vis천es de cidade
< vista do centro sĂŁo paulo, 2013
<< vista de sĂŁo paulo, cĂĄssio vasconcelos, 2010
visões de cidade
Luís Fernando Zangari Tavares
Orientadora: Prof. Dr. Marta Vieira Bogéa Trabalho Final de Graduação Universidade de São Paulo Faculdade de Arquitetura e Urbanismo São Paulo 2013
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Daquele lugar que era o meu quarto via o que acontecia na rua. Tive a oportunidade de morar dos cinco ao quinze anos numa situação com um tanto de urbanidade: meu vizinho da direita era uma família chinesa de onde vinham os cheiros daquela culinária e palavras estranhas, os da esquerda eram alemães, de onde se percebia a discrição; em frente uma associação japonesa: pelo espaço da sua porta entreaberta viam-se mesas de pingue-pongue, japoneses jogando e japonesas cantando karaokê, nos domingos churrasco. Aos sábados aquela visão se transformava: ainda na cama percebia sua montagem e quando abria a janela estava erguida, na minha frente, uma feira com suas lonas laranjas e verdes. Essa imagem antecedia sempre o que viria a seguir. Meu avô tocando a campainha nos levava para ir comer pastel: do portão da minha casa entrava num mundo que mais tarde entenderia do que é urbano. Essa era a minha paisagem. ... Anos mais tarde, já estudante de arquitetura, tive o privilégio de morar na cidade de Lisboa por um semestre, quando fiz intercâmbio. Encontrava os amigos no miradouro de São Pedro de Alcântara, de onde apontávamos com o dedo que canto da cidade iríamos conhecer, os lugares que já tínhamos ido: lugares que com o passar dos meses começavam a ter em mim significados.
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sumário percurso 11 a idEia de cidade contida na paisagem 21 constelações 33 atlas 89 pontos de vista 141 conclusão 219 Bibliografia 225
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O objetivo deste trabalho é a criação de dispositivos ópticos, oportunos para cada situação na qual se realizem, mediadores entre a cidade e seus cidadãos, entre paisagem e os que estão à paisana. Realizam-se como lugar de pausa diante de enquadramentos visuais significantes na metrópole de São Paulo.
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percurso
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O trabalho iniciou-se com uma busca pelos significados contidos na ideia de cidade. Analisa-se que, na verdade, existem infinitas formas de manifestação de cidade, mas que, no sentido maior, derivam de uma raiz contida no intercâmbio e na troca, no atrito entre diferentes agentes que convivem no mesmo espaço: quando dois caminhos se cruzam. Para Michel Sorkin essa energia do contato, o calor, é capaz de definir perímetros de urbanidade: “Evidentemente, esta idea de encuentro constante produce de um modo inevitable la friccíon, el simple resultado de roce entre los sujetos. [...] Esta friccíon, mediante la señalización de la diferencia, situa los limites internos de la ciudad así como sus fuentes potenciales de conflito.”[1]. Ao mesmo tempo, propunha-se questionar as condições presentes e ausentes de cidade na metrópole de São Paulo: se ainda há condições espaciais que sustentem o comércio de ideias, culturas, diversidades. No entanto, por esse mesmo motivo amplo, o desejo de realizar uma proposta de projeto provocativa/reflexiva que tratasse a cidade de São Paulo como um todo tornou-se genérica e, portanto, pouco objetiva, uma vez considerada sua grande escala de intervenção, já que qualquer regra imposta não consideraria a escala e os valores específicos de cada lugar. Uma provocação
[1] Sorkin, michel. El tráfico em la democracia. Em: Revista Quaderns d’arquitectura i urbanisme n0 231. Barcelona, 2001.
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em escala metropolitana envolvendo a ideia primeira de cidade tornava-se, então, uma utopia. A proposta foi reduzir a escala: detive meu olhar sobre a ideia de trabalhar percursos na cidade, acreditando ser esse um dos caminhos necessários para atingir urbanidades. Trabalhar exatamente a escala humana e sua relação com os espaços urbanos da cidade poderia ser determinante para o real convívio de seus habitantes, portanto um caminho para o caráter que o trabalho propõe. Ao mesmo tempo, São Paulo apresenta-se como uma constelação de pontos de interesse, destinos de seus moradores; e o espaço restante, o espaço entre, mantém-se obscurecido, desapropriado e indiferenciado: o deslocamento dos seus milhões de habitantes todos os dias entre a casa e o trabalho, por exemplo, é um deslocamento no tempo e não mais no espaço, que poderia sediar tais manifestações de cidadania. De uma maneira geral, a cultura desta cidade nos impõe reconhecer as distâncias pelo tempo entre elas, antes um reconhecimento da geografia que se percorre, distâncias físicas, suas paisagens: o espaço urbano. A cidade torna-se simples origem- destino. Nesse sentido, se mostrou oportuno trabalhar dispositivos que pudessem ser contribuidores de urbanidade e cidadania, estabelecendo lugares físicos de associação entre cidadãos, que caracteriza a vida urbana.
No entanto, a primeira questão foi, então, como projetar de fato um percurso numa paisagem urbana já existente? Eles já se encontram naturalmente pela cidade, uma vez que são resultado direto do ato de construir: são os espaços resultantes dos volumes edificados, que, às vezes, penetram seus térreos. Um caminho seria em vez de projetá-los, qualificar e revelar eles. Estabelecer remansos em seus cursos, onde haja espaço e qualidades para inverter o ritmo incessante de São Paulo, que sejam reconhecidos como espaço de permanência e encontro, interferindo naquela vivência de constelação da cidade. Associar tais pausas oportunas à visualidades da própria cidade, iluminando significados antes encobertos, a partir de enquadramentos visuais que pudessem dar perspectiva à interpretação da paisagem como representação diária da cultura de uma sociedade e, portanto, de sua própria identidade, conferindo a noção de lugar a esse território. Michel de Certeau elucida maneiras distintas de enxergar a cidade, no caso Nova York, comparando alguém que a vê do topo do antigo World Trade Center e um “praticante ordinário da cidade”, caminhando por suas ruas: “Forma elementar dessa experiência, eles são caminhantes, pedestres, wandersmänner, cujo corpo obedece aos cheios e vazios de um texto urbano que escrevem sem
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poder lê-lo. Esses praticantes jogam com espaços que não se vêem; têm dele um conhecimento tão cego como no corpo-a-corpo amoroso. Os caminhos que se respondem nesse entrelaçamento, poesias ignoradas de que cada corpo é um elemento assinado por muitos outros, escapam à legibilidade. Tudo se passa como se uma espécie de cegueira caracterizasse as práticas organizadoras da cidade habitada.”[2]. Aquela primeira pergunta sobre os significados da cidade seria então desenvolvida sobre compreensões particulares de quem a usa, como num exercício de leitura de uma narrativa coletiva no qual cada um é remetido a seu próprio repertório de imagens de vivências anteriores que constitui a memória. Nessa fase, o trabalho buscou perceber as imagens da ideia de cidade compreendida na sua paisagem, sobretudo sobre as leituras do geógrafo Milton Santos e de Maria Angela Faggin, acreditando na sua potência comunicativa. Importante nesse período foi também ter participado do Seminário Espaços Narrados[3] quando o objetivo deste trabalho (estabelecer mediações) se tornou mais claro. Nesse momento, iniciei um processo de descoberta de pontos interessantes onde poderia se desenvolver a proposta no centro antigo da cidade, definido anteriormente como campo de atuação da pesquisa.
