TEMPO PAISAGEM - Karina Dias

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TEMPO PAISAGEM KARINA DIAS

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TEMPO PAISAGEM  KARINA DIAS Curadoria Cristiana Tejo Caixa Cultural Brasília Outubro a dezembro de 2017

COORDENAÇÃO E PRODUÇÃO EXECUTIVA

FOTOGRAFIA

Mira produção e arte Bruna Neiva Virginia Manfrinato

Joana França  (catálogo) Vinicius Fernandes (eventos)

ASSISTÊNCIA DE PRODUÇÃO

Gisele Lima

MONTAGEM

A Caixa é uma empresa pública brasileira que prima pelo respeito à diversidade e mantém comitês internos atuantes para promover, entre os seus empregados, ideias e atitudes de respeito à diversidade de gênero, raça, orientação sexual e todas as demais diferenças que caracterizam a sociedade. A Caixa também é uma das principais patrocinadoras da cultura brasileira, com o patrocínio a projetos culturais nas unidades da Caixa Cultural e outros espaços. Os projetos são escolhidos via seleção pública, uma opção da Caixa para tornar mais democrática e acessível a participação de produtores e artistas de todas as unidades da federação e mais transparente para a sociedade o investimento dos recursos da empresa. Na mostra “Tempo paisagem”, da brasiliense Karina Dias, a Caixa Cultural Brasília apresenta um recorte da produção em vídeo e fotografia ao longo de 20 anos de carreira dessa artista visual. Na exposição, o visitante será convidado a se desconectar do ritmo frenético da atualidade e adentrar num processo de contemplação e vivência a partir das paisagens construídas pela artista. As imagens captadas por Karina Dias revelam assim, de forma poética, espessuras visuais do tempo e representações singulares do corpo nos mais diversos espaços geopolíticos. Ao patrocinar essa exposição, a Caixa reafirma sua política cultural e sua vocação social, democratizando o acesso aos seus espaços e fomentando a cultura em todas as suas formas de expressão. Desta forma, também desempenha seu papel institucional de estimular o conhecimento e a criação, dando condições concretas para que a população brasileira tenha contato direto com o que há de melhor e mais inspirador na produção artística nacional e internacional.

Capa e páginas anteriores: Diário de bordo, 2013/2016 18 fotografias em metacrilato 29 × 23 cm

CENOGRAFIA

Marcenaria Polovinas

DESIGN

Gabriel Menezes EXPOGRAFIA

Virginia Manfrinato CÂMERA E EDIÇÃO DE VÍDEOS

Albert Ambelatiokis ILUMINAÇÃO

Caco Tomazzoli Jó Capoliteo Jonny Locas Alan Mendes COORDENAÇÃO ADMINISTRATIVA

Ivone Oliveira - Enzima Cultural ASSESSORIA DE IMPRENSA

Agenda KB MÍDIAS SOCIAIS

PINTURA

LM Montagem de Cenários PLOTAGEM

WL Serviços e Comunicação Visual VÍDEO

Rodrigo Resende AGRADECIMENTOS:

Albert Ambelakiotis, Gaëlle Dias Ambelakiotis, Vera Lúcia Dias, Jade, Belinha, Grupo de pesquisa Vaga-Mundo: Poéticas Nômades, Gê Orthof, Christus Nóbrega, Iracema Lecourt, Cecília Mori, Graça Ramos, Dalton Camargos e Galeria Alfinete, Sérgio Carvalho, Reginaldo da Silva Sousa.

Full Target Marketing Digital

D541t DIAS, Karina 1970-; TEJO, Cristiana 1976 Tempo Paisagem Karina Dias. – , Brasília, Mira Produção e Arte, 2017. 44 p. : il.

Fontes  Artegra Sans e Directa Serif

ISBN 978-85-54915-00-1

Papel  Offset 120g e Couché 300g

1. Artes Visuais. 2. Arte Brasileira. 3. Paisagem 1. Título.

Impressão  Athalaia gráfica e editora

CDD 700  |  CDU 73

Tiragem  1.000 unidades

Caixa Econômica Federal 10

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TEMPO PAISAGEM / KARINA DIAS Cristiana Tejo Curadora

O tempo e a paisagem são invenções humanas. As horas e os minutos foram criados a partir de processos físicos para padronizar socialmente a duração e os períodos. Entretanto, como nos lembra Norbert Elias, “o tempo não se deixa ver, tocar, ouvir, saborear nem respirar como um odor. Há uma pergunta que continua à espera de resposta: como medir uma coisa que não se pode perceber pelos sentidos? Uma “hora” é algo de invisível”. Os gregos dividiam o tempo em dois: o cronos, medida linear de natureza quantitativa, e o kairós, o momento oportuno de raiz qualitativa, um tempo experiência. Por sua vez, a paisagem é um conceito amplo e impreciso, inicialmente elaborado pela pintura como esquema simbólico do contato humano com a natureza, e é também estudado por outras disciplinas como a geografia, que a define como porção do espaço apreendida com o olhar. Segundo Luiz Otávio Cabral, o olhar não é apenas o exercício de um sentido (a visão), mas igualmente uma produção de sentido (significação). A paisagem percebida é também construída por aquelx que a vê. 12

Tempo e paisagem são definidos, portanto, pelo ponto de vista do sujeito e a partir de uma experiência corporal e de como e onde são vivenciados, captados e apresentados. Neste sentido, podemos compreender que a artista Karina Dias tece tempo paisagem em seus trabalhos. O processo de captação dos fenômenos e dos acontecimentos faz entrelaçar cronos e kairós, tempo quantitativo (linear) e tempo qualitativo (subjetivo) diante da natureza, em busca do momento oportuno. Por vezes, um trabalho leva anos para ser concluído, pois o entrelaçamento destes dois tipos de tempo assume uma forma orgânica. Importante salientar, que a exposição Tempo paisagem é fruto do desejo de trazer a um público amplo a sólida trajetória de 20 anos de Karina Dias, uma das artistas mais influentes da cena artística brasiliense. A vontade partiu de conversas que ocorreram sob os auspícios do I Prêmio Transborda Brasília, em que a artista foi premiada e como parte de seu prêmio havia um acompanhamento crítico feito por mim. Estava muito evidente 13


