UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS ESCOLA DE ARQUITETURA
Luiz Gustavo Ferraz Coelho
Mercado Imobiliรกrio em Vilas e Favelas: o caso da Comunidade da Serra
BELO HORIZONTE 2017
Luiz Gustavo Ferraz Coelho
Trabalho apresentado como requisito para obtenção do grau de Bacharel em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal de Minas Gerais. Orientador: Dr. Roberto Eustaáquio dos Santos
BELO HORIZONTE 2017
1 Introdução
58 3. Pós Vila Viva: novas e velhas dinâmicas no mercado da comunidade
sumário
65
Parque das 3 águas: capital do tráfico, ocupações e preservação das águas
69
Empreendedores do mercado informal
75
Os “predinhos” do vila viva: novo produto do mercado informal Pomar do Cafezal: favela e mercado em formação
75
6
15
1. Mercado imobiliário informal e a entrada de novos moradores
2. Cronologia do mercao imobiliário informal: cidade, comunidade e a casa na favela
7
Definições de Mercado Informal
23
12
Comercialização de imóveis e a entrada de novos moradores
31 41 45 52
Onde moram os operários da nova capital Surgimento e expansão da Comunidade da Serra Processos de ocupação e as águas do Cardoso Profavela: expansão e consolidação da comunidade Vila Viva, desconsolidação e desconstrução da favela
83
97
4. Caracterizações e dinâmicas do mercado na Comunidade da Serra
Conclusões e Desdobramentos
85 91 95
Os tipos comercializados na favela e a valorização dos imóveis Anúncios: postes, placas e a introdução da internet Considerações sobre o mercado de aluguel
A Belo Horizonte planejada convive desde sua construção, na virada do século XIX para o século XX, com espaços urbanos informais. O plano de Aarão Reis para a nova capital de Minas Gerais, que supostamente deveria ser referência de um ideal de modernidade, coexiste com a formação de assentamentos urbanos informais para abrigar os operários. Assim, a classe trabalhadora foi obrigada a produzir precariamente suas próprias urbanização e moradias, num primeiro momento, nas periferias formadas dentro da própria zona urbana planejada por Aarão Reis, fora do traçado racional e em descompasso com a da estética imaginados pela Comissão Construtora (CCNC). A autoprodução inverte a lógica de ocupação centro-periferia embutida no plano urbano de Belo Horizonte e interfere negativamente na promissora imagem idealizada para o novo centro administrativo de Minas Gerais.
1 1
INTRODUÇÃO
O termo Aglomerado, utilizado pela prefeitura para se referir à área, leva a entender que “favela” é um grupo homogêneo de pessoas em uma situação econômica desfavorável quando, na verdade, há uma variedade de grupos, comportamentos e costumes que diferem dentro das próprias vilas e regiões da favela. O emprego dessas nominações, associado às imagens de favela veiculadas pela grande mídia, gera distorções e preconceitos na percepção da população em geral e entre os profissionais que tem o planejamento urbano como área de trabalho. Colocar em questão o mercado imobiliário desse tipo de assentamento é um modo de entender como esses espaços se formam e são capazes de abrigar, ao longo do tempo e de sua evolução, grande parte da população de baixa renda desassistida pelo Estado. O objetivo do trabalho é, então, descrever o mercado informal tendo por área de estudo a Comunidade da Serra1, no período que vai desde o início da ocupação, entre as décadas de 1930 e 1940, passando por um período de resistência às estratégias de remoção de favelas do século XX, até as modificações recentes com os projetos de reurbanização implementados pela
prefeitura de Belo Horizonte dos anos 80 até o início da década de 2010. A Comunidade da Serra é, atualmente, a maior favela de Minas Gerais e por isso é possível supor que a complexidade e a consolidação de um mercado imobiliário informal em uma favela já estabelecida ofereça uma quantidade maior de informações a serem estudadas, em outras palavras, trata-se de um caso significativo. Assim, pode-se entender não só a conformação do espaço tal qual o vemos hoje mas também quais seriam as possibilidades futuras, surgidas a partir de intervenções e mudanças nas dinâmicas de produção e comercialização das habitações em escala municipal, bem como do desenvolvimento de políticas de desenvolvimento econômico, social e de inclusão, em escala regional e nacional. Conforme a cidade se estabelece, a dinâmica econômica da nova capital se diversifica. Novos mercados2 surgem no antigo Curral del Rey e ganham complexidade conforme os vazios do plano de Aarão Reis vão sendo ocupados. Dentre eles, o mercado do solo urbano, definido segundo Topalov (apud CAMPOS, 2011) como “uma pluralidade de mercados imobiliários, diversificados segundo o uso das construções e nas 2
quais a formação dos preços de demanda seguem regras diferentes”, estabelecendo relação direta com a produção e a qualidade dos edifícios e do espaço urbano. Dentro dessa pluralidade está a comercialização de imóveis para habitação, que pode ser dividida em dois sub-mercados: o formal – que opera dentro de regras estabelecidas pelo Estado e produz almejando lucros e acumulação de capital; e o informal - que oferta moradias à população de baixa renda, alheio às regras do Estado e ao público ao qual se destina a produção do mercado formal. A relação entre essas duas faces do mercado imobiliário de habitações é objeto de estudo do primeiro capítulo que trata das definições da informalidade tendo como referência, principalmente, as pesquisas de Pedro Abramo, Nelson Baltrusis e Mariana Cavalcantti, acerca do mercado imobiliário em vilas e favelas do Rio de Janeiro e de São Paulo. Segundo esses autores, o surgimento desse mercado estaria diretamente relacionado à origem informal das vilas e favelas. Mas, qual a natureza dessa relação? Além disso, seria possível imaginar que mercado e favela teriam se originado simultaneamente, como causa e efeito da 3
1. Adota-se o nome Comunidade da Serra, utilizado pela moradora Flor, crítica da atuação da Urbel na favela e contribuidora na elaboração do trabalho. Ela defende o uso do termo Comunidade pois traduz melhor a diversidade encontrada na favela, ao contrário de Aglomerado. 2. Entende-se aqui mercado como um lugar teórico de negociações de certa mercadoria que envolve, no mínimo, dois agentes: um vendedor e um comprador.
falta de ofertas do mercado formal para a demanda de moradias para a população de baixa renda? Assim, até que ponto os mecanismos de compra/venda e aluguel informal de habitações se assemelham aos mecanismos do mercado formal? E também, no que diferem? Haveria uma tendência de formalização do mercado imobiliário da favela? Para tentar responder a essas perguntas descrevese o processo de ocupação das encostas pela Comunidade da Serra, no segundo capítulo. Trata-se de uma abordagem histórica que busca relacionar acontecimentos de ordem econômica, política e social que condicionaram o desenvolvimento de Belo Horizonte desde sua construção. Para isso, foi utilizada a estratégia de contrapor a esfera do espaço público e a esfera do espaço doméstico, isto é, colocar a escala do bairro-favela ao lado da da casa de modo a compreender como a autoprodução da habitação atua simultaneamente à autoprodução dos espaços coletivos e como essa característica importante interfere nas dinâmicas do mercado imobiliário informal e na consolidação da favela.
Disso resultou uma linha do tempo que periodiza a história da Comunidade da Serra em três momentos. Conforme já foi dito, desde a formação de Belo Horizonte as favelas estão presentes no espaço urbano e, até a década de 1980, foram constantes as tentativas de erradicação dessas ocupações em um período “remocionista” coordenado por um arranjo político e econômico entre empreendedores imobiliários e poder público. No final do século XX, essa mentalidade parece ser aos poucos superada com uma estratégia de incorporação da favela no planejamento urbano da capital a partir da formulação de programas e obras de urbanização em uma fase de consolidação da comunidade e do mercado imobiliário informal. Na década de 2000, no entanto, novos programas de urbanização e habitação popular colocam em questão essa denominação de “favela consolidada” em uma fase de intervenções de grande porte com a remoção de famílias e a inserção de modelo habitacional incoerente com o modo de morar da comunidade. Essas perturbações geraram reflexos nas dinâmicas do mercado imobiliário informal de habitações e, sobretudo, nas dinâmicas socioespaciais da favela, que serão 4
abordados no capítulo 3. Assim, situações semelhantes às do século XX, marcadas pela insegurança dos moradores quanto às ameaças de remoção, convivem com uma crescente complexificação do mercado imobiliário por um tipo de produção que se aproxima da lógica de acumulação de capital e pela entrada de novos agentes intermediadores nas transações. Entendida a formação da favela e sua situação atual apresenta-se uma descrição geral do mercado imobiliário na Comunidade da Serra. Os tipos de imóveis comercializados e seus valores são aspectos importantes do mercado imobiliário que fazem perceber que a favela de fato não é um aglomerado homogêneo. Além das características dos imóveis, fatores de localização dentro da própria comunidade são responsáveis por variações significativas no preços dos imóveis. Mas, diferentemente da cidade formal, procura-se na favela casas que ofereçam possibilidades de alteração e ampliação tornando essa adaptabilidade o principal critério de escolha de uma casa uma vez que é o esforço da família que consegue aos poucos tornar o imóvel mais adequado às suas necessidades. São ainda abordados o modo de divulgação das ofertas, 5
sob o impacto da recente introdução da internet como modo de veiculação de anúncios, bem como a formação dos preços de locação na comunidade. Tanto a casa apresentada como caso de estudo no capítulo 3 quanto a descrição do mercado foram elaboradas com base, principalmente, em entrevistas com a moradora da comunidade Floriscena Estevam Carneiro da Silva. Professora e diretora de duas instituições de ensino na favela da Serra, a Flor, como é conhecida, mora na Vila Nossa Senhora de Fátima desde que nasceu, tendo acompanhado as mudanças na favela ao longo de toda sua vida, ela está sempre em busca de melhorias urbanas e infraestruturais na comunidade. Além disso, sua família e o fato de serem autoprodutores de sua habitação tornam esse um caso típico da vida na favela permeada pelo mercado imobiliário informal.
O termo mercado pode ser interpretado de diversas maneiras, desde um local físico para troca de mercadorias ou, como é abordado neste trabalho, um lugar teórico onde são estabelecidas regras de comercialização de determinado produto. Este capítulo introduz portanto o tema mercado informal a partir de uma comparação com o mercado formal. Apesar da conotação negativa que o termo “informalidade” possa gerar, é necessário entender que apesar de ocorrerem fora de padrões oficiais, as comercializações se dão a partir de uma série de fatores e mecanismos de reconhecimento de posse e legitimidade entre moradores da comunidade que acabam por conferir, internamente, certa formalidade aos processos de compra/venda e aluguel.
1
Compreendido o que significa o mercado informal, esta descrição começa por demonstrar como se dá a entrada de um novo morador na favela e como o mercado é afetado pela forte relação entre vizinhos e familiares que interferem na negociação dos imóveis e na permanência do morador naquele local. Além disso, tal processo de entrada de novos integrantes na comunidade é o principal indício que se tem nos relatos dos moradores sobre a existência de um mercado informal de habitações. Ou seja, as histórias de como essas pessoas chegaram até a favela sempre estão vinculadas a um familiar ou amigo já estabelecido na Comunidade que lhe ofertou ou informou sobre algum imóvel sendo comercializado.
MERCADO IMOBILIÁRIO INFORMAL E A ENTRADA DE NOVOS MORADORES
6
1.1. DEFINIÇÕES DE MERCADO INFORMAL O mercado imobiliário é resultado de relações e interrelações entre produtores – proprietários da terra, construtores, intermediadores (imobiliárias, corretores) e instituições de financiamento; o Estado – regulador dos processos de compra/venda ou aluguéis e responsável pela construção de infraestrutura urbana; e a população em geral que representa os possíveis compradores/ locatários dos imóveis produzidos pelo mercado.
7
Essas relações apresentam variações de acordo com diversos fatores tais como o tipo de uso dos imóveis, a localização, o poder de compra da população, etc. Trata-se aqui, portanto, do mercado de habitações e da relação entre esses três principais agentes que regulam a produção de imóveis. Como explica Paola Campos (2011) , o produtor enquanto capitalista vê na produção da habitação a oportunidade não só de obter lucro, mas de extrair daquela terra um sobrelucro relacionado a características da localização do empreendimento, como por exemplo a presença de equipamentos públicos, oferta de meio de transporte público, fornecimento de água e esgoto, entre outros aspectos.
3. O texto “O preço da terra urbana e a moradia de baixo custo” é parte da coletânea “Estado e capital imobiliário : convergências atuais na produção do espaço urbano brasileiro” organizado por Heloísa Costa e Jupira Mendonça.
A figura do Estado aparece portanto como provedor dessa infraestrutura urbana que será responsável por agregar valor à mercadoria produzida pelo mercado imobiliário. Esse, por sua vez, não tem interesse em produzir tais espaços, mas guiar suas produções de acordo com investimentos do poder público em determinadas áreas da cidade que aumentem seu sobrelucro. Além disso, cabe ao Estado regularizar os processos de construção e ocupação do solo a partir de legislações (lei de uso e ocupação e código de obras por exemplo). Sendo assim, ao estabelecer zonas urbanas com diferentes coeficientes de aproveitamento do solo, define-se também os lugares com prioridade de desenvolvimento dentro da malha urbana para onde o mercado imobiliário formal certamente direcionará seus investimentos. Logo, o acesso à terra urbana e à moradia na cidade moderna, segundo Abramo (2003, 2009), ocorre de acordo com uma das seguintes lógicas: a lógica de Mercado, citada à cima, que provê moradia a partir de trocas. A lógica do Estado, como coordenador do acesso às riquezas, torna o poder público responsável por oferecer moradia à população de baixa renda que não possui capital suficiente para habitar imóveis
produzidos pelo mercado. E, por último, a lógica da Necessidade surge quando indivíduos sem capital acumulado e não contemplados por programas de habitação popular ocupam espaços da cidade pela necessidade absoluta de se instalar em algum local. É esta última lógica que conduz, no começo do século XX, à formação de assentamentos populares informais a partir da ocupação de terrenos, primeiramente no interior da própria zona urbana ainda desocupada e, posteriormente, em periferias cada vez mais distantes do centro de Belo Horizonte, a começar pelo que no Plano de Aarão Reis é chamado de zona suburbana. A autoprodução de moradias é a característica principal desses assentamentos onde as modificações no espaço, seja urbano ou seja intralotes, estão “à margem das instituições jurídicas, técnicas e econômicas da nossa sociedade” (KAPP, Silke; 2008). Sendo assim, a informalidade do mercado imobiliário na Comunidade da Serra e nas favelas em geral é entendida não só por características dos modos de construção mas também pelos regulamentos internos estabelecidos autonomamente e que fazem diferir as transações imobiliárias intrafavela das transações da cidade formal.
8
9
O mercado informal aparece, portanto, no interstício entre a lógica da necessidade e a lógica de mercado (ABRAMO, 2003, 2009). Desde a construção da capital até os dias atuais, o desinteresse do mercado formal em produzir habitações para a população de baixa renda somado ao descaso do poder público em suprir essa demanda permite supor o surgimento de um mercado paralelo à comercialização de lotes na zona urbana. Sendo assim, seria possível entender que junto às primeiras ocupações de vilas e favelas nas áreas do plano de Aarão Reis nasce o mercado imobiliário informal responsável por regular o acesso à terra pela população pobre.
mão-de-obra para a construção, não havendo portanto extração da mais-valia a partir da comercialização do imóvel. No entanto, a qualidade dos espaços urbanos se altera dentro da favela e torna possível, assim como no mercado formal, extrair um sobrelucro a partir de fatores de localização do imóvel que o tornam mais desejado em relação a outros. Esses fatores de valorização referentes à Comunidade da Serra serão apresentados no capítulo 3.
A informalidade desse mercado pode ser entendida a partir de dois pontos de vista: o processo de produção da mercadoria e os mecanismos de comercialização dos imóveis. Primeiramente, de acordo com Luiz César de Queiroz Ribeiro (1996), não é a “acumulação de capital que orienta a produção, mas a produção de valores de uso que constituem moradias-mercadorias, não capital.” Como na maioria das favelas a autoprodução é uma característica predominante, não há uma barreira clara entre capital e trabalho (CACCIAMALI APUD CYRILLO), ou seja, o dono da terra é quem serve de
Outro elemento de extrema importância para a
A outra maneira de abarcar a informalidade é atentar para os processos legais de compra e venda dos imóveis.
consolidação da irregularidade e, consequentemente, da informalidade imobiliária nas favelas, reside nos baixos custos de transação. Uma transação comercial no mercado imobiliário em favelas não agrega os custos de cartórios, juros, taxas e comissões. (BALTRUSIS, 2004)
Esses custos tornam ainda mais distantes para a população de baixa renda as possibilidades de se instalar na cidade formal. Como se observa nas
primeiras décadas de existência de Belo Horizonte, além de custos com a formalização da propriedade havia exigência por parte da prefeitura sobre aspectos estéticos e construtivos da casa que tornam o plano de Aarão Reis ainda mais distante da realidade dos trabalhadores que migravam para a capital, num primeiro momento para trabalhar na sua construção e, posteriormente, para trabalhar nas indústrias que se instalavam na cidade, nas casas da classe média e alta e no setor terciário de comércios e prestação de serviços. Além disso, informalidades não são características exclusivas de favelas. Há uma coexistência entre formal e informal em diversas gradações nas cidades de modo geral. Construções e acréscimos de áreas não regulamentadas, atrasos nos pagamentos de IPTU, usos diferentes daqueles determinados pela lei de uso e ocupação são exemplos de informalidades muito comuns nos bairros da cidade “formal”. Da mesma maneira, existem favelas abastecidas por redes de água e luz “oficiais” e casas cadastradas para pagamento de IPTU, mesmo que os moradores não tenham de fato a propriedade do solo e do imóvel conforme a lei.
Sendo assim, contraditoriamente às tentativas de extinguir as favelas, principalmente na primeira metade do século XX, a informalidade desses assentamentos foi o caminho encontrado para abrigar e manter na cidade a mão-de-obra para a produção capitalista uma vez que no salário dos trabalhadores não é suficiente para as despesas com habitação. Mas, apesar de “aceitar” a presença das favelas na paisagem de Belo Horizonte, a prefeitura vem fazendo algumas intervenções, com remoções e obras iniciadas em 2005, que ignoram a maneira que aquele local foi construído pelos moradores e as relações que se firmaram entre a comunidade e os lugares da favela. Tenta-se muito mais disfarçar esses assentamentos aos olhos do morador da cidade formal do que de fato melhorar os espaços e a condição de vida dos seus habitantes. No entanto, as favelas estão em constante modificação, tanto o espaço urbano quanto as casas se alteram mais rapidamente do que na cidade formal onde a burocracia é maior para reformar e adequar as edificações e os espaços coletivos a novos usos. Dessa forma, o modo de construção da cidade informal cria uma relação mais próxima da casa com seu entorno e com as necessidades da família, diferentemente
10
do que acontece na cidade formal que oferece para a população produtos prontos e acabados, engessados a tal ponto que tornam impossíveis as modificações. Enquanto nessa novos pavimentos surgem como empreendimentos imobiliários, produzidos sem real demanda, visando apenas o lucro para o incorporador ou construtor, na favela um novo cômodo pode significar que um filho nasceu, uma filha se casou, um parente se mudou do interior ou até um investimento da família para gerar uma nova renda partir do aluguel.
