pobres são os mais vulneráveis aos problemas ambientais, principalmente por ocuparem áreas impróprias com construções inadequadas. A resposta humana ao risco natural varia segundo o nível de organização do território e possibilidades tecnológicas disponíveis em uma sociedade. Para avaliação do risco é necessário conhecer a perigosidade do processo e a vulnerabilidade da população. Isto implica a necessidade de dispor-se de informação e inventários sobre a população humana e instalações expostas ao risco, assim como a sua localização, distribuição espacial, valor das construções, entre outros aspectos. O Ministério das Cidades (BRASIL/IPT, 2004) define área de risco como uma área passível de ser atingida por processos naturais e/ou induzidos que causem efeito adverso. Os indivíduos que habitam essas áreas estão sujeitos a danos à sua integridade física, perdas materiais e patrimoniais. Cristo (2002) propôs uma análise dos principais aspectos físicos e humanos do setor leste da bacia hidrográfica do Rio Itacorubi - SC, verificando a existência de vários fatores condicionantes que demonstram a suscetibilidade da área aos riscos naturais de inundações. Grunthal et al. (2006) apresentou uma metodologia para uma avaliação multi risco para a cidade de Colônia, na Alemanha, considerando entre eles, as inundações. Foram feitas as seguintes análises: avaliação do perigo e da vulnerabilidade, além da estimativa das perdas econômicas diretas das edificações e de seus conteúdos. Concluíram que tais perdas ocorrem com frequência, e são causadas por inundações com períodos de retorno muito baixos (10 anos). Nessa perspectiva, nas áreas de risco a inundações são necessárias ações de resposta direta aos aspectos relacionados ao perigo de inundações e a vulnerabilidade dos bens expostos. A Perigosidade do Processo: Modelagem Hidrológica e Hidráulica Inicialmente as pesquisas de modelos hidrológicos eram focadas nos estudos de componentes do ciclo hidrológico de forma separada (SINGH e FREVERT, 2002). Destacam-se as teorias de infiltração da água no solo de Horton em 1933 e da evaporação de Penman em 1948, os conceitos de hidrograma unitário de Sherman em 1932 ou mesmo as equações de Saint Venant que descrevem o escoamento em rios. A partir da invenção e disseminação de computadores digitais, foi possível integrar Dinâmicas, conflitos e proposições 164


todos os componentes do ciclo hidrológico e simular a bacia hidrográfica como um todo. Além dos avanços de modelos hidrológicos concentrados para modelos distribuídos no espaço, muitos dos novos modelos passaram a substituir as relações empíricas e conceituais por relações físicas para representar matematicamente processos intermediários do ciclo hidrológico entre a precipitação e a vazão no exutório da bacia hidrográfica. Por representarem com maior exatidão teórica os processos intermediários do ciclo hidrológico, esses novos modelos foram denominados de modelos hidrológicos de base física (COLLISCHONN, 2001). A respeito das dificuldades na representação matemática de alguns processos físicos e da necessidade da discretização de processos contínuos, os modelos matemáticos têm a vantagem de permitir a geração de resultados para diferentes situações com alta velocidade de resposta (TUCCI, 1998). Isso tem motivado amplamente o uso de modelos de simulação do escoamento também para sistemas de alerta e previsão de inundações em tempo real (MOORE et al., 2005). O Modelo Hidrológico de Grandes Bacias (MGB-IPH), descrito em Collischonn (2001) ou Collischonn et al. (2007), é um modelo distribuído desenvolvido para aplicações em grandes bacias com limitação de dados (maiores que 10.000 km²). Foi inicialmente baseado nos modelos LARSIM (BREMICKER, 1998) e VIC (LIANG et al., 1994), com algumas modificações nos módulos de evapotranspiração, percolação e propagação de vazões. O MGB-IPH é um modelo baseado em processos e simula o ciclo hidrológico através de relações físicas e conceituais. São simuladas todas as etapas do ciclo hidrológico terrestre, incluindo balanço de água no solo, evapotranspiração, interceptação, escoamento superficial, subsuperficial e subterrâneo e escoamento na rede de drenagem. Os dados referentes à precipitação são fundamentais para alimentar os sistemas de previsão que se baseiam na relação entre a intensidade e duração das chuvas e o seu reflexo na vazão do rio. Além dos dados de chuva, são utilizados dados físicos da bacia (modelo digital de elevação, tipos de solos, uso e ocupação do solo, entre outros) e dados hidrológicos de vazão para a calibração e execução do modelo. Informações mais detalhadas do modelo MGB-IPH podem ser obtidas no trabalho de Collischonn (2001). Esse modelo já foi aplicado a diversas bacias da América do Sul, com resultados bastante satisfatórios (ALLASIA et al., 2006): bacia do rio São Francisco (SILVA et al., 2007; TUCCI et al., 2005); bacia do rio Uruguai (COLLISCHONN et al., 2005; TUCCI et al., 2003); bacia do rio Grande (BRAVO et al., 2009); bacia do rio Tapajós (COLLISCHONN et al., 2008); bacia do rio Madeira (RIBEIRO et al., 2005) e na bacia do Alto Paraguai (TUCCI et al., 2005). Em relação aos modelos hidráulicos, pode-se citar o modelo HEC-HAS, amplamente usado na sociedade acadêmica. Ele é composto por dados geométricos e Geografia

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de escoamento. Os dados geométricos do rio, tais como o leito, as margens, o caminho do fluxo d’água, os coeficientes de rugosidade ou de Manning são definidos inicialmente através do HEC-GeoRAS (conjunto de procedimentos, ferramentas e utilitários para processamento geoespacial) e no software ArcGIS determina-se as curvas de nível ou o modelo numérico do terreno e a cobertura e ocupação do solo (USACE, 2011). Já os dados de entrada de escoamento são fornecidos por um modelo hidrológico. O módulo River Analysis System (RAS) é um software de simulação hidráulica pertencente à plataforma Hydrologic Engineering Center (HEC). Ele possibilita a simulação unidimensional do escoamento em canais abertos, sob o regime permanente e não permanente e também na condição de fundo móvel (transporte de sedimentos), oferece interface gráfica, análises hidráulicas, armazenamento de dados, relatórios e resultados gráficos. Vianna (2000) apresentou um estudo cujo objetivo foi à aplicação de uma metodologia para determinação de áreas sujeitas a inundações pela combinação de modelagens hidrológica e hidráulica e de um sistema de informação geográfica. O estudo, aplicado à cidade de Itajubá- MG, utilizou o modelo HEC-HMS para a simulação hidrológica e o modelo HEC-RAS para propagação da cheia. O modelo reproduziu de forma satisfatória as características dos eventos selecionados apresentando-se como uma poderosa ferramenta em estudos referentes à determinação de planícies de inundação. Lima (2003) desenvolveu uma pesquisa para avaliar os impactos das inundações sobre uma região sinistrada. O mapeamento das áreas inundáveis para os períodos de retorno de 2, 10 e 100 anos foi feito utilizando o programa SIG/IDRISI conjugado com os modelos HEC-HMS e HEC-RAS. A partir desses modelos foram construídos os mapas de inundação para os períodos de retorno com alta precisão. Vulnerabilidade Social, Econômica e Estrutural As inundações geram diversos prejuízos sociais, econômicos e financeiros para toda a população das áreas atingidas, principalmente para os moradores daqueles setores potencialmente inundáveis, geralmente cidadãos de baixa renda. O quadro das inundações pode ser intensificado pela proliferação de aglomerados subnormais, lançamento irregular de resíduos sólidos e construções inadequadas de aterros, pontes e travessias. No campo das atividades rotineiras de uma cidade, a interrupção temporária do tráfego é uma das consequências imediatas das inundações e responsável pelo desencadeamento de uma série de deseconomias relacionadas ao sistema de transportes, aos veículos propriamente ditos e aos motoristas, principalmente quando a inundação ocorre em pontos chave do trânsito das cidades. Os prejuízos públicos diretos ao sistema de transporte rodoviário são aqueles referentes à limpeza das vias, reparação dos pavimentos e semáforos (MILOGRANA CÔRTES, 2009). Dinâmicas, conflitos e proposições 166


Kramer (1998) na análise econômica de projetos de drenagem na cidade de Deadman’s Gully, Austrália, estipulou os custos dos danos a veículos atingidos por águas das inundações. Assim, conforme aumenta o nível da água maior é o dano nos veículos, podendo chegar a perdas totais. Em relação à energia elétrica, não é prática corrente a instalação de subestações de eletricidade nas adjacências dos rios e córregos, em virtude das limitações impostas pela área em relação às características técnicas necessárias à instalação das mesmas. O único dano real representativo deste sistema são os medidores das unidades consumidoras. Algumas partes do sistema de abastecimento de água potável são vulneráveis à inundação, podendo causar interrupção ao abastecimento. As estações de bombeamento são instaladas, necessariamente, nas partes baixas da bacia hidrográfica para facilitar a captação de água de rios, córregos e lagos. Dessa forma, essas instalações tornam-se os pontos de maior fragilidade do sistema. A rede de distribuição (condutos) e os dispositivos de armazenamento de água normalmente não são afetados pela inundação. Se houver ruptura do sistema durante eventos de maior magnitude, é difícil localizar a posição do dano, sendo assim, em caso de necessidade de reparos, o tempo e o custo poderão ser altos, além do risco existente de contaminação da água na rede. Após a inundação de 2000 em Itajubá – MG a população ficou três meses sem poder consumir a água das tubulações, ela só foi liberada para a realização da limpeza das residências e estabelecimentos comerciais. Durante esse período cada consumidor pagou pela média de consumo normal para a companhia. Além disso, o número de manutenções na rede de água duplicou posteriormente a inundação (MILOGRANA CÔRTES, 2009). Righi (2011) analisando o município de São Borja no RS em relação ao risco de inundações graduais, também verificou que esse sistema é impactado quanto mais prolongado for o evento, podendo causar danos irreparáveis. Assim como as estações de bombeamento do sistema de abastecimento de água, as estações de bombeamento de esgoto, também são instaladas nas partes baixas da bacia hidrográfica. Isso faz com que as bombas e demais componentes elétricos do sistema sejam vulneráveis às inundações. A consequência de uma falha nesse sistema corresponde à perda temporária do tratamento, o que vem reduzir o padrão de lançamento dos resíduos nos corpos d’água e consequências adversas ao meio ambiente. Os danos aos componentes das edificações correspondem aos danos à alvenaria (ou outro tipo de material) incluindo elementos de decoração, instalações elétricas, hidráulicas, telefônicas e de gás, portões, cercas e paisagens. Os danos ao conteúdo incluem equipamentos elétricos, eletrônicos e de aquecimento, móveis, roupas, livros e ornamentos.

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Lima (2003) salienta que a quantificação dos danos às propriedades (residenciais, comerciais, industriais e públicas) possui grande importância política e social, devido ao enorme custo da sua reposição ou restauração. Por último, tem-se o impacto mais drástico das inundações, o risco de morte iminente nas fortes chuvas, devido à alta probabilidade de afogamentos, colisões de veículos e choques elétricos. Vulnerabilidade em Relação às Doenças de Veiculação Hídrica As águas pluviais, após escoarem pela bacia hidrográfica se misturam com a poluição difusa nela existente, tanques sépticos, latrinas e redes coletoras de águas residuárias, formando uma mistura perigosa para a saúde da população, deixando-a exposta a inúmeras doenças. São relacionadas a eventos chuvosos intensos as gastroenterites decorrentes da ingestão de bactérias e ovos de helmintos contidos nas águas contaminadas, a infecção por parasitas, as doenças transmitidas por mosquitos e as doenças transmitidas por ratos e caramujos (PARKINSON e MARK, 2005). Uma das principais ocorrências epidemiológicas após as inundações é o aparecimento de surtos de leptospirose, transmitida aos seres humanos pelo contato com água ou lama contaminada pela urina de animais portadores, principalmente roedores domésticos (ratazanas, ratos de telhado e camundongos). Este contato ocorre durante e imediatamente após as inundações, quando as pessoas retornam à suas residências e procedem à limpeza e remoção da lama e outros detritos. Basso e Righi (2015) verificaram a distribuição espacial de casos registrados de duas doenças de veiculação hídrica (leptospirose e hepatite A) entre os anos de 2007 e 2011, no município de Porto Alegre – RS. Foram registrados 437 casos notificados de hepatite A e 233 de leptospirose, concentrados principalmente em oito bairros, a maioria deles bastante populosos e cujos índices socioeconômicos são inferiores se comparados aos de outras áreas do município. As doenças diarreicas agudas têm período de incubação curto, variando de algumas horas a até cinco dias. A Hepatite Viral do tipo A (VHA) é um vírus, transmitido por meio de água ou alimentos contaminados por fezes dos doentes, apresenta período de incubação médio de 30 dias, podendo apresentar-se como consequências mais tardias das inundações (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2005). De acordo com Carneiro (1997) apud Souza (2001) há um aumento variando entre 4% e 14%, no número de casos de hepatite A para inundações de durações de 24 a 48 horas e de 48 a 72 horas, respectivamente. Outra constatação do autor foi o aumento do número de casos da doença com a altura alcançada pela água de inundação. Dentre os resultados foi observado um aumento de 3% dos casos se a água chegar à altura dos joelhos, um aumento de 7% se chegarmos à altura das janelas e mais 6% se a altura da lâmina d’água de inundação estiver acima da altura das janelas.

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Vulnerabilidade em Relação ao Dano Emocional Além dos danos à saúde humana, existem os danos à saúde psicológica da população, devido ao “stress” causado pelas situações enfrentadas nos momentos das inundações. Para Penning-Roswell e Chatterton (1977) podem ser identificados dois tipos de ansiedade: a ansiedade gerada pela possibilidade de uma inundação acontecer (threat anxiety) e a ansiedade durante o evento de inundação (event anxiety). A primeira é recorrente e pode aparecer a qualquer momento em uma situação de risco. Está relacionada à inquietação dos moradores de áreas alagáveis relativa às dúvidas de quando, como e quão intensa será a próxima inundação. Já o segundo tipo de ansiedade é por evento, que pode ser mais intensa que a anterior, mas tem curta duração. Favero e Diesel (2008) ressaltam a importância de se avaliar a exposição a estressores como às inundações, levando em conta tanto o trauma individual baseado em perdas pessoais, quanto à extensão em que uma comunidade foi destruída e afetada. As consequências psicológicas encontram-se relacionadas à percepção dos indivíduos ao evento em si, isto é, para que o processo de estresse se inicie, é necessário ocorrer uma percepção cognitiva de que há uma ameaça, sendo esta suficiente para desencadear uma resposta ao estresse mesmo que o evento físico não aconteça. Neste sentido, um evento ambiental pode ou não ser um estressor em todas as circunstâncias, considerando a percepção e vivência de cada um (FAVERO e DIESEL, 2008). Hansson et al. (1982) constataram que os principais fatores em relação a inundações são a situação econômica e experiência anterior com inundações. Indicadores de estresse foram medidos usando o medo, o desespero, a ação, depressão e índice de saúde da família. Lekuthai e Vongvisessomjai (2001) propuseram uma maneira de calcular os danos em termos monetários, através de um modelo que relaciona a ansiedade, produtividade com o rendimento (salário) denominado Anxiety-Productivity and Income Interrelationship Approach (API), partindo do pressuposto que uma pessoa atingida frequentemente com as cheias tem sua produtividade profissional afetada. Em estudos elaborados em Bangkok, na Tailândia, os custos dos valores intangíveis, calculados pelo modelo API, ficaram em torno de 26% dos valores dos prejuízos tangíveis. Torlai (2010) analisou a vivência do luto de pessoas que passaram por perdas decorrentes de inundações na cidade de Blumenau (SC), em dezembro de 2008. O desastre provocou uma sucessão de perdas, desde as materiais até àquelas relacionadas à perda da identidade psicológica dos indivíduos e da comunidade. Todos os acontecimentos nas vidas humanas provocam mudanças, no entanto aqueles que se caracterizam como inesperados, no caso de uma inundação, podem alterar o comportamento dos indivíduos, minando seus sentimentos de segurança e gerando desconfiança e medo. Geografia

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Gestão e gerenciamento Conforme Nogueira (2002), o gerenciamento de riscos é um dos instrumentos de gestão urbana que ganha destaque neste momento de intenso debate sobre as alternativas para a crise das cidades. Associado com outras políticas públicas para o ambiente urbano, pode ser de grande utilidade para reduzir os níveis atuais de perdas em função de acidentes e de segregação sócio espacial. O autor afirma que o gerenciamento de riscos urbanos requer uma postura transdisciplinar, pois, na atualidade e neste campo específico, nenhum profissional pode restringir-se apenas a sua própria formação acadêmica para desenvolver suas atividades. A gestão dos riscos urbanos, mais abrangente, é parte da gestão do ambiente urbano e compreende, além do gerenciamento de riscos, políticas públicas de habitação e desenvolvimento urbano e de inclusão social e mecanismos de regulação e aplicação dessas políticas (NOGUEIRA, 2002). Dentro da gestão e gerenciamento devem-se priorizar as medidas de correção e/ou prevenção a inundações, visando a minimização de danos. Essas medidas são classificadas de acordo com sua natureza, em medidas estruturais e medidas não estruturais (CANHOLI, 2005). As medidas estruturais correspondem às obras que podem ser implantadas visando a correção e/ou prevenção dos problemas decorrentes das inundações. Canholi (2005) caracteriza essas medidas como intensivas e extensivas. As medidas intensivas, de acordo com seu objetivo, podem ser de quatro tipos: de aceleração do escoamento: canalização e obras correlatas; de retardamento do fluxo: reservatórios (bacias de detenção/retenção), restauração de calhas naturais; de desvio do escoamento: túneis de derivação e canais de desvio; e que englobem a introdução de ações individuais visando tornar as edificações à prova de inundações. Por sua vez, as medidas extensivas correspondem aos pequenos armazenamentos disseminados na bacia, à recomposição da cobertura vegetal e ao controle de erosão do solo, ao longo da bacia de drenagem. As medidas não estruturais mais adotadas podem ser agrupadas em: ações de regulamentação da cobertura e uso do solo; educação ambiental voltada ao controle da poluição difusa, erosão e lixo; seguro-inundação; e sistemas de alerta e previsão de inundações (CANHOLI, 2005). O zoneamento de áreas inundáveis ou regulamentação do uso do solo pode ser feito através de adoção de políticas de desenvolvimento, elaboração e implantação de Plano Diretor Urbano ou Código de Construção. O objetivo é evitar maiores prejuízos à população através do mapeamento de áreas de inundações, associando faixas de uso a diferentes riscos de ocorrência de cheias. Esses mapas, definidos por Tucci (2005) como mapas de planejamento, ilustram áreas atingidas pelas inundações de acordo com o tempo de retorno desejado. A elaboração de manchas para cenários distintos permite associar medidas de combate e Dinâmicas, conflitos e proposições 170


auxilia o tomador de decisão na identificação de ações mais adequadas para mitigar os prejuízos do local em questão. O mapeamento das áreas de inundações é realizado em diversas partes do mundo. Nestes estudos, em virtude da elevada nebulosidade associada aos eventos de precipitação, é comum o uso de imagens de radar para delinear a área inundada. Sippel et al. (1998) delinearam a área inundada da Bacia do Amazonas utilizando dados dos sensores Scanning Multichannel Microwave Radiometer Sensor (SMMS) a bordo do satélite Nimus 7. Observaram que a área inundada nesta região alcança seu máximo durante o período que vai de maio a agosto. Oliveira (2010) gerou modelos para previsão, espacialização e análise das áreas inundáveis da bacia hidrográfica do rio Caí – RS, sugerindo a implantação de um sistema integrado de previsão e alerta de inundações nas cidades de São Sebastião do Caí e Montenegro. O sistema de alerta facilita ações preventivas de retiradas de pessoas e de bens das áreas sujeitas a inundações, bem como a adoção de desvios de tráfego. Dentro de um planejamento consistente das ações de melhoria e controle dos sistemas de drenagem, deve estar prevista uma combinação adequada de recursos humanos e materiais, e um balanceamento harmonioso entre medidas estruturais e não estruturais. Sem dúvida que em certos casos nos quais as soluções estruturais são inviáveis técnicas ou economicamente, ou mesmo intempestivas, as medidas não estruturais, como, por exemplo, os sistemas de alerta, podem reduzir os danos esperados em curto prazo, dispondo-se de investimentos de pequena monta (CANHOLI, 2005). Considerações finais Não existe rio sem ocorrência de inundação, todos têm sua área natural de extravasamento de suas águas e esse processo fluvial não é, necessariamente, sinônimo de catástrofe. A própria sociedade por não conhecer as características do meio que ocupa acaba criando ou intensificando esses eventos, e colocando em risco suas vidas, atividades e equipamentos urbanos causando prejuízos econômicos para os municípios. O conhecimento teórico metodológico sobre as áreas de perigo, vulnerabilidade e risco de inundações graduais é, indiscutivelmente, fundamental para o desenvolvimento de técnicas adequadas para estabelecer planos de proteção civil e implementar sistemas de vigilância dos fenômenos e alerta às populações. Referências ALCÁNTARA AYALA, I. Geomorphology, natural hazard, vulnerability and prevention of natural disasters developing countries. Geomorphology, v. 47, p.107-124, 2002. ALLASIA, D. G.; SILVA, B.; COLLISCHONN, W.; TUCCI, C. E. M. Large basin simulation experience in South America. IAHS Publication 303, 360-370. 2006. Geografia

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Capítulo 4 A composição e a representatividade dos diferentes segmentos sociais no comitê de bacia hidrográfica do rio Taquari - Antas/ Rio Grande do Sul Mara Alini Meier Luís Alberto Basso Introdução O desenvolvimento tecnológico que coopera para o desenvolvimento industrial e agropecuário, o crescente processo de urbanização e o aumento da população mundial, são alguns dos aspectos que exercem pressões cada vez maiores sobre os recursos hídricos (BRUSCHI JR. et al, 1998). Dessa maneira, a qualidade e quantidade disponível de água no ambiente vêm diminuindo rapidamente prejudicando ecossistemas, o abastecimento humano e os seus demais usos (TUNDISI, 2005). Por isso, é importante desenvolver uma gestão capaz de garantir a qualiquantidade das águas e sua distribuição entre os diversos usos de forma equânime (RIBEIRO, 2009). Nesse contexto, há diversas legislações, fóruns e discussões sobre os recursos hídricos, tanto em nível internacional (RIBEIRO, 2008) quanto nacional (PAGNOCCHESCHI, 2003), que propõem uma gestão baseada em práticas sustentáveis. A legislação de recursos hídricos no Brasil, Lei nº. 9.433/97, institui a Política e o Sistema Nacional de Recursos Hídricos que surgiram para diminuir os problemas de qualidade e quantidade das águas, decorrente do mau uso desse recurso (MACHADO, 2003). Essa norma legal encontra-se centrada em um modelo de gestão e gerenciamento integrado, descentralizado e, principalmente, participativo (HAASE; GUTIÉRREZ, 2008). Os espaços participativos instituídos pela lei de recursos hídricos são os Comitês de Bacia Hidrográfica (CBHs), locais que estimulam a participação da sociedade na negociação e tomadas de decisões referentes aos recursos hídricos da respectiva bacia hidrográfica (BH) (MACHADO, 2003). Conforme Santos e Saito (2006), somente a garantia legal dos CBHs não assegura que eles estejam atingindo seus objetivos. Não se pode perder de vista que a participação é, em si, um "conceito e uma prática em disputa" (SANTOS; SAITO, 2006, p.9). Diante disso, dependendo de

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como a participação social é conduzida e se efetiva pode levar à sua "mitificação" (idem). A participação social desenvolvida nos CBHs deve garantir que os anseios da sociedade sejam levados em conta no processo de decisão. Nesses espaços, são os representantes de determinadas categorias os responsáveis por trazer os interesses das suas bases para o processo decisório (BRASIL, 1997). Por isso a representação e a representatividade dos representantes que compõem os CBHs merecem atenção especial. Dessa forma, questiona-se: "os CBHs representam efetivamente a sociedade da BH?". A partir disto, pretende-se analisar a representação e a representatividade dos representantes do CBH do rio Taquari-Antas (CBH T-A) a fim de verificar se a representação dos segmentos envolvidos com os recursos hídricos é equitativa e se os representantes garantem os interesses das suas bases. Isso se torna relevante, pois permite compreender como esses aspectos interferem nas decisões e ações desses ambientes e, por sua vez, como atuam sobre o espaço geográfico. A governança e o processo participativo dos recursos hídricos Granja (2008) destaca que a discussão sobre a governança teve seu início nos anos 1990 relacionado à "gestão pública", referindo-se "ao desempenho governamental e à relação do Estado com os cidadãos e suas reivindicações" (GRANJA, 2008, p.2). Reportava-se, ainda, à "atuação da sociedade civil, entendendo-a como capaz de refazer seu modo de interação com o Estado e o mercado nos processos decisórios, os quais, por sua vez, aceitaram-no, convertendo relações hierárquicas em participativas" (GUIMARÃES, 2007 apud VALÊNCIO, 2009, p.66). Conforme Moreira et al (2003, p.3) a governança está relacionada a um "governo democrático" que prevê a distribuição de responsabilidades entre o Estado e a sociedade, fundamentado em um "modelo representativo". Nesse contexto, "as políticas são construídas coletivamente e sem imposição; os resultados surgem a partir da negociação e do consenso, onde cada ator tem direito à palavra, num processo de interdependência coletiva" (MOREIRA et al, 2013, p.3). Os autores ainda destacam que esse é "um processo complexo baseado na participação multi-setorial de agentes públicos e privados, usuários e sociedade" (idem). Diante disso, o sucesso da governança necessita do processo participativo (MOREIRA et al, 2013). Valêncio (2009) ressalta que a governança na gestão das águas aparece a partir da lei federal nº. 9.433/97, "como um constructo representacional de grande e crescente aceitação por evocar uma nova estrutura de poder, imbuída de novos sujeitos e práticas, configurando-se num processo político renovador" (VALÊNCIO, 2009, p.61). A autora assevera que na governança das águas a "negociação, a comunicação e a confiança seriam imprescindíveis, e atores públicos, comunitários e privados cooperariam para o bem da coletividade" (VALÊNCIO, 2009, p. 66).

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Jacobi (2009) ressalta que: (...) na gestão hídrica, enquanto arcabouço conceitual, o termo governança representa um enfoque conceitual que propõe caminhos teóricos e práticos alternativos que façam uma real ligação entre as demandas sociais e sua interlocução em nível governamental. Geralmente, a utilização do conceito inclui leis, regulação e instituições, mas também se refere a políticas e ações de governo, a iniciativas locais, e a redes de influência (...) (JACOBI, 2009, p. 43). Jacobi (2009) ainda apresenta como desafios a consolidação da governança das águas, as desigualdades de poder e informação no processo de interação entre os atores.

Diante do que foi exposto, a governança das águas abrange aspectos como: uma relação diferenciada entre Estado e sociedade; participação de diversos atores sociais; negociação dos conflitos para alcançar consensos; compartilhamento de poder decisório em condições igualitárias; cooperação para o bem coletivo, entre outros. Conforme os autores citados para que a governança das águas se efetive, é necessário que se consolide a participação da sociedade nas questões que envolvem os recursos hídricos. Assim, o processo participativo tem como finalidade democratizar a gestão das águas incluindo os segmentos envolvidos. De acordo com a legislação de recursos hídricos, deve haver o envolvimento da sociedade, do Estado e dos usuários da água na tomada de decisões sobre esse recurso, integrando esses atores em espaços participativos como os Conselhos de Recursos Hídricos e os CBHs (BRASIL, 1997). Os CBHs são considerados parlamentos das águas, nos quais deve ocorrer um processo decisório com participação dos diferentes atores envolvidos com os recursos hídricos da BH (ANA, 2011a). Neles desenvolve-se um processo de tomada de decisões sobre um bem público: os recursos hídricos. Por isso, essas instâncias requerem uma representação democrática, com ampla participação dos diferentes atores sociais e acrescido o compartilhamento da decisão e da gestão do recurso água, voltada ao seu uso coletivo (JACOBI, 2009). Dentro de um contexto abrangente, a participação é compreendida por Teixeira (1997, p.187) como "fazer parte, tomar parte, ser parte de um ato ou processo, de uma atividade pública, de ações coletivas". Acrescenta-se ainda, que a participação "significa intervir num processo decisório qualquer" (MORÓN, 1980, DUARTE, 1996 apud MODESTO, 1999). Santos e Saito (2006) e Arnstein (1969) remetem a participação não a algo estático, mas a um movimento onde se destacam os embates pelo poder e sua distribuição entre os atores envolvidos. Os autores destacam que a efetiva participação necessita de uma verdadeira distribuição de poder entre os atores sociais. Teixeira (1996) frisa que a participação deve proporcionar um poder compartilhado, com divisão de responsabilidades e respeito à autonomia da organização dos membros e/ou grupos envolvidos. Font et al. (2000) argumentam que Dinâmicas, conflitos e proposições 178


a participação dos cidadãos em diferentes instâncias participativas deve manter e ampliar a representação dos interesses dos distintos cidadãos e grupos sociais. Demo (2001, p. 18) define que "participação é conquista", pois seu desenrolar seria "infindável, em constante vir a ser, sempre se fazendo" (idem). Para tanto, ela "não pode ser compreendida como dádiva, como concessão, como algo já preexistente" (idem), mas como um processo que precisa ser construído. Diante disso, a participação não pode ser considerada uma finalidade, mas ela deve ser percebida como um processo que implica em uma relação de poder entre os atores envolvidos (DEMO, 2001). Santos e Saito (2006, p. 9) afirmam que "a participação é, em si, um conceito e uma prática em disputa". Assim, dependendo de como a participação social é conduzida e se efetiva pode levar-se à sua "mitificação" (idem). De acordo com Garjulli (2003), a participação social na gestão hídrica deve levar a uma mudança de paradigma, a um novo olhar sobre o setor hídrico, passando de uma gestão centralizada, fragmentada e pontual para um modelo descentralizado, integrado e participativo. Além disso, como principal desafio para a participação estão as "práticas historicamente estabelecidas" (GARJULLI, 2003, p.38) em uma sociedade com "forte herança cultural e política de práticas clientelistas e conservadoras consolidadas na relação entre o Estado e a sociedade" (ibidem, p.39). Em espaços participativos o processo de tomada de decisão envolve dois aspectos: o sujeito (atores) e o 'processo decisório' (como isso acontece) (TEIXEIRA, 1997). No tocante aos sujeitos envolvidos, quando se trata da gestão participativa das águas, destaca-se a importância da participação da sociedade na definição da gestão desse recurso. Leal (2003) destaca que a participação social em instâncias participativas contribui para a democratização desse processo, além de permitir que a sociedade faça parte e reivindique o cumprimento dos planejamentos pelas instâncias competentes. A autora ainda enfatiza que, nesse contexto, prevalecerão os interesses da coletividade ao invés dos particulares de setores econômicos ou governamentais. Além disso, a participação da sociedade faz-se necessária porque é ela quem sofre, direta ou indiretamente, com a degradação ambiental e suas consequências (ANA, 2011a). O processo participativo de gestão das águas não depende apenas da participação da sociedade, mas da atuação dos demais "stakeholders" (partes interessadas) 5 nesse processo, sendo esta a maneira mais adequada para que um CBH atinja seus objetivos (FRANK, 2010). É necessário que cada sujeito envolvido no processo participativo entenda seu papel, suas responsabilidades e atribuições, bem como estabeleça um vínculo com suas bases e com os demais sujeitos do processo para que sua participação seja legítima (LEAL, 2003). Nesse contexto, o representante "deve estar preparado para defender os interesses do segmento que representa" (ANA, 2011b, p. 24).

