E se fossem morar todos juntos?

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e se fossem morar todos juntos?

trabalho final de graduação orientação marta bogéa faculdade de arquitetura e urbanismo universidade de são paulo junho | 2015

luiza dos santos rigolizzo


e se fossem morar todos juntos?

Jay Gatsby é o típico novo-rico americano. No auge de sua juventude, fez fortuna de formas duvidosas e discutivelmente fora da lei. Seu passado misterioso não impede, porém, de que seu imenso jardim esteja sempre cheio quando dá uma de suas legendárias festas, onde mostra sua fortuna e seu carisma. Ao olhar novamente, vemos que esse belo rapaz não é tão típico assim. Ao invés de um pós-adolescente mimado, encontramos um jovem sensível, educado, esperançoso e perdidamente romântico. Por trás da sua fachada de bilionário festeiro, esconde-se um eterno apaixonado, que faz de tudo para recuperar o olhar de seu grande amor de verão. Por trás de fachadas enganosas também se encontra Renée, zeladora rabugenta de 54 anos que, fugindo aos preconceitos existentes sobre a massa trabalhadora, mostra-se extremamente culta, escondendo de seus ricos patrões o amor extremado em relação às letras e às artes. A viúva arisca e ácida é, na verdade, uma mulher inteligente e melancólica, que esconde sua elegância interior numa carapaça como mecanismo de proteção – quem sabe de si mesma e dos desejos irrealizados que poderia ter. Mais transparente se mostra o casal Patti Smith e Robert Mapplethorpe. Artistas em busca de sua forma de expressão, procuram através de diversos métodos sua vocação, tendo apenas a certeza de sua paixão pela arte e seu carinho um pelo outro. Em meio a tantos outros artistas tentando a sorte, os dois têm a promessa de se manter unidos, mesmo que não exclusivamente, enquanto se inserem na loucura do mundo artístico na cidade grande. A família Buendía, apesar de tentar, não consegue esconder suas fragilidades e conflitos dentro das quatro paredes de sua casa. Como toda família grande, tem as alegrias e os dramas que os laços sanguíneos parecem inevitavelmente impôr na vida de seus integrantes. Apesar das adversidades, Úrsula busca manter sua prole por perto, sob um mesmo teto, como toda boa matriarca.


Dentro do ambiente da cidade, a necessidade por adensamento se mostra cada vez mais necessária, porém a dúvida de como aproximar núcleos familiares e personalidades tão diversos em um só lugar ainda não foi suficientemente respondida pela arquitetura atual. Os edifícios-torre reproduzidos pela cidade respondem a um modo de vida, apoiando-se no aumento de espaço para suprir variadas maneiras de morar, porém a singularidade do ser humano exige também - e especialmente - a criação diferentes naturezas de espaço. Esse projeto é um convite à busca de uma nova tipologia de edifício, que seja capaz de acomodar diferentes formas de vida, de acordo com personalidade e necessidade dos moradores. Com o desafio de abrigar habitantes inspirados em personagens de quatro livros bastante diversos – “O Grande Gatsby”, “A Elegância do Ouriço”, “Só Garotos” e “Cem Anos de Solidão” – surge o projeto de um edifício residencial em São Paulo, fugindo às regras de padronização impostas pelo mercado. Pensando-se na subjetividade do morar contraposta às convergências existentes em todos os tipos de residência, fica a pergunta ao leitor: E se fossem morar todos juntos?


A imaginação é mais importante que o conhecimento, pois o conhecimento é limitado. Albert Einstein


Phantasie ist wichtiger als Wissen, denn Wissen ist begrenzt. Albert Einstein



os agradecimentos

À minha família, que me ensina todos os dias o significado de amor incondicional. Meus pais, Maurício e Mariângela, pelas asas que motivam a voar cada vez mais longe, e pelas raízes que tornam o retornar para casa tão especial e necessário. Meus irmãos, Daniela e Felipe, por me ensinarem tanto nas semelhanças e ainda mais nas diferenças. Meu cunhado Thiago, que completa perfeitamente nossa loucura. À FAU, que me traz mais que o título de arquiteta: a paixão pelo espaço, a aceitação do diferente, a expansão do pensamento, a oportunidade do desenvolvimento. Os professores, por muitas vezes se tornarem mestres e referências de profissão. Os amigos arquitetos, pelo companheirismo nas noites mal dormidas, discutindo os projetos, a arquitetura e a vida. Minhas queridas Flora e Maria Mercedes, por se tornarem essenciais desde o início da faculdade, dentro e fora dela. Minha orientadora, Marta Bogéa, por me presentear com dois semestres de ensinamentos que carregarei por toda a vida. Aos amigos das antigas, por também me escolherem para fazer parte de tantos momentos maravilhosos até hoje. Aos amigos de Stuttgart, por terem aumentado tanto meu coração quando dividiram ele mundo afora. Ich werde euch nie vergessen. Às gentilíssimas Amparo, Dani, Mary e Cecília, por oferecerem ajuda, pitacos, tempo e espaço necessários para a conclusão desse trabalho.



o índice

e se fossem morar todos juntos? o tema a relação casa - cidade a localização os estudos

projetos anteriores

considerações sobre o tema

09 19 24 31

pinheiros

terreno | preceitos de projeto

projetos analisados

as referências 45

casa junqueira

vila romana

double house

edifício de apartamentos em lugano

casa md

os personagens 51

jay gatsby

renée

patti smith e robert mapplethorpe

buendía

as premissas o processo o projeto a conclusão a bibliografia e foram morar todos juntos

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o tema

Ao iniciar o Trabalho Final de Graduação, somos instruídos pelos orientadores a buscar, dentro do universo apreendido na faculdade, o que mais nos interessou. É o momento em que cada aluno se volta para seu percurso e busca as sensações que cada aula, projeto ou leitura lhe proporcionou. De tudo o que viu, o que mais lhe tocou? A cada vez que refletiu, o que mais lhe inquietou? A questão do morar sempre me trouxe muito fascínio. Necessidade mais primária e comum a todo indivíduo, ter uma casa significa ter um lugar onde se pode exercer sua individualidade, onde não existe a necessidade de se preocupar com as vistas e julgamentos do mundo exterior, público. Segundo Herman Herzberger, em “Lições de Arquitetura”: Se você não tem um lugar para chamar de seu, não sabe onde está! Não pode haver aventura sem uma base para onde retornar: todo mundo precisa de alguma espécie de ninho para pousar. 1 Todo arquiteto já projetou uma casa, e é nela que os grandes arquitetos tiveram a oportunidade de ensaiar, colocar em prática seus conceitos arquitetônicos. Segundo Mônica J. Camargo, em livro sobre a obra arquiteto Joaquim Guedes: As casas constituem um laboratório que permite refletir, lidar com o homem e seu lugar, suas complexas necessidades, com os materiais e a tecnologia, com a luz, a economia, a ética e a política, confirmando a tese de Alberti de que “a casa é uma pequena cidade. 2 Assim, a casa mostra sua dupla importância: para o indivíduo, é o locus de sua vida privada; para o arquiteto, é o desafio de concretizar idéias, de materializar a subjetividade tanto de seus conceitos quanto de seus clientes. 1 2

HERZBERGER, Herman. Liçoes de Arquitetura. P. 28 CAMARGO, Mônica Junqueira. Joaquim Guedes, P. 52.


Dentro da temática do morar, e percebendo a forte importância do projeto de habitação, pensei em projetar para o TFG uma casa unifamiliar. Também tive forte influência a partir de um projeto realizado durante meu intercâmbio para a Alemanha, no qual o desafio era projetar uma casa para o agente secreto James Bond. No projeto, deveria ser inserido um cômodo secreto para esconderijo e fuga. Sob esse pretexto inusitado, tínhamos o desafio de projetar sob um novo raciocínio espacial, analisando volumes e composições de forma e espaço interno de modo que todo um quarto passasse desapercebido pelos visitantes – como esconder um espaço de uma maneira não-banal. A leitura do livro “A Boa Vida”, de Iñaki Abalos, foi essencial para a estruturação do tema. O livro se trata do estudo de sete culturas de morar, a partir de personagens-tipo e de “tipos” de casa, não necessariamente se atendo a projetos específicos e construídos mas buscando explicar a lógica por trás de uma tipologia residencial, uma forma de morar. O livro: Não se trata, pois, de um manual de arquitetura doméstica: não há, aqui, a pretensão de fornecer instruções sobre o que fazer. Não tendo uma finalidade prática imediata, este livro objetiva, então, ser um alerta que contribua para a ampliação da consciência dos vínculos existentes entre os modos de pensar, de ver o mundo, de viver, e as técnicas de projeto, já que estas não são neutras, mas, ao contrário, limitam e contêm em si mesmas o potencial de nosso trabalho. 3 Abalos afirma ainda que há, claramente, incontáveis culturas diversas de morar, mas se atém às sete por acreditar que elas demonstram quão discrepantes podem ser os indivíduos e o quanto isso afeta a materialização de suas casas. 3

ABALOS, Iñaki, A Boa Vida. P. 08.