Vale ressaltar que, seguindo a lógica construída anteriormente, a região de intervenção escolhida pouco é exclusiva de recebimento da intervenção, uma vez que ela se aplica a qualquer contexto, sendo que o que varia são os significados de cada trecho de paisagem. O centro antigo foi escolhido por conter uma paisagem urbana mais rica em transformações históricas e em memórias (cabe ressaltar que como qualquer processo, o centro ainda encontra-se em transformação), ao mesmo tempo em que concentra uma grande quantidade de transeuntes. Pela sua escala, passível de ser percorrida, portanto também por uma necessidade prática o centro mostrou-se extremamente atraente como ponto de intervenção. Meu processo investigativo desse lugar deu-se a partir da minha própria experiência física com ele, uma vez que busquei espaços significativos, espaços entre edifícios, proporções, luzes, miradas importantes, contextos, caminhando sem um trajeto definido anteriormente, apenas considerei investigar a região entre os Viadutos do Chá, Santa Ifigênia e a rua da Boa Vista. Andei em deriva pela região por cinco vezes até encontrar material suficiente para propor intervenções, buscando superar aquela perda de valores espaciais, elementos narrativos, que chamei de Constelação. Desses percursos apresento um diário de cada um.
[2] CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano. Petrópolis: Ed. Vozes, 1998. p. 171.
[3] ESPAÇOS NARRADOS: a construção dos múltiplos territórios da língua portuguesa. Seminário Internacional da Fau usp ocorrido de 29 de outubro a 01 de novembro de 2012.
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Posteriormente, ensaiei três propostas de intervenção que materializassem o tema de pesquisa: na rua Libero Badaró, no Largo do Café e na rua 3 de Dezembro. Desse modo, estruturei o trabalho em quatro capítulos. São eles: A Idéia de Cidade Contida na Paisagem, onde coloco que as trocas e intercâmbio que constroem cidade, espacialidades, narrativas permancem materializadas na paisagem; Constelações, onde abro o meu diário; Atlas, onde apresento a coleção do imaginário dessa pesquisa e Pontos de Vista, quando ensaio projetos que dessem legibilidade à paisagem a partir da minha experiência e imaginário.
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Em 1992, o artista mexicano Gabriel Orozco caminha pela cidade de Nova Iorque empurrando uma bola de massa plástica de aproximadamente quarenta centímetros de diâmetro por todos os lugares aonde ia. À medida que se deslocava, essa esfera ia mudando de forma, adquirindo rugosidades e mudando de cor, escurecendo; transferindo para si as texturas do caminho. Essa esfera possuía o exato peso do corpo do artista. Seis anos mais tarde, em 1998, o artista belga Francis Alys veste um malha de lã, prende uma ponta de sua linha e sai caminhando por Estocolmo. À medida que se deslocava, essa malha ia se desfazendo no seu corpo até finalmente deixar de ser uma malha e virar uma linha na cidade. Uma delicada linha deixada na cidade era como a prova de seu percurso, um rasto na paisagem. Me parece interessante trazer essas duas obras em conjunto como metáfora para introduzir a ideia de paisagem: trazem um movimento de transformação de forma a partir de um contexto dado, em Orozco, implicando em deixar uma marca, um desenvolvimento, sobre o contexto anterior, em Alys. Desse movimento duplo, implica um processo de construção. O que me interessa é que esse movimento é absolutamente humano, nos dois casos, e pode resultar, falando em paisagem, tanto uma construção física no mundo como um lastro de memória, imaterial, dependendo da sua forma de ação, ou seja, as linhas deixadas resultam culturas particulares.
<< piedra que cede, gabriel orozco, 1992
< fairy tales, francis alys, 1998
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Estendendo ainda essa imagem a uma proporção maior, seria como se todos nós, de uma coletividade, sociedade, caminhássemos pelo território que nos pertence empurrando uma esfera de massa plástica ao mesmo tempo que uma linha fosse deixada no caminho percorrido. Sendo inevitável que os dois objetos se cruzem em algum momento. Pretende-se, neste capítulo, abordar a questão da paisagem como construção social na medida em que contém o resultado da prática de cidade. Entende-se aqui paisagem como relatora do trabalho humano constante de transformação da natureza e dos processos sociais inerentes de sua fixação num território. Assim aponta Milton Santos: “Considerada em um ponto determinado no tempo, uma paisagem representa diferentes momentos do desenvolvimento de uma sociedade. A paisagem é o resultado de uma acumulação dos tempos. Para cada lugar, cada porção do espaço, essa acumulação é diferente: os objetos não mudam no mesmo lapso de tempo, na mesma velocidade ou na mesma direção.”[1]. Portando, se uma certa porção de território acultura-se, mantém em sua paisagem fragmentos materiais desse processo. As variações dessa ação ocorrem no tempo presente segundo uma função social específica que coloca os habitantes de uma cidade contracenando com
seu passado cristalizado na sua paisagem. Nesse sentido utiliza deste material, substância, latente na paisagem para compor novos horizontes futuros. Ao expor processos, as paisagens nos exemplificam visualmente uma ou várias formas de ocupação do espaço urbano através dos tempos, constituindo, segundo Richard Sennett, uma narrativa urbana: “Our work as urbanists aims first off all to shape the narratives of urban development. By that we mean that we focus on the stages in which a particular project unfolds. Specifically, we try to understand what elements should happen first, what are the consequences of this initial move. Rather than a lock-step march towards achieving a single end, we look at the different and conflict possibilities which each stage of the design process should open up”[2]. Realiza isso através do jogo cotidiano que seus cidadãos realizam “animando a paisagem”, transformando-a em espaço vivido, pois assim deixa de ser somente fonte material de uma cultura e passa a se tornar uma experiência no tempo/espaço. Pois, como mostra Milton Santos: “Não há, na verdade, paisagem parada, inerte, e, se usamos esse conceito, é apenas como recurso analítico. A paisagem é materialidade, formada por objetos matérias e não materiais. A vida é sinônimo de relações sociais, e estas não são possíveis sem a materialidade, que fixa relações sociais com o passado. Logo a materialidade construída vai ser fonte de relações sociais do passado, que também se dão por intermédio dos objetos.”[3]. Dian-
[1] Santos, Milton. Pensando o Espaço do Homem. São Paulo, EDUSP, 2007. p 54.
[2] Richard Sennett, the open city. Em urban age. Berlin. 2006.
[3] santos, milton Metamorfoses do espaço habitado. São Paulo: EDUSP, 2012. p. 78.
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te daquele papel acumulador dos tempos temos: “[...] a paisagem é transtemporal, juntando objetos passados e presentes, uma construção transversal. O espaço é sempre um Presente, uma construção horizontal, uma situação única.”[4]. Da mesma maneira, retém em seus panoramas quadros de imagens impregnadas de significados culturais afetivos, que devem estar em estado legível por aqueles que habitam a cidade, assumindo então o papel de transmissora de memórias, de imaginários. Em outras palavras, sua potência imaterial que fixa relações com o passado recai sobre a relação simbólica que se estabelece entre os habitantes e o lugar. Muito marcante, nesse sentido, é a descrição do mapa afetivo da cidade de Berlim, de Walter Benjamin, onde fica claro o potencial de significados particulares que podem conter as paisagens urbanas:
“Quando eu estiver velho, gostaria de ter no corredor da minha casa Um mapa de Berlim Com uma legenda Pontos azuis designariam as ruas onde morei Pontos amarelos, os lugares onde moravam minhas namoradas Triângulos marrons, os túmulos Nos cemitérios de Berlim onde jazem os que foram próximos a mim E linhas pretas redesenhariam os caminhos no Zoológico ou no Tiergarten que percorri conversando com as garotas E flechas de todas as cores apontariam os lugares nos arredores Onde repensava as semanas berlinenses E muitos quadrados vermelhos marcariam os aposentos Do amor da mais baixa espécie ou do amor mais abrigado do vento”[5].
[4] Santos, Milton. a natureza do espaço. São Paulo, EDUSP, 2004. p 83.
[5] W. Benjamin, “Fragmento”, 1932. Em: Bolle Willi. Fisiognomia da metrópole moderna. São Paulo, EDUSP, 1994. p. 313.
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[6] Santos, Milton. a natureza do espaço. São Paulo, EDUSP, 2004. p 86.
