Este trabalho resulta de uma viagem à Islândia, Ilha do Fogo e Gelo, durante o período que antecede a passagem de ano, culminando no dia 1 de Janeiro de 2017. E foi precisamente o contraste entre esses dois elementos, fogo e gelo, que desde o início foi presenciado. Não apenas no sentido literal, mas, essencialmente, na relação simbólica celebratória da flama - emissora de luz - com as projecções luminosas nas superfícies geladas da ilha - reflectoras de luz. A presença do fogo de artifício durante esta época festiva tem um significado de importância primordial para os islandeses, e remonta ao tempo em que os navios o utilizavam para anunciar a sua partida. Mais tarde, ganha também um significado económico considerável quando começou a ser vendido ao público para ser utilizado nos festejos da chegada do novo ano. A tradição cresceu rapidamente após as equipas de busca e salvamento terem começado, nos anos 60, a vender fogo de artifício para angariar fundos para as suas operações. As fotografias relatam as viagens diárias entre a capital Reykjavik, onde as ‘explosões’ eram constantes, e as paisagens geladas e (quase) inóspitas das regiões circundantes, em que a luz, tão efémera como rasante, se apresentava e despedia lentamente no horizonte.
Luís Carvalhal, Lisboa, Setembro 2017
A LUZ, A ESCURIDÃO E A CONSTRUÇÃO DA PAISAGEM
A Islândia sempre exerceu um certo fascínio sobre muitos de nós, ainda antes de se tornar num destino turístico e dela muito pouco, quase sempre, sabemos. Alguma mitologia, os nomes impronunciáveis tão complexos e misteriosos quanto as suas paisagens, os vulcões, os glaciares, sons musicais e vozes, a crise recente e a resposta que lhe deram; pouco mais. Penso que será consensual que, desta lista, a paisagem será aquilo que se destaca enquanto foco de interesse no que à fotografia diz respeito. Assim, convém começar por uma pequena reflexão sobre o assunto. A fotografia e a Islândia têm uma relação particular. Não apenas por causa da luz ou da falta dela mas também porque a fotografia demorou a chegar e a enraizar-se no país. Uma das razões desta demora prendeu-se com algo que escapava à fotografia: a falta de uma tradição pictórica, de representação. Na primeira metade de oitocentos, não havia procura para as imagens nem do lado da criação nem do consumo. Assim deu-se o caso de ter sido a fotografia a criar os primeiros modelos de representação e não a pintura. Se inicialmente a fotografia predou os modelos de representação vigente que vinham da pintura (sobretudo no retrato), neste caso não havia nenhum modelo estabelecido de representação que fosse originário do lugar; mas havia outros, importados. Os poucos artistas iam à Dinamarca (à qual a Islândia pertencia) fazer a sua aprendizagem e os fotógrafos não eram exceção. Para além do ensino artístico e técnico, nas escolas, a maioria aprendia através da prática, tornando-se assistente num estúdio de um fotógrafo estabelecido, sistema que se manteve em vigor até perto dos anos 20 de novecentos(1). Igualmente o país era visitado por fotógrafos estrangeiros, alguns ligados a expedições científicas que iam construindo um corpo de imagens relativo à Islândia, à sua especificidade geográfica e humana. Curiosamente, o primeiro fotógrafo a ter sucesso, Sigfús Eymundsson (1837–1911) para além do retrato que era a principal fonte de rendimento do seu estúdio, foi um praticante atento da fotografia de paisagem, atividade a que se dedicava sobretudo a partir do início do verão já que as condições de luz durante o resto do ano não eram favoráveis à prática da fotografia ao ar livre (não apenas por causa da luz, que era de facto um problema com as longas exposições necessárias à obtenção de um bom negativo, como de toda a logística necessária à realização das tomadas de vista desde as deslocações aos materiais e equipamentos). A paisagem ganha progressivamente um lugar importante na representação fotográfica, sobretudo através das publicações da instituição oficial de turismo para promoção do país no exterior. Esta importância é igualmente consequência de uma nova relação com a paisagem que se vai construindo lentamente na literatura, na fotografia e na pintura. A aridez da paisagem, a dureza do clima, a presença da lava e a atmosfera cinzenta materializada no chão de cinza era tudo menos considerada bela, como se a natureza fosse um castigo divino infligido ao lugar. A mudança que se operou foi para um entendimento destas características como sendo a essência da própria paisagem, a sua especificidade e a aceitação da natureza como ela é e bela nesta força primitiva que transporta.