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de montagne, 2016 vídeo-projeção, 22min 28seg

desde o início de nosso diálogo que Karina, apesar de sua importância, não havia exposto individualmente até então uma ampla gama de seus trabalhos em sua própria cidade. A ausência de mostras de sua produção era uma questão não apenas de visibilidade, mas de compreensão aprofundada de um corpo de questões elencados em obras vistas de maneira a-sistemática e separadas no tempo e no espaço. O mundo da arte em Brasília orbita em torno da UnB e tem uma dinâmica muito singular, em que a familiaridade de colegas artistas e de alunos com os trabalhos produzidos gera uma sensação de “já visto” mesmo que se trate de uma visão parcial. Além disso, este circuito torna-se opaco para o público externo. Desta forma, esta exposição propõe-se a re-apresentar Karina Dias a duas audiências: àquelxs que já a conhecem e ao grande público. Estão reunidas nesta mostra obras de vários momentos de seu percurso, sendo a mais antiga datada de 2003 e a mais recente feita neste ano, que foram alinhavadas em três eixos, possibilitando vários percursos. O primeiro encontra-se no hall central e parte da série Souvenirs Brasília, composta por quatro caixas que contém imagens de pequenos acontecimentos em lugares que são cartões postais da capital brasileira ao mesmo tempo em que fazem parte de uma paisagem afetiva da artista: a Superquadra 308 sul, a Igreja de Nossa Senhora de Fátima (primeiro templo a ser construído na cidade, projetado por Oscar Niemeyer e ornamentado com azulejos de Athos Bulcão), o lago Paranoá e a Esplanada dos Ministérios. Brasília é a paisagem zero de Karina Dias, espacialidade e temporalidade inaugurais de

Souvenir-Brasília, 2011/2012 4 caixas de mdf, tv plana 7”, espelhos Dimensões variadas, detalhe.

sua experiência no mundo e ponto de partida para adentrarmos nas intensidades de tempo apresentadas pelos demais agrupamentos de trabalhos. O segundo núcleo assenta-se em vídeos e numa instalação em que a paisagem manifesta-se pela incidência e pela ausência da luz e pelo movimento dos corpos, desde uma perspectiva de onde é observada. O percurso inicia-se, propositadamente, por duas janelas, Passager I (2004) e Janela I (2009), uma alusão à função histórica da pintura como janela do mundo e como primeira construtora da noção de paisagem. Numa delas, o mesmo espaço enquadrado é dividido em três, sendo cada pedaço autônomo quanto à transformação do que vemos apenas com as mudanças climáticas e momentos do dia. No outro trabalho, o deslocamento do trem em sentidos e horários diferentes demarca a divisão de uma janela e nos joga na sensação de participarmos da jornada. O seccionamento em partes de uma mesma projeção é recurso também usado em Ilha (2016/2017). Neste caso, observamos uma mesma ínsula numa mesma hora a três distâncias distintas simultaneamente e o efeito de estranheza do lugar persiste. Outro agrupamento fixa-se em vídeos de outros três ambientes aquáticos. Toco (2013), Lago (2015) e Frente Fria (2016) trazem planos semelhantes: câmera parada que enfatiza o movimento vigoroso das águas e sutil transição da névoa. A recorrência da captação de fenômenos ligados à água ganha um outro significado quando nos encontramos numa cidade quase desértica como Brasília, em que a ausência de precipitação amplifica a necessidade e o desejo. Porto (2017) alinhava vários dos partidos estéticos de Karina Dias. Trata-se de 14

uma enseada e seu ancoradouro apresentados em horários e ângulos diferentes. A quase não-ação ocorre pelas idas e vindas de um navio. A terceira parte centra-se na presença do corpo como eixo de organização semântica, tanto da artista quanto dos visitantes. Nesta ala, são apresentadas de maneira mais evidente questões de territorialidade como as fronteiras, que assinalam a fragilidade e complexidade das demarcações nacionais: em três passos deixamos para trás um país e adentramos outro, sendo esta operação aparentemente simples repleta de muitas implicações. Quantos não morrem ao tentar cruzar uma linha divisória entre o México e os Estados Unidos, por exemplo? O ato de

caminhar e a medição com o corpo é investido concomitantemente de poeticidade e de gesto político. Em Fronteira (2017), Karina evidencia o que ela chama de Ser-Sul, uma afinidade com uma paisagem longínqua, praticamente no fim do mundo. Neste pedaço da exposição, as escalas dos trabalhos têm papel fundamental na apreensão sensorial do público. Por vezes somos chamadxs a adentrar um ambiente, como em seu imersivo campo florido ou a nos posicionarmos muito próximxs para ouvir o sussurrar de uma obra. Esta mostra trata-se, portanto, de um convite ao público para adentrar nas densidades de experiências de tempo e de espaço pelas lentes e olhar de Karina Dias. 15


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A vista, 2013/2014 1920 × 1080. 3min 2seg Vídeo-instalação

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NOTAS SOBRE PAISAGEM, VISÃO E INVISÃO Karina Dias Publicado originalmente em Visualidades, Goiânia, v. 6, n. 1-2, 2008. As questões aqui abordadas fazem parte de: Dias, Karina. Le paysage: entre le vu et l’invu, pour une pratique paysagère dans le quotidien. 2007. Tese (doutorado em artes Plásticas), Panthéon Sorbonne, Université Paris I, Paris, 2007. A tese foi traduzida em português e transformada no livro: Entre Visão e Invisão: Paisagem (por uma experiência da paisagem no cotidiano). Brasília: Ed. Do Progama de Pós-Graduação em Arte/UnB, 2010. O presente texto também fará parte do volume Artes Visuais da Coleção grandes ensaios brasileiros contemporâneos (título provisório) organizado pela funarte a ser lançado entre 2017 e 2018.

O que se produz entre o olhar e o espaço cotidiano, urbano ou não, para que este último possa ser percebido como paisagem? Partimos da ideia de que esta se revela em meio às situações rotineiras e banais, em um movimento acelerado de pontos de vista distintos; ela é passagem, um deslocamento do olhar. Em outras palavras, a paisagem é revelada pelo poder elementar dos olhos como um espaço designado, um espaço onde sua constituição está indissociável do trabalho do corpo que o engendra e o inscreve. Para Guy Tortosa,1 a noção de paisagem é bela porque exemplifica, sem outro suporte que o próprio corpo (olhar, andar, palavras…), o compartilhamento de um estado da alma, a comunhão de uma impressão: “A paisagem é um espaço mutante em fenômeno, um potencial que 1.  TORTOSA, Guy. Pour un art in visu. In: CLEMENT, Gilles. Les Jardins Planétaires. Paris: Jean-Michel Place, 1999.

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o olho e o espírito ativam para que sua existência tenha literalmente lugar”.2 Isso significa pensar nas formas de ver, “os olhos são o lugar da paisagem”.3 Nesse sentido, podemos pensar na interrogação que Merleau-Ponty4 faz a Cézanne acerca da montanha Sainte-Victoire. Ele se pergunta o que exatamente quer o pintor da montanha, o que ele pede à montanha. “Pede-lhe desvelar os meios, apenas visíveis, pelos quais ela se faz montanha aos nossos olhos.”5 Experimentar a paisagem no cotidiano seria ativar um movimento do olhar no qual ver e não ver se articulariam; onde os pontos de não visão, de um certo estado de cegueira, se transformariam em invisão, em uma visão interna. É nessa 2.  Idem, s/p. 3.  Idem, s/p. 4.  MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito. São Paulo: Abril, 1980. (Coleção Os Pensadores). 5.  Idem, p. 281.

