Louis Fischer
GANDHI
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CÍRCULO DO LIVRO S.A. Caixa postal 7413 São Paulo, Brasil
Edição integral Título do original: “Gandhi, his life and message for the world” Copyright © 1954, Louis Fischer. Renovado © 1982, Louis Fischer. Publicado mediante acordo com a New American Library, Inc., Nova York, EUA Tradução: Raul de Polillo Layout da capa: Anibal Monteiro
Licença editorial para o Círculo do Livro por cortesia de Martin Claret Editores Ltda.
Venda permitida apenas aos sócios do Círculo
Composto pela Linoart Ltda. Impresso e encadernado pelo Círculo do Livro S.A.
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ÍNDICE
Parte primeira DO NASCIMENTO À GRANDEZA 1 2 3 4 5 6 7 8 9
O mundo chora Menino atoleimado Gandhi em Londres Dois incidentes moldam o futuro Preconceitos de cor Coragem diante do ataque A transformação Alma-força Vitória feliz
Parte segunda GANDHI NAÍNDIA 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26
Ouvidos e bocas abertos O Mahatma Gandhi e os britânicos Sangue O caminho para o cárcere Jejuns de Gandhi Resposta a Moscou O sal da liberdade O faquir seminu Em Londres, de minus fours Filhos de Deus O mágico Pessoal Jesus Cristo e o Mahatma Gandhi Winston Churchill versus Mohandas Gandhi Minha semana com Gandhi Frustração e irritação Jinnah versus Gandhi
Parte terceira VITÓRIA E TRAGÉDIA 27 Procurando o divino no homem 28 Na véspera 29 Cabra-cega ao redor da amoreira 30 O nascimento de duas nações 31 Gandhi rastela o seu jardim 32 Amor sobre águas revoltas 33 A vitória é para quem está pronto a pagar-lhe o preço 34 Morte antes da prece
Parte primeira
Do nascimento Ă grandeza
1 O mundo chora À margem das águas sagradas do Jumna, perto de Nova Deli, quase meio milhão de pessoas esperou, ao sol, que a procissão fúnebre chegasse ao sítio da cremação. Predominava o branco — o branco dos sáris de algodão, das mulheres, bem como das vestimentas, dos capuzes e dos turbantes bulbosos, dos homens. Em Rajghat, a algumas dezenas de metros do rio, uma nova pira fora construída com pedra, tijolo e terra. Era um quadrado com uns dois metros e meio de lado, e cerca de sessenta centímetros de altura. Troncos finos e longos, de sândalo, borrifados de incenso, estavam empilhados sobre ela. O corpo do Mahatma Gandhi jazia em cima da pira, com a cabeça para o norte. Nessa posição, Buda encontrou o seu fim. Às quatro horas e quarenta e cinco minutos da tarde, Ramdas, terceiro filho do Mahatma, ateou fogo à pira funérea. Os troncos irromperam em labaredas. A vasta reunião humana emitiu
um
lamento
profundo.
Mulheres
gemiam;
homens
choravam. A madeira crepitou, fazendo borbulhar a sua umidade, e as labaredas se uniram num único incêndio. A seguir, houve silêncio. O corpo de Gandhi estava sendo reduzido a carvão e cinzas. Um dia antes, 30 de janeiro de 1948, um moço havia atirado e matado Mohandas K. Gandhi, líder da Índia. “Eu nunca vi Gandhi”, escreveu Léon Blum, antigo primeiro-
ministro francês. “Não conheço seu idioma. Nunca pus os pés em sua terra. E, contudo, sinto o mesmo pesar, como se eu houvesse perdido alguém próximo e caro. O mundo inteiro foi lançado à tristeza, devido à morte desse homem extraordinário.” Quando morreu, Gandhi era o que sempre fora: um cidadão comum, sem riqueza, sem bens de raiz, sem títulos, sem posição oficial, sem distinção acadêmica, sem realizações científicas. Não obstante, os chefes de todos os governos, exceto os do governo soviético,
e
os
cabeças
de
todas
as
religiões,
prestaram
homenagem ao homem esquelético e escuro, de setenta e oito anos de idade, envolto num pano que mal lhe chegava aos joelhos. O presidente Truman, o rei da Inglaterra, o presidente da França, o arcebispo de Canterbury, o papa Pio XII, o rabino-chefe de Londres, o dalai-lama do Tibete, e mais de três mil outras personalidades
estrangeiras
enviaram
mensagens
de
condolências, não solicitadas, à Índia. O Conselho de Segurança das Nações Unidas interrompeu as suas deliberações, para render tributo a Gandhi. Philip Noel-Baker, delegado britânico, louvou Gandhi como tendo sido “o amigo dos mais pobres, dos mais abandonados e dos perdidos”. “As grandes realizações de Gandhi”, declarou ele, “ainda estão por vir.” Outros representantes junto ao Conselho de Segurança enalteceram a devoção de Gandhi à paz, bem como as suas qualidades espirituais. As Nações Unidas baixaram sua bandeira a meio-pau. A humanidade baixou sua bandeira. Os que lamentaram aquela morte tinham consciência de alguns dos atributos do Mahatma. “Gandhi tornou a humildade e a verdade mais poderosas do
que impérios”, disse o senador norte-americano Arthur H. Vandenberg. “Não conheço outro homem, de qualquer época, e, com efeito, nem na história recente”, declarou Sir Stafford Cripps, estadista britânico, “que haja demonstrado, tão poderosa e convincentemente, o poder do espírito sobre as coisas materiais.”
O general George C. Marshall, então secretário de Estado dos Estados Unidos, tentando explicar a perda sofrida pelo mundo, disse: “O Mahatma Gandhi era o porta-voz da consciência da humanidade”. Os homens, as mulheres e as crianças souberam, ou sentiram, que, quando Gandhi tombou, por obra de três balas do assassino, a consciência da humanidade ficou sem porta-voz. A humanidade empobrecera, porque um homem pobre morrido. Ninguém, dentre
os que
lhe
havia
sobreviveram, havia
enfrentado poderosos adversários, em sua terra e no estrangeiro, com as armas da doçura, da franqueza, da honestidade, da humildade, da não-violência, nem, com essas armas apenas, havia ganho tantas vitórias. A sua história é uma narrativa de êxito desusado, com meios também inusitados.
2 Menino atoleimado Se Gandhi houvesse vivido na Índia há três mil anos, seu nascimento teria sido envolto em mitos, e sua juventude, em milagres. Mas a luz fria do século XIX mostra que a sua origem foi comum, a sua infância, normal, os seus dias de estudante, destituídos de acontecimentos, e a primeira fase dá sua carreira profissional, um fracasso. “A criança é que gera o homem.” E Mohandas, tanto o menino de escola como o adolescente, gerou, obviamente, o Mahatma; entretanto, ninguém poderia predizer
que isso ocorresse. Parecia ter pouca habilidade e menos ainda talento. Mohandas Karamchand Gandhi nasceu em 2 de outubro de 1869, em Porbandar, pequena cidade à beira-mar, na península de Kathiawar, na Índia ocidental, mais ou menos a meio caminho entre Bombaim e Karachi. Kathiawar ficava fora das rotas habitualmente seguidas, longe da influência européia; encontravase
ainda
dividida
em
grande
número
de
cidades-Estado,
governadas por príncipes nativos, que se comportavam como pequenos tiranos em face dos seus súditos, e como trêmulos sicofantas em presença dos ingleses. Porbandar (com uma população de 72 077 almas, pelo recenseamento de 1872) era um desses minúsculos domínios; Rajkot (com população de 36 770 almas), outro; e Vankaner (com população de 28 750 almas), um terceiro. Em épocas diferentes, em sua carreira, Karamchand Gandhi, pai do Mahatma, servira como primeiro-ministro do rajá, ou rana, desses pequenos reinos. Mohandas escreveu, anos mais tarde, que seu pai “não tinha instrução, salvo a decorrente da experiência”, e era até “inocente” quanto à história e à geografia; mas se conservara “incorruptível, e conquistara reputação de estrita imparcialidade, tanto no seio de sua família, como fora dela”. Ademais, acrescentava o filho, “ele amava o seu clã, dizia sempre a verdade, era bravo e generoso, mas irritadiço”. Karamchand, o político, casou-se com Putlibai, moça hindu, devota e iletrada. Mohandas, quarto e último filho do casal, lembrava sempre a santidade de sua mãe, bem como a sua natureza profundamente religiosa. Putlibai assistia aos serviços do templo todos os dias, e nunca tomava refeições sem fazer sua prece. Os longos jejuns não a desencorajavam. Durante as
chaturmas anuais — espécie de quaresma que durava toda a estação chuvosa de quatro meses —, ela tomava habitualmente apenas uma refeição por dia; num determinado ano, ademais, ela observara jejum um dia sim, um dia não. A família era abastada. Karamchand possuía casa em Porbandar, outra em Rajkot, e outra em Kutiana. Karamchand usava um colar de ouro, e um irmão de Mohandas tinha um pesado bracelete de ouro maciço. Mohandas dispunha de uma ama própria, e era dono de uma concertina. Na escola, em Porbandar, Gandhi achou difícil aprender a conta de multiplicar. “Meu intelecto deve ter sido preguiçoso, e minha memória, não-desenvolvida”, escreveu o Mahatma sobre si mesmo, na qualidade de aluno da escola primária. Um ano mais tarde, quando a família se mudou para Rajkot, ele era “estudante medíocre”, mas muito pontual. O menino Mohandas era muito tímido. “Meus livros e minhas lições constituíam os meus únicos companheiros”, recordou ele, quando adulto. Ao fim do horário escolar, corria para casa. Faltavam-lhe a confiança e a iniciativa de falar com quem quer que fosse. “Eu tinha até medo de que alguém zombasse de mim.” Ao ficar mais velho, entretanto, fez amizades, e brincava tanto nas ruas como à beira-mar. Rodava pião e brincava com balões de borracha. Fez-se quieto e obediente. “Eu aprendera a cumprir as ordens dadas pelos mais velhos, não a analisar-lhes as ações.” Não obstante, começou a fumar às escondidas, com a idade de doze anos, furtando dinheiro de seus pais e dos seus irmãos mais velhos, a fim de comprar cigarros.
De uma feita, ele e um jovem parente souberam que as sementes de uma planta da floresta, denominada datura, eram venenosas. Por isso, os dois se uniram num pacto de suicídio que os deveria livrar para sempre do domínio dos pais. Impelidos pela intuição do dramático, decidiram morrer no templo. Os dois foram, de fato, ao santuário, com as sementes mortais no bolso. No último instante, porém, faltou-lhes a coragem. Por uma questão de respeito para consigo mesmos, cada qual engoliu duas ou três sementes e voltou para casa. A seguir, assuntos sérios reclamaram a atenção do menino. Mohandas Karamchand Gandhi casou-se na idade de treze anos, quando era aluno do segundo ano do curso ginasial. A noiva, Kasturbai, também tinha treze anos de idade. Os respectivos progenitores haviam feito o contrato nupcial, mas nada lhes disseram enquanto os preparativos para as núpcias não ficaram prontos. “A
esposa
de
meu
irmão
já
me
havia
instruído
completamente, quanto à minha conduta”, escreveu Gandhi, quarenta anos após o acontecimento. “Não sei quem foi que instruiu minha mulher.” Os dois estavam nervosos; e “aquela instrução não podia levar-me longe”, acrescentou ele. “Mas nenhum esclarecimento é realmente necessário, em tais assuntos. As impressões do nascimento anterior
são suficientemente
poderosas e tornam supérflua toda orientação.” “Duas crianças inocentes, de todo ignorantes, se atiraram no oceano
da
vida”,
presumivelmente
apenas
com
as
suas
experiências de uma encarnação anterior para as guiar. Assim Gandhi descreveu “o cruel costume do casamento na infância”. O costume fizera-se possível devido à instituição indiana da família conjunta, em cuja vigência os pais, seus filhos, as esposas e os
filhos de seus filhos, muitas vezes montando a trinta ou mais pessoas, viviam dentro da mesma casa. Os adolescentes recémcasados, como Mohandas e Kasturbai, portanto, não tinham motivos para se preocupar quanto à moradia, à mobília ou à alimentação. (Posteriormente, o governo britânico elevou a idade mínima para o casamento.) “Não perdi tempo, assumi logo a autoridade de marido”, recordou o sr. Gandhi, quando já crescido. “Kasturbai não podia sair sem minha permissão.” Assim, quando Kasturbai, de treze anos de idade, queria brincar na rua, via-se obrigada a pedir permissão a seu marido, de treze anos de idade; e ele lhe dizia, freqüentemente, que não, pois era ciumento. Ela, porém, era teimosa, “fazia questão cerrada de sair,
quando
e
para
onde
bem
entendesse”.
Ele,
conseqüentemente, mostrava-se “cada vez mais aborrecido”; por vezes, os dois passavam dias sem se falar. “Naqueles
tempos”,
Gandhi
mais
tarde
admitiu,
“eu
costumava ser acossado pelo medo de ladrões, de fantasmas e de serpentes. Não ousava sair à noite.” Sua jovem esposa não sentia temores dessa ordem. “Eu me sentia envergonhado de mim mesmo”, escreveu ele. Gandhi era baixo e magro; não apreciava o críquete nem a ginástica, que eram coisas obrigatórias no ensino secundário. Mas lera que caminhar ao ar livre fazia bem à saúde; por isso, desenvolveu esse hábito. “Essas caminhadas me proporcionaram uma constituição razoavelmente robusta.” Mesmo assim, ele invejava os rapazes grandes e fortes; principalmente um amigo muçulmano, o xeque Mehtab, que se distinguia na corrida em distância, bem como no salto, seja em altura,
seja em extensão.
Essas realizações deslumbravam
Gandhi, tanto quanto o deslumbrava também a reputação de que o xeque gozava, de poder segurar serpentes vivas em suas mãos, de não temer ladrões e de não ter medo de fantasmas. O que é que explicava semelhante bravura? O xeque comia carne. A religião de Gandhi proibia-lhe isso. Nunca havia tocado em carne. Embora o domínio britânico na Índia se operasse indireta e quase imperceptivelmente, em Kathiawar, os colegas de escola de Gandhi já haviam aprendido a respeitar e a fazer oposição aos ingleses. Recitavam um poema que dizia:
“Contemple o inglês poderoso; Ele governa o pequeno indiano, Porque, sendo comedor de carne, Tem cinco cúbitos de altura”.