Penso que é interessante olhar para este conjunto de fotografias de Luís Carvalhal à luz deste contexto. Quando o vi pela primeira vez (na realidade era uma seleção muito mais ampla), o que me tocou de imediato foi reconhecer o modo direto, sem qualquer artifício, do seu olhar sobre a paisagem e a realidade. A paisagem surge de uma mancha, dada a pouca luz disponível nesta época do ano, aquela de que no passado os fotógrafos fugiam, onde é necessário fazer um esforço para poder ver, ao longe, a parca luminosidade que define a orografia possível da paisagem. São tempos diferentes, técnicas completamente diferentes, mas não há, neste conjunto de fotografias, qualquer tentativa de embelezar ou engrandecer a paisagem, vê-la através de um dispositivo técnico que pode realçar as suas características, tornando-a naquilo que provavelmente não é, mas antes uma aceitação daquilo que nos aparece no momento: isto é o que consigo ver (por alguma razão a maioria das fotografias que aparecem em qualquer pesquisa situam-se no extremo oposto da representação levando ao exagero todas as possibilidades técnicas de falsificação pictórica da realidade à procura de um efeito estético que corresponda a todos os estereótipos que temos sobre o desejo de “beleza” da paisagem). Apesar desta dureza (entendida aqui como uma visão direta da realidade), ou muito provavelmente por sua causa, há uma poética que atravessa estas fotografias que se prende com a atmosfera que delas emana, com a subjetividade que nos interpela a partir da densidade que se interpõe entre nós e a paisagem que nos leva a uma reflexão sobre o estar aqui/ ali. E depois aparece o fogo, metáfora da luz mas também do vulcão, uma presença/ figura que está na génese da natureza geológica da ilha. E se o fogo-de-artifício serve bem a imagem da lava a ser expelida, a imagem final das cinzas organizadas em círculo, como uma ilha que se desenvolve em torno de um ponto central, é uma boa síntese de tudo o que está em jogo neste trabalho: a lentidão do ver, a construção subjetiva da paisagem, a densidade da atmosfera, a natureza vulcânica do lugar e a relação ritual com os elementos através do fogo. É tudo isto que encontramos numa linha invisível que Luís Carvalhal nos desenrola ao longo destas fotografias. Notas: Já em 1910 havia quem escolhesse outras paragens. É o caso de Sigriður Zoëga (1889–1968) que trabalhava como assistente no maior estúdio de fotografia da época em Reiquiavique. Sendo mulher estava-lhe vedada a participação na elaboração das imagens que era reservada aos assistentes masculinos. O desejo de ser fotógrafa leva-a nesse ano para Copenhaga. Trabalha como assistente no estúdio de uma fotógrafa e frequenta um curso de fotografia. Insatisfeita com o trabalho, publica um anúncio numa revista alemã e em abril de 1911 parte para a Alemanha. Trabalha dois meses para um fotógrafo, sobretudo a fazer trabalho de retoque. Entretanto responde a um anúncio de um fotógrafo, de Colónia, que andava à procura de assistente com as suas características. O fotógrafo era August Sander (1876-1964), com quem trabalhará 3 anos que foram decisivos para a sua carreira. Regressada à sua cidade natal, abre um estúdio e dedica-se sobretudo ao retrato, sendo a influência de Sander notória. Os retratos têm uma qualidade muito acima do que era prática na cidade e sobretudo os retratos que faz no interior das próprias casas do retratados, para além do retrato em si são poderosos documentos sobre a construção social da nova sociedade Islandesa, agora independente.
(1)
Bibliografia: Þorvarður Árnason (1999) Sigfús Eymundsson 1837–1911. Icelandic Landscape Photography, History of Photography, 23:1, 18-27. Æsa Sigurjónsdóttir (1999) Sigriður Zoëga 1889–1968: Icelandic Studio. Photographer, History of Photography, 23:1, 28-35.
Francisco Feio, Parede, Agosto 2017
Hatíð í Myrkri celebration in darkness Islândia 2016/17 fotografias: Luís Carvalhal design gráfico: Luís Carvalhal textos: Francicsco Feio, Luís Carvalhal impressão: Gráfica 99 20x25cm / 56 páginas offset digital capa: Eural 250g miolo: Colotech 120g 1ª edição: 80 exemplares autoeditado, 2017
Agradecimentos:
Francisco Feio, Joel Isaac, Luís Aniceto, Luísa Baeta, Pedro Rodrigues e Teresa Dröfn Njarvík. Obrigado. Por tudo. O copyright das fotografias, textos e design é propriedade dos respectivos autores. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida sob qualquer forma ou método, electónico ou mecânico, sem autorização por escrito dos proprietários do copyright.