Neste contexto, cabe um parêntese sobre a prática do arquiteto: empregado de dimensionar os espaços do homem em suas mais variadas funções, acaba por desenhar os limites da paisagem, o que sugere, portanto, delimitar distâncias entre as memórias. Que tipo de aproximação pode ser feita? Temos então a vida urbana, de onde subentendem-se as trocas culturais da ideia de cidade, sendo intermediada pelos espaços urbanos que, por sua vez, se ligam à sociedade e sua cultura pela paisagem envolvente uma vez que ela ”[...] participa da história viva. São as suas formas que realizam, no espaço, as funções sociais.”[6]. Caminhamos em São Paulo, cada um com o peso de seu corpo, sobre um emaranhado de linhas deixadas no espaço.
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Primeira visita à área de projeto: ainda não defini ruas, enquadramentos, pontos oportunos, apenas uma região onde andei durante uma tarde por caminhos que me interessavam; andar como pesquisa. Havia definido inicialmente a região histórica do centro de São Paulo compreendida em sua colina histórica, entre os Viadutos do Chá e Santa Ifigênia, mas nessa primeira caminhada resolvi me desprender um pouco dessa meta e acabei por ir a lugares que circundavam aquela paisagem. Desci a Avenida Ipiranga e dobrei na São Luís porque queria passar pela praça Dom José Gaspar antes da caminhada: um dos lugares mais agradáveis de se estar, sentar, no centro de São Paulo, um grande respiro verde entre os prédios, sempre povoado de pessoas que param ali pelas mesas daqueles bares para conversar ou escutar música. Sempre penso que existe algo especial naquela paisagem que a torna afetiva, convidativa, cada vez que a cruzo se torna motivo de uma investigação pessoal: quais as condições ali presentes que favorecem tal urbanidade. Difícil cruzar e não sentir vontade de parar um pouco. Segui até o Viaduto 9 de Julho para espreitar a vista, assim como depois iria aos dois Viadutos já mencionados e aos pequenos da rua Florêncio de Abreu e da rua da
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Boa Vista. Imagino o incrível potencial destes como varandas urbanas, são pontos de perspectivas alongadas sobre rios infelizmente tamponados, de onde se estabelecem conexões visuais entre pontos antes não correlacionados. Representam a política histórica paulistana de atuação sobre o território e, portanto, construção de sua paisagem. Acho incrível a cultura documentada nessas estruturas, enxerguei algum potencial de intervenção. Quando cruzei o vale do Anhangabaú pela São João a paisagem se inverteu, vi o vale de baixo, em sua dimensão humana, como se tivesse trocado de lugar entre o observador e o observado. Daí em diante segui pela colina histórica da cidade: tudo era movimento. Uma aflição ver centenas de pessoas se cruzando em cinesia contínua, sem pausa, sem se ver. Numa simples tarde todos estão indo a algum lugar, que não é aquele, com pressa em direções diferentes. É uma imagem confusa, caótica: um único casal de turistas estrangeiros pára por um instante no viaduto Santa Ifigênia para tirar uma foto do vale paulistano e se sente deslocado, ninguém para em São Paulo; sacam a foto com pressa e voltam a andar.
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Desse percurso tive como objetivo inicial verificar uma proposta de intervenção na rua 3 de Dezembro, analisar de que maneira o sol incidia sobre ela. Tinha feito, dias antes, um croqui de um objeto que refletia a luz do sol, que é uma potência nessa rua, praticamente alinhada na orientação leste-oeste. Seria interessante apontar aos caminhantes da manhã e, mais tarde, aos caminhantes da tarde qual a sua relação com a geografia solar, de onde o sol vem e, então, compreender sua posição na cidade, seu tempo. Uma primeira surpresa logo na porta de entrada. No viaduto do Chá, à esquerda de quem olha para o pórtico da praça do Patriarca, descubro um balcão, uma varanda, perpendicular ao viaduto, na mesma cota dele. Um prolongamento perpendicular. Ali as pessoas do grande edifício que o hospeda descem até o térreo para fumarem entre os muitos vasos de plantas diante da vista do Teatro Municipal e do próprio Vale – uma beleza. Fiquei impressionado como aquilo sempre esteve ali eu nunca tinha percebido. Na mesma cota! É verdade que o acesso para o viaduto não é nada franco: está aberto, mas cheio de grades com um portão estreito no meio, deve fechar à noite. Fiquei de olho, parado, até entender se aquilo era público, se podia entrar. Na verdade ainda não sei, mas resolvi entrar do mesmo jeito.
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Ali dentro as pessoas pareciam viver um outro tempo, devagar, podiam talvez ficar ali a tarde toda se pudessem, sem ao menos serem notadas pelos que passavam firmes pela Patriarca. Encarei como um dos temas de projeto, uma das possibilidades: bancadas inseridas na paisagem, engastadas, criando plataformas de estar diante da cidade. Descendo a rua Libero Badaró, contornando o tal edifício avarandado de esquina, outras duas surpresas. Descubro que entre essa torre e sua vizinha existe um vazio verde, intocado pedaço da geografia primordial do sítio paulistano; no meio do centro de São Paulo: o terreno natural como era, nesse caso um pedaço do arranque da colina saindo das várzeas do rio Tamanduateí. Imaginar como seria possível diante de uma paisagem primordial insistentemente modificada e reconstruída do núcleo histórico de São Paulo existir faixas de território virgens, intocadas: documentam, hoje, as transformações realizadas neste sítio. Em frente a esse vazio está o edifício Sampaio Moreira, primeiro prédio a ser construído em São Paulo; interessante a relação entre esses dois fatos. A segunda surpresa é que entre a torre vizinha e a terceira torre na sequência da rua Libero Badaró em dire-
ção ao Mosteiro de São Bento há outro vazio, um largo depois da escadaria que desce até o Anhangabaú, que já é um lugar de remanso, uma esplanada. Ainda que mal estruturada, há uma quantidade certa de pessoas ali em pausa, sentadas em uns dos únicos bancos da região inteira. Exatamente alinhada com ela está a rua Miguel Couto, perpendicular ao Vale, por onde subo em direção à rua 3 de Dezembro; o sol bate nas minhas costas e entra oblíquo por aquela rua estreita: eram quatro e meia da tarde. Acabo de perceber que o que eu estava buscando na rua 3 de Dezembro também acontecia ali!, olho no mapa e confirmo que é porque essas ruas que cruzam a colina histórica vão no sentido leste-oeste: a famosa forma em “triângulo” da colina aponta o norte. Nunca tinha tomado atenção a iso! Uma situação geográfica e tanto: nossa colina entre dois vales recebe o sol da manhã pelo Tamanduateí, à oeste, o sol do dia em arco pelo norte aponta a direção do Mosteiro de São Bento, e o sol da tarde pelo Anhangabaú; o Vale da Manhã e o Vale da Tarde. Chego à rua 3 de Dezembro com música no ar: chorinho de um violão tocado por um artista de rua que contribui para o clima de expectativa de finalmente ver como o sol caía ali. A tarde estava mesmo muito agradável e chegar ali com trilha sonora foi especial.
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Sim, já eram cinco horas, mas o sol ainda entrava para deixar amarela uma faixa dos prédios à direita. Vibrei. É uma rua curta, calçadão, uma banca de jornal, três lojas e muitos bares e cafés que se estendem com mesas pela rua, fiquei parado numa das pontas vendo aquilo como um quadro, perspectiva de um ponto de fuga. A luz dourada rebatida no prédio chegava calma em quem caminhava. Não sei quanto tempo fiquei apoiado naquele prédio porque fiquei muito satisfeito em ver: o movimento do sol é lento e vai caminhando janela a janela mudando de cor. Daí em diante me animei e busquei a luz do sol como um tema de percurso nas ruas do entorno! Foi uma experiência um pouco Surrealista...Segui ela em cada penetração pelas frestas da paisagem central, nos seus reflexos pelos vidros espelhados dos prédios comerciais, no contraste do brilho branco das pedras portuguesas do calçamento quando o sol pousava no chão. Fiz a ligação do norte geográfico, descoberto há pouco, com o horário e estava completamente localizado quando andava depressa antes que o dia fosse embora olhando para cima e buscando ruas que encaixavam com o sol. Terminei chegando ao fim do dia na Praça do Patriarca, o pórtico ofuscado contra o sol que saía pelo Anhangabaú.