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2016 vídeo-projeção, 7min 9seg

dialética entre ver e não ver, entre não ver e ver internamente, que se constitui o que aqui chamamos de paisagem. Não se trata de ver tudo, de ver em panorama, mas, sim, de se aproximar para habitar, de detalhar para se situar, para olhar no mesmo, no espaço de sempre, a diferença. Assim, a experiência da paisagem no cotidiano se forja na junção de certa maneira de olhar e dos caminhos percorridos. Ela tomaria forma a partir de detalhes corriqueiros que, por serem vistos e (re)vistos continuamente, se tornariam invisíveis aos nossos olhos. Como, então, interromper, mesmo que momentaneamente, nossa percepção visual rotineira para que se instale uma percepção inusitada, uma experiência sensível do nosso espaço de todos os dias? Em outras palavras, como, através da prática artística, o espaço rotineiro da cidade vai se revelando como uma paisagem singular, como um espaço-em-paisagem? Habitante-artista-habitante Na minha pesquisa plástica, minha intenção é sempre articular duas posturas pessoais. A primeira é aquela que denomino postura da habitante da cidade, na qual tento compreender como percorro os espaços da rotina e da repetição, onde me interrogo em que momento esse espaço se transforma em um espaço-em-paisagem. A segunda postura é a da artista plástica que tenta restituir o mais fielmente possível as transformações perceptivas vividas, onde me pergunto como apreender e como tornar visível “a visão-minha do visível”,6 sem trair aquilo que vivi. 6.  Em francês, la vision mienne du visible. Cf. MERLEAU-PONTY, Maurice. Le visible et l’invisible. Paris: Gallimard, 2005, p. 19.

Dessa articulação emergem três questões: • Primeiramente, “o que vejo?”. • Em seguida, “como vejo?”. • E por fim, “o que vejo quando não vejo?”. Na minha prática teórico-artística, tento explorar essas questões a partir de dois eixos principais de reflexão: a paisagem e o movimento do olhar, este último englobando ver e não-ver ou in-ver. Logo, pressupondo que o que vejo é uma paisagem, seria interessante tentarmos compreender sucintamente o que é uma paisagem. Paisagem: ponto de vista, ponto de contato Entre tantos autores que discutem a noção de paisagem, poderíamos citar Milton Santos7, que afirma que, a rigor, a paisagem é apenas uma porção da configuração territorial que é possível ser abarcada pela visão. Nós poderíamos citar também o historiador Alain Corbin,8 para quem a paisagem é uma certa leitura do espaço. A essas duas visões soma-se a contribuição do geógrafo Augustin Berque (1994), que nos lembra que a paisagem articula o lado objetivo do mundo, isto é, ela se reporta a objetos concretos os quais existem realmente ao redor de todos nós (pedras, montanha…) e o lado subjetivo singular e íntimo de cada observador. Assim, a paisagem não se reduz ao que nos é dado visualmente pelo mundo que nos cerca. De alguma maneira, ela está especificada pela subjetividade do observador, subjetividade que é bem

mais do que um simples ponto de vista ótico. Por outro lado, ela não se reduz também a ser apenas o “o espelho da alma”, “não é nem um sonho, nem uma alucinação; pois mesmo que aquilo que ela representa ou evoca possa ser imaginário, ela sempre exigirá um suporte objetivo”.9 Nesse sentido, perceber ou reconhecer a paisagem no cotidiano é compreendê-la como uma espécie de aparição, como algo que inesperadamente surge diante de nossos olhos, uma espécie de epifania imprevisível. A paisagem no cotidiano seria aquele momento no qual os prédios deixariam de ser apenas prédios, apesar de continuarem a ser prédios, é o instante em que conseguimos ver a poesia das formas, onde o muro se transforma em nuvem. A paisagem seria, então, uma maneira singular de ver no mesmo a diferença, é momento onde nos aproximamos do espaço e somos enlaçados, atravessados por ele. Ela é ponto de vista, ponto de contato. Essa experiência pode ser pensada como uma fissura, como um hiato, que rompe com o tempo da rotina e instala o tempo de um certo ponto de vista, o tempo de uma certa vista. É como se, a cada experiência da paisagem, o espaço cotidiano repentinamente ganhasse relevo e se elevasse aos nossos olhos. Portanto, penso meus trabalhos como a exploração das minhas epifanias cotidianas, como exercícios da minha visão que vão dando contorno ao meu olhar; eles são a sua medida.

7.  SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Hucitec, 1999. 8.  CORBIN, Alain. L’homme des dans le paysage. Paris: Les Éditions Textuel, 2001.

9.  BERQUE, Augustin (Org.). Cinq propositions pour une théorie du paysage. Seyssel: Champ Vallon, 1994, p. 5.

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Ajanelar o cotidiano Alain Roger10 afirma que a paisagem foi uma invenção pictórica esboçada no século XIV, na Itália, com pintores como Ambrogio Lorenzetti, e realizada e concluída no século XV, nos Flandres, com Van Eyck e outros. Há dois elementos que foram decisivos: a laicização do espaço11 e o aparecimento da janela na pintura. Aqui nos interessaremos pela janela, essa abertura no interior da pintura que significou uma nova relação com o mundo exterior. O que se observa, com o aparecimento da janela, é a articulação do interior/exterior, em que o espaço externo, profano, adquire a mesma dimensão do espaço interno, privado e religioso. É a articulação do abertamente coletivo e do íntimo, do privado e do público. Gérard Wajcman12 propõe a seguinte equação: natureza + janela = paisagem. Isto é, uma natureza vista da janela de uma cidade, uma vez que a maioria dos pintores morava na zona urbana. Assim, esse autor pensa o aparecimento da janela na pintura como uma espécie de ajanelamento13 do mundo que institui o sujeito moderno.14 É justamente essa noção de ajanelar o mundo que me inspira na minha prática artística, pois considero meus trabalhos como a concretização 10.  ROGER, Alain. Court traité du paysage. Paris: Gallimard, 1997. 11.  Para um aprofundamento desses dois aspectos, ver entre outros, ROGER, Alain. Court traité du paysage, op. cit. 12.  WAJCMAN, Gérard. Fenêtre, chroniques du regard et de l’intime. Paris: Verdier, 2004. 13.  Em francês, fenêstralisation. 14.  Para um aprofundamento dessa questão remeto o leitor à obra WAJCMAN, Gérard. Fenêtre, chroniques du regard et de l’intime, op. cit. 23