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Dentre as sete, duas foram especialmente elucidativas para mim, e volto-me a elas para compreender as conclusões que o autor chega em seu texto. A casa de Zaratustra, primeiro capítulo, explora as casas-pátio de Mies Van der Rohe, que apesar de nunca construídas foram amplamente estudadas pelo arquiteto. Segundo o livro, seria uma idéia de casa para o próprio arquiteto, dentro de uma lógica individualista e do super-homem de Zaratustra. Em trecho do livro, Ábalos afirma, sobre a investigação de Mies: Talvez a pergunta decisiva para entender o ímpeto, a origem dessa investigação, e, com isso, a razão de sua longa vitalidade, deva ser feita não acerca de suas caracerísticas físicas e materiais, mas acerca de sua finalidade como habitação. Para quem são essas casas? A quem, a que formas de vida estão destinadas? Que valores traduzem-se nesse espaço privado, e também - ainda que seja apenas pela evidência com que este é negado - no espaço público? Quem são os seus sujeitos? De que noção de homem partem os projetos dessas casas? Que referências pressupõem?4 Já a casa positivista, descrita no terceiro capítulo e baseada no filme Mon Oncle (Jacques Tati) explora a idéia de uma família-estatística, a despersonalização da casa, a maquinação e automação dentro da lógica da ordem e do positivismo. Nesse mesmo filme, há a figura do tio, que por ter personalidade mais agitada encontra séria dificuldade em se adaptar a essa lógica, sendo refletido também na forma como vive. Da leitura de Ábalos e com a orientação de Marta Bogéa, adoto três perguntas essenciais para a compreensão de um espaço/modo de habitar: 4

Id Bid, P. 23


Que casa é essa? Quem mora nessa casa? De que modo a habita? A partir da necessidade de escolha de um local para o projeto, decidi que a habitação que busco deve se inserir em um ambiente urbano, já que gostaria de estudar a inserção do ambiente individual dentro da complexidade e da multiplicidade da cidade, a relação públicoprivado tão direta que se dá quando uma moradia é inserida num conjunto de edifícios. São Paulo, cidade múltipla por excelência, se mostra assim ótima opção para receber o projeto, além claro da comodidade de ser a cidade onde habito e estudo, tendo um infindável bibliografia para colaborar na análise. Da leitura do Plano Diretor Estratégico do município, lançado em 2014, porém, vem uma mudança significativa no objeto de trabalho. Segundo o Artigo 7 do PDE: Art. 7o A Política de Desenvolvimento Urbano e o Plano Diretor Estratégico se orientam pelos seguintes objetivos estratégicos: I - conter o processo de expansão horizontal da aglomeração urbana, contribuindo para preservar o cinturão verde metropolitano; II - acomodar o crescimento urbano nas áreas subutilizadas dotadas de infraestrutura e no entorno da rede de transporte coletivo de alta e média capacidade; Pode-se inferir portanto que a residência unifamiliar vai contra a necessidade de contenção da expansão horizontal da cidade, já que para isso ocorrer devem ser adensadas as áreas já consolidadas. Assim, apesar de reconhecer que dentro de um ambiente urbano devem existir regiões de baixa densidade na cidade, provendo “respiros”

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urbanos essenciais à população, além de haver a necessidade de respeito à identidade / vocação histórica de bairros exclusivamente residenciais, foi feita a decisão de projetar um edifício para diversas famílias, de média densidade. Essa decisão me parece mais pertinente, em uma cidade onde o custo da terra é cada vez mais elevado, gerando na população um esforço de dividir espaços. Atualmente, as tipologias de edifícios de média/alta densidade mais comuns reproduzidas na cidade não são capazes de substituir as qualidades de uma casa unifamiliar. Meras plantas-tipo empilhadas ad infinitum não permitem a expressão individual de cada núcleo familiar, como já afirmam diversos arquitetos há tempos. A busca pela subjetividade pode ser percebida, por exemplo, no Project A para o Fort L’empereur, Argel, de Le Corbusier. O arquiteto propõe a criação de uma “super-estrutura” com as unidades projetadas especificamente para cada morador. A idéia pode ser compreendida a partir do texto de Herzberger, em “Lições de Arquitetura”: Tomemos a imagem de um tecido, constituído pela urdidura e pela trama. Pode-se dizer que a urdidura estabelece o ordenamento básico do tecido, e, ao fazêlo, cria a oportunidade para que se consiga a maior variedade e colorido possíveis junto com a trama. (…) Urdidura e trama constituem um todo indivisível; uma não pode existir sem a outra e cada uma empresta à outra seu objetivo. 5 Diversos outros projetos foram tomados como referencia para esse trabalho, num sentido de busca por tipologias que transportem qualidades da casa para o edifício. A própria ocorrência de tantos projetos em busca de uma nova tipologia de morar na cidade legitima um estudo como esse Trabalho Final de Graduação. O projeto do arquiteto italiano Gaetano Pesce, o Edifício Pluralista Croqui Fort L’empereur, Corbusier | Fonte: Fondation Le Corbusier

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HERZBERGER, Herman. Liçoes de Arquitetura. P. 108


(1990), nunca foi implantado apesar das tentativas em diversos países. A idéia é de que cada andar seria projetado por um arquiteto convidado, inclusive as fachadas. Sua fachada peculiar teria multifacetas, mostrando claramente que cada andar pertence a uma pessoa com sua própria identidade, apesar de todos dividirem um mesmo espaço. No Brasil, o projeto recebeu o apelido de “favelachic” já que se assemelharia a um conjunto de “puxadinhos”. De fato, em sua apresentação, Pesce mostra um edifício sem muita unidade entre os andares. Seria a negação total da monotonia dos espigões comuns, com andares repetitivos e padronizados como em uma linha de produção. Segundo o arquiteto: O aspecto da obra seria imprevisível, como, aliás, é a vida (…) É apenas uma questão de coragem: de investir em uma arquitetura que comunica, em alto e bom som, que somos diversos, mas que, ainda assim, podemos estar unidos.6 O escritório holandês MVRDV tem diversos projetos que também buscam uma tipologia que permita identificar, na própria fachada, a diversidade do espaço interno e de seus usuários. O edifício Silodam (1995), em Amsterdam, foi resposta à grande necessidade habitacional da cidade, permitindo que cada conjunto de unidades suprisse exatamente as necessidades dos grupos de famílias. Um projeto ainda mais atual, o Folie Richter Montpellier (2014), também fornece de maneira mais precisa os ambientes que cada grupo familiar necessita. O projeto recebe o nome de “Vila Vertical” pelo próprio escritório, reforçando a idéia de que as qualidades da casa unifamiliar são transpostas para um edifício vertical. Segundo memorial descritivo: Croqui Torre Pluralista, Gaetano Pesce | Fonte: www.eduardolongo.com/torrepluralista Foto do edifício Silodam, MVRDV | Fonte: www.mvrdv.com Renders do edifício Folie Richter Montpellier, MVRDV | Fonte: www.mvrdv.com

A arquitetura deve expressar a riqueza e a diversidade dos bairros na imagem da cidade de Montpellier (…) criar 6 Pesce, Gaetano. Entrevista dada a Marcelo Lima para o jornal Estado de São Paulo.