Para Bryson (2004) o termo stakeholders faz referência aos indivíduos, grupos ou organizações interessados e afetados pelas decisões, e que devem ser considerados pelos gestores. 5

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A representação e a representatividade dos representantes dos CBHS A legislação de recursos hídricos no Brasil estabelece os CBHs como espaços para o desenvolvimento da governança e do processo participativo na gestão desse recurso. Porém, falta "saber o quanto da participação social, em especial nos comitês de bacia, é um jogo de cena para criar a ilusão do compartilhamento de decisões ou representa de fato a incorporação da população na gestão dos recursos hídricos" (RIBEIRO, 2009, p. 119). Diversos podem ser os caminhos a serem criados para esse entendimento. Conforme alguns autores (vistos na sequência), pode-se partir do entendimento: de quem faz parte dos CBHs; como eles se articulam com suas bases e com os demais sujeitos que fazem parte do processo participativo; e quais os recursos disponíveis para a qualificação dessa representação. Dessa forma, deve-se voltar à compreensão da questão da representação e da representatividade dos atores sociais presentes nos CBHs. A representação nos CBHs existe quando alguém dá poder a outra pessoa para representá-la, pois a representação é o "ato pelo qual alguém é legalmente autorizado a agir em nome de outrem" (MELHORAMENTOS, 2012, s/p.). Nesse sentido, Pitkin (1967) definiu representação política como a relação dos representantes com seus representados. Conforme a autora, o representante possui legitimidade porque possui a autorização, além da responsabilidade de prestar contas de sua atuação aos representados. Leal (2003) adverte que essa relação, para ser democrática, deverá ser desenvolvida de maneira "visível e transparente", garantindo a legitimidade da representação. Como já destacado, a representação dos espaços participativos deve garantir que todos os interesses e visões dos atores sociais estejam representados de forma equilibrada no processo de tomada de decisões, democratizando o processo. Para que isso ocorra, diversos autores destacam que a representação deve ser: heterogênea, com o intuito de assegurar que os diferentes atores se envolvem com a questão em debate; significativa para a base representada; equânime, em que os diversos atores tenham a possibilidade de participar de forma igualitária (quantitativamente e qualitativamente); distribuída espacialmente, sem a estruturação de núcleos de maior representação (AVRITZER, 2002; TATAGIBA, 2002; LEAL, 2003; MIRANDA, 2004; ABERS et al., 2010; ANA, 2011a; PEREIRA, SAITO, 2010). A participação ativa significa o representante intervir nas negociações, discussões e decisões mediante a sua manifestação e a apresentação de propostas nas reuniões plenárias (FRANK, 2008). Diante disso, existe uma gama de fatores intervenientes para que isso aconteça, especialmente os que definem a representatividade desses representantes. Compreende-se a representatividade como a "qualidade da representação entre o representante e o segmento social para quem está dirigida a representação" (NEDER, Dinâmicas, conflitos e proposições 180


2002, p. 201), acrescenta-se a "qualidade de alguém (representante) expressar os interesses de um grupo, o qual ele represente e que possa exprimir não somente a sua opinião individual, mas a do conjunto de pessoas" (ANA, 2011a, p.35). Nesse sentido, o representante, para que seja representativo, deve conhecer, defender e encaminhar para a discussão, nos espaços participativos, os interesses e necessidades da base que representa, isto é, os interesses coletivos (LEAL, 2003). Para que isso ocorra, diversos autores apontam que, os representantes devem apresentar uma interação significativa com a base, possuir engajamento no processo participativo e dispor de características que os capacitem a defender os interesses e as opiniões da base, proporcionando uma partilha de poder. Dessa maneira, para garantir a representatividade dos representantes existem vários fatores que intervém nesse processo, como: a) A capacidade que o representante tem de articular-se com a sua base, possuindo as seguintes finalidades: colher opiniões, sugestões e posicionamentos para serem levados às reuniões em instâncias participativas, garantindo os interesses dessa base no processo de tomada de decisões; e divulgar às suas bases as informações e decisões emanadas do espaço participativo (LEAL, 2003). A interação dos representantes com suas instituições de origem é necessária porque os espaços participativos são em essência a "participação das bases" (DEMO, 2001, p. 120). Para que a interação se efetive é necessário que sejam formados espaços, "canais de informação e de diálogo permanente dos representantes com os segmentos representados" (LEAL, 2003, p.1). Frank (2008) frisa que essa interação permite aos representantes colherem opiniões e construírem posicionamentos junto aos segmentos representados para que sejam utilizados nas discussões dos espaços participativos. A autora acrescenta que a interação contribui para que os representantes prestem contas de sua atuação, dando às bases a possibilidade de controle do processo decisório. Dessa forma, Tatagiba (2002, p. 63) aponta que quanto mais estreita a relação representante/base "maior a possibilidade de que diferentes interesses possam de fato se fazer representar" nos espaços participativos. b) Qualidades individuais dos representantes e os recursos disponíveis para participar, como: a "qualificação técnica e política" dos representantes (DAGNINO, 2002; TATAGIBA, 2002; FRANK, 2008), a experiência que possui sobre a gestão dos recursos hídricos, conhecimento sobre a BH, conhecimento sobre o funcionamento do CBH, engajamento dos representantes na participação, entre outros (FRANK, 2008). Esses atributos permitem aos representantes defenderem com qualidade os interesses de suas bases, contribuindo para um melhor desempenho de suas funções de delegados (idem). A "qualificação política" dos representantes compreende o "reconhecimento da pluralidade, da legitimidade dos interlocutores e o respeito à diferença" (DAGNINO, 2002, p. 285). Esses princípios são necessários à negociação e à construção de acordos entre os diversos atores nesses espaços, possibilitando equilíbrio e uma efetiva partilha Geografia

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de poder entre os envolvidos no processo participativo (DAGNINO, 2002; TATAGIBA, 2002). A "qualificação técnica" trata do conhecimento sobre os processos que envolvem os espaços participativos, do papel dos representantes nesses espaços e do "saber técnico especializado" (DAGNINO, 2002; TATAGIBA, 2002; FRANK, 2008). Essa qualificação subsidia os membros com conhecimentos que contribuem para a sua atuação no processo participativo, o que melhora a sua capacidade de argumentação, de diálogo e de negociação (FRANK, 2008). Assim, as desigualdades entre os representantes diminuem, colocando-os em condições semelhantes de atuação, o que contribui para a democratização da tomada de decisão, pois permite que eles influenciem as decisões e as ações da mesma forma (DAGNINO, 2002; TATAGIBA, 2002; FRANK, 2008). c) A capacidade de articulação do representante com os demais representantes nas instâncias participativas e com outras instituições participativas. Por meio dessa articulação, os representantes conseguem defender os interesses dos seus segmentos representados nas discussões, pois permite a "formação prévia de alianças, discussão de possibilidades de ação e definição de estratégias combinadas" (TADDEI; GAMBOGGI, 2011, p.18). No caso dos recursos hídricos, a Legislação Federal de Recursos Hídricos, assim como, a Legislação Estadual de Recursos Hídricos do Rio Grande do Sul, preveem a necessidade de planejamento integrado desses recursos com outras áreas, como a gestão ambiental, uso do solo, entre outros. O CBH deve possibilitar essa integração, que pode acontecer pela atuação de seus representantes não somente no CBH, mas em outras instâncias e espaços de planejamento e tomada de decisões. Com a efetivação dessa integração é possível tomar decisões e desenvolver ações conjuntas visando a objetivos comuns. Dessa forma, a representação e a representatividade dos representantes do CBH devem possibilitar que todos os segmentos da sociedade estejam presentes e tenham as mesmas condições de intervir no processo decisório. Porém, se a representação e representatividade privilegiam algum setor, este, por sua vez, tem seus interesses garantidos, enquanto os demais são negligenciados. Essas ações e decisões irão favorecer parte dos interesses envolvidos com os recursos hídricos, tornando-se pouco democráticas. Também, essas decisões e ações irão afetar o modo de utilização dos recursos hídricos e a (re)organização do espaço geográfico. Metodologia Uma das possibilidades de abordagem metodológica para pesquisar a temática em questão é a qualitativa. Ela tem como finalidade "descrever e decodificar os componentes de um sistema complexo de significados" mediante diferentes técnicas (NEVES, 1996, p.1). Essa abordagem possibilita identificar e explorar os significados e as interações que estabelecem os fenômenos a serem estudados (idem). O tipo de pesquisa a ser empregado será o estudo de caso, o seu objeto de estudo é "uma unidade Dinâmicas, conflitos e proposições 182


que se analisa profundamente. Visa ao exame detalhado de um ambiente, de um simples sujeito ou de uma situação em particular" (GODOY, 1995, p.25). A metodologia foi aplicada e testada com o CBH T-A e embasou-se na análise de documentos do CBH, como a listagem de seus membros e representantes, a aplicação de um questionário estruturado com os representantes titulares e suplentes do CBH e observações das reuniões do CBH. A Figura 1 apresenta os indicadores utilizados para a análise da representação e da representatividade dos representantes do CBH T-A. Figura 1. Indicadores para a análise da representação e representatividade dos representantes do CBH.

Fonte: Meier e Basso (2014)

Resultados e discussão Representação do CBH do rio Taquari-Antas A representação do CBH T-A é composta por 50 vagas para membros titulares, sendo 20 vagas (40%) para os usuários da água, 20 vagas (40%) para a população da BH e dez vagas (20%) para o poder público. Para cada vaga de titular há uma vaga de suplente. Em termos teóricos, a composição do CBH cumpre com o disposto pela legislação estadual de recursos hídricos, Lei nº 10.350 de 1994. Diante disso, está garantida uma presença equilibrada dos diferentes atores sociais envolvidos com a questão das águas na BH e assegurados os diversos interesses sobre esse recurso no processo de negociação do CBH. O CBH T-A possui as condições para o desenvolvimento da governança das águas. Conforme Moreira et al (2013, p.3), a governança está "baseada na participação multisetorial de agentes públicos e privados, usuários e sociedade", segmentos esses presentes no referido Comitê. Ribeiro (2009, p. 113) destaca ainda que a governança trata de "reunir pessoas para discutir um tema complexo", nesse caso os recursos hídricos. Isso porque a discussão dos recursos hídricos envolve aspectos sociais, econômicos, políticos e ambientais no debate sobre os conflitos em torno desse recurso na BH (FRACALANZA, 2009). Geografia

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Entretanto, 98% das vagas titulares encontram-se realmente ocupadas pelos membros do CBH T-A (até o final da gestão 2012-2015). Dessas vagas, 43% são ocupadas pelos usuários da água, 40% pela população da BH e 17% pelo poder público. A partir do preenchimento das vagas, percebe-se que o setor da população da BH possui um percentual de representação igual, o setor dos usuários dispõe de maior percentual e o setor do poder público de menor percentual de representação em relação ao estipulado pela legislação estadual. Os dados demonstram que o setor dos usuários possui privilégios dentro do CBH, pois sua representação é a maior. Enquanto isso, o setor da população da BH permanece em desvantagem no processo de negociação, pois tem uma representação inferior a dos usuários. Com isso, concorda-se com Garjulli (2003, p.38) quando afirma que a composição do CBH reflete "práticas historicamente estabelecidas na gestão das águas", onde os usuários ainda ocupam um espaço privilegiado nesse processo, assim não atingindo uma nova postura sobre o setor hídrico. Pode-se considerar que a representação não é equitativa entre os diversos atores sociais dentro do CBH, devido ao desequilíbrio quantitativo entre eles, o que dificulta a governança das águas e a participação social nesse espaço. Como consequência desse aspecto, alguns grupos são privilegiados dentro do CBH porque possuem maior representação. Isso não contribui para a defesa dos interesses coletivos, mas sim dos interesses particulares sobre as águas, que no caso do CBH T-A são os interesses econômicos dos usuários da água, assim não atingindo o previsto por Leal (2003) que enfatiza que os interesses coletivos devem se sobrepor aos interesses econômicos ou governamentais. Nesse contexto, observa-se certa dificuldade em compartilhar o poder no processo de negociação sobre as águas entre os três segmentos que compõem o CBH, pois no momento de uma votação o setor dos usuários tem maior número de votos, o que acaba definindo a decisão. O perfil dos representantes foi caracterizado mediante análise de gênero, idade, renda mensal e nível de instrução. Entre os representantes do CBH T-A 74% são homens, 55% possuem idade acima dos 50 anos, 80% possuem renda mensal superior a cinco salários mínimos e 74% têm nível de formação superior e 55% destes possuem pós-graduação. Constata-se que existe uma concentração de membros em um determinado perfil, o que demonstra não abranger a sociedade de uma forma equilibrada. No entanto, observa-se que esse espaço agrega uma ampla diversidade de representantes, tendo mandatários tanto homens quanto mulheres, idades entre 20 e mais de 60 anos, renda de 1 a mais de 20 salários mínimos e nível de instrução que varia do ensino médio incompleto até a pós-graduação completa. A análise do perfil dos representantes demonstrou que a representação do CBH possui heterogeneidade significativa, isto é, plural, o que assegura a participação de diversos atores envolvidos com os recursos hídricos na BH. Porém, não inclui de forma igualitária os diversos grupos sociais em sua composição. Consequentemente, o

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primeiro aspecto contribui, mas este último prejudica e não permite uma distribuição equitativa do poder de decisão entre os representantes do CBH. Quanto à participação dos representantes no CBH, ela pode ocorrer de duas formas: nas instâncias que formam o CBH, que são as câmaras técnicas (CTs) e os grupos de trabalho (GTs); e na plenária do CBH. Os representantes participam pouco das CTs e GTs. Conforme a ANA (2011b) e o regimento interno do CBH T-A, essas instâncias são espaços importantes de apoio às decisões das plenárias do CBH, pois contribuem com a ampliação da discussão de questões que estão sendo tratadas nas mesmas. Entre os representantes, 20% disseram participar das CTs e 50% dos GTs. Os representantes do setor da população da BH são os que mais participam de CTs (73%) e dos GTs (70%). Já os representantes do setor do poder público são os que menos se envolvem, pois nenhum representante faz parte das CTs e apenas 33% integram os GTs. Pode-se inferir que essas instâncias estratégicas do CBH estão pouco fortalecidas, já que é pequeno o número de representantes que participam delas. No entanto, os representantes da população da BH possuem papel relevante nesses espaços, o que propicia uma atuação estratégica desse segmento na tomada de decisões dentro do CBH. Eles intervêm significativamente no processo de negociação, através da sua atividade nas CTs e GTs, e adquirem maior poder sobre os rumos e as decisões tomadas sobre os recursos hídricos. Quanto à participação dos representantes nas plenárias do CBH, 55% afirmaram não estar presentes em todas as reuniões. Os representantes que menos faltam às reuniões são os do setor público: 67% afirmaram participar de todas as reuniões. Os representantes menos assíduos são os do setor da população da BH e dos usuários da água: respectivamente 64% e 54% dos representantes não participaram de todos os encontros. Nota-se que os representantes do setor do poder público defendem seus interesses de forma mais eficiente do que os demais, pois ao estarem mais presentes nas plenárias conseguem acompanhar todo o processo de negociação e intervir em maior número de decisões, assim possuem uma representação mais significativa. Enquanto isso, os representantes dos demais setores ficam em desvantagem, pois como são menos assíduos às reuniões, sua participação é descontínua, portanto menos expressiva, o que enfraquece o processo de negociação e decisão do CBH. Entre os principais motivos que levam os representantes a faltarem às reuniões do CBH estão: compromissos de trabalho (28%), compromissos diversos (24%) e a distância até o local das reuniões (18%). Os fatores que menos influem são: a ausência de subsídios (diárias) (9%), tempo insuficiente (9%), pauta com assuntos pouco interessantes (4%), falta de condições financeiras para se deslocar (4%) e falta de autorização para sair do trabalho para ir às reuniões (4%). Os representantes do setor dos usuários elencaram como principais motivos os compromissos de trabalho (25%) e a distância até o local da reunião (25%); os representantes do setor da população da BH destacaram os compromissos de trabalho (25%) e outros compromissos (37%), e os Geografia

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representantes do setor do poder público assinalaram os compromissos de trabalho (50%) e a falta de subsídios (50%). Dessa forma, observa-se que o principal empecilho para que os representantes estejam presentes nas reuniões é a falta de compatibilidade entre a sua atividade profissional e sua atuação voluntária no CBH, principalmente porque os encontros ocorrem em horário comercial. Em relação ao local de moradia, observa-se que nem todos os representantes moram na área da BH do T-A: 81% residem em localidades inseridas dentro da BH e 19% têm domicílio em locais externos à BH. Somente o setor da população possui todos os seus representantes habitando na BH. O setor dos usuários da água tem 70% e o setor do poder público possui 67% dos seus representantes residindo na BH. Dos representantes que moram na BH, 52% pertencem à porção média e 48% à porção baixa da BH. Apenas 10% dos municípios da BH possuem representação no CBH, localizando-se, em sua maioria, próximo ao rio principal, ou seja, o TaquariAntas. Assim, percebe-se que os representantes do CBH não representam toda a BH, pois são poucos os municípios representados. O setor superior da BH e os municípios afastados do rio TA praticamente não possuem representação. A Figura 2 apresenta a localização dos municípios que possuem representantes no CBH. A análise do mapa permite constatar uma concentração de representantes em uma porção da BH, sendo que essa parcela possui maiores chances de expor e discutir os seus problemas no CBH. Assim, fica difícil garantir os seus interesses em detrimento dos interesses dos demais espaços da BH no processo de negociação. Esse aspecto dificulta a democratização na tomada de decisões nessa instância. Figura 2. Representantes do CBH T-A por município de residência e setores do CBH.

Org.: MEIER, M. A.; BASSO, L. A.

Em suma, a representação do CBH possui vários problemas, entre eles podemse elencar como principais: (a) a representação não é equânime, pois não há o cumprimento prático das prerrogativas da legislação estadual de recursos hídricos, Dinâmicas, conflitos e proposições 186


relativas à composição do CBH e a representação é desigual entre os setores nas plenárias; (b) baixa presença e participação dos representantes nas plenárias, GTs e CTs; (c) concentração do perfil dos representantes em alguns grupos sociais, assim não inclui de forma igualitária os diversos grupos sociais na composição do CBH; (d) a BH não se encontra totalmente representada no CBH, visto que os representantes se restringem a um determinado espaço da BH. Além disso, os setores da população e dos usuários encontram-se melhor representados no CBH, pois seus representantes destacaram-se positivamente na maioria dos indicadores analisados, enquanto o setor do poder público possui representação deficiente. Diante do que foi apresentado, pode-se inferir que a representação do CBH não inclui todos os atores sociais de forma equilibrada no processo de negociação e tomada de decisões sobre as águas no CBH. Dessa forma, essa instância não pode ser considerada um espaço verdadeiramente democrático. Representatividade dos representantes do CBH do rio Taquari-Antas De acordo com Leal (2003), para que o representante seja representativo da sua base ele deve conhecer os interesses e as demandas dessa base para que possa defendêla nas instâncias participativas. Conforme a autora, isso só é possível se o representante interagir com seus representados, mediante o diálogo. Frank (2008) salienta que a partir dessa interação a base fica sabendo o que acontece na instância participativa e, assim, pode expressar a sua opinião a respeito das discussões estabelecidas e controlar a ação de seu representante. Permite ainda aos representantes colherem opiniões e construírem posições junto à base sobre assuntos tratados e prestar contas da sua ação dentro dessa instância. Nesse contexto, a representatividade ocorre em dois momentos: do representante em nome da sua entidade de origem; e a entidade de origem em nome da sua base mais ampla. No CBH T-A a articulação entre representantes e a sua entidade de origem ocorre de maneira consistente, porém os representantes e as entidades de origem não se articulam com a sua base, isto é, as demais entidades do mesmo segmento na BH que não estão presentes no CBH e que deveriam estar representadas pelos membros nessa instância. Todos os representantes possuem articulação com sua instituição de origem para tratar de assuntos vinculados ao CBH. Os principais motivos que estabelecem essa relação são: a divulgação de informações do comitê para a entidade de origem (40%) e a construção de uma posição junto à entidade para ser utilizada nas discussões do comitê (29%). Os canais de comunicação mais utilizados pelos representantes para entrar em contato com sua entidade de origem e, assim, tratar de assuntos do comitê são: as reuniões com a finalidade de discutir a ação do comitê (22%), reuniões da entidade com inclusão de assuntos do comitê (22%). Percebe-se que esses canais referem-se a reuniões desenvolvidas no interior das entidades de origem, compondo espaços formais de diálogo. Com as reuniões é possível crer que um maior número de Geografia

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pessoas esteja participando das discussões que envolvem o CBH, além de permitir que os representantes estejam em contato e saibam da posição e interesses da sua entidade. A coleta de assuntos e opiniões nas entidades de origem é realizada por 81% dos representantes. Ela foi realizada por 77% dos representantes no setor dos usuários da água, por 80% no setor da população da BH e por 100% no setor do poder público. A principal via de comunicação utilizada para essa finalidade é a reunião formal na entidade de origem com 44% dos representantes afirmando essa resposta. Quando se observam as respostas dos representantes separados por setor tem-se que 53% no setor dos usuários da água e 43% no setor da população da BH utilizam a reunião formal. Já a totalidade dos representantes do setor do poder público afirma que utiliza a conversa informal com pessoas pertencentes à sua entidade. A coleta de assuntos e opiniões junto à entidade de origem é relevante para que o representante saiba qual a posição da mesma sobre os assuntos a serem tratados pelo CBH, pois eles não podem perder de vista que são representantes e devem defender os interesses coletivos e não os seus próprios, como frisam Leal (2003) e Frank (2008). Dos três setores depreende-se que os representantes dos usuários da água e da população da BH são os mais representativos de sua entidade de origem, pois realizam reuniões para a coleta de opiniões, englobando nessa atividade o maior número de pessoas. Enquanto isso, os representantes do setor do poder público apenas utilizam as opiniões de alguns indivíduos com os quais conversam sobre os assuntos do CBH, sem a estruturação de um processo mais amplo e profundo. A postura dos representantes nas discussões dentro do comitê é definida mediante opinião coletada e debatida na entidade de origem (52%), sendo mais expressiva no setor dos usuários da água (71%). Os representantes do setor da população da BH afirmaram, em 58%, que a entidade de origem concedeu-lhes total liberdade para decidir sozinhos sobre qual posição ou conduta a ser adotada no CBH. Todos os representantes do setor do poder público afirmam possuir outros tipos de postura nas discussões dentro do comitê, que, no entanto, não foram especificadas. Para que um representante tenha plena representatividade de sua entidade, almeja-se que ele defenda os interesses dela, por isso é necessário que eles construam junto à entidade uma posição e uma postura a ser sustentada nas discussões e tomada de decisões no CBH, como sublinhado por Leal (2003) e Frank (2008). Conclui-se que os mais representativos da entidade de origem são os mandatários do setor dos usuários da água. Dos representantes, 77% afirmaram, sempre ou às vezes, discutir a pauta com a sua instituição de origem antes da reunião do CBH. Nos setores da população da BH e dos usuários da água, os representantes também destacaram a existência dessa discussão, sempre ou às vezes, respectivamente 80% e 77%. Já os representantes do poder público afirmam, em 67%, somente às vezes realizar essa discussão e 33% não realizam debates nem a troca de ideias. A discussão da pauta é fundamental, pois permite ao representante conhecer a opinião da sua base sobre os assuntos a serem Dinâmicas, conflitos e proposições 188


tratados no CBH, podendo posicionar-se de maneira compatível aos interesses da mesma, como descrito por Leal (2003) e Frank (2008). Observa-se que parcela importante dos representantes debate junto às suas entidades, sendo os setores dos usuários e da população da BH os mais representativos no CBH. Dos representantes entrevistados, 52% afirmaram que não possuem regras para atuar no comitê em nome de sua entidade de origem. Os representantes do setor do poder público são os que menos possuem normas, totalizando 67%. Entre os representantes do setor da população da BH, 55% afirmaram não ter regulamentação. Já os usuários da água são os que mais possuem regras, 54% dos representantes as possuem. Dos representantes que possuem normas, 54% disseram que elas são formais. Todos os representantes do setor do poder público e 71% no setor dos usuários da água possuem normas formais. No setor da população da BH, 80% dos representantes afirmaram possuir normas informais. A existência de regulamentação pode ser um indicativo de maior controle das instituições de origem sobre seus representantes, garantindo que eles defendam os interesses da base, aspecto importante como apontado por Leal (2003). No entanto, no CBH T-A observa-se pouco controle desses representantes pelas entidades de origem. Os representantes quando indagados se há articulação/contato com outras entidades do mesmo segmento na BH, 90% afirmaram não estruturar esse vínculo. Apenas o segmento dos usuários (30%) possui conexão com as suas bases, e os segmentos da população da BH e poder público não a realizam. Esses números demonstram que o representante não conhece e nem defende no CBH, os interesses e demandas da base que representa, isto é, os interesses coletivos. Os representantes podem ser considerados representativos da sua entidade de origem, pois estabelecem o diálogo e interagem com a entidade a fim de colher posições e divulgar informações, aspectos importantes para garantir a representatividade dos representantes. No entanto, observou-se que, praticamente inexiste articulação do representante ou da entidade de origem com as demais instituições do mesmo segmento que não se encontram presentes no CBH. Isso demonstra que as bases dos três segmentos que formam o CBH T-A não estão sendo representadas. O que está sendo representado são as entidades com vagas no CBH por meio de seus representantes. Outros aspectos que contribuem para que os representantes defendam melhor os interesses das suas bases são: os conhecimentos sobre o seu papel e funcionamento do CBH; experiência dentro do CBH e com a realidade da BH; "qualificação política e técnica"; acesso a informações, entre outros. De acordo com Frank (2008) esses fatores contribuem para que os representantes sejam mais qualificados e possam participar do processo de negociação dentro do CBH e defender os interesses da sua base de forma igualitária, partilhando o poder decisório entre os representantes. No CBH T-A observase que os representantes possuem características que os qualificam, como: o conhecimento da história do CBH e a ampla experiência com a realidade da BH. Geografia

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O CBH T-A foi criado há 16 anos e 56% dos seus representantes afirmaram participar dele há menos de quatro anos. Os representantes do setor do poder público (100%) e dos usuários da água (54%) afirmaram que participam a menos de quatro anos do CBH. Por outro lado, 54% dos representantes do setor da população da BH participam do CBH há mais de quatro anos. O período mais expressivo fica entre 12 e 15 anos, com 27% do total do setor. Observa-se que o setor da população da BH possui o maior número de representantes que participa há mais tempo do CBH. No geral, os representantes colaboram com o CBH há pouco tempo, o que leva a acreditar que possuem pouca experiência quanto à sua atuação dentro desse espaço participativo, estando em desvantagem em relação a outros representantes com mais experiência. Nesse sentido, percebe-se que o setor da população da BH está favorecido em relação aos demais setores, pois apresenta maior experiência, o que qualifica a sua participação. O motivo que levou os representantes a integrar o CBH, em 81%, deve-se ao convite da sua entidade de origem para tornarem-se seus representantes nesse espaço. O setor dos usuários (92%) e a população da BH (82%) tiveram essa mesma resposta como predominante. Já no setor do poder público, 67%, declararam ter procurado a sua entidade de origem para tornarem-se representantes no CBH. Observa-se que, majoritariamente, foram as entidades de origem que optaram por participar do CBH e escolher seus próprios representantes, principalmente os setores dos usuários e da população da BH. Pelo contrário, o setor do poder público está presente no CBH devido ao interesse dos indivíduos representantes em fazer parte dessa instância. Isso demonstra o desinteresse das entidades desse setor em participar do CBH. Entre os representantes 89% possuem conhecimento sobre a história de formação do comitê. Todos os representantes do poder público, 91% dos usuários da água e 80% da população da BH possuem esse conhecimento. A principal fonte de obtenção dessas informações é o CBH (54%). A maioria (70%) dos representantes mora em suas respectivas BHs há mais de 20 anos. Isso ocorre principalmente entre os representantes dos setores dos usuários da água (77%) e população da BH (73%). Pode-se inferir que os representantes possuem uma ampla vivência com o seu espaço cotidiano, o que facilita (re)conhecer as principais problemáticas que envolvem o uso dos recursos hídricos. A experiência dos representantes contribui para uma tomada de decisão baseada na realidade da BH, tendo assim maior probabilidade de êxito na implementação dessas decisões. Segundo Taddei e Gamboggi (2011), a interação entre os representantes é outro aspecto que contribui para que os interesses das bases sejam defendidos com qualidade. Com ela é possível criar acordos entre os representantes que compartilham de um mesmo posicionamento, fortificando a sua defesa. No CBH T-A ocorre essa interação, o que qualifica a defesa dos interesses das bases pelos representantes. Os representantes (85%), afirmaram possuir interação com outros representantes dentro do comitê. Todos os representantes do setor do poder público, Dinâmicas, conflitos e proposições 190