Fosse porque desejasse expulsar os ingleses, ou melhorar a sua própria força física e a sua coragem, Gandhi finalmente sucumbiu
às
tentações
do
xeque
Mehtab;
dirigiu-se,
em
companhia dele, a um lugar oculto, à margem do rio, onde Mohandas mastigou e tornou a mastigar a carne cozida de cabra que o xeque levara consigo; por fim, engoliu-a. Sentiu-se mal imediatamente. Na noite desse dia, sonhou vezes seguidas com uma cabra viva a berrar no seu estômago. Não obstante, afigurouse-lhe que “comer carne era para ele um dever”; e cumpriu-o durante um ano, no recanto secreto, em companhia do xeque. Depois a dissimulação e a insinceridade lhe causaram repulsa; e ele abandonou o consumo de carne, até a época em que pôde retomá-lo em público, após a morte de seus pais. Comer carne fez parte da revolta de Gandhi contra a religião. Desagradava-lhe a “pompa resplendente” dos templos indianos, e
confessava que não tinha “fé viva em Deus”. “Quem fez o mundo?”, perguntava. “Quem o dirige?” Ninguém lhe dava uma resposta satisfatória — nem mesmo os livros sagrados que consultava. Em conseqüência, ele se inclinava “um tanto para o ateísmo”. Conservando, porém, a mente aberta, ouvia os freqüentes debates de seu pai com amigos muçulmanos, parses e jainistas, que iam à sua casa para discutir diferenças entre os seus credos respectivos e o hinduísmo. O jainismo, seita reformada do hinduísmo, proíbe a matança de todo ser vivo. Os sacerdotes jainistas usam máscaras de gaze branca sobre a boca, para não aspirar, e, portanto, matar qualquer inseto; pressupõe-se, ademais, que eles não saíam à noite, ou no escuro, para não pisar, inadvertidamente, em algum verme. A influência jainista era forte, em Kathiawar; e Gandhi, espírito sempre aberto, embebeu-se de algumas idéias, tanto jainistas como budistas, durante a sua breve rebelião contra o hinduísmo. O pai de Gandhi, Karamchand, morreu em 1885, depois de uma enfermidade que durara vários anos, e em conseqüência da qual os bens da família se haviam reduzido; o pai deixou poucas posses. Assim, apresentou-se o problema da formação profissional de Mohandas. Gandhi demonstrava interesse pela medicina. Mas seu irmão lhe recordava sempre a objeção paterna à dissecção de cadáveres. Não
seria
melhor
estudar
advocacia?
O
avô
de
Gandhi,
Uttamchand, fora primeiro-ministro de Porbandar, e transmitira o cargo ao filho Karamchand, que por sua vez o passara ao irmão, Tulsidas. O posto era quase uma propriedade de família; e, se Mohandas
se
fizesse
advogado,
ficar-lhe-ia
praticamente
assegurado o posto de primeiro-ministro de seu Estado natal. Entretanto, sendo indeciso, Gandhi tinha medo da lei. Conseguiria
ele ser aprovado nos exames? Nessa conjuntura, um amigo da família sugeriu que um curso rápido, de três anos, na Inglaterra, lhe apresentaria as melhores promessas de êxito profissional e político. A perspectiva de uma permanência no exterior emocionou Gandhi. Um tio, que então passara a ser o chefe da família, objetou dizendo que os advogados formados na Europa se vestiam “tão desavergonhadamente como os ingleses”, desprezavam as tradições indianas, e nunca se apresentavam sem um charuto na boca. Mesmo assim, desde que Putlibai concordasse, daria sua permissão para a viagem. Putlibai alimentava suas dúvidas quanto à moral dos moços na Inglaterra. A essa altura, um monge jainista, chamado Becharji Swani, prestou sua colaboração, impondo a Gandhi o juramento de que não tocaria em vinho, mulher ou carne. Houve alguma dificuldade quanto aos fundos, até que Laxmidas, irmão mais velho de Mohandas e advogado, tomou a iniciativa de os proporcionar. Juntos, os dois viajaram para Bombaim, onde Gandhi deveria tomar o navio para a Inglaterra. Novos aborrecimentos surgiram. Os Gandhi eram membros da subcasta modh bania; e, quando os modh bania de Bombaim souberam da projetada viagem de Mohandas para o exterior, protestaram. Nenhum modh bania jamais estivera na Inglaterra, afirmavam os mais velhos, porque o hinduísmo não podia ser ali praticado. Gandhi, porém, em atitude de desafio, disse-lhes, numa de suas reuniões, que partiria. O chefe da subcasta, à vista disso, colocou-o no ostracismo, dizendo: “Este rapaz deve ser tratado como um fora-de-casta, a partir de hoje”. Resoluto, Gandhi comprou uma passagem marítima, uma curta jaqueta britânica, uma gravata e alimentos bastantes — principalmente frutas e doces — para as três semanas de viagem
até Southampton. Embarcou em 4 de setembro de 1888, um mês antes do seu décimo nono aniversário. Uns poucos meses antes, Kasturbai lhe havia dado um filho, e os dois puseram o nome de Harilal.
3 Gandhi em Londres Gandhi foi fotografado em Londres, assim que lá chegou. Na fotografia, seus cabelos são pretos, bastos e cuidadosamente repartidos um pouco para o lado direito. As orelhas são grandes. O nariz, grande e pontudo. Os lábios e os olhos são impressivos. Os olhos parecem espelhar confusão, espanto e emocionada perturbação; parecem estar se movendo em busca de alguma coisa. Os lábios são grossos, sensuais, tristes, defensivos. Gandhi tem a aparência de um homem sem rumo, nem objetivo, que foi ferido ou tem medo de ferir-se. Seu semblante é o de uma pessoa que teme as lutas vindouras, tanto as interiores como as do mundo exterior. Está como que a querer saber se poderá dominar suas paixões, se conseguirá provar seu valor. A vida britânica era muito estranha aos olhos do jovem Gandhi. Sua autobiografia registra a tentativa e o fracasso na tarefa de ajustar-se a ela. Gandhi comprou um chapéu alto, sapatos com elástico nas laterais, calças listradas, um fraque, uma bengala com castão de prata, camisas de seda e luvas de couro. Pagou dez libras por um traje a rigor, feito sob medida na Bond Street, e aplicou três libras em lições de dança. “Eu não podia seguir o piano”, confessou ele, “nem executar
qualquer coisa parecida a movimento rítmico.” Na esperança de educar o ouvido para a música, comprou um violino e contratou um professor. Pouco tempo depois, vendeu o instrumento. Um esforço semelhante, no sentido de aperfeiçoar a dicção, terminou de maneira igualmente rápida. Gandhi sempre ansiou por se colocar em harmonia com seu ambiente. Esta é a razão pela qual, anos mais tarde, adotou como traje o lençol enrolado folgadamente até os joelhos. Dezenas de milhões de camponeses indianos não usam coisa alguma, além disso.
Em
Londres,
Gandhi
andava,
reconhecidamente,
“macaqueando os cavalheiros ingleses”, supondo que isso pudesse elevar-lhe a posição social e colocá-lo em sintonia com o que ele, equivocadamente,
considerava
a
nota
dominante
da
vida
britânica. Ao mesmo tempo, opunha forte resistência à acomodação. Seus conhecidos ingleses insistiam em que ele comesse carne, mas ele se recusava a romper o juramento que fizera à mãe. Na verdade, Gandhi tornou-se zeloso vegetariano, e, depois de alguma hesitação, acabou rejeitando até os ovos e os pratos preparados com ovos, porque figuravam na lista do banimento da carne: os ovos eram criaturas potencialmente vivas. Essa privação adicional e a conseqüente monotonia da dieta eram compensadas pela “satisfação interior, marcadamente mais saudável, delicada e duradoura” do que o alimento, que ele fruía por observar o voto. Gandhi aprendeu a cozinhar; sua sopa de cenouras era uma especialidade. Doces e especiarias continuavam a chegar, por mar, mandados por sua família, que se encontrava na Índia. Ele pediu que as remessas fossem suspensas; começou a comer e a gostar de espinafres e de outras hortaliças, sem tempero. “Muitas
experiências
dessa
ordem”,
observou
ele,
“ensinaram-me que a verdadeira sede do sabor não está na língua, e sim na mente.” E Gandhi começou, com isso, a notável tarefa, que lhe durou a vida toda, de modificar a própria mente. Outras transformações estavam se registrando. Ele já havia atravessado “o Saara do ateísmo”, e emergira sedento de religião. Encontrou-se com a sra. Helena P. Blavatsky e a sra. Annie Besant e leu seus livros sobre teosofia, mas não se converteu; preferiu o hinduísmo. Um vendedor inglês de bíblias o persuadiu a ler o Velho e o Novo Testamento. O Levítico e os Números o entediaram, e ele não prosseguiu na leitura (até a época em que, como mahatma, deleitou-se com os Profetas, os Salmos e o Eclesiastes). Achou o Novo Testamento mais interessante; e o Sermão da Montanha “foi direto ao meu coração”... “não resistais ao que é mau; mas se alguém te ferir na tua face direita, apresenta-lhe também a outra”... “bem-aventurados os mansos”... “bem-aventurados os que sofrem perseguição por amor da justiça”... “concorda rapidamente com o teu adversário”... “perdoa aos homens as suas ofensas”... “não queirais acumular para vós tesouros na terra”... “porque onde está o teu tesouro, aí está também o teu coração”. Estas palavras de Cristo “deleitavam” o futuro mahatma. Recordavam-lhe o Bhagavad-Gita, o livro sagrado dos hindus, que, envergonhado, admitia não haver lido antes do seu segundo ano como estudante de direito, em Londres. Isso lhe produziu um enorme impacto, que repercutiu por toda a sua vida. “Quando as dúvidas me acossam, quando as desilusões me fitam em pleno rosto, e quando não vejo sequer um raio de esperança no horizonte”, escreveu ele, na sua revista semanal, Young India, de 6 de agosto de 1925, “volto-me para o BhagavadGita e acho um verso para me confortar; e começo imediatamente
a sorrir, em meio a um aborrecimento acabrunhador.” Mahadev Desai,
que
foi
por
muitos
anos
secretário
testemunha que “todos os momentos da
do
vida
Mahatma, de
Gandhi
constituem um esforço consciente no sentido de viver a mensagem do Gita”. Gandhi denominava-o “livro de referência espiritual”. O Bhagavad-Gita, ou Canção celestial, é um fino poema, de setecentas estâncias, a propósito da ciência e da prática da ioga. Obra anônima escrita, na opinião dos eruditos, entre os séculos V e II a.C., o Gita é uma conversação de campo de batalha entre o seu herói, Krishna, que é venerado na Índia como um deus, e Arjuna, chefe de uma facção numa famosa guerra civil. “Krishna”, diz
Sir
Sarvapalli
Radhakrishnan,
o
filósofo
hindu,
“é
a
encarnação humana de Vishnu, o Deus Supremo.” A narrativa da vida de Krishna na terra mistura lenda com nebulosos fatos históricos. Deus — diz a narrativa — encarnou-se a Si mesmo no ventre da irmã de um rei indiano; e Krishna nasceu, portanto, sem interferência do homem. Mas o rei, temendo o aparecimento de um rival, ordenara que todas as crianças recém-nascidas, de sangue real, fossem entregues à morte; e Krishna foi, por isso, transferido secretamente, por mão divina, para a família de um humilde pastor, substituindo uma sua filhinha. O menino Krishna derrotou todos os esforços do mundo infernal feitos para o destruir. De uma feita, durante uma inundação, ergueu uma montanha com seu dedo mindinho e sustentou-a no ar durante sete dias e sete noites, a fim de que o povo pudesse salvar-se e a seus animais. Sem cogitar que ele fosse divino, todas as moças da aldeia o amavam, e dançavam com ele. Ao atingir
a
adolescência,
Krishna
matou seu tio tirano,
conquistando fama universal. Por fim, retirou-se para uma floresta, onde um caçador, tomando-o por uma rena, atirou-lhe
uma flecha no calcanhar. Quando o caçador se aproximou e reconheceu Krishna, foi acometido pela dor; mas Krishna sorriu, abençoou-o e morreu. O Gita começa com Krishna no campo de batalha, servindo na qualidade de cocheiro desarmado de Arjuna. Do lado oposto se encontram os primos reais de Arjuna, aguerridos na contenda fratricida. Arjuna é avesso a todo combate. Diz a Krishna:
“Tenho pressentimentos infelizes, ó Keshava, E não vejo nada de bom em abater parentes em combate. Não procuro vitória, nem poder soberano, nem alegria terrenal. De que servem o poder soberano, os prazeres terrenais, E mesmo a vida, para nós, ó Govinda?”
Keshava e Govinda figuram entre os muitos nomes de Krishna. Sobrepujado pela repulsa pelo assassinato de seus próprios parentes, Arjuna anuncia: “Eu não lutarei”. Krishna adverte-o:
“Tu pranteias aqueles que não devias prantear E proferes palavras vãs de sabedoria. O sábio não pranteia nunca Nem os vivos, nem os mortos. Porquanto nunca deixei de ser; nem tu, nem estes reis, Nem qualquer de nós deixará de ser, daqui por diante”.
A morte, em outros termos, pouco importa; a alma, ou atmã, Krishna explica, é imortal e inatingível pelas armas de destruição de uso do homem. Dando à alma a denominação esta, Krishna
diz:
“Esta nunca nasce, nem, passando a ser, Jamais volta ao não-ser; não nascida, eterna, perpétua, Antiga, Esta não é abatida quando o corpo é abatido... Assim como um homem joga fora vestimentas puídas, e veste outras que São novas, assim também as Estas encarnadas jogam fora corpos Gastos, e passam para outros, que sejam novos”.
Sucintamente, essa é a doutrina hindu da transmigração da alma. Krishna acrescenta:
“A Esta, nenhuma arma fere; a Esta, nenhum fogo queima; a Esta, Nenhuma água molha; a Esta, nenhum vento resseca... Porque é certa a morte de quem é nascido, e certo É o nascimento do morto; conseqüentemente, tu não deves lamentar O que é inevitável”.