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um grupo representando qualidades e valores intrínsecos de cada: social, formal, relacional.7 As variáveis de uma habitação são muitas. Com | sem jardim, fachadas transparentes | opacas, compartimentadas | com plantas livres, grandes | pequenas, mobiliadas de maneiras diversas, com 01, 02, 05, 10 quartos e banheiros. O espaço privado e público também varia de acordo com quem ali habita, já que nem todos recebem hóspedes na mesma freqüência/quantidade. Assim, para se projetar uma casa, pode-se utilizar as mesmas perguntas que Añaki utiliza em seu livro, em um processo inverso porém com o mesmo objetivo: descobrir quais características essa casa possui. Claro que alguns pontos são comuns a todas as casas. De maneira delicada, Whitaker coloca: E sim, será possível ver como, mesmo nas favelas, o interior da casa é importante, além do tanto que fala sobre seus usuários. Como há, no barraco precário e apertado, o resguardo da individualidade do lar. Não há esgoto, mas não faltam a televisão, o fogão, a geladeira e o sofá, que mesmo empilhados em espaços indignos dão a seus usuários, vítimas de um urbanismo violento, individualista e segregador, a humanidade necessária à sua sobrevivência. Também não é raro ver, embaixo dos viadutos da cidade, em meio ao fluxo ininterrupto de veículos e envoltos pela poluição, sofás, mesas e colchões, arrumados como em uma sala de estar imaginária, à vista de todos, conformando um espaço abstratamente fechado mas que dá aos moradores de rua que ali se abrigam a sensação e a segurança de um interior que, 7 MVRDV. Memorial descritivo. Tradução livre: The architecture must express the richness and diversity of neighbourhoods in the image of the city of Montpellier (…) create a collection representing qualities and intrinsic values of each: social, formal, relational.


infelizmente, eles não podem ter. 8 O agrupamento de pessoas gera outro desafio. A convivência forçada, entre pessoas que muitas vezes não se conhecem e não escolheram viver lado a lado, porém se adaptam a tal pelas necessidades impostas pelo viver na cidade. Como fazer dos espaços em comum agradáveis a todos que ali moram, podendo ser inclusive ocupados como espaços de sociabilidade, como as ruas de uma vila de sucesso? Segundo Silva, em dissertação sobre Vilas inseridas no contexto urbano: Atualmente, o interesse por essa forma de conjunto habitacional (vila) faz-se pela própria lógica de estruturação da vila, que favorece o estreitamento das relações sociais entre os seus moradores, criando, em seu interior, condições de sociabilidade bastante peculiares. 9 O projeto do arquiteto israelense Mosche Safdie, Habitat 67 (1967) cria, a partir de blocos modulares, diferentes tipologias residenciais com um, dois ou três módulos. O resultado atingido é um conjunto de alta densidade não perdendo a qualidade em cada habitação, que possui terraços e espaços adequados às necessidades de cada núcleo familiar. Os espaços intersticiais criados a partir da acoplagem dos blocos são outro ponto louvável do projeto, já que são mais complexos e se aproximam mais de cada apartamento do que os halls de edifícios-torre comuns. Tornam-se ruas para pedestres, espaços de convivência para os moradores. Segundo o memorial descritivo, o projeto: Modifica a habitação unifamiliar, para existir de maneira concentrada e sem esforços no ambiente de alta densidade de uma cidade. 10

Desenho esquemático dos módulos, Habitat 67, Mosche Safdie Foto do edifício Habitat 67, Mosche Safdie | Fonte: www.habitat67.com

8 WHITAKER. João S. In: ZABALBEASCOA, Anatxu. Tudo sobre a casa. P. 07. 9 Silva, R. F. Caracterização de Vila Inserida no Contexto Urbano. P.17 10 SAFDIE, Mosche. Memorial Descritivo, Habitat 67. Tradução livre: Modifies the ‘single family dwelling’ to exist concisely and effortlessly in the high density environment of a city

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Após definir o objeto de estudo - edifício habitacional multifamiliar, capaz de manter as qualidades de uma residência unifamiliar, do habitar em conjunto e da localização urbana - a pergunta torna-se: quem habitará esse edifício? A partir do momento que defini projetar um edifício multifamiliar, imaginei núcleos familiares bastante distintos, considerando que, segundo o IBGE, apenas 55% da população brasileira é composta pela típica família nuclear. Foram buscadas pessoas diversas entre si e com necessidades bastante específicas, a fim de estudar as subjetividades de cada personalidade e materializá-las na arquitetura. Para escolher os “clientes”, acreditei ser frutífero buscá-los dentro do ambiente literário. Dessa forma, são utilizadas personalidades já definidas por autores, e a partir da leitura dos livros pode-se obter características não só dos personagens, mas também muitas vezes dos ambientes onde habitam. É uma forma de interpretar relações humanas “reais, no sentido de que essas figuras existem, com suas delineações pré-existentes, mesmo que sejam fictíceas. A descrição dos espaços de habitação nas obras literárias comprova que a estreita relação entre personalidade e jeito de morar é entendida também pelos escritores. Ao descrever como determinada figura habita, descreve-se também um pouco da sua subjetividade, de suas manias e forma de viver. Claro que deve haver um cuidado em distinguir hábito de condição – muitas vezes não se escolhe o lugar onde se vai morar, apenas se adapta, por exemplo por conta de questões financeiras. Com a retomada de livros já lidos por mim, e a leitura de outros com o intuito de achar os clientes ideais, defini alguns núcleos familiares compostos por um número variado de personagens, que inspiram os “clientes” para quem irei projetar. São eles:


Jay Gatsby, de O Grande Gatsby (F. Scott Fitzgerald, 1925)

Renée, de A Elegância do Ouriço (Muriel Barbery, 2006)

Patti Smith e Robert Mapplethorpe, de Só Garotos (Patti Smith, 2014)

Família Buendía, de Cem Anos de Solidão (Gabriel Garcia Marquez, 1982)

O universo literário oferece uma gama muito vasta de personagens, profissões, características, épocas e culturas. Escolher entre esses é já limitar o projeto, que poderia tomar milhares de formas dependendo dos livros tomados como partida. Por outro lado, um edifício deve ser mutável o suficiente para suportar outras famílias, que com o tempo podem vir a ocupar aquele espaço, e até para abrigar as mesmas famílias através do tempo em que essas estão ali, mudando constantemente à medida que novas fases da vida chegam. Assim, sob a ótica de quatro núcleos familiares diversos em relação a tamanho, épocas, modos e manias, busca-se projetar um edifício capaz de suprir ao mesmo tempo cada necessidade individual, sem perder a noção da congruência dos diversos, obrigatória em todas as escalas quando se trata do morar junto, seja no edifício ou na cidade. E assim, voltamos às personagens centrais deste trabalho: E se fossem morar todos juntos?

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a relação casa | cidade

A relação de um edifício e seu lugar de inserção tem, ao meu ver, a mesma relevância que sua forma ou configuração espacial. Dentro dessa relação, a habitação inserida na cidade deve ser analisada sob diferentes pontos de vista – ao mesmo tempo, é extensão e oposição do ambiente urbano. Segundo Alberti: Pois se a cidade, de acordo com a opinião dos filósofos, nada mais é que uma grande casa e, por outro lado, a casa é uma pequena cidade, por que não dizer que os componentes dessa casa são como muitas pequenas casas, tais como o pátio, o hall, o parlatório, o pórtico, e assim por diante.1 Pode-se pensar na casa como um conjunto de equipamentos necessários para a sobrevivência – dormir, comer, relaxar, trabalhar, conviver. Se a cidade é o espaço de aproximação de diferentes equipamentos – morar, comer, comprar, trabalhar, divertir-se – pode-se traçar uma relação direta entre a casa e a cidade, em duas diferentes escalas. A cidade pode, de certo modo, ser vista também como extensão da casa. Segundo Whitaker, em discussão de orientação metodológica, “algumas cidades, como Paris, é possível viver em apartamentos muito pequenos, com as funções reduzidas a dormir, comer e higienizar-se. Isso porque o governo oferece no ambiente urbano equipamentos e infraestrutura suficientes para complementar o que não se tem nas habitações”. No Brasil, onde não há tanta infra-estrutura e equipamentos públicos, há menor fruição urbana, e consequentemente um maior individualismo - os equipamentos e o próprio lugar de convivência são trazidos para dentro da casa. Assim, o estudo e a compreensão da dinâmica existente dentro da residência se mostram válidos e ainda mais complexos / necessários. 1 ALBERTI, Leon Battista; The Ten Books of Architecture, p. 13. In: CAMARGO, Monica Junqueira; Joaquim Guedes, p. 09.