11
1.2. COMERCIALIZAÇÃO DE IMÓVEIS E A ENTRADA DE NOVOS MORADORES Uma das características da favela é a relação mais próxima entre vizinhos que se estabelece por vários motivos, seja pela escala reduzida dos edifícios, as trocas de favores, a autoprodução dos espaços urbanos e até mesmo a necessidade de fazer resistência contra intervenções externas, seja da prefeitura ou do mercado formal, no espaço da favela. Essa proximidade se torna característica importante também no funcionamento do mercado imobiliário informal e no modo como uma família se muda para a favela e passa a fazer parte da comunidade. São raros os casos em que novos moradores se mudam diretamente para uma casa que compraram (SILVA; 2017)4. A maneira mais usual é, primeiramente, alugar um imóvel indicado por amigo ou parente já estabelecido na comunidade. O aluguel é entendido socialmente como uma moradia temporária até que a família tenha condições de adquirir seu próprio imóvel, tanto na cidade formal quanto na informal. No entanto, alugar uma casa na favela significa também um momento de se apresentar à comunidade e estabelecer relações
com os vizinhos até que se torne de fato um morador. Isso tem ligação direta com o modo com que se firma um negócio de aluguel. A confiança entre locador e locatário é fundamental na negociação já que na maioria dos casos são feitos contratos “de boca” na Comunidade da Serra. Mas em outras comunidades existe maior formalização nessas operações, tal como aponta a pesquisa de Gustavo Cyrillo que registrou como os moradores da Favela do Acaba Mundo utilizam um formato de contrato de locação copiado das imobiliárias da cidade formal, inclusive com ficha de vistoria e levantamento fotográfico da edificação. Já Baltrusis (2000) identifica no mercado de Nova Conquista, favela localizada na cidade de Diadema na Região Metropolitana de São Paulo, a presença de imobiliárias desde 1990. Atualmente, encontramos na favela três imobiliárias responsáveis por parte das transações que lá ocorrem. Podemos dizer que essa demanda provocada pela política de desfavelamento profissionalizou os agentes do mercado imobiliário na favela. (BALTRUSIS, 2000)
4. SILVA, Floriscena. Entrevista concedida à Luiz Gustavo Ferraz. Belo Horizonte, 9 jun. 2017. (A entrevista encontra-se transcrita no Apêndice “A” deste trabalho)
12
Isso é um indício de como o mercado informal está em transformação e aproxima-se cada vez mais da formalidade. Os níveis de exigência nas documentações de locação de um imóvel na favela parece indicar que a relação de confiança entre os vizinhos já não é mais garantia do cumprimento de acordos orais. Operar na informalidade com um contrato de locação sinaliza, portanto, um desejo de maior controle sobre a renda gerada pelo imóvel. Uma vez estabelecida no local, a família dá início a uma poupança para a compra da casa própria, não necessariamente a que aluga, mas outra dentro da mesma comunidade. Ao encontrar o imóvel que se adequa a suas necessidades ou, principalmente, com possibilidade de ser adaptado a tais necessidades, a família dá início a negociação de compra. O nível de intimidade que existe na relação comprador/ proprietário interfere tanto no valor como na forma de pagamento. Geralmente o valor do imóvel tem uma queda quando oferecido a parentes e amigos, além de haver a possibilidade de pagamento à prestações. Quando não há uma relação tão próxima entre as duas partes, o pagamento é feito à vista, sem desconto ou com pouca redução no preço. 13
Quanto à formalidade dessa negociação e quanto à própria garantia de posse daquele imóvel há pouca ou nenhuma documentação na Comunidade da Serra. Da mesma forma que os contratos de aluguel são mais elaborados em algumas comunidades, o processo de compra e venda também pode ser um modo de complexificar as transações inserindo agentes intermediadores nas transações ou até mesmo um controle geral feito pelas lideranças da comunidade a fim de evitar conflitos entre moradores. Na favela de Nova Conquista, Baltrusis identificou uma participação efetiva da Associação de Moradores nas transações imobiliárias de compra e venda de imóveis. Cada negociação é registrada na Associação a fim de mediar conflitos entre moradores. Por exemplo, há casos em que moradores abandonam a propriedade e se mudam da favela por diversos motivos e, depois de alguns anos, voltam exigindo direitos sobre aquele bem. O tipo de registro que se verifica na Serra é bem menos burocrático. A formalização da venda se dá através de um “contrato de gaveta”, ou seja, um recibo assinado pelo comprador e pelo vendedor especificando o imóvel e o valor da negociação. Segundo Flor , era comum nas décadas de 1970 e 1980 encaminhar esse documento
NOVO MORADOR
a uma delegacia e fazer seu registro mais formal. Atualmente, em poucos casos, o contrato é levado a um cartório para reconhecimento de firma das assinaturas, processo com custo bastante inferior ao do registro de imóvel mas que confere certa segurança ao comprador.
ALUGUEL
NOVO MORADOR
MORADOR
CRIA LAÇOS DE
JÁ
ESTABELECIDO
VIZINHANÇA COM
NA COMUNIDADE
A COMUNIDADE
COMPRA COMUNIDADE DA SERRA
Com o passar dos anos, a família já consegue restabelecer sua reserva financeira após a compra da casa e começa a pensar nas reformas e ampliações que imaginam para a sua moradia. Nesse momento surge a oportunidade de ganhar uma renda extra a partir do aluguel de um cômodo ou de uma casa independente da primeira, porém no mesmo lote, compartilhando os acessos e algumas áreas externas. Dessa maneira, os moradores passam para o outro lado do mercado, ou seja, deixam de demandar por moradia e passam a ofertar seus produtos e a alimentar o mercado informal. Esses mecanismos de chegada na favela, locação, compra e, posteriormente, venda e aluguel de imóveis ficará mais claro no estudo de caso a ser apresentado junto à linha do tempo.
Imagem 1. Esquema da entrada de novos moradores através do mercado imobiliário informal. Fonte: produzido pelo autor.
14
A Comunidade da Serra é atualmente a maior favela da Região Metropolitana de Belo Horizonte e a segunda maior do Brasil. Localizada entre as regiões centro-sul e leste da capital, a ocupação está inserida atualmente em um contexto “privilegiado” da cidade, próximos ao centro urbano da capital delimitado pela Avenida do Contorno e que tem como centro de referência a Praça Sete de Setembro. A favela é formada por sete vilas: Vila Nossa Senhora Aparecida (1), Vila Nossa Senhora da Conceição (2), Vila Marçola (3), Vila Santana do Cafezal (4), Vila Nossa Senhora de Fátima (5), Vila Novo São Lucas (6) e Fazendinha (7) que ocuparam cada qual uma região da encosta que conforma a Bacia do Córrego do Cardoso.
15
2
Afluente da margem direita do Ribeirão Arrudas, o córrego do Cardoso foi um elemento fundamental para a formação e expansão da ocupação. A presença de água limpa proveniente das nascentes do córrego abasteceram as águas até a implantação de rede de abastecimento de água na década de 1980. Até então, ir até as bicas e ao curso d’água foi parte da rotina dos moradores e estabelecia um relação de cuidado e preservação das águas a fim de mantê-las limpas para consumo. Apesar da introdução de tecnologia de abastecimento de água e o tamponamento progressivo do córrego, os trechos ainda abertos e em leito natural são uma vantagem para a comunidade e uma possibilidade de retomada da relação dos moradores com as águas e o meio ambiente (SILVA; 2013)5.
CRONOLOGIA DO MERCADO IMOBILIÁRIO INFORMAL: CIDADE, COMUNIDADE E A CASA NA FAVELA
7
1
6 4 2 5
3 Vilas e Localização da Comunidade da Serra em Belo Horizonte Comunidade da Serra
16
Edificações Cidade Formal Parque Mangabeirase Mata da Baleia
17
Imagem 2. Localização da Favela da Serra e as Vilas da Comunidade . Fonte: produzido pelo autor a partir de dados da PBH. Imagem 3. Mapa da Bacia do Cardoso. Fonte: produzido pelo autor a partir de dados da PBH. Bacia do Córrego do Cardoso (sobre a Avenida Mem de Sá)
Ribeirão Arrudas Córrego do Cardoso e Afluentes em leito natural Córrego do Cardoso e Afluentes Tamponados
5. Margarete de Araújo Silva discute em sua tese de doutorado, “Água em meio urbano: favelas na cabeceira”, a relação dialética entre as favelas e as águas, tendo como área de estudo a Bacia do Córrego do Cardoso e a Comunidade da Serra que passou por programas de urbanização da prefeitura de Belo Horizonte, como o Vila Viva e o Drenurbs.
A favela da Serra é, portanto, uma área importante ao considerar novos modos de planejar cidade e, principalmente, assentamentos precários, ao estimular a compreensão do morador sobre a dinâmica das águas e a estrutura natural do sitio que dá suporte a construção de infraestruturas e às edificações. Além disso, a localização da Comunidade da Serra dentro da malha urbana de Belo Horizonte tem atraído atualmente a atenção do mercado imobiliário formal, seja pela presença de bairros de classe média “desvalorizados” pela presença da favela, pela disputa de áreas ainda não ocupadas ou pela construção de edifícios destinados a habitação social dentro da própria favela. O objetivo deste capítulo é portanto descrever o processo de ocupação dessa região de Belo Horizonte ao longo do século XX e analisar o comportamento do mercado imobiliário em relação a esse processo levando em conta especialmente as lógicas de acesso à terra e as dinâmicas desse mercado. Para isso, foi elaborada uma linha do tempo a fim de encontrar relações entre determinados eventos de natureza política, econômica e social que permitissem entender a formação de um mercado informal de habitações em Belo Horizonte e como essas dinâmicas de acesso a terra estão presentes na Comunidade desde sua formação.
18
A linha do tempo foi elaborada a partir da justaposição de duas escalas de análise: a Comunidade da Serra e um caso típico de uma casa na favela. Olhar simultaneamente para esses dois elementos – o bairro e a edificação – permite visualizar relações existentes entre o modo de habitar e construir a casa na favela (padrões construtivos, construção de novos cômodos e andares, uso de tecnologias, tempo das obras, entre outros aspectos), o processo de autoprodução dos espaços pelos moradores e intervenções propostas pelo poder público. Assim, a história da Comunidade da Serra está dividida em períodos de acordo com sua consolidação, entendida aqui como um estado de segurança dos moradores em permanecer em suas moradias frente às pressões do mercado imobiliário formal e do poder público.
19
Cada subcapítulo abarca um desses períodos, iniciando com uma análise da formação de Belo Horizonte e o lugar de moradia dos operários que vieram para a construção da infraestrutura da nova capital e de seus edifícios institucionais. A favela tornou-se um elemento estrutural no arranjo econômico da produção capitalista brasileira uma vez que o salário pago à mão-de-obra não contempla despesas correspondentes à habitação. Assim, no caso de Belo Horizonte, a população que
Imagem 4. Esquema de leitura. Os mapas se abrem para a explicação da Casa da Flor. Fonte: produzido pelo autor.
6. O PGE é, segunda a Prefeitura de Belo Horizonte, “um instrumento de planejamento que norteia as intervenções de reestruturação urbanística, ambiental e de desenvolvimento social nas vilas, favelas e conjuntos habitacionais populares.” Apesar de defender a participação dos moradores durante a elaboração do plano, as obras da Avenida do Cardoso não atendem às emandas da comunidade. 9 Documentário produzido pelo Programa de Extensão Pólos de Cidadania, da UFMG, e dirigido por Frederico Triani e Samira Motta. O filme aborda a experiência do morador do Aglomerado da Serra junto ao programa de urbanização e regularização fundiária de vilas e favelas Vila Viva, da cidade de Belo Horizonte.
migrou em busca de novas oportunidades na capital, seja para trabalhar nas obras, nas indústrias ou no setor terciário, foram obrigados a improvisar suas moradias ocupando as encostas com barracos precários e sem urbanização. De 1895 até os anos 80, a estratégia de remoção é adotada pelo poder público como maneira de tratar a questão das favelas, visto mais como um caso de segurança pública e higiene do que uma consequência da crise habitacional existente no país. Nesse momento é inciada a ocupação da encosta da Bacia do Cardoso, reflexo das remoções de favelas, do inchaço populacional e do movimento da industrialização para fora da zona urbana do plano de Aarão Reis em direção a Oeste da capital com a zona industrial do Barro Preto e, posteriormente, com a criação da Cidade Industrial. Assim, é descrito em que contexto e quais os motivos levaram parte da população de baixa renda a construir seus barracos nas proximidades do bairro Serra e Santa Efigênia entre as décadas de 1930 e 1940. Após esse período “remocionista” e nenhum progresso na contenção do aumento do número de favelas, a percepção sobre esses assentamentos passa a ser de
espaços permanentes na malha urbana, entendidos como parte da cidade e, portanto, passíveis de intervenções públicas de urbanização e melhoria da condição de vida da população moradora. Exemplo dessa nova estratégia em Belo Horizonte foi o PROFAVELA – Programa de Regularização de Favela que marca o início de um período de consolidação da ocupação à medida que o poder público cessa as remoções e inicia discussões sobre regularização fundiária e obras de infraestrutura. Os moradores passam a assimilar esse novo posicionamento com uma garantia de permanência e segurança para construir sua casa naquele local, acelerando o processo de ocupação da encosta com o surgimento de novas vilas e o adensamento das existentes. Observa-se, portanto, no final do século XX um avanço significativo no tratamento das favelas e dos assentamentos informais em Belo Horizonte e no Brasil de modo geral. Começa-se a discutir processos participativos que culminam em 1998 na elaboração dos Programas Globais Específicos (PGE’s)6 que propunham um levantamento aprofundado de assentamentos denominados subnormais a fim de embasar projetos e programas de melhoraria da qualidade de vida 20
dos moradores das favelas, chamados então de “intervenções estruturais”. Já na década de 2000, as comunidades de Belo Horizonte, entre elas a Serra, passaram por uma série de intervenções urbanísticas baseadas, em parte, no diagnóstico do PGE. O programa batizado como Vila Viva teve suas consequências positivas mas interviu drasticamente nas dinâmicas sociais e também na dinâmica imobiliária local dando início a um período denominado desconsolidação da favela (ou de parte dela) a ser tratado no último subcapítulo. Nesse momento, a segurança em permanecer habitando aquele local é ameaçada pelas ações de remoção pela prefeitura, pelo andamento das obras e pelos reflexos dos espaços ou vazios criados pelo programa no arranjo do mercado imobiliário informal da comunidade. Para evidenciar esses processos e a evolução urbana da ocupação foram elaborados mapas baseados em fotos aéreas e imagens de satélite de Belo Horizonte (1953, 1969, 1979, 1989, 1999, 2005, 2010) levantadas e digitalizadas pelo Grupo MOM7. Cada mapa é acompanhado das etapas de construção da casa da Flor. Sua mãe, Dona Elza, mudou-se para a Comunidade da Serra nos anos 70 e vem adaptando a casa desde então, 21
7. O grupo Morar de Outra Maneiras, criado em 2004, é sediado pelo Departamento de Projetos (PRJ) e pelo Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo (NPGAU) da Escola de Arquitetura da UFMG. Objetivo central do MOM é investigar processos de produção de moradias, do seu ambiente urbano e de outros espaços cotidianos, tendo por horizonte a autonomia dos moradores, construtores diretos e grupos primários, a economia social e processos construtivos de impacto ambiental controlado.
com a ajuda das filhas, de acordo com as necessidades da família. Os desenhos foram realizados com base em pesquisa8 desenvolvida em 2014, também no grupo MOM, para elaboração de uma “Manual de Levantamento Arquitetônico” e em entrevistas feitas com os moradores da casa em 2015 durante atividade de monitoria para a Oficina de Requalificação e Reurbanização de Assentamentos Precários.
8. A pesquisa “Interfaces para introdução de novas tecnologias no aprendizado de Arquitetura”, financiada pela Pró-Reitoria de Graduação da UFMG dentro do Programa de Inovação e Qualidade do Ensino na Graduação, coordenada pela professora Drª. Ana Paula Baltazar dos Santos e pelo professor Dr. Roberto Eustaáquio dos Santos tinha como uma das frentes, da qual fui bolsita junto com Iara Pezzuti, a produção de Manual de Levantamento Arquitetônico, voltado não apenas para alunos de Arquitetura e Urbanismo mas também para autoconstrutores.
Esse capítulo demonstra como o surgimento de um mercado imobiliário informal junto às ocupações da Comunidade da Serra solucionam, mesmo que precariamente, parte da questão habitacional no Brasil e reforça que as favelas foram e ainda são lugares essenciais para a reprodução da cidade e do mercado imobiliário formal. Além disso, sugere que o descaso do poder público quanto a habitação popular e suas propostas para solucionar, melhorar ou formalizar a favela acaba por dar mais força à informalidade da comercialização de imóveis.