92% dos usuários e 73% da população da BH desenvolvem interações com outros representantes. A principal forma de interação entre os representantes ocorre através de conversa informal (72%) e o principal motivo dessa interação decorre da própria vontade dos representantes (74%). Os CBHs são as instâncias responsáveis por realizar a gestão e o planejamento integrado dos recursos hídricos, por isso devem estar em contato com outras instâncias de planejamento e negociação dentro e fora da BH, tanto quanto com outros CBHs para que possam cooperar entre si, trocar informações e experiências, e estruturar ações que possam alcançar objetivos comuns (BRASIL, 1997; RS, 1994). Uma das formas de estimular essa articulação é pela participação dos representantes do CBH em outras instâncias participativas. A participação dos representantes em mais de uma instância participativa também contribui para que eles possam criar acordos que fortaleçam a sua atuação dentro do CBH, defendendo com maior qualidade os interesses da sua base. Porém, nota-se que os representantes, em 85%, não se envolvem com outros CBHs, sendo o setor dos usuários o único que colabora em outros CBHs (30% desse setor). Os representantes, também, não possuem uma participação expressiva em outros órgãos dentro e fora da BH, respectivamente 50% e 39% dos representantes têm essa participação. O setor que mais participa de órgãos, tanto dentro quanto fora da BH, é a população da BH, respectivamente 73% e 50%. Já o setor do poder público é o que menos integra esses órgãos, com 33% de representantes que participam em cada um. Os representantes apontaram os principais motivos que dificultam a representatividade no CBH T-A: a carência de interação entre os representantes do comitê (22%), a falta de relação mais próxima entre entidades de origem e representantes (22%) e ausências frequentes dos representantes nas plenárias do comitê (19%). Há certa contradição no exposto anteriormente com as respostas apresentadas na última questão sobre a representatividade. Sabe-se que ocorre a interação entre representantes e representados e a articulação entre os representantes, no entanto, essas interações são frágeis e não estão contribuindo para que os representantes defendam os interesses de suas bases com qualidade. Diante disso, é necessário aprofundar o estudo sobre a representatividade e identificar os problemas que acometem essas interações e propor alternativas para que sejam mais efetivas. Considerações finais Ao analisar a representação do CBH T-A, constata-se que ela se encontra comprometida, não garantindo que todos os segmentos envolvidos com a questão das águas estejam equitativamente presentes nesse espaço. Os segmentos dos usuários da água e da população da BH possuem maior representação no CBH, enquanto o poder público praticamente não possui representação nessa instância. Quanto à representatividade, observa-se que os representantes são qualificados, pois possuem qualidades individuais e há articulação entre eles, aspectos importantes Geografia

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para a sua atuação dentro do CBH. No entanto, os representantes são representativos apenas da sua instituição de origem, e não da sua base na BH como um todo. Isto quer dizer que os representantes e as instituições não se articulam com as demais entidades do mesmo segmento dentro da BH, da qual deveriam ser representantes. Os setores que possuem maior representatividade de sua instituição são os representantes da população da BH e dos usuários da água, enquanto o poder público é o menos representativo. Com isso, é possível concluir que o CBH T-A não representa efetivamente a sociedade da BH, pois a representação dos segmentos não é equitativa e os representantes são apenas representativos de suas instituições de origem e não da sua base dentro da BH. Referências ABERS, Rebecca Neaera et al. Inclusão, deliberação e controle: três dimensões de democracia nos Comitês e Consórcios de Bacias Hidrográficas no Brasil. In: ABERS, Rebecca Neaera (Org.) Água e política: Atores, instituições e poder nos organismos colegiados de bacia hidrográfica no Brasil. São Paulo: Annablume, 2010. AGÊNCIA NACIONAL DE ÁGUAS. O comitê de Bacia Hidrográfica: o que é e o que faz? Brasília: SAG, 2011a. ______. O comitê de Bacia Hidrográfica: prática e procedimento. Cadernos de capacitação em Recursos Hídricos: Volume 2. Brasília: SAG, 2011b. ARNSTEIN, S. A ladder of citizen participation. JAIP, v. 35, n. 4, p. 216-224, july, 1969. AVRITZER, Leonardo. O Orçamento Participativo: as experiências de Porto Alegre e Belo Horizonte. In: DAGNINO, Evelina. (Org.). Sociedade Civil e espaços públicos no Brasil. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2002. BRASIL. Lei n. 9.433, de 8 de janeiro de 1997. Institui a Política Nacional de Recursos Hídricos. BRYSON, J. What to do when stakeholders matter: A guide to stakeholder identification and analysis techniques. Public Management Review, 2004. BRUSKI JR, W. et al. Aplicação de um índice de qualidade de águas para lagoas costeiras, RS, afetadas por despejos urbanos. Biociências. Porto Alegre, v. 6, n. 1, p.55-66, jun. 1998. DAGNINO, E. Sociedade Civil, Espaços Públicos e a Construção Democrática no Brasil: limites e possibilidade. In: DAGNINO, Evelina. (Org.). Sociedade Civil e espaços públicos no Brasil. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2002. DEMO, P. Participação é conquista: noções de política social participativa. São Paulo: Cortez, 2001. FONT, J.; et al. Mecanismos de participación ciudadana en la toma de decisiones locales: una visión panorámica. In: XIV CONCURSO DE ENSAYOS DEL CLAD "ADMINISTRACIÓN PÚBLICA Y CIUDADANÍA, Caracas, 2000. Anais..., Caracas, 2000. FRACALANZA, A. P. Gestão das águas no Brasil: rumo a governança da água? In.: RIBEIRO, W. C. (Org.) Governança da água no Brasil: uma visão interdisciplinar. São Paulo: Annablume, 2009. FRANK, B. Projeto Marca d'Água: Seguindo as mudanças na gestão das bacias hidrográficas do Brasil. Blumenau: FURB, 2008. v.2. 54 f. Dinâmicas, conflitos e proposições 192


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Parte III Urbanização e suas Dinâmicas: processos, agentes e gestão



Capítulo 1 O processo de verticalização no centro histórico de Porto Alegre (1930-1960) Ronell da Cunha Tânia Marques Strohaecker O Centro de uma cidade é o elemento mais importante de sua estrutura morfológica, destacando-se, como paisagem resultante, a ocupação intensiva do solo e a concentração de edificações verticalizadas em relação ao restante da cidade. Este capítulo objetiva analisar o processo de verticalização ocorrido no Centro Histórico de Porto Alegre, ao longo do período de 1930 a 1960, sob três diferentes perspectivas: econômica, através da valorização do uso do solo; populacional, através do aumento da densidade demográfica; e simbólica, pela vinculação à imagem de grandeza e modernidade, identitária para toda a cidade. Introdução Toda cidade, ao longo de diferentes momentos históricos, e independentemente de seu tamanho, tem em seu centro, o elemento mais importante de sua estrutura (VILLAÇA, 2001). Isso se deve ao fato do centro ser o ponto de melhor acesso a todos os demais pontos da cidade, o lugar de convergência de todo o espaço urbano. Porto Alegre, bem como outras importantes cidades brasileiras, teve um crescimento intenso em seu centro urbano até o final da década de 1950, seguido de um período de estagnação nas décadas posteriores (VILLAÇA, 2012). Este trabalho tem como objetivo identificar e analisar o processo de verticalização de Porto Alegre no período de 1930 a 1960, além de: (a) contextualizar o processo de urbanização da cidade; (b) fazer o levantamento da verticalização no Centro Histórico identificando as edificações mais representativas e as legislações vigentes; e (c) identificar e analisar os principais fatores responsáveis pelo processo de verticalização e adensamento urbano. Para isso foi realizada a revisão bibliográfica sobre os temas e conceitos relacionados à temática; o levantamento, junto aos órgãos competentes da Prefeitura Municipal de Porto Alegre, das edificações mais representativas construídas no Centro Histórico, ao longo das décadas de 1930 a 1960; o estudo da legislação pertinente (regulamentações urbanísticas, planos diretores e afins) vigente ao longo do período analisado para identificar como ela norteou o crescimento vertical do Centro Histórico da cidade; e pesquisa de campo para verificar a atual situação de uso das edificações mais representativas.

Dinâmicas, conflitos e proposições 198


Histórico de Ocupação A cidade de Porto Alegre teve seu histórico de ocupação sempre ligado ao Guaíba (ALMEIDA, 1999). Desde os primórdios, ainda no período dos Campos de Viamão (século XVIII), a ocupação do núcleo esteve vinculada ao Porto construído ao sul do promontório 6. Anos mais tarde, em decorrência das condições naturais, o Porto é transferido para o norte do promontório, local onde até hoje se encontra. É nesta mudança que a ocupação da face norte do promontório rochoso de Porto Alegre (ROCHE, 1955, p. 34 apud AB'SÁBER, 1966, p. 18) torna-se majoritária, fazendo com que esta área fosse mais desenvolvida, condição que persiste até os dias atuais. No século XIX, já na condição de cidade e capital da Província, Porto Alegre passa a ter sua área expandida através de caminhos que ligavam a área central aos pequenos núcleos descentralizados, os arraiais, os quais não tinham conexão entre si (HAUSMAN, 1963). Esses caminhos foram o princípio do sistema de radiais que caracteriza hoje parte da malha viária da cidade. E os núcleos descentralizados constituem a gênese de vários bairros existentes em Porto Alegre. No final do século XIX e início do século XX é que Porto Alegre passa a ter, lentamente, uma transformação em sua estrutura urbana. No governo do Intendente José Montaury, é feito o primeiro Plano de Melhoramentos para a cidade. Esse Plano projetava a construção de algumas ruas no Centro e o alargamento de outras; obras viárias que foram executadas nas gestões municipais seguintes. Outro importante acontecimento que marcou o período de Montaury à frente da Intendência, foi a construção do Cais do Porto pelo Governo do Estado, o qual proporcionou um dinamismo na economia regional e alavancou o Centro da cidade de Porto Alegre. Além disso, nesse período, o centro já havia tido um crescimento territorial sobre o Guaíba, através de vários aterros (SOUZA & MÜLLER, 2007). Nos governos seguintes, as transformações ocorreram de forma mais acelerada. Muitos becos foram alargados, vias importantes foram construídas e novas edificações, gradativamente, eram erguidas na cidade. Em contrapartida, um processo socialmente excludente acompanhava as transformações. Processo esse, promovido concomitantemente pelo capital privado e pelo Estado, considerando-se a instância municipal, através de suas legislações restritivas quanto a determinados tipos de construções. Essa contextualização da atuação do setor público coadunada aos interesses do setor imobiliário é importante ser retomada, pois ela é que viabiliza a ocorrência da verticalização na cidade. As primeiras edificações em altura foram construídas junto às novas vias que foram abertas, ou em ruas que foram alargadas. E nisso a legislação urbanística funcionara como estimuladora. A concentração das classes de maior renda no Centro, na primeira metade do século XX, dá-se concomitantemente à exclusão

Porção saliente e alta de qualquer área continental, que avança para dentro de um corpo aquoso (SUGUIO, 1992, p. 101). 6

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gradual das camadas de baixa renda para a periferia. As construções em altura que, inicialmente eram usadas para moradia das camadas de alta renda, foram sendo erguidas sobre os terrenos que antes abrigavam os casarões, que, ao serem abandonados pela própria elite, transformaram-se em cortiços que serviam de moradia para a população operária, em geral de baixa renda. Entre os anos de 1893 e 1961, o poder público municipal de Porto Alegre estabeleceu e operou diversos níveis de aproveitamento do solo, através das regulamentações urbanísticas. De 1893 a 1959 vigoraram níveis crescentes de “fertilidade do solo” (ROVATI, 1993), já a partir de 1959 vigoraram níveis decrescentes de fertilidade, tendência que só se alterou com as modificações feitas no Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano de 1979, e adendos, em 1987. Os casos observados nas legislações dos anos 1893, 1913 e 1926 mostram-se semelhantes. Com relação aos seus mecanismos operacionais, as normas estabelecem ocupação máxima (dois terços do terreno) e altura máxima (uma vez e meia a largura da rua, em 1893 e 1913; duas vezes a largura da rua, em 1926). Em 1926, com a alteração introduzida nos pés-direito mínimos permitidos (diminuídos de 4 para 3,20 metros, para o primeiro pavimento; de 3,80 para 2,80 metros, para o segundo pavimento; e de 3,60 metros para 2,60 metros, para os demais pavimentos) possibilita que, sem que se altere a altura máxima, construa-se um número maior de pavimentos. (ROVATI, 1990), o que permite maior aumento da densidade por terreno. Entre 1926 e 1953, ao contrário de estabelecer qualquer restrição à construção, a legislação municipal a estimula. O Decreto nº 115, de 4 de agosto de 1942, concede incentivos fiscais para grandes construções destinadas à habitação, reduzindo por 10 anos os impostos prediais, na seguinte proporção: 40%, para quem construir até três pavimentos; 50% para quem construir de quatro a cinco pavimentos e, 60% para quem construir 6 ou mais pavimentos. Em outras palavras, nas décadas de 1930 e 1940, o poder público municipal, em Porto Alegre, estimula a ocupação intensiva do solo. O Decreto nº 245 de 1940 estabelece o limite mínimo de 6 (seis) pavimentos para edificações erguidas nas seguintes vias: Borges de Medeiros, 10 de Novembro (Salgado Filho), e parte da Rua dos Andradas. No ano de 1940, o novo padrão morfológico de construções da cidade passa a ser efetivamente incentivado, o das construções em altura. Se nos primeiros regulamentos (1893, 1913 e 1926) não havia incentivos para as construções em altura, a partir de 1940, isso passa a ser, além de incentivado, obrigado, de acordo com os limites mínimos estabelecidos no Decreto nº 245. Outra importante normativa que favoreceu o aumento da altura das edificações construídas na cidade foi a Lei 986/52. A principal novidade que essa lei traz é a possibilidade de se construir além do limite de duas vezes a largura da rua, desde que obedecidos os recuos a partir do alinhamento. Exemplificando, essa lei permitiu a seguinte situação: em uma rua cuja largura fosse 20 metros, era possível construir um prédio de até 40 metros no alinhamento, ou seja, uma altura que permitiria uma construção de aproximadamente 13 pavimentos; porém com a possibilidade de elevarDinâmicas, conflitos e proposições 200


se além dessa altura, respeitando os recuos, viabilizou que, tendo o prédio um recuo de 4 metros, ao final dos 40 metros construídos no alinhamento, esse prédio poderia ser elevado em mais 16 metros (proporção 4 na vertical para 1 na horizontal), o que possibilitaria um aumento de mais 5 pavimentos aproximadamente, logo, resultando em um edifício de 18 pavimentos. Se o terreno permitisse um novo recuo na edificação, seria possível aumentar quantas vezes fosse possível na vertical. Ou seja, esse dispositivo permitiu elevar as edificações muito além do limite de duas vezes a largura da via. E com isso, um novo padrão morfológico surge na cidade, inspirado nos arranha-céus de Nova Iorque e Chicago: o prédio em forma de degraus, ou seja, recuos sucessivos em relação às divisas conforme a altura da edificação se ampliava. Além disso, essa lei também estabelece um limite diferenciado para a Rua dos Andradas e para as avenidas Borges de Medeiros e Salgado Filho. Na rua dos Andradas é permitida a altura de 30 metros e nas avenidas Salgado Filho e Borges de Medeiros, a altura de 70 metros para os edifícios construídos no alinhamento. Importante destacar que esses limites eram permitidos para construções no alinhamento, ou seja, essa regra valeria em relação ao limite de duas vezes a largura da rua. Sendo assim, permitir-se-ia a construção de edificações com recuos e com maior número de pavimentos, como ocorreu na Rua dos Andradas em edifícios como Santa Cruz e Malcon. Já o limite estabelecido de 70 metros para as avenidas Borges e Salgado Filho, como já era um limite bastante elevado, permitindo construções de aproximadamente 23 pavimentos, gerou um padrão morfológico nessas avenidas de rua corredor, com altos edifícios construídos no alinhamento, conforme mostra a Figura 1.

Figura 1 - Foto da Av. Salgado Filho em 2014, rua com maior índice de verticalização do centro da cidade. Foto: Ronell da Cunha, maio de 2014.

Geografia

201


Após o crescimento populacional e mercado imobiliário ascendente da década de 1950, com a verticalização no núcleo central atingindo seu ponto máximo em Porto Alegre ao final daquela década, inicia-se um processo gradativo de relativo abandono do Centro. Prédios habitacionais e comerciais começaram a ser deixados e o Centro Histórico foi, gradativamente, perdendo população residente, sobretudo de maior poder aquisitivo, que passou a procurar locais menos populosos alegando busca por maior segurança e qualidade de vida (WEIMER, 2001 apud NYGAARD, 2005). A Evolução das Construções em Altura As construções em altura remontam tempos bem mais antigos ao discutido nesse trabalho. A busca pela altura vem sendo recorrente na história da civilização humana pela carga simbólica e grandiosidade atribuída às imagens de verticalidade. Haja vista alguns exemplos de construções verticais históricas: as pirâmides no Egito; o zigurate na antiga Mesopotâmia; a Torre de Babel (um zigurate de maiores proporções); a torre feudal; a catedral medieval; e, mais recentemente, a torre Eiffel; entre outras. Mesmo em escalas e tempos distintos, todas elas representam o poder e a superioridade em relação às demais construções. No caso dos edifícios, são os andares superiores os mais requisitados e, consequentemente, os mais valorizados, evidenciando um maior prestígio de seu detentor 7. O arranha-céu, edificação em altura que surgira nos Estados Unidos na segunda metade do século XIX, e que se tornara rapidamente um poderoso símbolo de poder, progresso e modernidade daquele país, é seguramente o tipo de edificação mais representativo do século XX, bem como da arquitetura norte-americana. Segundo Machado (1998), pode-se distinguir duas fases no processo de verticalização nos Estados Unidos: a primeira, por volta de 1880, a qual abrange edifícios de escala mais modesta, com cerca de 8 a 10 andares; e a segunda, a partir de 1889, com edifícios de 12 a 20 andares, abrindo caminho para a materialização do arranha-céu. Inicialmente eram prédios destinados a lojas, hotéis e escritórios, mas logo passaram a abrigar também a função residencial. Nos anos de 1930 a prioridade era a altura dos edifícios. A afirmação deste tipo de edificação ao longo das primeiras décadas do século XX modifica a imagem tradicional e cidades como Nova Iorque, Chicago, entre outras importantes cidades norte-americanas. Porém, essa transformação não ocorreu sem enfrentar alguns problemas. Nesse sentido, Machado (1998) expõe uma situação importante e de reflexos significativos à morfologia das edificações, que alterará, inclusive, a morfologia dos edifícios de Porto Alegre da década de 1950: (…) o ed. Equitable Life, em Nova Iorque – terminado em 1915, com 39 andares, então o maior prédio de escritórios do mundo – dá margem a uma série de protestos de Antes da invenção do elevador, os andares mais altos eram os menos valorizados em função de que o acesso era dificultado. É no limiar do século XX que a valorização dos andares superiores se consolida a partir dessa inovação tecnológica na área da construção civil.

7

Dinâmicas, conflitos e proposições 202


proprietários e inquilinos de edifícios vizinhos, privados que foram de iluminação natural uma vez que o volume da nova edificação, construído verticalmente, era contínuo. Claro que os preços dos aluguéis destes imóveis adjacentes baixaram. (MACHADO, 1980, p. 180)

Para solucionar esse problema é adotado o sistema de construção em degraus, de modo a não prejudicar de forma tão contundente a situação dos prédios vizinhos. Trata-se de manter, nos níveis mais baixos, uma área maior da construção dentro do lote, passando a construção a ser recuada, nos pavimentos mais altos. Esse modelo de construção em degraus passou a ser adotado em Porto Alegre, a partir da Lei n° 986/52. Já na década de 1930, alguns edifícios construídos transformaram-se em verdadeiros símbolos das cidades dos Estados Unidos. Em 1930, foi erguido o Edifício Chrysler, com 77 pavimentos, tornando-se o mais alto prédio do mundo. Porém, no ano seguinte, seu recorde é suplantado pelo Empire State Building, de 102 pavimentos, que figurou, de 1931 a 1972, como o maior arranha-céu do mundo. O valor simbólico do arranha-céu espalhara-se pelo mundo e tornara-se a referência no padrão de cidade moderna. Toda a cidade que almejava ser moderna estava fadada a ter sua paisagem horizontal transformada em paisagem vertical. As grandes cidades brasileiras, lideradas por São Paulo e Rio de Janeiro, e guardadas as devidas proporções, seguiram essa tendência. Embora, nas décadas de 1920 e 1930, os edifícios de 50 andares, como os que existiam em Nova Iorque, não se justificassem em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, estas cidades já contavam com prédios de mais de 20 andares. O prédio do Jornal A Noite, de 24 pavimentos, finalizado em 1928, tornara-se a mais alta edificação da América do Sul. Em 1929, com a finalização do Edifício Martinelli, de 30 andares, São Paulo passa a ter o edifício mais alto do mundo fora da América do Norte. Anos mais tarde, em 1947, São Paulo conhece seu novo arranha-céu, o edifício Altino Arantes, de 40 pavimentos; e em 1960, o edifício Mirante do Vale, de 51 pavimentos, edificação mais alta de São Paulo e do Brasil. Esses dados corroboram com a ideia de que os centros urbanos das principais cidades brasileiras tiveram seu crescimento máximo até o final da década de 1950 ou pouco depois. Mesmo com a verticalização alcançando os bairros das cidades, o crescimento tão acentuado em altura não se justificava economicamente e, também, legalmente, por conseguinte. Desta forma, permaneceram os centros como áreas mais verticalizadas das principais cidades. Além disso, cabe ressaltar que a verticalização era proporcionadora de uma significativa taxa de lucro, uma vez que multiplicava a área do terreno em tantas quantas fosse possível acima do nível do solo. Logo, quanto maior o seu valor simbólico, maior também seria seu valor financeiro, consequentemente. Foram as inovações tecnológicas que permitiram que pudessem ser construídos mais pavimentos além do nível térreo. As novas condições técnicas surgem em Geografia

203


decorrência do desenvolvimento das forças produtivas, ou seja, da relação entre a sociedade e natureza e sua transformação. Dentre essas inovações, dois elementos foram fundamentais para a materialização da construção em altura: o concreto armado e o elevador. Embora a associação de materiais como ferro e cimento ocorra, no mínimo, desde o tempo da civilização romana, por não ser considerado de valor estético, seu uso era sempre encoberto nas edificações. Somente no final do século XIX e início do século XX é que o concreto armado começa a ser viabilizado nas construções (MACHADO, 1998). A utilização desse material permitiu que as construções apresentassem estrutura resistente para suportar os pavimentos superiores em maior quantidade. Mas, seguramente, é a utilização do elevador o que permitiu, definitivamente, a multiplicação dos planos horizontais, um acima do outro, sobre a superfície do terreno. Utilizado pela primeira em Nova Iorque, em 1856, seu uso rapidamente se generaliza (MACHADO, 1998). A primeira utilização do elevador em Porto Alegre ocorreu, possivelmente, no início da década de 1920, no Palácio Provisório, que serviu de sede ao governo rio-grandense de 1896 a 1921 (VIANNA, 2004). Embora a altura da edificação não justificasse seu uso, a representação do conforto e da modernidade foi preponderante para que o elevador fosse utilizado no Palácio. As Construções em Altura em Porto Alegre No final da segunda década do século XX e início da terceira, algumas edificações de quatro, cinco, ou mais andares já eram encontradas em Porto Alegre. Como exemplo, tem-se os edifícios Força e Luz, de seis pavimentos; Grande Hotel e Hotel Majestic (hoje Casa de Cultura Mário Quintana), ambos de 7 pavimentos. Todos eles utilizados, na época, para fins de hotelaria. Somente na década de 1930 é que os edifícios com mais de 10 pavimentos são erguidos na cidade. O primeiro deste conjunto de edifícios com 10 ou mais andares é o Novo Hotel Jung, de 1930, com 10 pavimentos, seguido do Cine Imperial, de 1931, com 12 pavimentos. O primeiro “arranha-céu” da cidade é muito anterior a este tempo, e por isso merecedor de destaque: trata-se do Edifício Malakoff, com seus 4 andares. Finalizado em 1867, esta edificação levou dez anos para ser construída, possivelmente pela escassez de materiais e técnicas pouco avançadas que se dispunham. Essa construção causou um impacto muito grande na cidade e em seus moradores. A respeito disso, coloca José Amadio (citado por Machado, 1998, p. 187), em artigo realizado para a Revista do Globo, em 1944, por ocasião da inauguração do prédio: (…) cedo começou o grande movimento, pois toda a população saíra para as ruas envergando os melhores trajes domingueiros. Porto Alegre estava engalanada e inquieta, vivendo um dia esperado havia dez anos. Inaugurava-se o maior “sobrado” da cidade, o Malakoff […]. Era o dodói e o orgulho da cidade. Sua fama correu longe.

Dinâmicas, conflitos e proposições 204


(…) o novo prédio constituia visita obrigatória para o interiorano de passagem pela capital que recebia, ao voltar para o seu local de origem, a inevitável pergunta: “Viste o Malakoff?”

Mesmo que isso pareça exagerado nos dias atuais, deve-se levar em consideração que os prédios de Porto Alegre, daquela época, não ultrapassavam os três andares, e mesmo estes eram exceção na paisagem horizontal da cidade. Esse prédio localizava-se na esquina da Rua Sete de Setembro com a Praça XV, e abrigava lojas no térreo e moradias nos demais andares. Em meados dos anos de 1950 o Malakoff foi demolido, sendo considerado remanescente de um passado colonial e entrave para o crescimento e o desenvolvimento da capital. Inegavelmente havia um sentimento de ufanismo em relação às edificações mais altas, muitas vezes chamados de arranha-céus. Contudo, há de se considerar que a expressão é utilizada em termos comparativos ao que já existia. Ou seja, em uma paisagem predominantemente horizontal, todo elemento de maior alcance vertical, certamente seria motivo de destaque. Mais do que isso, eram verdadeiros motivos de espanto e orgulho para a população. A verticalidade simbolicamente representava o progresso, e Porto Alegre visava ser moderna. A verticalização no Centro Histórico de Porto Alegre apresentou o seguinte padrão: (a) as edificações construídas entre o final da década de 1910 e ao longo da década de 1920, tinham entre 6 e 7 pavimentos e o uso principal dessas edificações era para fins de hotelaria; (b) ao longo da década de 1930, o perfil era de edificações de 10 pavimentos em média, com uso residencial, predominantemente, intercalando com alguns de uso também comercial; (c) na década de 1940, o perfil era de edificações de 15 pavimentos em média, com uso mesclado entre residencial e comercial; e (d) na década de 1950, auge da verticalização na cidade, o perfil era de edifícios de mais de 20 pavimentos, com uso predominantemente comercial e escritórios, intercalando, em alguns casos, o uso residencial. O Quadro 1 apresenta as principais edificações construídas nas décadas de 1930, 1940 e 1950, em Porto Alegre, a partir de levantamento em fonte secundária (VIANNA, 2005) e primárias (Arquivo Público e pesquisa de campo).

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Quadro 1. Principais edificações construídas em Porto Alegre nas décadas de 1930 a 1960 Nome do Edifício

Ano

Número de Pavimentos

Tipo de Uso

Novo Hotel Jung

1930

10

Hotelaria

Cine Imperial

1931

12

Cinema, escritórios e uso residencial

São Luiz

1934

9

Residencial

Azeredo (atual Jaguarão)

1937

9

Residencial

Palácio do Comércio

1937

9

Comércio e Residencial

Vera Cruz

1938

15

Escritórios e residencial

Charrua

1940

13

Residencial

Santa Helena

1941

11

Escritórios

Ipiranga

1941

11

Residencial

União

1943

16

Escritórios e residencial (hoje somente escritórios).

Ed. Residencial

1944

13

Sede do IPERGS, até 1948, residencial

Sulacap

1949

17

Originalmente abrigava escritórios e apartamentos. Hoje somente escritórios.

Missões, Fronteira, Planalto

1953 1956

18

Comercial

Galeria Nossa Senhora do Rosário

1956

23

Comercial: 520 Salas Comerciais

Jaguaribe

1951

26

Residencial e Comercial: 75 Apartamentos; 15 Salas Comerciais

Formac

1957

26

Comercial

Cacique

1957

26

Comercial e Residencial

Malcon

1957

27

Comercial

Coliseu

1957

28

Comercial: 364 Salas Comerciais

Santa Cruz

1958

32

Comercial e Residencial: 314 Salas Comerciais e 28 Apartamentos.

Fontes: VIANNA (2005); Arquivo Público Municipal; Dados levantados em campo.

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O padrão prioritário de ocupação das edificações de maior número de pavimentos, construído ao longo da década de 1950, foi para uso comercial. Até porque, mesmo com o crescimento demográfico elevado, não se justificavam tantas edificações de tal porte para fins residenciais, uma vez que essas edificações tinham alto custo, o que demandaria um grande contingente populacional de alto poder aquisitivo, o que provavelmente seria maior do que a cidade detinha. Mais interessante do ponto de vista econômico é que os fins fossem comerciais, o que possibilitaria multiplicar sobremaneira o capital investido. Sob o ponto de vista demográfico, o uso comercial na realidade significava uma densidade alta, ao longo do dia, e baixa, à noite e aos finais de semana. Essa situação pode ser apontada como um dos motivos pelos quais o Centro passou a não ser tão atraente para moradia, já que a alta densidade gera problemas de mobilidade significativos, e a baixa densidade noturna é, muitas vezes, vista sob a ótica da insegurança. Por fim, sob a perspectiva simbólica, ambos os usos, residencial ou comercial, geram um efeito semelhante ao detentor do imóvel. Ter um apartamento em andar alto de um grande edifício, ou ter um escritório, em ambos os casos, o status social é de posição de “superioridade” em relação aos demais. Contudo, há de se ressaltar que, no final dos anos de 1950, as grandes edificações já não eram mais novidade. Não havia mais o mesmo entusiasmo dos primórdios. Porto Alegre já era uma metrópole, uma das grandes cidades brasileiras. Para finalizar este tópico é interessante citar algumas características dessas edificações atualmente. Os edifícios Santa Cruz e Coliseu apresentam-se de forma semelhante. Ambos estão, relativamente, bem conservados e com a absoluta maioria de salas comerciais ocupadas. No edifício Coliseu, que tem um total de 364 salas, somente 12 não estão ocupadas. Já no edifício Santa Cruz, este dado não foi disponibilizado, porém em conversa com o zelador do edifício, o mesmo disse haver um número pequeno de salas desocupadas, o qual não foi informado com precisão. No edifício Formac, não foi comunicado o número total de salas, uma vez que muitas salas foram unificadas para um uso específico; porém, a informação é de que poucas salas se encontram desocupadas. Situação semelhante é a do edifício Cacique, este de uso residencial e comercial, o qual está quase totalmente ocupado para ambos os usos. O edifício Jaguaribe apresenta uma situação curiosa. O prédio é de uso residencial predominantemente, sendo somente um andar, no caso o sexto, utilizado para fins comerciais, além de instituição bancária instalada no térreo. Do total de 75 apartamentos residenciais, somente 4 não estão ocupados, permanecendo 3 para venda e 1 para alugar. Porém, todas as 15 salas comerciais estão desocupadas. A justificativa mais provável é que, por se tratar de o andar inteiro ser de propriedade de um mesmo dono, e este andar estar todo para comercialização, é possível que este dono não aceite negociar salas isoladas, o que, obviamente, dificulta bastante as possibilidades de demanda.