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Começo meu percurso novamente cruzando o Viaduto do Chá, a imagem à minha frente já começa a se tornar familiar: o largo viaduto apontando para o pórtico de aço branco entre altas torres de vidro e torres menores de outros tempos, porta de entrada desse lugar. Começo a ter os panoramas maiores na memória e agora já busco reconhecer detalhes menores, edifícios interessantes, ruas secundárias, ou um dos muitos níveis de informação contidos naquela paisagem. Ao virar, como de rotina, à esquerda pela Libero Badaró me chama a atenção o paredão de edifícios – Que enfileiramento interessante. Lado a lado estão prédios de todas as épocas, encostados uns nos outros, apoiados uns nos outros: um contraste de estilos e técnicas. O Sampaio Moreira ali no meio. Cada um testemunho de sua década. Quem passa percebe isso? Imaginei aquela rua como uma régua do tempo, os edifícios em sequência marcando um a um suas histórias. Fachadas de vidro escuro, de frisos e mais frisos, de vidros espelhados, janelas pequenas estreitas e elegantes. A largura da rua não permite boa observação: a Libero Badaró não nasceu com aqueles prédios. Não consigo ver a sequência se não paro e olho para cima, em movimento, passeando, é impossível. Calçadas largas sem bancos.
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Cheguei rápido ao Largo do Café, a metade do caminho, então decidi desviar a caminhada um pouco para passar mais tempo por ali. Entrei na São Bento e fui parar no começo da Avenida São João, em frente ao edifício do Banespa. Na verdade esse espaço alargado me parece o arranque da avenida, como a cabeceira de uma ponte: plano inclinado que vai até o Anhangabaú e continua em linha reta nesse sentido. Mas o que importa são as qualidades desse lugar: na base do edifício Banespa, referência vertical na paisagem da colina história – de quase todos os lugares se vê. Lembro das minhas viagens à Itália, ao Marrocos e a Paris. Sempre há referências na paisagem, objetos que se destacam em escala e em significados culturais, caminhar pelas pequenas cidades italianas é seguir torres de Igreja; no Marrocos estão sempre lá os minaretes, pontudos, das centenas de Mesquitas entre o baixo casario terra de suas medinas; Paris é a cidade mais hierarquizada que já estive, a cidade é um bloco único, maciço cor cinza, tudo tem o mesmo gabarito, a mesma arquitetura praticamente, exceto seus edifícios públicos. No centro de São Paulo reina o edifício do Banespa. A bandeira da cidade está sobre um banco: quantos significados isso traz. Não há mesmo outra referência
unânime na caminhada, muitas vezes enquanto ando procuro, como num jogo, a bandeira no topo daquele edifício e é sempre muito fácil de achar. Lembro de outras caminhadas pelo Minhocão, nos domingos, e como antes daquela curva ele surge alinhado com a pista, no final do horizonte; acho que muitas pessoas têm fotos aí. Lembro também de uma das Viradas Culturais que fui, anos atrás, assistir a um show no “Palco São João” e ele estava lá, o tempo inteiro, atrás do palco, longe em perspectiva, no final da Avenida São João, compondo o cenário musical. O lugar da base do edifício do Banespa é na verdade muito agradável de estar, um tom um pouco nostálgico dos pequenos quiosques de madeira dos engraxates, dos telefones e da banca de jornal fazem um link com a paisagem de outra época. Algumas árvores sombreiam na medida certa: nem o sol direto, nem a sombra total e densa. Alguns bares e uma artista de rua levita magicamente com algum truque que eu não entendi. Volto para o meu roteiro original até a Boa Vista, continuo até chegar ao Pátio do Colégio. Queria chegar até o outro Vale, cruzando a Colina, como havia me sugerido Marta, inicialmente pelo Beco do Pinto. Ser impedido de entrar em algum lugar é uma das sensações piores que se pode ter: o Beco do Pinto, ao lado do Solar da Marquesa, nitidamente um vestígio vivo de um antigo caminho que descia da parte alta da cidade até as várzeas
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do Tamanduateí se encontra fechado por um portão; ninguém pode passar. Contornei, então, e desci pela rua seguinte para ver o Beco de baixo. Novamente o Banespa aparece, atrás da rampa verde que leva até o Pátio do Colégio. Encontro uma pequena viela do outro lado da rua exatamente alinhada com as escadarias da antiga passagem do Beco do Pinto, descendo até o Parque Dom Pedro. Parece óbvio que aquilo fazia parte do mesmo caminho, mas o interessante é que no trecho mais alto, a paisagem ao redor quase não mudou (os edifícios têm mais valor), mas na parte de baixo novos edifícios deram as costas para a viela, sendo uma única abertura a de um estacionamento. A passagem é escura e não cheira bem, ninguém a está cruzando e eu me pergunto se seria o caso. Cruzei. Chegar ao outro lado foi como atravessar um portal ou qualquer coisa do tipo, porque aquele lugar a que eu acabava de ser apresentado era completamente diferente de todo o Centro anterior. Ali, de formal, parecia só haver o terminal Parque Dom Pedro, que por sinal está praticamente esquecido pela equipe de manutenção da prefeitura, todo o resto parece informal. Muitos camelôs, muita gente, muita música, amostra dos vendedores de cd e, sobretudo, muita fumaça dos vários churrasqueiros informais que improvisam
grelhas nas mais criativas soluções. A calçada é apertada, tumultuada, é difícil ficar ali. Essa impressão de que tudo aquilo é provisório, que vai passar depois das seis e que aquele lugar vai se transformar num deserto assusta. Não dá pra perceber nada da paisagem, além do que é ambulante. Será que dá pra considerar o que é impermanente construção? Cruzar a Colina de um Vale a outro não é encontrar dois horizontes semelhantes.
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Olho por mais um dia o vazio na chegada da rua Miguel Couto ao Anhangabaú: que lugar agradável, já é um lugar de pausa. Acho um singelo remanso na dinâmica daquele lugar, sempre tão acelerada. O edifício ao lado tem uma entrada, ou saída, voltada para esse vazio e a confluência da Miguel Couto, acima, e da escadaria em curva que leva as pessoas dele até o Vale do Anhangabaú parecem ativar aquela situação. Os cinco bancos de madeira e estrutura metálica ornamentada colocados no remanso entre vasos de concreto com palmeiras que tapam a vista são, a princípio, estranhos à linguagem do contexto, parecendo até que saíram de algum quintal, mas estão completamente contextualizados quanto à função no local que desempenham. Qualquer um pode se sentar ali por um instante antes de descer para o Vale ou de encarar a subida pela Miguel Couto porque há espaço para isso que é de fato agradável, apesar de sua estrutura ser mínima. Penso algumas ideias de projetos que poderiam ficar bem ali, um simples banco bem desenhado e posicionado. O dia nublado causa uma certa apatia à caminhada. A cidade é mesmo creme, difícil encontrar algum prédio que fuja disso: nada de cores na paisagem. Até nos edifícios que se reconhecem como mais novos a paleta das cores usada se mantém parecida. Isso só se supera
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quando surge uma fachada vidro de brilho verde em algum deles, que ironicamente reflete o outro lado bege da rua dependendo do ângulo que é vista. Me sinto cada vez mais familiarizado com o lugar e algumas vezes antecipo mentalmente o que vai acontecer no caminho se eu virar aqui ou continuar ali. Dessa vez foi uma surpresa ter notado o Largo do Café, fiquei parado em um dos cantos observando o movimento. Cruzam-se ali cinco ruas, como os dedos de uma mão, portanto naquele movimento dá para imaginar que a todo o momento pelo menos cinco pessoas estão se encontrando. Às vezes os que se encontram param para tomar uma cerveja ali mesmo no meio da rua, nas mesas dos dois bares que ocupam a parte mais larga do lugar. Os toldos são simpáticos. Esse largo é um lugar diferenciado, talvez único do Centro. Gosto também do prédio que avança em diagonal sobre o meio do Largo, formado pelo encontro das ruas do Comércio e Álvares Penteado: é como se tivesse uma esquina dentro da pequena praça. Saio pela rua Quinze de Novembro e sou abordado por um voluntário do Greenpeace pedindo uma doação: a sensação de ser a única pessoa parada no meio do meu campo de visão incomoda e o tempo parece não passar enquanto a pessoa discorre sobre o meio ambiente.