22
1895 a 1930
2.1. ONDE MORAM OS OPERÁRIOS DA NOVA CAPITAL
A história da capital de Minas convive desde sua construção com os problemas relacionados à habitação da população de baixa renda. A ausência de políticas habitacionais e a desconsideração quanto a participação dos antigos moradores do Curral del Rey, a mão-de-obra da construção da cidade e os imigrantes estrangeiros no plano de Belo Horizonte levaram a um processo de ocupação, tanto na zona urbana quanto na zona suburbana, fora dos padrões estabelecidos pela Comissão Construtora da Nova Capital (CCNC). A ocupação da área delimitada pela Avenida do Contorno se deu lentamente ao longo dos primeiros anos da capital apesar de medidas9 tomadas para acelerar o processo de ocupação da zona urbana. No entanto, as forças políticas oligárquicas da época conduziram a sucessivas alterações nas regras de comercialização dos lotes, a começar pelo Regulamento nº1503 que alterava os números de lotes que cada pessoa 23
poderia comprar, tanto na zona urbana quanto na zona suburbana, estabelecidas pela Comissão Construtora (BARRETO, Abílio; 1936). Essa perda gradual de autonomia na condução da implantação do projeto de Belo Horizonte entregou o domínio das terras urbanas, até então sob posse do Estado, ao mercado imobiliário de especulação. Essa nova maneira de distribuição de lotes e a consequente especulação imobiliária resultante alteraram definitivamente o curso planejado para a ocupação do solo da nova capital que ocorre então, ao inverso do que foi planejado por Aarão Reis, que previa: primeiro, a ocupação da zona urbana, processo que seria acompanhado da extensão dos serviços urbanos. Entretanto, os altos preços dos terrenos da zona urbana, decorrentes da especulação, e o conjunto de exigências feitas aos seus moradores fizeram com que grande parte da população se localizasse na zona suburbana, onde preços e exigências eram menores. (GUIMARÂES, Berenice; 1991)
Construir em um lote da zona urbana implicava em uma
Imagem 5. Comunidade da Serra e Zona Urbana do Plano de Aarão Reis. Fonte: produzido plo autor. Imagem 6. Plano de Aarão Reis para Belo Horizonte. Fonte: Arquivo Público Mineiro. 9. Insenção de impostos para a construção de casas formais na zona urbana, pagamento da dívida contraída pelos funcionarios publicos na construção das casas, entre outras medidas tomadas pelo poder público à época estão descritas com maiores detalhes na tese da Berenice Guimarães e no livro de Abílio Barreto, “Memória Histórica e Descritiva”.
24
série de gastos não só com a edificação, que deveria seguir os modelos de habitação previstos pela CCNC mas também com a execução dos passeios e manutenção dos quintais padronizados. Contraditoriamente ao vazio dos lotes entregues à especulação, a população de baixa renda sem moradia se instalava na zona urbana e suburbana, improvisando suas habitações mesmo sem a certeza de permaneceram naquele local. Logo nos primeiros anos Belo Horizonte era constituída por um núcleo urbano pouco adensado em um processo constante de periferização, primeiramente dentro da própria zona urbana, que ampliou-se gradualmente à medida que a ocupação formal crescia e as classes mais baixas migravam para bairros cada vez mais mais afastados do centro em direção a zona suburbana.
25
Percebe-se então o descaso na maneira como o poder público tratava a questão da habitação à época. Mesmo com grandes áreas desocupadas, o lugar do operariado não foi levado em consideração. O alojamento inicialmente construído para abrigá-los foi insuficiente para o número de pessoas que migraram para trabalhar nas obras acompanhados de suas famílias ainda que o governo tivesse feito campanha para atrair mão de obra jovem e solteira. Sem lugar na cidade planejada em construção, a população pobre construía suas cafuas e
Imagem 7. Pintura da antiga Favella ou Alto da Estação. Fonte: acervo CCNC - Arquivo Público de Belo Horizonte (apud BORSAGLI, A.).
Imagem 8. Panorama de Belo Horizonte na década de 1900 com ocupação de cafuas na parte inferior da foto. Fonte: Memória Histórica e Descritiva de Belo Horizonte.
barracos no entorno da chamada zona comercial. A Estação de Minas era um provisório barracão de taboas coberto de zinco, plantado no meio de uma esplanada que estava sendo preparada. Atraz della, pelo alto da collina, acima da projectada Rua Sapucahy, ia-se adensando uma povoação de cafuas e barracões de zinco, a que o povo denominava Favella ou Alto da Estação ou Morro da Estação. Denominava-se Favella por ser muito semelhante ao morro de igual nome existente no Rio de Janeiro. Tal qual aquele bairro improvisado, onde morava a gente operária, existia igualmente o Leitão, outro aglomerado humano de gente pobre, em rumo oeste do arraial. (BARRETO, Abílio; 1936)10
Imagem 9. Gráfico do número de edificações nos anos de 1924 a 1928. Fonte: Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte (apud BORSAGLI, A.). 10. Trecho transcrito com a grafia do português utilizado a época.
Fica evidente que o lugar do operário foi tratado como algo provisório. As poucas medidas do poder público quanto a crise habitacional naquele momento tinham como finalidade evitar que as “aglomerações” atrapalhassem a imagem de capital promissora para a qual Belo Horizonte era construída, ao invés de incorporar de fato aquele contingente populacional no planejamento de crescimento da cidade. Assim, as cafuas e barracos se espalhavam progressivamente 26
sobre o terreno, produzidos até mesmo pela Comissão Construtora e alugados a “preços módicos” para a população de baixa renda (BARRETO, Abílio; 1936). De certa maneira, a prefeitura incentivou esses assentamentos irregulares, inaugurando na capital um mercado paralelo de habitação ao que havia sido planejado. Outra manifestação informal do mercado acontece com a região do Barro Preto, bairro originalmente concebido como parte da zona urbana mas transformado na década de 1930 em Zona Suburbana para constituição de um bairro operário de Belo Horizonte. Os lotes foram destinados à população de baixa renda, migrantes ou removidos das favelas da zona urbana. No entanto, não havia concessão, em um primeiro momento, do título de propriedade até que a família cumprimesse uma série de obrigações colocadas pela prefeitura. Mas, após alguns anos da implementação dessa política surge o fenômeno dos barracões no Barro Preto e em outros bairros da capital. Esse tipo imobiliário é uma unidade habitacional feita aos fundos do lotes e alugada à outros núcleos familiares. Esse mercado complementava a renda da família e dava possibilidade de moradia para aqueles que não tinham 27
Imagem 10. Estabelecimento Industrial Mineiro. Foi construído na atual Rua Aarão Reis, nos arredores da Praça da Estação. Fonte: Arquivo Público Mineiro (apud BORSAGLI, A.).
como arcar com os custos da casa na zona urbana. Entretanto, ía de encontro às regras estabelecidas pela prefeitura para evitar que se formassem cortiços e ocupações insalubres próximos a região central de Belo Horizonte. Importa ressaltar que os cortiços já vinham sendo combatidos no Rio de Janeiro e em São Paulo, cidades que haviam passado por reformas urbanas de caráter higienista que serviam de exemplo para a nova capital. Aconteceu, nos anos seguintes, um conflito entre prefeitura e proprietários dos barracões numa tentativa de acabar com esse novo mercado a fim de preservar os espaços da zona urbana com boas condições sanitárias segundo uma “concepção hierárquica do espaço, onde quem tem direito à cidade são aqueles que podem pagar por ela – o que não era o caso dos operários” (GUIMARÃES, Berenice; 1991).
Imagem 11. Companhia Industrial de Belo Horizonte. O prédio da antiga fábrica de tecidos 104 ainda permanece na Praça da Estação. Fonte: Arquivo Público Mineiro (apud BORSAGLI, A.).
Apesar da concessão de lote em “área nobre” para a população pobre não ser aceita nem pelo poder público nem pela elite da época, concessões ao setor industrial, curiosamente, eram correntes durante as décadas de 1900 e 1910. O decreto Nº 1516 de 1902 promulgado pelo prefeito Bernardo Monteiro concedia aos industriários terrenos, isenção de impostos e fornecimento gratuito de energia elétrica. Apesar do 28
crescimento industrial ser muitas vezes descrito como tímido e lento até 1920, devido a pouca infraestrutura local e regional para receber materiais e insumos, houve avanço significativo nesses anos com uma produção baseada principalmente em bens de consumo e tecelagem. Os estabelecimentos concentravamse em sua maioria próximos a Estação Ferroviária onde surge, consequentemente, a Favella ou Alto da Estação (hoje bairro Floresta). Logo nos primeiros anos, Belo Horizonte se destacava no cenário estadual competindo com Juiz de Fora, principal região industrial na época - e seu setor secundário era responsável por empregar boa parte da população, principalmente os moradores das cafuas e barracos.
29
Esse ritmo de crescimento industrial e urbano decresce na segunda metade da década de 1910 quando Belo Horizonte, assim como outras cidades do país, passou por um período de crise motivado pela 1ª Guerra Mundial. “Diminuição do ritmo de construção de casas, paralisação das obras da capital, déficit orçamentário, conflito com a Cia. De Eletricidade, crise mundial e suas consequências sociais, êxodo urbano e desemprego, eis o quadro de 1915 a 1918” (PLAMBEL, 1979). No entanto, esse cenário pessimista é logo superado com o fim da guerra e a retomada do crescimento econômico
e demográfico e, como consequência, agrava-se ainda mais a crise habitacional nas próximas décadas tanto em Belo Horizonte quanto em outras capitais como São Paulo e Rio de Janeiro (SINGER; 1968). Esse impulso dado à economia decorre, em grande parte, ao estabelecimento de indústrias na capital motivado pela finalização das obras da Estrada de Ferro Central do Brasil em 1920 e por incentivos do Estado, interessado em dinamizar a economia nacional para além da produção primária. A nova ligação ferroviária permitia, portanto, o abastecimento e escoamento da produção mais rápidos já que passava por uma rota de relevo mais suave além de empregar bitolas maiores do que o antigo ramal utilizado. “Em 1920, Belo Horizonte já perdera a condição de uma economia essencialmente dependente das suas funções de capital do Estado. Sua indústria adquirira certa expressão, como pode ser identificado pelos dados do Censo daquele ano” (SINGER, 1968). Essa indústria é representada em grande parte pela siderurgia e pela indústria da construção civil fortalecida com o ritmo maior de produção de habitações na zona urbana. À medida que as atividades econômicas se diversificavam, Belo Horizonte atraía pessoas de classe
Imagem 12. Gráfico do número de edificações nos anos de 1924 a 1928. Fonte: Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte. (apud BORSAGLI, A.)
média e alta que tinham mais condições de comprar ou alugar um imóvel situado na zona urbana do plano de Aarão Reis. Esse processo é evidenciado pelo grande número de operários empregados no setor industrial de construção civil. De acordo com o levantamento de Singer, ao comparar os dados do Anuário Estatístico de Belo Horizonte em 1920 e o Censo Industrial do mesmo ano, que não contabiliza o setor de Edificações, concluise que dos 5.942 ocupados, 3.269 trabalhavam na construção civil, ou seja, pertenciam a esse ramo 55% dos trabalhadores do setor industrial. Sendo assim, pode-se inferir que os operários que produziam o espaço urbano e as residências implantados dentro da Avenida do Contorno constituíam parte da população sem local de moradia. Isso demonstra quão conveniente o surgimento das favelas foi para consolidação de Belo Horizonte e seu plano de industrialização até a década de 1930 e continuará sendo para sua expansão nas próximas décadas.
30
1930 a 1980
2.2. SURGIMENTO E EXPANSÃO DA COMUNIDADE DA SERRA
Ao longo dessa década, observa-se, assim, um movimento de transferência da população do subúrbio para o centro (elite), do centro para o subúrbio e para a zona rural (trabalhadores mais qualificados) e a continuidade do processo de
Nas décadas que se seguem após a retomada de crescimento do pós guerra, chegam mais migrantes a Belo Horizonte para abastecer os setores industrial e terciário que continuam em expansão, com o objetivo de tornar a cidade um polo industrial estadual e nacional. Consequentemente, expandem-se também as ocupações regulares e irregulares durante um período de consolidação da capital como centro econômico marcado por um movimento de expansão industrial para a zona suburbana e adensamento da zona urbana por usos de moradia e comércio. O aumento da população de Belo Horizonte levou, ao longo da década de 1920, a uma série de melhorias de infraestrutura urbana, como a construção de escolas, hospitais, extensão da linha de bondes, que levaram a um rearranjo da população na cidade11. A elite foi atraída, então, a morar no centro urbano quando se inicia um processo de abandono das chácaras que eram vendidas e loteadas a exemplo do bairro Serra. 31
expansão de favelas na zona urbana e suburbana (os trabalhadores mais pobres). (GUIMARÃES, Berenice; 1991)
No final da década de 1920 e nas décadas de 1930 e 1940 observa-se, também, um movimento dos estabelecimentos industriais rumo a oeste e norte da capital ocasionados pela pressão da elite que se direcionava para ocupar a zona urbana e por uma vontade do poder municipal em impulsionar o crescimento industrial. Assim, surgem diversas vilas operárias nesse período com o objetivo de deslocar para fora da zona urbana a classe operária e, consigo, a atividade industrial. A Vila Concórdia é o primeiro exemplo dessas vilas que leva o nome devido ao “acordo” fechado entre os moradores removidos do bairro operário Barro Preto, e das favelas Barroca e Pedreira Prado Lopes, realocados então para o novo loteamento. Bairro conhecido desse mesmo período, a Vila Renascença revela outra dinâmica desse
Imagem 13. Anúncio de venda de lotes na Barroca, favela removida da localizada próxima a Praça da Assembléia. Fonte: Estado de Minas. (apud GUIMARÃES, Berenice) 11. Para informações mais detalhadas sobre o crescimento urbano de Belo Horizonte ver “O processo de desenvolvimento de Belo Horizonte” (Plambel; 1979).
Imagem 14. Anúncio de venda de lotes na Vila Renascença. Fonte: Correio Mineiro (apud GUIMARÃES, Berenice).
32
processo de deslocamento do setor industrial por ser um “exemplo contundente da importância do mercado imobiliário, como fator de acumulação de capital” (PLAMBEL, 1979). Após as vendas dos 700 lotes de um empreendimento voltado para a população operária, a Empresa Renascença, com sede administrativa no centro da cidade, reuniu capital suficiente para inaugurar, três anos depois da implantação, do bairro uma fábrica de tecidos em seus arredores já que a mão de obra necessária para o funcionamento da fábrica estava instalada nas proximidades. É claro, portanto, o crescimento industrial da capital durante os anos de 1930 e 1940 e o fortalecimento do eixo de expansão a oeste a partir da criação da Zona Industrial do Barro Preto em 1936. E, em 1941, visando atender a chamada “indústria pesada” com maior foco na transformação da matéria-prima coletada pelas atividades extrativistas da região, foi criada a Cidade Industrial de Contagem que recebeu em seus primeiros anos a primeira fábrica de cimento de Minas Gerais (PLAMBEL; 1979). Mas não houve uma ocupação expressiva da região como era esperado pela prefeitura, que em 1950 possuía apenas 10 indústrias devido, principalmente, à deficiente rede de distribuição 33
de energia, que é resolvida com a criação da CEMIG. A partir disso, na década de 1960, o número de indústrias em operação salta para 82 (MOURA, Heloísa S. de; 1994). O interesse do poder público em desenvolver o parque industrial brasileiro, levou a uma série de medidas para direcionar investimentos, entre elas a chamada Lei do Inquilinato, criada em meio a uma crise habitacional que se agravava não só em Belo Horizonte mas em outras capitais. Divulgada com o objetivo de proteger e ajudar os locatários a se manter em suas moradias, a partir do congelamento do valor dos aluguéis, essa medida tentava na verdade desestimular a produção crescente da construção civil voltada para o mercado rentista das moradias de aluguel que, mesmo no período de crise durante a 2º Guerra Mundial e no pós-guerra, continuava atraindo investimentos. A crise da moradia dos anos 40 é consequência, portanto, desse dilema. A lei do Inquilinato desestimulou a produção habitacional privada, ao passo que as iniciativas estatais no setor sempre foram insuficientes. A construção de casas pelos próprios trabalhadores, nas favelas e loteamentos
periféricos, apenas começava a se tornar uma prática corrente e somente a médio prazo pode arrefecer a crise. (BONDUKI, 2011)
Imagem 15. Charge sobre o valor do aluguel em Belo Horizonte. Fonte: O avante (apud GUIMARÃES, Berenice).
Imagem 16. Conjunto IAPI. Fonte: Belo Horizonte Antiga (blog).
Apesar da análise de Bonduki ser feita em grande parte sobre a situação de São Paulo, imagina-se que a Lei do Inquilinato tenha surtido efeitos parecidos em Belo Horizonte. À medida que a população de classe média baixa e a população pobre deixava as moradias de aluguel devido ao uso de “mecanismos e expedientes legais, ilegais, coercitivos, violentos ou amigáveis para se esquivar do espírito da lei” (BONDUKI, 2011), crescia o número de moradores na favela e outros assentamentos onde o acesso à terra se dava de modo menos burocrático e mais barato. Nos anos 1940, mesmo o poder público, os Institutos de Aposentadoria e Pensão (IAP’s) e alguns industriários tendo providenciado habitação popular a partir da criação das já citadas Vilas Operárias, não havia produção suficiente para prover a demanda de moradia. Além disso, alguns loteamentos destinados à venda e aforamento para trabalhadores de baixa renda eram rejeitados pelos moradores, não necessariamente pela condição de pagar pelo lote mas pela distância da moradia ao centro ou ao seu local de trabalho. “Assim,
34
muitas áreas destinadas pela prefeitura para alojar os trabalhadores foram compradas e ocupadas pelos especuladores” (GUIMARÃES, 1991).
não. E ainda carregava trouxa na cabeça para lavar lá no canão. Às vezes faltava água lá na casa das patroas também, e elas pediam para eu lavar aqui. Eu botava aquela trouxa na cabeça e subia tudo
É dessas tendências de crescimento industrial e da realocação da elite, da classe média e da população de baixa renda nos espaços de Belo Horizonte que levam ao início da ocupação da Vila Pau Comeu, possivelmente no final da década de 1930 e durante a década de 1940. Conhecida atualmente como Vila Nossa Senhora Aparecida está localizada na “fronteira” entre a seção I suburbana e a zona urbana, local que abrigou grande parte dos trabalhadores da construção civil e funcionários do setor terciário (faxineiras, empregadas domésticas, lavadoras, porteiros, entre outros serviços) constituindo as primeiras ocupações da Comunidade da Serra.
até aqui a pé. Já lutei muito nessa Serra. Não foi brincadeira não. Trabalhei 33 anos até aposentar. Tudo eu fazia. Trabalhava de lavadeira, passadeira, cozinheira, tudo na casa dos outros. (CUNHA; TAVARES; 2016. Relato da moradora Videlina Antônia de Andrade) Trabalhei seis anos na construção civil [...]Eu trabalhava na firma e de noite eu trabalhava no serviço meu, trazia um pouquinho de material. Tinha dia que eu comprava um saco de cimento, na outra semana comprava tijolo, e fui levando devagarinho. Levei cinco anos pra construir isso aqui. Eu mesmo
Eu sou mecânico lá. Aqui também. Eu encerrei a
construindo.
profissão e aí fiz serviço de vigilante, de porteito...ai
(CUNHA; TAVARES; 2016)
passei pra obra e venci a batalha. (CUNHA; TAVARES; 2016. Relato do morador Marcelino Cardoso) Já trabalhei no Carmo, Sion, Anchieta, Santa Casa, lá na Aimorés. Tudo a pé. Não tinha ônibus pra ninguém
35
Trabalhando
fora
e
construindo.