dessa noção. Ajanelar o cotidiano seria, então, explorar singularmente aquilo que vemos todos os dias, tentar encontrar novas perspectivas, recortes singulares, outros enquadramentos. Seria trazer à superfície da nossa visão, sempre esquecida, fragmentos do espaço cotidiano e o que dele ecoa. No espaço cotidiano, em função das nossas condições atuais de vida, a experiência da paisagem aqui evocada não se opõe ao fluxo caótico do mundo. Ao contrário, ela é tributária dos fenômenos cotidianos, da aceleração dos nossos deslocamentos, do efêmero, daquilo que é passagem. Nessa fenomenologia íntima do olhar, meus trabalhos são como janelas fluidas, móveis, impermanentes, que vão focalizando o cotidiano de outra maneira. Emerge daí, quem sabe, uma paisagem que se revelaria nos detalhes, em detalhes, oriunda de uma prática do banal. Uma prática do banal Nada mais comum para os habitantes da cidade que subir ou descer uma rua, olhar a paisagem pelas janelas do carro, do ônibus ou do metrô. Entretanto, é justamente nessa absoluta banalidade que poderiam residir os instantes de paisagem evocados aqui. O que eu evoco na minha prática artística são transformações perceptivas que, se apresentadas de maneira poética, ganham novos sentidos, nos fazem ver, rever, ver mais uma vez e uma vez ainda aquilo que já havíamos visto tantas vezes. É uma tautologia poética na qual, pela constatação, a evidência nos é mostrada, de forma que um detalhe, um detalhe qualquer, um quase-nada, um não-sei-o-quê, teria a capacidade de nos interpelar e orientar nossa percepção espacial. Seria,

assim, suscitar o desejo de ver, despertar nossa visão esquecida colocando-a em movimento para o olhar o banal. O detalhe aqui é entendido como um microevento que nos faz ver melhor, ver do interior, o conjunto que se apresenta diante dos nossos olhos. Ele é aquilo que inquieta nossa maneira de ver, é resistência a uma certa ordem cotidiana, é relevo, é fissura. Nessa pratica do banal, o espaço cotidiano se transforma em espaço do viajante. Em outras palavras, esse primeiro espaço domesticado, controlado onde tudo parece ocupar um lugar previsível e perene, se transforma, pela nossa capacidade de olhar, de ver e (re)ver, em um espaço estranho, estrangeiro, irreconhecível temporariamente. É o olhar do viajante que vê o novo no familiar, o caótico na ordem, incluindo o imprevisível no previsível, o imprevisto no previsto. Seria como fixar a atenção para além dos contornos já experimentados, entrevendo na evidência a possibilidade de reestruturar o espaço da rotina e da repetição. Finalmente, não seria assim a experiência da paisagem, uma experiência sensível do espaço? Não seria ela o vislumbre de perspectivas singulares que nos fazem perceber, pressentir uma estranheza efêmera? Um certo se “se sentir ailleurs”, se sentir longe, em outro lugar, sem sair do lugar? Aqui, viajar não é se deslocar no espaço, é se deslocar no tempo. Em outras palavras, a viagem é uma experiência temporal, é um ato de ruptura que instala uma abertura, um hiato, um lapso onde se alojaria nossa experiência sensível do espaço, é se dar conta que temos o horizonte no olhar. 24

Logo, como manter esse olhar alerta? Como desenraizá-lo quando estamos tão enraizados nos espaços da rotina? Poderíamos nos lembrar do personagem de Italo Calvino,15 Palomar, cuja principal atividade era observar as coisas. O personagem nos narra como ele observa uma onda do mar e como ele a distingue das demais, ou então como ele observa o reflexo do sol tão perceptível e tão fugidio ao nos aproximarmos: “Palomar, de toda maneira, não se desencorajava: ele acreditava que a cada instante ele conseguia ver de seu ponto de observação, mas finalmente surgia sempre algo que escapava, que ele não havia se dado conta”.16 Poderíamos, então, situar minha prática artística nesse projeto do personagem Palomar, isto é, nessa intenção de se situar continuamente no limiar da visibilidade, entre aquilo que vemos e aquilo que escapa ao nosso olhar, entre o visto e o não visto, num movimento que inclui ver e não ver, no qual ver seria como olhar pela primeira vez. Isto nos conduz à minha segunda questão: como eu vejo? Eu vejo, eu olho, eu vi Poderíamos responder a essa questão, “como vejo?”, nos aproximando do movimento do olhar, numa diferenciação de três instâncias: o ver, o olhar17 e o visto. Sucintamente, o ver seria ligado à nossa capacidade fisiológica, basta abrir os olhos 15.  CALVINO, Italo. Palomar. Paris: Seuil, 2003. 16.  Idem, p. 14 17.  Remeto o leitor a CARDOSO, Sérgio. O olhar viajante (do etnólogo). In: NOVAES, Adauto (Org.). O olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

para vermos. Como nos assinala Sérgio Cardoso, ele seria um deslizamento horizontal ininterrupto no espaço, que nos daria a sensação de totalidade, homogeneidade. Poderíamos acrescentar que o ver é um movimento que nos lançaria numa visão panorâmica. Por outro lado, o olhar seria um movimento interno do sujeito que se interroga, pensa e se inquieta com aquilo que se apresenta aos nossos olhos. O olhar é um ato intencional de dirigir os olhos para discernir e é incitado por um apelo sensorial (uma luz, um barulho…), por uma mudança no campo do ver que suscita que a “coisa” seja considerada. Citando novamente Cardoso (1999), o olhar é vertical, ele rompe com a linearidade do campo do ver, fissurando, dessa forma, a sensação ilusória de totalidade. Assim, podemos sugerir que o olhar é o olho vivo, é o olho alerta. A terceira e última instância é o visto, aquela que teria a capacidade de preservar o que foi olhado, é como a conclusão do processo eletivo do olhar. Essa instância isola e instala o visível, armazena aquilo que foi garimpado pelo ato de olhar. Poderíamos pensar o visto como a memória de um visível triado, filtrado e eleito que adviria de um tipo de duelo entre aquilo que nós conseguimos ou não ver. O visto seria a pausa, o instante capturado onde nós estaríamos numa memória que é o presente que dura. Se o ver nos dá a sensação de abarcar de uma só vez, o ato de olhar trabalha na descontinuidade, na fragmentação, no detalhe. Se o ver é superfície, o olhar é profundidade; se o ver é uma cobertura rápida do espaço, o olhar é atravessamento, ele tem um objetivo, um alvo, ele é aproximação. 25


Nós poderíamos pensar que o mundo de fato existe, tem realmente lugar a cada vez que nós ativamos o movimento do olhar. Olhando, nós compomos uma espécie de mosaico-paisagem de trama do visível, concebida de nossos vistos, esses fragmentos capturados a cada enquadramento feito pelo nosso olhar. Nessa cartografia caótica daquilo que vemos, forma-se uma composição instável, fluida, que acolheria uma multiplicidade de pontos de vista heterogêneos. Seus limites são embaçados, seus contornos indefinidos. Essa trama separa aquilo que vemos daquilo que aparentemente não vemos. Portanto, estabelecendo uma seleção, o movimento do olhar nos posiciona sempre entre aquilo que nós desejamos ver, aquilo que realmente vemos e aquilo que ainda não vemos. Nesse sentido, me interrogo se aquilo que ficou fora da nossa focalização, do nosso alvo, mas que certamente estava nosso campo de visão, pode ser considerado invisível aos nossos olhos? Como designar aquilo que não vimos, mas que estava lá, em algum lugar, informe, indefinido, “na sombra”, à espera do nosso olhar? Chegamos à nossa terceira questão: o que vejo quando não vejo? Invisão Vamos tentar responder a essa questão compreendendo o visível pela invisão. Uma invisão que, se nos detivermos nas duas acepções do prefixo “in” — negação e inclusão —, pode ser explorada como uma negação temporária da visão, isto é uma cegueira provisória. Por outro lado, temos a invisão como visão interna, como o espaço íntimo a cada observador.