Além disso, acentua Krishna, Arjuna é membro da casta guerreira hindu, a dos Kshatriyas, e é seu dever lutar. A interpretação hindu ortodoxa do Gita, que o considera um apelo divino às obrigações de casta e à matança, afigurava-se inadmissível a Gandhi; e mesmo quando ele leu pela primeira vez o livro, em Londres, em 1888-89, classificou-o como uma alegoria em que o campo de batalha é a alma, sendo Arjuna o conjunto dos impulsos superiores do homem, lutando contra o mal. Em todo
caso, Arjuna sente-se, ainda assim, intrigado e confuso pelo argumento de Krishna, segundo o qual, visto que a morte do corpo não é morte, ele não precisa hesitar em ir à guerra. Que haveria a ganhar? Krishna responde:
“Para mim, ó Partha, nada há a fazer Nos três mundos; nada há que valha a pena ser ganho, Que eu não tenha ganho; contudo, Nunca estou em ação”.
O ideal é a ação numa justa causa, sem privilegiar o pensamento. Krishna diz:
“Considera iguais o prazer e a dor, o ganho e a perda, A vitória e a derrota; e ajaeza teus flancos para o combate; Assim fazendo, não incorrerás em pecado”.
Este é um aspecto da ioga: desprendimento na ação. Krishna diz:
“Atua, ó Dhananjaya (Arjuna), sem apego, Seguindo à risca a ioga, Mantendo o espírito sempre igual, no êxito e no fracasso; A imperturbabilidade da mente é ioga”.
Krishna descreve o iogue como sendo a pessoa
“Cujo espírito se conserva imperturbado na tristeza, E não anseia por alegrias; que é livre de paixão,
De medo, e de ira. Essa pessoa é denominada Ascética, de compreensão segura. O homem que se despe De todos os anseios, e que se locomove Sem preocupação, livre do sentido do Eu e do Meu, Esse alcança a paz”.
Existem iogues que meditam e iogues que agem. O iogue de ação é o iogue carma. O Mahatma Gandhi foi um iogue carma. Num comentário ao Gita, Gandhi definiu o perfeito iogue carma: “É devotado quem não tem ciúmes de ninguém; quem é fonte de bondade; quem não tem egoísmo; quem é desprendido de si; quem dispensa o mesmo tratamento ao frio e ao calor, à felicidade e à infelicidade; quem está sempre perdoando; quem se mostra sempre satisfeito; aquele cujas resoluções são firmes; quem haja dedicado mente e alma a Deus; quem não causa pavor; quem não tem medo dos outros; quem é livre de exultação, de tristeza e de receios; quem é puro; quem é versado em ação e contudo se conserva não influenciado por ela; quem renuncia a todo fruto, bom ou mau; quem trata por igual amigo e inimigo; quem não é atingido pelo respeito, nem pelo desrespeito; quem não se envaidece com o elogio; quem não se diminui quando o povo fala mal dele; quem ama o silêncio e a solidão; quem tem raciocínio disciplinado. Tal devoção é incompatível com a existência, ao mesmo tempo, de fortes apegos”. Gandhi resumiu-a em uma frase: “Ausência de desejo”. Ausência de desejo, ou renúncia hindu — é o que se tem objetado —, é coisa que conduz à indiferença pessoal, à passividade, à pobreza nacional e à estagnação. Gandhi replicava — ao contrário — que o agir, ao mesmo tempo em que se renuncia a todo interesse nos frutos da ação, é o melhor caminho para o êxito. “Aquele que está sempre levando em consideração o resultado”, escreveu Gandhi, “fica freqüentemente com os nervos abalados no cumprimento do dever. Torna-se impaciente e então dá vazão à zanga, começando a fazer coisas indignas; passa de
uma ação a outra, sem se conservar fiel a qualquer delas. Aquele que se preocupa com o lucro é como o homem entregue aos objetivos dos sentidos; está sempre sendo levado para longe de sua meta; diz adeus a todos os escrúpulos; tudo está certo na sua estimativa; e socorre-se, portanto, de meios bons e condenáveis, para atingir o seu fim.” A renúncia — se a gente é capaz dela — cria a paz interior, a serenidade
necessária
verdadeiramente
para
duradouros,
que
se
mesmo
consigam em
se
resultados
tratando
de
resultados materiais, não maculados por meios indecorosos. Para o praticante excepcional da autonegação reserva-se um prêmio especial. Krishna declara:
“Mas há uma recompensa única. Os grandes iogues, Os mahatmas, ou grandes almas, assim que chegam a Mim, Atingem a perfeição mais elevada; eles não voltam Ao nascimento, que é transitório e prenunciador de sofrimento”.
Assim, a mais alta recompensa do iogue está em se fazer tão firmemente unido a Deus, depois da morte, que não precisa voltar ao estado de homem migrador e mortal. Várias vezes, em sua vida, Gandhi manifestou a esperança de não nascer outra vez. Os mahatmas são raros. A ausência de desejo é um ideal que poucos, na Índia, ou em qualquer outra parte, atingem, ou mesmo a que aspiram; mas o jovem hindu, recitando o Bhagavad-Gita várias vezes por mês, talvez mais freqüentemente ainda, em casa ou no templo, torna-se consciente de suas injunções e pode ser inspirado, no limiar da existência, a ponderar a finalidade da vida. Isso aconteceu, sem dúvida, a Gandhi, e exerceu influência sobre
sua vida inteira. O interesse de Gandhi no Bhagavad-Gita, juntamente com o seu obstinado vegetarianismo, refletia a sua saudade da Índia. Ele precisava sentir-se identificado com o meio; entretanto, suas principais relações na Inglaterra eram um grupo de vegetarianos idosos, ferrenhos, que, ao que ele declarou mais tarde, “tinham o costume de não falar de coisa alguma a não ser de comida ou doença”. Seus estudos representavam uma necessidade aflitiva, um degrau para uma profissão; e dedicou-lhes apenas umas poucas linhas em suas reminiscências. Gandhi foi admitido ao Templo Interior e à Universidade de Londres; fez cursos de francês, de latim, de física, de química; melhorou seu inglês; leu direito romano e direito comum. Chamado ao foro em 10 de junho de 1891, inscreveu-se no Supremo Tribunal no dia 11 de junho; e, sem passar sequer mais um único dia na Inglaterra, zarpou para Bombaim em 12 de junho. A vida começou, para Gandhi, depois da faculdade. Em sua revista semanal, Young India, de 4 de agosto de 1924, ele escreveu que os seus dias de escola ocorreram antes do tempo “em que... eu comecei a vida”. Os dois anos e oito meses passados na Inglaterra significaram uma fase de formação e devem ter deixado sua marca. Sua influência, porém, foi provavelmente menor do que seria de esperar. Porque Gandhi não era o tipo do estudante comum. Era um realizador; ganhava conhecimento, confiança e estatura, através da ação. Os livros e as pessoas exerceram, por certo, influência sobre ele. Mas o verdadeiro Gandhi, o Gandhi da história, não emergiu, nem sequer sugeriu sua existência nos anos escolares. Pouco, talvez, deverá ser esperado do fraco indiano de província, transplantado, na verde idade dos dezenove anos, para a Londres metropolitana. Contudo, o contraste entre o
bacharel em direito M. K. Gandhi, medíocre, inexpressivo, inibido, hesitante, que deixou a Inglaterra em 1891, e o Mahatma do século XX, que se tornou líder de milhões de pessoas, é tão grande, que sugere que, até o momento em que o serviço público passou a explorar suas enormes reservas de força de vontade, de intuição, de energia, de autoconfiança e de devoção a uma causa, sua verdadeira personalidade permaneceu adormecida.
4 Dois incidentes moldam o futuro Quando Gandhi regressou à Índia, seu filho Harilal tinha quatro anos. Sua mãe havia morrido; não lhe haviam mandado a triste notícia, porque sabiam o quanto ele a amava. Sua esposa, Kasturbai, era uma linda e jovem mulher, e ele se sentiu mais ciumento dela do que nunca. De uma feita, os dois tiveram uma briga tão séria, que ele a embarcou, de Rajkot, para a casa dos pais dela, em Porbandar. Como advogado, Gandhi fracassou, tanto em Rajkot como em Bombaim. Nesta última cidade, teve uma causa de dez dólares, mas mostrou-se tão tímido que nem sequer abriu a boca no tribunal; e cedeu a procuração a um colega. Começou, então, a realizar tarefas judiciárias eventuais para o príncipe reinante de Porbandar. Laxmidas, seu irmão mais velho, seguindo as pegadas do pai e do avô, trabalhava como secretário e conselheiro do herdeiro do trono de Porbandar, e parecia estar na fila para ocupar o posto de primeiro-ministro de seu pequeno reino natal. Havia, porém, feito oposição ao agente político britânico, de quem
seu destino dependia. Mohandas havia encontrado esse agente, casualmente, em Londres. Laxmidas, portanto, pediu a seu irmão que fizesse uma visita ao agente, e intercedesse junto dele, a seu favor. Gandhi não achou correto fazer isso, mas cedeu à insistência do irmão. O agente esclareceu que, se Laxmidas houvesse sofrido injustiça, poderia apelar através dos canais competentes. Gandhi insistiu; o agente ordenou-lhe que se retirasse; e como Gandhi prosseguisse com seus argumentos, o assistente do agente, ou o seu mensageiro, agarrou o suplicante e pô-lo porta afora. “O choque deste incidente”, escreveu Gandhi em sua autobiografia, “mudou o curso de toda a minha vida.” Pela primeira vez, sua vida tivera, pelo menos, uma direção negativa: ele
ficou
sabendo
o
que
não
desejava
fazer.
O
episódio
intensificou-lhe o horror à intriga baixa, à pompa palaciana, à subserviência, ao servilismo que permeava os governos dos pequenos principados de Kathiawar. Não se faria um sicofanta bajulador. Aquilo envenenava o caráter. E ele desejou vivamente subtrair-se àquela injunção. Precisamente nessa época, uma firma de muçulmanos de Porbandar se ofereceu para o enviar à África do Sul, por um ano, na qualidade de seu advogado. Gandhi aceitou. “Eu desejava, de uma forma ou de outra, deixar a Índia”, admitiu ele, com tristeza. Havia já quase dois anos que deixara Londres; e era um fracasso; por isso, resolveu “tentar a felicidade na África do Sul”, disse ele. Logo após a sua chegada à África do Sul, Gandhi envolveuse num segundo incidente, que resultou em derrota e expulsão. Dessa vez, sua vida tomou uma direção positiva. Uma demanda judiciária exigiu a presença de Gandhi em Pretória, capital do Transvaal. Ele tomou o trem para a viagem
noturna e entrou num compartimento de primeira classe, com a passagem. Em Maritzburg, na província de Natal, um homem branco entrou no compartimento, olhou para o intruso escuro, e retirou-se, para reaparecer um momento depois, com dois funcionários da estrada de ferro, que ordenaram a Gandhi que fosse para o vagão de bagagens. O indiano protestou, mostrando sua passagem de primeira classe; mas eles disseram que ele tinha de sair. Gandhi ficou. Em conseqüência, os funcionários foram buscar um policial, que o atirou e às suas malas na plataforma da estação. Muitos anos após, o dr. John R. Mott, missionário norteamericano na Índia, perguntou ao Mahatma Gandhi: “Quais foram as experiências mais criativas de sua vida?” Gandhi contou-lhe, então, a experiência por que passara em Maritzburg. Poderia ter voltado ao trem e ocupado um lugar na terceira classe. Preferiu ficar na sala de espera da estação. O pessoal da estação tomou-lhe a bagagem e o sobretudo. Fazia frio nas montanhas; mas ele não iria pedir aquilo a que tinha direito; por isso, ficou sentado a noite toda, tremendo e meditando. Esses
dois
episódios
fizeram
o
homem;
contudo,
é
igualmente verdade que o homem produziu os episódios. Outros indianos haviam sido expulsos de compartimentos, devido a objeções opostas à sua presença ali, por um homem branco; e haviam aceito acomodações mais modestas. “Você não pode dar cabeçadas contra uma parede de pedra”, aconselharam-no seus compatriotas, na manhã seguinte. Quando, porém, Gandhi se defrontou com a injustiça, em Maritzburg, não se curvou; recebeu, por isso, uma punição que poderia ter sido evitada; daí, entretanto, surgiu a resolução de dar
combate à terrível doença representada pelo preconceito de cor. A intransigência e o sofrimento pessoal iluminavam o princípio em questão, e acentuaram sua necessidade de lutar por ele. Em vez de permanecer um ano na África do Sul, como advogado, Gandhi ali ficou de 1893 a 1914 — vinte e um anos, durante os quais não apenas ampliou sua figura moral e intelectual, mas também se transformou em líder e advogado de grande projeção. Ao fim, obteve uma grande vitória para a liberdade. Naquela noite gélida, na sala de espera da estação de Maritzburg, o advogado indiano, de vinte e quatro anos de idade, começou a considerar-se um Davi lutando contra o Golias da discriminação racial. Por que, Gandhi? Que foi que o pôs em marcha, de Maritzburg para a grandeza mundial? Terá querido ser moralmente forte, por ser fisicamente fraco? Ter-se-á sentido menos agrilhoado e mais ambicioso, pelo fato de sua carreira, até então, não haver produzido bons resultados? Terá percebido a existência de talentos latentes e observado que eles poderiam emergir, mas somente se devotados ao serviço social? Terá sido aquilo sorte, destino, hereditariedade, o Bhagavad-Gita, ou alguma outra circunstância imensurável? Talvez alguns elementos disso, mais o orgulho, a indignação moral e um sentimento de inadaptação se haja combinado, no sentido de o encaminhar para a liderança. O agente britânico de Porbandar e o policial branco de Maritzburg eram símbolos de sua fraqueza, bem como da fraqueza de seu povo; e ele se ressentia disso. Sempre que Gandhi se sentia inquieto, ou perturbado, desejava fazer alguma coisa para superar a situação. Na presença do mal, tinha de agir. Nunca o satisfizeram os simples meneios de cabeça, nem o mero torcer das mãos. A passividade repugnava-lhe. Não havia sequer uma única fibra passiva em seu caráter; e toda a sua resistência era ativa.