Sob outra ótica, é importante ressaltar também o caráter privado da casa, em contraposição ao ambiente público da cidade. A cidadania é também saber portar-se no ambiente compartilhado por muitos, saber posicionar-se frente ao outro, sendo o ambiente público o que nos obriga a segurar nossos monstros. Não importa qual o tipo de casa ou habitante, a partir do momento em que se fecha a porta de uma residência, tem-se direito ao privado. Não se pode sobreviver sem a existência de um local de resguardo, onde não chegue a superexposição a que está se está sujeito na vida em comunidade, seja no mundo físico ou virtual. A casa é esse lugar da dor mais intensa, do “amor protegido do vento”, onde é permitido – se não necessário - ser, sentir e demonstrar o que quiser, sem a preocupação das vistas ou opiniões da sociedade. Sobre a importância do projeto da casa na arquitetura, e principalmente na vida do indivíduo, o arquiteto Mario Botta afirma em entrevista de 1998: A casa é intimamente ligada à idéia de abrigo. Uma caverna escavada de uma rocha é como um ventre materno. Esse é o conceito de casa que eu defendo. Quando estou cansado do mundo, eu quero ir para casa. Lá eu posso recuperar minha energia para a batalha do dia seguinte. Enquanto houver um homem que precisa de uma casa, a arquitetura vai existir... Uma casa deve ser como um ventre materno.2 O espaço de transição entre os dois mundos – privado versus público – é bastante significativo pois cumpre um papel de batalha pela 2 BOTTA, Mario. Entrevista dada a Philip Jodidio. In: JODIDIO, Philip. 100 Contemporary Houses. P.07 Tradução livre: The house is intimately related to the idea of shelter. A cave carved out of the rock is like a mother’s womb. This is the concept of house that I defend. When I am tired of the world, I want to go home. There I can regain my energy to prepare for the next day’s battle. As long as there is a man who needs a house, architecture will still exist… A house should be like a mother’s womb.

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conquista do espaço individual dentro da cidade, ao mesmo tempo em que deve acolher o mundo exterior quando este atinge o espaço da casa. Esse umbral tem portanto que ser pensado com cautela no momento do projeto de um edifício. Segundo Herzberger: A soleira fornece a chave para a transição e a conexão entre áreas com demarcações territoriais divergentes e, na qualidade de um lugar por direito próprio, constitui, essencialmente, a condição especial para o encontro e o diálogo entre áreas de ordens diferentes. O valor deste conceito é mais explícito na soleira ‘par excellence’, a entrada de uma casa. Estamos lidando aqui com o encontro e a reconciliação entre a rua, de um lado, e o domínio privado, de outro. A criança sentada no degrau em frente à sua casa está suficientemente longe da mãe para se sentir independente (…) mas, ao mesmo tempo, sentada ali no degrau, que é parte da rua assim como da casa, ela se sente segura, pois sabe que sua mãe está por perto. (…) Esta dualidade existe graças à qualidade especial em que os dois mundos se superpõem em vez de estarem rigidamente demarcados. A concretização da soleira como intervalo significa, em primeiro lugar e acima de tudo, criar um espaço para as boas-vindas e as despedidas, e portanto, é a tradução em termos arquitetônicos da hospitalidade. Além disso, a soleira é tão importante para o contato social quanto as paredes grossas para a privacidade.3 Assim como o umbral, a circulação dentro do edifício também deve receber muita atenção. No caso dos edifícios multifamiliares, por vezes é difícil precisar o momento exato da transição público-privada. A entrada do edifício leva a um lugar privado, porém comum a todos 3

HERZBERGER, Herman. Liçoes de Arquitetura. P. 32 / 35.


os que ali habitam. A circulação tem o papel de espaço de contatos sociais, como as ruas são para a cidade, mesmo que em menor escala. Não se deve perder, portanto, essa idéia do espaço de circulação como ambiente de interação – seja ela positiva ou negativa - entre os moradores. Novamente, pode-se citar o projeto Habitat 67 como referencia aqui, já que a circulação interna se torna uma eficiente rua para pedestres, moradores, visitantes ou prestadores de serviço. A aproximação de cada habitação com o ambiente comum respeita as qualidades de cada um – privacidade da residência, multiplicidade no espaço compartilhado - assim como ocorre na cidade. Ainda sobre a relação casa – rua, busco compreender a aproximação entre o espaço público de passagem e o habitar privado. Na tipologia comum dos edifícios-torre, os grandes recuos frontais dificultam uma harmonia nessa aproximação. O habitante adentra um espaço – privado, porém comunitário a todos os moradores e visitantes atinge os elevadores e logo a “segurança” de seu apartamento. Sua privacidade ali dentro é mantida e pode-se até esquecer que habita em uma cidade plural, já que está em um bloco fechado e afastado da rua, até que o cachorro do vizinho ladre ou o filho da vizinha comece a correr sobre seu teto. Não há o costume de se conversar com o outro, que ocupa um espaço tão próximo do próprio, nem o de olhar pela janela para a rua, quando se está cinco ou seis andares acima. Apesar de gerar uma sensação de maior segurança, por estar afastado do mundo público, onde todos – “mocinhos e bandidos” – podem acessar, esse processo gera empobrecimento do espaço da rua. Segundo Jacobs:

Pátio interno do edifício Habitat 67, Mosche Safdie | Fonte: Website Habitat 67

(…) devem existir olhos para a rua, os olhos daqueles que podemos chamar de proprietários da rua. Os edifícios de uma rua preparada para receber estranhos e garantir a segurança tanto deles quanto dos moradores devem estar voltados para a rua. Eles não podem estar com os

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fundos ou um lado morto para a rua e deixá-la cega. 4 Ao se investir em uma circulação interna única para todos os habitantes do edifício, pode-se também ressaltar a percepção que cada morador ganha em relação a seus vizinhos. Mais que encontros constrangedores no corredor, deve-se lembrar que o perceber a presença alheia gera mais segurança e unidade ao todo - seja em caso de acidentes, quando se pode contar com a ajuda extra daquele que habita ao lado, seja em caso de júbilo, quando as alegrias de um podem ser compartilhadas também por outros.

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JACOBS, Jane. Morte e Vida das Grandes Cidades. P. 35


a localização

A escolha do terreno foi precedida pela análise do zoneamento da cidade de São Paulo. Dentre as possíveis opções oferecidas pelo Plano Diretor Estratégico, nos artigos 33, 34 e 35 (Zonas Exclusivamente Residenciais; Zonas Predominantemente Residenciais; Zonas Mistas), apreciaram-se as qualidades da Zona Exclusivamente Residencial de Baixa Densidade, como o silencio, a arborização, a velocidade reduzida nas ruas. Porém, devem ser reconhecidas suas desvantagens: a falta de comércio e serviços pode exigir distancias maiores para realização atividades cotidianas, como ir ao supermercado ou praticar atividades esportivas, gerando necessidade de utilização de transporte motorizado. Isso gera também um esvaziamento das ruas, tornando-as mais inseguras. A multiplicidade de usos dentro do ambiente urbano é, além disso, uma característica muito positiva da cidade, pois criam-se espaços vivos e plurais, levando ao encontro de diferentes pessoas e idéias, gerando a partir dessa convergência novas formas mais abertas de se viver. Assim, passei a buscar uma Zona Predominantemente Residencial, que balanceasse essas qualidades e desvantagens. A região de Pinheiros foi cogitada por ser uma região com ampla oferta de comércio, serviços, e ao mesmo tempo historicamente residencial, além de contar com ampla rede de transporte público. Residências individuais, escadarias com casas geminadas, vilas, edifícios baixos e blocos de apartamento de até 25 andares, todos espalhados por um bairro com múltiplas identidades. Por se encontrar em área de urbanização consolidada, a região não deve sofrer alterações significativas no futuro. A partir de visitas pelo bairro, foram analisados diversos terrenos vazios, que poderiam abrigar o projeto deste trabalho. Dentro do mapa de uso e ocupação do solo fornecido pela prefeitura, percebeuse que um desses terrenos encontra-se em uma situação bastante interessante: em meio à zona mista que engloba grande parte do bairro, encontra-se em uma pequena ilha de uso exclusivamente

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Isso ĂŠ percebido na regiĂŁo, que vai mudando de cara Ă medida que adentra a zona de uso exclusivamente residencial. Uma rua com restaurantes, padarias, academias, lojas e edifĂ­cios habitacionais vai se tornando mais uniforme, menos movimentada e com menor gabarito.