Assim, poderíamos afirmar que em tudo que vemos há um não visto ou um “invisto” que pulsa e, mesmo que ele se encontre na sombra, ele não é a sombra do visível. Ele é, pois, uma instância bem presente, talvez já delimitada pelo nosso olhar, mas ainda não vista. O não visto18 pode, a todo o momento, surgir no visível; ele está lá, em qualquer lugar, talvez já visto por alguém, na iminência de aparecer, de ser singularizado, delimitado, distinguido. O não-visto é informe e está sempre próximo de um ponto de ebulição possível. Ele não é o negativo do visível, não é sua semelhança, mas ele é outro. Ele está no limiar da nossa visão e estaria sempre em vias de se tornar visto. Nós poderíamos dizer que tudo aquilo que foi, o foi porque nosso olhar conseguiu enquadrar, delimitar, envolver. E se nós invertêssemos nosso raciocínio e nos interrogássemos se no quotidiano não estaríamos num eterno estado de invisão, isto é, de não visão, de cegueira voluntária e que tivéssemos apenas alguns lampejos de visão clara e distinta? Nós sabemos que a faculdade da visão organiza o mundo e que a cegueira desenvolve outros sentidos. Longe de fazer aqui uma apologia da cegueira, na invisão nós entramos num mundo embaçado, indistinto, indiferenciado. O que nos interessa nesse estado de cegueira transitória é a possibilidade de se ultrapassar sempre os limites impostos pelo mundo da visão. É abrir espaço, dar lugar, a percepções de outra ordem, a

18.  Tradução aproximada do termo em francês invu. Ver DIAS, Karina. : Entre Visão e Invisão: Paisagem (por uma experiência da paisagem no cotidiano) op. cit. 26

novas interpretações que, como nos lembra Eugen Bavcar,19 sob o peso demasiado do visual,20 não podem traçar um caminho. Na minha prática artística, o exercício da cegueira se dá, por exemplo, quando privo o espectador de uma parte da vista apresentada. Nos meus trabalhos, ver e não ver são inelutavelmente ligados e o espectador entra e sai permanentemente de uma forma de cegueira. Minha intenção é metamorfosear esse estado de cegueira cotidiana em desejo de ver, de ver paisagem. Nesse sentido, ver as paisagens do cotidiano significa sair desse estado cego, desse excesso de visível que acaba por nos cegar, para explorar as zonas sombreadas da visão. É tentar ocupar este terreno pouco luminoso, habitá-lo com desenvoltura, situando o espectador não no centro de um nada qualquer, mas no centro de um mundo que sai da sua reserva. Diferentemente de um cego de nascença, nosso olhador-cego pode, a qualquer momento, “liberar” os olhos e tudo reordenar. Ir de uma margem a outra, entre o visto e o não visto, entre visão e invisão, tendo a memória como aliada, parece ser a situ-ação imposta aos espectadores dos meus trabalhos. Seria, como nos diz Hélène Cixous,21 atravessar a nado o estreito que separa o continente cego do continente da visão. Se nós evocarmos a experiência da visão como a experiência da forma e do limite, o que 19.  BAVCAR, Evgen. Le voyeur absolu. Paris: Seuil, 1992, p. 16. 20.  O fotógrafo cego Evgen Bvcar faz uma distinção entre o visual e o visível. Para ele, o visual é aquilo que os olhos veem e o visível, aquilo que o espírito vê. 21.  CIXOUS, Hélène; DERRIDA, Jacques. Voiles. Paris: Galilée, 1998, p. 19.

eu me interrogo com a minha prática artística é até onde vai esse limite, até onde nossos olhos veem, qual é o limite do nosso olhar. Podemos tentar responder essa questão experimentando a noite. Noite noturna22 A noite é um mundo informe na forma, é a presença de um mundo que se tornou outro continuando a ser o mesmo. Experimentá-la, então, nos engaja numa certa modulação do olhar, pois na noite tudo se altera: nossa visão se reduz, nossos marcos espaciais se transformam. Ficamos submersos pela escuridão; no entanto, não ficamos completamente cegos. Minha pesquisa plástica se concentra naquilo que a noite nos deixa ver de sua paisagem, isto é, até onde conseguimos ver uma paisagem noturna. Aqui a noite é compreendida como um dos territórios da invisão. De um lado, temos o dia e o prestígio que lhe é conferido através luz que nos permite tudo ver e cultuar as ideias claras e distintas. Por outro lado, temos a noite, esse momento em que nós experimentamos a desaparição dos contornos, o apagamento dos limites. Se invertermos uma vez mais nosso raciocínio, a noite poderia se transformar em um momento privilegiado. Assim, o olhar, liberado do compromisso da luz, libera também as formas de suas identidades singulares, ultrapassando então os limites impostos pela visão diurna. 22.  Além da noite, meus trabalhos exploram também a neblina, a bruma e o silêncio. Da mesma maneira que desenvolvo a noção de invisão como uma outra visão, evoco o inaudível como um outro aspecto da audição. 27


Para Geneviève Clancy,23 a noite é um estado de espessura da luz. Para nós, a noite noturna não é a noite do sono e dos sonhos, e sim o despertar de nossos sentidos, de nossas percepções; é abrir os olhos na sombra, é colocar em movimento o olhar-sombra. É a noite sem limites que, segundo Didi-Huberman,24 quando nós a experimentamos, se transforma no lugar por excelência, no meio do qual nós estamos absolutamente. Nesse sentido, cabe a nós observadores, olhadores do dia, metamorfoseados em olhadores da noite, restabelecer a ordem das nossas percepções para dar forma às paisagens noturnas. Minha intenção com meus trabalhos é instalar o espectador no meio dessa noite, materializando sucessivamente os instantes de transição, aqueles em que conseguimos ver e aqueles em que aparentemente não vemos mais nada. Ver o pretume da noite não significa nada ver; ao contrário, significa se dar conta do frágil equilíbrio que sustenta nossa percepção de uma paisagem noturna, paisagem essa que se revela nas nuanças da escuridão da noite. Poderíamos dizer que a noite noturna nos conduz do visível ao imaginável, de um visível compartilhado a um visível não compartilhado, nossa invisão. Experimentar a noite noturna seria, então, responder a um desejo íntimo e intenso de não se deixar cegar. Conclusão Assim, perceber uma paisagem é ressentir suas faces escondidas, é conjugar o que vejo com o 23.  CLANCY, Geneviève. Les cahiers de La nuit. Paris: L’Harmatan, 2004. 24.  DIDI-HUBERMAN, Georges. Ce que nous voyons, ce qui nous regarde. Paris: Les éditions de Minuit, 1992, p. 71.