5 Preconceitos de cor Uma semana após o incidente de Maritzburg, Gandhi convocou uma reunião dos indianos de Pretória, e proferiu um discurso sobre a discriminação dos brancos. Aquela foi sua primeira fala pública. O zelo para com a causa dissolvera-lhe a timidez e soltara-lhe a língua. O auditório compunha-se de mercadores muçulmanos e alguns hindus. As declarações de Gandhi apresentaram a característica, mesmo naquela primeira fase, de sua singular capacidade de liderança. Ele instigou os ouvintes a dizer a verdade nos negócios, a adotar hábitos mais higiênicos, a esquecer diferenças de religião e de casta, e a aprender o inglês. Visto que seu objetivo era conseguir um tratamento condigno para os indianos da África do Sul, estes precisavam, em primeiro lugar, melhorar a si mesmos e acabar com seus próprios maus hábitos. Freqüentemente, com efeito, Gandhi se interessou mais pela promoção dos recursos humanos do que pela consecução de fins políticos. Em que é que o homem se beneficia, ao ser elevado o seu estado, quando ele mesmo não se eleva? Os fins almejados por Gandhi eram, na verdade, meios para a obtenção de melhores recursos, de um homem melhor. Ele sempre procurava exaltar o indivíduo; por conseguinte, “sempre constituiu mistério, para mim”, escreveu ele em sua biografia, “como os homens podem sentir-se honrados pela humilhação dos seus semelhantes”. Talvez ele soubesse a resposta: alguns homens se sentem melhor quando elevam seus semelhantes, e outros,
quando lhes dão pontapés e os humilham. É a diferença entre o benfeitor e o fanfarrão, entre o mahatma e o ditador. A perseguição, seja por parte das minorias, seja pelas maiorias, resulta da intolerância em face das diferenças, bem como de receios baseados na falta de autoconfiança. Num mundo de competição, a maior parte dos homens não gosta de rivais, de não-conformistas,
de
dissidentes
e
de
opositores.
Muitos
defensores das minorias, em conseqüência, visavam impor a minoria à maioria. Gandhi cometeu o mesmo erro. Lionel Curtis, chefe do Departamento Asiático da República do Transvaal — departamento então recém-constituído para cuidar dos assuntos dos indianos —, relata que Gandhi o procurou e começou “a tentar convencer-me dos aspectos positivos de seus compatriotas, de sua diligência, de sua frugalidade, de sua paciência”. “Sr. Gandhi”, respondeu-lhe Curtis, “o senhor está pregando ao convertido. Não são os defeitos dos indianos que os europeus, neste país, receiam; são as suas virtudes.” E visto que, em outras situações, os defeitos são dados como justificativa para a discriminação, nem as virtudes, nem os defeitos, são decisivos; a discriminação requer a cura dos discriminadores. Gandhi empreendeu isso também. Através da purificação, tanto dos opressores como dos oprimidos, ele esperava contribuir para o progresso moral do homem. Gandhi reconhecia que os brancos, na África do Sul, pensavam que precisavam de proteção contra a maioria composta de negros e de indianos. A província de Natal, em 1896, tinha 400 000 habitantes negros, 51 000 indianos e 60 000 brancos. A colônia do Cabo da Boa Esperança tinha 900 000 negros, 10 000 indianos e 400 000 europeus; a República do Transvaal, 650 000 negros, 5 000 indianos e 120 000 brancos. Em 1914, os cinco
milhões de negros superavam, indiscutivelmente, o milhão e um quarto de brancos. Ao que se afigurava, os brancos receavam que os indianos pudessem conferir a chefia aos negros. Ou, talvez, que os indianos, sendo imigrantes e em menor número do que os negros, constituíssem alvo mais fácil de atacar. Os indianos começaram a ir para a África do Sul em 1860, como trabalhadores contratados, para cultivar as plantações de cana-de-açúcar, chá e café, de propriedade dos ingleses, onde os negros relutavam em ir trabalhar. Os indianos chegavam como servos a prazo fixo, pelo período de cinco anos. Às vezes, permaneciam, na qualidade de trabalhadores livres, por outros cinco anos. Em qualquer dos casos, o contratador pagava a viagem de regresso à Índia. Com freqüência, entretanto, os trabalhadores
contratados
consideravam
suas
condições
ali
melhores que as que teriam na Índia, e preferiam continuar na África do Sul, na qualidade de homens livres. Preocupados com o número crescente de indianos radicados, bem como com sua afluência, porquanto eram trabalhadores tenazes, hábeis e parcimoniosos, os brancos modificaram os regulamentos, em 1894; daí por diante, toda pessoa contratada passou a ter de regressar à Índia, ao expirar seu primeiro período de cinco anos de serviço, ou a incluir-se na categoria de servo, na África do Sul, pelo resto da vida. Uma cláusula de evasão dispunha que essa pessoa poderia permanecer, na qualidade de trabalhador livre, desde que pagasse uma taxa anual de três libras, por si mesma e por cada um dos seus dependentes; visto, porém, que isso era proibitivamente caro, as alternativas de fato eram ou a repatriação ou a escravatura permanente. Também havia emigrantes livres que se dirigiam da Índia
para a África do Sul e ganhavam a vida como bufarinheiros, comerciantes, artesãos ou profissionais liberais, como Gandhi. Alguns adquiriam propriedades consideráveis. Alguns indianos possuíam até linhas de navios a vapor. Esses indianos livres eram súditos de sua majestade britânica, a rainha Vitória; e os que podiam satisfazer as qualificações de riqueza (duzentos e cinqüenta, para sermos exatos), tinham o direito de votar. Em 1894, um ano depois da primeira chegada de Gandhi à África do Sul, o Legislativo de Natal aprovou uma lei despojando explicitamente os asiáticos de franquias. Muitas restrições se impunham aos indianos; na província de Natal, todo indiano tinha de levar consigo um passe, para sair à rua depois das vinte e uma horas. O Estado Livre de Orange, república implantada pelo bôeres, ou colonizadores holandeses, proibia aos indianos a posse de propriedades, dedicar-se a negócios e trabalhar na lavoura. Na colônia da coroa de Zululândia, os indianos eram proibidos de comprar ou possuir terra. No Transvaal, os indianos tampouco tinham direito de possuir terra; além disso, tinham de pagar uma taxa de três libras pelo alvará de residência — mas a residência estava limitada aos cortiços. Algumas comunidades, na colônia do Cabo, proibiam os indianos de caminhar nas calçadas. Mesmo onde tais restrições não existiam, os indianos evitavam os passeios das ruas, porque podiam ser empurrados para fora deles. Gandhi foi empurrado, uma vez. Contudo, os comentários das leis descreviam os indianos como “asiáticos semibárbaros”. “Eles nos tratam como a animais”, exclamou Gandhi, num comício, em Madrasta, em 26 de outubro de 1896, no decorrer de breve visita à sua terra natal.
Como a Guerra dos Bôeres havia sido levada a efeito de 1899 a 1902, entre os colonizadores holandeses e os ingleses, sendo ganha por estes últimos, os dois contendores trataram de curar suas feridas, como é freqüentemente o caso, com o bálsamo proporcionado pela desgraça de um terceiro. A questão indiana, na África do Sul, tornou-se, conseqüentemente, um futebol político. Jan Christiaan Smuts, general e advogado bôer, que, depois da derrota dos bôeres se tornou ministro das Finanças e da Defesa da África do Sul, declarou, num discurso eleitoral, em outubro de 1906: “O câncer asiático, que já penetrou tão fundamente nas partes vitais da África do Sul, deve ser resolutamente erradicado”. O general Louis Botha, igualmente um antigo general bôer, posteriormente elevado ao posto de primeiro-ministro, tornou mais específico o plano antiindiano do governo; em janeiro de 1907, num comício eleitoral, declarou: “Se o meu partido voltar ao poder, empreenderemos a expulsão dos coolies para fora do nosso país dentro de quatro anos”. “Coolies” era o termo insultuoso aplicado aos indianos. A existência de mais de cem mil indianos estava em jogo. Gandhi acreditava que poderia salvá-los.
6 Coragem diante do ataque Gandhi não esperava desarraigar os preconceitos dos brancos. “Os preconceitos”, escreveu ele no Times of India, de 2 de junho de 1918, “não podem ser removidos por meio de legislação...
Eles cedem somente diante de um trabalho paciente e de educação.” Nem tinha ele esperanças de acabar rapidamente com a segregação. Os indianos, declarara, “sentem o ostracismo, porém o suportam silenciosamente”. Sua contenda contra os sulafricanos era motivada pelo fato de estes “incentivarem o preconceito, legalizando-o”. Pelo menos as leis devem ser justas, pleiteava ele. Gandhi não previa a aplicação razoável das leis; os brancos seriam sempre favorecidos. Mas, uma vez que o princípio de igualdade legal se estabelecesse, ele se contentaria em deixar que a vida surgisse de seu complicado emaranhado e em confiar em que os bons cidadãos a iluminassem. Se, entretanto, os indianos aceitassem, deitados de barriga para o ar, a sua inferioridade, o mesmo aconteceria aos brancos que impusessem a inferioridade. Tendo estado longe de sua família e de seu lar indiano, durante três anos, e percebendo que seu trabalho contra a discriminação exigia sua presença na África do Sul, por um longo período, Gandhi regressou à Índia em 1896, a fim de buscar Kasturbai, Harilal (que agora estava com oito anos de idade) e o seu segundo filho, Manilal, nascido em 28 de outubro de 1892. Aproveitou a oportunidade para informar seus compatriotas sobre a luta de seus irmãos na África do Sul. Essas atividades, comunicadas à África do Sul, despertaram ressentimentos tão amargos que, quando o navio em que Gandhi viajava atracou em Durban (um segundo barco chegara da Índia, ao mesmo tempo. E tanto
este
barco,
como
aquele
em
que
Gandhi
viajara,
transportavam oitocentos passageiros), Gandhi foi acusado de inundar o país com indianos não desejados. Na verdade, Gandhi nada tinha a ver com a chegada desses passageiros. Os brancos exigiram que os dois navios voltassem à Índia com sua carga
humana.
Quando,
finalmente,
os
passageiros
receberam
permissão para desembarcar, Gandhi foi atacado por uma multidão hostil. Pedras, tijolos e ovos foram atirados contra ele; o turbante foi-lhe arrancado da cabeça, e ele foi surrado e pisado. Gandhi ia desmaiar de sofrimento, mas agarrou-se à grade de ferro de uma casa, e permaneceu de pé. Homens brancos continuaram a vibrar-lhe socos no rosto e pancadas no corpo. Nesse momento, a sra. Alexander, esposa do superintendente municipal da polícia, passou por ali; colocou-se entre a multidão enlouquecida e o infeliz Gandhi. Ferido e sangrando, ele foi levado à casa de um indiano amigo, para a qual a sra. Gandhi e os dois meninos já se haviam dirigido. Grupos ululantes cercaram a casa e pediram que Gandhi lhes fosse entregue. Então, a sra. Alexander apareceu em cena. A multidão queria o sangue de Gandhi. “Vamos queimá-lo”, gritavam os populares. Nos intervalos mais calmos, eles cantavam: “E nós enforcaremos o velho Gandhi na macieira de frutos azedos”. Alguns elementos se prepararam para atear fogo à casa. Alarmado, o superintendente da polícia enviou, secretamente, dois detetives ao interior da casa. Um deles deu a Gandhi seu uniforme e seu capacete; a seguir, os dois detetives pintaram-se de escuro e vestiram-se como indianos. Assim disfarçados, os três fugiram pelos fundos da casa e, percorrendo o caminho através de ruas laterais, entregaram Gandhi ao distrito de polícia, onde ele permaneceu durante três dias, até que os ânimos se acalmassem. Quando a notícia desse frustrado linchamento chegou a Londres, o sr. Joseph Chamberlain, secretário de Estado britânico para as Colônias, remeteu instruções às autoridades de Natal, a fim de que processassem os atacantes. Gandhi conhecia vários
dos seus assaltantes, mas recusou-se a agir contra eles. Disse que aquilo não era culpa deles; era culpa da comunidade e do governo; e ele não processaria ninguém. “Esta é uma questão religiosa contra mim”, declarou ele, pondo em prática, desse modo, o “autocomedimento”. Dois anos depois, Gandhi apresentou-se como voluntário para organizar um corpo de padioleiros e de enfermeiros, destinado a servir do lado dos britânicos, na Guerra dos Bôeres. O governo de Natal recusou o oferecimento. Não obstante, Gandhi e outros indianos começaram um treinamento, a suas próprias expensas, na tarefa de enfermeiros. O governo recusou-se de novo a utilizar os serviços dos indianos. Mas os bôeres estavam avançando; os mortos empilhavam-se nos campos de batalha; e os feridos
careciam
de
tratamento
adequado.
Finalmente,
as
autoridades sancionaram a formação de um Corpo Indiano de Ambulância. Trezentos indianos livres se alistaram, além de oitocentos trabalhadores contratados, que tiveram para isso o consentimento dos seus patrões. A África do Sul e a Inglaterra recompensaram-nos com aplausos, aos quais acrescentaram a admiração quando tiveram notícias do corajoso comportamento dos indianos durante a luta. Em Johannesburg, pelas colunas da lllustrated Star, de julho de 1911, o sr. Vere Stent, editorialista britânico, publicou um artigo a propósito do sangrento encontro de Spion Kop, em janeiro de 1900. O general Buller, comandante britânico, estava sendo rechaçado; enviou, por isso, um despacho urgente, pedindo que os indianos socorressem os feridos. Gandhi encaminhou-se, à frente de seus homens, para o campo de batalha. Durante vários dias, sob o fogo dos canhões inimigos, os indianos carregaram soldados lamuriosos para o hospital da base.