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residencial de baixa densidade. Assim, o terreno se aproveita das qualidades de ambas as zonas – residencial, onde se encontra, e mista, limítrofe.

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O projeto segue as normas de zona exclusivamente residencial de baixa densidade, com Coeficiente de Aproveitamento Måximo de 1, Taxa de ocupação måxima de 0,5, lote mínimo de 250m2, frente mínima 10m e gabarito de altura måximo 10m.

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Características de Aproveitamento, Dimensionamento e Ocupação dos Lotes. Fonte: Plano Regional EstratÊgico, Subprefeitura de Pinheiros, São Paulo

No mapa a seguir, consegue-se analisar a lei de zoneamento - variando entre uso misto e uso exclusivamente residencial - e as principais linhas de ônibus, assim como as duas estaçþes de metrô existentes nas proximidades do terreno.


Zona Exclusivamente Residencial Zona Mista Baixa Densidade Zona Mista Média Densidade Zona Mista Alta Densidade Corredor de ônibus Faixa exclusiva de ônibus Linha de ônibus Estação de metrô Terreno


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O terreno escolhido, na Rua João Moura, possui 633m2. É um terreno de esquina, o que pode possibilitar diferentes acessos, além de propiciar excelentes insolação e ventilação ao edifício, que terá as duas fachadas norte e oeste voltadas para a rua. O declive existente no terreno, de 5 metros ao longo de seus 38 metros, se constitui um belo desafio, a ser aproveitado para possibilitar diferentes formas a cada unidade, alem da possibilidade de mais de um piso térreo. Percebe-se mudança na vegetação do entorno do terreno. Quanto mais adentra a área exclusivamente residencial, mais arborizadas ficam as ruas. Não há árvores existentes dentro do terreno, nem em suas calçadas. No terreno vizinho, do lado oposto da rua, há uma frondosa Pau-ferro trazendo agradável vista. As casas, únicas vizinhas diretas do terreno, têm entre um e três pavimentos; variam em relação a formatos e cores; seus recuos são padronizados, ainda que algumas fujam à regra; algumas excessões em concreto aparente chamam a atenção de quem passa, fugindo à regra da alvenaria comum e dos telhados em duas águas.



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O tráfego de veículos na região não é intenso, o que é bastante positivo pois não há muita poluição sonora na região. A Rua João Moura, tomada como frente do projeto, é a rua mais movimentada do entorno, e tem uma velocidade média de 50km/h. O fluxo médio/ alto contínuo durante o dia gera certo barulho de carros, que é menor durante a noite. A Rua Francisco Farel, por outro lado, é extremamente silenciosa e tranquila. Com fluxo de carros apenas dos moradores, tem também som de pássaros agradável graças à sua arborização. As calçadas não têm um padrão, mas seu tamanho é condizente com seu uso. Há pedestres caminhando na rua, mas em pequena quantidade.


6 11 9 8 7 10 12 5 13

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4

3 2

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1


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os estudos projetos anteriores


os estudos consideraçþes sobre o tema

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os estudos pinheiros


os estudos terreno | preceitos de projeto

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os estudos preceitos de projeto


os estudos projetos analisados

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as referências casa junqueira

A Casa Junqueira (1976-1980), projeto do arquiteto Paulo Mendes da Rocha em São Paulo, traz como foco um prisma cor de rosa, desalinhado em relação à cobertura. Para uma habitação, é estranho imaginar que esse volume principal não seja propriamente a residência, e sim sua biblioteca anexa. Alterando a lógica residencial, o arquiteto mostra que as características e necessidades do morador são definidoras da configuração e da natureza dos espaços a serem criados. Com o programa da residência em segundo plano, percebe-se que os moradores dessa casa vêem imensurável valor em sua coleção de livros, com quem vão compartilhar espaço, e essa importância se torna clara e até impositiva a moradores e visitantes.


as referências vila romana

A Vila Romana (2004-2006), do escritório MMBB em São Paulo, tem em seu programa residência e estúdio dos seus moradores, com os usos claramente divididos entre dois blocos. O desnível do terreno permite o bloco do ateliê semi-enterrado, enquanto o bloco residencial é suspenso, acima do nível térreo, que serve de acesso a ambos. Mais uma vez, percebe-se a engenhosidade da solução arquitetônica ao lidar com as diferentes naturezas de espaço exigidas no programa - o pavimento residencial, de caráter privado, fica protegido da provável circulação de profissionais do estúdio.

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as referências double house

A Double House (1995-1997), projeto do escritório MVRDV em Utrecht, partiu do interesse de dois núcleos familiares habitarem um só terreno, combinando vistas, jardim, cobertura, acesso, menor custo de terra e maior segurança a ambos. Os dois programas residenciais bastante diversos, cada qual suprindo às necessidades das respectivas famílias, mostram como os extremos podem sim coexistir, maximizando as qualidades espaciais de cada ambiente à medida que os pés direitos e as larguras variam ao longo do edifício. O resultado é um volume, subdividido em dois blocos encaixados, que se entrelaçam de forma harmônica. O mais tocante nesse projeto é a afirmação de seus moradores, de que a parede divisória das duas unidades é a primeira de muitas movimentações terapêuticas em direção a uma saudável negociação entre vizinhos.


as referências edifício de apartamentos em lugano

O Edifício de Apartamentos em Lugano (2009-2013), do arquiteto Ângelo Bucci (SPBR Arquitetos), parte de dois centros - paredes estruturais em T - criando dois núcleos de atividades (segundo descrição do próprio arquiteto) dentro do programa de habitação. A simplicidade estrutural dispensa necessidade de vigas e gera uma planta clara, que permite diferentes configurações internas, variando entre um ou dois apartamentos por pavimento. Os elementos verticais - circulação, colunas hidráulicas - são posicionados próximos aos elementos em T, tornando livre a geometria de lajes e fachadas.

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as referências casa md

A Casa MD (2011), projeto do escritório Alric Galdez, é composta por cinco volumes, de diferentes alturas e formatos. Cada bloco tem total liberdade de forma, para melhor adequar-se à sua função, apoiandose na topografia acidentada existente no local. Os blocos são interligados por corredores de vidro, criando uma forte relação com a paisagem local, e tornando poética a diferença entre o dentro e o fora - exposto à paisagem, refugiado na casa. Os corredores deixam bem clara a idéia de percurso dentro da casa, passando pelos diferentes ambientes - e consequentemente usos - da residência. Chama a atenção a forma de explictar essa congruência de funções que deve existir em toda habitação, e que passa desapercebida por muitos por ser tão inerente à idéia de casa.



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as personagens jay gatsby

Jay Gatsby, personagem do livro “O Grande Gatsby”, é um jovem de origem humilde, que buscou a riqueza no pós-guerra para conquistar a atenção de Daisy, jovem por quem se apaixonou antes da guerra. F. Scott Fitzgerald conta essa trágica história a partir da visão de Nick Carraway, primo de Daisy e vizinho da mansão de Gatsby, mostrandose um narrador muito impressionado com a figura do vizinho e seu estilo de vida ostensivo. Para um rapaz estudado, buscando o sucesso financeiro na cidade grande, ser convidado a adentrar o círculo peculiar da alta sociedade gera um ponto de vista dual ao leitor. Por vezes, ao descrever a magnífica casa de Gatsby, a personagem fica completamente deslumbrada com o que vê. Ao fim, porém, decepciona-se com a pobreza de caráter daqueles que também habitam aquele universo, ao qual por fim escolhe não pertencer. Jay, figura mística por não ter um passado delineado como as outras personagens, mora em uma mansão nos arredores de Nova York. Seu majestoso jardim recebe festas aos finais de semana, abertas a qualquer visitante que decida aparecer. Havia música, vinda da casa de meu vizinho nas noites de verão. Em seus jardins azuis, rapazes e moças iam e vinham como traças, entre sussurros, campanhe e estrelas. (...) Nos fins de semana, seu Rolls Royce se transformava em ônibus, transportanto grupos de convidados da cidade para lá, e vice-versa, desde as nove da manhã até bem depois da meia-noite (...) E nas segundas-feiras, oito empregados, inclusive um jardineiro extra, trabalhavam o dia inteiro com seus panos, escovas, martelos e tesouras de jardinagem, consertando os estragos da noite anterior. Todas as sextas-feiras chegavam cinco engradados de laranjas e limões, entregues por um fruteiro de Nova York. (...) Pelo menos uma vez a cada quinze dias, um corpo de fornecedores chegava com centenas de metros de lona azul e luzes coloridas para transformar o imenso