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Certamente dos edifícios visitados, os que estão com aspecto mais decadente são os edifícios Malcon e Galeria Nossa Senhora do Rosário. E isso se observa tanto na fachada quanto no uso de suas salas. Embora ambos apresentem boa aparência no andar térreo (principalmente o Ed. Malcon), com todas as salas ocupadas, basta subir três ou quatro andares para se deparar com a realidade dos prédios, que já se observa na fachada. O edifício Rosário tem um total de 520 Salas Comerciais divididas entre o andar térreo e os demais 22 pavimentos. Pelo número de salas já é possível perceber que são salas pequenas, se compararmos ao número de salas dos edifícios Coliseu e Santa Cruz, mais altos, e com menor número de salas. Com esse dado, pode-se pressupor que era um edifício para o comércio de menor poder aquisitivo. E esta realidade mantém-se até os dias atuais. É importante destacar, também, que conforme se distancie do térreo, diminui o número de salas ocupadas. Nos pavimentos superiores chega-se a ter mais da metade das salas desocupadas. O caso do edifício Malcon é semelhante, e seu estado de conservação é ainda pior, exceto no térreo que foi recentemente reformado. Existe um grande número de salas desocupadas, pelo que se pôde perceber caminhando-se pelos corredores dos andares superiores. Entretanto, esta informação não foi confirmada pela administração do edifício, que disse não ter esse levantamento. Com os dados apresentados e analisados, não se pode afirmar, portanto, que o Centro Histórico de Porto Alegre foi abandonado ao final da década de 1950 ou pouco depois. Mesmo que tenha havido um abandono do Centro por parte da elite, o mesmo continua, em sua grande parte, ocupado. Alguns setores do Centro é que precisam de maiores investimentos de forma a melhorar seu aspecto e sua funcionalidade, e com isso, provavelmente, ter seus espaços melhor ocupados e aproveitados, como nos exemplos das duas últimas edificações citadas. Considerações Finais O aumento gradual nas alturas das edificações esteve condicionado a duas situações: (a) a real demanda que a cidade tinha, ou seja, o que justificaria a construção de edificações de determinada volumetria; e, (b) a legislação que existia, se era restritiva ou estimuladora. Isso porque, se em determinado momento a legislação impunha apenas os limites máximos de altura dos prédios, em outro momento ela passa a impor os limites mínimos, além de utilizar de incentivos fiscais para que as construções em altura fossem erguidas. O período restritivo dá-se do final do século XIX até o início da década de 1940, quando a legislação impunha apenas os limites máximos. A partir da década de 1940, é que se tornam obrigatórios alguns limites mínimos, sobretudo nas ruas consideradas mais importantes do Centro e nas novas vias. Quanto à demanda, o crescimento demográfico em uma cidade que era altamente centralizada em termos comerciais e de serviços, gerou a demanda para que o processo se materializasse, sem, em contrapartida, diminuir o ideário da modernização e Dinâmicas, conflitos e proposições 208


verticalização nos moldes dos grandes centros norte-americanos almejados pelos agentes hegemônicos. É na década de 1950 que Porto Alegre conhece, efetivamente, seus verdadeiros arranha-céus: os edifícios de mais de 20 andares. Construídos em sua maioria naquela década, e para fins comerciais, essas edificações proporcionaram uma concentração de pessoas nos pontos os quais estavam localizados, o que gerou alguns efeitos colaterais. A densidade no Centro tornou-se mais elevada e os congestionamentos tornaram-se inevitáveis. Posteriormente a esse contexto, os bairros passam a ser valorizados, através da realização de obras de tráfego e infraestrutura, além da especialização das atividades terciárias. A massificação do uso do automóvel permitiu que as distâncias fossem minimizadas, o que possibilitou o distanciamento espacial ao Centro sem aumentar a distância relativa. Possivelmente, essa seja uma parte da explicação do abandono do Centro pelos grupos de maior renda. Quanto à estagnação do crescimento vertical no Centro da cidade ao final da década de 1950, duas explicações são as mais usuais. A primeira é de que o Plano Diretor de 1959 foi muito restritivo, impossibilitando que fossem erguidas edificações altas. A segunda é de que, com o abandono do Centro pela elite, não mais se justificariam os prédios em altura, uma vez que os mesmos eram, prioritariamente, utilizados por esse grupo social. Ainda pode-se apontar uma terceira, menos comentada, de que o Centro estaria espacialmente limitado, não permitindo maior crescimento. Destas justificativas, pode-se considerar que a primeira não procede inteiramente. Se o Plano impôs limites, há de se observar que os limites nos bairros foram mais restritivos do que no Centro. Além disso, alguns dos prédios mais altos da cidade foram erguidos, no Centro, no período imediatamente posterior a este plano, tais como: o Edifício do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), de 1969, com 22 pavimentos; e o Edifício Sede do Banco do Estado do Rio Grande do Sul (Banrisul), de 1964, com 21 pavimentos e altura equivalente a 25 pavimentos. A segunda explicação parece mais plausível. De fato, o uso prioritário das edificações em altura era das camadas de maior poder aquisitivo, e com a ausência deste mercado consumidor, justifica-se a estagnação. Entretanto, muitos desses edifícios adaptaramse à nova realidade e aos novos mercados. Isso se comprova pelo atual índice de ocupação dos edifícios. Apenas alguns deles é que se encontram em parcial estado de abandono. Por fim, a última justificativa é parcialmente correta. O Centro é limitado espacialmente, mas essa é uma característica própria dos núcleos centrais, e até mesmo uma condição intrínseca, ou seja, sua limitação espacial na escala horizontal (CORRÊA, 2005). Porém, se o mercado assim o exigisse, o Centro ainda teria potencial para crescer em altura em alguns setores menos densos. Por fim, é neste contexto que se encontra o Centro de Porto Alegre atualmente: uma mescla de setores revitalizados, a partir da valorização do Patrimônio Histórico, Arquitetônico e Cultural, tais como o complexo de edificações históricas no entorno Geografia

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da Praça da Alfândega; setores de maior dinamismo econômico, tais como o comércio e serviços na Rua dos Andradas e adjacências; e outros setores com aspecto e paisagem decadentes em relação aos dois primeiros, como os exemplos dos edifícios Malcon e Rosário, e áreas no entorno. Referências AB’SABER, Aziz Nacib. O sítio urbano de Porto Alegre. In: AB’SABER, Aziz Nacib; ROCHE, Jean (Orgs.). Três estudos rio-grandenses. Porto Alegre: Gráfica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1966, p. 7-28. ALMEIDA, Maria Soares de. Gestores da cidade e seus regulamentos urbanísticos: Porto Alegre de 1893 a 1959. In: LEME, Maria Cristina da Silva. (ORG.). Urbanismo no Brasil: 18951965. São Paulo: Studio Nobel, 1999, 1. ed. p. 102-119. CORRÊA, Roberto Lobato. O espaço urbano. 4. ed. São Paulo: Ática, 2005. HAUSMAN, Abrão. Aspectos da Geografia Urbana de Pôrto Alegre. Boletim Geográfico do Estado do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Ano VIII, n. 13, p. 8-31, 1963. MACHADO, Nara Helena Naumann. Modernidade, Arquitetura e Urbanismo: O Centro de Porto Alegre (1928-1945). 1998. 2 v. Tese (Doutorado em História do Brasil) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Curso de Pós-Graduação em História do Brasil, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1998. NYGAARD, Paul Dieter. Planos Diretores de Cidade: discutindo sua base doutrinária. 1. ed. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2005. PORTO ALEGRE, Intendência Municipal de. Acto n. 22, lei n. 2/1893. Institui Código de Posturas Municipaes sobre Construcções. Porto Alegre, Rio Grande do Sul, 1893. PORTO ALEGRE, Intendência Municipal de. Acto n. 96/1913. Institui o Regulamento Geral de Construcções. Porto Alegre, Rio Grande do Sul, 1913. PORTO ALEGRE, Intendência Municipal de. Decreto n. 53/1926. Altera o Regulamento Geral de Construcções. Porto Alegre, Rio Grande do Sul, 1926. PORTO ALEGRE, Prefeitura Municipal de. Decreto n. 245/1940. Porto Alegre, RS. PORTO ALEGRE, Prefeitura Municipal de. Decreto n. 115/1942. Porto Alegre, RS. PORTO ALEGRE, Prefeitura Municipal de. Lei n. 986/1952. Dispõe sobre altura das construções. Porto Alegre, Rio Grande do Sul, 1952. PORTO ALEGRE, Prefeitura Municipal de. 1959. Lei n. 2.046/1959. Institui o Plano Diretor e fixa normas para sua execução. Porto Alegre, RS. ROVATI, João Farias. 1993. A “fertilidade” da terra em Porto Alegre. In: PANIZZI, Wrana M.; ROVATI, João Farias. (Orgs.). Estudos urbanos: Porto Alegre e seu planejamento. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1993, 1. ed. p. 221-239. ROVATI, João Farias. Contribuição ao estudo do planejamento urbano: promoção imobiliária e uso do solo planificado na cidade de Porto Alegre. 1990. 184 f. Dissertação (Mestrado em Planejamento Urbano e Regional) – Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, Curso de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1990. SOUZA, Célia Ferraz de; MÜLLER, Dóris Maria. Porto Alegre e sua evolução urbana. 2.ed. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2007. SUGUIO, Kenitiro. Dicionário de geologia marinha. São Paulo: T.A. Queiroz, 1992.

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Capítulo 2 A transição demográfica e a produção do espaço urbano em Porto Alegre Amanda Cabette Tânia Marques Strohaecker O presente capítulo contempla a relação entre o crescimento demográfico portoalegrense e a produção do espaço urbano. O atual processo de urbanização apresenta especificidades locais que contribuem para a intensificação do processo de segregação socioespacial, com a expansão do crescimento urbano em direção às áreas periféricas carentes de infraestrutura urbana. A nova configuração demográfica apresenta grandes desafios: a persistência de níveis de pobreza e de desigualdades socioespaciais, para os quais a preocupação com a quantidade cede lugar a considerações de composição e qualidade. Nesse cenário, faz-se necessário a análise da dinâmica demográfica do território municipal, identificando a composição da estrutura etária nos bairros da cidade, associando-os ao processo de produção imobiliária e às principais transformações sociais. A estruturação do capítulo está dividida em duas seções. Em primeiro lugar, uma análise integrada da produção do espaço urbano porto-alegrense com sua dinâmica demográfica, destacando-se as tipologias habitacionais e a incidência de moradias precárias por setores da cidade. Na segunda seção, aborda-se a tendência de envelhecimento populacional e a nova estrutura etária de Porto Alegre e as repercussões na produção imobiliária e na estruturação urbana. A Dinâmica Demográfica e a Estruturação do Espaço Urbano A análise do entendimento do processo de urbanização da capital gaúcha nos revela os condicionantes sócio-históricos, a ocupação e usos do solo, a configuração de espaços de valorização e segregação nas diferentes regiões da cidade. Nesse sentido, entendese que as formas de apropriação e as oportunidades geradas pelo crescimento populacional influenciaram na ocupação e na consolidação dos atuais bairros de Porto Alegre. A principal questão abordada será a análise da dinâmica demográfica associada com a produção do espaço urbano, reconhecendo as diferenças socioespaciais da cidade, a partir da espacialização e estruturação das faixas etárias nos bairros, em conjunto com o processo de urbanização, identificando-se a cidade como um espaço fragmentado, marcado pela segregação e condicionado pela atuação de diversos agentes, destacando-se o papel dos promotores imobiliários. A separação espacial das distintas classes sociais ocorre na medida em que há uma homogeneização social das áreas da cidade através dos mecanismos de hierarquização, da valorização dos preços de acesso à terra urbana e à moradia Dinâmicas, conflitos e proposições 212


(CASTELLS, 1983). A questão da habitação está diretamente vinculada com os mecanismos do mercado por possuir um valor de uso, aliada a outra mercadoria, o solo urbano. Existe a necessidade da intervenção do Estado, direta ou indiretamente, através da construção de habitações, através de financiamentos aos futuros proprietários dos imóveis ou às construtoras, em sendo estas últimas participantes ativas do processo de acumulação do capital e do próprio processo de valorização da terra. Esse processo é acompanhado por uma crescente fragmentação do espaço, diminuição das áreas de transição e de convívio entre as diferentes camadas socioeconômicas da população. Na medida em que a distância em quilômetros entre os ricos e pobres diminui, a distância socioeconômica aumenta e as barreiras que impedem o convívio entre as distintas classes sociais tornam-se significativas. A expressão desta segregação social é a existência de bairros ricos ou de condomínios fechados, com sofisticada infraestrutura e altos padrões construtivos. Nas últimas duas décadas (1990-2010), observa-se uma complexificação no processo de urbanização da metrópole com tendências para uma configuração fragmentada e difusa, perceptível na escala metropolitana e na escala intraurbana (SOARES e FEDOZZI, 2015). Durante esta fase recente de expansão urbana, marcada pela presença de fluxos migratórios intraurbanos, foi possível detectar o aumento das áreas ocupadas no município. Nessa perspectiva, o espaço urbano apresenta-se fragmentado: os bairros mais centrais ainda são os melhores servidos por infraestrutura e em sua maioria onde vivem classes de mais alta renda; a periferia ainda apresenta carência de infraestrutura e é onde, de modo geral, vivem as classes mais carentes de renda. Apesar disso, novas centralidades emergem com a reestruturação urbana, o que denota a importância do fator demográfico como componente do ordenamento territorial. Segundo os dados do IBGE (2010), a população porto-alegrense representa 13,4% da população gaúcha e 0,8% da brasileira. Os dados do Censo Demográfico de 2010 mostram uma nova conformação na estrutura da pirâmide etária da cidade, pois a população de mais de 65 anos é o grupo que experimentou o maior crescimento, destacando-se, inclusive, em nível nacional entre as capitais estaduais (Gráfico 1).

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Gráfico 1 - Distribuição da população de Porto Alegre-RS (2000-2010)

Elaboração: Amanda Cabette. Fonte: IBGE, 2014.

Tais transformações que a composição da população vem passando abrem novas perspectivas para o entendimento da relação demográfica com o processo de produção do espaço urbano. Segundo Singer (1980), o processo de envelhecimento populacional resulta na redução do grupo etário dos jovens (0 a 15 anos), em consequência da queda da taxa de fecundidade, configurando o que se denomina de envelhecimento pela base. Este processo é próprio da experiência histórica do aumento do número de idosos vivenciado pela maioria de países desenvolvidos ou países emergentes que estão se tornando desenvolvidos. A população infantil porto-alegrense (0 a 9 anos de idade), em 2010, era de 185.652 crianças, ou seja, 12,9% dos 1.436.124 da população total (IBGE, 2010). Em menos de uma década, houve uma redução de cerca de 10% no número total de crianças e de 15% na proporção de crianças para a população total. Esta redução da população infantil porto-alegrense é resultante da diminuição progressiva do número de nascimentos e da taxa de fecundidade. A redução da taxa de fecundidade é um dos fatores responsáveis por tornar Porto Alegre uma das capitais brasileiras com menor taxa de crescimento populacional do país. A proporção de jovens (de 14 a 19 anos de idade) na composição da população vem apresentando redução gradativa nas últimas décadas. Em 1980, era de 18,5%, em 1991, de 17,5%, em 2000, de 17,1% e, em 2010, foi de 14,2% (IBGE, 2010). A partir dos dados do Censo de 2010, verifica-se que a cidade de Porto Alegre teve uma redução expressiva nos contingentes populacionais de crianças e jovens, concomitantemente, à ampliação significativa do contingente idoso. A população idosa (60 anos ou mais) da cidade aumentou 32% em relação à de 2000, passando de 160.541 (11,8% da população total) para 211.896 habitantes (15,04% da população total). A tendência é o aumento do contingente populacional de idosos Dinâmicas, conflitos e proposições 214


nos diferentes bairros de Porto Alegre. No entanto, existem áreas em que esse crescimento apresenta-se mais intensificado, como o bairro Moinhos de Vento, pois no ranking nacional é o bairro que contém o maior contingente de idosos no Brasil entre as capitais brasileiras. O entendimento atual do processo de urbanização e da desaceleração do crescimento demográfico relaciona-se com a distribuição populacional nos diferentes bairros da cidade. Na próxima seção, a dinâmica imobiliária será detalhada retratandose o espaço urbano de Porto Alegre, as respectivas hierarquias urbanas nas diferentes regiões da cidade, indicando um crescimento desigual, ou seja, limitado nas áreas centrais da cidade e em expansão nas periferias. Indicadores Imobiliários e a Produção do Espaço Urbano Nesta seção, busca-se pesquisar em que medida Porto Alegre mantém o padrão tradicional centro-periferia associado à nova estrutura demográfica, ou seja, ao aumento do contingente de idosos na estrutura etária da cidade, à redução da taxa de fecundidade e ao baixo crescimento populacional da última década. Para isso, investigou-se as diferentes tipologias habitacionais, a partir do levantamento de dados do mercado formal de imóveis. A metodologia de pesquisa adotada, além da tradicional revisão bibliográfica, esteve voltada para a coleta e avaliação de dados imobiliários já editados pelo Sindicato da Construção Civil do Rio Grande do Sul (Sinduscon/RS), além de estatísticas diversas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Os dados do Censo Demográfico de 2010 indicam que a cidade dispõe de 508.456 domicílios permanentes. Os tipos de domicílios variaram entre casas e apartamentos. No Censo de 2010 foram contabilizados 237.297 apartamentos, enquanto, em 2000, eram 196.137 apartamentos, ocorrendo um aumento de 4,83%. Já os imóveis na tipologia casa, no Censo de 2010, correspondiam a 242.751 unidades, enquanto, em 2000, eram 254.052 casas, ocorrendo uma diminuição de 9,31%. Analisando-se, concomitantemente, os dados anuais disponibilizados pelo Sinduscon/RS, verifica-se também, o aumento da oferta de imóveis novos residenciais na tipologia de apartamentos. Outro dado interessante é o que mostra, em números, a tendência de verticalização da cidade, após a promulgação do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Ambiental (PDDUA, 1999). Como pode ser visto no Gráfico 2, no período de 2003 a 2010, a quantidade de imóveis residenciais verticais (apartamentos e coberturas) foi superior ao dos imóveis horizontais (casas).

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Gráfico 2 - Quantidade de imóveis novos verticais e horizontais em Porto Alegre

Elaboração: Amanda Cabette. Fonte: Sinduscon/RS, 2010.

O processo de verticalização é produto da reprodução de várias formas de capital, principalmente o financeiro e o imobiliário (SANFELICI, 2013), tendo como resultado a multiplicação do solo urbano. O processo de expansão vertical da cidade vincula-se, intrinsecamente, com o processo de urbanização, utilizando o avanço tecnológico para produzir o espaço habitado. Dessa maneira, o processo de verticalização valoriza ou sobrevaloriza o espaço urbano onde se instala. Nesta perspectiva, a localização e as tipologias da habitação estão relacionadas com a renda da população. Uma localização privilegiada pressupõe gastos significativos na compra de imóveis, que só podem ser feitos por classes de mais altos rendimentos da sociedade. Os estratos de mais baixos rendimentos habitam, geralmente, as áreas distantes do centro, o que significa que, na distribuição dos empreendimentos imobiliários, verifica-se ao mesmo tempo uma distribuição espacial dos valores da terra conformando basicamente a cidade em zonas centrais e periféricas. Através dos Censos Imobiliários do Sinduscon, pode-se identificar os principais eixos de valorização imobiliária, destacando-se os perfis socioeconômicos. Dessa maneira, a estruturação territorial de Porto Alegre apresenta-se como uma cidade aparentemente fragmentada e segregada, pautada pela valorização das áreas centrais e pela intensificação do processo de expansão em direção às periferias urbanas. Como consequência desse processo, parte da população de média e alta renda, que antes se localizava nas áreas centrais da cidade, vem se deslocando para as áreas periféricas, outrora caracterizadas pela ocupação de estratos de baixa renda. O processo de verticalização na cidade de Porto Alegre seguiu, inicialmente, o modelo clássico: iniciou nas áreas centrais estendendo-se, gradativamente, em direção às áreas periféricas. Porém, o centro continuou sendo a área mais cobiçada e valorizada para investimentos imobiliários; o que se observa é que, à medida que se afasta das áreas centrais, há uma gradual diminuição do valor dos imóveis, excetuando-se os Dinâmicas, conflitos e proposições 216


empreendimentos do tipo condomínios horizontais que tendem a criar enclaves de valorização também em áreas periféricas. Estabelecendo-se uma relação entre a produção imobiliária e a dinâmica demográfica urbana, pode-se observar que o padrão de distribuição das unidades domiciliares na cidade segue o mesmo padrão de distribuição da população, porém em maiores proporções. De acordo com os dados do Censo de 2010, quase um quarto dos domicílios estão localizados nos bairros mais centrais de Porto Alegre. O número de domicílios na cidade aumentou para cerca de 68 mil unidades, na década 2000-2010, o que corresponde a uma variação positiva de 41%. Esse incremento foi contrário à tendência de estabilização demográfica da cidade. Esta dinâmica imobiliária indica que o mercado imobiliário se manteve ativo na década, mas com maior intensidade em algumas áreas específicas (IBGE, 2010). Ainda que a população de Porto Alegre tenha crescido pouco, em termos absolutos, na última década, o Censo de 2010 apontou para um crescimento populacional mais pronunciado nas áreas periféricas. A expansão dos mercados fundiário e imobiliário, em áreas tradicionalmente consideradas de periferia, como a zona sul da cidade, é um dos fatores que explicam a produção do espaço urbano de forma mais intensiva. Essas são regiões onde houve, também, forte atuação do mercado na construção de condomínios horizontais. Indicando, assim, uma expansão do processo de urbanização da cidade em direção às áreas periféricas que, até a década passada, ainda se conformavam dentro de um padrão com características rurais (RIBES, 2011). De fato, com a institucionalização do PDDUA, em 1999, todo o território municipal passou a ser considerado cidade, direcionando a expansão urbana para a zona sul, até então, boa parte de caráter rural, e incentivando a densificação da área já urbanizada para os setores norte, nordeste e leste. Historicamente, o processo de crescimento urbano de Porto Alegre iniciase com a implantação de loteamentos de terras na periferia, através da atuação de promotores fundiários, incentivados por medidas governamentais (STROHAECKER, 2005; RIBES, 2011). Destaca-se que a localização dos mais pobres em áreas afastadas não foi só uma questão de mercado. As decisões de localização do contingente populacional de baixa renda não seguiram uma “mão invisível”, capaz de alocar eficazmente os recursos e as decisões por moradia. As políticas urbanas de regulação do uso do solo, de construção de novas unidades habitacionais e outras medidas, ajudaram a ampliar as condições para que a tradicional dualidade centro-periferia ganhasse força no espaço urbano de Porto Alegre. Torna-se evidente a configuração socioespacial pretérita do espaço intraurbano porto-alegrense: os bairros mais centrais ainda são os melhores servidos por infraestrutura e onde vivem os estratos de maiores rendimentos, enquanto nas áreas periféricas existe carência de infraestrutura e, de modo geral, é onde residem os estratos de menores rendimentos. É esta persistência na paisagem de formas espaciais Geografia

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fixas, marcadas por relações sociais, que Milton Santos chama de rugosidades “(...) as rugosidades são o espaço construído, o tempo histórico que se transformou em paisagem, incorporado ao espaço” (SANTOS, 1997, p. 138). As cidades podem ser entendidas, entre outras coisas, como um cenário de disputas por localizações (SINGER, 1980). Em Porto Alegre, a estruturação urbana segue essa tendência de espaços marcados por desigualdades socioespaciais. O modelo clássico centro-periferia não se coaduna mais à estruturação do espaço urbano de Porto Alegre na atualidade. Gera-se assim, um processo de dispersão urbana e, consequentemente, a formação de núcleos (industriais, residenciais e comerciais). A cidade, portanto, segue o padrão da divisão territorial do trabalho, baseada na valorização e desvalorização de determinadas áreas. A economia neoliberal levou a uma política de flexibilização na regulamentação do solo urbano, e, consequentemente, diminuiu a importância do planejamento urbano como instrumento integrador de ordenamento territorial. Neste sentido, os agentes vinculados ao capital imobiliário atuaram de forma precisa, valorizando e desvalorizando determinadas áreas, bairros e regiões da cidade. Consequentemente, os investimentos públicos em infraestrutura urbana são pontuais e deficientes na cidade, revelando uma estruturação urbana fragmentada e polarizada. Nesta perspectiva, fica evidente a relação entre renda e qualidade do espaço físico na configuração residencial do uso do solo na cidade, e da mesma maneira, chama a atenção para o efeito de certas regiões da cidade, que acabam por influenciar o valor de compra e venda de parcelas do solo urbano. A atuação das grandes incorporadoras imobiliárias com o ritmo intenso das construções tem produzido não só uma cidade mais fragmentada, mas também tem inflacionado o preço da terra. Pois, a complexa rede de atuações do poder econômico dos promotores fundiários e imobiliários indica um processo de urbanização associado com seus interesses, valorizando diferencialmente determinados bairros de Porto Alegre, consolidando as áreas mais centrais como locus dos estratos de renda mais altos e direcionando, indiretamente, determinados segmentos das áreas mais periféricas para os emergentes da segregação socioespacial. Neste sentido, o ordenamento territorial da cidade associado com a atuação dos grandes proprietários de terras e das grandes incorporadoras produz formas diferenciadas de valorização e ocupação nos diferentes bairros. Relacionando-se a concentração das faixas etárias de 0 a 14 anos aos bairros de Porto Alegre, evidencia-se que os responsáveis pelos domicílios localizados nas áreas mais periféricas e, consequentemente, com parcos recursos financeiros, são os que detêm maior número de crianças e jovens na composição das famílias. A estrutura familiar porto-alegrense mudou a partir da década dos anos 2000, quando se detectou que a taxa de fecundidade estava diminuindo consideravelmente e, de acordo com estimativas do Censo de 2010, a tendência de redução do aumento populacional deverá persistir nas próximas décadas.

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A partir da análise das faixas etárias dos bairros de Porto Alegre, constata-se que a estrutura demográfica não é uniforme. Há lugares que tem uma alta concentração de crianças e jovens comparada às taxas de adultos em idade ativa e ao contingente de idosos. No bairro Restinga, por exemplo, a composição da faixa etária (de 0-14 anos) corresponde a 27,43% do total dos habitantes, corroborando com a hipótese de que bairros periféricos e com estratos populacionais mais pobres mantém um alto contingente de crianças e jovens. De acordo com os dados do Censo de 2010, a cidade de Porto Alegre teve um expressivo aumento do contingente de idosos na composição da pirâmide etária. Logicamente, esse aumento da população idosa ocorre de maneira desigual na cidade, pois existe um princípio de localização na distribuição das classes sociais. O bairro Moinhos de Vento, localizado na área central da cidade, é o que apresenta o maior contingente de idosos (60 anos ou mais, representando 26,9% dos moradores). Ele apresenta uma população pertencente a estratos econômicos mais altos de rendimentos, porém sua área reduzida e alta densidade de ocupação limitam a construção de novos empreendimentos. Por sua vez, o bairro Rio Branco, contíguo ao bairro Moinhos de Vento, cedeu área para inúmeros investimentos imobiliários, o que reforça a ideia da área central da cidade ser palco de estratos mais altos de renda da sociedade e, em termos demográficos, possuir uma população idosa significativa. Destaca-se a área central da cidade, principalmente, os bairros Moinhos de Vento, Farroupilha e Cidade Baixa, por serem os mais antigos da cidade, por apresentarem boa infraestrutura, com equipamentos públicos de saúde e de lazer e onde parcela dos contingentes populacionais mais abastados reside. Em síntese, Porto Alegre está se encaminhando para um processo de estabilidade demográfica, pois este baixo crescimento populacional vem acompanhado de um envelhecimento da população. A população idosa (60 anos ou mais) da cidade aumentou 32% em relação à de 2000, passando de 160.540 para 211.896, enquanto que a população jovem da cidade (zero aos 24 anos) apresentou um decréscimo de 13,68% em relação ao censo anterior. Ainda mais impressionante é a queda populacional na faixa etária do zero aos quatro anos: 24,45% (IBGE, 2010). A Dinâmica Demográfica e a Configuração Urbana A estrutura da população urbana residente em Porto Alegre é dependente de vários fatores, dentre os quais o perfil socioeconômico que representa para este trabalho, uma relação direta com a produção imobiliária. Já que as relações capitalistas de produção são determinantes e orientam o processo de produção do espaço urbano. Neste sentido, torna-se necessário o conhecimento sobre a dinâmica do mercado imobiliário, para que possamos identificar como a transição demográfica associada com a dinâmica imobiliária incide no processo de estruturação urbana de Porto Alegre. O processo da urbanização marcado pelas formas compactas e difusas da estruturação urbana nas grandes cidades apresenta como principal elemento regulador o mercado Geografia

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imobiliário (ABRAMO, 2007). O Estado, mesmo não atuando diretamente na promoção imobiliária ou no mercado de terras, é um agente fortemente integrado à atuação desses agentes, possibilitando e, muitas vezes, viabilizando o processo de produção habitacional. A produção do espaço urbano tem como primeira consequência a mescla entre as centralidades e as áreas periféricas, locando populações de diferentes faixas etárias. Neste sentido, destaca-se a organização interna das cidades que reflete forças econômicas e um padrão (com dada racionalidade e não de forma acidental) de usos do solo ou de terras (SINGER, 1980). Em Porto Alegre, pode-se associar ao processo de ocupação urbana à ação do mercado fundiário viabilizado pelo Estado desde o final do século XIX (STROHAECKER, 2005). Uma vez que os loteadores direcionaram os principais eixos de valorização e ocupação da cidade para as áreas onde detinham glebas a serem parceladas, possibilitando a um determinado perfil socioeconômico da população a aquisição desses imóveis. Nesta ótica, até a década de 1980, as áreas mais afastadas da região central das cidades foram ocupadas pelas populações mais pobres, pois o preço dos terrenos e a menor disponibilidade de espaço na cidade concentrada eram fatores quase impeditivos de aquisição de imóveis para boa parcela da população (ABRAMO, 2007). Atualmente, segmentos das classes médias e altas procuram áreas periféricas, em busca das aspirações por maior qualidade de vida, uma vez que a deterioração do ambiente urbano dificilmente o permite, além da sensação de segurança e fuga de contatos sociais indesejados. Esse processo de crescimento urbano disperso tende a aumentar com o processo de suburbanização da cidade. De acordo com Massey (2008), o espaço urbano não pode ser indissociável do tempo; enquanto o espaço é a variável da interação, o tempo é a variável da mudança. Essa lógica se confirma na análise da estruturação urbana da cidade de Porto Alegre, de acordo com os primeiros loteamentos e parcelamentos do solo, no eixo central da cidade, onde foram gravados os bairros mais antigos da capital. Atualmente, esses bairros apresentam uma população de estratos econômicos altos e em termos demográficos, adultos em idade ativa e idosos. Em contrapartida, nas áreas periféricas foram gravados bairros com estratos populacionais jovens e de baixa renda, já que envelhecer requer uma série de necessidades e cuidados que, muitas vezes, a maior parte do contingente populacional não tem acesso. Assim, pode-se afirmar que Porto Alegre se transformou à medida que as relações socioeconômicas acompanharam à evolução do processo de urbanização da metrópole gaúcha. O espaço urbano acompanha essas transformações vividas pela sociedade. Na medida em que temos um aumento significativo de idosos na composição da pirâmide etária de Porto Alegre, de outro lado temos um aumento maciço na oferta de imóveis, com o mercado imobiliário apresentando um crescimento muito grande. Dinâmicas, conflitos e proposições 220