“Depois de uma noite de trabalho, que havia derreado homens de arcabouço muito maior”, lembrou o sr. Stent, “encontrei-me com Gandhi, pela manhã, bem cedo, sentado à beira da estrada, comendo um biscoito. Todos os homens, na tropa de Buller, se mostravam apáticos e deprimidos, soltando imprecações sobre todas as coisas. Mas Gandhi mantinha-se estóico em seu comportamento; mostrava-se alegre e confiante em suas conversações e via tudo com bons olhos. Ele realizou uma boa obra.” Gandhi envergava um uniforme cáqui; usava chapéu de feltro de cowboy de abas amplas, e braçadeira com o emblema da Cruz Vermelha; e usava um bigode caído. Quando o Corpo Indiano foi dissolvido, recebeu menção nos despachos; Gandhi e vários dos seus companheiros foram condecorados com a Medalha de Guerra. Gandhi esperara que a fortaleza de ânimo dos indianos, na guerra, tocasse o senso de justa consideração dos sul-africanos, e moderasse a hostilidade dos brancos contra os asiáticos de cor. Ao contrário, a tensão cresceu. Não obstante, Gandhi se juntou ao exército britânico, com um pelotão de vinte e quatro padioleiros e ajudantes sanitaristas indianos, quando começou a rebelião zulu, na primeira metade do ano de 1906. Apresentou-se como voluntário, disse ele, porque “o império britânico existia para o bem-estar do mundo”, e porque ele tinha “um senso genuíno de lealdade para com esse império”. Durante esses anos passados na África do Sul e nos intervalos transcorridos na Índia, Gandhi revelou uma energia inquebrantável, uma inexaurível capacidade para se indignar, uma franqueza que inspirava confiança e um pendor especial para travar facilmente relações pessoais, tanto com os humildes,
quanto com os poderosos. Deu provas de ser um organizador excelente e um líder eficaz. O grande Gandhi da história, entretanto, estava apenas germinando, e até tinha dado pequenas mostras disso.
7 A transformação Na África do Sul, Gandhi vestia terno europeu, colarinho duro e de pontas, camisa branca engomada, gravata de listras alegres e sapatos lustrosamente polidos. Em Durban, alugou uma villa inglesa, num setor aristocrático da praia. Ganhava, por ano, de cinco mil a seis mil libras esterlinas, ou de vinte e cinco mil a trinta mil dólares, com os seus trabalhos de advogado; e, no conjunto, sua vida se assemelhava à de um indiano europeizado pela constante imitação do mundo dos brancos. Contudo,
ele
tinha
idéias
estranhas.
Quando
nasceu
Ramdas, seu terceiro filho, na África do Sul, em 1897, tomou a seu cargo o menino; e, tendo estudado um livro de obstetrícia, intitulado
Conselho
a
uma
mãe,
assistiu
como
parteira,
pessoalmente, o nascimento do seu quarto filho, Devadas, em 22 de maio de 1900. “Eu não estava nervoso”, relatou ele. Gandhi deve ter sido um aborrecimento constante para Kasturbai, no recesso de seu lar. Não somente interferia na cozinha e no cuidado com as crianças, mas também mantinha generosamente inúmeros pensionistas gratuitos, prestava-lhes serviços humildes e forçava Kasturbai a fazer o mesmo. Não havia água corrente na casa; cada quarto dispunha de um urinol para
uso noturno. Gandhi recusava-se a empregar um “intocável”, ou “varredor”, desses que, na Índia, fazem todos os serviços “pouco limpos”. Ele, Kasturbai e, por vezes, os rapazes mais velhos cuidavam dos urinóis. Ele insistia; ela não tinha alternativa. Mas um pensionista, empregado no escritório de advogado de Gandhi, era um antigo intocável que se fizera cristão para fugir às terríveis privações que os hindus infligem aos seus párias, ou elementos fora-de-casta. Para Kasturbai, hindu ortodoxa, entretanto, esse pensionista continuava a ser ainda um intocável; e ela relutava em cuidar de seu urinol. Na verdade, nutria horror a tudo aquilo, e não via razão para que ela própria, ou seu marido e seus filhos devessem fazer aquelas coisas. Ele, porém, considerava-as parte da sua educação e, por vezes, ela chorava até ficar com os olhos vermelhos. Isso o enervava. Não somente ela devia praticar aqueles atos humildes, como também devia fazê-los alegremente; e quando ele a via chorando, gritava-lhe, como ele próprio declarou: — Não admito uma estupidez dessas em minha casa! — Fique você com sua casa e deixe que eu me vá! — exclamava ela. Gandhi agarrou-a, de uma feita, pela mão, arrastou-a até o portão, abriu-o, e esteve na iminência de expulsá-la. — Você não se envergonha? — soluçou ela. — Para onde é que irei? Não tenho pais, nem parentes, aqui. Pelo amor dos céus, Contenha-se e feche o portão. Que não sejamos vistos fazendo cenas como esta! Isso o fez voltar a si. Gandhi era de índole violenta; e sua posterior calma de mahatma foi produto de longo treinamento no controle de seu temperamento. Não foi com facilidade que se tornou um iogue de mente serena, inteiramente despido de desejos. Teve de moldar-se a si mesmo de novo. Reconhecendo
suas deficiências, fez um esforço consciente no sentido de superar-se, de modificar-se e de conter-se nos momentos de impulsos negativos. Transformou-se em outra pessoa. Constituiu um caso notável de segundo nascimento durante uma única vida. A transformação começou na África do Sul, e o resultado foi um homem refeito por si mesmo. Em 1896, nas vésperas de uma excursão à Índia, a comunidade indiana da África do Sul oferecera-lhe muitos presentes pessoais, que ele aceitara sem constrangimento. Mas quando um tesouro em jóias, inclusive um colar de ouro para Kasturbai, lhe foi presenteado, em 1901, ao tempo em que planejava regressar a Bombaim, passou uma noite insone, atormentado e hesitante entre o anseio de segurança — que o pequeno monte de diamantes, pérolas, rubis e brincos de ouro lhe proporcionaria — e o desejo de conseguir liberdade pela renúncia à posse de bens materiais. Finalmente, resolveu desfazer-se daquelas jóias. Os protestos de Kasturbai de nada valeram. Os presentes foram utilizados na criação de um fundo em benefício dos indianos da África do Sul. Em Bombaim, em 1901, um agente norte-americano de seguros visitou Gandhi, a fim de lhe vender uma apólice. “O homem”, diz Gandhi, “tinha uma figura agradável e fala mansa.” Discutiu o futuro de Gandhi, “como se fôssemos velhos amigos”. Na América, declarou o agente, “uma pessoa como vós sempre faz seguro; a vida é incerta”. A seguir, atingindo o tendão de Aquiles de Gandhi, o agente declarou: “É vosso dever religioso fazer um seguro”. Gandhi inclinava-se a confiar mais em Deus do que numa companhia de seguros; mas o norte-americano loquaz sacudiu a fé do futuro mahatma, e conseguiu vender-lhe uma apólice de cinco
mil dólares.
Dois anos depois, de volta à África do Sul, Gandhi mudou de idéia. Costumava dedicar trinta e cinco minutos matutinos aos
cuidados de si próprio: vinte minutos para tomar banho e quinze minutos para escovar os dentes, antigo hábito indiano; durante essa prolongada massagem oral, decorava os versos do BhagavadGita. Novamente impressionado pela sua doutrina de “ausência de posses”, deixou caducar a apólice de seguro. “Deus cuidaria da família.” A transformação estava em marcha. Mais ou menos a esse tempo, Gandhi travou relações com um vegetariano britânico, Henry S. L. Polak, assistente do diretor do Transvaal Critic. Certa noite, quando Gandhi estava tomando o trem, Polak emprestou-lhe um exemplar do livro Até as últimas de John Ruskin, ensaísta e crítico de arte inglês. Gandhi ficou sentado a noite inteira, lendo-o. “Aquele livro”, disse ele, em outubro de 1946, “assinalou o ponto decisivo da minha vida.” Sem perda de tempo, Gandhi resolveu instalar-se numa comunidade e viver de maneira simples. Nada, naquela obra, poderia ter sugerido, necessariamente, semelhante conduta. O caso é que Gandhi simplesmente se encontrava prestes a dar um passo de retorno à natureza; e uma passagem do livro de Ruskin cristalizara sua determinação. Freqüentemente lia, nos textos, o que desejava que os textos dissessem. Sendo um leitor criativo, fazia-se co-autor da impressão que qualquer livro lhe produzisse. Punha no livro coisas suas, e retirava-as de lá, com interesse. “Era um hábito meu”, escreveu ele de uma feita, “esquecer aquilo de que eu não gostava, e pôr em prática aquilo que me agradava.” Tendo interpretado Ruskin, Gandhi adquiriu imediatamente uma propriedade de uns cem acres, perto de Phoenix, Natal, por mil libras esterlinas, e transferiu para lá as oficinas e a redação da revista semanal Indian Opinion, que ele passara a dirigir vários meses antes. Ele e a família viviam, nessa época, ora em
Johannesburg, onde ele prosseguia desenvolvendo sua ampla atividade de advogado, ora trabalhando na Comunidade Phoenix, onde todas as pessoas ajudavam a imprimir a revista e a cultivar mangueiras e laranjeiras. O problema da austeridade, isto é, de contentar-se com pouco, e do autocontrole, preocupava cada vez mais o espírito de Gandhi. Passou a jejuar, como sua mãe, sempre que se apresentasse ocasião para isso; nos outros dias, subsistia com duas refeições frugais de nozes e frutas, sem especiarias nem tempero. Na comunidade, iniciou uma pesquisa, que se estendeu por toda a sua vida, em busca de uma dieta que, ao mesmo tempo que sustentasse a vida do homem animal, lhe erguesse a alma acima desse estado. Nós não vivemos, pensava ele, com a finalidade de alimentar, vestir, abrigar ou satisfazer o corpo; nós contentamos o corpo a fim de viver. A vida começa depois que as necessidades do corpo estão satisfeitas; contudo, quanta gente arruína sua vida por viver em opulência. A alma, infelizmente, precisa de uma morada temporária; mas uma cabana de taipa, limpa, serve tanto como um palácio, e, com efeito, é até melhor, porque quando o físico absorve a parte do leão do esforço do homem o espírito desfalece, a vida perde o conteúdo, e ocorre o descontentamento. A renúncia aos prazeres é masoquismo, diz um ocidental. Entretanto, a ética cristã é ascética, e a santidade, em todas as religiões, está relacionada com a autonegação. Gandhi não acreditava na renúncia por amor à própria renúncia, nem a título de tormento imposto à carne. “Uma mãe”, escreveu ele, numa carta, “não dormiria nunca, por sua escolha, numa cama molhada! Mas ela faria isso de bom grado com o propósito de reservar uma cama seca para seu filho.” A renúncia de Gandhi foi
o
desinteressado
indivíduo
desprendimento,
experimenta
gloriosos
próprio
do
amor.
Todo
momentos
de
identificação,
através do amor, com seus semelhantes. Um santo tem muitos momentos assim, quando, em vez de estar preocupado com sua pessoa, se esquece e transcende a si mesmo, e vai ocupar um lugar dentro dos outros. Essa união cancela pelo menos uma parte da distância que fica entre o meu e o teu; e, por esse meio, cria fortaleza com felicidade. No apogeu de sua qualidade de mahatma, Gandhi era capaz de considerável grau de projeção espiritual
de
si
mesmo
em
seus
seguidores.
Qualquer
documentário cinematográfico sobre Gandhi na Índia mostra sua quase total ausência de si mesmo e sua identificação com os outros, em contraste com a afirmação da própria personalidade e com
os
conspícuos
maneirismos
dos
políticos
de
menor
envergadura. Esse é um dos segredos de sua grandeza e de sua influência; ele se misturava àqueles que o circundavam. O fenômeno causava enorme impacto sobre todos os amigos e inimigos que o contemplavam, e ele com freqüência lhes vencia a resistência, mesmo quando os meios pelos quais o fazia despertavam dúvidas ou repulsa. Os adversários podiam não gostar do que ele fazia, mas não podiam opor-se ao que ele era, ou passava a ser, em conseqüência de seus atos. Uma das coisas que ele fez foi renunciar ao sexo. Durante as marchas, de aldeia em aldeia, na época da insurreição dos zulus, demorou-se em longos períodos de introspecção, e, finalmente, resolveu abster-se para sempre de relações sexuais. Duas vezes, antes disso — conta-nos ele, simplesmente —, procurara tornar-se casto. Kasturbai concordara. Ambos passaram a dormir em camas separadas; e ele tratava de não ir para a cama antes de se sentir
fisicamente exausto. Das duas vezes, porém, sucumbira. Contudo, enquanto se encontrava na Zululândia, fez um voto, e isso pôs ponto final ao caso. Ao ser desmobilizado, foi para a Comunidade Phoenix e relatou a Kasturbai sua resolução. Ela não protestou. “Ela nunca foi a tentadora”, escreveu ele. A natureza das suas relações íntimas havia sido determinada por ele. Gandhi permaneceu em castidade, de 1906, quando tinha trinta e sete anos de idade, até sua morte, em 1948. É difícil identificar os motivos de Gandhi; ele mesmo não os conhecia. Acreditava que sua castidade constituísse “resposta ao chamado do dever público”. Por outro lado, afirmou: “Meu principal objetivo era fugir da possibilidade de ter mais filhos”. Mas, por que razão evitar novos filhos? A Comunidade Phoenix havia-se transformado numa espécie de projeto de comunidade, para o qual ele convidava numerosos adultos e crianças, cuja manutenção corria às expensas de todos, sob responsabilidade comum. Por que motivo não ter mais filhos próprios? A castidade de Gandhi foi ainda mais complicada pelo que parece ter sido um sentimento de culpa ligado a sexo. Ele estava, certa noite, fazendo massagem nas pernas de seu pai — conta-nos Gandhi —, quando, com a paixão despertada, pediu ao tio que o substituísse e dirigiu-se para a cama de Kasturbai. Poucos minutos após, uma criada bateu à porta e chamou Gandhi. Mas, ao voltar ao quarto do enfermo, o pai já estava morto. “Se a paixão não me houvesse cegado”, confessou Gandhi, quarenta anos depois, “eu teria evitado a tortura, que se me impôs,
da
separação
de
meu
pai
durante
seus
últimos
momentos... A vergonha de meu desejo carnal, no momento crítico da morte de meu pai... tornou-se uma mancha que nunca serei
capaz de apagar, nem de esquecer.” Isso
deve
ter
exercido
influência
sobre
sua
conduta
subseqüente. Gandhi deu à sua estada de trinta e três meses em Londres a denominação “uma longa e salutar separação de Kasturbai”. Quando de sua primeira partida para a África do Sul, ele lhe disse como que consolando-a: “Deveremos encontrar-nos de novo dentro de um ano”. Esteve ausente por três anos. A castidade, ou bramacharya, encontra-se com freqüência nos costumes e na vida hindu. Depois de cumprir seu dever de reprodução para com a família, a casta, o país, o hindu pode, ao entrar na quadra dos cinqüenta, ou já no fim dos quarenta, ser promovido
para
uma
atividade
sexual
extra-marital,
não
reprodutiva, ou a nenhuma; contudo, é raro que um homem se torne brahmachari em pleno vigor, como Gandhi quando fez seu voto.