Apesar de industrialização e favela serem fenômenos interligados, a formação das primeiras ocupações da Serra estariam ligadas mais precisamente ao aumento da construção civil e ao adensamento da
PRAÇA MILTON CAMPOS
COMUNIDADE DA SERRA EM FORMAÇÃO
BARRO PRETO PINDURA SAIA
CIDADE INDUSTRIAL
FAVELA DO POMBAL
Crescimento Industrial à Oeste Comunidade da Serra Zonas Industriais Avenida Amazonas
zona urbana e criação, principalmente, do bairro Serra após loteamento das antigas chácaras pertencentes às elites que migraram para a zona urbana. Ao mesmo modo, surgiram outras favelas na cidade nesse mesmo período, como a Favela do Papagaio, vizinha do bairro Cidade Jardim, expressão do “tradicional binômio das cidades pré industriais brasileiras – os jardins-casagrandes e suas favelas-senzalas” (MONTE-MÓR, 1994). As expansões que se verificam no mapa de 1969 e de 1979, principalmente, têm como impulsionador a constante migração intramunicipal da população de baixa renda devido às ações de remoção das ocupações existentes da zona urbana pela atuação do poder municipal. Remoções estas feitas sob pressão do mercado imobiliário formal e da elite que manifestavam interesse em investir seu capital em determinadas áreas da cidade. Foi uma prática comum na história de Belo Horizonte PINDURA SAIA
o poder público permitir que as pessoas ocupassem
Comunidade da Serra - 1953
POMBAL
uma área, até o momento em que se tornava necessária sua desocupação, em decorrência do
Outras Favelas
processo de crescimento da cidade e da valorização
Comunidade da Serra
do terreno. A população expulsa invadia áreas mais
Edificações Cidade Formal Parque Mangabeirase Mata da Baleia
distantes; mas depois era novamente removida. E, sempre com o apoio da prefeitura que ajudava no transporte e na reconstrução dos barracos, desde 1902, o processo de ocupação-remoção passou a ser usual. (GUIMARÃES; 1991)
Duas remoções contribuíram significativamente para o processo de expansão da Comunidade da Serra. A primeira delas foi a da favela do Pindura Saia, instalada acima de onde hoje é a praça do Cruzeiro, nos anos 20, ponto ainda de pouco interesse para o mercado naquele momento. Na foto aérea de 1953 é possível observar a comunidade que ocupava local privilegiado atualmente na malha urbana e que foi quase totalmente removida para a abertura da Avenida Afonso Pena em ação do órgão da prefeitura de Coordenação de Habitação de Interesse Social (CHISBEL) que realizou grandes remoções durante seus anos de existência entre 1971 e 1983. A segunda remoção foi a da Favela do Pombal e ocorreu na segunda metade da década de 1970 dentro da mesma lógica de expansão da cidade para a zona sul com a criação do bairro Mangabeiras e pressão sobre o poder municipal em doar o terreno para a construção de uma área de lazer para a elite que viria a morar na região, sendo destinado então à construção da segunda
O EDIFÍCIO, SEU ENTORNO E O MERCADO IMOBILIÁRIO Fazer o levantamento de uma edificação autoconstruída, ou seja, produzida pelos próprios moradores sem assistência técnica de profissionais, requer um cuidado maior com os métodos de medição para obter uma boa precisão nos desenhos finais que permitam ao morador ou a um profissional propor e sugerir modificações na construção. No entanto, as visitas durante o levantamento são um processo não apenas de conhecimento espacial mas de conhecimento da própria família. Ao acompanhar as medições, os moradores contam aos poucos o que os motivou a fazer certas reformas e até quando surgiu alguma patologia construtiva no imóvel. O modo que a edificação se altera ao longo do tempo está intimamente ligado a modificações na estrutura familiar, às formas de obtenção de renda e às alterações da favela pelo poder público. Sendo assim, o levantamento arquitetônico torna-se um processo de conhecimento espacial e histórico da casa, da comunidade e da família.
VILA NOSSA SENHORA DE FÁTIMA PRAÇA DO CARDOSO
Imagem 17. Vista da casa da Flor a partir do beco. Fonte: acervo MOM.
LOCALIZAÇÃO CASA DA FLOR CASA DA FLOR RUA FLOR DE MAIO
sede do Minas Tênis Clube.
‘Pau Comeu’, ‘Cabeça de Porco’, além das recentes ‘Cafezal’ e ‘Campo do Guaxupé’.
Esse processo de expulsão era consciente por parte da gestão pública e da população da cidade formal em geral como fica evidente na reportagem do “Jornal de Casa” de outubro de 1977, que descrevia a história de ocupação do bairro Serra. Não havia, portanto, o objetivo de erradicar a favela e acabar com esse modelo de ocupação informal adotado pela população de baixa renda sem condição de alugar ou comprar um imóvel no mercado formal. Ao mesmo tempo, não havia iniciativa por parte do poder público em providenciar moradias à essa população removida a fim de evitar a formação de novas favelas. As remoções foram guiadas inteiramente por interesses econômicos do mercado de terras formal sendo que muita vezes os moradores nem sequer tinham garantia ou promessa de um novo local para morar, ocupando periferias cada vez mais distantes do centro urbano. Desfeita a maior parte do Pindura Saia, o próprio coordenador da CHISBEL, Marcelo Andrade Neves,
Comunidade da Serra - 1969
reconhece que houve um aumento de favelas no bairro, ‘porque o indivíduo que não tem lote próprio
Comunidade da Serra
vai morar na favela mais próxima’. E assim é que a
Edificações Cidade Formal
Serra conta hoje com favelas grandes como as do
Parque Mangabeirase Mata da Baleia
A mais nova, a favela do ‘Cafezal’ nasceu da noite para o dia – conta o presidente da Sociedade Amigos da Serra. Foram 400 famílias que apareceram de repente fundando a nova favela. Segundo o Padre Mario, as da Igreja de Santana, estas famílias vieram da enchente do Arrudas e das secas do Norte de Minas. (JORNAL DE CASA. Belo Horizonte. 2 a 9 de outubro de 1977)
Assim, as primeiras ocupações abrigaram a população sem condições de adquirir seus lotes, os removidos de outras favelas e também uma parcela da população de “classe média baixa” que, mesmo com condições de comprar um lote na periferia optava pela condição informal tendo em vista a localização próxima ao centro urbano de Belo Horizonte e de seus locais de trabalho. “Não tem nem porque sair. Isso aqui é fora de série. Quantas vezes eu fui daqui a pé no Centro, porque não tinha dinheiro?” (CUNHA; TAVARES; 2016. Relato do morador Ailton Flavio de Souza).
DÉCADA DE 1970
RUA FLOR DE MAIO
2
1 3
Casa da Lia
Bar Vizinho
2 1 3
Imagem 18. Planta da casa da Flor em 1973 e modelo 3D. Fonte: produzido pelo autor.
CASA DA FLOR ELZA, RENATO, PAULO, MÁRCIA, FLOR
Elza, mãe da Flor, compra a casa (1) no Beco da Meia em 1974 e se muda com o marido Renato e os dois filhos, Paulo e Márcia. O pagamento foi feito em dinheiro e Dona Elza recebeu como garantia um recibo manuscrito pelo vendedor, assinado apenas por ele, com a descrição do mercadoria e o valor. A compradora não chegou a buscar alguma outra forma de registro mais formal, autenticar a assinatura ou recorrer a delegacia como era comum na época. A rua ainda era de terra batida e a entrada da casa era compartilhada com a vizinha Lia (2). A casa possuía dois cômodos e um banheiro externo (3) com fossa negra. Ainda não havia abastecimento de água e nem recolhimento de esgoto na favela, assim, buscar água nas fontes fazia parte do cotidiano dos moradores.
Supor que a Serra se forma a partir do movimento de moradores removidos em outros assentamentos informais é evidenciado, em parte, pela construção de um cômodo ao lado da casa existente. O barracão de Paulo (ilustrado na próxima década), irmão da Flor, foi feito a partir de materiais de demolição da Favela do Pombal carregados por ele e por Dona Elza. O novo cômodo servia como quarto e local de trabalho para Paulo que fazia e consertava sapatos e outros produtos de couro. Flor nasce em 1976, e após 7 anos, aproximadamente, Paulo se muda.
1930 a 1980
Comunidade da Serra - 1979 Comunidade da Serra Edificações Cidade Formal Parque Mangabeirase Mata da Baleia
2.3. PROCESSO DE OCUPAÇÃO E AS ÁGUAS DO CARDOSO
A favela da Serra está inserida em sua maior parte dentro da Bacia do Córrego do Cardoso, curso d’água essencial para o abastecimento da ocupação entre as décadas de 1930 e 1980. À medida que o bairro Serra deixa de ser uma zona suburbana e as chácaras começam a ser loteadas e dar lugar a uma ocupação de maior densidade, surge nos limites desse novo bairro de classe média/alta a Comunidade da Serra ocupando, então, porções da encosta de alta declividade e de pouco interesse ao mercado formal naquela época. Assim, os migrantes do interior do estado, os removidos das favelas da capital assim como outros habitantes de Belo Horizonte desprovidos de habitação construíram seus barracos em espaço relativamente próximo ao centro urbano, local de trabalho da maioria dessa população. Além disso, o abastecimento “natural” da região pela cabeceira do Córrego do Cardoso permitiram que as famílias se estabelecessem com certa independência de abastecimento de água e saneamento ofertados pelo poder público.
Sendo assim, a ausência completa de infraestrutura levou a ocupação a se desenvolver inicialmente ao redor dos cursos d’água e das bicas onde era possível lavar roupas e buscar água para abastecer a casa. Essa situação marcou o cotidiano das famílias da Serra até a década de 1980, quando a água encanada chega à comunidade. Até então, percebe-se nos relatos dos moradores a rotina de buscar água após o trabalho ou durante a madrugada antes de saírem para trabalhar. Aqui começou a crescer muito devagar. Ônibus não tinha. Água também não tinha. Carreguei muita água na cabeça, buscando lá embaixo, pra baixo do Hospital Evangélico. Lavar roupa a gente lavava lá, onde eles falam canão. [...] Era muito difícil. Porque a gente chegava cansada, com a bacia de roupa, e pra voltar lá embaixo pra buscar água de novo. (CUNHA; TAVARES; 2016. Relato da moradora Alda Lúcia da Silva Gonçalves) E a água? Quando eu vi essa gente, onde ia pra pegar água, pra poder lavar a roupa [...] Depois pôs as torneiras, daqui e dacolá. Porque a gente saía daqui
e ia lá embaixão, ali na Mendes Sá, pra poder pegar água pra beber. Eu não conseguia pegar água.
(a serem tratadas nos próximos subcapítulos) tenha imposto nomes “oficiais” à algumas ruas e regiões da favela da Serra.
Na bica, enquanto você não enchesse a lata e seus parentes enchessem a lata com você, ninguém podia chegar não. Se tivesse problema da água acabar, quem chegasse primeiro lavava roupa, lavava vasilha, carregava água pra casa, e o resto ficava lá até de madrugada, até tarde da noite pra fazer o serviço...Tinha que madrugar. (CUNHA; TAVARES;
Mas, apesar da área ser descrita pelos primeiros habitantes como um local vazio entre as década de 1930 e 1970, sem qualquer infraestrutura e pouco povoado, conseguir uma moradia na favela já implicava em realizar alguma transação comercial, seja de aluguel ou compra do imóvel.
2016. Relato da moradora Gerosina Barbosa dos Passos)
A água se tornou parte importante na identificação dos moradores da Comunidade da Serra com o local. A toponímia relacionada à água uma característica da comunidade, como se observa nos nomes de ruas e becos que fazem referência a água. Exemplo disso são a própria Rua da Água, a Rua das Nascentes, a Avenida do Cardoso, além de regiões dentro da favela como o Pocinho e as três áreas ao redor das nascentes do Córrego do Cardoso chamadas de primeira, segunda e terceira água. Essa nomeação é mantida ainda hoje pelos moradores embora a atuação da prefeitura nas décadas posteriores às intervenções de urbanização
[...] A gente veio para a rua Nossa Senhora de Fátima, perto da Fazendinha. Ali a gente morou uns seis meses de aluguel. Mas aqui, antigamente, a vida era muito penosa. Aqui não tinha nada, não tinha infraestrutura, era tudo terra, uns barraquinhos de painel, madeirite, essas coisas... (CUNHA; TAVARES; 2016. Relato do morador Ailton Flavio de Souza)
Sendo assim, pode-se supor que alguém ou um grupo de pessoas já havia se posicionado como proprietários daquelas terras e comercializavam os lotes entre a população de baixa renda que demandava por moradia, sem exigência de qualidade espacial e construtiva. O 42
mercado imobiliário informal se estabelece ainda pouco elaborado nas primeiras décadas, ao que parece, sem qualquer registro das transações, já que era comum a troca de outros produtos por um barraco e a lógica da necessidade ainda se impunha mais naquela situação de pobreza e de grande disponibilidade de terras desocupadas.
fez negócio com ele e veio pra cá. (CUNHA; TAVARES; 2016. Relato da moradora Cacilda Cândida de Oliveira) Quando dava vento, descobria asas casas, que era tudo provisório. E como tinha aquele negócio deles falar que ia desapropriar a gente, a gente ficava com medo de mexer. Aí fomos criando coragem,
No entanto, é possível imaginar que a proximidade às fontes de água seriam um fator de valorização desses imóveis pela relativa facilidade e rapidez em abastecer a casa e lavar roupas e utensílios. Possivelmente o tamanho do barraco também tinha influência sobre o preço, mas a qualidade construtiva e espacial das habitações não é característica relevante nesse momento já que eram construídas com tábuas de madeira, telhas de zinco e outros materiais coletad¬¬¬os nas ruas, nas demolições de favelas removidas e em restos da construção formal, indicando o caráter temporário desses assentamentos ainda inseguros sobre sua permanência naquele local. Depois apareceu um senhor lá em casa e ofereceu ali na frente, no lixão, um barracão de tábua, trocando por um botijão e um tambor de pôr água. Aí a gente
43
um ia fazendo, outro também. Até que conseguiram resolver urbanizar a vila, colocar a luz. Aí o povo animou, algum que não tinha feito, fez também. (CUNHA; TAVARES; 2016. Relato do morador Nelson Pereira de Souza)
Essa insegurança perdura até a década de 1980, quando as ações do poder público demonstraram certa mudança de mentalidade no tratamento das favelas e uma melhor “aceitação” da presença desses assentamentos na cidade. Nesse momento, a bacia do Cardoso já se encontrava bastante ocupada na fronteira com o bairro Serra (Vila Marçola, Vila Nossa Senhora Aparecida e Vila Nossa Senhora da Conceição) ao passo que as ocupações da Primeira Água do Cardoso (Vila Nossa Senhora de Fátima) e à margem oeste do Córrego do Cardoso (Vila Santana do Cafezal) avançavam sobre
a encosta. Os processos de construção sobre o restante da encosta se aceleram a partir dessas ações do poder público que tiveram pontos positivos e negativos para os moradores. As intervenções que ocorreram nas décadas seguintes são uma tentativa de implantar na favela características da cidade formal através das obras de reurbanização e prover a favela de equipamentos públicos e serviços básicos essenciais para uma melhor qualidade de vida dos habitantes. No entanto, tais obras trouxeram também consequências negativas para dinâmicas socioespaciais da favela, principalmente em relação ao tratamento das águas, além de estabelecerem novos processos dentro mercado imobiliário informal.
44
1980 a 2000
2.4. PROFAVELA: EXPANSÃO E CONSOLIDAÇÃO DA COMUNIDADE
A insegurança dos moradores da Comunidade da Serra quanto aos riscos de remoção começou a ser superada a partir da década de 1980 quando a atitude do poder público frente às vilas e favelas começou a mudar. Ao perceber que as remoções eram ineficazes para solucionar o problema dos assentamentos informais, a prefeitura assumiu a existência desses espaços autoproduzidos como locais essenciais para abrigar a população pobre e mão-de-obra das indústrias e do setor terciário. Começam, então, a elaborar projetos e programas que tentam incorporar a favela à cidade formal ou disfarçá-la aos olhos da população de classe média e alta de Belo Horizonte. A favela da Serra passou durante esse período, de 1980 a 2000, por um processo de consolidação. Apesar do termo ser amplamente utilizado, não há uma definição precisa sobre o que configura de fato uma 45
favela consolidada. Mariana Cavalcanti, no texto “Do barraco à casa: tempo, espaço e valores em uma favela consolidada” trata a consolidação da favela como “um processo espaço-temporal, atravessado por relações de poder que se (re)produzem em diversas escalas” (CAVALCANTI, 2008). Segundo ela, esse processo é marcado por dois acontecimentos que se interconectam em vários momentos da história de uma comunidade, De um lado, a substituição de programas de remoção por projetos e programas de urbanização, o que possibilitou um boom de construção civil nas favelas ao longo das últimas décadas e no incremento do mercado imobiliário das mesmas, e a conseqüente mercantilização de seus espaços. De outro lado, a apropriação do espaço da favela pelo tráfico de drogas, por meio da imposição de novos usos e rotinas sociais que produzem e reforçam as fronteiras sociais e simbólicas entre a favela e o dito “asfalto”. Em suma, pensar a consolidação de favelas traz à tona a questão de como as espacialidades da consolidação urbanística e da “melhoria” – para usar uma expressão cara aos agentes nela envolvidos – se choca, intersecta ou justapõe ao que é sabido ser o aspecto mais crucial da vida cotidiana em estruturas
DÉCADA DE 1980
RUA FLOR DE MAIO
Barracão do Paulo
2
1
3
Imagem 19. Planta da casa da Flor em 1978 e modelo 3D. Fonte: produzido pelo autor.
CASA DA FLOR ELZA, RENATO, MÁRCIA E FLOR
Na década de 1980, a Comunidade da Serra passa por processos de urbanização. O beco da meia que dava acesso a casa da Flor é ampliado e pavimentado. A nova rua chamada de Flor de Maio, como é conhecida hoje, ocupou uma faixa de terreno das casas lindeiras e, aquelas que tinham suas construções rentes ao antigo beco foram demolidas em parte para dar lugar à rua. Não é o caso da casa da Dona Elza naquele momento, mas dos imóveis vizinhos, como a casa da Lia (1) e o bar (2).