que não vejo, o que escuto com o que não escuto, dando sentido ao que olho. É incluir a invisão na visão, o invisível no visível, não como contrários, mas como desdobramentos possíveis. Na minha prática-teórica-artística, me interrogo sobre os limites da imagem face aos limites da nossa percepção visual quando as condições normais de visibilidade se tornam deficientes e, então, somos conduzidos a ver de outra forma. Nesse sentido, meu trabalho explora também outras instâncias de visibilidade, como a névoa e a bruma. Situações nas quais ver seria se aproximar de um visível que nem sempre é a definição do claro e do distinto, mas de um visível que é a descrição exata do embaçado e do indistinto. Como na noite noturna, é preciso modular o olhar, não para retirar o véu que encobre a paisagem na bruma, mas para ativar um olhar enevoado, para enxergar a névoa tal como ela é, vaporosa, indeterminada, imprevisível. Minha intenção é incitar o espectador a tomar posse do seu olhar, a assumir seu lugar de habitante/olhador/habitante que, para ver o dia, deve dirigir seus olhos para a noite, para a névoa, para as zonas sombreadas da visão, ver noturnamente. O que interrogo com meus trabalhos é como conceber uma paisagem quando nosso olhar chega ao seu limite e, então, somos convidados a explorar um continente cego. A partir dessa ausência, dessa falta, nós adentramos em zonas enevoadas e imprevisíveis, entramos nas dobras do dia e da noite, da visão e da invisão. Se o nosso mais íntimo desejo é nunca deixar de ver, ver paisagem na minha prática artística seria ocupar a outra margem do rio, para olhar no cotidiano onde, aparentemente, não haveria nada para ver. 28

Frente fria, 2016 vídeo-projeção, 5min 20seg

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SOBRE CUMES E OUTRAS (A)NOTAÇÕES DE VIAGEM Karina Dias

Olhar a montanha, uma experiência da paisagem Olhar uma montanha é aceitar o princípio de não ver tudo. Entre escalas desmesuradas e o desejo de ver que nos mantém (i)móveis diante dela, nossos olhos tracejam um contorno que resiste, porque insiste em nos mostrar que somos um ponto que vê1. Diante desse sombreado volume e de seu relevo, fitamos dobra após dobra para encontrar a distância que nos fará ver. Entre modulações imprescindíveis do olhar, uma paisagem em altitude se constitui no tempo de nossa observação, na medida em que pousamos os olhos sobre os distintos cumes que compõem o seu relevo. Nas montanhas estamos sempre no limiar de ver e não ver. Desse (não)lugar vemos porque não vemos, constatamos que o visível é sempre (in)visível. Como então eleger um cume entre tantos cumes? Pela sua forma, pela sua capacidade de atrair para si as brumas, pela sua relação de vizinhança... quantas são as alturas do olho? Face às 1.  Em referência a Michel de Certeau que escreve: “ser apenas este ponto que vê, eis a ficção do saber” CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer, vol.1 Petrópolis: Ed. Vozes, 1994. 30

montanhas somos, a um só tempo, astrônomos e geógrafos. De sua base olhamos para o cume com a mesma atenção de um astrônomo que encontra seu lugar entre as estrelas, do cume dirigimos nossos olhos para baixo como um geógrafo que vai traçando os limites da terra. (Vi)ver a montanha é pensar em Petrarca2, o poeta alpinista do século 14 que desejava chegar ao cume do Monte Ventoso, ter uma contemplação direta, no/ do mundo, olhar por si mesmo a natureza, contemplá-la, percorrê-la, explorá-la . Essa secularização da curiosidade3, o aproximaria dos geógrafos de sua época que, com suas viagens e observações, testemunhavam uma verdade geográfica. Assim, no cume e embriagado pela visão das montanhas ele escreve em sua carta datada de 1336 a seguinte passagem: “[...] No início, surpreso por esse ar estranhamente leve e por esse espetáculo grandioso, fui 2.  Nascido em Arezzo na Itália, Francesco Petrarca (1304-1374) foi um erudito, poeta e humanista. Entre suas obras mais conhecidas está Canzoniere (Rerum vulgarium fragmenta) de 1374. 3.  Idéia desenvolvida por Jean-Marc Besse em seu livro Voir la terre - six essais sur le paysage et la géographie. Arles: Actes Sud/ensp/Centre Du Paysage, 2000, p.14. 31


◄  (a)cordada,

2014 vídeo-projeção, 11min 23seg

tomado de estupor. Olho a minha volta: as nuvens estão aos meus pés...”4 Provavelmente, a ascensão do Monte Ventoso realizada por Petrarca, em 1335, e a sua carta5 endereçada a Dionigi da Borgo San Sepolcro, em 1336, constituam um dos eventos mais marcantes da história da paisagem ocidental6. Com essa empreitada7, e com o relato que se seguiu a ela, o poeta-humanista nos convida a uma reflexão sobre a experiência da paisagem. O que Petrarca descobre, para seu desespero, ao chegar ao cume é o espaço cru, a distância intransponível que nos separa daquilo que vemos. Talvez esteja aí a complexidade da paisagem : onde estamos nunca será o que olhamos. A paisagem nos coloca então mareados em terra firme, como escreve Maldonado8 a

4.  RITTER, Joachim. L’ascension du mont Ventoux in Paysage : fonction esthétique dans la societé moderne. Besançon: Éditions de L’Imprimeur, collection Jardins et Paysage, 1997, p.52. 5.  Convido o leitor a (re)ler a carta redigida pelo poeta in Familiarum Rerum Libri I a VIII. Aqui utilizei a tradução do latim para o francês de Dennis Montobello in RITTER, Joachim. L’ascension du mont Ventoux in Paysage : fonction esthétique dans la societé moderne. Besançon: Éditions de L’Imprimeur, collection Jardins et Paysage, 1997. 6.  Foi o historiador da arte Jacob Burckhardt (1818-1897) o primeiro a apontar a carta de Petrarca como a origem do interesse moderno pela natureza como paisagem. 7.  É sabido que Petrarca foi influenciado pelas montanhas míticas da Grécia e que na realidade vemos que aqui ele tenta reavivar a memória da antiguidade. Em sua carta ele nos indica que ele havia lido, na véspera de sua ascensão, uma passagem de Tito-Lívio, historiador da Roma antiga, sobre Felipe V da Macedônia que, segundo seu relato, teria escalado, no norte da Grécia, o Monte Hemo, de onde ele teria visto o mar Adriático e o Ponto Euxino (Mar Negro). Essa passagem foi determinante para que Petrarca decidisse colocar em prática seu projeto. 8.  MALDONATO, Mauro. Raízes errantes. São Paulo: Sesc/ Ed. 34, 2004.