Logicamente, esse crescimento se dá de maneira desigual na cidade, ou seja, existe um princípio de localização tanto da distribuição das classes sociais quanto da oferta e construção de imóveis. O interessante é que, mesmo com a redução da taxa de fecundidade e o processo de envelhecimento populacional em curso na capital, há um significativo aumento no número de domicílios no período de 2000-2010. É o que mostra a informação do aumento de 67.879 domicílios no último Censo, diminuindo a média de moradores por habitação de 3,06 (2000) para 2,75 em 2010 (IBGE, 2010). Dessa maneira, a reestruturação socioespacial pode ser observada também, nas novas tipologias de moradias, como os condomínios residenciais. São exemplos emblemáticos da ação do mercado imobiliário em prol da “renovação urbana” como produtos estratégicos situados, na maioria das vezes, em regiões distantes da área central. Esses imóveis, em um primeiro momento, foram comprados a valor de baixo custo pelos incorporadores e, posteriormente, vendidos a preços altíssimos, para determinada parcela da população (RIBES, 2011). Nesse sentido, pode-se destacar as chamadas “ilhas de riqueza” em determinados bairros da cidade, atenuando o processo de segregação e fragmentação socioespacial, já que as regiões mais centrais da cidade convivem com o processo de intensa ocupação. Restando para o mercado imobiliário inovar nas estratégias de propaganda e consumo, vendendo muitas vezes os elementos segurança e paisagem natural (ABRAMO, 2007). O fenômeno da reestruturação urbana reflete o processo de urbanização difusa de Porto Alegre, podendo ser compreendida a partir da configuração socioespacial da metrópole. Analisando-se as ofertas imobiliárias residenciais, no período de 2000-2010, destaca-se o aumento considerável do número de imóveis verticais residenciais em determinadas regiões da cidade. As construções residenciais de apartamentos também estão presentes nas regiões mais distantes da área central, reafirmando o processo de urbanização difusa. Logicamente, a população pertencente aos estratos de renda mais altos tende a viver em áreas dotadas de infraestrutura e de equipamentos urbanísticos. E, na maioria das vezes, na chamada construção das “ilhas de riqueza” nas regiões dos bairros distantes da área central, a infraestrutura urbana torna-se um elemento primordial que polariza a venda desses imóveis. Dessa maneira, a cidade viabiliza a reprodução do capital imobiliário, o aumento da população na periferia significa aumento de preços da terra, o que faz pressão sobre a população mais pobre para cada vez ir morar mais longe, criando-se, assim, novas periferias (MARCUSE, 2004). A ação do mercado imobiliário recria as formas urbanas na periferia das cidades, uma vez que se torna difícil encontrar grandes áreas disponíveis na região central, consequentemente, há uma progressiva expansão da malha urbana, mantendose, dessa forma, a tendência de dispersão nos limites do perímetro urbano. A valorização imobiliária diferenciada recria as diferenciações de classe e da estrutura etária quando se trata das opções de moradia na cidade. As classes de maior estrato Geografia

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econômico podem escolher determinadas áreas, seja por proximidade do núcleo central ou até mesmo por elementos paisagísticos. Em contrapartida, a população de menor renda experimenta a diminuição da oferta de imóveis na cidade, o que implica seu deslocamento para localidades cada vez mais distantes, onde a infraestrutura urbana é menor ou inexistente. Concomitantemente, para o mercado imobiliário são áreas secundárias em termos de capital fundiário para fins especulativos, como o caso das regiões da Lomba do Pinheiro, Restinga, Rubem Berta, uma vez que, apesar de apresentarem certos setores destinados aos estratos de renda média-alta, ainda são fortemente identificados como regiões destinadas para as populações mais pobres. Nesse contexto, destaca-se a perspectiva da estruturação urbana de Porto Alegre consubstanciada no que estabelece o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Ambiental (PDDUA, 1999 e sua revisão de 2010), ao considerar todo o território municipal como área urbana. De acordo com Strohaecker (1997), a inclusão de determinadas setores do município de Porto Alegre no perímetro urbano, estaria, de certa forma, incentivando o processo de urbanização difusa. Já que existem áreas da cidade que apresentam características rururbanas, áreas com vazios urbanos que se constituem em espaços estratégicos para a valorização fundiária e imobiliária no médio e longo prazo. Parte dessa urbanização difusa e fragmentada tem na tipologia habitacional dos condomínios horizontais a sua mais recente reprodução material. Para Ueda (2005), os loteamentos que antigamente eram abertos e permitiam a livre circulação dos habitantes, hoje ignoram a malha viária urbana, se fecham para a cidade e se isolam através de grades, muros e sistemas de vigilância eletrônica. Em Porto Alegre, os condomínios residenciais horizontais estão expandindo-se rapidamente, devido às estratégias do mercado imobiliário: com promessas de segurança privativa, exclusividade social, exaltação da sustentabilidade e qualidade ambientais. Em Porto Alegre, estudos recentes mostram que a configuração de uso residencial do solo vem se modificando nas últimas décadas. Os novos empreendimentos imobiliários caracterizados pela ampla infraestrutura que oferecem já estão modificando a cidade e imprimindo novas centralidades e novas funções ao espaço urbano (RIBES, 2011). Nesse contexto, onde as interações entre os diferentes grupos sociais se tornam cada vez mais raras, e os mais pobres não têm, na maioria das vezes, o acesso facilitado às áreas onde reside a população mais rica, pode-se afirmar que os novos empreendimentos imobiliários de Porto Alegre estão acentuando a produção de áreas segregadas. Sinalizando um cenário futuro em que, potencialmente, essas novas tipologias residenciais venham mesmo a redefinir, no âmbito das práticas sociais, o próprio conceito de estruturação urbana.

Dinâmicas, conflitos e proposições 222


Considerações Finais O estudo procurou contribuir para a compreensão da produção do espaço urbano de Porto Alegre, identificando os principais períodos de crescimento populacional, analisando a configuração espacial da cidade a partir das práticas dos promotores fundiários e imobiliários, mediadas pela ação do Estado, e relacionando com a dinâmica demográfica existente nos diferentes bairros. O processo de envelhecimento populacional iniciado na área central e nos bairros do seu entorno apresenta uma tendência de expansão, vinculado aos principais eixos de valorização imobiliária recentes, caracterizando um processo de ocupação fragmentado, adicionado à fragmentação socioespacial. A evolução da cidade associada com a atuação dos grandes proprietários de terras e das grandes incorporadoras produz formas diferenciadas de valorização e ocupação no espaço urbano. Nesta perspectiva, entende-se que o advento da transição demográfica incide justamente sobre a base de quase todos os processos, econômicos, sociais, políticos e estratégicos, ou seja, da própria população. Como resultante, os impactos serão inevitáveis, principalmente no âmbito do poder público, a quem cabe prover a assistência social. Então, torna-se extremamente prioritário conhecer a composição etária da população da cidade. A maior participação relativa do contingente idoso vem atingindo todas as localidades, merecendo também atenção nas áreas periféricas. O cenário que se vislumbra aos porto-alegrenses que entrarão em idades avançadas nas próximas décadas indica a necessidade de novas políticas sociais que deem aos idosos, condições para desfrutarem de uma vida com dignidade. A longevidade dos indivíduos decorre do sucesso de conquistas no campo social, portanto, o processo de envelhecimento populacional deve ser visto como um fenômeno que demanda novos serviços, benefícios e atenções que se constituem em desafios para o Estado, para a sociedade civil e para todas as famílias do presente e do futuro. Referências ABRAMO, Pedro. Mercado e ordem urbana. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 2007. BORSDORF, Axel (2003). Cómo modelar el desarrollo y la dinámica de la ciudad latinoamericana. EURE (Santiago). Vol.29, n.86, pp. 37-49. ISSN 0250-7161. CASTELLS, Manuel. A questão urbana. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1893. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Censos Demográficos de 1970, 2000 e 2010. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (2012): Censo demográfico 2010: base de informações por setor censitário. Porto Alegre, Rio de Janeiro, CD-ROM. MASSEY, Doreen. Pelo espaço - uma nova política da espacialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008. MARCUSE, P. Enclaves, sim; guetos, não: a segregação e o Estado. Espaço &Debates, v. 24, n. 25, 2004. Geografia

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PREFEITURA MUNICIPAL DE PORTO ALEGRE (1979): 1º PDDU - Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano de Porto Alegre, Lei complementar nº 43 de 21/06/79. PREFEITURA MUNICIPAL DE PORTO ALEGRE (2000): Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Ambiental, Lei complementar nº 434/99. RIBES, Júlia Fagundes. Promoção Imobiliária e Geografia de Centralidades: um estudo da oferta de imóveis novos em Porto Alegre (1999-2010). Dissertação (Mestrado em Planejamento Urbano e Regional)- PROPUR/UFRGS, Porto Alegre, 2011. SANFELICI. Daniel. Financeirização e a produção do espaço urbano no Brasil. In: Revista Latinoamericana de Estudios Urbano Regionales. Chile, n 118, setembro 2013, p. 27-46. SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1997. SINDICATO DA INDÚSTRIA DA CONSTRUÇÃO CIVIL NO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL (Sinduscon). Porto Alegre, abril de 2015. Disponível em: www.sinduscon-rs.com.br. Acesso em: 22 mar. 2016. SINGER, Paul. O uso do solo urbano na economia capitalista. In: Boletim Paulista de Geografia. São Paulo: AGB, nº 57, dez.1980, págs. 77-92. SOARES, Paulo Roberto Rodrigues; FEDOZZI, Luciano (orgs.). Porto Alegre: transformações na ordem urbana. Porto Alegre: Observatório das Metrópoles, 2015. STROHAECKER, Tânia Marques. Atuação do público e do privado na estruturação do mercado de terras de Porto Alegre (1890-1950). Scripta Nova. Barcelona: Universidad de Barcelona, vol. IX, n. 194 (16), 2005.

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Capítulo 3 Análise da acessibilidade a equipamentos públicos de ensino utilizando técnicas de geoprocessamento: bacia hidrográfica do Arroio do Salso em Porto Alegre - RS Pedro Verran Tânia Marques Strohaecker O processo de urbanização é um fenômeno que abrange grande parte do território brasileiro, podendo-se afirmar que o Brasil é um país predominantemente urbano desde a década de 1970. Embora esse fenômeno tenha sido acompanhado por uma melhora significativa em índices econômicos e sociais, esses parâmetros estatísticos muitas vezes mascaram realidades da escala local, nas quais a população está sujeita a diversos problemas socioeconômicos e ambientais, não percebidos em uma macroescala de análise. Dessa forma, torna-se importante o desenvolvimento de pesquisas com o intuito de identificar problemas na escala local, conferindo um maior nível de detalhamento no planejamento e na tomada de decisão em ações de políticas públicas, afinal, são os agentes atuantes na escala municipal os principais organizadores de políticas públicas para os cidadãos. É importante destacar que nem todos os serviços públicos têm a mesma importância em termos de controle comunitário. Segundo Guimarães: A necessidade de controle de um serviço aumenta com o envolvimento do público ou o interesse com o aumento do serviço. Devido à sua importância no orçamento familiar e valor dado pela comunidade a serviços, tais como educação, recreação e saúde, estes são, provavelmente, os mais usuais a serem controlados. (GUIMARÃES, 2004, p. 232)

Neste capítulo, o tipo de serviço público escolhido para se realizar a análise socioespacial foi o de educação básica, que contempla os níveis de ensino infantil, fundamental e médio. A partir do pressuposto de que a presença do aluno na escola seja fundamental para que ocorra o processo de aprendizagem, pode-se definir o fator de acessibilidade no deslocamento dos alunos às escolas como elemento fundamental para o conjunto de estratégias a serem tomadas para melhorar a qualidade do sistema de ensino. Segundo Nahas et al (2006, p. 15), acessibilidade é uma variável que decresce com o tempo de deslocamento, estando diretamente relacionada à distância a ser percorrida. Dessa forma, realizou-se uma análise do grau de acessibilidade espacial à rede escolar de ensino básico presente na bacia hidrográfica do Arroio do Salso, no município de Porto Alegre, com relação à população do seu entorno. Para isso, foram Dinâmicas, conflitos e proposições 226


utilizados dados demográficos do Censo de 2010, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), informações do Censo Escolar de 2013, realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa Anísio Teixeira (INEP), assim como ferramentas de Geoprocessamento. O tipo de investigação que norteou a presente pesquisa levou em consideração a análise socioespacial, visto que esta possibilita investigar a configuração demográfica na escala intraurbana. Por fim, foi possível analisar a rede escolar na referida área de estudo, e suas condições de acessibilidade em relação à população do entorno, podendo-se identificar áreas com maior necessidade de implantação de equipamentos públicos de ensino básico. A bacia hidrográfica do Arroio do Salso se localiza na zona sul de Porto Alegre, entre as coordenadas 3005’10’’ e 30012’25’’ de latitude sul e 51013’50’’ e 5105’25’’ de longitude oeste, em uma área de 93,6 km² (Figura 1), destacando-se por ser a maior bacia hidrográfica do município.

Figura 1 – Mapa de localização da área de estudo.

Na bacia estão inseridos, total ou parcialmente, 12 bairros do município de Porto Alegre, que são: Lomba do Pinheiro, Restinga, Hípica, Serraria, Ponta Grossa, Belém Velho, Cascata, Chapéu do Sol, Guarujá, Lajeado, Campo Novo e Aberta dos Morros. A área da bacia apresenta uma considerável preservação de seu ambiente natural, apresentando muitos trechos com vegetação nativa. Apesar da existência desses espaços naturais preservados na bacia do Salso, observa-se a expansão recente da urbanização nos limites da bacia, além de áreas em que a urbanização encontra-se bem consolidada, como nos bairros Restinga e Lomba do Pinheiro (HAHN, 2012), embora a parte mais densamente urbanizada deste último bairro não esteja localizada dentro do perímetro da bacia. O Geoprocessamento como Ferramenta Metodológica e Operacional Para que o poder executivo municipal consiga fazer uma melhor aplicação dos recursos financeiros no sistema de serviços públicos, torna-se necessário o uso de Geografia

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metodologias que auxiliem na avaliação da realidade local. Algumas metodologias que podem auxiliar nesse processo são as que envolvem o uso do Geoprocessamento, entendido como um conjunto de ferramentas, conceitos e técnicas que viabiliza a obtenção de subsídios para a gestão territorial através da manipulação de dados geográficos digitais. Essa área do conhecimento tem se mostrado de grande utilidade para a gestão pública, pois possibilita uma eficiência maior no planejamento dos serviços públicos prestados à população. Nesse sentido, apresenta-se, a seguir, o caminho metodológico percorrido para contemplar a análise socioespacial dos equipamentos de educação inseridos na bacia hidrográfica do Arroio do Salso, em Porto Alegre, bem como a operacionalização da pesquisa empreendida. Análise espaço-temporal da expansão urbana na área de estudo Como ponto de partida, objetivou-se analisar o crescimento de áreas urbanizadas na bacia hidrográfica do Arroio do Salso, no período de 2002 a 2013. As informações referentes ao ano de 2002 não precisaram ser geradas, visto que para a elaboração do Diagnóstico Ambiental de Porto Alegre, Hasenack et al. (2008) realizaram a vetorização de toda a área urbanizada do município a partir de um mosaico de imagens de satélite Quickbird obtidas no período de março de 2002 a março de 2003 (op. cit., 2008, p. 67). Dessa forma, foi realizada a sobreposição do shape de área urbanizada do Diagnóstico Ambiental sobre o mosaico de imagens de satélite do Google Earth, na área da Bacia do Salso para então ser realizada a vetorização das áreas em que houve expansão da mancha urbana. Evidentemente, os polígonos de áreas urbanas que transcendiam os limites da bacia tiveram que ser cortados de acordo com o perímetro da área de estudo. Identificação dos equipamentos públicos de educação Para a realização dessa etapa, foi realizada uma busca pelo endereço dos equipamentos públicos de educação no banco de dados do Censo Escolar de 2013, disponível no site do INEP. Também foi extraída a informação de matrículas por escola referente ao ano de 2013. Após, foram utilizadas as ferramentas Google Earth e Google Street View para localizar os equipamentos e inserir os marcadores com as coordenadas geográficas específicas dos equipamentos de ensino. Nos equipamentos que não puderam ser localizados pelas ferramentas do Google, houve a necessidade de se fazer o registro em campo, com um aparelho GPS. Como a área de uma bacia hidrográfica urbana não necessariamente coincide com o limite dos bairros, foram também considerados os equipamentos públicos de ensino do entorno da área da bacia. Deve-se salientar que para a presente pesquisa, somente foram considerados na análise socioespacial os equipamentos que estavam registrados no Censo Escolar do INEP 2013. Após essa etapa, os marcadores com a localização geográfica dos

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equipamentos foram exportados para ArcGis 10.1, agregando a cada escola o seu respectivo número de matrículas. Criação dos raios de abrangência desses equipamentos Para a criação dos raios de abrangência dos equipamentos de educação, foi utilizada a metodologia de Brau, Merce e Tarrago (1980), que sintetiza os raios de abrangência dos equipamentos urbanos, fornecendo uma hierarquia do serviço pela localização da unidade em relação à população do entorno, conforme indica o Quadro 1. Acessibilidade

Equipamento de ensino infantil

Excelente

Menos de 250m

Ótima

250m – 500m

Regular

500m – 750m

Baixa

750m – 1000m

Péssima

Mais de 1000m

Quadro 1 – Determinação das distâncias dos equipamentos de educação Fonte: Adaptado de Brau, Merce e Tarrago (1980).

Para a geração dos raios de abrangência, foi gerado um buffer nos pontos com a localização dos equipamentos de ensino, através do ArcGis 10.1. O parâmetro de referência do grau de acessibilidade adotado (Brau, Merce e Tarrago, 1980) refere-se a uma distância média de deslocamento que uma pessoa realiza em 5 minutos de caminhada, o que equivale a 250 metros, considerado como de acessibilidade excelente. Nesse sentido, as medidas definidas para a educação infantil e o ensino fundamental diferem do ensino médio, tendo em vista que os alunos deste último nível possuem maior facilidade de deslocamento – considerando-se a idade - para se deslocarem através de transporte coletivo. Desagregação espacial dos setores censitários Nesta etapa, foi realizada a desagregação espacial dos dados dos setores censitários do IBGE em relação às áreas urbanizadas, com a finalidade de obter uma melhor estimativa da distribuição demográfica na área da bacia. Para isso foi utilizado o método dasimétrico. De acordo com Silveira & Kawakubo (2013), no método dasimétrico apenas as áreas habitadas são consideradas no cálculo da densidade demográfica. As informações relacionadas ao uso da terra são extraídas de fontes complementares e, posteriormente, são combinadas com os dados do censo demográfico por meio de ferramentas de Geoprocessamento. Procura-se, com a adoção do método dasimétrico, Geografia

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a construção de um mapa que represente de maneira mais realística possível a distribuição espacial da população no espaço intraurbano. Dessa forma, foi realizada a intersecção entre o shape da malha digital dos setores censitários do IBGE com o shape gerado da área urbanizada de 2013. Através disso, foi obtido o shape da malha digital dos setores com apenas as áreas efetivamente urbanizadas. Assim, os dados de população puderam ser distribuídos de modo desagregado, utilizando-se o cálculo de densidade demográfica na escala do setor censitário. Dessa maneira, obteve-se a base digital do mapa dasimétrico da Bacia Hidrográfica do Arroio do Salso, na qual se pode relacionar a população em faixa etária escolar para cada nível de ensino, assim como outras variáveis demográficas e socioeconômicas. Essa mesma metodologia também foi aplicada para mensurar a população em faixa etária escolar dentro de cada nível de acessibilidade, conforme a metodologia de raios de abrangência. Geração de mapas temáticos e gráficos Após a geração de todas as informações necessárias para a presente pesquisa, os dados espaciais foram editados no layout do ArcGis 10.1., para a geração dos mapas temáticos. Concomitantemente a isso, esses dados espaciais foram exportados para o Excel onde foram gerados gráficos que indicam a população em faixa etária escolar dentro de cada nível de acessibilidade, com relação à população total dessa mesma faixa etária para toda a bacia. Análise dos mapas temáticos e gráficos gerados para fins de proposições Esta etapa consistiu na análise de todas as informações sistematizadas, para fins de proposições. Através dos mapas gerados, foi possível indicar as áreas da bacia com carência/excesso de equipamentos públicos de ensino e as áreas com melhor potencial para a implantação de novas escolas. Já os gráficos produzidos auxiliaram na interpretação dos mapas ao fornecerem os dados de população em cada nível de acessibilidade aos equipamentos públicos de ensino. Dessa forma, os mapas possibilitaram indicar os setores da Bacia do Arroio do Salso que estariam contribuindo para os resultados do gráfico. Por serem utilizadas também as informações de matrícula por escola, foi possível ter uma compreensão do balanço geral de população por matrículas por faixa etária escolar em toda a área da bacia, para cada nível de ensino. Como parâmetro para a análise das informações fornecidas pelos produtos gerados na presente pesquisa, utilizou-se as metas para a educação presentes no Plano Nacional de Educação (PNE), de 2014.

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Análise Socioespacial da Rede Escolar da Bacia Hidrográfica do Arroio do Salso A análise da acessibilidade aos equipamentos públicos de educação foi realizada através da interpretação de mapas e gráficos gerados para cada nível de ensino. Para fins de compreensão, nas Figuras 2 e 3, a letra “A” corresponde ao número de creches; a letra “B” corresponde ao número de pré-escolas; a letra “C” ao número de escolas de ensino fundamental e, finalmente, a letra “D” corresponde ao número de escolas de ensino médio. Ensino infantil O ensino infantil se subdivide em creches (0 a 3 anos) e pré-escolas (4 a 5 anos). No total foram encontrados 63 equipamentos de ensino infantil, em sendo que 53 desses equipamentos contemplavam o serviço de creche e 61 com serviço de préescola. a) Creches - Conforme mostra o Mapa A da Figura 2, pode-se perceber uma concentração maior de creches no bairro Restinga e um número relativamente reduzido de creches nos setores oeste e noroeste da área de estudo. Destaca-se que os bairros Aberta dos Morros e Hípica, ambos com grande acréscimo de urbanização no período analisado (2002-2013), apresentaram em conjunto apenas três creches. Na análise do Gráfico A da Figura 3, percebe-se que a localização das creches na área da bacia apresenta-se com uma boa distribuição espacial, o que contribui para o reduzido percentual (16%) de crianças de 0 a 3 anos a mais de 1.000 metros de distância da creche mais próxima. No entanto, além da questão da acessibilidade em termos de distância entre residência/creche, é importante considerar também os dados da população total em relação ao número de matrículas nas creches, visto que a análise da acessibilidade realizada de forma individual não indica o grau de saturação do serviço de educação na área de estudo. Os dados de população e matrícula do Gráfico A da Figura 3 indicam um total de 7.528 habitantes (IBGE, 2010) com idade entre 0 e 3 anos, para um total de 2.315 matrículas em creches (INEP, 2013), o que fornece uma densidade de 3,25 habitantes por matrícula. Enfim, esses dados apontam que somente 30% das crianças de 0 a 3 anos de idade são contempladas com matrículas nas creches com influência na área da bacia. Comparando-se esse percentual com a meta 1 do PNE 2014, que visa ampliar a oferta de educação infantil em creches de forma a atender, no mínimo, 50% das crianças de 0 a 3 anos, em todo o Brasil, até 2016, chega-se a uma observação importante: o cumprimento dessa meta na área da bacia apresenta-se distante, visto que exigiria uma grande transferência de recursos para a ampliação e construção de novas creches em um curto espaço de tempo.

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Situação alarmante foi registrada na área que representa os bairros Aberta dos Morros e Hípica. A área desses dois bairros apresenta, em conjunto, 1.663 crianças de 0 a 3 anos para um total de 72 matrículas, o que representa um total de apenas 4% de crianças matriculadas em creches. Nesse sentido, sugere-se que a ampliação do número de novas creches deva ocorrer conforme indicam as marcações do Mapa A da Figura 2. b) Pré-escolas - Pelo fato de geralmente o mesmo equipamento de ensino infantil oferecer o serviço de creche e pré-escola, as observações realizadas anteriormente no mapa de creches são também apropriadas ao mapa de pré-escolas (Mapa B da Figura 2). Nesse sentido, uma estratégia pertinente seria a construção de equipamentos que oferecessem serviços de creche e pré-escola em conjunto. No Gráfico B da Figura 3 percebe-se uma melhora com relação ao gráfico de acessibilidade às creches. Enquanto 34% das crianças de 0 a 3 anos apresentavam uma acessibilidade excelente com relação às creches, o percentual subiu para 41% no gráfico de acessibilidade às pré-escolas. Isso se deve ao fato de que existem oito equipamentos de pré-escolas a mais do que de creches, além do fato de que a pré-escola contempla uma fração menor da população, em termos de faixa etária (4 a 5 anos). Já o percentual de acessibilidade péssima se manteve o mesmo. Os dados de população e matrícula mostrados no Gráfico B da Figura 3, indicam um total de 3.919 habitantes (IBGE, 2010) com idade entre 4 e 5 anos, para um total de 2.230 matrículas em pré-escolas (INEP, 2013), o que gera uma densidade de 1,76 habitantes por matrícula. Esses dados assinalam uma melhora significativa em relação às creches: se nestas o percentual de atendimento obtido foi de 30%, nas pré-escolas obteve-se 57%. No entanto, com relação à meta de melhoria no acesso às pré-escolas, a meta 1 do PNE 2014 prevê a universalização, até 2016, da educação infantil na pré-escola para as crianças de 4 a 5 anos de idade. Nesse sentido, a meta pretendida está longe também de ser atingida dentro do prazo previsto. Uma questão que deve ser levada em consideração, principalmente na ampliação do ensino infantil como um todo, é a dinâmica demográfica na área de estudo. Levando-se em consideração o fato de que há uma tendência a menor taxa de fecundidade na Bacia Hidrográfica do Arroio do Salso, se fortalece a ideia de que a construção de novos equipamentos de ensino deva ocorrer principalmente nas localidades onde há uma extrema carência desse serviço. Nesse sentido, assim como os resultados encontrados para as creches, sugere-se que a construção das próximas pré-escolas deva ocorrer, principalmente, na região dos bairros Hípica e Aberta dos Morros.

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Figura 2 – Mapas de acessibilidade das escolas de ensino básico.

Ensino Fundamental O ensino fundamental contempla crianças na faixa de 6 a 14 anos. Foram registradas 38 escolas com influência na área de estudo. A análise do Mapa C da Figura 2 indica que há uma boa distribuição espacial das escolas na área da bacia, podendose perceber que a maior parte das ocupações urbanas encontra-se a uma distância razoável do equipamento de ensino fundamental mais próximo. Na análise do Gráfico C da Figura 3, observa-se que a localização das escolas de ensino fundamental na área da bacia apresenta uma boa distribuição espacial, o que contribui para o reduzido percentual (17%) de crianças de 6 a 14 anos, a mais de 1.000 metros de distância da escola mais próxima. Os dados de população e matrícula do Gráfico C da Figura 3 assinalam um total de 20.159 habitantes (IBGE, 2010) com idade entre 6 e 14 anos, para um total de 24.715 matrículas em escolas de ensino fundamental (INEP, 2013), o que produz uma densidade de 0,82 habitantes por matrícula. Esses dados apontam que, para 100% das crianças com idade entre 6 e 14 anos residentes na área da bacia, existem matrículas suficientes para o ensino fundamental. Isso significa o cumprimento da meta 2 do PNE 2014, a qual estabelece a necessidade de universalização do ensino fundamental de 9 anos para toda a população de 6 a 14 anos. Geografia

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No entanto, não se pode pensar que os alunos que residem dentro da área da bacia necessariamente estudam dentro do seu perímetro. Evidentemente, grande parte da população sequer tem conhecimento desse tipo de divisão física do espaço, o que levase a afirmar que há um grande fluxo de estudantes para dentro e para fora da bacia hidrográfica, na busca de vagas em estabelecimentos de ensino em todos os níveis. Esse fluxo torna-se mais intenso na medida em que as crianças adquirem autonomia para o deslocamento, sendo restrito no ensino infantil e mais comum nos níveis do ensino fundamental e médio. Dessa forma, os resultados indicam que a Bacia Hidrográfica do Arroio do Salso é uma área que oferece um grande número de vagas de ensino fundamental para estudantes que não necessariamente residem dentro do seu perímetro. Por fim, constata-se que para o ensino fundamental não há necessidade de implantação de novos equipamentos de educação na área de estudo.

Figura 3 – Gráficos com os níveis de acessibilidade às escolas de ensino básico.