Uma modificação importante no espaço da favela foi o abastecimento de água. A incorporação dessa tecnologia modificou a relação dos moradores com os córregos da bacia do Cardoso e desencadeou várias reformas nas habitações. É nesse período que o banheiro (3) é incorporado à casa e se constrói um cômodo responsável pela conexão entre a edificação existente e o banheiro. Outras reformas são feitas na estrutura da casa após o muro de arrimo dos fundos cair, como a reconstrução dessa contenção, a construção de tubulões e a execução de uma laje a fim de evitar a entrada de água para o terreno. Outras contenções são feitas para apoiar a edificação do bar.
que conectam a favela – agora como território do tráfico – a uma economia política no bojo do que se convém chamar de “criminalidade violenta” (cf. Machado da Silva, 2004). (CAVALCANTI, 2008)
Esse processo de consolidação começou na Comunidade da Serra com a implementação do Programa de Regularização de Favela (PROFAVELA), elaborado em 1982, pela PLAMBEL mas com o projeto de lei aprovado em 1985. O projeto previa atuar na urbanização, com abertura de vias e construção de equipamentos públicos, e definição dos lotes para uma possível regularização fundiária.
Comunidade da Serra - 1989 Comunidade da Serra Edificações Cidade Formal Parque Mangabeirase Mata da Baleia
A atuação nessas áreas parte da percepção da importância de dois aspectos principais: em primeiro lugar, a necessidade de reconhecimento da favela como parte integrante da cidade, cuja “realidade” deve ser incorporada na redefinição de suas normas e padrões urbanísticos; em segundo lugar, a necessidade de se reconhecer nos ocupantes dessas áreas o direito de participarem e usufruírem dos benefícios da cidade, na mesma medida em que qualquer cidadão, já que, em termos de contribuição na produção da cidade e dos serviços que a compõem esses estratos cumprem um
papel e uma função na nossa sociedade (PLAMBEL; 1982). O programa delimitou ainda as favelas densamente ocupadas naquele momento e as definiu como Setor Especial 4 (SE-4) no zoneamento urbano em uma tentativa de incorporar essas comunidades no planejamento da cidade e reconhece-las como espaços essenciais para a existência de Belo Horizonte. Com isso, garantiram aos moradores maior segurança em relação a permanência nesses lugares em relação a própria atuação da prefeitura e, principalmente, em relação a atuação do mercado de terras formal. Mesmo não executando de fato a regularização fundiária e a concessão de posse dos lotes aos moradores houve significativo avanço quanto à abordagem que havia até então sobre esses assentamentos. Foram propostas ainda melhorias na infraestrutura da comunidade, como o alargamento e a pavimentação de ruas e becos, a implementação de sistema de transporte coletivo e a construção de equipamentos de serviço público (escolas, creches, postos de saúde, etc.). Essas ações afastaram as ameaças de remoção e sinalizaram aos moradores que era seguro investir na melhoria das suas casas. À medida que a favela se consolidou a partir da incorporação de tecnologias já
presentes na cidade formal, os barracos de madeirite e telhas de zinco dão lugar a edificações de concreto e alvenaria. Os banheiros, até então isolados em um cômodo reservado à fossa negra são incorporados ao restante da casa. As habitações passam, então, por uma série de modificações que vão ao fim reconfigurar a paisagem da favela e estabelecer novas dinâmicas socioespaciais, sobretudo quanto à relação dos moradores com as nascentes e os cursos d’água da Bacia do Cardoso. Aqui era mesma coisa de uma favelinha, tinha nada calçado não. Nós morava em barracão de tábua, depois que nós fez tijolo. Nós pegava água na bica; agora melhorou bastante. Tinha dia que eu saía daqui cinco e meia da manhã. Nós usava vela, depois que veio a luz. (CUNHA; TAVARES; 2016. Relato da moradora Vilma Maria de Jesus)
A água da COPASA não chega à favela acompanhada do esgotamento sanitário. Num primeiro momento os moradores são obrigados a improvisar soluções, sem a devida assistência técnica para realizar essas instalações, e começam a lançar os dejetos nas encostas. Consequentemente, inicia-se a poluição
12. Companhia de Saneamento de Minas Gerais – COPASA MG é a empresa responsável pela prestação de serviços em abastecimento de água e esgotamento sanitário.
48
do solo e dos cursos d’água onde abasteciam suas casas até então (SILVA, 2013) . Desse modo, ocorrem concomitantemente uma sucessão de fatores que levaram a um gradativo esquecimento dos saberes populares de preservação da qualidade das águas. Além disso, a proximidade das casas em relação aos cursos d’água que antes constituía fator de valorização dos imóveis é substituído por valores próximos aos estabelecidos pelo mercado imobiliário formal. É possível afirmar, portanto, que o mercado imobiliário informal se consolida junto com a favela, conforme a comunidade conquista melhorias para o espaço e para a infraestrutura urbana a partir de programas da prefeitura. Novos moradores se interessaram pela relativa estabilidade que a ocupação ganhava e impulsionaram a ocupação que, em três décadas, tomou o restante da encosta da Bacia do Cardoso. Até os anos 2000, a segunda e a terceira água do Cardoso foram ocupadas dando origem a novas vilas, como a Santana do Cafezal e a Novo São Lucas. Esses novos assentamentos são, em parte, resultado de uma organização dos moradores e possivelmente do mercado informal para atender a demanda crescente 49
13. Vale destacar a atuação da Rádio Favela, em operação desde 1981, e das Associações de Moradores da Comunidade da Serra.
DÉCADA DE 1990
RUA FLOR DE MAIO
CASA DA FLOR ELZA, FLOR, PABLO E IZABELA
Pablo, sobrinho de Flor, muda-se para a casa. Nessa década a família decide demolir a edificação comprada por Dona Elza e começam as construções do primeiro pavimento (1) da casa que existe hoje. A laje de piso é refeita e o terreiro, antes de terra batida, é coberto com contrapiso. Em dois anos ela é terminada, inclusive com acabamentos, e conta com seis cômodos e uma área de serviços externa com acesso pelo beco.
1
Imagem 20. Planta da casa da Flor em 1978 e modelo 3D. Fonte: produzido pelo autor.
Em 1998, nasce a filha de Flor, Izabela. Com isso, a família dá início já em 1999 à construção do segundo pavimento a fim de adequar a edificação ao número de membros da família,. Na próxima década Flor ganha mais um filho e Polyana, sua sobrinha, vem morar na casa da avó.
de moradia, a maioria deles parentes e amigos que migraram do interior ou que já estavam morando de aluguel na favela. Segundo a prefeitura a ocupação aconteceu de forma planejada entre amigos e conhecidos. Havia até mesmo um responsável pela escolha das pessoas que lá iriam morar, para dar nome às vias e até entregar os lotes aos futuros moradores. (Prefeitura de Belo Horizonte, acesso em 11/2017)
De fato, o relato dos moradores confirma esse processo de loteamento, como conta Ailton Flávio de Souza: Aí depois eu comprei uma área do Seu Dufino, quando Seu Dufino fez o Cafezal. Seu Dufino ia tirar um terreno pra mim, não tirou, aí eu comprei. Fiz um barraco de tábua de madeira e aí a gente passou pra lá. (CUNHA; TAVARES; 2016)
Comunidade da Serra - 1999 Comunidade da Serra Edificações Cidade Formal Parque Mangabeirase Mata da Baleia
Desse modo, percebe-se que as novas ocupações são condicionadas por um mercado imobiliário informal atento à valorização daquela parte da cidade. O planejamento das vias e da distribuição dos lotes revela como a comercialização já se encontrava bem estruturada na década de 1970. Nos anos seguintes, as ofertas se diversificam e tornam os posseiros parte desse mercado cujo aluguel de cômodos ou casas complementa a renda familiar.
2000 a 2010
2.5. VILA VIVA, DESCONSOLIDAÇÃO E DESCONSTRUÇÃO DA FAVELA
e Ocupação do solo de Belo Horizonte, que passou a denominar as áreas do “Setor Especial 4” como zonas especiais de interesse social (ZEIS), o pioneirismo [da Urbel] não se sustentou ao longo dos anos e uma série de distorções nas propostas iniciais
Desde 1983, a favela vem se expandindo num ritmo maior do que as décadas anteriores após receber infraestrutura urbana através de obras financiadas pelo poder público e elaboradas pela Urbel. As condições de vida da população pobre melhoram relativamente durante os anos 2000, permitindo uma série de expansões e reformas nas casas que alimentaram o mercado imobiliário informal com maior variedade de opções, tanto para novos moradores quanto para aqueles que migraram dentro do espaço da própria favela. De acordo com Abramo (2003), a origem dos moradores que compram ou alugam uma casa na favela é a própria favela. Um exemplo desse movimento são os casos de moradores que nasceram e cresceram na comunidade e, depois de adultos, se mudaram para outra casa na própria favela.
culminaram no Programa Vila Viva, iniciado em 2005. Tal programa promove intervenções urbanísticas polêmicas, com tendência à gentrificação de favelas localizadas nas áreas mais centrais de Belo Horizonte. (BALTAZAR et al., 2017)
A condição de favela consolidada se altera de maneira significativa com a atuação da Urbel a partir do Programa Vila Viva na Serra e em outros aglomerados: Taquaril, Morro das Pedras, Califórnia, Pedreira Prado Lopes e São José. O programa prevê a reestruturação e revitalização dessas
comunidades
por
meio
de
diversas
intervenções: saneamento, remoção de famílias de áreas de risco, reestruturação do sistema viário, implantação de parques e equipamentos para
Mas, apesar dos avanços importantes já citados sobre o PROFAVELA e o aperfeiçoamento da Lei de Uso
esporte e lazer, construção de unidades habitacionais e urbanização de becos. Tudo com o objetivo de
52
melhorar a qualidade de vida dos moradores dessas áreas, ocupadas de forma irregular e desordenada
sociais e com excelente localização [...] serão afetadas” (Movimentos Populares; 2008). Além disso,
ao longo de décadas. se remover uma favela pode, segundo estimativas do O Vila Viva também abarca ações de promoção social
mercado, valorizar toda uma região de classe média e
e desenvolvimento comunitário, educação sanitária
média-alta em cerca de 30%, não por coincidência os
e ambiental, e a criação de alternativas de geração
primeiros programas Vila Viva foram implantados no
de trabalho e renda na própria comunidade. E, após
Aglomerado da Serra, Morro das Pedras e Barragem
o término das obras de urbanização, será feita a
Santa Lúcia, zona sul da Capital. (LIBÂNIO, Clarice;
regularização fundiária com a emissão das escrituras
2016)
dos terrenos aos proprietários. (PBH; acesso em 17 de junho de 2018)
Apesar de a proposta parecer ter boas intenções quanto à melhoria de vida da população, o que se vê na prática é um processo de desfavelização marcado por interesses do mercado imobiliário como é justificado pelo “Manifesto Vila Viva ou Vila Morta?”. O mesmo documento descreve ainda outras seis razões de repúdio ao referido programa municipal que evidenciam as alterações sociais e espaciais através de grandes obras que necessitam, consequentemente, de grandes remoções. A escolha das vilas demonstra o interesse do mercado nas intervenções “pois apenas as vilas mais valorizadas da cidade, bem servidas de equipamentos 53
A implantação da Avenida Jefferson Coelho da Silva, chamada pelos moradores de via do Cardoso por acompanhar o percurso do córrego do Cardoso, é uma ligação viária entre as regiões leste e centro-sul. A via dá continuação à Avenida Mem de Sá e recorta a favela até atingir a Rua Capivari no bairro Serra. Paralelo ao projeto da avenida, foram previstas a recuperação das cabeceiras do córrego do Cardoso com a criação dos Parques das Três Águas, mas também a construção de edifícios multifamiliares com projeto semelhante aos produzidos pelo mercado formal mas com dimensões ainda mais reduzidas. Cabe ressaltar que o modelo habitacional desses edifícios, bem como sua lógica de implantação, não foram discutidos com a população local.
DÉCADA DE 2000
CASA DA FLOR
Nos anos 2000 Dona Elza se aposentava de fato e não poderia contribuir mais (ela já era aposentada mas ainda trabalhava para obter uma renda complementar a aposentadoria). A construção do novo pavimento é então paralisada durante um ano para a família poder arrecadar renda suficiente e dar continuidade à obra. Márcia, que havia voltado a morar na casa, e Flor
assumem os gastos com a construção. Entre 2002 e 2003, o segundo pavimento (1) é finalizado com os acabamentos, contando com quatro cômodos (sendo um deles um banheiro) e uma varanda (2) nos fundo com vista para a cidade. Em seguida a família aluga a casa da Lia para usar como garagem que é, meses depois comprada e incorporada à casa. Foram feitos mutirões para a demolição do imóvel enquanto construíam, ao mesmo tempo, o novo cômodo (3). Em 2004 a garagem está pronta mas sem acabamentos. Compram, então, o bar vizinho (4) e
demolem boa parte da edificação, exceto as paredes voltadas para a rua e para o beco, mantidas como muro do terreno. As obras ficam paralisada enquanto expandem o primeiro pavimento para acomodar uma nova cozinha (5), ocupando o espaço onde havia uma área de serviços, transferida para a parte de baixo da garagem (6). O novo cômodo possui acesso pelo beco que circunda a lateral e os fundos da casa. Em 2006, aproximadamente, finalizam a reforma do bar (7). Após o término da obras, o espaço mantem seu uso
RUA FLOR DE MAIO
RUA FLOR DE MAIO
1
3
6 4 7
2
Imagem 21. Planta da casa da Flor em 2003 e modelo 3D. Fonte: produzido pelo autor.
como bar, mas agora comandado por Ilza, irmã de Flor, aproveitando o caráter comercial da Rua Flor de Maio. A casa passa a adquirir portanto características de um imóvel bastante valorizado no mercado imobiliário informal. As dimensões e números de cômodos, a garagem, a tamanho da fachada, a proximidade aos pontos de ônibus e a localização na Rua Flor de Maio, via bastante movimentada e com a presença de comércio, tornam a casa da Flor um imóvel de alto valor no mercado.
5
Imagem 22. Planta da casa da Flor em 2006 e modelo 3D. Fonte: produzido pelo autor.
Imagem 23. Imagem de satélite em 2007. Fonte: Google Earth.
Imagem 24. Imagem de satélite em 2012. Fonte: Google Earth.
Além disso, vale frisar também que o processo de remoção dos moradores para abrir caminho para a nova ligação viária Santa Efigênia-Serra é uma medida desrespeitosa e arbitrária por parte do poder público. Apesar de elaborar as propostas a partir do Programa Municipal Específico (PGE) , a nova avenida não foi feita para atender interesses e necessidades locais. O ‘Manifesto Vila Viva ou Vila Morta?” e o documentário de 2011 “Uma avenida em meu quintal”9 retratam os efeitos negativos, senão perniciosos, das obras na vida das famílias e nas relações sociais existentes entre os moradores da favela. À medida que os projetos saíam do papel e o início das obras era divulgado, aconteceu um grande movimento no mercado imobiliário local. As famílias que perceberam as modificações que estavam por vir e que não queriam se mudar para os apartamentos a serem construídos começaram a vender/alugar suas casas e procurar imóveis em outras partes da favela. No entanto, como a Comunidade da Serra já estava densamente ocupada, o desequilíbrio entre oferta e procura levou a uma alta nos preços de venda dos imóveis que já sofriam acréscimos possibilitados pela boa situação econômica do país na época.
Soma-se a essa situação a queda nos preços dos imóveis nas áreas ameaçadas de remoção que levou alguns moradores a migrarem para outros bairros ou favelas em periferias distantes do centro urbano já que não tinham mais condições de pagar por uma casa na Serra pelo mesmo valor de venda da sua antiga propriedade. Os moradores que não se mudaram e resistiram à implantação das obras foram reassentados nos “predinhos do Vila Viva” ou se mudaram para bairros distantes que tinham imóveis a preços condizentes com o valor do reembolso pago pela prefeitura. Tal indenização cobria apenas as benfeitorias dos moradores ao terreno, ou seja, o valor da terra não era incorporado no cálculo já que a regularização fundiária, proposta desde o Profavela, não foi de fato executada. A atuação do Programa Vila Viva no Aglomerado da Serra, que teve o início de sua implantação em 2005, somou um total de quase 3000 famílias removidas em função das obras de infraestrutura e regularização fundiária na região. Os dados variam de acordo com a fonte (de 2269 a 2883), mas vale dizer que menos da metade dessa população foi reassentada nos empreendimentos de habitação social produzidos pelo Vila Viva, os chamados “predinhos”, oferecidos
DÉCADA DE 2010
CASA DA FLOR
Em 2010, começa a construção do quarto da Márcia nos fundos do segundo pavimento onde havia uma varanda. O telhado colonial é retirado e reaproveitado para fazer a cobertura da lavanderia no terreiro do
primeiro pavimento. Como a casa possui entrada pela rua Flor de Maio, há um desnível considerável entre esse acesso e o ponto mais baixo do beco que circunda a casa. A família percebe então a possibilidade de construir uma casa independente (1) para aluguel no vazio que existe sob a casa. Em 2013, então, retiram a terra sob a laje do 1º pavimento e constroem 4 cômodos utilizando a estrutura dos tubulões feitas no final da década de 1980.
Em 2014 dão início à construção do terceiro pavimento (2). A família prevê para aquele espaço uma grande área de lazer coberta sobre a casa, com vista para toda a cidade além de uma área, ainda descoberta, sobre a garagem. As obras ainda não foram concluídas com os acabamentos pois, em 2015 iniciaram uma reforma no 1º pavimento a fim de aumentar os espaços de convivência da casa. Assim, cozinha, sala de estar, sala de jantar e escritório se transformaram em um cômodo integrado.
A casa da Flor ainda passa por alteraçõesa a fim de atender às necessidades da família além de melhorias na qualidade espacial e construtiva. Analisar outras habitações e as relações que estabelecem com o seu entorno e o mercado imobiliário informal podem ajudar a identificar outros mecanismos e dinâmicas do mercado da Comunidade da Serra.