Consigo finalmente seguir meu caminho sem ser amarrado, queria chegar até o Pátio do Colégio para investigar seus fundos, a borda da colina. O que se observa dali? Como é aquele lugar? O Pátio estava fechado, mas a praça cheia. Em frente a ele muitas tendas brancas e médicos de jaleco se colocavam à disposição dos muitos que se juntavam para receber uma avaliação médica. Já tinha passado ali outras vezes, mas ver o espaço cheio transformou a paisagem. Um acampamento no Pátio do colégio. Saí dali e como já eram mais de cinco horas comecei a caminhar no sentido de volta, mas decidi fazer um arco maior e espreitar outros caminhos. Chego ao CCBB e como já estava com as pernas cansadas, decidi entrar um pouco para diminuir o ritmo. Entro no saguão, que foi feito para impressionar quando tudo aquilo ainda era um banco e que até hoje causa um efeito ao entrar. No outro lado, em diagonal oposta à entrada está um banco circular que chego depois de cruzar pelo centro do saguão. Sento ali ao lado de outras pessoas, respiro e observo a situação: como funciona aquele banco. Colocado num canto, ao lado de toda a circulação, pode se dizer um remanso, é resguardado pelo pé direito que diminui sobre ele; sua forma curva acolhe o grupo de pessoas que estão sentadas, unindo-as. Dali, em diagonal se observa toda a sala e a entrada do edifício, um pouco da rua e é de onde tomo notas do diário deste dia.
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Cruzei a Praça Don José Gaspar vindo pela São Luís logo depois da hora do almoço. Encontro a praça muito viva, como sempre, mas dessa vez que alegria, todos os bancos lotados: cruzar a praça foi como entrar e sair de muitas conversas pelo caminho. Resolvi espiar a Galeria Nova Barão, sua varanda e seus discos: dali de cima o Sampaio Moreira e o Teatro municipal ficam tímidos entre as novas torres, parecem edifícios superados, espremidos. O que tem mais valor? Ao mesmo tempo, dali, formam uma dupla interessante, sozinhos sumiriam, pois estão os dois alinhados, do Teatro em primeiro plano só se vê a fachada porque o resto fica por trás dos caixilhos de alumínio do edifício à esquerda; o Sampaio Moreira em segundo plano aparece inteiro na estreita faixa vertical entre as duas torres de vidro do Anhangabaú. Há tanto contraste entre as arquiteturas que são visíveis as diferentes linguagens. Dessa vez quando cruzei o Viaduto do Chá fui direto ao Pátio do colégio porque queria pegar ele aberto e finalmente conhecer seus fundos. Então encurto o caminho, deambulando menos, e vou direto pela Rua da Quitanda. Um tanto simbólica a conjuntura atual do Pátio do Colégio: primeiro é preciso chegar cedo por que fecha, e fecha porque é cercado de grades, do lado de dentro muitos carros se acumulam porque esse importante
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espaço e miradoro natural se tornou um estacionamento. O local do início da cidade de São Paulo hoje é um estacionamento. Finalmente dentro, vou esperançoso até os fundos, passando pelo café e sombra da grande árvore que pontua o centro do pátio. Nos fundos, realmente é só carros e mais carros. Tive que passar entre eles para chegar até a mureta, com arame enfarpado, de onde buscava a paisagem. Claro que isso não acontece todos os dias e a cena devia, de fato, parecer um pouco maluca, por isso logo vieram seguranças me ver mais de perto. No canto do platô onde suspeitava haver maior visibilidade e buscava encontrar um local de intervenção, sobretudo pelo fato de acontecer alguma relação com o Pátio do Colégio, uma decepção. Na verdade bem ali, sem ninguém dar atenção está já uma cruz e uma placa em homenagem à celebração de uma missa pelo papa na década de noventa; por trás dos carros, impossibilitando a operação. Afinal, estando ali, apesar de alto, quase não se vê: muitas árvores cobrem a paisagem. Somente se escuta, porque descobri na mesma hora que há uma praça atrás daquilo que funciona como terminal de ônibus e local de feira de ambulantes. Muito ronco de motor a diesel e música nordestina alta. A ideia de buscar um local de pausa e reflexão ali me pareceu muito difícil.
Ainda tentei subir ao segundo andar do Pátio para buscar janelas, mas novamente nada. O antigo mosteiro me parece um pouco ensimesmado, uma vez que a história da cidade é mostrada em seu interior numa exposição de maquetes em uma sala pequena, seu entorno guarda já toda ela e poderia sediar algum tipo de narrativa expográfica. Enquanto isso guarda carros. Decidi seguir, um pouco decepcionado, o caminho. Voltando pela Rua da Boa Vista ainda estava inquieto em relação a enxergar de cima o Vale do Tamanduateí e sua extensão. Lembro que, ironicamente aquela rua tinha esse nome justamente por essa sua característica: a boa vista. Hoje há um paredão de edifícios de uma ponta à outra que não deixam uma nesga sequer aberta. Chove na calçada água de ar condicionado. Vou atrás de um vazio possível, porque tudo depende de projeto. Prédio a prédio analiso a possibilidade, sobretudo olhando seus térreos, suas atividades, a rua naquele trecho. Nada muito bom até que chego a um estacionamento: quase no final da rua um edifício muito interessante com térreo de pé direito triplo, aberto para a rua com duas pesadas colunas na fachada fora transformado em estacionamento, por isso poderia se transformar novamente assumindo um novo uso. Peço autorização para entrar e tirar fotos dos fundos. A princípio “não”. Um pouco mais de conversa e estou liberado.
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Muito melhor que a vista do Pátio do Colégio, ali se vê longa geografia do Vale. Na verdade vejo isso da única janela dos fundos do quarto andar que abre, porque, apesar de todas serem de vidro, a camada espessa de fuligem dos carros embaça a vista: mesmo dentro do edifício a vista é ignorada. Cruzo toda colina até seu lado oeste, para aproveitar o pôr do sol sentado no largo da rua Miguel Couto. Começo a escrever o diário até ficar difícil de enxergar, quando não havia mais sol. Essa é minha hora predileta do dia: no limite entre o dia e a noite. Os prédios e postes começam a acender, mas ainda não dependemos deles para enxergar. Um momento um pouco ambíguo do dia. Logo depois, deixo o percurso pela noite com os prédios iluminados por dentro, como se a paisagem tivesse trocado de material: nesse momento os edifícios mais antigos desaparecem na escuridão, apagam, porque estão desocupados ou porque suas janelas são pequenas, enquanto que as torres de vidro brilham no papel principal.