Talvez
houvesse
considerado
que
quatro
filhos
representassem um dever bem cumprido. Ou, então, que a paternidade se fizera pecaminosa por haver pecado, pensava ele, no momento da morte de seu pai. As condições de saúde de Kasturbai também devem ter contribuído para isso. Ela era anêmica e estivera, de uma feita, perto da morte, devido a hemorragias internas; uma operação ginecológica realizada sem clorofórmio, por ela encontrar-se muito debilitada, proporcionoulhe certo alívio, mas não a curou. A constituição física de Kasturbai talvez haja levado Gandhi a defrontar-se com a óbvia escolha entre a infidelidade e a castidade. Em todo caso, procedendo a um exame retrospectivo, ele identificou o motivo com o efeito — e o efeito foi espiritual. Bramacharya, “compreendida plena e devidamente”, escreveu ele em 1924, “significa a busca de Brahma”, ou de Deus. “Significa
controle de todos os sentidos, a toda hora, em todo lugar, em pensamento, em palavras e em ação.” Inclui, e, ainda assim, transcende a restrição sexual; abarca a restrição na dieta, nas emoções, no falar. Exclui a violência, a inverdade, o ódio e a zanga. Cria equanimidade de espírito. É a ausência de desejo. “Os brahmacharis perfeitos”, presumia Gandhi, “são perfeitamente despidos de pecado. Encontram-se, portanto, perto de Deus. São como Deus.” Era a isso que ele aspirava. Integrava a última etapa, na auto transformação. Na renúncia, o difícil não é renunciar ao conforto, ao luxo e aos
prazeres.
Muita
gente
poderia
cancelar
as
refeições
abundantes, o guarda-roupa completo, a residência fina, etc.; é o próprio ego que essa gente não pode cancelar. O eu que se encontra envolto, sufocado, em coisas materiais — que inclui a posição social, a popularidade e o poder —, é o único eu que essa gente conhece, e que não abandonará nunca por um novo eu ilusório, por uma vida diferente, despojada dos ouropéis materiais, que talvez nunca seja atingida, que talvez não exista, ou, em todo caso, não existe para essa gente, nem ao seu redor. Gandhi, entretanto, teve a coragem de pular do chão sólido de seu velho eu para o desconhecido, onde, por algum dom imperscrutável, sabia que poderia encontrar um ponto de apoio, de onde lhe fosse possível mover seu mundo. O ato não foi fácil. Deve ter sido fisicamente
doloroso.
Ele
era
poderosamente
sexuado;
as
mulheres o atraíam, mesmo depois de ele fazer o voto. Possuía um “estômago capaz”, dizia ele, e um apetite robusto. Estava ganhando bem e poderia tornar-se um advogado muito rico. A castidade e a pobreza voluntárias, portanto, representavam para ele esforços penosos. Gandhi podia suportá-las, podia até provocálas, porque acreditava firmemente em alguma coisa, porque tinha
uma causa. Com fé, a renúncia não constitui sacrifício; substitui um prazer por outro. Alguns fazem uma doação; Gandhi deu-se a si mesmo — e encontrou-se a si próprio. A quantidade da doação é determinada pela intensidade da crença. “Renuncie a uma coisa”, escreveu Gandhi, “somente quando desejar tanto alguma outra, que a coisa renunciada nenhuma atração mais exerça, ou quando parecer que ela está interferindo no que é mais intensamente desejado.” A vida casta e austera constituía uma espécie de sublimação que reforçava as paixões sociais de Gandhi. A renúncia redobrava seu desejo de trabalhar para o bem-estar comum. Sendo menos carnal, tornava-se menos egocêntrico. Elevando-se acima do material, libertava-se para poder trabalhar mais decididamente em favor de seus ideais. Por certo, as tempestades continuaram a bramir dentro dele; agora, contudo, podia dominá-las, a fim de gerar mais força para seus propósitos públicos. A renúncia apresentava uma vantagem adicional direta: o povo confiava mais nele. Talvez porque tivessem sido explorados e martirizados ao longo de séculos e deixados na dependência irremediável de seus próprios parcos recursos, os indianos encaravam com suspeita as pessoas que lhes ofereciam presentes. Suspeitavam que no ato houvesse interesse pessoal, ou receavam uma armadilha. Achavam difícil acreditar que alguém pudesse dar alguma coisa a troco de nada. Haviam passado por excessivo número de situações em que os ricos e os poderosos apenas tomavam, nunca davam. Por essa razão, assim que os indianos se convencem completamente do desprendimento de uma pessoa, cercam-na de devoção desenfreada e de obediência desmedida. Tal foi a recompensa de Gandhi. Mais confiante em si mesmo e nos seus sequazes, o novo
Gandhi enfrentou o governo sul-africano. No decorrer dos oito anos seguintes, lutou contra ele, e, ao fim, venceu.
8 Alma-força Henry Polak refere a observação de Gandhi, na África do Sul, de que “Os homens dizem que eu sou um santo, perdendo-me a mim mesmo em política. O fato é que eu sou um político fazendo o máximo possível para ser um santo”. Na verdade, a política de Gandhi era indistinguível de sua religião. “Meu patriotismo”, disse ele, “é subserviente à minha religião.” Em política, apegava-se a considerações morais; e, na qualidade de santo, pensava que seu lugar não se encontrava numa gruta, nem num claustro, e sim no lufa-lufa da peleja do povo em prol de seus direitos e da justiça. A religião de Gandhi fêlo político; e sua política foi religiosa. Político feito santo, ou santo feito político, e com toda a eficiência adicional que a renúncia lhe proporcionava, Gandhi não poderia nunca ter realizado o que realizou na África do Sul e na Índia, não fosse a existência de uma arma peculiarmente sua. Era uma arma sem precedentes, e permaneceu inimitada; em verdade, tratava-se de algo tão raro, que ele não conseguiu encontrar um nome para lhe dar, até que finalmente lhe ocorreu o de “satyagraha”. Satia significa verdade, o equivalente de amor, e ambos são atributos da alma. Agraha é firmeza ou força. Satyagraha se traduz, portanto, por alma-força. “Satyagraha”, escreveu Gandhi,
“é a
reivindicação da
verdade não pela inflição do sofrimento ao opositor, e sim ao próprio eu.” O opositor deve ser apartado do erro pela paciência e pela simpatia. Apartado, não esmagado. A satyagraha assume uma interação benéfica e constante entre os interlocutores, tendo em vista a sua reconciliação final. A violência, os insultos e a propaganda superacalorada obstruem o caminho para essa finalidade. Gandhi nunca procurou humilhar nem derrotar os brancos, seja na África do Sul, seja na Índia britânica. Desejava convertêlos. Acreditava que, se pusesse em prática o Sermão da Montanha, o general Jan Christiaan Smuts se recordaria de que era cristão. A satyagraha reverte a política da pena de talião, de olho por olho, que faz a todos cegos — ou cegos de fúria. Essa orientação paga com o bem o mal, até que o malfeitor se canse de praticar o mal. Na África do Sul, e, por vezes, na Índia, Gandhi mostrou que seres humanos comuns eram capazes de elevação de mente, mesmo sob a pressão de circunstâncias muito irritantes. A satyagraha enfrentou sua primeira prova quando a Transvaal Government Gazette, de 22 de agosto de 1906, publicou o texto de uma lei que exigia que todos os homens, mulheres e crianças acima de oito anos de idade, de nacionalidade ou de descendência indianas, se submetessem ao registro oficial, bem como à tomada de impressões digitais, sob pena de multa, prisão e deportação da província. As mesmas penalidades seriam infligidas a qualquer indiano encontrado sem o certificado de registro. Gandhi afirmou a uma grande massa popular reunida em comício, no Teatro Imperial de Johannesburg, em 11 de setembro de 1906, que a referida lei fora concebida contra os indianos,
constituindo, portanto, uma afronta a eles e à Índia. “O governo”, afirmou ele, “afastou-se de todo senso de decência.” E pediu ao auditório de três mil pessoas que jurasse desafiar a ordenação e ir para o cárcere, ou, se fosse necessário, para a morte. Advertiu os ouvintes de que a luta seria longa. “Mas”, acentuou, “posso declarar, com denodo e coragem, que enquanto existir ainda que seja um pugilo de homens fiéis ao seu juramento, só poderá haver um fim para a luta; e esse fim é a vitória.” Este era um dos princípios básicos da satyagraha: a almaforça não depende da quantidade. Depende do grau de firmeza. A Lei de Registro dos Asiáticos foi aprovada em 31 de julho de 1907. Gandhi, afirmando que “mesmo uma política monstruosa se torna, ao seu tempo, normal, desde que sejamos fiéis a nós mesmos”, chefiou seus compatriotas na recusa ao registro. Foi sentenciado a dois meses de prisão. Pouco tempo depois, um emissário do general Smuts se dirigiu à prisão, com a proposta de revogar
a
lei,
desde
que
os
indianos
se
registrassem
voluntariamente. Gandhi foi levado à sala de Smuts, onde, envergando o uniforme da prisão, discutiu e aceitou a proposta. Ele e outros indianos foram, então, postos em liberdade. Regressando a Johannesburg, Gandhi encontrou severa oposição por parte de indianos que diziam que a lei deveria ser revogada primeiro, antes do registro. “Que acontecerá se Smuts deixar de cumprir sua palavra?”, perguntaram. — Um satyagrahi — respondeu ele — diz adeus ao medo. Portanto, nunca tem medo de confiar no contendor. Ainda que o contendor faça jogo falso, com ele, vinte vezes, o satyagrahi está
sempre pronto a confiar nele pela vigésima primeira vez, porque uma confiança implícita na natureza humana é a própria essência do seu credo. A seguir, explicou a maneira pela qual se havia prontificado a transigir com o registro voluntário: curvar-se à coação reduz a dignidade e a estatura do indivíduo; mas as dificuldades do governo deviam ser tomadas em consideração; esse governo se encontrava
sob
forte
pressão
da
parte
dos
brancos
que
alimentavam o preconceito de raça. O registro fora concebido para evitar que os indianos entrassem ilegalmente no Transvaal, e — declarou Gandhi — visto que os indianos não pretendiam entrar, nem levar imigrantes à província, “sub-repticiamente, ou por meio de fraude”, que razão havia para que não se registrassem? A colaboração, livremente proporcionada, era generosa, e, portanto, enobrecedora.
Conseqüentemente,
a
revogação
do
registro
compulsório modificava a situação. Na reunião em que essas observações foram feitas, um patã gigantesco, nativo das inóspitas montanhas do noroeste da Índia, perto do passo de Khyber, ergueu-se e gritou: — Nós não deixaremos nunca que nos tirem as impressões digitais, nem permitiremos que os outros o façam! Juro, tomando Alá por minha testemunha, que matarei o primeiro homem a requerer o registro. Gandhi respondeu que ele próprio seria o primeiro a registrar-se. — A morte — acrescentou ele — é o fim inevitável de toda vida. Morrer pela mão de um irmão, em vez de por doença ou por qualquer outro meio não pode constituir, para mim, motivo de tristeza. E se, mesmo em tal caso, eu me vir livre do pensamento da zanga ou do ódio para com aquele que me tirar a vida, saberei
que isso redundará em meu bem-estar perpétuo; e ele próprio conhecerá mais tarde minha perfeita inocência. Ninguém poderia ter previsto que, quarenta e dois anos depois, Gandhi morreria pelas mãos de um irmão. O patã manteve sua palavra. Quando Gandhi se pôs a caminho da repartição de registro, Mir Alam, homem de compleição robusta, com um metro e oitenta de altura, avançou sobre ele e golpeou-o pesadamente na cabeça. “Perdi os sentidos, imediatamente, com as palavras ‘Ei Rama’ (ó Deus) em meus lábios”, assegura a narrativa feita pelo próprio Gandhi. Murmurando estas mesmas palavras, destinavase ele a morrer no dia 30 de janeiro de 1948. Mir Alam foi preso, com outros patãs; mas Gandhi obtevelhes a soltura. — Eles pensavam estar agindo corretamente — esclareceu — , e não tenho desejo de os processar. Ao restabelecer-se do ataque, Gandhi registrou-se, e muitos indianos lhe seguiram o exemplo. Qual não foi seu embaraço, quando Smuts se recusou a cumprir a promessa que fizera, no sentido de revogar a lei do registro compulsório. — Aí o tendes vós — diziam os indianos, com sarcasmo, a Gandhi.