RUA FLOR DE MAIO
2
BECO
1 Imagem 26. Planta e modelo 3D da casa da Flor em 2010. Fonte: produzido pelo autor.
Imagem 25. Planta dos cômodos de aluguel e modelo 3D da casa em 2013. Fonte: produzido pelo autor.
como alternativa à indenização pela Urbel. O destino
Inicialmente essas práticas foram incrementa¬das
da maioria das demais famílias (dependendo da fonte
com a criação do Programa de Reassen-tamento
varia de 1413 a 1971 famílias) foi a periferia da Região
de Famílias em Decorrência de Obras Públicas ou
Metropolitana de Belo Horizonte, havendo casos,
Vítimas de Calamidades – Proas, estendendo-se para
inclusive, de emigração para outras cidades mineiras
as obras de implantação das propostas dos novos
e mesmo para o estado da Bahia. (BALTAZAR et al.,
PGEs, que acabam por trazer de volta o fantasma
2017)
da CHISBEL e do desfavelamento. (LIBÂNIO, Clarice; 2016)
O Vila Viva reestabeleceu, portanto, uma situação semelhante à das primeiras décadas da capital, em que a sensação de insegurança dos moradores era grande quanto às remoções. Do mesmo modo, essas remoções alimentaram o mercado imobiliário informal nas periferias atuais de Belo Horizonte à medida que a população pobre removida se deslocava para vilas e favelas em situação de maior precariedade do que a Comunidade da Serra, até então considerada uma favela consolidada. Infelizmente, nos últimos 10 ou 15 anos, a cidade tem visto o retrocesso da atenção integrada e participativa nas favelas. A prática do desfavelamento, ainda
Comunidade da Serra - 2010 Comunidade da Serra Edificações Cidade Formal Parque Mangabeirase Mata da Baleia
que não assumida como filosofia e prioridade, vem sen¬do realizada com grande frequência pelo po¬der público na capital e região metropolitana.
Esse momento poderia ser chamado, então, de desconsolidação ou desagregação da favela. O recorte da via do Cardoso e a imposição de um certo modelo habitacional (predinhos) interferiram nas relações socioespaciais já estabelecidas pela comunidade ao longo de praticamente todo o século XX, mas que se alteraram rapidamente com as propostas do Vila Viva para os espaços da favela, mesmo após a construção de equipamentos públicos e urbanização de ruas e becos. O mercado imobiliário informal, no entanto, é fortalecido ao absorver essas modificações a partir das novas possibilidades de ampliação da comercialização, seja com a grande demanda gerada pelos removidos em busca de casas, com os predinhos do Vila Viva desocupados pelos moradores reassentados que não se adaptaram aos apartamentos ou com os vazios gerados pela criação do Parque das Três Águas do Cardoso.
As intervenções do Vila Viva geraram grandes consequências na Comunidade da Serra, que passa atualmente por um momento de assimilação dessas modificações nas relações socioespaciais causadas pelas remoções, pelas obras de infraestrutura e pela inserção de modelo habitacional incompatível com a maneira de habitar praticada na favela. Por outro lado, alguns processos de ocupação e funcionamento do mercado imobiliário informal ainda acontecem de modo semelhante ao de décadas passadas e servem de exemplos contemporâneos de como a ausência de políticas públicas para habitação popular estimula a formação de mercados informais para suprir a demanda por habitação.
3
Este capítulo trata, primeiramente, das áreas delimitadas pela prefeitura como Áreas de Preservação Permanente com determinados perímetros ao redor das nascentes e cursos d’água com a finalidade de restringir a ocupação. Ao contrário do que previa a gestão municipal, após a remoção de dezenas de famílias dessas áreas, o “Parques das Três Águas do Cardoso” foi interpretado pela Comunidade da Serra como novos vazios a serem ocupado. Parte deles por moradores que já não tinham opção dentro do mercado formal de habitações e que deixaram de ser contemplados também pelo mercado informal após rearranjos de valores gerados pelas intervenções da Urbel. Supõe-se, também, que o poder paralelo do tráfico tenha se apropriado de espaço em uma conversão do capital gerado pela comercialização de drogas em capital imobiliário atendendo a uma lógica de multiplicação e acumulação de riquezas.
PÓS VILA VIVA: NOVAS E VELHAS DINÂMICAS NO MERCADO DA COMUNIDADE
58
Na última década, observa-se também o surgimento de um novo “ramo” no mercado imobiliário informal. Os empreendedores da favela são moradores que se especializam mercado de aluguel e que, atentos as oportunidades oferecidas pelo setor imobiliário, viram na produção de unidades habitacionais verticalizadas uma alternativa para aumentar a renda familiar. Esses empreendimentos afastam-se do aluguel de cômodos ou casas dentro do lote do próprio locatário e se aproximam do padrão construído pelo Vila Viva e de um modo de produção praticado pelo mercado imobiliário formal. Ou seja, a produção de moradias começa a seguir uma lógica de construção em que não há uma demanda real destinada a moradia imediata de uma família. Assim, aposta-se em unidades habitacionais genéricas para possíveis moradores que, segundo uma previsão de mercado, irão procurar por esse tipo de apartamento. Em seguida, será abordado o caso dos predinhos do Vila Viva e as consequências da imposição de um modelo de habitação multifamiliar e verticalizado, sem possibilidades de reforma ou expansão, fato que levou à rápida inserção das unidades no mercado informal de habitações. As famílias não se adaptaram às plantas 59
dos apartamentos, à organização do condomínio ou às novas relações de vizinhanças. Alguns apartamentos passaram por reformas e agora são comercializados como opção de moradia para uma classe média baixa proveniente, em alguns casos, de bairros da cidade formal. Por fim, é analisado o caso do Pomar do Cafezal, área não incluída na Zona Especial de Interesse Social (ZEIS) mas que está em processo de ocupação recente em terreno com alta declividade até então pouco interessante para o mercado imobiliário. Passa atualmente por um período de densificação, expansão e resistência à movimentos da prefeitura e do mercado formal para remoção das famílias. Por fim, é descrito o panorama geral da atual situação da Comunidade da Serra e do seu mercado de habitações no momento em que lógica da Necessidade, lógica do Estado e lógica de Mercado passam a coexistir na favela.
3.1. PARQUE DAS 3 ÁGUAS: CAPITAL DO TRÁFICO, OCUPAÇÕES E PRESERVAÇÃO DAS ÁGUAS
Grande parte das remoções realizadas na Comunidade da Serra foram realizadas com o pretexto de proteger as nascentes e o leito do córrego do Cardoso além de transferir os moradores para uma situação sem risco e por isso, supostamente, melhor do que a que viviam em suas casas à margem dos cursos d’água. No entanto, essas ações acabaram por gerar vazios que, por falta de ação efetiva da PBH na implementação do parque, acabaram por tornar as áreas de preservação disponíveis para a atuação do mercado imobiliário informal. Apesar da necessidade de preservação das cabeceiras do córrego, o histórico da ocupação, as condições urbanas e sociais no entorno das águas do Cardoso não condizem com a estratégia adotada pela Urbel de remoção dos moradores e cercamento de perímetro ao redor das nascentes e cursos d’água. Essa abordagem conduziu rapidamente a uma reocupação desses
terrenos, em parte dentro de uma lógica antiga guiada pela necessidade de habitar na cidade e, por outro lado, por uma lógica do mercado para multiplicação e acúmulo do capital do tráfico de drogas. Os parques da Primeira, Segunda e Terceira Águas do Cardoso não chegaram a constituir de fato espaços de preservação e lazer voltados para a Comunidade da Serra por serem definidos como Áreas de Preservação Permanente (APP). Logo, a relação dos moradores com as águas fica novamente impedida e deve ser colocada em questão. Anteriormente, as águas eram mantidas limpas porque havia, apesar de toda a dificuldade de acessar as bicas e transportar água até as casas, um “acordo” entre a comunidade em preservar a fonte de abastecimento. O conhecimento da origem das águas e o senso de preservação passaram, então, por um processo de esquecimento e, consequentemente, o início de lançamento das águas servidas nos córregos que abasteciam anteriormente as casas já que a introdução de tecnologia da água encanada foi implantada desacompanhada do esgotamento sanitário. E, atualmente, a relação se torna ainda mais distante uma vez que tais áreas estão cercadas, desarticuladas da malha urbana e descuidadas pela prefeitura. 60
3ª Água do Cardoso
2ª Água do Cardoso
1ª Água do Cardoso
61
Parque das Três Águas do Cardoso Área de Preservação Permanente
A delimitação das áreas de proteção do Córrego do Cardoso como parte do projeto Vila Viva se tornou um potecializador de novas dinâmicas do mercado imobiliário informal. Os perímetros cercados não foram interpretados como limites da favela mas como novos terrenos disponíveis àqueles que tem condição de se impor tanto na Comunidade quanto frente à administração público, poder esse representado na favela pelos agentes do tráfico de drogas. Acabadas as obras do Vila Viva houve o surgimento de novas casas nesses locais em um processo de construção supostamente iniciado pelos agentes do tráfico pela rapidez com que essas habitações ficaram prontas. Assim, eles identificaram nesses espaços desocupados a possibilidade de investir no ramo imobiliário já que possuem capital suficiente para edificar uma casa em um ritmo diferente do restante das casas vizinhas da favela. Assim, em um curto prazo de tempo ocupam esses terrenos vazios antes mesmo da fiscalização municipal se dar conta e intervir na remoção do imóvel. Além disso, há uma insegurança muito grande por parte da população, principalmente daqueles que foram removidos ou que acompanharam o processo perverso de negociação da Urbel para “indenização” e
demolição das casas. A imprevisibilidade de ocuparem e permanecerem nesses terrenos não afasta os agentes do tráfico de drogas que exercem forte poder sobre a área da Comunidade da Serra e seguem construindo algumas casas isoladas com certa segurança quanto a ausência do poder público e seu enfrentamento naquele local. Mas na área de preservação que acompanha a Avenida do Cardoso, as ocupações são mais densas e ocupadas por pessoas que ficaram realmente sem opção de moradia e construíram seus barracos em conjunto a fim de formar resistência contra as pressões do poder municipal para remoção das famílias. Dessa forma, observa-se nessas áreas uma situação de dois extremos do mercado imobiliário informal: de um lado a lógica da necessidade em habitar perto do centro urbano de Belo Horizonte leva as famílias a morarem em locais relativamente abandonados pelo poder público; de outro, o poder local do tráfico de drogas utiliza seu capital acumulado a fim de multiplicá-lo através da locação ou venda de imóveis nos “novos terrenos” deixados vazios pela intervenção da prefeitura.
62
Exemplo disso é a Ocupação Nelson Mandela, documentada pelo Frei Gilvander através de entrevistas disponíveis no canal de vídeo “YouTube”, e removida em 2015 após acordo entre prefeitura e os ocupantes. As casas construídas à beira do córrego e da avenida do Cardoso tinham um padrão diferente do que geralmente é visto em novas ocupações, como será mostrado no caso do Pomar do Cafezal. As habitações foram feitas diretamente em alvenaria e não com materiais baratos para a construção de um barraco provisório a ser substituído pela construção convencional conforme a segurança em permanecerem naquele local aumentasse.
condiz com a situação econômica familiar descrita por elas. Estariam esses dois extremos articulados de algum modo no processo de ocupação dessas áreas? Seria possível supor, então, que o poder do tráfico de drogas estivesse por trás dessas construções como uma espécie de financiador da construção das casas? E, ainda, estariam utilizando a resistência das famílias frente à remoção da prefeitura para estabelecer ali uma área de investimentos no mercado informal de habitações?
Seus moradores provém, em grande parte, da própria comunidade, expulsos pelas pertubações geradas no mercado informal de aluguel conforme será apresentado ou demonstrado no próximo capítulo. Sem condições de manter alugando suas casas pelos novos valores estabelecidos, acabaram por ocupar os vazios do Parque das Três Águas. Mas, nas entrevistas feitas pelo Frei Gilvander, esses moradores contam que fizeram investimentos para a construção das casas em torno de R$4.000,00 e R$5.000,00. No entanto, essa quantia exigiria uma certa reserva financeira que não 63
Imagem 27. Ocupação Nelson Mandela. Fonte: Jornal Hoje em Dia.
Imagem 28. Ocupação Nelson Mandela em 2014. Fonte: Google Earth.
64
3.2. EMPREENDEDORES DO MERCADO INFORMAL
A consolidação da favela de certa forma é acompanhada pela melhoria de vida dos seus moradores que, apesar de muitas vezes não terem formação técnica especializada, têm uma compeensão prático-intuitiva sobre o funcionamento do mercado imobilário. Com relativa estabilidade financeira e segurança quanto à própria moradia, observa-se na Comunidade da Serra o surgimento de alguns moradores-empreendedores operando no mercado informal sob uma lógica de produção que se aproxima da praticada na cidade formal, ou seja, a construção de unidades habitacionais sem uma demanda real por moradia.
65
Após as intervenções de urbanização e a aproximação entre favela e cidade formal, a condição de ocupar aquele espaço por necessidade cede lugar gradativamente à lógica de mercado pautada na produção de unidades habitacionais semelhantes a do mercado formal. Apesar de se aproximar da lógica de acumulação de capital, vale ressaltar o caráter informal desses empreendedores
Imagem 29. Planta da garagem do edifício de kitnets da Madrinha. Fonte: Acervo MOM.
devido a relação próxima entre proprietário e processo de produção, característica do mercado imobiliário em vilas e favelas. No entanto, a prática se afasta daquela já observada na comunidade com a construção de cômodos ou unidades habitacionais no próprio lote do locatário.
Imagem 30. Pavimento-tipo do edifício de kitnets da Madrinha. Fonte: Acervo MOM.
14. A grafia correta seria quitinete. Adota-se kitnet por ser o modo frequente encontrado nos anúncios.
Exemplo desse empreendimento é o prédio localizado na rua Flor de Maio na Vila Nossa Senhora de Fátima. Com 4 pavimentos, as unidades são destinadas ao aluguel e têm boa localização dentro da Comunidade, próxima a Praça do Cardoso. Não houve interesse por parte do proprietário em conversar sobre seu empreendimento, o que pode indicar certo receio em divulgar essa atividade. Outro exemplo são as “kitinets14 da Madrinha” localizadas na mesma rua mas ainda não construídas. Foram elaborados estudos preliminares pelo grupo MOM a fim de experimentar um processo colaborativo na concepção dos projetos. No final, foram apresentadas duas possibilidades de edifícios, todos com unidades habitacionais de um quarto, conforme demanda percebida pelas empreendedoras que tinham, desde o início, colocado esse requisito por ser um tipo habitacional de fácil comercialização e bastante procurado na comunidade. 66
Outros exemplos foram encontrados ainda em sites de compra e venda na internet, um novo modo de divulgação das ofertas do mercado imobiliário informal a ser abordado no próximo capítulo. São anunciadas kitnets que seguem uma padronização de revestimentos e acabamentos semelhante à de apartamentos produzidos no mercado imobiliário formal. Fica evidente pelas fotos como a produção desses empreendimentos se distancia gradativamente da autoprodução da casa na favela, geralmente construída em etapas e com acabamentos a serem concluídos.
Imagem 31. Perspectiva do edifício de kitnets. Fonte: Acervo MOM.
67
Imagem 32. AnĂşncio de kitnet na Rua Nossa Senhora de FĂĄtima. Fonte: site OLX, acesso em 6 de junho.
Imagem 33. Imagem interna do apartamento para aluguel. Fonte: site OLX, acesso em 6 de junho.
68
3.3. OS “PREDINHOS” DO VILA VIVA: NOVO PRODUTO NO MERCADO INFORMAL A proposta do Vila Viva foi de construir uma série de prédios com unidades residenciais de 55 m² com 2 quartos ou unidades de 65 m² com 3 quartos. Foi então inserido no contexto da favela um modelo habitacional não condizente com a dinâmica espacial e familiar existente demonstrada pelos constantes acréscimos e modificações feitos ao longo dos anos exemplificado pelo caso típico da casa da Flor. Os apartamentos não foram, portanto, projetados com a finalidade específica de atender às demandas daquela população. São projetos genéricos semelhantes aos produzidos em larga escala pelo mercado imobiliário formal mas com menor área construída por apartamento mesmo com a finalidade de abrigar o maior número de famílias, com pouca ou nenhuma preocupação com a qualidade dos ambientes e a preservação das relações socioespaciais previamente estabelecidas na comunidade. Além disso, os edifícios não são compatíveis com o terreno de alta declividade onde foram implantados, gerando grandes contenções que tornaram as ruas do entorno 69
Imagem 34. Imagem do Vila Viva na Comunidade da Serra. Fonte: PBH.
70
Localização dos “Predinhos” Edifícios do Vila Viva
vazias e monótonas, antes ocupadas pelo movimento dos moradores que tinham suas casas implantadas no limite da via. As ampliações de acordo com as necessidades da família, os terreiros e os cômodos de aluguel são impossíveis nos “predinhos do Vila Viva”. Além disso, o descuido ao distribuir aleatoriamente as unidades aos removidos não favoreceu a criação de relações de vizinhança e identificação com os novos espaços, dificultando a manutenção do condomínio e gerando situações de conflito entre os moradores. Quando questionados sobre a pretensão de continuar a residir nos apartamentos, de 129 respostas válidas, 58 entrevistados (45%) responderam “não”. Entre
Dessa forma, os apartamentos se tornaram mais um dos produtos do mercado imobiliário informal. Em poucos meses algumas famílias já haviam se mudado, alugando ou vendendo os imóveis antes do prazo mínimo estabelecido pela Urbel para fixação dos moradores reassentados em suas unidades. Apesar de haver regularização de parte das transações por esse mesmo órgão através de processos de interveniência, é possível supor que boa parte das vendas e aluguéis são tratados à parte dessa formalização. Entrevistas feitas durante pesquisa dos grupos MOM e LAGEAR15 sobre a situação dessa politica de habitação na Comunidade da Serra em 2013 indicam essa nova comercialização das unidades entregues, primeiramente, ao moradores reassentados após as remoções das áreas de APP e do traçado da Avenida do Cardoso.
as justificativas destacam-se críticas ao modelo “apartamento”, ao seu tamanho e à ausência de
Ressalta-se também que 24% dos entrevistados não
espaço externo, os chamados “terreiros”, seja
eram os beneficiados originais dos apartamentos,
para cultivo de plantas ou criação de animais. A
sendo que, destes, 59% compraram o apartamento,
preferência pela moradia do tipo “casa” fica evidente
28% alugavam e 13% conseguiram a unidade por
com as respostas à pergunta sobre o tipo de moradia
meio de troca. (BALTAZAR et al., 2017)
na qual os entrevistados gostariam de morar: 66% das respostas válidas citaram “casa”, independente de sua localização. (BALTAZAR et al., 2017)
71
Muitos desses novos moradores não pertenciam anteriormente à Comunidade da Serra e nem todos possuíam algum amigo ou parente morando na favela
5
3 4 1 2
Imagem 35. Bairros de origem dos novos moradores dos predinhos. Fonte: produzido pelo autor. 15. O LAGEAR (Laboratório Gráfico para Experimentação Arquitetônica) é um laboratório computacional da Escola de Arquitetura da UFMG voltado tanto para o ensino quanto para a pesquisa na área de arquitetura e novas mídias.
que, geralmente, facilitam a entrada do novo membro na comunidade. A origem desses novos moradores dos predinhos são alguns bairros da cidade formal como por exemplo Salgado Filho (1), Betânia (2), Pompeia (3), Taquaril (4) e Jaqueline (5) que possivelmente convivem com condições de informalidade dentro do mercado imobiliário mas habitado por uma população com condições econômicas um pouco melhores que da favela da Serra. Ao pesquisar por imóveis na internet também é possível encontrar apartamentos do Vila Viva para venda, não apenas na Comunidade da Serra mas em outras favelas da cidade como o Morro do Papagaio e a Vila das Antenas. Pelas fotos dos anúncios percebe-se que os apartamentos passaram por algumas alterações, principalmente a troca de revestimentos, instalação de box de vidro para chuveiro e de louças novas para o banheiro. Assim, as unidades são transformadas e assumem um padrão de acabamento que atende à uma classe média baixa em busca de opções de moradia próximas ao centro com um valor reduzido, tanto do imóvel quanto das transações imobiliárias. Logo, o caso dos predinhos introduz não só um modo de habitar diferente como uma nova população em 72
um possível processo de substituição dos antigos moradores da comunidade pela abertura do mercado imobiliário informal que atende, recentemente, a essa parcela da população que não tem necessariamente sua origem nas favelas. Além disso, os edifícios estão implantados em locais acessados com maior “facilidade” sem a necessidade de transitar pelos becos e ruas da comunidade alterando o mecanismo de entrada de novos moradores mediado por parentes e amigos já inseridos na comunidade. Assim, o programa Vila Viva chega, aos poucos, no seu objetivo de transformar a favela em cidade aliado à esse processo de renovação dos moradores da comunidade.