jardim de Gatsby em árvore de natal. (...) As pessoas não eram convidadas, simplesmente apareciam. (...) Uma vez ali, eram apresentadas por alguém que o conhecia, e depois disso se comportavam de acordo com as regras de conduta próprias de um parque de diversões.1 Mais adiante, Nick descobre que as grandiosas festas têm o intuito de atrair Daisy, a jovem com quem teve breve romance antes de partir para a guerra. Quando se reencontram, ainda casada com outro, Daisy se entrega a seu antigo amor, porém as boas intenções não garantem um final feliz. Após acontecimentos dramáticos Gatsby é assassinado, Daisy parte a um novo futuro com seu marido e Nick volta para sua terra natal, marcado pela ingenuidade de um homem apaixonado e pela crueldade daqueles à sua volta. Quando voltei do Leste no último outono, senti que aspirava um mundo mais uniforme, sempre envolto em uma espécie de atenção moral; (...) Apenas Gatsby, o homem que dá nome a este livro, estava excetuado de minha reação - Gatsby, que representava tudo pelo qual eu sentia um natural desdém. Se a personalidade é uma série de gestos bem sucedidos, havia algo de grandioso nele, uma brilhante sensibilidade às promessas da vida, como se ele fosse parente de uma dessas máquinas que registram terremotos a dezesseis mil quilômetros de distância. Essa receptividade não tinha nada a ver com aquela débil impressionabilidade dignificaa sob o nome de “temperamento criativo”- era um dom extraordinário para a esperança, uma prontidão romântica que jamais encontrei em outra pessoa e que provavelmente jamais encontrarei. Não... Gatsby revelou-se boa pessoa no final. 2 1 2

FITZGERALD, F. Scott. O Grande Gatsby. P. 32/33. Id Ibid, P. 09.

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A partir da narrativa, é possível traçar relação direta entre a personalidade e a espacialização da residência de Gatsby, já que ambas têm uma faceta festeira e uma faceta reservada. Por trás do jardim e salão de festas, encontra-se um espaço reservado - um apartamento privativo dentro da ilha de lazer aberta ao público. E no interior da casa, enquanto perambulávamos pelas salas de música estilo Maria Antonieta e pelos salões Restauração, senti que havia hóspedes escondidos atrás de cada sofá e cada mesa, com ordens para se manterem silenciosos até que passássemos. (...) Fomos para o andar superior e atravessamos quartos com móveis de estilo, envoltos em seda rosa e lavanda, tornados vívidos pelas flores recém colhidas; atravessamos quartos de vestir, salas de bilhar, banheiros com banheiras embutidas abaixo da superfície (...). Finalmente, chegamos ao apartamento de Gatsby: um quarto com banheiro, e um escritório onde nos sentamos e bebemos um cálice de Chartreuse que ele tirou de um armário encravado na parede. (...) Seu quarto era o mais simples dentre todos exceto pela penteadeira, ornamentada com um conjunto de toalete de ouro puro. (...) Abriu dois maciços armários que continham uma enorme quantidade de ternos, roupões, gravatas e suas camisas.3 Ao tratar Gatsby como habitante do edifício na Rua João Moura, a questão do espaço torna-se limitante ao conjunto tão grande de cômodos existentes em sua mansão individual. O aspecto principal a ser mantido desta personagem é o caráter dual de sua essência - e de sua residência. A face pública e a face privada têm nesse edifício seus devidos lugares e proporções, separados espacialmente de maneira bem clara, porém sem barreiras para não causar estranhamento ao visitante. 3

Id Ibid, P. 63.


O programa escolhido para o habitante de um dos 04 apartamentos do edifício, inspirado na personagem de Fitzgerald, é: Hall de entrada Salão de festas Terraço para festas, contíguo ao salão de festas Cozinha Área de serviços / depósito Lavabo Biblioteca Escritório Suíte

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as personagens renée

Renée, a zeladora do número 7 da Rue Grenelle de Paris, é uma das vozes utilizadas pela escritora Muriel Barbery no livro “A Elegância do Ouriço”. Ao retratar o cotidiano do edifício, a personagem é formada a partir de comentários realistas e por vezes negativos de si mesma, personalidade essa atenuada por uma segunda narradora, a adolescente Paloma, que habita o mesmo edifício. Ambas possuem um olhar muito crítico sobre o microcosmo em que vivem, e seu distanciamento em relação às pessoas - Renée por conta da classe social mais baixa, Paloma por conta da idade - faz com que passem despercebidas como seres pensantes no edifício. A sagacidade de ambas, subestimada pelos outros, permite que compreendam as manias e segredos de todos os habitantes do edifício. Meu nome é Renée. Tenho cinquenta e quatro anos. Há vinte e sete sou a concierge, a zeladora do número 7 da Rue de Grenelle, um belo palacete com pátio e jardim interno, dividido em oito apartamentos de alto luxo, todos habitados, todos gigantescos. Sou viúva, baixinha, feia, gordinha, tenho calos nos pés e, em certas manhãs auto-incômodas, um hálito de mamute. Não estudei, sempre fui pobre, discreta e insignificante. Vivo sozinha com meu gato (...). Ele e eu não fazemos nenhum esforço para nos integrar no círculo de nossos semelhantes. Como raramente sou simpática, embora sempre bemeducada, não gostam de mim, mas me toleram porque correspondo tão bem ao que a crença social associou ao paradigma da concierge. Como um ouriço, a personagem usa os tratamentos grosseiros como espinhos, para evitar qualquer aproximação, resguardando sua verdadeira individualidade, uma mulher inteligente, justa e extremamente culta. Já que minha fome não podia ser aplacada no jogo de


interações sociais que eram inconcebíveis por minha própria condição, (...) ela o seria nos livros. (...) Li como uma alucinada, primeiro escondido, depois, quando o tempo normal da aprendizagem me pareceu superado, na cara de todo mundo mas tomando o cuidado de dissimular o prazer e o interesse que tirava daquilo. A criança fraca se tornara uma alma faminta. Após a morte do marido, se faz ainda mais reclusa da sociedade, encontrando satisfação na companhia de seus livros, filmes e seu gato Léon. Recebe visitas apenas de Manuela, a ingênua doméstica estrangeira que atende ao edifício. Às terças e às quintas, Manuela, minha única amiga, toma chá comigo na minha casa.(...) Preparo um café que não tomaremos mas cujos eflúvios nós duas adoramos, e bebericamos caladas uma xícara de chá verde, beliscando as tuiles. O apartamento exige, portanto, pouca ou nenhuma área para recepção de visitas propriamente ditas. É um espaço voltado a si mesmo, à individualidade da discreta personagem, inserido no coração do prédio devido à função da concierge. O posicionamento busca analogia ao título do livro, com a elegância inserida no miolo do edifício, como num ouriço. Traz também o desafio de resguardar as manias da personagem, enquanto mantém o forte esteriótipo que essa busca manter. Mais árduo foi o problema da televisão. Na época do meu finado marido, acabei me acostumando, porque a constância com que ele assistia TV me poupaca desse aborrecimento. Na portaria do prédio se ouviam ruídos daquela coisa, e bastava isso para eternizar o jogo das