respeito do estrangeiro. Mareados porque estamos sempre aqui e ali, entre o céu e a terra, ocupando um espaço vacante que nos mostra um horizonte sempre em constituição. Criamos um lugar nessa distância, uma morada do íntimo que confirma que estamos onde não estamos. Desse lugar construímos uma situação-em-paisagem, tributária de um olhar-em-paisagem disposto a (re)desenhar os espaços, dar contorno ao mundo, ao nosso mundo. Nessa geopoética, há fenomenologias e o olhar deseja manter-se junto às coisas. A montanha impõe o seu tempo. Da (in)visibilidade da montanha A paisagem é mais do que um simples ponto de vista óptico. Ela é ponto de vista e ponto de contato, pois, nos aproxima distintamente do espaço, porque cria um elo singular, nos entrelaçando aos lugares que nos interpelam. Certamente, a paisagem deriva de um enquadramento do olhar, alia o lado objetivo e concreto do mundo e a subjetividade do observador que a contempla. Pela impotência de tudo ver, de ser onividente, nós enquadramos, recortamos, conquistamos o visível, criamos uma multiplicidade de pontos de vista. Wajcman9 sugere: a paisagem é o olho que avança, é o traçado do olho na espessura do mundo. Podemos sugerir que, em tudo que vemos, há sempre um invu10, um n[ã]o-visto, que pulsa à espera de ser encontrado pelo nosso olhar. Em

função do ponto de vista, todo visível camufla pela sua presença algum invu, algum n[ã]o-visto, e que todo visível assim o é porque foi visto, porque foi discernido. Zona sombreada e indefinida que habita o espaço entre cada porção de coisa vista, entre cada enquadramento feito pelo nosso olhar. Mesmo que o invu, o n[ã]o-visto, não seja a sombra do visível, ele está na sombra e é o nosso olhar que deve chegar até lá para alcançá-lo, perdendo-se para, novamente, se (re)orientar. O invu, o n[ã]o-visto, instiga nosso olhar a ir fisgá-lo, a tentar ver sempre um pouco mais que ontem, a encontrar novas coordenadas, a desenvolver “um olho noturnamente diurno”11. Possuir o olho noturnamente diurno é possuir um olho que cogita e não se contenta com a evidência, lançando-se para além da superfície, para sair de um estado cego excessivamente luminoso e, assim, “pela outra margem, explorar a face clara da noite”12. Em sua (in)visibilidade, a montanha nos confirma o seu sfumato... vemos porque não vemos. Nessa sombreada visão, nesse invu que insiste em nos mostrar que não veremos tudo, a pedra impõe o seu tempo, solicita outro tempo e a paisagem tem a duração de um ponto de vista. Nesse movimento, aquele que olha não se precipita, não abandona a sua geografia, deseja manter em seu olhar uma sombreada cordilheira. Podemos pensar na interrogação que MerleauPonty faz à Cézanne acerca da montanha Sainte-

9.  WAJCMAN, Gérard. Fenêtre chronique du regard et de l’intime. Lagrasse: Éditions Verdier, 2004. 10.  Sobre a noção de invu ver o meu livro. DIAS, Karina. Entre visão e invisão: paisagem (por uma experiência da paisagem no cotidiano). Brasília: Ed. PPGArte, Universidade de Brasília, 2010.

11.  MARION, Jean-Luc. La croisée du visible. Paris : PUF, 1996, p.53. 12.  GASPAR, Lorand. Le quatrième état de La matière – connaissance de la lumière in Sol Absolu et autres textes. Paris : Poèsie Gallimard, 1982, p.35.

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Victoire. Ele se pergunta o que exatamente quer o pintor da montanha, o que ele pede à montanha? “Pede-lhe desvelar os meios, apenas visíveis, pelos quais ela se faz montanha aos nossos olhos.”13 Filmar montanhas Filmar as montanhas é se aproximar de vários artistas que, ao longo da história da arte, elegeram os cumes como motivo poético. Entre tantos está o pintor romântico14 Caspar David Friedrich e suas montanhas brumosas, enevoadas ou crepusculares. Em duas pinturas respectivamente, Mulher ao sol da manhã de 1810 e o Caminhante sobre o mar de névoa de 1818, vemos solitários personagens contemplando as montanhas. Personagens solitários diante de uma sublime paisagem. Quanto a nós, espectadores, vemos através deles, vemos com eles, olhamos o que olham. Observadores solitários que nos confirmam que ante a paisagem somos, como já dito um ponto que vê. Solitariamente contemplamos a paisagem, solitariamente olhamos o mundo. Isso não significa afirmar que nos sintamos sós na paisagem. « Quem poderia sentir-se só quando tomou posse do mundo ? Ver [...], olhar é possuir.[...] tudo 13.  MERLEAU-PONTY, Maurice O Olho e o Espírito. Os Pensadores, São Paulo: Abril, 1980, p.281. 14.  O Romantismo foi um movimento artístico ocorrido na Europa no final do século XVIII e início do século XIX. Caracteriza-se, entre tantos outros aspectos, por uma vontade de explorar as possibilidades da arte com a finalidade de exprimir os êxtases e os tormentos do coração e da alma. Para uma análise que privilegia a relação entre ciência e arte, a questão do símbolo e do papel preponderante da pintura de paisagem no Romantismo, ver a obra de Pierre Wat intitulada, Naissance de l’art romantique – peinture et théorie de l’imitation. Paris: Flammarion, 1998. 33


isso que vejo, que se estende sob meu olhar, me pertence. Tão longe quanto me é possível enxergar é o quão longe vai o que possuo. Não eu sozinho: o mundo pertence a mim, existe para mim, está comigo »15. Se a paisagem impõe um tempo, aquele que contempla o faz num compasso que lhe é próprio. Olhar solicita tempo, sugere intensidades temporais distintas: como ser apressado face a bruma, face a uma cadeia montanhosa que nos confirma que não é possível dar conta de todo seu desenho? Estar in situ, isto é neste lugar é também estar in visu, olhando, atentos à extensão que nos circunda e àquilo que excede à nossa visão. “Aqui estou, estou aqui neste lugar, nesta intersecção geográfica, aqui estou, eu penso sobre o estar aqui”16. Meus trabalhos surgem então de uma intensa experimentação na paisagem do local filmado, muitos17 derivam de um tempo vivido nas montanhas do extremo sul do continente americano, o que incluiu caminhar, observar e filmar. Nesse lugar, a montanha dita o seu tempo: o de sua aparição e desaparição em função das brumas que encobrem e desvelam, impondo, assim, a lentidão necessária para que a observação, como

escreve Gros sobre a caminhada, estire o tempo e aprofunde a nossa relação com o espaço que nos envolve. Diante das montanhas devemos ser vagarosos...vagamos sem precipitação nos familiarizando com uma paisagem que não abandona os nossos olhos, “uma presença (que) se instala lentamente no corpo »18 Compreender que essa lentidão trazida pela experiência na montanha não significa uma incapacidade de assumir passos mais rápidos ou uma cadência mais veloz no olhar, é perceber o próprio tempo, um tempo que não se deixa domesticar pelos hábitos da rotina: rompe-o. Nas montanhas fazemos uso da lentidão porque há o desejo de não se deixar perturbar por um tempo que não nos pertence. Talvez porque ser lento nas montanhas signifique, como nos lembra Pierre Sansot19, aumentar a nossa capacidade de acolher o mundo e de não esquecer o seu caminho. Como então não trair a experiência vivida, “como não trair o que se viu”20 como apreender a paisagem e exteriorizá-la de maneira poética? Se o vídeo converte a medida de um olhar em uma imensidão, face às montanhas compreendemos que a (in)visão21 se dá no tempo e que o silêncio impõe a escuta.