73
Imagem 36. Anúncio de apartamento na Vila Nossa Senhora de Fátima. Fonte: site OLX, acesso em 6 de junho.
Imagem 37. Anúncio de outro apartamento na Vila Nossa Senhora de Fátima. Fonte: site OLX, acesso em 6 de junho.
Imagem 38. Anúncio de apartamento na Vila Novo São Lucas. Fonte: site OLX, acesso em 6 de junho.
74
3.4. POMAR DO CAFEZAL: FAVELA E MERCADO EM FORMAÇÃO
O Pomar do Cafezal é uma das áreas de ocupação mais recente na Comunidade da Serra em área não demarcada como Zona Especial de Interesse Social (ZEIS), caracterizando esse local como o extremo de informalidade presente na favela. O estudo em questão toma como base entrevistas e registros feitos por alunos da Oficina Intetegrada de Arquitetura e Urbanismo da UFMG (OFIAUP) ministrada pelos professores Margarete de Araújo Silva (Leta) e Tiago Castelo Branco (professor a partir de 2016) aos moradores da área durante levantamentos arquitetônicos e urbanos16. O Pomar do Cafezal foi área de estudo da disciplina entre 2014 e 2017, período em que os estudantes fizeram exercícios de análise e levantamento tanto do contexto urbano da ocupação quanto de uma moradia do local. Tendo como base o Manual de Levantamento aplicado no exemplo da Casa da Flor, muitos alunos fizeram, além do levantamento espacial e geométrico da edificação, um levantamento histórico e familiar das 75
casas. Em seguida, elaboraram projetos de reforma e ampliação para atender às demandas das famílias. Sendo assim, o acervo da disciplina, com um total de 71 trabalhos, tem relatos dos moradores sobre o processo de ocupação da vila, desde a chegada da família na favela até os planos futuros de expansão da casa e comercialização de imóveis. Foram selecionados então alguns exemplos que evidenciam características do mercado informal de habitação, como os tipos imobiliários, as transações, documentações e outras características do mercado dessa vila em processo de consolidação. Pertencente a Fayal S/A, empresa de incorporação imobiliária, o terreno chegou a objeto de projeto de loteamento em 1948 mas não foi executado, supostamente devido à grande declividade do local. Sendo assim, esse espaço permaneceu desocupado por todo o século XX imune à expansão da cidade formal e, principalmente, à expansão das vilas que constituem a Comunidade da Serra. Apenas na década de 2000, iniciou-se o processo de ocupação irregular da região compreendida entre os bairros Santa Efigênia e as Vilas Cafezal, Nossa Senhora Aparecida, Nossa Senhora da Conceição e Novo São Lucas.
Vila Pomar do Cafezal Ocupação Pomar do Cafezal Edificações Comunidade da Serra Edificações Cidade Formal Parque Mangabeirase Mata da Baleia
76
77
Percebe-se que a ocupação é recente pelo padrão construtivo de algumas casas. A presença de barracos de madeirite construídos sobre a encosta indicam o caráter provisório das habitações, seja pela falta de recursos para a obra naquele momento ou pelo medo de investir e, em seguida, ter sua casa demolida pela Urbel. O Pomar é um exemplo em curso do estágio inicial do processo de formação tal como aconteceu no restante da Comunidade da Serra. Os casos levantados evidenciam como a existência de um mercado informal de terras e de habitação é responsável por regular o acesso à moradia desde o início desses assentamentos. Mesmo em um local com “lotes” vazios o que se percebe nas entrevistas é que, apesar de alguns moradores terem demarcado uma porção de terreno e se afirmarem proprietários perante o restante da favela, boa parte dos moradores passou por algum tipo de transação imobiliária para conseguir se instalar no Pomar do Cafezal.
Imagem 39. Barraco na Vila Pomar do Cafezal. Fonte: Facebook Vila Pomar do Cafezal.
A casa de Danielle e Augusto é um caso que não envolveu comercialização do lote. Além disso, Augusto critica a informalidade dos processos na comunidade porque alguns moradores demarcam lotes e se declaram donos sem um acordo com o restante dos
16. Os dados coletados passaram por uma sistematização feitas por mim e por Renata Elias como parte de projeto de pesquisa de monitoria e extensão em 2016. As edificações levantadas entre 2014 e 2016 foram georreferenciadas e geraram um mapa interativo com informações sobre a ocupação do Pomar do Cafezal.
Imagem 40. Vila Pomar do Cafezal em 2017. Fonte: Facebook Vila Pomar do Cafezal.
78
moradores. Possivelmente, existe a intenção de comercializarem essas terras ou construírem imóveis para venda ou aluguel tendo em vista o aumento cada vez maior da procura por habitação na área conforme a ocupação se consolida. Augusto defende uma mudança e conscientização da comunidade pois, segundo ele, as pessoas acham que podem agir da forma como bem entendem por morarem na informalidade. (PAIVA, Ana L. et al.; 2016)
Já Djalma e Joelma, por exemplo, haviam morado no Cafezal na década de 1990 e voltaram recentemente para a favela após comprarem, em 2008, um lote na esquina dos becos Piano e Guitarra em uma transação comercial firmada com contrato de compra e venda (FARIA, Pedro; 2015). Vale ressaltar que nesse momento a ocupação ainda era pouco adensada, com apenas algumas casas esparsas mas, supostamente, com lotes já demarcados e em comercialização pelo mercado imobiliário informal.
79
Outra característica relevante da ocupação do Pomar está na resistência da população em se manter no local após passar por uma tentativa de remoção e demolição
Imagem 41. Casa demolida pela Urbel na Vila Pomar do Cafezal. Fonte: Facebook Vila Pomar do Cafezal.
Imagem 42. Casa demolida pela Urbel na Vila Pomar do Cafezal e reocupada por Milena e Wandinho. Fonte: Facebook Vila Pomar do Cafezal.
17. Para mais informações sobre o processo acessar página do Facebook “Vila Pomar do Cafezal” e material disponível no site da disciplina OFIAUP – Assentamentos Precários disponível em: http:// ofiaup.wixsite.com/assentamentos.
de algumas construções tendo como argumento da prefeitura o risco de desmoronamento da encosta apoiado em falso laudo geológico da área17. Mesmo após algumas famílias terem sido removidas e suas habitações demolidas pela Urbel, o que se percebe é que em pouco tempo já havia uma reinserção dos imóveis no mercado imobiliário. Processo facilitado, em parte, pelas demolições incompletas das habitações. Assim, o novo comprador pode erguer sua casa sobre as ruínas deixadas pela Urbel e rapidamente reincorporála no ciclo de compra/venda de imóveis da comunidade, reaproveitando alvenarias, pilares e, principalmente, fundações das antigas casas. Além disso, os resíduos são constantemente reutilizados nas favelas para edificar novas casas, tornando os restos das habitações fonte de material de construção das novas moradias do Pomar do Cafezal. Um exemplo desse caso é a habitação ocupada, atualmente, por Milena e Wandinho. A casa atual é resultado da reconstrução da edificação demolida em parte pela Urbel, como demonstra a foto anterior às intervenções do casal. Danielle e Augusto, citados anteriormente, utilizaram para a construção de sua casa materiais de demolição em bom estado achados na região.
80
O mercado de aluguel também já se encontra desenvolvido no Pomar do Cafezal com uma produção de cômodos de aluguel prevista desde o planejamento das obras. Os imóveis geralmente compartilham os acessos e existe um grau de intimidade entre os vizinhos que se distancia bastante das edificações empreendidas pelo mercado imobiliário formal ou pelos novos empreendedores da favela. Isso fica claro com a proposta18 elaborada em 2015 para a casa do morador Alessandro Gomes, morador desde 2011 da comunidade. De acordo com entrevista feita durante o levantamento da edificação, foi elaborado um projeto de construção do segundo pavimento da moradia que seria destinado exclusivamente a dois “apartamentos” de aluguel. Outro exemplo, demonstra como tal prática está presente no planejamento da autoprodução das moradias e conforma um ciclo dentro do mercado informal com a passagem dos locadores à locatários. Entrevistado19 durante a OFIAUP em 2016, Bruno migrou de uma cidade do interior de Minas Gerais e alugava, até então, o andar de baixo da casa da cunhada, enquanto construía aos poucos sua própria casa em um terreno na mesma vila. Mesmo inacabada, já estava nos planos 81
Imagem 44. Projeto para ampliação do segundo pavimento da casa de Alessandro. Fonte: ZACARIAS, Larissa (2015).
Imagem 43. Projeto para ampliação do segundo pavimento da casa de Alessandro. Fonte: ZACARIAS, Larissa (2015).
do proprietário fazer expansões a fim de receber uma renda extra a partir do aluguel invertendo sua posição na cadeia produtiva do mercado imobiliário.
Imagem 45. Projeto para ampliação do segundo pavimento da casa de Alessandro. Fonte: ZACARIAS, Larissa (2015).
18. O projeto foi desenvolvido pelas alunas Larissa Zacarias e Clarissa Aburachid baseado no levantamento da edificação o qual auxiliei durante as medições. A atividade era parte da Oficina de Requalificação de Assentamentos Precários – UFMG. 19. Trabalho desenvolvido pelos alunos Artur de Almeida Souza, Eduardo Moreira Garcia e Leonardo Batista de Andrade em 2016 como atividade da Oficina de Requalificação de Assentamentos Precários – UFMG.
Assim, conclui-se que o Pomar do Cafezal já tem um mercado complexo mesmo marcado por processos de remoção recentes em 2013 relatados em página do Facebook “Vila Pomar do Cafezal”. Tal complexidade está relacionada com a proximidade da ocupação das vilas já consolidadas do entorno, origem possível dos posseiros que comercializam os lotes no mercado informal. A ocupação prossegue seu adensamento e conquista, aos poucos, sua consolidação em um recuo do poder público quanto às remoções. Mas ainda estão em situação de precariedade sem assistência da prefeitura, com redes de água e esgoto improvisados pelos moradores, ruas sem pavimentação e nenhum equipamento público de saúde e educação (necessidade suprida, por enquanto, pelos equipamentos existentes nas vilas do entorno).
82
83
4
Este capítulo aborda características atuais do mercado imobiliário da Comunidade da Serra, iguais, semelhantes ou diferentes das práticas do mercado imobiliário na cidade formal e em outras favelas. Há na favela certas convenções e preferências tanto daqueles que procuram por uma habitação quanto daqueles que colocam seu imóvel para venda ou aluguel. Com base nisso, é elaborado um panorama geral do mercado da comunidade para entender como o mercado é estruturado dentro Comunidade da Serra, desde escolhas na produção dos imóveis até o modo de circular as informações de compra/venda e aluguel das moradias.
CARACTERIZAÇÕES E DINÂMICAS DO MERCADO NA COMUNIDADE DA SERRA
As descrições foram feitas a partir de entrevistas com Flor e de observações feitas durante visitas à Comunidade da Serra. Será feita uma sistematização dos tipos de imóveis comercializados para demonstrar a variedade de opções disponíveis no mercado. Em seguida, supõe-se uma espacialização dos valores de acordo com características físicas das construções e características de localização dos imóveis que influenciam no preço de comercialização, principalmente na compra/venda das habitações. Enfim, são apresentados os modos de anunciar a comercialização dos imóveis na favela, desde o tradicional boca-a-boca até a recente utilização da internet para veicular as ofertas.
20. Frei Gilvander Moreira é padre da Ordem dos Carmelitas, teólogo, filósofo e assesor dos Movimentos Populares Urbanos e Ocupações Urbanas. Possui um canal no YouTube que divulga informações e entrevistas sobre as lutas por moradia.
Por último, é feita uma observação sobre o mercado de aluguel que passou por um desequilíbrio durante a execução das obras e as remoções do Programa Vila Viva. Com base nas entrevistas do Frei Gilvander Moreira20 com os moradores da Ocupação Nelson Mandela, discute-se a recente elevação e padronização dos preços de locação na Comunidade da Serra, responsável pela expulsão de muitos moradores da favela para bairros de periferia já que, devido à informalidade do mercado, não há uma regularização sobre reajustes do preço do aluguel firmada em contrato tal qual no mercado formal em que os preços variam ano a ano de acordo com índices econômicos, como por exemplo, o Índice Geral de Preços de Mercado (IGP-M). 84
4.1. OS TIPOS COMERCIALIZADOS NA FAVELA E A VALORIZAÇÃO DOS IMÓVEIS
A autoprodução das moradias e a ausência de documentações e registros em cartório possibilita aos moradores das vilas uma relação mais aberta em relação a sua propriedade. Além disso, há uma intimidade maior entre os vizinhos que permite muitas vezes o compartilhamento de espaços, acessos às edificações e quintais pouco comum no mercado formal. Sendo assim, os tipos de imóveis disponíveis na favela são variados e se relacionam com a estrutura familiar dos proprietários do terreno. Conforme já foi dito, uma família já estabelecida na Comunidade e dona de um lote geralmente tem em mente para um futuro próximo entrar para o mercado imobiliário a fim de garantir uma renda extra, construindo primeiramente uma unidade habitacional para locação. Isso pode acontecer de modos diversos que variam de acordo com os arranjos da família 85
e os espaços disponíveis. Assim, percebe-se que a necessidade dos moradores em reforçar a renda familiar via mercado imobiliário intensifica o adensamento da favela e incentiva o processo de verticalização dessas ocupações. O “puxadinho” geralmente é o primeiro passo para entrada nesse mercado, uma unidade habitacional pequena, geralmente com dois ou três cômodos (cozinha, sala e quarto costumam ocupar o mesmo cômodo e, um outro, é reservado para o banheiro), semelhantes à uma kitinet mas sem necessariamente uma separação total entre as atividades de dormir, comer, estar. Assim, com pouco dinheiro e certa rapidez é possível construir para aluguel e garantir uma renda extra. Além disso, em muitos casos, aproveitam-se alguns espaços inutilizados na construção da casa como por exemplo paliteiros ou subsolos tal qual foi mostrado na casa da Flor. Além disso, a qualidade ambiental desses espaços não é suficientemente considerada, tendo na maioria dos casos ventilação e iluminação deficientes, tanto pelo reaproveitamento de “vazios” quanto pela alta rotatividade desse tipo imobiliário.
Imagem 46. Ilustração de casa com terreno ainda desoupado. Fonte: produzido pelo autor.
Imagem 47. Ilustração de casa com puxadinho para aluguel. Fonte: produzido pelo autor.
Já as casas em terrenos que ainda têm espaço de quintal são bastante vantajosas e valorizadas na favela uma vez que esses espaços possibilitam a construção de uma unidade “independente”, não só para comercialização mas, em alguns casos, para suprir necessidades de expansão da própria família. Exemplo comum são casas vizinhas onde moram, de um lado os pais e, do outro, o filho ou a filha recémcasada. Essa reorganização de espaços em terrenos de dimensões pequenas faz com que o proprietário ceda em alguns pontos relativos à sua privacidade. Muitas vezes os acessos ou quintais são compartilhados ou então as aberturas de janelas são posicionadas de certo modo que permitem o contato entre as unidades, característica que fortalece as relações de vizinhança na favela. As casas são os tipos mais valorizadas no mercado de compra e venda também pela possibilidade de o comprador realizar novas expansões que adaptem a edificação às novas configurações familiares. Já unidades habitacionais construídas em um segundo pavimento são menos atraentes por restringerem as adaptações e são tipos colocados eventualmente para comercialização. Esses apartamentos, como 86
são chamados, são habitações “independentes” construídas sobre uma casa existente destinada, geralmente, a moradores de uma mesma família que, por algum motivo, se mudam e deixam o imóvel ocioso. Assim, passa a circular preferencialmente no mercado de locação já que, na maioria dos casos, há pouca separação entre os acessos e pouca liberdade para fazer reformas pelas limitações da própria edificação e pelos possíveis conflitos de interesses com a família vizinha.
87
Outro tipo bastante valorizado são aqueles que possuem, junto a residência, um ponto comercial ou que estão localizados em áreas de comércio com possibilidade para construir uma loja. O comércio é também uma alternativa para conseguir uma renda extra, seja pela locação ou pela possibiliade de abrir seu próprio negócio sem ter gastos com aluguel de um outro imóvel, combinando os espaços de trabalho e habitação. Além disso, segundo Flor, essas áreas são as mais valorizadas na favela. Os comércios ficam principalmente nas ruas Dr. Camilo, Serenata, Bandonion e, o encontro dessas vias constitui um centro comercial movimentado conhecido pelos moradores como “Volta” ou “Goiabal”, e apelidado pelos agentes da Urbel de “Savassinha”. Além destas, a rua Flor de Maio
Imagem 48. Ilustração do apartamento. Fonte: produzido pelo autor.
Imagem 49. Ilustração do ponto comercial. Fonte: produzido pelo autor.
e a Rua Nossa Senhora de Fátima também acomodam boa parte do comércio da comunidade.
Imagem 50. Ilustração da construção da garagem. Fonte: produzido pelo autor.