—
Nós
nos
cansamos
de
dizer-vos
que
sois
excessivamente crédulo. Às quatro horas, no dia 16 de agosto de 1908, mais de dois mil indianos se congregaram na Mesquita de Hamidia, em Johannesburg, e atiraram seus certificados de registro dentro de um caldeirão cheio de parafina comburente. O correspondente do Daily Mail, de Londres, comparou o episódio ao Tea Party, uma histórica manifestação de protesto ocorrida em Boston, na qual se atirou ao mar uma partida de chá importado. O escritório de advogado de Gandhi, em Johannesburg,
tornou-se, assim, o quartel-general do movimento satyagraha. Em outras ocasiões, Gandhi permanecia na Comunidade Phoenix, em Natal, solicitando o apoio dos indianos daquela província, os quais superavam de muito, em número, os treze mil do Transvaal. Vivia ali uma existência frugal, espartana, dormindo ao ar livre, sobre um pano fino, exceto quando chovia. Evitava todos os prazeres materiais, e concentrava-se na batalha vindoura. “Um satyagrahi”, escreveu ele, “tem de ser, se possível, ainda mais dotado de poder de concentração do que um equilibrista de corda bamba.” Estava em treinamento para o combate moral. A emergência já se havia declarado: os indianos tinham decidido desafiar a proibição da emigração indiana para o Transvaal e enfrentar a pena de prisão circulando sem os certificados de registro. A
essa
altura,
Gandhi
teve
um
gesto
de
dramática
simplicidade. Os indianos de Natal tinham-lhe pedido que lhes permitisse pôr à prova a proibição da emigração para o Transvaal. Ele escolheu um, depois outro, posteriormente outros mais, inclusive
seu
filho
mais
velho,
Harilal,
incumbindo-os
de
comparecer pacificamente ao posto de fronteira do Transvaal e tentar entrar. Todos foram detidos e ficaram três meses na prisão. Gandhi juntou-se a eles. O mesmo fizeram dezenas de indianos do Transvaal, que disseram à polícia que não possuíam certificados. Gandhi fez-se cozinheiro de setenta e cinco de seus compatriotas pesados,
numa
que
prisão.
maltrataram
Realizou, suas
igualmente, mãos,
e
trabalhos ofereceu-se
espontaneamente para limpar os vasos sanitários. “O verdadeiro caminho para a felicidade”, escreveu Gandhi, num artigo dessa época, “está em ir para a prisão e lá suportar sofrimentos e privações, no interesse da própria pátria e da própria religião.”
A alma do encarcerado — ao que ele descobriu — era livre. Nisso Gandhi se fez eco de Henry David Thoreau, o rebelde da Nova Inglaterra, que escreveu, sobre sua própria experiência de prisão: “Não me senti, sequer por um momento, confinado; e as muralhas se me afiguravam um grande desperdício de pedra e de argamassa”. Gandhi transcreveu estas palavras do livro Civil disobedience, de Thoreau, e estudou todo esse ensaio durante sua segunda estada na prisão. Qualificou o livro de um tratado de mestre, que “deixou profunda impressão em mim”. Havia uma característica de Thoreau em tudo quanto Gandhi fazia. Thoreau e seu amigo Ralph Waldo Emerson tinham lido o Bhagavad-Gita e alguns dos sagrados Upanishads hindus. Assim, Thoreau, em Massachusetts, tomou de empréstimo a Índia de Gandhi e pagou a dívida com palavras que chegaram até ele na cela da África do Sul. “A única obrigação que posso assumir”, disse Thoreau, no seu Civil disobedience, “é a de fazer, a qualquer hora, o que eu penso que seja correto.” Achava ele que era muito mais honroso ser direito do que observar a lei. Em 1849, Thoreau escrevia protestando contra a escravidão e a invasão do México. “Há milhares de pessoas, que em sua opinião se opõem à escravidão e à guerra”, declarou ele, “e que, no entanto, nada fazem para pôr fim a elas. Existem novecentos e noventa e nove patronos da virtude, para cada homem virtuoso.” Como Gandhi, Thoreau acreditava na capacidade de uma minoria moral resoluta, para corrigir os males da maioria. “Sei muito bem”, escreveu Thoreau, “que, se mil, se cem, se dez homens cujos nomes eu poderia mencionar — se apenas dez homens honestos —, que digo? se um homem honesto, neste Estado
de
Massachusetts,
deixando
de
possuir
escravos,
resolvesse, de fato, retirar-se dessa associação (com o governo), e fosse trancado por esse motivo na cadeia do município, isso poderia significar a abolição da escravidão dos Estados Unidos. Portanto, não importa quão pequeno possa ser o começo; o que é bem feito uma vez, está feito para sempre. Mas nós gostamos mais de conversar a esse respeito...” Thoreau, pessoalmente, recusou-se a pagar impostos, e foi encerrado na prisão; mas um amigo pagou por ele, e ele foi libertado em vinte e quatro horas. Emerson declarou, no seu Ensaio sobre política: “Não me recordo de um único ser humano que
haja
continuadamente
negado
a
autoridade
das
leis,
baseando-se no simples fundamento de sua própria natureza moral”. Emerson morreu em 1882, e não podia ter conhecido Gandhi, que, no momento exato em que lia Thoreau, se encontrava no cárcere por desobedecer às leis injustas, com base em
fundamentos
morais,
e
que
continuaria
a
fazer
isso,
invariavelmente, pelo resto da vida. O conde Leon Tolstói, com quem Gandhi se correspondeu em 1909 e em 1910, nutria a mesma fé na força do indivíduo moral e na desobediência civil. “A posição dos governos, na presença dos homens que professam o cristianismo”, escreveu Tolstói, em The kingdom of God is within you (O reino de Deus está dentro de vós), “é tão precária, que é preciso muito pouco para reduzir a cacos seu poderio.” Tolstoi definiu o cristão da seguinte forma: “Ele não entra em disputa com seu vizinho; não ataca, não emprega a violência; ao contrário, ele próprio sofre, sem opor resistência, e, devido a essa mesma atitude em face do mal, não somente se liberta, mas também ajuda a libertar o mundo de toda autoridade exterior”. Através do trabalho manual, da renúncia à propriedade, da
austeridade e da pregação cristã, Tolstói, nos seus últimos anos, procurou criar uma síntese entre a religião e a conduta. Também Thoreau e Ruskin procuraram uma correspondência mais íntima entre as finalidades e os atos do homem. O artista que existia neles lutava pela consecução da integridade que resulta da integração das palavras com as crenças, e de ambas as coisas com as realizações. Romain Rolland, que se colocara sob a influência de Tolstoi, fez uma hábil comparação entre Tolstói e Gandhi. “Em Gandhi”, escreveu Rolland, em 1924, “tudo é natural, modesto, simples, puro, enquanto todas as suas lutas são sublimadas pela serenidade religiosa, ao passo que, em Tolstoi, tudo é revolta orgulhosa contra o orgulho, ódio contra o ódio, paixão contra a paixão. Tudo, em Tolstói, é violência, até mesmo sua doutrina de não-violência.” Tolstoi era sacudido por tempestades; Gandhi, calmo e equânime. A esse respeito, muitos associados de Gandhi eram, na verdade, tolstoianos. Por fazer, a toda hora, o que considerava direito, e não o que se lhe afigurava oportuno, cômodo, proveitoso, popular, seguro ou impressivo, Gandhi eliminou os conflitos interiores de sua personalidade, e, conseqüentemente, adquiriu força para se empenhar em pendências pacientes e pacíficas com aqueles que considerava estarem praticando o mal. Tomava a sério as palavras e as idéias; e achava que, tendo aceito um preceito moral, tinha o dever de viver de acordo com ele. Então, podia pregar esse preceito. Ele pregava o que praticava. Na raiz de inúmeros males de nossa civilização, encontra-se a discrepância entre a palavra, o credo e a ação. É a fraqueza das Igrejas, dos Estados, dos partidos, das pessoas. Isso dá, aos homens e às instituições, personalidades divididas. Gandhi tentou
sanar isso por meio do estabelecimento da harmonia no lugar da discrepância;
e,
à
medida
em
que
progressivamente
ia
conseguindo isso, tornava-se feliz, repousado e alegre. Gandhi era dono de perfeita saúde mental, porque nele a palavra, o credo e a ação compunham uma única coisa; só ele era um integrado. Esse é o significado de integridade. “A verdade vos fará livre” — e cheio de saúde. Por meio da verdade, Gandhi libertou-se, a fim de ir para a prisão.
9 Vitória feliz Para receber ordem de prisão, um indiano do Transvaal precisava apenas partir com destino à província de Natal e regressar à sua casa, no Transvaal. Isso viola a proibição de imigração, e era punido com um a três meses de cadeia. Alguns homens do grupo da alma-força que ofereceram resistência cumpriram oito ordens de prisão, recebendo do tribunal sempre uma nova sentença, no momento de completar o cumprimento da anterior.
Em
determinada
ocasião,
dos
treze
mil homens,
mulheres e crianças de descendência indiana existentes no Transvaal, dois mil e quinhentos se encontravam no cárcere, e seis mil haviam fugido do Estado. Nenhuma solução se encontrava à vista. Em 1909, Gandhi enviou Henry Polak à Índia, e ele próprio foi para a Inglaterra. Achava que
um povo ressentido e
administradores razoáveis de um império predominantemente de cor poderiam prestar auxílio na luta contra o preconceito de cor.
Se a Índia se fizesse claramente consciente da realidade sulafricana, a preocupação do vice-rei seria comunicada a Londres, que, adequadamente instigada, poderia aconselhar comedimento a Smuts. Essa é a técnica burocrática, agora madura, mas que, naquela época, se encontrava em seu nascedouro. Gandhi ganhou o apoio de muitos liberais e de muitos imperialistas esclarecidos, na Inglaterra. Embora a sua viagem fosse destituída de resultados concretos imediatos, Gandhi obteve êxito na tarefa de transformar a questão dos indianos da África do Sul em uma das maiores dores de cabeça para o império britânico. Aí estava a semente do triunfo final. Regressando à África do Sul em fins de 1909, Gandhi resolveu criar “uma espécie de comunidade cooperativa” em miniatura, em cujo seio os resistentes civis “seriam treinados para viver uma nova vida simples, em harmonia uns com os outros”. O movimento precisava de um lar para os dependentes dos resistentes que se encontrassem presos, e também para os próprios resistentes, nos intervalos entre as ordens de prisão de que fossem alvo. De conformidade com isso, Herman Kallenbach, o segundo na hierarquia do comando do movimento satyagraha, adquiriu mil e cem acres de terras em Lawley, a cerca de trinta e quatro quilômetros de Johannesburg, e deu-os aos resistentes livres. Kallenbach era um judeu alemão, alto, corpulento, de cabeça quadrada, com enormes bigodes e pincenê. Rico arquiteto, fizera-se budista, pugilista, lutador, aluno do famoso Sandow. Nas palavras de Gandhi, era homem “de sentimentos fortes, amplas simpatias, e simplicidade de criança”. Às terras por ele adquiridas e doadas, Gandhi denominava Comunidade Tolstói. Gandhi, com a família, e Kallenbach passaram a viver lá. “Eu preparo o pão de que se precisa na fazenda”, escreveu
Gandhi a um amigo que se encontrava na Índia. “A opinião geral, por aqui, é a de que é bem-feito. Não pomos, nele, levedura, nem farinha de trigo. Acabamos de preparar certa quantidade de geléia, com laranjas produzidas na comunidade. Também aprendi a preparar um xarope de café. Pode ser dado, como bebida, até às crianças.” Gandhi era padeiro, fazia xarope de café e geléia. Kallenbach ensinou-o a fazer escrivaninhas, mesinhas com gavetas, carteiras escolares e também sandálias de couro. Da mesma forma, Gandhi confeccionava blusas para sua esposa, que, ele se orgulhava de dizer, ela realmente usava. Ele auxiliava nos serviços de cozinha; evitava que as mulheres brigassem; e fazia as vezes de gerentegeral. Ocasionalmente, quando não podia deixar de dar atenção a um processo judiciário, deixava a fazenda às duas horas da manhã, caminhava cerca de trinta e quatro quilômetros até a cidade e voltava a pé, na mesma noite. Um dia, lembrava ele, “eu andei setenta quilômetros”. Gandhi assegurava que sua resistência física procedia de sua vida casta e uma dieta saudável. Ele e Kallenbach evitavam alimentos cozidos, limitando-se à ingestão de pratos frugívoros, compostos de bananas, tâmaras, limões, laranjas, abacaxi e azeite de oliva. Tendo lido a respeito das crueldades praticadas na Índia, para fazer com que as vacas e as fêmeas de búfalos produzissem o máximo de leite, os dois deixaram de consumi-lo. A população da comunidade variava de acordo com o número dos satyagrahi que se encontrassem na prisão; por vezes, subia a mais de cem. Kallenbach dividia com Gandhi a tarefa de ensinar às crianças religião, geografia, história, aritmética e outras matérias. As
idéias
de
Gandhi
sobre
a
educação
mista
eram
flagrantemente contrárias às convencionais. Ele encorajava os meninos e as meninas, entre os quais já se contavam alguns adolescentes, a banhar-se juntos, na fonte. Para garantia das meninas, ele estava sempre presente, e “meus olhos seguiam as meninas, como os olhos de uma mãe seguem uma filha”. Não há dúvida de que os olhos dos meninos também as seguiam. À noite, todos dormiam num terraço aberto, e um grupo mais jovem punha suas camas ao redor da de Gandhi. Os “lugares de dormir” ficavam apenas a pouco mais de meio metro um do outro; mas Gandhi dizia que os jovens sabiam que ele os amava “com amor de mãe”; ademais, não havia ele ensinado, a esses jovens, o autocomedimento? Como era inevitável, houve um incidente, em que se viram implicados uma menina e dois meninos; em conseqüência, Gandhi andou em busca de um recurso destinado “a esterilizar os olhos pecadores” dos garotos. A busca manteve-o acordado a noite inteira, mas pela manhã já o havia encontrado: pediu à menina que raspasse a cabeça. Ela se mostrou surpresa e ressentida; mas ele foi implacável, e ela finalmente concordou. Ele procedeu à raspagem. Comentando
esse
episódio,
anos
mais
tarde,
Gandhi
explicou sua inocência por meio da ignorância. Mas por que motivo
era
ele
ignorante?