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Em 2011 foi lançado um livro em Portugal com uma coleção de imagens descoladas das paredes do inusitado escritório do arquiteto Eduardo Souto de Moura: fotografias mostravam as paredes que rodeiam as mesas de trabalho forradas de recortes de jornal, pinturas, fotografias antigas de ruínas gregas e de bunkers da segunda guerra mundial abandonados, muitos deles sem autoria identificada. [1] A essa coleção deu-se o nome de Atlas (no caso, um Atlas de parede) por associação ao deus da mitologia grega punido por Zeus a reunir sobre as próprias costas todo o peso do Céu e da Terra. Evidentemente não é possível realizar a reunião de todas as imagens do mundo, nem tê-lo dentro de si em sua infinitude como memória afetiva, analógica. Por esse motivo faz-se natural uma seleção “sobretudo por causa desse excesso de informação e imagens que nos assediam permanentemente, não cessamos de tentar construir um filtro, o que revela necessariamente um entendimento cauteloso e personalizado da realidade [...] resultado de uma aculturação do indivíduo perante uma sociedade”[2] diz Pedro Bandeira, editor da publicação de Souto de Moura. As imagens que vão às paredes do arquiteto completam o espaço em branco daquela que é talvez a paisagem
[1] TAVARES, André; BANDEIRA, Pedro. Eduardo Souto de Moura: Atlas de Parede, Imagens de Método. Dafne Editora, Porto. 2011
[2] BANDEIRA, Pedro. 0p. cit., pag 9
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mais próxima de suas mesas de trabalho. Paredes que envolvem as discussões onde ele exercita seus novos projetos nos mais diferentes países, nas mais diferentes novas paisagens. De alguma maneira aquelas imagens escolhidas estão ali antecipando seus projetos. Durante o ano de pesquisa entrei em contato com muitas imagens dos mais variados meios, desde novas referências até a revisita de antigas lembranças. Percebi, ao final do trabalho, que essas imagens constituem um grupo, uma seleção, naturalmente instável e sem fim: muitas imagens entram e muitas imagens são descartadas num processo de refinação do meu tema de investigação. Diante desse grupo posso aferir, ensaiar, argumentar, identificar, imaginar, derivar, expandir ideias, seja por extensão, ou como negação. Percebi que, no final, meu exercício de projeto fora contaminado por essa busca, perseguição pelas referências às quais me identificava, que me traziam afinidade: construção do meu imaginário. Apresento aqui parte desse grupo que tem me acompanhado, como as paredes do arquiteto para ele, em toda esta discussão.
< andré malraux selecionando fotografias para le musée imaginaire, ca. 1947
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miradouro de s찾o pedro de alc창ntara, lisboa, 2011
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aquarela da vista da cidade de s達o paulo, debret, 1827
> england, richard long, 1968. duas linhas que se cruzam feitas pelo ato de caminhar
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construção da via anchieta, serra do mar, 1951
> serra pelada, carajĂĄs, Marcel Gautherot, 1978
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casa em melides, pedro reis, 2010
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ponte de sta ifigĂŞnia, debret, 1827
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miradouro nossa senhora do monte, lisboa, 2011
> A Leitura, Almeida junior, 1892
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casa em maiorca, jorn utzon, 1973
> castelo medieval, leiria, 2007
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parc g端ell, antoni gaudi, barcelona, 2011
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eis s達o paulo, Georg Paulus Waschinski, 1954
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distorção tempo espacial da europa a partir da implantação dos trens de alta velocidade, paulo virilio, 1996
> fotomontagem de Priesing e Vamp, são paulo, 1936
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são paulo através do carro, cláudia andujar.
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Correio Paulistano, 26 11 1864
> Espaรงos Imantados, Lygia Pape. 1968-2002
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praรงa antonio prado, guilherme gaensly, 1911
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Terrasse du cafĂŠ le soir, vincent van gogh, 1888
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souto de moura, bienal de veneza, 2012
> Reabilitação da plaza mayor e entorno de Almazán, CH+qS, 2008
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estudo de intervenção na rua libero badaró
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“plataforma y la ventana” de groningen, Manuel de Solàmorales, 1996
> “petit villa au bord du lac leman”, le corbusier, 1925
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fau usp, villanova artigas, registro de 1972
> braz - panorama, 1910
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restauro do parque nacional de Cap De Creus, emf , 2010
> Sun Tunnels, nancy hold, 1976
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zĂłcalo, francis alys, 1999
> estudo de intervenção na rua 3 dezembro
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estudo de mirador na colina do pĂĄtio do colĂŠgio
> estudo de mirador pĂşblico no topo do banespa
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elevador no são vito, arte/cidade, rem koolhaas, 1999
> periscópio no prédio da light, arte/cidade, guto lacaz, 1994
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Donald Appleyard Kevin Lynch John R. Myer The view from the road, 1964
> estudo para intervenção no largo do café
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”Creo com firmeza que el papel ideal del arquitecto em la ciudad no consiste necessariamente em inventar formas o solucionar problemas, sino em crear significados, añadir relaciones, clarificar lo que resulta oscuro y enriquecer ló que es enrevesado. Los objetos arquitectónicos existen no por el bien de ellos mismos, sino para formar lugares em lós cuales La gente sea capaz de captar y apreciar su complejidad como experiência estética.” [1]
O projeto tem por objetivo pontuar o centro de São Paulo com pequenas intervenções que permitissem um momento de pausa no ritmo acelerado da cidade num espaço de onde se possam ler na paisagem significados culturais. Estabelecendo um signo de espaço: são como a narrativa, a literatura para a história da cidade. Espaços de mirar a própria cidade e encontrar nela compreensões particulares de vivências, imagens. Nesse sentido coloca-se como um espaço de legibilidade, em um sistema interpretativo, do que é essencialmente urbano, por parte dos que habitam esta cidade, no intuito da manutenção desse sentido maior. Apesar de serem pequenas intervenções, calculadas para cada lugar de implantação, resultam segundo uma força centrífuga: expandem-se ao seu entorno a partir de um centro irradiador, buscando pontos de visibilidade próximos e distantes.
< vista da área de intervenção, voo viva o centro nelson kon, 2001
[1] Manuel de SolàMorales, De Cosas Urbanas. Barcelona, Gustavo Gili, Pag 64.
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[2] LEITE, Maria Angela Faggin Pereira. Uma narrativa na paisagem. Em: Paisagem e Ambiente, São Paulo: FAUUSP, 2010, n.28. p.62.
[3] “a covergência em aió dos significados inspirar e perceber com olhos e ouvido, no sentido de introjetar algo, articulase com aísthomai, perceber, e o homérico aísthó, inspirar, respirar com dificuldade. sobre esta base se explica, ultima onians, o fato curioso, [...] que em eólico epipneim, soprar em direção de, signifique olhar [...]Em: d’agostino, mario henrique. a coluna e o vulto. São Paulo, 2013. p.9.
Tomam da paisagem sua potência comunicativa, que vai além da necessidade funcional das partes do conjunto arquitetônico que a compõe, conotando significados que serão apreendidos a partir de códigos sociais distintos e em mutação: uma vez que é construção, transformação está em sintonia com os agentes dessa ação. Maria Angela Faggin aponta do mesmo modo que “a arquitetura como ato de comunicação pressupõe [...] planos e projetos enraizados no lugar, mas ao mesmo tempo, com uma carga conotativa tal, que permita à sociedade vê-los como estruturas passíveis de gerar significados latentes. De modo análogo, o paisagismo visto em sua dimensão comunicativa expressa as sucessivas formas de relação entre a sociedade, a natureza e a paisagem, revelando, por meio das conotações que assume no tempo, as múltiplas facetas dessa relação.”[2]. As intervenções passam, então, a atuar como mediadoras entre a paisagem urbana e a sociedade que a constrói, despontando significados no imaginário de quem a percorre todos os dias. A intenção é que se seu processo de leitura se desenvolvesse de um modo natural, possível de ser feito por quem despretensiosamente caminha (ver capítulo Constelações) e encontra no seu percurso arquitetura capaz de amparar uma pausa ou mesmo agregar valor ao caminhar, fazendo perceber o seu entorno com outros olhos.