Ensino Médio O ensino médio contempla adolescentes de 15 a 17 anos. Foram registrados seis equipamentos com oferta de vagas para o ensino médio, sendo que desse total, quatro estão localizados no bairro Restinga. Nesse sentido, através da análise do Mapa D da Figura 2, observa-se uma significativa centralização das escolas de ensino médio nesse bairro, resultado, certamente, das demandas dessa comunidade e por apresentar, também, as maiores densidades demográficas da bacia. Por outro lado, os bairros: Hípica, Aberta dos Morros, Lageado, Chapéu do Sol, Ponta Grossa, a localidade na divisa entre o bairro Belém Velho e a Lomba do Pinheiro, assim como diversas áreas Dinâmicas, conflitos e proposições 234


urbanizadas no setor nordeste da bacia, apresentam carências de equipamentos para o ensino médio. No Gráfico D da Figura 3, percebe-se uma acessibilidade péssima (32%), superior ao nível de acessibilidade excelente (23%). No entanto, bastaria a construção de apenas mais uma escola de ensino médio, de preferência na divisa entre os bairros Hípica e Aberta dos Morros, para que houvesse uma melhora significativa nos percentuais de acessibilidade para o ensino médio na área de estudo. Os dados de população e matrícula do Gráfico D da Figura 3 indicam um total de 6.735 habitantes (IBGE, 2010) com idade entre 15 e 17 anos, para um total de 2.378 matrículas em escolas de ensino médio (INEP, 2013), o que fornece uma densidade de 2,83 habitantes por matrícula. Com relação ao número de matrículas registradas, tem-se um percentual de 35% de matrículas para o total de adolescentes na área de estudo. No entanto, diferentemente dos níveis de ensino infantil e fundamental, é comum nessa faixa etária (dos 15 aos 17 anos) existirem indivíduos que ainda estejam matriculados no ensino fundamental, colaborando, inclusive, para o elevado número de matrículas neste nível de ensino. Nesse sentido, os índices de reprovação, provavelmente, influenciaram diretamente no número de matrículas oferecido pelo ensino médio. Entende-se que seja por esse motivo que a meta 3 do PNE 2014, a qual trata da questão do ensino médio, se diferencie das metas do ensino infantil e fundamental. Através dessa meta, pretende-se universalizar, até 2016, o atendimento escolar para toda a população de 15 (quinze) a 17 (dezessete) anos e elevar, até o final do período de vigência deste PNE, a taxa líquida de matrículas no ensino médio para 85%. Percebe-se que somente no ensino médio é utilizado o conceito de taxa líquida de matrículas. No entanto, a presente pesquisa não utilizou dados que possibilitassem a análise da faixa etária dos estudantes matriculados no ensino médio, inviabilizando essa investigação de modo mais aprofundado. Por fim, os resultados encontrados para o ensino médio sugerem que a próxima escola a ser implantada na região deva estar a uma distância média entre os bairros Aberta dos Morros e Hípica, por serem estes os bairros que apresentam o maior contingente de adolescentes de 15 a 17 anos de menor acessibilidade aos equipamentos de ensino médio, além de ser uma das áreas que tem apresentado a maior expansão da urbanização em toda a bacia. Considerações finais O tema deste estudo surgiu com o intuito de servir de subsídio para futuros trabalhos de análise de redes escolares em escala municipal, através do mapeamento socioespacial dos equipamentos públicos de ensino na área da Bacia Hidrográfica do Arroio do Salso, no município de Porto Alegre (RS). De uma forma geral, constatou-se que a metodologia de Brau, Merce e Tarrago (1980), referente aos raios de abrangência dos equipamentos de ensino básico, aliadas Geografia

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às ferramentas de geoprocessamento e, mais especificamente, às técnicas de desagregação espacial dos dados do Censo do IBGE, mostraram-se eficientes na elaboração da análise socioespacial urbana, pois foi possível identificar as áreas que necessitam, com maior ou menor grau de urgência, da implementação de escolas de ensino infantil e ensino médio na Bacia Hidrográfica do Arroio do Salso. É importante destacar-se que as metas do PNE 2014 foram fundamentais para nortear os resultados extraídos da presente pesquisa. No entanto, tais metas são estabelecidas para todo o território nacional. Nesse sentido, a proposta de análise interescalar apresentada no trabalho investigatório mostrou como a mudança do nível de escala proporciona uma alteração nos resultados. Dessa forma, entende-se que é de competência da gestão pública municipal de Porto Alegre detalhar e adaptar as mudanças necessárias na educação básica dentro do seu território, por meio da elaboração do seu respectivo Plano Municipal de Educação (PME), visto que são os atores locais que estão envolvidos na compreensão dos problemas de escalas mais específicas e que tem o papel de diagnosticar a realidade educacional concreta, algo que dificilmente será alcançado somente com as políticas públicas de caráter nacional e/ou estadual. Referências BRASIL. Lei nº 13.005, de 25 de junho de 2014. Aprova o Plano Nacional de Educação PNE e dá outras providências. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/_Ato2011-2014/2014/Lei/L13005.htm >. Acesso em: 23 set. 2014. BRAU, L.; MERCE, M.; TARRAGO, M. Manual de urbanismo. Barcelona, LEUMT, 1980. GUIMARÃES, P. P. Configuração urbana: evolução, avaliação, planejamento e urbanização. São Paulo: ProLivros, 2004. HAHN, A. R. Relatório técnico da bolsa de iniciação científica (BIC-Fapergs), 2012. Orientadora: Tânia Marques Strohaecker. HASENACK, Heinrich et al. (Coord.). Diagnóstico Ambiental de Porto Alegre: Geologia, Solos, Drenagem, Vegetação e Ocupação. Porto Alegre: Secretaria Municipal do Meio Ambiente, 2008. 84 p. Disponível em: http://www.ecologia.ufrgs.br/labgeo/arquivos/Publicacoes/Livros_ou_capitulos/2008/ Hasenack_et_al_2008_Diagnostico_ambiental_de_Porto_Alegre.pdf. Acesso em: 12 de novembro, 2016. IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Base de informações do Censo Demográfico 2010: Resultados do Universo por setor censitário. Rio de Janeiro: IBGE, 2011. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/redeipea/images/pdfs/base_de_informacoess_por_setor_cen sitario_universo_censo_2010.pdf. Acesso em: 09 de abril, 2016. INEP, Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Censo Escolar: O que é o censo escolar? Brasília: INEP 2011. Disponível em: http://portal.inep.gov.br/basica-censo. Acesso em: 03 de agosto, 2016.

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Capítulo 4 Transformações no padrão de habitação do 4º distrito de Porto Alegre Pedro Toscan Pittelkow Contassot Tânia Marques Strohaecker A concepção deste capítulo surge à luz de observações empíricas realizadas no 4º Distrito de Porto Alegre. A paisagem local se modifica na medida em que os atores que detém papel fundamental na transformação da área exprimem novos ensejos para o seu funcionamento, buscando torná-la mais lucrativa e atrativa para novos investimentos. Os vetores desses interesses podem apontar para direções nem sempre concordantes no que tange às decisões de planejamento e gestão urbanas, de forma que os cenários gerados imprimem marcas no espaço da cidade, que afetam diretamente o modo de vida daqueles que ali habitam, trabalham e circulam. Distinta no espaço metropolitano por abrigar boa parte da antiga produção industrial, que se dispersou em direção a outros municípios no último quarto do século XX, a área do 4º Distrito de Porto Alegre está a passar por transformações tanto na sua formaaparência quanto na sua forma-conteúdo. Conforme Santos: “os modos de produção escrevem a história no tempo e as formações sociais escrevem-na no espaço” (SANTOS, 1977, p. 88). Essas transformações não ocorrem de forma aleatória, porque remontam a um contexto econômico e social, que se deve compreender para fazer apontamentos do que há por trás dessas ações, lideradas pela iniciativa privada e pelo poder público. O que se pretende é identificar quais são os principais agentes envolvidos no processo, discorrer sobre a dinâmica dessa transformação e suas implicações na dinâmica socioespacial do 4º Distrito. A delimitação da área de estudo vai ao encontro da apresentada em projetos de revitalização, disponíveis no endereço eletrônico da Prefeitura de Porto Alegre. O 4º Distrito é uma área muito conhecida dos porto-alegrenses mais antigos por seu caráter industrial, concentrando fábricas (muitas delas atualmente desativadas), depósitos e armazéns, nos principais eixos viários que o cruzam. Também se encontram usos residenciais unifamiliares e multifamiliares com poucos andares, localizados nas ruas adjacentes. Ele compreende a totalidade dos bairros Farrapos e Humaitá, ao norte, e parte dos bairros Floresta, São Geraldo, Navegantes e Marcílio Dias, a sul (Figura 1).

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Figura 1 – Localização do 4º Distrito de Porto Alegre com seus principais marcos referenciais. Fonte: PMPA/SPM. Disponível em: <http://www2.portoalegre.rs.gov.br/spm/default.php?p_secao=150>

A Área 1, ao sul, em amarelo, é chamada de Perímetro Preferencial, onde os principais objetivos são a revitalização urbana e a reconversão econômica. A área 2, no centro, em rosa, é o Perímetro de Transição, onde se pretende qualificar o espaço público e resgatar a conexão entre a orla e a área do entorno da Igreja Nossa Senhora dos Navegantes. A área 3, ao norte, em laranja, é o Perímetro PIEC (Programa Integrado Entrada da Cidade)/Arena do Grêmio, onde o foco é o acesso à cidade e à habitação, o desenvolvimento socioeconômico e a integração metropolitana. A motivação para compreender o papel do 4º Distrito e enxergar nele uma hipótese de gentrificação passa pelo entendimento de que ele se insere em um contexto muito mais amplo da dinâmica urbana como um todo, do contexto socioeconômico e da relação local-global. Sabe-se que o fenômeno não é novo: cidades na Europa e na América do Norte forneceram as bases no século anterior para a repetição de práticas que se experimentam agora na América Latina, baseando-se nas experiências de cidades como Barcelona, Londres e Baltimore. Acredita-se que essa estandardização da cidade contemporânea é nociva à preservação da cultura e da afirmação de identidades locais, o que abre uma possibilidade de discussão sobre qual o modelo de cidade que se busca e quais as medidas, amparadas pela legislação municipal, que Geografia

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devem ser tomadas para evitar esta homogeneização que paira sobre os espaços centrais. A área em questão é a campeã em destino de recursos e verbas públicas, recebendo R$ 40 milhões no período de 2006 a 2011 (REVISTA PENSEIMÓVEIS, 2011). Isso indica que ela deve ser um dos principais vetores de crescimento da cidade. Esse processo traz consigo uma série de reurbanizações, remoções e mudanças de perfil dos bairros envolvidos, que são camufladas por propagandas de uma melhoria “para todos”. O aumento do custo de vida que se verifica, a partir dos investimentos públicos e privados que valorizam a área, torna inviável a permanência dos habitantes originais. A discussão acerca desses processos será realizada após uma caracterização histórica da área de estudo. Da Prosperidade ao Abandono: Antecedentes O início da ocupação das adjacências do bairro Navegantes remonta ao século XIX, então uma sesmaria concedida a Dom Diogo de Souza, no ano de 1814, com o objetivo de promover o desenvolvimento da agricultura. Porém, só a partir de 1824 a área ganhou importância significativa, com o início da colonização alemã, porque dali zarpavam os barcos que conduziam a outras localidades no Rio dos Sinos. Esse fluxo de pessoas de Porto Alegre em direção a norte e a leste propiciou a instalação de oficinas e choupanas de artesanato (MÜLLER, 1969). Os primeiros arraiais surgiram após a Revolução Farroupilha, configurando novos centros de interesse na cidade, entre eles o arraial dos Navegantes. Um dos marcos foi a construção da estrada de ferro, que partia do Caminho Novo (atual Rua Voluntários da Pátria) em direção ao município de São Leopoldo, em 1874. A partir do século XX, a área se consolida como polo de caráter industrial. A topografia plana, as facilidades de infraestrutura e a proximidade do centro da cidade, que realiza uma transição em direção à região metropolitana, estão entre os fatores que podem ser citados para o desenvolvimento local. As décadas de 1940 e 1950 foram caracterizadas por uma ampliação de espaços ocupados por loteamentos irregulares e malocas, denominação da época para as habitações precárias. Este aumento é reflexo de uma série de transformações no espaço urbano brasileiro, relacionadas ao contexto econômico da época. O período compreende a expansão da atividade industrial brasileira, que efetivou a migração campo-cidade em busca de oportunidades de emprego; alia-se a isso o cercamento dos campos e a mecanização das lavouras, que demandavam um número cada vez menor de trabalhadores. A consequência foi a impossibilidade de absorção de toda a mão de obra disponível, que não se tratava apenas dos imigrantes vindos do interior do estado, mas também da própria cidade de Porto Alegre, que crescia rapidamente. Mesmo para os operários fabris, as condições para habitação eram bastante onerosas nos loteamentos regulares. Dinâmicas, conflitos e proposições 240


Outros fatores que corroboram para o contexto de aumento das habitações precárias foram a conjuntura econômica da época, caracterizada por baixos salários, alto índice de subemprego e crescente encarecimento do solo urbano em função do seu valor de uso, ou seja, infraestrutura de serviços, como eletricidade, esgoto e acessibilidade aos meios públicos de transporte. A situação da moradia cada vez mais conflituosa foi o ensejo para a discussão de elaboração de um Plano Diretor no início dos anos quarenta, que pretende atingir objetivos de planejamento em médio prazo. Lançado somente em 1959, o Plano Diretor adotou um sistema de zoneamento que orientou a distinção do uso do solo para comércio e serviços, habitação e indústria. Além disso, entendia a cidade como portadora de um sistema de circulação apoiado em vias radiais e perimetrais, fornecendo as bases para uma ocupação mais ordenada do solo urbano na cidade de Porto Alegre (D’ÁVILA, 2000). Nesta classificação, o 4º Distrito, quase como um todo, foi enquadrado como área preponderante de atividades industriais. Essa expansão do distrito industrial também levou a uma ocupação, por parte da população de baixa renda, da terra disponível próxima às fábricas que se instalavam, onde ainda não havia sequer a infraestrutura e os serviços urbanos básicos necessários à habitação. Como essas áreas eram as que a indústria não podia se instalar em função do terreno muito alagadiço, também ali era comum a utilização como depósito de lixo (parte das áreas onde hoje se localizam os bairros Humaitá e Anchieta), acentuando as más condições de vida (FURTADO, 2011). Assim, como de costume, a população de baixa renda é obrigada a instalar-se nas áreas rejeitadas para outros usos, como as áreas de várzeas, sensíveis à oscilação do nível dos cursos d’água ou as encostas de morro, desenhando padrões tipológicos no espaço da cidade, cujas impressões são observáveis até o tempo presente. A partir da década de 1970, tornaram-se mais rápidos os deslocamentos entre diferentes cidades da região metropolitana e, principalmente, dentro da cidade de Porto Alegre. Assim, a suburbanização industrial e a suburbanização da classe trabalhadora cresceram juntas num processo de retroalimentação, causados pelo aumento dos preços de aluguéis e imóveis na capital (e no 4º Distrito) e estimulados por uma malha viária e de transporte coletivo mais eficientes do que jamais se vira antes. Desse processo inicia a decadência da área, pois a legislação de zoneamento mais restritiva levou as fábricas para outros municípios, mantendo, muitas vezes, apenas os centros decisórios e administrativos na capital. A área, consolidada por sua vocação industrial, encontrou em meados da década de 1980 o seu declínio, mesmo com as últimas grandes obras de infraestrutura realizadas no período, a saber: a finalização das avenidas Frederico Mentz e Dique (que serviu como uma contenção às esporádicas enchentes, valorizando as áreas ocupadas por malocas) em 1970, a inauguração da free way (BR290) em 1973, a implementação das avenidas A.J. Renner e Ernesto Neugebauer, entre 1977 e 1980.

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A construção do primeiro trecho do Trensurb, que ligaria os municípios de Sapucaia do Sul e Porto Alegre, e a implementação do vale-transporte em 1985, criado por lei federal, permitindo que o trabalhador pudesse locomover-se entre qualquer parte da região metropolitana, também foram fatores importantes nas escolhas locacionais dos trabalhadores e das indústrias. Essas medidas favoreceram a construção de habitação na periferia, onde problemas de acessibilidade haviam sido minimizados. Sobre a industrialização, Henri Lefebvre contribui com a ideia de que este processo é o ponto de partida para expor a problemática urbana e seus desdobramentos. Ele trata da dualidade do “indutor e induzido”, apontando a industrialização como indutora e a planificação, o crescimento e as questões do lazer e da cultura como induzidas, ou seja, questões que estão intimamente subordinadas à produção industrial (LEFEBVRE, 2001). Dessa forma, faz-se leitura semelhante sobre a ruptura do sistema capitalista de produção industrial em direção ao sistema de produção cada vez mais assentado no setor de serviços, sendo a cidade o lócus de realização deste setor, com importância crescente dada a informação e uma diminuição do protagonismo dos bens de consumo na estrutura funcional da cidade. Assim, de acordo com os estudos do autor sobre o surgimento da industrialização, é possível traçar um paralelo para o momento atual, no qual a produção industrial já não emprega volume tão expressivo, como outrora, de trabalhadores. Nessas transições e rupturas, os trabalhadores são sempre os mais afetados, e isso constitui um problema essencialmente político. Os Processos de Verticalização e Gentrificação na Reestruturação Urbana Os processos de verticalização, ainda em fase inicial, e de gentrificação, são de peso considerável dentro da dinâmica socioespacial do 4º Distrito. A respeito do processo de verticalização nas cidades brasileiras, se diz: “a verticalização é apontada como a responsável por profundas alterações na estrutura interna das cidades, destacando-se as mudanças na estrutura social, valor e uso do solo urbano” (RAMIRES, 1998, p. 101). É um dos processos mais característicos do espaço urbano do século XX, que altera as formas e tem influência direta nas funções. Sua compreensão é vital para conectar o adensamento urbano e a valorização imobiliária: se a habitação é uma mercadoria com valor de uso e valor de troca, dar verticalidade ao produto construído sobre o solo significa maximizar os lucros obtidos em sua comercialização, possibilitando sua multiplicação e a diminuição de custos referentes à infraestrutura, que, no edifício, são compartilhados. Mais do que as classes de alto e baixo poder aquisitivo, como A e E, foi para a classe média que, massivamente, se expandiu a verticalização dos espaços residenciais no Brasil. No 4º Distrito, a verticalização é uma das estratégias encontradas pelos agentes produtores do espaço urbano para tentar induzir o observador ao crescimento, à Dinâmicas, conflitos e proposições 242


renovação e à modernidade. A manutenção das fachadas industriais, geralmente transformadas em unidades comerciais, com construção de edifícios maiores do que a média do entorno, é uma estratégia que vincula dois tempos: o passado, com o patrimônio cultural, e o atual, com os edifícios altos, que hão de conferir uma posição privilegiada àqueles que o adquirirem – naturalmente, as unidades dos andares elevados são as de valor mais alto, segmentando, dentro do próprio edifício, a população pelo seu poder de compra. A expansão dos condomínios residenciais verticais, o encarecimento do solo urbano e a reorganização dos espaços residenciais da cidade ocorrem em função de novas obras que modificam o valor de uso e de troca do solo urbano; essas novas formas que se apresentam na cidade de Porto Alegre estão intimamente ligadas com a segregação e a distribuição da população em função do poder aquisitivo. Shopping centers, centros de eventos, redes de hotéis e estabelecimentos de alto padrão, em geral, orientam-se a partir da localização de edifícios residenciais com moradores dos estratos sociais mais elevados, reforçando as distâncias sociais no momento em que os espaços de convívio são majoritariamente privados e a vida se realiza em espaços que são “coletivos”, porém não públicos (SPOSITO, 2013). Esse panorama está conectado com o conceito de gentrificação, definido por Sharon Zukin como “a conversão de áreas socialmente marginalizadas e operárias do centro da cidade em áreas de uso residencial para a classe média” (ZUKIN, 1987). Entretanto, já é possível estender esse entendimento para as áreas não centralizadas, que são alvo do mercado imobiliário no contexto proposto. A expansão econômica no momento atual da sociedade não se dá mais através da expansão geográfica absoluta, mas sim pela diferenciação interna do espaço geográfico e sua renovação; e onde quer que os pioneiros urbanos surjam, geralmente foram precedidos de incorporadoras, bancos e outros organismos econômicos coletivos. Sabendo que, na sociedade capitalista avançada, são os ditames financeiros e administrativos que perpetuam a tendência à centralização e que a redução de tempos é também uma redução de custos, se justifica a renovação das áreas periféricas degradadas do centro, num processo de Manhattanização das áreas centrais (SMITH, 2007). O termo “gentrificação” encontra sua gênese em 1964, pela socióloga alemã Ruth Glass. O termo original "Gentrification" advém de "Gentry", "pequena nobreza" (GLASS, 1964). O processo estaria circunscrito somente à Inglaterra e aos Estados Unidos sob um viés mais restritivo, associado à reestruturação das áreas centrais da cidade. Vasconcelos (2013) explicitará que se trata de um "barbarismo que não tem sentido nas línguas latinas". Entretanto, chama a atenção para o fato de que a compreensão do conceito é realizável também no contexto latino-americano, embora a industrialização e a constituição do espaço urbano tenham se dado de forma diferente do que nos países citados. Estender o conceito de gentrificação para a realidade da cidade brasileira não o empobrece de sentido, e sim amplia sua aplicação, pois mostra que ele não se encontra Geografia

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circunscrito e estanque no espaço e no tempo, pois é, ainda, atual. Sposito (2013) também tece comentários sobre a flexibilização conceitual para fins de análise: "O reconhecimento de distinções entre diferentes formações socioespaciais, de um lado, e de que os conteúdos de um conceito mudam com o tempo, do outro, não podem acarretar a negação dos princípios que fundamentaram, na origem, a proposição dele" (SPOSITO, 2013, p. 62). Portanto, utiliza-se o conceito na medida em que ele dá conta de exprimir a realidade de uma fração do espaço da cidade de Porto Alegre, mas ainda capaz de se reportar àquilo que o cunhou, nos anos 1960, na Inglaterra. A expulsão de moradores de baixa renda, seja de forma direta (por remoções) ou de forma indireta, por encarecimento do valor de uso do solo urbano e dos serviços fundamentais, é uma realidade no 4º Distrito. No passado, para que a classe operária obtivesse moradias, muitos empreendimentos foram construídos pela iniciativa privada próximos das fábricas (FURTADO, 2011). Na atualidade, bairros como Floresta e Passo da Areia tiveram grande parte de suas indústrias realocadas para cidades na região metropolitana, graças à mudança de perfil e à expansão da mancha urbana, que há muito absorveu as áreas que costumavam ser periféricas. O que se vê hoje é um processo de revitalização e expulsão das comunidades de classe média baixa em bairros como Humaitá, que é alvo do setor privado, com parcerias e concessões feitas pelo Estado. O setor privado, através de mobilizações e demandas formais, trata de solicitar a criação ou ampliação de infraestruturas vultosas e de baixa lucratividade, cujos custos não desejam assumir. A mediação do Estado é vital no processo de reestruturação do espaço urbano, uma vez que ele custeia essa infraestrutura, bem como regulariza os estoques de terra que serão mobilizados para este novo ciclo da economia. As leis de zoneamento e restrições de uso do solo urbano são passíveis de modificação para que se possa expulsar os moradores das novas áreas nobres com potencial de especulação, permitindo que sejam reparceladas para que haja a reprodução do capital. Além disso, o Estado também cria fundos de investimento que garantem a liquidez (CARLOS, 2013). Nesse processo, protagonizado pelos proprietários dos meios de produção, os promotores imobiliários também encontram suas vantagens: a criação de novas áreas valorizadas requer a incorporação, construção e venda de novas unidades habitacionais valorizadas, em áreas que já contam com atrativos para as classes sociais de maior poder aquisitivo. O Estado surge no processo como proprietário de indústrias e estabelecimentos complementares, como consumidor, como proprietário fundiário e promotor imobiliário. Seu diferencial, contudo, é a atuação como mediador, como detentor de aplicação de políticas de zoneamento e regulação, desapropriação, controle de preços, como financiador e diversas outras possíveis funções (CORRÊA, 1989). O Estado constitui-se em um dos mais complexos agentes de transformação do espaço urbano em função de sua atuação variada, e importante salientar, nunca neutra, sempre visando assegurar a reprodução das relações sociais de produção. Dinâmicas, conflitos e proposições 244


Estratégias Adotadas pelos Agentes que (Re)Produzem o 4º Distrito A partir da década de 1990, uma série de tentativas de revitalização para a área do 4º Distrito foram propostas. No período, estruturou-se o Projeto Humaitá– Navegantes, através do encaminhamento de demandas pela Associação dos Moradores do Parque Humaitá à Prefeitura Municipal de Porto Alegre, que iam desde a remoção das malocas, passando por melhorias na iluminação pública e ampliação de vias e de áreas verdes. Diálogos entre esses dois agentes tornariam real o projeto, que pretendia criar um bairro com um novo status social, para atrair novos moradores de maior poder aquisitivo. Para impedir que novos moradores em situação irregular se instalassem na área contemplada pelo projeto, a associação de moradores pressionou o governo municipal para que aqueles não cadastrados na última pesquisa, de 1979, referente às habitações irregulares, não pudessem participar dele. O que se pretendia com essa estratégia era frear o crescimento desordenado sem planejamento. Foi dentro da lógica de revitalização da área que se inaugurou o shopping DC Navegantes, em 1995. Outros autores também se debruçaram sobre o Projeto Humaitá–Navegantes. De acordo com Strohaecker (1995), a situação de degradação do 4º Distrito se deve a uma combinação de descaso do setor público com restrições de investimentos também pelo setor privado. O empresariado local já não via sentido em localizar ali novos empreendimentos, de forma que as estruturas físicas presentes, sem a manutenção necessária, tornaram-se obsoletas e cristalizadas. A consolidação desse processo de cristalização pelos planos diretores de 1959 e 1979 reforçou essa tendência, uma vez que eles estabeleceram para a área somente os usos industrial e atacadista, provocando uma diminuição do contingente populacional e uma prejudicial estagnação dos índices de qualidade de vida daqueles que continuaram a residir nos referidos bairros. Houve tentativas de tentar trazer diversificação e novos ânimos: O 4º Distrito também foi palco de uma proposta chamada Porto Alegre Tecnópolis, em 1993, incentivando a instalação de empresas de tecnologia, informática e eletroeletrônica. A ruína do projeto foi um problema técnico: o solo gerava vibrações que inviabilizavam algumas atividades. Desde então, a área se tornou palco de inúmeras iniciativas e estudos de grupos de arquitetos, urbanistas, geógrafos, planejadores e entusiastas, que trazem novas propostas para a revitalização mais humanizada. Na atualidade, em função do projeto de revitalização apresentado pela Prefeitura Municipal de Porto Alegre, em 2009, de caráter público-privado, grandes incorporadoras imobiliárias já se antecipam na construção de edifícios comerciais e residenciais, como a incorporadora Rossi em projeto de revitalização com a antiga Fiateci (Companhia Fiação e Tecidos Porto-Alegrense) no bairro São Geraldo, que restaurou as fachadas originais da fábrica e, dentro do terreno, deu lugar a um shopping horizontal e três torres de edifícios: para morar, trabalhar e comprar, sem necessitar sair das dependências do condomínio. A isso se aliam iniciativas do poder público, Geografia

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como a execução do Conduto Álvaro Chaves, no bairro Floresta. Com obras iniciadas em 2005 e finalizadas em 18 de março de 2008, a obra serviu para evitar alagamentos em nove bairros de Porto Alegre, inseridos dentro da bacia Almirante Tamandaré. Os benefícios da obra se estendem a mais de 120.000 moradores. Seu custo final foi de R$ 43.128.841,68, gastos em três etapas das obras (PMPA/DEP, 2014). De acordo com o projeto, o esvaziamento das atividades industriais, os constantes alagamentos e as barreiras físicas originadas pelo Trensurb transformaram a região do 4º Distrito em uma área de pouca atividade imobiliária e comercial, de dinâmica decadente. A alteração deste cenário se torna possível quando da Lei Complementar 434/99, onde o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Ambiental (PDDUA) identifica o 4º Distrito como território para ações conjuntas entre o Poder Público e o Setor Privado, visando promover a dinamização da economia e a realização de Parcerias Público-Privadas (PPPs). Tendo em vista o caráter da região, descrita no PDDUA como pertencente aos corredores de urbanidade e de desenvolvimento, entende-se a necessidade de estimular a densificação com diversidade de usos, qualificar os espaços públicos e incentivar o comércio. Das disposições mais gerais do projeto, se enuncia a necessidade de dialogar com os diferentes grupos envolvidos nos subprojetos, que serão contemplados/afetados e realizar suas etapas levando em conta a miscigenação, a densificação, o fortalecimento de um sistema de espaços abertos, com valorização do patrimônio cultural e apresentação de soluções alternativas para os conflitos de mobilidade urbana. Os desafios são grandes: algumas habitações irregulares no bairro Farrapos sofrem com problemas como: i) falta de água por rede geral, poço ou nascente, sendo proveniente de outras formas como água das chuvas, carro pipa ou bica; ii) carência de infraestrutura de luz elétrica, um problema praticamente superado em Porto Alegre, cujas poucas unidades habitacionais que ainda se encontram a margem da instalação de eletricidade se encontram no 4º Distrito; iii) adensamento excessivo; iv) irregularidade fundiária (PMPA/DEMHAB, 2009). Os holofotes se voltam para o 4º Distrito também graças a grandes obras e intervenções, como a chegada da Arena do Grêmio Foot-Ball Porto-Alegrense, no bairro Humaitá, junto à nova rodovia que liga Porto Alegre a Sapucaia do Sul, a BR448 (Rodovia do Parque). Essas obras de acessibilidade surgem no momento atual para trazer complexidade à dinâmica imobiliária da área, fugindo do tradicional esquema conceitual de centro-periferia. A Figura 2 mostra o registro fotográfico após o incêndio, de origem duvidosa, que destruiu 90 casas na Vila Liberdade, próxima ao estádio.