As obras de urbanização dos becos da Comunidade da Serra trazem consigo o transporte público e criam a possibilidade de os moradores adquirirem seus automóveis particulares, intensificada após incentivos fiscais durante os últimos anos para a compra de carros. Assim, esse meio de transporte individual se tornou comum na favela à medida que a cultura do carro próprio passou a atingir outras faixas de renda e os becos e ruas foram pavimentados. No entanto, algumas vias têm dimensões insuficientes para a passagem de um carro e, em outros casos, o imóvel está localizado em um beco de declividade acentuada ou num lote estreito que elimina a possibilidade da casa ser reformada para acrescentar um espaço de garagem. Essa não adaptabilidade fez surgir um novo tipo imobiliário na favela. Os estacionamentos são produzidos por moradores atentos à essa demanda, não mais de moradia, mas de abrigo para automóveis. Ao mesmo tempo, a garagem se torna um fator de valorização dos imóveis na favela assim como já acontece na cidade formal uma variação de preços de apartamentos de acordo com número de vagas na garagem. 88
89
Por fim, o tipo que abre mais possibilidades ao comprador é o terreno vago por oferecer à família possibilidade de construir o imóvel à sua maneira e não precisar colocar em discussão com vizinhos as alterações a serem feitas conforme os interesses da família se modificam. Apesar da ocupação da favela ser bastante densa existem ainda lotes vagos, principalmente na área de ocupação recente do Pomar do Cafezal e nas áreas demarcadas como parque ao redor do Córrego do Cardoso, reocupadas recentemente. Em alguns casos as fundações das casas demolidas são reutilizadas para dar origem a uma nova casa em um processo de resistência dos moradores por habitarem esses locais. Imagem 51. Casa demolida pela Urberl na Vila Pomar do Cafezal. Fonte: Facebook Vila Pomar do Cafezal.
90
4.2. ANÚNCIOS: POSTES, PLACAS E A INTRODUÇÃO DA INTERNET
91
Imagem 52. Anúncio em poste da Rua Nossa Senhora Aparecida. Fonte: foto do autor.
A maneira mais comum de divulgar um imóvel na favela para venda ou aluguel é através do “boca-a-boca”. A relação próxima entre os vizinhos facilita a troca de informações em geral e é uma característica importante na divulgação dos imóveis do mercado informal. Em estudos anteriores sobre o mesmo tema em favelas de São Paulo, mediadores foram identificados em parte das comercializações que, em troca da divulgação do imóvel, seja em conversas cotidianas ou em seu ponto comercial, por exemplo, recebem uma remuneração chamada de “caixinha”. Além disso, os meios de divulgação são mais diversos, através da Associação de Moradores ou por anúncio das ofertas nas rádios, conforme relata Baltrusis, em Paraisópolis, a outra forma de divulgação é o anúncio na ‘Rádio Paraisópolis’ e, na favela de Nova Conquista, “as pessoas procuram a associação para oferecer um imóvel para vender e a Associação indica aquele imóvel se houver algum interessado” (BALTRUSIS, 2000).
Pensa-se que na Serra, por ser uma comunidade já “consolidada”, a dinâmica de comercializações imobiliárias já estaria mais complexa, até com a presença de imobiliárias informais como nos casos descritos por Baltrusis. No entanto, a participação de agentes mediadores segundo Flor é praticamente nula. Os anúncios são feitos pelos proprietários que querem alugar ou vender seu imóvel e colocados em postes, na porta dos equipamentos públicos (escolas, creches, postos de saúde, entre outros), pontos de ônibus ou na fachada de imóveis, não necessariamente daquele que está sendo comercializado. Esses são pontos de grande movimento de pessoas que garantem a visibilidade do anúncio por um bom número de possíveis compradores ou locatários.
Imagem 53. Anúncio em imóvel na “Volta”, área comercial da Comunidade. Fonte: acervo da disciplina OFIAUP.
Esse mecanismo é comum a várias favelas como relata novamente Baltrusis em relação a Nova Conquista e Paraisópolis, “a divulgação dos imóveis é feita através de placas colocadas na própria casa ou espalhadas por vários pontos da favela” (BALTRUSIS; 2000). Apesar de haver a mesma prática no mercado formal, esse aspecto é relevante na Comunidade da Serra por revelar pouca abertura do mercado local para além das negociações diretas entre as partes interessadas. 92
Praticamente todos os postes tem anúncios colados, impressos ou manuscritos, que acabam por demonstrar essa preferencia de divulgação. No entanto, a internet tem se tornado um canal de divulgação dos imóveis do mercado imobiliário informal pela facilidade de acesso e publicação dos anúncios em sites e pelo alcance das informações para além da comunidade. Em uma rápida busca em sites de “compra e venda” é fácil encontrar imóveis em diversas vilas de Belo Horizonte para aluguel ou venda veiculados por pessoas físicas, ou seja, sem a atuação de uma imobiliária por trás. Os anúncios são acompanhados de fotos, telefones para contato e uma breve descrição, algumas mais detalhadas com metragem, localização e funções de cada cômodo de modo semelhante aos anúncios de sites de imobiliária. Mas chama atenção no material pesquisado a existência de um perfil (gerenciado possivelmente por uma equipe) que faz a divulgação de várias ofertas em favelas e bairros de Belo Horizonte, dentre eles a Comunidade da Serra. Com o nome de Marcos Xavier de Souza, tal perfil se descreve como vendedor “de casa, apartamento, barracão e lote tanto em bairro como 93
Imagem 54. Anúncio de casa na Rua Flor de Maio. Fonte: site OLX, acesso em 6 de junho.
em vila; caso queira vender seu imóvel só liga”. Supõese, então, que há um processo de complexificação do mercado imobiliário informal com a entrada de novos agentes nas dinâmicas comerciais e a inclusão de intermediadores nesse processo a partir da formação de imobiliárias virtuais. O anunciador já não é mais o proprietário dos imóveis mas sim um divulgador e mediador das transações imobiliárias. Esse modo de divulgação pode vir a alterar significativamente o mecanismo de entrada de novos moradores na Comunidade da Serra, uma vez que critérios de seleção dos locatários deixa de ser o parentesco ou a amizade com algum morador já estabelecido na favela e passa a ser regulado por contratos mais elaborados como nas imobiliárias. Assim, o enfraquecimento das relações de vizinhança tende a fragilizar a permanência de moradores antigos da comunidade pela transformação crescente da moradia em mercadoria tal qual já acontece na cidade formal.
Imagem 55. Perfil da imobiliária “Marcos Xavier de Souza”. Fonte: site OLX, acesso em 6 de junho.
94
4.3. CONSIDERAÇÕES SOBRE O MERCADO DE ALUGUEL
O mercado de aluguel atualmente diferencia-se do mercado de compra/venda quanto a formação dos valores de comercialização, geralmente havendo uma padronização dos preços. Com o início das remoção para as obras do Vila Viva, a Urbel adotou uma estratégia de reassentamento dos moradores na própria comunidade enquanto as obras dos “predinhos” estavam em andamento. Para isso, alugavam casas no mercado imobiliário informal a partir do pagamento de um valor padrão de R$500 como é explicado por uma moradora da Ocupação Nelson Mandela em uma entrevista21 feita pelo Frei Gilvander. Com isso foi estabelecido um valor acima do que era praticado na comunidade, o que conduziu a um aumento geral dos valores de aluguel das outras moradias que já estavam alugadas antes das intervenções do programa Vila Viva. Assim, alguns moradores tiveram que sair de suas casas pois não tinham mais condições de arcar com o súbito acréscimo no valor do aluguel para atingir 95
o teto estabelecido pela Urbel. Parte desses moradores se instalaram, então, nas áreas que passaram por remoção no entorno do Córrego do Cardoso, em um processo reverso do que foi planejado pela prefeitura. Isso demonstra a importância de se conhecer a dinâmica imobiliária das favelas para, então, elaborar e executar intervenções e programas de urbanização visto a fragilidade do mercado informal de locação pela informalidade dos “contratos de boca” que não possuem regras para os reajustes do valor do aluguel.
21. Entrevista disponível em: https://www.youtube.com/user/ fgilvander ; acessado em 17 de junho de 2018.
96
A formação de uma comunidade e o decorrente mercado imobiliário informal, de modo geral, são ainda assuntos pouco estudados ainda que muito importantes para entender dinâmicas socioespacias presentes nesses assentamentos. A Comunidade da Serra é, portanto, um exemplo capaz de revelar diversas relações e mecanismos resultantes da interação entre população, poder público e mercado imobiliário, seja ele formal ou informal, que orientam a ocupação de determinado sítio.
97
5
Sendo assim, foi demonstrado como arranjos políticos e econômicos conduzidos pela elite de Belo Horizonte foram responsáveis, desde a implantação da capital, pela formação de assentamentos informais que até hoje abrigam a classe trabalhadora. O descaso com a habitação faz parte da estrutura do arranjo produtivo aqui engendrado. As estratégias de remoção acabaram por multiplicar favelas e adensar aquelas que resistiram às ações de remoção por parte do poder público até que, na década de 1980, passaram a ser objeto de obras e intervenções, como que numa aceitação a contragosto dos bairros autoproduzidos na paisagem da cidade moderna planejada por Aarão Reis.
CONCLUSÃO E DESDOBRAMENTOS
Até os anos 2000, parece haver então uma mudança de mentalidade na qual a favela passa a ser tratada como parte da cidade e não como um problema a ser erradicado. Em vez de erradicá-la busca-se formalizála, incorporá-la à cidade formal. Problema esse gerado pelo próprio modo como a cidade foi planejada e a ocupação da zona urbana foi tratada pelo poder público em uma “entrega” dos lotes aos especuladores imobiliários que se estabeleciam na nova capital. No entanto, o que se percebe nas duas últimas décadas é um retrocesso nas questões de reurbanização, regularização fundiária e habitação social com estratégias perversas que acabam por enfraquecer as dinâmicas socioespaciais, as relações de vizinhança e a autoprodução dos espaços, tanto da edificação quantos do urbano. Tal processo vem acompanhado das mudanças identificadas no mercado imobiliário informal de habitações. Fica evidente como esse mercado é capaz de responder rapidamente às intervenções e mudanças feitas no espaço e dinâmicas sociais da comunidade, absorvendo novas demandas que refletem na permanência ou não dos moradores em determinado local. O insucesso dos predinhos, as ocupações do Parque das Três Águas e o novo mercado de kitinets
são exemplos dessas novas dinâmicas fomentadas pelas intervenções do Vila Viva. O programa que tem o objetivo discutível de transformar favela em cidade formal, ignora as diferenças claras de constituição da comunidade e acaba por expulsar a população instalada naquele local após um histórico de luta e resistência para garantir seu direito de morar. As remoções, a implantação de novo traçado viário e as obras de contenção são intervenções desrespeitosas que desarticulam os moradores e visam atender muito mais à necessidades da cidade formal sem conciliar as demandas reais da comunidade. Logo, a favela da Serra passa por um processo de desconsolidação no qual a insegurança de permanência da comunidade em suas casas abre espaço, através de mudanças no funcionamento do mercado informal de habitações, para uma substituição da população com a periferização da pobreza na Região Metropolitana. Este trabalho aponta diversas alterações no mercado imobiliário informal que merecem um estudo aprofundado para entender mais a fundo como se reorganiza atualmente a oferta e demanda por moradia na Comunidade da Serra e os agentes envolvidos nesse mercado. Levantamentos estatísticos da origem 98
e do tempo de moradia dos habitantes atuais a fim de entender a permanência das famílias nas vilas, dos preços de comercialização para compreender a valorização e a espacialização desses valores na comunidade, do grau de formalização de contratos, entre outros fatores poderiam revelar diversos movimentos e características das comercializações na favela que não foram abordados neste trabalho. Além disso, a partir de informações quantitativas seria possível traçar cenários futuros da Comunidade da Serra a fim de entender as consequências das intervenções recentes do Vila Viva. Estaria a comunidade passando por um processo similar ao da chamada gentrificação? Está em curso uma verticalização da favela? Se sim, quais os efeitos na vida da comunidade e na paisagem da cidade? E na infraestrutura instalada? E quais as mudanças nos tipos imobiliários e nos valores ofertados no mercado? Outras questões merecem ainda maior investigação. A suposta relação entre capital do tráfico de drogas e mercado imobiliário a partir de indícios observado em campo e entrevistas demonstram a fragilidade que o programa Vila Viva instaurou na favela. Ao intervir na comunidade e deixar espaços vazios em um local com 99
alta demanda por habitação, a prefeitura acabou por abrir espaço para o poder que o tráfico exerce naquele local e, ao que parece, agora, toma frente também na provisão de habitações para a população de baixa renda estabelecendo novas dinâmicas no mercado imobiliário. Relações essas estabelecidas entre forças discrepantes em que as negociações já não são mais feitas entre amigos ou parentes. Caberia questionar qual seria a posição dos agentes do tráfico quanto à crescente formalização da favela e sua possível perda de forças sobre o território. Ao mesmo tempo, o Parque das Águas do Cardoso, apesar de representar a remoção de dezenas de famílias, abre possibilidades para reestabelecer na comunidade uma relação com o meio ambiente urbano. Assim, poderiam ser resgatados conhecimentos e saberes da comunidade referentes à preservação das águas evidente nos nomes de diversas ruas e regiões da favela. Além disso, seria uma oportunidade de demonstrar como cidade e cursos d’água podem coexistir, combatendo a crescente invibilização das águas urbanas em Belo Horizonte e nas cidades brasileiras em geral.
Enfim, tais desdobramentos ainda por ser analisados e investigados com maior profundidade decerto permitiriam compreender melhor como uma favela se modifica ao longo do tempo quanto às mudanças de interesses de seus próprios moradores, às intervenções do poder público e aos interesse do mercado imobiliário formal. Entender a produção e a comercialização de habitação ajuda a desmistificar o olhar que a população em geral e a academia tem sobre esse tipo de assentamento urbano. Tratar a favela como um aglomerado de pessoas na mesma condição social e econômica que simplesmente ocuparam um terreno vazio conduz à distorções e erros de planejamento e gestão dessas áreas da cidade. Assim, a partir de uma análise mais aprofundada seria possível elaborar estratégias mais adequadas aos costumes e hábitos de morar das comunidades além de fortalecer laços de vizinhança e relações com o meio ambiente urbano em uma lógica de desenvolvimento voltada para a qualidade de vida da população e não para a acumulação de capital daqueles que não habitam a favela.
100
ABRAMO, Pedro; FARIA, Teresa. Mobilidade residencial cidade do Rio de Janeiro: considerações sobre os setores formal e informal do mercado imobiliário. In: Encontro Nacional de Estudos Populacionais da ABEP, 11, 1998, Rio de Janeiro. Anais (online). ABRAMO, Pedro. Favela e mercado informal: a nova porta de entrada dos pobres nas cidades brasileiras. Porto Alegre: ANTAC, 2009. (Coleção Habitare ; v. 10) BALTAZAR, A.; COSTA, M.; MELO, C.; CREVELS, E. Política Habitacional de Interesse Social em Belo Horizonte: projetos viários, investimentos nos capitais e remoções x melhoria das condições sócio-espaciais. In: Encontro Nacional da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional - ENANPUR, 17, 2017, São Paulo. Anais (online).
referências bibliográficas
BALTRUSIS, Nelson; ROLNIK, Raquel. A dinâmica no mercado imobiliário informal na Região Metropolitana de São Paulo: um estudo de caso nas favelas de Paraisópolis e Nova Conquista. 2000. Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade Católica, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Campinas, 2000.
BALTRUSIS, Nelson. Transformações do modo de morar nas metrópoles contemporâneas: novos discursos, velhos problemas. Caderno CRH, Salvador, v. 23, n. 59, p. 235-253, Maio/Ago, 2010. BALTRUSIS, Nelson. O mercado imobiliário informal em favelas na região metropolitana de São Paulo: o caso de Guarulhos. Cadernos Metrópole, n. 11, p. 107136, 1º sem. 2004. BARRETO. Abílio. Belo Horizonte: memória histórica e descritiva; história antiga e história média. 2a. ed. Belo Horizonte, Fundação João Pinheiro, Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1996. Publicado originalmente em 1928 (v.1) e 1936 (v. 2). BONDUKI, Nabil. Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da casa própria. 5ª edição. São Paulo: Estação Liberdade, 2011. BORSAGLI, Alessandro. Curral del Rey. Disponível em: http://curraldelrei.blogspot.com/. CAVALCANTI, Mariana. Do barraco à casa: tempo, espaço e valor(es) em uma favela consolidada. Revista
Brasileira de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 24, nº 69, fevereiro, 2009. CUNHA, Guilherme; TAVARES, Joana. Memórias da Vila: histórias dos moradores da comunidade da Serra. Belo Horizonte: Circuito, 2016. GUIMARÃES, Berenice. Cafuas, barracos e barracões: Belo Horizonte, cidade planejada. 1991. Tese (Doutorado em Ciências Humanas: Sociologia). Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1991. KAPP, Silke. A outra produção arquitetônica. In: Estéticas do Deslocamento. Belo Horizonte. Associação Brasileira de Estética, 2008. LIBÂNIO, Clarice. O fim das Favelas? Planejamento, participação e remoção de famílias em Belo Horioznte. São Paulo. Cadernos Metrópoles, 2016. MOVIMENTOS POPULARES (2008). BH-Progama Vila-Viva ou Vila-Morta? Disponível em: http:/www. midiaindependente.org/pt/blue/2008/10/429697. shtml. Acesso em: 25 de jun. 2018.
PLAMBEL. O processo de desenvolvimento de Belo Horizonte 1897-1970. Belo Horizonte: Superintendência de Desenvolvimento da Região Metropolitana de Belo Horizonte, v. 1 e 2, 1979. RIBEIRO, Luiz César. Dos cortiços aos condomínios fechados: as formas de produção da moradia na cidade do Rio de Janeiro. 2ª edição. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2015. SINGER, Paul. Desenvolvimento econômico e evolução urbana: análise da evolução econômica de São Paulo, Blumenau, Porto Alegre, Belo Horizonte e Recife. São Paulo: Editora Nacional, Editoria Usp; 1968. SILVA, Margarete Maria de Araújo; KAPP, Silke. Água em meio urbano, favelas nas cabeceiras. 2013. Tese (doutorado) - Universidade Federal de Minas Gerais, Escola de Arquitetura, Belo Horizonte. 2013. Disponível em : http://hdl.handle.net/1843/BUOS-98SK7A. Acesso em : 29 nov 2017. TRIANI, Frederico, MOTTA, Samira. Uma avenida em meu quintal. Disponível em: < https://www.youtube. com/watch?v=rlxKVtikzPw> Acesso em: 27 nov. 2017.