Ver, como observa Mário Henrique D’Agostinho, tem raiz arcaica em respirar, implica pois uma pausa, um respiro, de modo que é na sua essência uma atividade “não só passiva e receptiva como as orelhas, mas também ativa para o externo” [3]. Seguindo essa lógica, podemos aplicar tais princípios em realidade a qualquer contexto específico, encarando a paisagem como um conjunto de muitas paisagens menores, geralmente associada ao espaço que percorremos no cotidiano e às vivências de cada um. Em cada trecho escolhido as intervenções se manifestariam de maneiras distintas. Perseguindo o conceito da formação das paisagens do geógrafo Milton Santos [4] uma narrativa sobre a mesma recai, em sua síntese, em três abordagens: um conto sobre a natureza primordial, um sobre o conjunto de objetos sociais arquitetônicos construídos que humanizaram esse espaço natural anterior, e, finalmente, uma mediação que apontasse à sociedade (ou às sociedades) os agentes que engendram as ações dessa transformação, a própria sociedade atual e sua cultura. No contexto específico escolhido para as intervenções, a chamada colina histórica da cidade de São Paulo, busquei por três intervenções que construíssem essa síntese narrativa, o que, na realidade, foi uma busca por três lugares específicos em que elas se manifestassem.
[4] “em realidade, a paisagem compreende dois elementos: 1. os objetos naturais, que não são obras do homem nem jamais foram tocados por ele. 2. os objetos sociais, testemunhas do trabalho humano no passado, como no presente. Em: santos, milton. Pensando o Espaço do Homem. São Paulo: EDUSP, 2004.. p.53.
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Os lugares que encontrei são resultado direto do meu processo investigativo a partir das derivas que realizei. Durante a pesquisa selecionei seis desses lugares, cada um com suas convicções e latências impregnadas, mas ao compor o trabalho apresento três deles acreditando mais no seu poder de síntese do que se tivesse aplicado essa lógica repetindo-a por seis vezes. Acredito que a quantidade de lugares encontrados aumentaria ainda quanto mais vezes tivesse percorrido a colina histórica, num processo de afeição desta paisagem. Deixo guardado, por enquanto, a metade deles. A primeira intervenção tem por objetivo vislumbrar o Vale do Anhangabaú e seus objetos sociais arquitetônicos de diferentes épocas e culturas; a segunda vislumbra um olhar sobre os próprios transeuntes, que se cruzam no Largo do Café, manifestando uma aproximação sobre os agentes transformadores; e o terceiro vislumbra o caminho do sol durante o ano, representando a natureza primordial. Arquitetura das intervenções mantém uma linguagem material contrastante com a paisagem que a circunda, comunicando-se como algo novo, da época atual, procurando utilizar o aço como partido estrutural.
sem mediação as formas são distintas
com mediação as formas se tornam semelhantes
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podemos então perceber que essa forma inicial carrega muitas formas semelhantes - é construção coletiva
então começamos a enxergar partes de nossa contribuição nesse conjunto
assim percebemos os multiplas formas contidas na forma inicial
viaduto santa ifigênia
praça das artes
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teatro municipal
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A escolha do primeiro lugar recaiu sobre a surpresa de tê-lo descoberto em uma das derivas, quando atentei sobre ser ele o único lugar naquele vale onde era possível ter contato com uma porção espaço natural, não modificado e ajardinado, da colina onde se iniciou a urbanização da cidade: resquício dos jardins dos palacetes Conde de Prates demolidos posteriormente. Ao mesmo tempo sua relação com o edifício Sampaio Moreira, logo à frente na Rua Libero Badaró parecia uma grande possibilidade de narrativa, considerado primeiro arranha-céu da cidade em 1924, com 50 metros de altura, até a construção do Martinelli em 1929. Quando comecei a investigá-lo vi que está no epicentro de uma paisagem que acumula muitos significados para a cidade em seus edifícios e obras de urbanização e então decidi por intervir ali por acreditar ser um bom documento das intervenções espaciais desta sociedade ao longo dos tempos: No mesmo alinhamento do terreno estão de um lado o Sampaio Moreira e do outro, após o Vale do Anhangabaú, a entrada lateral do Teatro Municipal em vista: imaginei um tubo que pudesse ligar visualmente os dois edifícios. O Teatro Municipal, de 1911, com sua monumentalidade eclética importada de modelos europeus, assinala um período importante urbano da cidade do começo do século XX, quando “[...] nas primeiras décadas deste século a sociedade tinha uma meta clara:
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construir um Centro. Na realização dessa tarefa convergiam os interesses da classe dominante e da municipalidade. Os projetos urbanísticos tinham como modelo os padrões europeus de cidade e procurava-se reproduzi-los na conjugação de ruas, praças e edifícios que compunham o espaço cenográfico da vida urbana que se organizava.”[1]. Estão materializados nesses edifícios e modelo urbano não só o estilo predominante da época, engajado pela instauração da República que remodelou a paisagem colonial e imperialista do centro, mas também a presença da imigração europeia no cotidiano da metrópole. Segundo Nestor Goulart: “europeus representavam por mais de 50% do total, alguns autores sugerem que a porcentagem atingiu 70% da população da cidade. Muitas línguas diferentes eram faladas nas ruas e em 1913, havia cerca de 70 escolas de língua italiana. Em certo sentido, São Paulo era uma cidade europeia removida para um país diferente.” [2] Desse tubo, compondo essa paisagem, está contrastando à frente do Teatro Municipal o edifício João Brícola, de 1939 do mesmo arquiteto do Viaduto do Chá atual, Elisiário Bahiana, no estilo art déco, que abrigou até 1999 talvez o primeiro modelo de comércio do tipo “shopping center”, com a loja de departamentos Mappin, depois amplamente incorporado à vida da cidade. Ao seu lado está o atual Shopping light, que ocupa desde 1999 a
antiga sede da empresa Light no edifício eclético, como o Teatro Municipal, Alexandre Mackenzie, de 1929, que por sua vez fora construído sobre o antigo Teatro São José. Conectando este cenário à colina histórica está, à esquerda de quem está na intervenção proposta, o Viaduto do Chá. Hoje vislumbra-se somente sua segunda construção de 1938, de grandes dimensões, documento do aumento do volume de tráfego e necessidade de uma larga ligação entre o centro antigo e sua expansão. Embaixo dele, o Vale do Anhangabaú atual. Faixa importante na história da ocupação e crescimento da cidade, é hoje símbolo de espaço para manifestações culturais e políticas, quando não é usado para lazer. Sua espacialidade e localização conferem a ele visibilidade às mais diversas apropriações. Toda essa paisagem abordada concentra objetos históricos, na amplitude social desse termo, ao mesmo tempo que também anuncia a chegada de novos atores como a recém-inaugurada Praça das Artes, um demonstrativo das novas maneiras de agir sobre o Vale e espaço público, tornando permeável seu térreo e propondo novas circulações nos interiores das quadras. O mirador é uma peça de aço treliçada que parte da mesma cota da rua Libero Badaró e se equilibra em seu
[1] Grostein, 1994:6 em: FRÚGOLI, Heitor Jr. Centralidade em São Paulo: trajetórias, conflitos e negociações na metrópole. São Paulo: Edusp, 2006. p. 51.
[2] REIS, Nestor Goulart. São Paulo. Town City Metropolis. São Paulo: Via das Artes: 2004. p. 46.
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> Comício das diretas, 1984. João Bittar [Câmara Brasileira do Livro: 50 anos. São Paulo: Prêmio, 1997
único ponto de apoio central até se estender sobre o Anhangabaú. O percurso do observador acompanha a estrutura, que diminui de altura estrutural à medida que se afasta dos pilares centrais, portanto ao entrar desce um plano inclinado até a metade do caminho, depois sobe para chegar até a outra ponta, onde encontra um patamar de observação com dois bancos que configuram um lugar de estar. Durante esse percurso perde a visão lateral quando chega ao meio e depois a retoma no ponto final, porque as treliças laterais se tornam mais altas que a altura de uma pessoa. Ao mesmo tempo, esse caminho se alarga do começo até o fim, as duas treliças que o estruturam não são paralelas, iniciando com três metros de largura e terminando com cinco. A ideia é que ele fosse um percurso mais rico e estimulante em seus quarenta metros de extensão até o patamar final, que é mais largo porque é onde ocorre o momento de pausa e visão dessa paisagem, agora revelada, onde os observadores se concentrariam.