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Figura 2 – Escombros do incêndio na Vila Liberdade, com a Arena do Grêmio ao fundo, em 2013. Fonte: Sul 21. Disponível em: <http://www.sul21.com.br/jornal/moradoresda-vila-liberdadetentam-recomecar-a-vida-apos-incendio>

Apesar da natureza integradora do projeto, é necessário considerar que grandes investimentos em infraestrutura e melhorias urbanas encarecem o preço dos imóveis e aumentam o custo de vida, pois as obras realizadas têm como objetivo final gerar novos valores de uso e de troca no território. A população das vilas foi removida através de indenizações com valores que, muitas vezes, não permitiam que os beneficiados conseguissem adquirir um imóvel nas imediações de onde havia sido expulsa, necessitando, assim, deslocar-se para áreas cada vez mais longínquas, como o bairro Restinga, no extremo sul do município; outra situação comum é a saída espontânea por intimidação e fechamento de postos de saúde, creches e outros serviços básicos com a finalidade de inviabilizar a permanência dos moradores da comunidade. Em uma sociedade voltada para o setor de serviços, constituída por mão de obra cada vez mais especializada, os grupos dominantes determinam formas de apropriação do espaço que, paulatinamente, excluem os estratos sociais de menor renda. Muitas vezes, a manutenção da situação de irregularidade da moradia permite que ela seja, futuramente, expulsa de onde estiver. Caso a área se torne alvo de interesse, os agentes ligados à produção imobiliária depreendem muito menos trabalho para remoção de uma moradia irregular do que uma moradia regular. A baixa remuneração, quando confrontada com o aumento do valor dos serviços urbanos nas áreas revitalizadas, também torna muito difícil a resistência ao processo de gentrificação que se coloca no 4º Distrito, cujos grandes eixos balizadores claramente privilegiam uma classe média beneficiada por novas formas de crédito para adquirir imóveis. Geografia

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Todas as obras de infraestrutura referidas aqui têm, de certa forma, um compromisso com a fluidez, a aceleração dos tempos na cidade, a eficiência e a produtividade. Por isso, é impossível considerar a gentrificação, o adensamento e a verticalização como processos isolados. Nesse contexto, a questão chave que se coloca é: que modelo de cidade a sociedade está produzindo e a quem ele serve? A reestruturação do espaço urbano, em última instância, deve servir para trazer maior qualidade de vida às pessoas, o que não se pode inferir a partir dos índices de aumento de pobreza na região e das constantes remoções das moradias irregulares dos lugares de maior interesse para o capital. A revitalização do 4º Distrito não pode ser tratada de forma maniqueísta: a execução de seu projeto certamente trará benefícios para a região, atraindo novos moradores, novos estabelecimentos comerciais e vida cultural; o desejável é que esses benefícios sejam inclusivos e positivos também para as populações de baixa renda, sem excluí-las do processo. Se todos estão sujeitos ao pagamento de tributos, as melhorias públicas realizadas com essas verbas devem ser de caráter coletivo, e não funcionar como uma mera ferramenta para que os investidores privados sejam contemplados e tirem vantagem da qualificação urbana. As descrenças com relação ao projeto se refletem na população: em entrevista realizada na área pela Prefeitura Municipal de Porto Alegre, 58% dos indivíduos se disse favorável à realocação de moradias devido à intervenção do projeto. O que paira por trás desse dado é a expressiva margem de 42% desfavoráveis, que não desejam ter suas vidas, suas práticas, seus costumes e seu cotidiano alterados em prol de um suposto desenvolvimento. Esses são frequentemente ignorados, sem voz nos arranjos realizados pelo Estado e o empresariado. Caso as iniciativas sigam pontuais, elas atenderão a uma lógica exclusivamente mercadológica que deturpa o espaço para fins de especulação, e esses edifícios que propõem combinar trabalho, moradia e lazer, só servirão para promover a segregação socioespacial e aumentar a cisão da unidade com a totalidade, ou seja, da habitação com a rua e o bairro, na escala da vivência cotidiana. Trazer nova vida a um bairro significa lhe dar identidade, garantindo condições para que a população participe ativamente do seu processo de construção. Perspectivas e proposições para a área Estratégias de otimização do espaço público e uma fundamentação jurídica consubstanciada na legislação municipal são essenciais para que as pessoas que residem e trabalham no local, desenvolvendo atividades comerciais e de serviços, se interessem cada vez mais por essa área. Outra possibilidade é investir em habitação de interesse social, reconhecendo os imóveis que não cumprem com a função social, podendo hospedar serviços públicos, habitações sociais ou serem vendidos. De acordo com o IBGE (2010), 48 mil imóveis estavam vagos em Porto Alegre, número que Dinâmicas, conflitos e proposições 248


contrasta com o déficit de moradias em 38,5 mil (ZERO HORA, 2014). Esses dados indicam que existe um número de imóveis ociosos esperando por um aumento de valorização, o que configura um processo de especulação imobiliária, ou seja, maior número de imóveis vazios do que pessoas sem imóveis. Esse é o panorama da habitação em Porto Alegre. O desenvolvimento socioespacial do 40 Distrito depende, em primeiro lugar, de um planejamento integrado e uma carga normativa que viabilize a revitalização e a melhoria das condições de vida das famílias que já residem ali – que não devem ser expulsas, pois isso reforçaria uma tendência de periferização das classes economicamente mais carentes, transferindo o problema da desigualdade social para a Região Metropolitana e de forma alguma o minimizando. Muito até pelo contrário, porque esse se acentua com a transferência das pessoas para um novo e desconhecido lugar, onde não possuem familiaridade, vínculos ou ocupação imediata. Cláudia Titton elenca o surgimento espontâneo e bem sucedido, sem um estudo previamente elaborado, de um polo como o IPA – Navegantes, que poderia ser estimulado, trazendo para o entorno produtos referentes aos cursos que ali estão instalados: Arquitetura e Urbanismo, Engenharia Civil, Engenharia de Produção, Tecnólogo em Design de Interiores e Tecnólogo em Análise e Desenvolvimento de Sistemas. Atividades e estabelecimentos ligados a som, imagem, artes, cinema, vídeo, moda, arquitetura, design, publicidade e multimedia, que, por sua vez, poderiam favorecer o surgimento de bares, restaurantes, teatros e museus (TITTON, 2012). Este é um exemplo trazido pela autora de iniciativa que obteve êxito ao instalar-se no 4º Distrito, e a Prefeitura Municipal deveria incentivar o crescimento das atividades da Faculdade e seus desdobramentos. Este é um dos problemas apontados: o Poder Público encontra-se ainda mal estruturado, com a maioria das iniciativas partindo das próprias empresas, que se unem para solucionar problemas comuns e minimizar alguns custos, como o Condomínio de Empresas do Humaitá. A efetiva revitalização do 4º Distrito passa pela ideia de transformação da área em um lugar, definido por Castello como não apenas um espaço qualificado, como interpreta o Urbanismo, mas como um local de representações, imagens, significados e referências. Esses lugares são importantes para a sociedade por seu valor psicológico, onde os habitantes realizam experiências existenciais enquanto fazem uso do ambiente urbano. Para isso, devem existir espaços (principalmente públicos) que forneçam a capacidade de troca e comunicação (CASTELLO, 2004). Dessa forma, a revitalização da área deve passar por uma concepção de conservação dos seus marcos mais simbólicos, pelo caráter psicológico e físico da coletividade, com refuncionalização de seus espaços ociosos. A descaracterização do espaço e de seus marcos imagéticos levam embora seu estatuto de lugar urbano. Da mesma forma que a Prefeitura Municipal foi responsável pelo esvaziamento da área do 4º Distrito ao priorizar excessivamente o uso industrial com os Planos Geografia

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Diretores de 1959 e 1979, tornando-a monofuncional e pouco dinâmica, deve partir da própria gestão pública municipal um estímulo à criação de formas alternativas e inovadoras de vivenciar esse espaço da cidade, através de um conjunto de normas e ações que seja eficaz; a requalificação do 4º Distrito deve se dar de forma ordenada, criativa e planejada, para que as potencialidades não sejam novamente desperdiçadas e seus grupos sociais remanescentes não sejam ainda mais marginalizados. O processo de gentrificação, enquanto inserido na complexa dinâmica de reorganização urbana, se torna aplicável à realidade da área. O momento atual da reprodução da cidade se utiliza das áreas degradadas e desvalorizadas para criar novas áreas de especulação imobiliária através do investimento feito pelo poder público em infraestutura e equipamentos urbanos, pressionado pelos agentes privados que manifestam interesse em instalar-se ali. Estas novas ações acabam por encarecer o preço da terra e lentamente expulsam os moradores anteriores, num processo de periferização das classes populares. Promover a densificação urbana e verticalizar a área pode trazer efeitos diversos: por um lado, aumenta-se a receita gerada no local e aumenta-se a oferta de empregos e de consumo. Por outro lado, deve-se atentar para a descaracterização dos marcos identitários da área e à sobrecarga dos equipamentos urbanos. As propostas apresentadas pelo Poder Público, juntamente com a iniciativa privada, devem dialogar com a sociedade civil, rumando para a ampliação do direito à cidade. Não somente isso é necessário, urge que a sociedade protagonize uma discussão que repense a forma de produzir habitação, a fim de minimizar a demanda por moradias, que é quantitativamente menor do que o número de unidades vagas na cidade. Portanto, as prospecções para a área devem procurar reintegrá-la às dinâmicas metropolitanas, superando o estigma de mero “local de passagem” e transformando-a em um espaço que seja, acima de tudo, um lugar. Referências CARLOS, A. F. A. Dinâmica urbana e metropolização: desvendando os processos espaciais. In: FERREIRA, A.; RUA, J.; MARAFON, G. J.; SILVA, A. C. P. da. (Orgs.) Metropolização do espaço: gestão territorial e relações urbano-rurais. 1ª ed. Rio de Janeiro: Editora Consequência, 2013. p. 35-52. CASTELLO, L. Há lugar para o lugar na cidade do século XXI? Revista Virtual Arqtexto. Nº 5. Porto Alegre: 2004. CORRÊA, R. L. O espaço urbano. 4ª ed. São Paulo: Ática, 1989. 91 p. D’AVILA, N. DEMHAB: Com ou sem tijolos, a história das políticas habitacionais em Porto Alegre. Porto Alegre: Unidade Editorial, 2000. 155 p. FURTADO, C. R. Gentrificação e (re)organização urbana em Porto Alegre. 1ª edição. Porto Alegre: UFRGS Editora, 2011. GLASS, R. London; aspects of change. London: MacGibbon & Kee, 1964.

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Capítulo 5 Desafios e propostas para o desenvolvimento socioespacial no espaço periurbano fragmentado Samuel Martins Tânia Marques Strohaecker Nas últimas décadas, os processos condutores da estruturação urbana nas metrópoles brasileiras sofreram importantes alterações, especialmente no espaço periurbano conformado pela urbanização difusa, e a temática do desenvolvimento retoma significância, uma vez que as práticas estão em curso. O chamado desenvolvimento urbano é um dos objetivos centrais do planejamento, e já que tem predominância de uma componente territorial, pode ser entendido como o viés urbano do desenvolvimento territorial. Este é definido como “[...] um processo voluntarista que busca aumentar a competitividade dos territórios envolvendo os atores através de ações integradas, geralmente transversais e com forte dimensão espacial” (BAUDELLE, 2011, p. 22). O que se entende por desenvolvimento, no entanto, pode ter várias interpretações, dependendo dos interesses envolvidos. Desenvolvimento tem sido tratado como sinônimo de desenvolvimento econômico, quando deveria significar mudança social positiva (SOUZA, 2010, p. 60). Então, a proposta que surge é falar em desenvolvimento sócio-espacial, com dois objetivos: melhoria da qualidade de vida e aumento da justiça social (SOUZA, 2010, p. 61). O primeiro objetivo deste viés assenta-se na satisfação de necessidades (privadas), em todos os níveis, materiais ou não (Op. cit, p. 62). Já o objetivo da justiça social (vinculada à esfera pública) concentra-se nas necessidades de grupos sociais, estabelecendo-se prioridades de satisfação, produzindo o substrato sobre o qual a qualidade de vida se desenvolve (Op. cit, p. 64). Nesse sentido, alguns parâmetros estão associados à noção de justiça social: “o nível de segregação residencial, o grau de desigualdade socioeconômica e o grau de oportunidade para participação cidadã em processos decisórios relevantes” (SOUZA, 2010, p. 67). Tomado o desenvolvimento sócioespacial como desejável, é necessário salientar que justiça social e qualidade de vida são complementares, e que não se está pensando corretamente o desenvolvimento se qualquer dos dois aspectos for negligenciado (SOUZA, 2012, p. 72). As ações de planejamento, por esse motivo, e como nunca são neutras (p. 83), precisam abandonar o perfil mercadófilo e propor estratégias pródesenvolvimento, ou seja, de mudança social positiva. Para que sejam possíveis as estratégias de mudança, o primeiro passo é a superação das desigualdades socioespaciais que atrasam a justiça social, o que passa pela identificação dos entraves ao desenvolvimento cujo viés espacial é determinante. Dinâmicas, conflitos e proposições 252


Caso ilustrativo é o de Águas Claras, quinto distrito do município de Viamão, na Região Metropolitana de Porto Alegre (RMPA), que experimentou crescimento urbano expressivo nas últimas décadas. Desde então, esta localidade passou a integrar processos contemporâneos de urbanização que demandam novas abordagens, tanto teóricas como em relação ao planejamento municipal. O espaço urbano de Águas Claras é seccionado pela Rodovia Estadual Tapir Rocha (ERS 040), que funciona como eixo estruturante do crescimento. Os processos de conformação de uso e ocupação do solo ali encontrados, característicos da urbanização difusa, associados ao rápido crescimento urbano (MARTINS; STROHAECKER, 2013), credenciam a localidade como um objeto de estudo propício à construção de propostas de ação. Localmente, instrumentos de planejamento tradicionais desconsideram parte das especificidades locais e as diferenciações de classe. É necessário pensar o desenvolvimento urbano com acesso à cidade para todos, evitando o estímulo ao processo de segregação socioespacial e propondo a estruturação de um espaço urbano com vistas à coesão interna. O foco que representa o recorte espacial do objeto deste trabalho recaiu sobre o perímetro urbano consolidado e definido no Plano Diretor como Macrozona Urbana de Águas Claras, município de Viamão (RS), acrescido dos setores censitários que abrigam áreas urbanizadas. Assim, a superação das desigualdades socioespaciais, condição necessária para a mudança social positiva, somente pode ser processada se forem compreendidos os processos que, por conterem forte componente espacial, mesmo quando implementadas ações inclusivas e de atenuação do “gap” inter-classes sociais, freiam o desenvolvimento. Entraves ao Desenvolvimento Socioespacial Dentre os processos com este cunho estão a conformação de acesso diferencial aos serviços, a segregação socioespacial e a fragmentação. Assim, a identificação destes processos e a discussão acerca de suas consequências são necessárias para subsidiar a proposição de ações mitigatórias. Todos os três processos estão interconectados, e respondem, em muitos aspectos, às características atuais da produção capitalista do espaço urbano, especialmente naquilo que se refere ao crescimento periurbano. Neste capítulo, abordamos os dois últimos, por sua exacerbação no processo de periurbanização. Segregação Antes do tratamento empírico do tema, cabe melhor definir o processo de segregação e delinear a forma de abordagem, uma vez que o setor censitário, muito adotado como recorte padrão para análises de segregação socioespacial, não traz bons

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resultados para a escala de análise adotada e o tipo de espaço urbano representado (espaço periurbano). O setor censitário definido pelo IBGE para o censo demográfico como o recorte espacial com o maior refinamento possível dos dados coletados em campo, pode se comportar com inconsistência, devido às grandes heterogeneidades internas que podem ser encontradas, dependendo do foco do estudo. No caso da investigação sobre a segregação com a adoção preferencial de escala de análise grande, não necessariamente os dados levantados irão corresponder ao recorte prévio adotado, frente o incremento do processo de fragmentação socioespacial. Por este motivo, optou-se por um tratamento diferenciado da questão. Souza (2008) define o processo de segregação como indução ou imposição de um grupo sobre outro, como segue: Pode-se dizer que se está diante de um processo de segregação residencial de um grupo social por outro quando uma parcela da população é forçada ou induzida, em princípio contra a sua vontade, a viver em um local no qual, se pudesse escolher, não viveria – ou, pelo menos, não viveria confinada àquele local, ou ainda melhor, àquele tipo de local. (SOUZA, 2008, p. 56)

O autor já exemplificava a situação em trabalhos anteriores: “Os condomínios exclusivos são o símbolo máximo do que se pode designar como auto-segregação, a qual representa o contraponto da segregação induzida (...)” (SOUZA, 1996, p. 54). A afirmação de Souza é reforçada por Harvey (1980 [1973]), que vê as classes de maior renda pautando as opções de localização: [...] o grupo rico pode sempre forçar preferências sobre o grupo pobre, porque ele tem mais recursos para aplicar, tanto para custos de transporte como para obter solo, qualquer que seja a localização que escolha. (HARVEY, 1980 [1973], p. 116)

No Brasil, a predominância nos trabalhos científicos sobre segregação é de referência às diferenças socioeconômicas, em detrimento das etno-raciais, é o que lembra Préteceille (2004, p. 12), que acrescenta: [...] a segregação é, sobretudo, analisada nos estudos sobre as cidades brasileiras pela focalização sobre as categorias mais pobres de um lado, e os mais ricos do outro, mais raramente, sem que a localização residencial das categorias intermediárias seja considerada de modo sistemático. (PRÉTECEILLE, 2004, p. 12)

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Castells (2000 [1972]) também define segregação urbana, entendendo este processo como uma tendência à setorização internamente homogênea e hierarquizada, havendo desnível social importante entre as áreas, o que identifica o processo como autoevidente: Num primeiro sentido, entenderemos por segregação urbana, a tendência à organização do espaço em zonas de forte homogeneidade social interna e com intensa disparidade social entre elas, sendo esta disparidade social compreendida não só em termos de diferença, como também de hierarquia. (CASTELLS, 2000 [1972], p. 210)

As auto-evidências de segregação não são suficientes para caracterizar como tal uma dada divisão social do espaço, como advoga Ribeiro (2003, p. 40), que levanta a necessidade de se distinguir os conceitos de diferenciação (social), segmentação (da sociedade) e segregação (socioespacial). O primeiro conceito se relaciona com a divisão do trabalho, cada vez mais acentuada. O segundo trata da imobilidade social entre as categorias (vinculadas à divisão social do trabalho) provocada por barreiras. Quanto ao último, pode-se entendê-lo a partir da segmentação, acrescida de valores morais que estimulam a crença coletiva na manutenção e incentivo às barreiras entre as categorias e entre espaços. A separação aqui é, concomitantemente, social e física. O autor explica segregação residencial através de duas concepções teóricas (RIBEIRO, 2003, p. 40-41): a) Diferença de localização de um grupo em relação a outros: tendência ecológica de agrupamento por afinidades, de acordo com escolhas individuais; b) Organização do território da cidade: aborda o tema e seu vínculo com as desigualdades sociais, sendo estas de classe ou de poder, dependendo da vertente teórica.

Portanto, a segregação, para Ribeiro (2003, p. 41), qualquer que seja a opção teórica, é a “[...] espacialização da estratificação da sociedade [...]”, fundamentada nas relações sociais. É defendido o uso de tipologias socioespaciais para o estudo da segregação ao invés de índices sintéticos, descritos através de duas formas tipológicas de abordagem: tipo-ideal (weberiana) e tipologia quantitativa (RIBEIRO, 2003, p. 42). Aquela é construída de acordo com escolhas do pesquisador e está baseada em atributos que possam ser observados empiricamente. Esta última correlaciona um grande número de variáveis à ocupação espacial, produzindo áreas-tipos socialmente homogêneas de acordo com os aspectos estudados. Como a primeira abordagem é adequada a recortes específicos para detalhar situações pontuais e a segunda depende da disponibilidade de dados muito detalhados para o estudo interno de um único distrito, uma tentativa interessante seria compor a análise conjugando as formas de abordagem escolhendo atributos para estudos de observação direta e definindo áreas-tipo para permitir uma compreensão sintética do processo de segregação socioespacial. Geografia

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Assim, pode-se evitar um problema central, levantado por Préteceille (2004), que se deve à heterogeneidade social interna aos recortes por setores censitários e à falta de trabalhos de campo: [...] as pesquisas empíricas sobre segregação são intimamente dependentes dos dados censitários (...) e os pesquisadores muito raramente têm a oportunidade de lidar eles próprios com as investigações, o que permitiria caracterizar detalhadamente a estrutura social da população nos vários espaços de uma cidade. (PRÉTECEILLE, 2004, p. 13)

Então, “[...] ou se privilegia a análise de certos espaços, ou se estuda sistematicamente o conjunto de uma cidade” (PRÉTECEILLE, 2004, p. 14). O início da pesquisa pode ser conduzido a partir de espaços onde as transformações sociais são mais destacadas, com o cuidado para não simplificar demais a estrutura social. Estudando o conjunto da cidade (o que tem sido mais comum), pensa-se a cidade como sistema (p. 14), mas existe maior dependência de recortes institucionais (p. 15), o que não representa, por si, escalas de análise correspondentes à prática social. Villaça (2009, p. 148), por sua vez, explicita a preferência pela explicação do processo de segregação qualitativamente, ante os estudos que procuram quantificá-lo. Entendemos que o processo de segregação residencial produz tipologias residenciais, e estas, uma vez instaladas, reproduzem a segregação. Sua determinação qualitativa e explicativa, neste contexto, é mais premente do que contabilizar seu estágio. Diferentemente de Villaça, que associa ao conceito de segregação a tendência de sua implantação em “regiões gerais da cidade”, propomos que o espaço periurbano exige um microdetalhamento espacial da questão, pois pode conter, ao invés de setores, lógicas ponto-a-ponto que impõem um mosaico mais intrincado. O que mais importa, aqui, é que um valor está ganhando corpo na sociedade: um “novo código de distinção social” (CALDEIRA, 1997, p. 159), associado ao status conferido a elementos como segurança, separação e isolamento. Assim, fixa-se a segregação social como valor. Caldeira (1997, p. 162) adiciona outra motivação para o enclausuramento das classes superiores, além da proteção frente à ameaça do crime: a exclusão dos indesejáveis. Portanto, enclaves como condomínios e loteamentos fechados – estes, ilegais para Souza (2008, p. 75) – tendem a negar aquilo que fundamenta a “experiência moderna da vida pública” (CALDEIRA, 1997, p. 164). Marcuse (2004) concorda e ressalta o caráter negativo da segregação: [...] uma base segura para a conclusão de que a segregação e os guetos são ruins, e para que tomemos posição acerca dos enclaves excludentes, é que a alocação

Dinâmicas, conflitos e proposições 256


involuntária de espaço a qualquer grupo é indesejável em uma sociedade democrática [...] (MARCUSE, 2004, p. 25).

Essa imposição “[...] requer, implícita ou explicitamente, o uso da força, e em uma sociedade civilizada tal força é [...] monopólio do Estado” (MARCUSE, 2004, p. 28). O Estado, estabelecendo repartição através de linhas de divisão involuntárias, exerce papel fundamental, o que estabelece padrões residenciais. Isso se dá através da promulgação de leis que tratam da propriedade privada, posse, proibições e instrumentos financeiros. Também se refere ao controle coercitivo e fiscalizatório diretos e à implantação de infraestrutura, às concessões/licenças e à definição de direitos. “Assim, se em qualquer sociedade houver segregação ela ocorrerá com sanção tácita, quando não explícita, por parte do Estado” (MARCUSE, 2004, p. 30). O trabalho empírico realizado sobre o espaço periurbano escolhido não contou com indicadores matemáticos, curvas de segregação ou quaisquer análises quantitativas para a construção do quadro que mostra a situação encontrada. A atividade de campo, porém, fez-se absolutamente necessária. Desta forma, os recortes da mancha urbana da área de estudo foram classificados de modo a permitir a associação de classes a áreas. Foram mapeados setores segregados, menores e mais homogêneos do que os setores censitários. Importante ressaltar que a dita homogeneidade é apenas relativa, possivelmente tanto quanto na abordagem por setores censitários. A diferença se restringe à escala e à possibilidade de tratamento diretamente através de trabalho de campo. Logo, o caminho adotado foi utilizar as feições observáveis internamente a cada setor para classificá-lo de acordo com classes previamente definidas. As feições observáveis, conforme indicado na explanação metodológica, foram consideradas da seguinte forma, para a produção de tipologias socioespaciais: a) padrão construtivo: característica individualizada, reflexo do investimento aplicável a cada unidade residencial, mas que pode ser extrapolada para a totalidade do setor, assinalando-se o padrão médio encontrado (indica capacidade financeira dos moradores na construção das residências); b) qualidade das vias: característica geral do setor visitado, elemento de valorização imobiliária e reflexo do investimento feito pelo loteador no entorno das unidades residenciais (indica também capacidade financeira dos moradores no momento da aquisição dos lotes). As feições observadas, consideradas de maneira combinada (padrão construtivo e qualidade de vias), possibilitaram a associação de correspondente classe a cada recorte. A moradia, assim como suas possibilidades de acesso, está na condição de reflexo da capacidade econômica que é determinada pela divisão do trabalho, e suas características servem, portanto, como indicadores da posição dos indivíduos na estrutura de classes. A classificação adotada permite apenas a composição do quadro de separação de classes na área de estudo, guardando a ressalva de que, em outras Geografia

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escalas, toda a área de estudo poderia ser classificada como um recorte no contexto municipal ou até metropolitano. Os processos indutores da estrutura socioespacial encontrada não estão representados diretamente na classificação, que, por sua vez, apresenta somente níveis vinculados à combinação de feições observadas. Seguiu-se, então, a seguinte categorização, mais restrita aos elementos tratados, mas que permite inferências sobre outros atributos: classes proeminentes (maior regularidade; mais formalidade e equipamentos; habitações e renda melhores), classes intermediárias (menor regularidade e disponibilidade de equipamentos; renda e habitações intermediárias; ainda boa formalidade) e classes inferiores (precária regularidade; baixa formalidade, habitações e renda inferiores). No Quadro 1 os critérios de classificação são apontados. Todavia, observações de campo modificaram alguns resultados, em geral porque a heterogeneidade interna assim demandou. Quadro 1 - Feições observadas e classes correspondentes Bom

Intermediário

Simples

Precário

QUALIDADE PADRÃO DAS VIAS CONSTRUTIVO Pavimentadas

Proeminente

Proeminente

Intermediária

Inferior

Regulares

Proeminente

Intermediária

Intermediária

Inferior

Precárias

Intermediária Intermediária

Inferior

Inferior

Elaboração: Samuel Martins.

A classificação proposta acima pode ser visualizada no Mapa 1, que apresenta a disposição das classes em relação ao mosaico de recortes visitados em atividade de campo.

Dinâmicas, conflitos e proposições 258


Mapa 1 - Unidades segregadas em Águas Claras

Título: Águas Claras, Viamão/RS: unidades segregadas Autor: Samuel Martins Orientação: Dra. Tânia Marques Strohaecker

Informações Técnicas: Projeção Transversa de Mercator Sistema de coordenadas: UTM Latitude de origem: Equador Meridiano central: 51°W Unidade linear: metros Datum horizontal: WGS 1984

Fontes: Plano Diretor de Viamão (Lei Municipal n° 3530/2006), mosaico de imagens GoogleTM Earth, ano 2010. Elaboração com ArcMapTM v.10: Samuel Martins (2013).

Diferentemente da abordagem por setores censitários que permite a agregação de dados para análises pautadas pela ecologia fatorial defendida por Corrêa (2013, p. 57), a classificação proposta mostrou um quadro diferente. A tendência é de adequação social ponto-a-ponto em relação a padrões de implantação determinados pela ação de parcelamento do solo urbano onde os agentes promotores do espaço urbano produzem correspondentes padrões sociais de assentamento residencial. Não havendo a configuração de áreas sociais contínuas e bem definidas internamente à área de estudo, foram identificados recortes diferenciados socialmente uns dos outros, coincidentes em geral com os espaços representados pelas ações de parcelamento. Esta situação promove o enclausuramento das unidades, que podem ser confirmadas como segregadas mesmo onde as desigualdades não são tão extremas como verificado na cidade concentrada. Geografia

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Mesmo não sendo encontrados espaços residenciais de alto status, a autossegregação surge como aspiração que perpassa outros estratos. O caso analisado responde de maneira diferente quando o olhar é mais próximo, já que mesmo as classes inferiores procuram, dentro de suas possibilidades, isolar-se do conjunto urbano através da fixação de residência em unidades segregadas. O descompromisso com o todo urbano que esse modelo de crescimento traz consigo deteriora os espaços de convívio com o outro, o que, para Souza (2008, p. 76) ameaça a civilidade e a solidariedade cidadã. Proliferam-se os condomínios de lotes, com controle de acesso e barreiras físicas. Também muitos parcelamentos ou loteamentos são cercados e é difícil a sua diferenciação de um condomínio. A urbanização segue, portanto, a tendência de segmentação do espaço que prejudica a mobilidade intraurbana tanto de pobres quanto da classe média. Corrêa (2013, p. 43) ressalta outro fator importante do crescimento urbano segregado: a difícil reversão desta situação. Mais do que isto, a estrutura segmentada da porção de cidade em expansão, integrando um processo macro de fragmentação, impede ou dificulta sobremaneira as ações futuras de integração urbana ou mesmo de facilitação da circulação e do transporte coletivo. Portanto, o processo de fragmentação, ao mesmo tempo em que é definidor das formas encontradas em Águas Claras, impõe no tempo, em conjunto com a segregação, a perpetuação das estruturas produzidas, e por isso merece atenção especial. Fragmentação As divisões espaciais que marcam a estrutura urbana fragmentada refletem, conforme Souza (2008), mais do que meras diferenciações: Fragmentação tem a ver, obviamente, com fragmentos. E fragmentos são partes, frações de um todo que ou não se conectam mais, ou quase não se conectam mais umas com as outras: podem ainda ‘tocar-se’, mas não muito mais do que isso. Claro está, ou deveria estar, que se trata de muito mais que um processo de ‘diferenciação’. Menos óbvio é que se trata de algo que vai além, até mesmo, de um processo de ‘segregação’. (SOUZA, 2008, p. 56)

Harvey identifica a tendência ao conflito presente nas áreas urbanas divididas, caracterizadas por “fragmentos fortificados, comunidades cercadas e espaços públicos privatizados” (HARVEY, 2008, p. 32). Águas Claras, conforme demonstrado anteriormente, é exemplo dessas formas, e os conflitos não ganharam importância devido à menor escala das desigualdades inter-muros. Os espaços públicos privatizados, por sua vez, encontram seu anverso na parca utilização dos quase inexistentes espaços locais verdadeiramente públicos. O efeito mais perverso desta divisão do urbano é a “maior polarização social” (MATTOS, 2006, p. 53), produtora de mais desigualdades, com impactos importantes no espaço. Dinâmicas, conflitos e proposições 260


Como consequência, ocorre a segmentação do tecido urbano e a fragmentação socioespacial, com áreas urbanizadas intermediadas por vazios: Son justamente estas islas urbanas, las ‘gated communities’, una de las principales expresiones de la estructuración social de la ciudad de nuestro tiempo: la fragmentación social urbana como expresión de una discontigüidad del tejido urbano derivado de un crescimiento marcado por un estallido y una dispersión de nuevas implantaciones, con vacíos no urbanizados y aún no urbanizables entre ellas. (MATTOS, 2006, p. 54)

Não são incomuns os casos de pessoas que trabalham em condomínios e loteamentos cercados na área de estudo residirem muito próximos destes, porém do lado de fora e em condições diversas das encontradas nos locais de trabalho. Devido à forma truncada em que se desenvolve a malha urbana, em alguns casos os deslocamentos para o trabalho (informal, muitas vezes) são de quilômetros, enquanto a distância real é de apenas alguns metros. Desejáveis em parte do dia e indesejáveis em outra, são estas pessoas, já com as condições de moradia e relações de trabalho precarizadas, que mais sentem os efeitos do crescimento periurbano difuso e fragmentado; ao mesmo tempo, o discurso propagado é de que o crescimento urbano local nestes moldes proporcionou oportunidades antes inexistentes. A fragmentação não se restringe à forma urbana, mas vincula-se às novas formas (e intensidades) de deslocamento e de comunicação, que conduzem a novos padrões de consumo e de reprodução da vida e prescindem da vivência da cidade como totalidade, como destacado por Sposito: Assim, a cidade é pensada e vivida aos pedaços, de modo sempre provisório ou por tempos curtos, pois não há mais âncoras sociais, políticas ou econômicas que nos atrelem a ambientes urbanos e/ou nos façam apreender a cidade como um conjunto. (SPOSITO, 2009, p. 40)

Por mais que a demanda seja conjuntural, são os agentes econômicos que levam a cabo a expansão territorial descontínua nas franjas urbanas, e que exigir, através de normativas legais, a contiguidade espacial passa pela atenção à sua atuação (SPOSITO, 2009, p. 41). Portanto, para evitar a exacerbação dos custos da provisão dessas áreas com serviços e infraestrutura, a regulamentação seria um aliado importante. As normas legais e zoneamentos utilizados para o controle da expansão urbana pelos municípios não tratam especificamente dos agentes econômicos, constituem-se, por isso, em mecanismos indiretos de ação sobre o território que interferem fracamente nas práticas desses agentes. Em Viamão, assim como na maioria dos municípios, a regulação local trata principalmente dos índices urbanísticos e dos zoneamentos. Define-se uma macrozona Geografia

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e um eixo de comércio e serviços, com seus índices associados. Isto representa a maior parte do que a legislação municipal prevê para a área de estudo; são admitidas algumas características estáticas do novo espaço urbano, mas os agentes promotores e os processos são praticamente ignorados. Os valores atuais e as práticas a eles relacionadas, conformados em escalas mais amplas, não dependem somente de normas locais ou regionais, por isso Sposito (2009, p. 42) defende que a regulamentação atenderia mais à forma, mas teria pouco efeito sobre o processo. O “distanciamento” do Estado, em uma sociedade caracterizada pela divisão, somente agrava o quadro de fragmentação, restringindo o contato entre as diferenças, que é o gerador das possibilidades de política, algo que, para Sposito (2009), tem relação próxima com as mudanças por que passa o modo de produção. Nesse sentido, a fragmentação surge como inevitável, constituindo-se em um processo “descontrolado” que rapidamente conforma a estrutura urbana de novos espaços periurbanos conforme um modelo onde a liberalidade na atuação dos agentes econômicos produz as formas e relações observadas. Um modelo simplificado da estrutura local foi construído, e pode ser visualizado na Figura 1. A partir dele, são tecidas algumas considerações, válidas para boa parte das áreas classificáveis como de expansão periurbana fragmentada e junto a rodovias. Ressalta-se a linearidade da ocupação com fins comerciais, contrastando com a inexistência de uma zona industrial tradicional em eixo. As áreas industriais, desde que haja facilidade de transporte e acesso facilitado a insumos, permanecem desconectadas do conjunto urbano e não funcionam como atrativos populacionais. A via de transporte principal que liga a área de expansão periurbana fragmentada à cidade concentrada não polariza, necessariamente, as opções de moradia. Basta que haja acesso a ela, mesmo que, em alguns casos, seja distante.