15.  GROS, Frédéric. Caminhar, uma filosofia. São Paulo: é Realizações, 2010, p.61. 16.  A partir de notas pessoais tomadas na conferência de JeanLuc Nancy realizada no âmbito do Seminário Interfaces – artes plásticas e estética, organizado por Marc Jimenez e Richard Comte. Panthéon-Sorbonne em 06/04/2005. 17.  Refiro-me aqui aos trabalhos apresentados em Tempo paisagem, exposição com curadoria de Cristiana Tejo e que faz um recorte de 20 anos da minha produção artística. Galerias Piccola 1 e 2 Caixa Cultural, Brasília, 4/10 a 17/12/2017.

18.  GROS, Frédéric. Caminhar, uma filosofia op.cit. p. 43. 19.  SANSOT, Pierre. Du bon usage de la lenteur. Paris : Ed.Payot & Rivages,1998, p.12. 20.  JACCOTTET, Philippe. Paysages avec figures absentes. Paris: Gallimard, 1976, p.18. 21.  Sobre a noção de invisão, ver o meu livro. DIAS, Karina. Entre Visão e Invisão: Paisagem (por uma experiência da paisagem no cotidiano). Brasília: Editora do Programa de PósGraduação em Arte/IdA/UnB, 2010. 34

Silenciosas montanhas, (in)audíveis paisagens O silêncio é uma constante em meus trabalhos. O (in)audível, em minha pesquisa plástica, não é compreendido como algo extraordinário e impossível de se escutar, mas como o que não escutamos, ou de cuja existência sabemos, mesmo sem escutar, ou ainda, que escutamos sem perceber ou simplesmente não queremos ouvir. O (in)audível em minha prática artística estaria para o sentido da audição como o n[ã]o-visto22 está para a visão. Trabalhar com o silêncio é se abrir então ao (in)audível, é se dar conta de que ouvimos sem cessar, da mesma forma em que vemos sem cessar. Escutar o silêncio é praticar certo modo de escuta, certa forma de dirigir nossos sentidos para aquilo que nos interpela, como para o ato de olhar. Em meus trabalhos, o silêncio compartilha com os espaços em branco da página, a dimensão do que não é dito, do que não é visto, do que não é ouvido, para criar a partir das imagens mostradas e de nossas lembranças e impressões, os elos, os laços, que enriquecem a nossa percepção da

paisagem. O que nos confirma que a paisagem é sempre um ponto de vista pessoal, mas é também a troca de pontos de vista e se constitui desse compartilhamento. Assim, perceber a paisagem é perceber as suas faces escondidas, conjugando, permanentemente, o que vemos e o que não vemos, o audível e o (in) audível, dando então, sentido àquilo que olhamos. Nessa precisa articulação entre o interior e o exterior, entre o íntimo e o que lhe é ex-cêntrico, numa espécie de acorde-acordo entre impressões e um lugar, emerge uma paisagem poeticamente vivida. Essa paisagem poeticamente vivida revela uma experiência singular do tempo: do tempo vivido por mim nas montanhas, da duração escolhida para as vídeo-projeções e finalmente do tempo que levará cada espectador para contemplar aquilo que eu (vi)vi. Entre modulações do olhar, de silêncio e de escuta, surge uma sombreada e lenta geografia... a montanha enfim se faz presença. lá, vi montanhas.

22. O n[ã]o-visto é uma noção desenvolvida em meu livro Entre Visão e Invisão: Paisagem (por uma experiência da paisagem no cotidiano). Brasília: Editora do Programa de Pós-Graduação em Arte/IdA/UnB, 2010. 35


KARINA DIAS Brasília, 1970 Vive e trabalha em Brasília

Artista visual e professora do Departamento de Artes Visuais da Universidade de Brasília, atua na graduação e pós-graduação. Pós-doutora em Poéticas Contemporâneas (UnB), Doutora em Artes pela Université Paris I – Panthéon Sorbonne. Trabalha com vídeo e intervenção urbana, expondo no Brasil e no exterior. É autora do livro: Entre visão e invisão: paisagem (por uma experiência da paisagem no cotidiano) lançado pela editora do Programa de Pós-graduação em Arte da Universidade de Brasília. Coordena o grupo de pesquisa Vaga-Mundo: poéticas nômades (cnpq).

Sua pesquisa está centrada nas relações entre o observador e a paisagem, entre a imensidão dos espaços e singularidade daqueles que os percorrem, na experiência de espaços-extremos, seja pela sua proximidade (cidade em que se habita) ou por sua extrema distância (várias partes do mundo). Dessa relação surge, por meio de vídeo-instalações, uma poética da paisagem e da viagem, uma relação entre horizontes, a constituição de uma geopoética.

Prêmios Prima Obra. Funarte (2003) Artista indicada ao Prêmio Pipa (2011) Atos Visuais: Prêmio Funarte de Arte Contemporânea (2012) Transborda Brasília: Prêmio de Arte Contemporânea (2015)

Como medir uma exígua faixa de terra, 2016/2017 vídeo, TV, 2min 30min

www.karinadias.net

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Como traçar uma fronteira [austral] Escolher uma saída O Atlântico O Pacífico Encontrar os meridianos Medir as águas profundas Permanecer nas bordas

Ser-sul

Como traçar uma fronteira [austral]

Estar-no-sul

Escolher uma saída

“Uma topologia mental”

O Atlântico O Pacífico

“Uma afinidade extrema”

Encontrar os meridianos Medir as águas profundas Permanecer nas bordas

Finisterra

Ser-sul

mo traçar uma fronteira [austral]

Estar-no-sul Escolher uma saída “Uma topologia mental”

O Atlântico O Pacífico

“Uma afinidade extrema”

ncontrar os meridianos

edir as águas profundas

Permanecer nas bordas Finisterra

Fronteira, 2017 3 trípticos contendo fotos e texto 78 × 32 cm, detalhe.

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Porto, 2017 vídeo-instalação, 3 tótens de MDF, 3 tablets com vídeos de duração de 10min. Projeção na parede, 10min. 160 × 30 × 5 cm cada tótem, detalhe.

Janela I, 2009 vídeo-projeção, 5min 16seg

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Ilha, 2016/2017 vídeo-projeção, 3min

Campo 2, 2016/2017 vídeo, tv 40”, 5min 10seg

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◄  Pedra

1, 2016 vídeo, tablet, 03min 36seg

Lago, 2015 vídeo-projeção, 3min

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ISBN 978-85-54915-00-1

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