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hierarquias sociais cujas aparências, havendo Lucien morrido, tive de dar tratos à bola para manter. (...) Pois nessas condições fico na salinha do fundo, ali onde passo quase todas as minhas horas de lazer e onde, protegida contra os barulhos e os odores impostos por minha condição, posso viver como bem entendo sem ser privada das informações vitais para qualquer sentinela: quem entra, quem sai, com quem e a que horas. (...) O aparecimento dos videocassetes e, mais tarde, do DVD mudou as coisas ainda mais radicalmente no sentido da minha felicidade. Como é pouco corrente que uma concierge vibre com Morte em Veneza e que de seu cubículo escape um Mahler, comi a poupança conjugal, tão arduamente amealhada, e comprei outro televisor, que instalei no meu esconderijo. Para a habitante inspirada na peculiar personagem de Barbery, o singelo programa é composto por: Cozinha Banheiro Quarto Sala de leitura / projeções


as personagens patti smith e robert mapplethorpe

No livro autobiográfico “Só Garotos”, Patti Smith descreve sua juventude vivendo com Robert Mapplethorpe, com quem manteve um multifacetado relacionamento amoroso. Patti descreve com detalhes a vida escassa e difícil que levavam, enquanto tentavam se auto-afirmar no complexo mundo da arte nova-iorquino. A paixão pela arte, mesmo sem saber em qual forma se firmariam, guiava o casal. Em todas as residências que compartilharam, descritas no livro, percebe-se que os espaços - pequenos ou grandes - eram ocupados também - e especialmente - como espaços de criação. Sobre o primeiro apartamento juntos, Patti descreve: Tínhamos o segundo andar inteiro, com janelas para os dois lados, mas as condições agressivamente precárias foram algo inteiramente novo para mim. As paredes estavam sujas de sangue e rabiscos psicóticos, o fogão lotado de seringas usadas, e a geladeira completamente embolorada. (...) Robert havia me garantido que transformaria ali em um bom lar e, mantendo sua palavra, trabalhou para torná-lo nosso. (...) Voltei para o sul de Jersey e resgatei meus livros e roupas. Enquanto estive fora, Robert pendurou seus desenhos e revestiu as paredes com tecidos indianos. Cobriu o aparador sobre a lareira com artefatos religiosos, velas e suvenires do Dia de Finados, arranjando-os como objetos sagrados sobre um altar. Por fim ele preparou uma área para servir de estúdio para mim, com uma pequena mesa de trabalho e o tapete mágico desfiado. O casal tinha uma relação de cumplicidade, e o que iniciou como uma relação sexual evoluiu de maneira intermitente, à medida que exploravam novos amantes e até gênero sexual. Mesmo sendo sincero sobre sua recém-descoberta homossexualidade, Mapplethorpe manteve-se com Patti, pois ambos percebiam que o amor que sentiam um pelo outro ia além do físico.

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Aonde tudo aquilo levaria? O que seria de nós? Essas eram nossas perguntas juvenis, e as respostas juvenis a elas seriam reveladas. Aquilo nos levou um para o outro. Nós nos tornamos nós mesmos. Separados, fomos capazes de enxergar com mais clareza que um não queria mais ficar sem o outro. (...) Os dois haviam se entregado a outras pessoas. Hesitamos e perdemos todo mundo, mas encontramos um ao outro novamente. Queríamos, ao que parecia, o que já tínhamos antes, um amante amigo para criar junto, lado a lado. Ser leal, ser livre. (...) Juramos que nunca mais nos separaríamos de novo, até que os dois soubessemos que estávamos prontos para aguentar sozinhos. E essa promessa, apesar de tudo que ainda passaríamos, nós mantivemos. Após uma breve separação, ambos voltaram a viver juntos, em um período bastante marcante da história artística do casal. O hotel Chelsea foi um espaço onde Patti e Robert conviveram com hóspedes de passagem e os outros muitos residentes também na busca pelo sucesso no mundo da arte. De olho no movimento do saguão cheio de arte ruim nas paredes. Objetos volumosos e invasivos descarregados ali para Stanley Bard em troca do aluguel. O hotel é um porto energético, desesperado, para bandos de crianças talentosas que precisam correr atrás de cada degrau da escada. Vadios com violão e bichas muito loucas em vestidos vitorianos. Poetas viciados, dramaturgos, cineastas falidos e atores franceses. Todo mundo que


passa por aqui é alguém, mesmo que não seja ninguém no mundo lá fora. A partir das descrições da experiência no Chelsea, percebe-se a importância da convivência com o diferente na vida e na criação das personagens. Apesar disso, precisaram buscar outra residência, já que a energia criativa do hotel não comportava as necessidades espaciais dos dois, especialmente de Robert. Sobre a mudança do Chelsea e a vida no ateliê/residência: Na verdade, eu não queria deixar o Chelsea, a relação com poetas e escritores, Harry e o nosso banheiro no corredor. Conversamos um bocado cobre o assunto. (...) Nós dois teríamos espaço para trabalhar e ficar perto um do outro. Mas ao mesmo tempo era muito triste, especialmente para mim. Eu adorava morar no hotel, e sabia que quando nos mudássemos tudo iria se transformar. “O que vai acontecer com a gente?”, perguntei. “A gente sempre vai existir”, ele respondeu. Robert e eu não havíamos esquecido da jura feita no taxi vindo do Allerton para o Chelsea. Era evidente que não estávamos prontos para que cada um seguisse seu caminho sozinho. “Eu vou estar na porta ao lado”, ele disse. Dentre todas as casas descritas no livro, esse projeto busca sintetizar as qualidades espaciais de cada uma. A idéia do corredor, lugar da circulação e do contato com o outro; os ateliês de criação neutros, capazes de comportar pintura, instalações, fotografia, escrita, performances; sala de estar comum; espaços integráveis. Um apartamento que respeite tanto a individualidade de cada personagem quanto a existência de sua intimidade e seus laços

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indissolúveis. Assim, para as personagens inspiradas no autobiográfico Só Garotos, é definido o programa: Sala de estar Cozinha Ateliê Patti Smith Ateliê Robert Mapplethorpe Suíte Patti Smith Suíte Robert Mapplethorpe


as personagens os buendía

Assimilar a família Buendía, do livro Cem Anos de Solidão, é por si só uma árdua tarefa. A infinidade de Arcádios, Aurelianos e as tantas outras personagens, envolvidos nas incomuns situações descritas de maneira regular pelo narrador onipresente de Gabriel Garcia Marques, gera confusão a um leitor desatento. A partir dessa narrativa detalhada dos acontecimentos, porém, criam-se imagens muito fortes das residências do livro. A fim de concentrar o foco na personagem de Úrsula, matriarca da família, busca-se entender a casa em que esta cria e busca agregar os filhos, netos e bisnetos. Desde o início do livro, com a fundação da cidade de Macondo pelo casal Úrsula e José Arcádio Buendia, percebe-se o zelo da personagem para com sua morada. Tinha uma salinha ampla e bem iluminada, uma sala de jantar na forma de terraço com flores de cores alegres, dois dormitórios, um quintal com uma castanheira gigantesca, um jardim bem plantado, com horta e pomar, e um curral, onde viviam em comunidade pacífica os bodes, os porcos e as galinhas. Graças a ela, os chãos de terra batida, os muros de barro sem caiar, os rústicos móveis de madeira construídos por eles mesmos estavam sempre limpos, e as velhas arcas onde era guardada a roupa exalavam um perfume morno de alfavaca. Durante todas as modificações que ocorrem na família - nascimento de filhos, aparecimento de bastardos, casamentos e mortes, a casa se adequa às novas necessidades, o que dificulta a compreensão da multiplicação de espaço e até da viabilidade de se encaixar, sob um mesmo teto, tantos moradores. A casa tinha se enchido de gente, seus filhos estavam a ponto de casar e ter filhos, e se veriam obrigados a se dispersar por falta de espaço.

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Então pegou o dinheiro acumulado ao longo de longos anos de trabalho duro, assumiu compromissos com seus clientes e começou a ampliação da casa. Mandou construir uma sala formal para as visitas, outra mais cômoda e fresca para uso diário, uma sala de jantar, uma mesa de doze lugares onde a família poderia sentarse com todos os convidados; nove dormitórios com janelas para um pátio ou a varanda comprida protegida do esplendor do meio-dia por um jardim de rosas (...). Úrsula determinava a posição da luz e a conduta do calor, e repartia espaço sem a menor noção dos seus limites. Buscou-se manter qualidades espaciais que permitam cumprir os usos da grandiosa casa, adequando o tamanho para que se insira no edifício projetado da Rua João Moura. Devido às proporções da família, para o apartamento dos Buendía, foram selecionadas personagens-tipo dentre as sete gerações retratadas. O caráter repetitivo das personalidades e do tempo dentro dos cem anos legitima essa decisão. (...) uma vez mais estremeceu, com a comprovação de que o tempo não passava, como ela acabara de admitir, e sim dava voltas redondas. A centenária Úrsula, a “voz da razão de uma família de loucos”, sobrevive a todas as gerações e busca manter o controle sobre a casa a vida de sua prole. Não havia nenhum mistério no coração de um Buendía que fosse impenetrável para ela, porque um século de baralho e de experiência tinha ensinado que a história da família era uma engrenagem de repetições irreparáveis, uma roda giratória que teria continuado dando voltas até a eternidade, se não fosse o desgaste progressivo e irremediável do eixo.