Dinâmicas, conflitos e proposições 262


Figura 1 - Estrutura urbana fragmentada em Águas Claras Elaboração: Samuel Martins.

Nesse esboço de modelo da estrutura urbana de Águas Claras sobressaem dois tipos principais de ocupação residencial: conjuntos abertos e fechados. Àqueles correspondem aos desmembramentos (menores) e loteamentos mais simples (maiores e sem a estrutura exigida pela regulação urbanística), enquanto estes são loteamentos com cercamento perimetral (em geral, também irregulares) e condomínios de lotes (cercados, com mais estrutura, mas nem sempre regulares). Entre as unidades fracionadas acima, existem espaços ainda rurais ou vazios urbanos, em geral indiferenciados na forma. Além destes interstícios, ocorrem vários espaços não-funcionais (que não poderão abrigar loteamentos e também já não se prestam à produção rural) e bloqueios representados pelos fechamentos perimetrais das unidades. A circulação viária, inicialmente direcionada à via principal, agora a tem como única possibilidade de conexão entre as parcelas urbanas, o que representa aumento das distâncias entre os moradores e também do isolamento. Os serviços públicos, por sua vez, seguem a tendência comercial e são alocados no eixo a ela correspondente, impondo uma centralidade local que nem sempre promove acesso universal. Os conjuntos que são produzidos contando com maiores infraestrutura interna e regularidades acabam monopolizando as opções de espaços para convívio, Geografia

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lazer e preservação, restritos aos seus moradores/condôminos, ao passo que estes espaços não estão disponíveis nas porções com formas mais tradicionais e abertas. Aos grupos sociais menos favorecidos restam os espaços, tanto quanto possível, mais próximos da via principal (nem todos conseguem), mas irregulares, sem infraestrutura urbana e em lotes que nem sempre se valorizam com sua ocupação. Diretrizes e Propostas Para mitigar os efeitos da estruturação periurbana como observada em Águas Claras, em relação aos entraves ao desenvolvimento socioespacial do espaço periurbano, algumas propostas são apontadas. Não devem ser consideradas isoladamente, mas permitem abordagens distintas, de acordo com a situação concreta. Devido ao entendimento de que o Estado é o agente com maior potencial voluntário de interferência na atuação de outros agentes da produção do espaço urbano, ainda que sua atuação possa ser considerada indireta na maioria dos casos (ação indireta ampla, com efetividade determinante e abrangente), diretrizes de regulação são o foco inicial para propostas, desde que não seja o desenvolvimento econômico o seu único fio condutor. Santos (2009) descreve de forma geral o resultado da atitude urbanística que piora os problemas vividos: Trata-se de planificação, sobretudo técnica, preocupada com aspectos singulares e não com a problemática global, planificação mais voltada para o desenvolvimento econômico, quando o que se necessita é de uma planificação sociopolítica que esteja, de um lado, preocupada com a distribuição dos recursos sociais e, de outro, consagre os instrumentos políticos de controle social, capazes de assegurar a cidadania plena. (SANTOS, 2009, p. 125-126)

A alegação de ineficácia da legislação é também contestável, pois para algum grupo social ela é extremamente favorável. A ocupação ilegal do espaço, por outro lado, responde à “manutenção do baixo custo de reprodução da força de trabalho, como também para um mercado especulativo” (MARICATO, 2011, p. 147-148). Então, o marco jurídico, as taxações, a dotação de infraestrutura, o controle do e a atuação direta no mercado imobiliário são papéis do Estado - como elencados por Corrêa (2011, p. 45-46) - que se relacionam diretamente com a atuação dos agentes econômicos, implicando em responsabilidade conjunta pelo processo de urbanização difusa. Se novas formas e culturas de moradia, mobilidade, comunicação e trabalho conduzem a padrões dispersos de urbanização, associadas ao olhar atento do mercado, o Estado não é uma entidade contemplativa, mesmo que em postura momentânea de laissez-faire. Desponta a necessidade de “[...] coordenação e de controle público da Dinâmicas, conflitos e proposições 264


liberdade de mercado [...]” (ABRAMO, 2007, p. 51), propondo o controle público do uso do solo com ampla participação popular no planejamento. Neste ponto, destaca-se que a ação pública, em última análise, do Estado, em formas centralizadoras ou participativas, impulsiona o delineamento dos caminhos para a ação de produção do espaço urbano através do mercado. Participação popular nas decisões e no controle social associada ao incremento contínuo da autonomia, precisam acompanhar a atuação do Estado, e por esse motivo tais princípios não podem ser desconsiderados na discussão propositiva. Revisão de indicações de densidade e eliminação de vazios especulativos O aspecto mais básico e facilmente observável que pode ser tratado refere-se à densidade da ocupação no espaço periurbano. O Plano Diretor reconhece as baixas densidades e prevê a sua manutenção, indicando a “alta fragilidade ambiental da área” como justificativa. Dantas (2003, p. 174) lembra, porém, que a regulação urbanística desconsidera que há problemas advindos das baixas densidades. Baixas densidades também podem desencadear degradação ambiental, principalmente devido à extensão desmesurada da área urbana e à dificuldade de provimento de infraestrutura. O próprio Plano Diretor de Viamão entende como desejáveis “[...] o adensamento e o parcelamento em áreas já urbanizadas e dotadas de infraestrutura, observadas as questões ambiental, econômica e social”. Evidentemente, a dotação prévia de infraestrutura é forçosa. A subutilização de infraestrutura e de imóveis, fato associado às baixas densidades, também é, contraditoriamente, atacada pelo Plano. Não faltam exemplos pelo mundo de cidades que, mesmo grandes e densamente ocupadas, resolveram satisfatoriamente problemas ambientais decorrentes de longo tempo de ocupação despreocupada com a qualidade ambiental. Pequenas localidades de ocupação urbana em curso têm a vantagem de poder programar seu crescimento visando à preservação da qualidade ambiental; a simples previsão de densidade habitacional não necessariamente significa atenuação dos problemas. Incrementar a densidade e evitar/mitigar problemas ambientais decorrentes do crescimento urbano é melhor do que simplesmente manter a densidade baixa e não haver controle sobre as agressões nem investimento em infraestrutura necessária para a correção dos possíveis impactos ambientais. Simplesmente estimulando as baixas densidades, o poder público assume os problemas relacionados ao custo de implantação de infraestrutura e às dificuldades de organização e funcionamento do sistema de transporte público (e do transporte individual). Além disso, ganham corpo as dificuldades de acesso pela população aos serviços, especialmente pelos mais pobres. Costumeiramente se associa a baixa densidade habitacional às classes superiores como tendência verificada nas novas periferias. Águas Claras mostra que, tomando a escala local, essa periferia também é procurada pelos mais pobres, apenas não havendo assentamento nas mesmas unidades de parcelamento. A classe média Geografia

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ocupa unidades de parcelamento com maior infraestrutura instalada, o que é vantajoso para o município, pois o investimento privado supriu algumas necessidades de obras que seriam atendidas pelo poder público, que por sua vez poderiam ser direcionadas aos espaços ocupados pela população mais pobre. Quanto mais rarefeita e extensa a ocupação, maior o custo e mais difícil é a implantação de um sistema de saneamento adequado. Também mais complicada é a fiscalização da disposição dos resíduos sólidos e o controle do desmatamento ilegal. Acrescentando-se os problemas de transporte e circulação, resta contestar a definição de uma macrozona urbana extensa e pouco densificada. Portanto, promover a densificação das áreas mais consolidadas e de mais fácil acesso pode ser um caminho para possibilitar o atendimento de diferentes necessidades da população local e a manutenção da qualidade ambiental. É necessária, entretanto, a vontade política para que isso seja levado a cabo: Encontrar formas socialmente mais justas de ordenamento territorial e, sobretudo, de ocupação demográfica para as cidades é uma questão que não depende apenas de recursos disponíveis, de projetos bem desenhados, etc. É também uma vontade política. (CUNHA, 2010, p. 75)

Isto não significa que os índices urbanísticos precisam ser alterados. O tamanho mínimo dos lotes, por exemplo, pode ser mantido, visando impactar menos a paisagem e evitando densificação exagerada nas proximidades de unidades de conservação. Um caminho a ser adotado é o estímulo à ocupação dos vazios urbanos encontrados nas áreas mais favoráveis à consolidação de um núcleo concentrado. Não se pode reverter a ocupação difusa já efetuada, mas a descontinuidade desse processo nos moldes atuais deve ser considerada. O cadastro urbano atualizado é ferramenta essencial nesta construção (CORREIA, 2002, p. 65). Devem ser identificados, registrados, classificados e cartografados os lotes, as construções e os espaços especulativos. A elaboração de um cadastro multifinalitário é prevista no Plano Diretor de Viamão, que determina que esta ferramenta deva ser atualizada anualmente. Para tanto, urge a constituição de equipes de fiscalização e acompanhamento, além das ações de regularização fundiária, sem desconsiderar o processo de segregação socioespacial em curso. Gestão tributária e redistribuição de investimentos Tomando-se o processo de segregação socioespacial como uma realidade presente e característica das recentes formas de urbanização, e assumindo ainda que as feições produzidas e seu conteúdo se apresentam como tendência marcante, é imperativo pensar em ações de planejamento e gestão adequadas a esta realidade. Na

Dinâmicas, conflitos e proposições 266


impossibilidade de reverter diretamente a situação, promover a mitigação de alguns de seus efeitos é uma diretriz a ser seguida. A valorização diferencial dos terrenos, não mais relacionada prioritariamente à distância - como em Santos (1990) - mas afetada por características e destino de mercado dos parcelamentos, e pelos aspectos sociais de vizinhança (vide classificações adotadas pelos corretores de imóveis), é um processo que transcorre com pouca objeção no espaço periurbano. Isso se deve também à indiferenciação de espaços na regulação. Uma diferenciação interna mais refinada seria capaz de modificar esse distanciamento valorativo, principalmente após a definição de uma área para maior concentração. O plano diretor, promovendo esta alteração, “[...] incide sobre o valor da terra [...]”, e “[...] pode incluir instrumentos de recuperação social da valorização do solo gerada após a sua entrada em vigor” (LEVY et al., 2005, p. 20). Aplicando-se tributação diferenciada sobre os imóveis (neste caso, o IPTU), de acordo com previsões/propostas mais controladas de crescimento urbano, os recursos advindos das áreas cujo investimento privado provê as necessidades de seus moradores podem ser aplicados na implantação de infraestrutura para a população desassistida. O mesmo vale para a contribuição de melhoria (que recupera valores de acordo com a valorização obtida a partir de investimentos do poder público). O Estatuto da Cidade prevê essas formas de correção das distorções do processo de urbanização e da valorização diferencial dos terrenos; são instrumentos úteis para a atenuação de desigualdades que caracterizam a segregação socioespacial. Alguns aspectos utilizados para caracterização de segregação, como a qualidade das vias, seriam objeto de redistribuição dos investimentos, transferindo parte da valorização imobiliária das áreas de classe média para áreas ocupadas por classes inferiores de rendimentos, via políticas públicas de tributação e de reinvestimentos diferenciados. Smolka e Amborski (2001), entre outros autores, abordam ações deste tipo, como “captura de mais-valias”. Usualmente, a captura de mais-valias visa a atender a três motivações: incrementar a tributação, financiar infraestrutura urbana e controlar o uso do solo (SMOLKA; AMBORSKI, 2001, p. 39). No espaço periurbano, as duas últimas se aplicam. Estes autores reforçam que, minimamente, deve existir um cadastro atualizado, capacidade técnica para determinar o incremento de valor a ser capturado e vontade política para a execução de políticas públicas nesse sentido (p. 49). Enclaves: limitação da extensão e conexão com o espaço coletivo Não estão definidos municipalmente os limites de extensão dos condomínios por unidades autônomas, apenas o tamanho máximo das quadras. O que se verifica em Águas Claras é uma variedade muito grande de escala de implantação de parcelamentos, onde as figuras dos loteamentos (cercados) e dos condomínios ocupam, muitas vezes, extensões bastante consideráveis. Outro efeito do modelo de urbanização local é o pequeno aproveitamento dos espaços públicos. Observa-se a Geografia

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gradual substituição de espaços públicos por espaços coletivos privados, estes reservados a moradores dos condomínios em que se encontram, enquanto moradores de loteamentos e desmembramentos muitas vezes não dispõem de espaços de convívio projetados para este fim. Já no final de seu livro, Castello (2008, p. 196), após discutir resultados de pesquisas sobre tendências recentes de parcelamento e sentimentos de melhoria da qualidade de vida, elenca dois elementos possivelmente relacionados com a situação encontrada no espaço periurbano: a escala do empreendimento e a relação efetiva com o espaço público. Águas Claras provavelmente terá como característica futura a restrição à mobilidade urbana 8, visto que, além da polarização dos deslocamentos até e pela ERS 040 com o uso do automóvel, existem bloqueios à circulação provocados pela extensão de espaços habitacionais fechados. Mesmo que seja possível contorná-los, estes espaços provocam grandes deslocamentos extras, dificultando a fluidez fora da rodovia. Portanto, a ação regulatória de limitar a extensão dos condomínios surge como necessidade para evitar a majoração dos problemas de mobilidade e integração urbanas. Quanto à apropriação e ao uso dos espaços públicos pela população de Águas Claras, este assunto tem merecido pouca atenção do poder público municipal. O espaço coletivo deve, segundo Portas (2007, p. 104), servir de base para os planos diretores e referenciar o planejamento das obras e edificações. Deve adequarse, também, às descontinuidades territoriais. O autor prevê como possibilidade para evitar a acentuação da segmentação urbana, a conformação de espaços para “sociabilidades cruzadas ou transversais” (PORTAS, 2007, p. 105), reforçando ligações. Falta em muitas porções de Águas Claras a rua que pode ser considerada verdadeiramente pública, principalmente onde há parcelamentos com controle de acesso. Nestes locais, as ruas internas são espaços coletivos destinados ao grupo social residente. No entorno, espaços estéreis que não servem mais do que para o trânsito. A regulação urbanística, contudo, ainda é uma ação indireta do Estado, que também pode agir diretamente na produção do espaço; no caso do crescimento urbano de Águas Claras, a programação de algumas intervenções físicas é oportuna. Se os contatos e a integração entre grupos não serão produzidos apenas com a instalação destes espaços, sem a sua existência esta possibilidade é muito menor. A identificação, regularização e caracterização socioeconômica das aglomerações residenciais cuja população não reúne condições, local apropriado ou oportunidade de implantação de espaços de convívio e lazer é o primeiro passo para começar a reparar a desigualdade de acesso a essas amenidades socialmente produzidas. Diferentemente do que ocorre na cidade concentrada, espaço disponível

Mobilidade urbana: condição em que se realizam os deslocamentos de pessoas e cargas no espaço urbano (BRASIL, 2012).

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não representa empecilho para a construção, por exemplo, de praças no espaço periurbano. Regularização fundiária O cadastro urbano, indispensável para a eficiência do planejamento e das ações nele previstas, deve receber o complemento da formalização da ocupação, por meio da regularização fundiária. Este instrumento complementa o cadastro, e sua ausência torna o cadastro deficiente e com aplicabilidade limitada. Não somente áreas ocupadas pela população mais pobre de Águas Claras registram passivo de regularidade. Diversos parcelamentos, alguns com boa infraestrutura, valorizados e ocupados pela classe média, ainda não constam como regularizados na Prefeitura de Viamão, que detinha, até pouco tempo, poucas informações devidamente cartografadas sobre sua situação. Portanto, a questão do desenvolvimento no espaço periurbano depende da construção de um Plano de Regularização Fundiária que possibilite o lançamento de ações mais abrangentes de integração dos parcelamentos irregulares já executados à malha urbana formal. Por isso, as discussões de base, deliberações e encaminhamentos legislativos sobre a regularização fundiária devem ser acelerados, no município como um todo e, especialmente, onde ainda é possível ordenar o território de forma a privilegiar o desenvolvimento socioespacial. Por si, a regularização fundiária urbana não garante melhor equilíbrio social, pois quanto mais regulares as áreas, maior o preço e maiores as dificuldades dos mais pobres em adquirir um imóvel. Torna-se mais presente a efígie do financiamento imobiliário e das maiores incorporadoras - o que ainda não aconteceu em Águas Claras. É importante ressaltar que as ações de regularização devem ter como complemento o combate à retenção especulativa de terras. De toda forma, regularizar o mosaico de parcelamentos irregulares é também ação garantidora de direitos que precisa ser impulsionada inicialmente por um diagnóstico composto por levantamentos físico, topográfico e socioeconômico. Outro aspecto é a complementaridade entre a delineação socioespacial (fundamentada em critérios socioeconômicos e de desenho urbano) e as condições ambientais locais. O espaço periurbano, normalmente próximo de unidades de conservação, demanda cuidados extras com relação à preservação ambiental, às vezes mais até do que cuidados concernentes a áreas de risco. Considerações sobre participação Participação popular é indicação recorrente nos planos diretores para a efetivação das mais importantes ações diretas e de regulação, além de definir os principais canais para sua realização. A escala de avaliação da participação popular apresentada por Souza (2010, p. 200-213), que classifica como graus de participação autêntica somente as modalidades de Geografia

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parceria, delegação de poder e autogestão, figurando esta última como nível mais elevado, define também os graus que o autor classifica como de pseudoparticipação. Nesta categoria, estão as modalidades da informação, da consulta e da cooptação, superiores apenas às situações de não-participação, representadas pela coerção e pela manipulação. Consulta e cooptação são as formas mais frequentes que caracterizam o modelo das atividades participativas no âmbito municipal. Para os temas a serem tratados, a participação se converte, no estágio último, em uma modalidade de representação. Esta representação não é regionalizada, o que caracteriza o Conselho da Cidade de Viamão pela representação setorial. Além disso, a composição do Conselho determina que, de acordo com a quantidade de vagas oferecidas para cada setor da sociedade, as deliberações tendem a priorizar os interesses dos setores numericamente mais representados. Com a complicada composição de consensos junto a movimentos sociais (multifacetados) e outras representações setoriais bastante direcionadas, dificilmente será retirada do setor empresarial que obtiver alinhamento com a esfera governamental a prerrogativa da polarização das decisões. Apesar de ser um órgão deliberativo, em muitas situações o Conselho funciona meramente como instrumento de consulta. Souza afirma que existe, em um caso onde não há independência políticoinstitucional e financeira, o risco de “domesticação e desmobilização ainda maiores da sociedade civil” (SOUZA, 2010, p. 204). Mais do que isso: além de construir proposições e eleger delegados, a participação popular necessariamente se destina e depende do monitoramento da atuação dos representantes, sejam os setoriais, os associativos ou mesmo especialistas: A ideia de que especialistas devem decidir em nome da maioria é uma falácia; na verdade, se poucos decidem e a maioria, ainda por cima, não tem chances de monitorar ou controlar adequadamente esses poucos, a probabilidade de corrupção ou de erros de avaliação [...] é bem maior. (SOUZA, 2010, p. 334)

As oportunidades em que o diálogo ocorre, no nível mais próximo do cidadão, e não nas instâncias deliberativas do Conselho, devem ser estimuladas e dilatadas. Para tanto, existem algumas atitudes que podem fomentar esse florescimento da participação, ainda deficientes, pelo que foi observado em Águas Claras. A primeira delas é a informação sobre o sistema participativo instituído e a publicização das atividades, programações e locais destinados aos encontros de base. Muitas pessoas sequer sabem que existe um canal de participação, muito menos que teriam voz. Divulgação é apenas uma parte da desejável conduta transparente da administração pública. A segunda atitude é a estruturação de ações para garantir a possibilidade de participação dos diferentes estratos sociais nos encontros. Reuniões à noite, sem Dinâmicas, conflitos e proposições 270


facilitação de transporte e em uma localidade como Águas Claras, onde quem trabalha fora do distrito acorda muito cedo e, às vezes, reside a quase oito quilômetros do local das reuniões, não parecem razoáveis para quem sofre com as contingências de uma posição social desprivilegiada. É preciso compor estratégias para que a participação seja mais ampla, evitando que setores empresariais ou a elite local monopolizem as discussões. Elementos para promover a autonomia local não dependente do poder público A interpretação prioritária, quando se trata de autonomia, é autonomia políticoadministrativa. É um tópico importante, e deve ser lembrado, principalmente quando já existe uma articulação local para sua conquista. Todavia, outras formas de manifestação de autonomia podem ser apontadas. Se o Estado produz e aplica as leis, isto não quer dizer que esta atividade exclui a possibilidade (e necessidade) de planejamento e gestão por grupos sociais não envolvidos diretamente com o poder público: [...] não apenas o Estado deve planejar e gerir, se bem que, [...] ele tenha a prerrogativa de criar, sancionar e aplicar as leis formais, de realizar intervenções no espaço ‘público’, de regular as atividades dos agentes privados e de ‘garantir a lei e a ordem’. Grupos da sociedade devem buscar qualificar-se e organizar-se para planejar e gerir seus espaços (seus destinos), às vezes com o Estado [...], às vezes à revelia do Estado e, muitas vezes, contra o Estado, resistindo. (SOUZA, 2010, p. 525)

Para Souza, a mudança social positiva, definidora do desenvolvimento socioespacial, pode ser impulsionada pelo planejamento e pela gestão, estatais ou não, em parceria entre o Estado e a sociedade civil ou não. Não há garantias, no entanto. Assim como há limitações para o alcance das construções em escala local (SOUZA, 2010, p. 526). Fatores e ações em escalas diversas interferem no delineamento do desenvolvimento, estabelecendo-se limitações para a ação, mas os ganhos com esta atividade são indubitáveis. Grupos da sociedade civil, atuando no sentido de promover ações de planejamento e gestão de forma autônoma podem engendrar mudança social positiva se os pressupostos definidos na base encontrarem canais para sua aplicação, participativas ou mesmo de enfrentamento. Dentre a gama de possibilidades, duas surgem como auspiciosas: formalizar localmente grupos de discussão integrada, que podem derivar em representações mais justas nas instâncias participativas municipais; e atuação diretamente na proposição e fiscalização de serviços públicos, conjugando esforços de lideranças locais e do conjunto amplo de moradores. Nos dois casos, há que se criar espaços permanentes destinados à articulação desvinculada do Estado e também de engajamentos setoriais. Geografia

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Inicialmente, a comunicação no espaço virtual é o caminho mais comum para a conformação de grupos atuantes. Referências ABRAMO, Pedro. A cidade Com-fusa: a mão inoxidável do mercado e a produção da estrutura urbana nas grandes metrópoles latino-americanas. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, v. 9, n. 2, 2007, p. 25-53. BAUDELLE, Guy et alii. Le développement territorial en Europe: concepts, enjeux et débats. Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2011. Capítulo 1. Le développement territorial: finalités et spécificités. p. 13-27. CALDEIRA, Teresa. Enclaves Fortificados: a nova segregação urbana. Novos Estudos. CEBRAP, n. 47. São Paulo: março de 1997, p. 155-176. CASTELLO, Iára Regina. Bairros, loteamentos e condomínios: elementos para o projeto de novos territórios habitacionais. Porto Alegre: UFRGS, 2008. CASTELLS, Manuel. A estrutura urbana. In: _______. A questão urbana. São Paulo: Paz e Terra, 2000 [1972], p. 179-345. CORRÊA, Roberto Lobato. Sobre agentes sociais, escala e produção do espaço: um texto para discussão. In: CARLOS, Ana Fani Alessandri; SOUZA, Marcelo Lopes de; SPOSITO, Maria Encarnação Beltrão (Orgs.). A produção do espaço urbano. São Paulo: Contexto, 2011, p. 43-51. CORRÊA, Roberto Lobato. Segregação residencial: classes sociais e espaço urbano. In: CORRÊA, Roberto Lobato; PINTAUDI, Silvana Maria; VASCONCELOS, Pedro de Almeida (Orgs.). A cidade contemporânea: segregação espacial. São Paulo: Contexto, 2013. CORREIA, Paulo Vasconcelos Dias. Políticas de solos no planejamento municipal. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002. CUNHA, José Marcos Pinto da. Planejamento municipal e segregação socioespacial: por que importa? In: BAENINGER, Rosana (Org.). População e cidades: subsídios para o planejamento e para as políticas sociais. Campinas: Núcleo de Estudos de População - NEPO/Unicamp; Brasília: UNFPA, 2010. HARVEY, David. A teoria revolucionária e contra-revolucionária em Geografia e o problema da formação do gueto. In:_______. A justiça social e a cidade. São Paulo: Hucitec, 1980 [1973], p. 103-130. HARVEY, David. El derecho a la ciudad. New Left Review-España, n. 53, p. 23-39, nov./dez. 2008. LEVY, Mariana; SANTORO, Paula; CYMBALISTA, Renato. Estatuto da Cidade: uma leitura sob a perspectiva da recuperação da valorização fundiária. In: SANTORO, Paula (Org.). Gestão social da valorização da terra. São Paulo: Instituto Pólis, 2005. Disponível em: <http://www.polis.org.br/uploads/838/838.pdf>. Acesso em: 05 dez. 2013. MARCUSE, Peter. Enclaves, sim; guetos, não: a segregação e o Estado. Espaço & Debates, v. 24, n. 25, 2004. MARICATO, Ermínia. As ideias fora do lugar e o lugar fora das ideias: planejamento urbano no Brasil. In: ARANTES, O.; VAINER, C.; MARICATO, E. A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. 6 ed. Petrópolis: Vozes, 2011, p. 121-192. MARTINS, Samuel; STROHAECKER, Tânia Marques. Nova urbanização fragmentada na Região Metropolitana de Porto Alegre: o caso de Águas Claras – Viamão/RS como exemplo de análise. Boletim Gaúcho de Geografia, Porto Alegre, v. 40, n. 2, p. 155-180, mai. 2013. Dinâmicas, conflitos e proposições 272


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AUTORES Aline Vicente Kunst é licenciada e bacharel em Geografia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Mestre em Geografia também pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Amanda Cabette é geógrafa pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, mestre em Geografia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Daniela Santos da Rocha é Aluna do Curso de Bacharelado em Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Eleia Righi é Doutora em Geografia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e Professora da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS). Emilio Federico Moran é Doutor em Antropologia pela University of Florida (EUA) e professor do Departamento de Geografia da Michigan State University (EUA). Érica Insaurriaga Megiato é geógrafa pela Universidade Federal de Pelotas (UFPEL) e Mestre em Geografia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Felipe Sousa Gonçalves é mestre em Geografia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e professor do Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS). Jonathan Duarte Marth é geógrafo pela Universidade Federal de Pelotas (UFPEL). Doutor em Geografia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Luís Alberto Basso é Doutor em Geografia Física pela Universidade de Zaragoza (Espanha), Professor do Departamento de Geografia e do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Mara Alini Meier é Doutora em Geografia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e atualmente realiza Pós-Doutorado na Universidade do Vale do Taquari (UNIVATES). Marilene dias do Nascimento é geógrafa pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e Doutora em Geografia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Nina Simone Vilaverde Moura é Doutora em Geografia Física pela Universidade de São Paulo (USP), professora do Departamento de Geografia e do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Pedro Godinho Verran é geógrafo pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, mestre em Geografia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul(UFRGS), servidor público (fiscal ambiental) no município de Alvorada. Pedro Toscan Pittelkow Contassot é geógrafo pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, mestre em Geografia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul(UFRGS). Ronell da Cunha é geógrafo pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, mestrando no Programa de PósGraduação em Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul(UFRGS), servidor público federal no Ministério do Trabalho e Emprego. Samuel Martins é geógrafo pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, mestre em Geografia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul(UFRGS), professor da rede pública municipal de Porto Alegre. Sumire da Silva Hinata é Geógrafa e Mestre em Geografia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Tânia Marques Strohaecker é doutora em Geociências pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, professora do Departamento de Geografia e do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Tielle Soares Dias é Mestre em Geografia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Geógrafa da Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC) da Prefeitura Municipal de Porto Alegre.


O livro Geografia: dinâmicas, conflitos e proposições reúne textos que abordam temáticas relevantes da ciência geográfica, em especial sobre a urbanização, a dinâmica socioespacial e problemas ambientais. Os textos selecionados representam parte da produção empreendida junto ao Programa de Pós-Graduação em Geografia (POSGEA) e ao Departamento de Geografia, no âmbito do ensino, pesquisa e extensão, por professores e orientandos vinculados ao Instituto de Geociências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

POSGEA/UFRGS


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