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vale do anhangabaú. postal de 1925.
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Chegar ao Largo do Café sempre foi, durante os percursos realizados chegar a um lugar cheio de gente. O Largo do Café é por excelência um lugar de encontro: cinco vias diferentes se encontrando provocam um espaço alargado onde existem alguns bares com mesas na rua. Nesse lugar cruzam muitas pessoas de todos os tipos o tempo todo, em confluência. Pareceu-me oportuno que isso fosse destacado, percebido, um olhar para as próprias pessoas e seus hábitos atuais. Vale lembrar a ideia primeira de cidade, lugar de encontro, de comércio de ideias, que estimula a fixação e o desenvolvimento de uma coletividade. O Largo do Café é um espaço urbano testemunho do processo de crescimento da cidade de São Paulo, uma vez que o desenho de seu espaço amparou no início do século XX uma espécie de bolsa cafeeira informal, onde barões, comerciantes e compradores se reuniam para trocar o produto até 1914, quando foi criada a Bolsa Oficial do Café, em Santos. Para além da circulação do café, se formava um espaço de reunião da sociedade da época. A intervenção tem forma de esquina para formar, na verdade, um ponto de encontro de dois ou mais passeantes que vem das ruas do Comércio e Álvares Penteado. No seu encontro faz-se um largo circular onde podem se sentar diante da visão do movimento do Largo do Café: duas escadarias partem uma de cada rua,
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escalando o edifício da Bovespa até se encontrarem na altura do friso de arremate do primeiro andar. Repetindo a lógica do que já acontece nesse lugar, mas numa cota elevada, de onde pode se perceber sua totalidade em uma estrutura metálica nova que se apoia no antigo edifício da Bovespa. Evidentemente que a sociedade atual é tamanha complexa e não representa diretamente os valores anteriores que justificaram a forma do espaço do Largo do Café. Compreender a sociedade atual é deter-se sobre um emaranhado de questões que esta intervenção apenas busca uma aproximação, a partir da observação dos novos transeuntes que animam essa paisagem, podemos discorrer sobre a atualização da cultura desta cidade.
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Ao procurar algum lugar que se apresentasse como objeto natural anterior a essa sociedade entre aquelas ruas estreitas tão repletas de história, isso se tornou algo distante daquele sítio, fora de contexto; busquei então algo que, antes um objeto, fosse um motivo natural. Considerei tão forte o percurso que fiz procurando e sendo guiado pelo sol que incidia pelas frestas de paisagem que acabei por considerá-lo uma potência. O sol que carrega uma carga simbólica ancestral, pois seu entendimento contribuiu para a fixação de sociedades agricultoras passadas, sobretudo no que diz respeito à marcação do tempo, as sazonalidades. Desempenha também, como demonstrado, pleno localizador geográfico, indicando com facilidade os quatro pontos cardeais. Portanto essa relação espaço/tempo imaterial e de duração infinita assinalada pelo movimento solar deveria ser mediada por algum objeto físico, construído, não natural, que colocasse os homens na condição de expectadores que compreendessem, a partir dele, a geografia de seu entorno. Cabem aqui dois exemplos interessantes de cidades onde ocorre esse tipo de sensível compreensão a partir da relação do sol com as ruas do espaço urbano: Lisboa e Nova Iorque.
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Em Lisboa existem atualmente quatro ruas que trazem em seu nome sua própria característica: Rua do Sol à Graça, a Rua do Sol a Santana, a Rua do Sol ao Rato (onde morei muito perto durante meu intercâmbio em Lisboa) e a Rua do Sol a Santa Catarina, sendo sempre uma rua associada a um largo. Por essa rua, em determinada data e hora entra o sol alinhado como se o objetivo de ela estar ali naquela posição fosse trazer luz ao seu par, o largo ao lado. Em Manhattan, Nova Iorque, o efeito tem proporções maiores: duas vezes ao ano ocorre o chamado “Manhattanhenge” quando o pôr do sol se alinha exatamente com as vias leste-oeste do grid do desenho da cidade, iluminando toda a via e suas fachadas norte e sul. O fenômeno é sentido na vida da cidade como um evento esperado e comemorado, quando seus habitantes reconhecem sua geolocalização de uma maneira lúdica. Tomei partido do alinhamento leste-oeste quase perfeito da rua 3 de Dezembro para explorar o percurso do sol na cidade durante o ano. Uma intervenção formada a partir de três objetos: um largo banco monolítico posicionado para vislumbrar o caminhar do sol sobre os outros dois calculadamente implantados para recebê-lo.
Esses dois elementos por oposição se completam, trabalham juntos, uma vez que um é vertical, uma adição no plano do horizonte, em forma de cruz aponta o norte, feito para receber o sol baixo do inverno e o absorver produzindo uma larga sombra que ao longo do dia caminha entre os prédios e o chão das ruas 15 de Novembro e 3 de Dezembro. O outro é horizontal, uma pequena subtração do plano da rua, circular, indica o norte com o deslocamento do seu centro, recebe o sol alto do verão e o reflete em seu espelho d’água até as fachadas dos edifícios. Imaginei o percurso do sol naquela paisagem durante o ano, transformando suas cores do nascer até a noite, alterando até o que se chama “atmosfera” desse espaço. A cada um viriam muitas imagens; para mim, sentar ali nesse banco seria como “ver o tempo passar”.
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0
2.5
5
10m
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elevação esc 1:100 seção tipo esc 1:10 isométrica sem escala
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z贸calo, francis alys, 1999
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reflexos de janelas na rua 15 de novembro
cortes transversais e planta esc 1:100 isomĂŠtrica sem escala
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solstĂcio de inverno
21 jun
10 30h
12 00h
14 00h
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equin贸cio
23 set
08 00h
10 30h
13 30h
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solstĂcio de verĂŁo
22 dez
10 30h
14 00h
15 30h
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conclus達o
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Naquela feira em frente à casa que morei até os quinze anos hoje só existe a barraca de pastel: ela foi ano a ano diminuindo até que só os moradores mais velhos soubessem da sua existência. Minha família se mudou, assim como outros moradores. O mais incrível em debruçar-se diante de paisagens é que estamos lidando com um material vivo, que sofre transformações, às vezes num espaço de tempo dilatado que não percebemos, outras vezes tão rápidas que não temos a oportunidade de ater-se à ela uma última vez. Por isso está sempre nos envolvendo e ganhando outras dimensões. O plano visual que concentra panoramas de paisagens não é, nesse sentido, formado a partir de três pontos no espaço, como ensina a geometria descritiva. São planos com espessuras, profundidades, que variam segundo as memórias, vivências no espaço; e à leitura de cada um sobre ela que vai exigir sua experiência espacial. A esse respeito, concluo que ter adotado uma metodologia de projeto baseada em derivas na cidade foi, inevitavelmente, o melhor caminho para chegar à uma realidade física e entendimento mais próximo das questões inerentes ao tema de mediações. Acredito que a arquitetura deve ser sempre um exercício de aproximação, dos mais abrangentes temas.
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Isso implica ter em si estabelecido, um exercício de apreensão cotidiana do que temos a nossa volta: ter visões de cidades. Diante de um mundo cada vez mais virtual, distante das paisagens construídas, o arquiteto poderia ser, afinal, a figura mediadora entre a cidade e seus cidadãos, entre a paisagem e os que estão à paisana. Os três projetos apresentados são as minhas primeiras conclusões sobre aquele lugar. Pretendo manter o tema aberto à novas pesquisas: ponto de saída para outros caminhos a serem trilhados.
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Agradeço à minha família, que está por de trás de todas as minhas paisagens. À Marta, por ter aceitado o convite e ter me conduzido nesta caminhada. A todos os meus grandes amigos que me acompanharam no percurso de Fau e que ajudaram, mesmo sem saber, na minha formação. Um agradecimento mais que especial aos que colaboraram lado a lado nesse trabalho.
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