José Arcádio, empreendedor com sonhos extravagantes, eventualmente vai à loucura de fato, sendo mantido na castanheira do pátio até o fim da vida. As repetidas crianças, cuja presença na casa se renova constantemente graças às intrincadas relações entre as figuras do livro. A mulher solteira pode ser retratada pela filha Amaranta, que após desilusões amorosas, decide se manter virgem e ajudar na criação das crianças que passam pela casa. A personagem introspectiva, podendo ser inspirada na figura do filho Coronel Aureliano ou até do cigano Melquíades. A diferenciação dos âmbitos público e privado da residência, variando inclusive em níveis de intimidade para os diferentes convidados, é o ponto mais importante no projeto do apartamento para os habitantes inspirados nos Buendía. Enquanto o convite para o comer é aberto a todos os visitantes, forasteiros ou conhecidos, o estar se mostra mais reservado, fechado aos poucos convidados de fato da família. Os quartos são mais resguardados, assim como o espaço do patriarca lunático. O programa engloba: Salão de estar Salão de jantar Cozinha Suíte de Ursula Quartos dos filhos Banheiros dos filhos Jardim da Castanheira

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as premissas de projeto


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o processo janeiro


o processo fevereiro

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o processo marรงo


o processo abril

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o processo maio



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o projeto

+2

0

+1

-1


implantação 1:250


elevação 1 1:125


planta -1 | +782.00 1:125


corte B-B 1:125


planta 0 | +785.00 1:125


elevação 3 1:125


planta +1 | +788.00 1:125


corte A-A 1:125


planta +2 | +791.00 1:125


elevação 4 1:125


elevação 3 1:125


corte C-C 1:125







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a conclusão

Ao finalizar o Trabalho Final de Graduação - o que nada mais é que terminar o longo processo da faculdade - percebo mais uma vez que projetar é mesmo experimentar. Projetos são ensaios, tentativas de responder às necessidades dos clientes, por mais simples ou excêntricos que sejam, pessoas ou a própria cidade. Um edifício faz parte da vida de cada um de seus usuários, mesmo daqueles que estão ali só de passagem. A responsabilidade do arquiteto ganha portanto outra dimensão: por mais clichê que soe, projetar o espaço é projetar para a vida a ser vivida ali. Digo isso não na busca de enaltecer a figura do arquiteto, mas de aproximá-la de seu objeto. É importante lembrar da escala possivelmente mais essencial do projeto, a do usuário. Esse trabalho, especificamente, buscou interpretar a partir do ensaio de um edifício as relações humanas “reais”, ainda que literárias, existentes entre quatro núcleos familiares completamente distintos. Não se trata de um edifício flexível com planta livre, onde sim, cada morador tem a liberdade de organizar seu próprio espaço. Há nesse projeto o papel definido do arquiteto, traduzindo as necessidades dos usuários e proporcionando diferentes naturezas de espaço dentro de um único edifício, dentro da hipótese levantada: “E se fossem morar todos juntos”. Dentro da escolha de cada personagem, destaca-se sua singularidade, por seus aspectos triviais e excêntricos. Jay, o esteriótipo festeiro; Renée, a senhora rabugenta; Patti e Bob, o casal de artistas em ascensão; os Buendía, a grande família desequilibrada. Percebe-se que, apesar da singularidade, não é dito que os personagens são únicos. Quantos Gatsbys existem por aí? Quantas Pattis? Milhares. As personalidades humanas, apesar de infindáveis, são sempre reproduzíveis. Além disso, é importante ressaltar o ponto comum existente no morar para todos os personagens, mesmo que tão distintos. A casa, mesmo


que com variados níveis de privacidade, permitindo mais ou menos acesso aos visitantes, mantém sempre seu aspecto de proteção, de “ventre materno”. O projeto aqui representado é portanto apenas uma das infinitas maneiras de se responder à hipótese levantada, juntando-me ao esforço dos arquitetos que buscam novas soluções para o viver na metrópole adensada, sem abandonar a singularidade existente em cada morar.

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a bibliografia

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e foram morar todos juntos

Mais uma vez, música vinda da casa dos vizinhos. Ao mudar para a cidade grande, já imaginava uma pluralidade maior que nos campos, mas não podia prever um edifício com personalidades tão diversas. Acima de artistas, uma família um tanto confusa e da concierge baixinha, mora o grandioso Gatsby. Em sua cobertura, proporciona festas faladas por toda São Paulo, abertas a todos e regadas a tanto champagne que imagino ser outra substância preenchendo a chamativa piscina. Com tanto agito, imagino se consegue algum momento de sossego no duplex onde toda hora é happy hour. Talvez tenha alguma passagem secreta, onde se esconde durante as festas intermináveis. Afinal, gostaria de entender o segredo por trás das festas que todos desfrutam, com excessão da pessoa que as proporciona. Nessa terça veio me visitar Manuela. Após tantos anos na Rue Grenolle, ela não acreditou que eu pudesse algum dia deixar para trás meu pequeno apartamento - muito menos por um menor! Os novos vizinhos já me serviram de motivação. Os tempestuosos Buendía provavelmente me darão mais trabalho que os filhos dos antigos patrões, mas pelo menos não se acham tão cultos e superiores. Gatsby, mesmo com toda a pompa e riqueza, me parece mais sensível que qualquer Pallières. Os artistas da porta ao lado podem trazer figuras interessantes, só espero que não incomodem em suas noites ativas. Por fortuna dividimos apenas hall. O pequeno apartamento, estranho a Manuela, foi o grande chamariz que garantiu a vontade de mudança. Sem desperdício de espaço, tenho nele exatamente o que preciso: na frente, uma escancarada cozinha. Com uma parede, é garantida a privacidade que preciso para meus momentos de leitura. Não é convidativo, mas para alguém que não quer convidar, não consigo pensar em um apartamento melhor.


No apartamento da Rua João Moura, tivemos provavelmente nossos momentos mais tranquilos. Com espaço para criar, Robert parecia em paz, e podia simplesmente fechar a porta quando minha bagunça se tornava simplesmente demais para ele. Mantendo-nos lado a lado, como prometido, conseguimos manter nossa privacidade enquanto compartilhando momentos de criação e até de lazer, quando recebíamos nossos amigos no apartamento. Os vizinhos, apesar de mais monótonos que no Hotel Chelsea, permitiam uma troca saudável. Os Buendía, que tratavam suas extraordinárias reviravoltas como algo absolutamente cotidiano, competiam com os convidados de Gatsby para ver quem enlouquecia mais a Senhora Michel. A princípio achei que a velha zeladora não fosse suportar viver em um edifício tão plural, porém chego a acreditar que ela tinha um secreto prazer ao ver-nos de portas abertas, em momentos de discussão com Harry, ou assistindo às sessões de fotografia de Robert. Para Úrsula, sair de Macondo foi bastante problemático. A cidade que tinham fundado com tanto amor era como um dos próprios filhos para ela, porém sabia que continuar ali não era mais uma opção. Pelo menos, sua nova casa permitia manter certos padrões dentro da metrópole caótica. A árvore era ideal para manter seu ensandecido marido José Arcádio, e o quintal tinha espaço para estender as vestes da prole, plantar suas begônias e criar suas galinhas. Com a grande cozinha, podia manter sua produção de biscoitos, e continuar proporcionando seus grandes almoços a quem deles necessitava. De seu quarto, podia supervisionar toda a parte social da casa. Se os rapazes chegassem para conhecer suas filhas, garantia que tudo estava sob controle na sala de estar. Da janela, tinha vista para a castanheira, e podia manter suas conversas com o marido, ainda que não obtivesse dele as respostas de que precisava.


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