Desfez
uma
parte
do
mistério
acrescentando que sua fé e sua coragem se encontravam no apogeu, na Comunidade Tolstói. A fé ilimitada em si mesmo por vezes o cegava, impedindo-o de ver as hesitações, os sentimentos, as fraquezas dos seus amigos. Ele media as capacidades dos outros pelo seu próprio zelo. Era a espécie de cegueira que apaga obstáculos e que conduz a grandiosas venturas. Entrementes, o movimento de resistência passou a ser uma
rotina de entrada e saída da prisão, aliviada pela parcimônia de que se dispunha na comunidade. Não acontecia muito mais do que isso. Os espíritos, com freqüência, se abatiam; mas não o de Gandhi. Quando Gopal Krishna Gokhale, líder preeminente do movimento nacionalista indiano na Índia, chegou, em outubro de 1912, a fim de estudar a situação sul-africana, pediu, com seriedade e aspereza, a Gandhi que lhe fornecesse uma lista dos resistentes verdadeiramente dignos de confiança. Gandhi escreveu sessenta e seis nomes, mas admitiu que seu número poderia cair para dezesseis. A estes dava o nome de “o meu exército de paz”. Contudo, pouco importava a insignificância das fileiras. Gandhi nunca se sentiu abalado. O governo — disso ele estava certo — acabara cedendo à alma-força. Gokhale exercia grande influência sobre o povo, na Índia, bem como sobre seus governantes britânicos. O novo governo da União Sul-Africana, chefiado pelos generais Botha e Smuts, na esperança de que ele pudesse levar uma
boa
impressão,
proporcionou-lhe
recepção
calorosa,
oferecendo-lhe o máximo de facilidades para visitar o país. Prometeram-lhe, igualmente, revogar a proibição imigratória e abolir a taxa anual de três libras esterlinas que pesava sobre os trabalhadores indianos que concluíssem o seu contrato de trabalho e ficassem na África do Sul. “Duvido
muito”,
disse
Gandhi,
quando
Gokhale
lhe
comunicou essa promessa. “Vós não conheceis os ministros como eu os conheço.” Gandhi respeitava Gokhale; afirmava que ele era “como o Ganges, em cujas águas, refrigerantes e sagradas, a gente se demorava a banhar-se”; e aceitava-o como sendo o seu guru, ou mentor político; mas ele não concordava com as opiniões de quem quer que fosse, por mais que o exaltasse ou o amasse, se as
considerasse erradas. Gokhale considerava a promessa BothaSmuts
como
indicadora
do
fim
da
luta
sul-africana.
De
conformidade com isso, disse a Gandhi que regressasse “à Índia, dentro de doze meses; e não aceitarei nenhuma das suas desculpas”. Gandhi, contudo, mostrou-se teimoso; e Gokhale revidou,
dizendo:
“Vós
agireis
sempre
à
vossa
maneira”.
Entretanto, ao regressar a Bombaim, ele declarou, numa reunião no edifício da prefeitura, em dezembro de 1912, que “Gandhi tem, nele próprio, a maravilhosa força espiritual de transformar os homens comuns, que lhe estão ao redor, em heróis e em mártires”. “Na presença de Gandhi”, acrescentou, “a gente se sente envergonhado de fazer algo indigno; em verdade, a gente sente receio até de pensar algo indigno.” Defrontando-se com os homens preeminentes, como Gokhale, Gandhi sentia respeito e humildade, e até mesmo receio; mas, envolto nesses sentimentos, tornava-se, por vezes, impenetrável aos pensamentos deles. Gandhi sentia desconfiança, sendo, contudo, independente. A confiança em si mesmo o enchia de uma energia exuberante e de um brilho a que nenhum crítico e, naturalmente, nenhum discípulo podia resistir. O desenrolar dos acontecimentos demonstrou o acerto de Gandhi. Smuts não tardou a anunciar, na Assembléia, que os empregadores europeus de mão-de-obra contratada, em Natal, não permitiriam a revogação da taxa de três libras esterlinas que pesava sobre os ex-servos. Isso foi considerado uma ruptura da promessa Botha-Smuts a Gokhale; e grandes massas de indianos contratados e ex-contratados tomaram voluntariamente parte na desobediência civil.
Às duas pendências — a taxa e a proibição contra a imigração — uma terceira se acrescentou quando um juiz da Corte Suprema da colônia do Cabo sentenciou que somente os casamentos cristãos eram legais. “Assim sendo, eu não sou vossa
esposa”,
exclamou
Kasturbai,
horrorizada.
Com
efeito,
os
casamentos hindus, muçulmanos e parses foram invalidados, e as esposas indianas passaram a ser consideradas concubinas. Grande número de mulheres, então, se juntou aos grupos dos resistentes ativos. Gandhi planejou sua campanha. Como primeiro passo, um grupo de “irmãs”, de Natal, deveria enfrentar a ordem de prisão, entrando no Transvaal sem licença; simultaneamente, um outro grupo de irmãs, do Transvaal, entraria em Natal. As irmãs de Natal foram presas; a indignação alastrou-se e conquistou novas recrutas. As irmãs do Transvaal, entretanto, não foram presas. Obedecendo a instruções prévias, elas se dirigiram às minas de carvão de Newcastle, e incitaram os mineiros indianos a declarar greve. Em conseqüência, o governo prendeu as mulheres, aplicando, a cada uma delas, a pena de três meses de prisão. A greve difundiu-se. Gandhi rumou para Newcastle. Os proprietários das minas cortaram o fornecimento de luz e de água das casas da companhia ocupadas pelos grevistas indianos. Acreditando que a greve duraria longo tempo, Gandhi advertiu os grevistas, aconselhando-os a se retirar das suas moradias, levando consigo alguns lençóis e alguma roupa, e a armarem um acampamento ao ar livre. Em poucos dias, cinco mil indianos, aproximadamente, estavam vivendo a céu aberto. Gandhi não sabia o que fazer com eles. Como poderia ele alimentar e abrigar semelhante multidão? Por fim, decidiu leválos, em marcha, para o Transvaal, e “fazer com que fossem entregues,
são
e
salvos,
à
prisão”.
Antes
de
desfazer
o
acampamento, entretanto, Gandhi telegrafou ao governo, dizendolhe que podia prender o “exército de paz”, imediatamente, antes que ele partisse para o Transvaal. O governo não estava inclinado
a fazer-lhe favor algum dessa ordem. Uma semana depois, Gandhi telefonou a Smuts, em Pretória, renovando o pedido de imediato confinamento no cárcere, em Natal, mas oferecendo-se para enviar os homens de regresso às minas, desde que a taxa de três libras esterlinas fosse revogada. O secretário de Smuts disse: “O general Smuts não terá coisa alguma a fazer convosco. Vós podeis agir como bem vos aprouver”. Gandhi propôs, então, que se transpusesse a fronteira de Natal e se passasse para o Transvaal; e se, como desconfiava, o governo do Transvaal também se recusasse a abrir os cárceres ao seu “exército”, este avançaria com destino à Comunidade Tolstói, por meio de oito marchas diárias de cerca de trinta e três quilômetros cada
uma.
Enquanto
planejava
a
invasão (os
abastecimentos teriam de ser enviados a cada fim de etapa), Gandhi advertiu os resistentes quanto às agruras que os aguardavam, e pediu, ao mesmo tempo, que os menos dispostos fossem para suas casas. Às seis e meia da manhã de 6 de novembro de 1913, Gandhi contou suas forças. Havia dois mil e trinta e sete homens, cento e vinte e sete mulheres e cinqüenta e sete crianças. “Oferecemos nossas preces”, escreveu Gandhi, “e começamos a marchar em nome de Deus.” A polícia, na fronteira do Transvaal, permitiu que a coluna em marcha passasse. Algumas das mulheres carregavam seus bebês nos quadris ou às costas. A maior parte das pessoas estava descalça. Aquilo era uma multidão variegada que falava tâmil, télego, guzerate, hindi e outros idiomas indianos, e que se vestia com diferentes trajes da Índia; mas todos eram leais para com o pequeno general da paz, cuja ordem de batalha era: “Não resistir à prisão; submeter-se ao açoite da polícia; comportar-se bem e
asseadamente”. Ao final do primeiro dia, Gandhi foi preso, mas posto em liberdade
depois
de
paga
a
fiança,
devido
às
suas
responsabilidades para com os que marchavam. Na segunda noite, foi novamente preso, levado a um tribunal, e posto em liberdade. Na quarta noite foi preso e conservado na prisão. A marcha rumo à Comunidade Tolstoi prosseguiu sem ele. Na manhã seguinte, quando a coluna chegou a Balfour, seus componentes foram arrebanhados e levados para dentro de trens que já se encontravam à espera e que os transportaram de volta às minas, em Natal; ali, os indianos foram todos encerrados à força dentro de cercados de arame, guardados por empregados da companhia mineira, que haviam prestado juramento na qualidade de condestáveis especiais. Mas os indianos se recusaram a descer às minas de carvão. Outros trabalhadores contratados abandonaram o trabalho em sinal de solidariedade para com os mineiros. O Estado considerava tais homens escravos, sem o direito à greve; e enviou soldados para os reprimir. Num determinado lugar, os militares fizeram fogo, matando e ferindo numerosos indianos. A essa altura, cinqüenta mil trabalhadores contratados se encontravam em greve; vários milhares de indianos alforriados estavam na cadeia. Essa notícia foi telegrafada para a Índia, que rugiu seu protesto. Lorde Hardinge, vice-rei britânico, num enérgico discurso proferido em Madrasta, infringiu a norma da não-interferência, criticando incisivamente as autoridades sulafricanas, e pedindo a constituição de uma comissão de inquérito. Os cabos telegráficos, entre a Índia e Londres e entre Londres e a África do Sul, zuniram, transportando extensas mensagens. Em 18 de dezembro de 1913, o governo pôs em liberdade Gandhi,
Polak e Kallenbach; estes dois últimos haviam sido presos com o primeiro. “Todos nós”, comentou Gandhi, “nos sentimos desapontados quando
fomos
soltos.”
A
desobediência
civil,
uma
vez
desencadeada devidamente, não precisa de líderes. Ao mesmo tempo, o governo sul-africano nomeou uma comissão, encarregando-a de investigar as queixas dos residentes indianos. Gandhi aplicou-lhe imediatamente a denominação “junta empacotada, destinada a vendar os olhos do governo e da opinião pública, tanto da Inglaterra como da Índia”. Sir William Solomon, presidente da junta, possuía — na declaração de Gandhi — “integridade e imparcialidade”; mas o sr. Ewald Esselen nutria preconceitos, e o terceiro membro, coronel J. S. Wylie, fora um dos chefes do frustrado linchamento ocorrido quando os dois navios, transportando oitocentos indianos, haviam chegado a Durban, em janeiro de 1897. Gandhi propôs que se incluísse na comissão vários indianos e elementos favoráveis aos indianos. Prevendo dificuldades, Gandhi preparou-se para lutar. A uma grande reunião de massa, ele apareceu vestindo uma camisola que lhe chegava até os joelhos, um lençol comprido e sandálias. Havia abandonado as roupas ocidentais — esclareceu ele — em sinal de luto pelos mineiros sacrificados durante a greve. — Estais vós preparados para compartilhar a sorte daqueles nossos compatriotas que sob a laje fria hoje repousam? — Sim, sim — vozearam os presentes. — Espero — continuou Gandhi — que todo homem, mulher e criança já crescida deixe de levar em consideração seus salários, seus negócios e mesmo suas famílias ou seus próprios corpos. Gandhi esperava, de gente comum, um gesto de autoabnegação à guisa do Gita. Obteve-o, porque aquela era gente
religiosa; e ele acentuou que sua luta era “uma luta pela liberdade humana, e, portanto, uma luta pela religião”. De conformidade com isso, quando Smuts se recusou a modificar e também a ampliar a comissão de queixas, Gandhi anunciou que ele e os indianos que desejassem juntar-se a ele partiriam de Durban, Natal, no dia de ano-novo de 1914, e provocariam uma ordem de prisão. Enquanto essa ameaça de uma nova marcha de indianos em massa pesava sobre a cabeça do governo, os empregados brancos de todas as estradas de ferro sul-africanas se declararam em greve. Gandhi cancelou imediatamente sua marcha. A alma-força, explicou ele, nunca tiraria vantagem da fraqueza de seu opositor, nem contrairia alianças que não fossem de ordem natural. Os resistentes civis esperavam convencer o cérebro e conquistar o coração, por meio do sofrimento, da sinceridade e da conduta ética, e não ferir, humilhar ou amargurar o adversário. As mensagens de aprovação e de congratulações chegaram em enorme quantidade às mãos de Gandhi, procedendo da Índia, da Inglaterra, da África do Sul. Smuts, embora ocupado com a greve ferroviária (a lei marcial havia sido proclamada), convocou Gandhi para uma conferência. Os indianos advertiram Gandhi quanto a uma desilusão, recordando-lhe o empenho desrespeitado em 1908, bem como a promessa não-cumprida, feita a Gokhale. Em resposta, Gandhi citou um provérbio sânscrito: “O perdão é o ornamento do valoroso”. A entrevista entre Smuts e Gandhi se prolongou em negociações. “Gandhi”, disse Smuts, numa das entrevistas que tiveram, “não desejamos, desta feita, qualquer desentendimento; não desejamos reservas mentais ou de outra ordem; ponhamos todas as cartas na mesa.” Esse começo amistoso conduziu a um
progresso lento, porém contínuo. Cada uma das passagens e cada uma das palavras, do acordo que se planejava, foi dissecada. Finalmente, em 30 de junho de 1914, os dois homens sutis trocaram
cartas confirmando
os
termos do seu pacto.
O
documento, colocado em termos legais na Lei da Libertação indiana, foi submetido ao exame do Parlamento, na colônia do Cabo, e aprovado em julho, de conformidade com o “espírito nãopolêmico”, para o qual Smuts havia apelado. Pelos termos do ajuste, a taxa de três libras esterlinas, que pesava sobre os antigos trabalhadores indianos contratados, foi revogada, cancelando-se os pagamentos atrasados; os casamentos hindus, muçulmanos e parses foram declarados válidos; os indianos nascidos na África do Sul poderiam entrar na colônia do Cabo; mas a livre locomoção, entre as províncias da União, foi proibida em outras circunstâncias que não essas; o trabalho contratado, procedente da Índia, deveria cessar em 1920; os indianos livres, entretanto, poderiam continuar a entrar, e as esposas poderiam viajar para a África do Sul, a fim de se juntarem aos respectivos maridos. Homenageado numa dúzia de jantares, Gandhi deu, à nova lei, a denominação “Magna Carta dos Indianos da África do Sul”. Embora se tratasse apenas de um compromisso, porquanto os indianos continuariam a ficar segregados em suas províncias e não poderiam possuir terras no Transvaal, nem comprar ouro fosse onde fosse, ela constituía, não obstante, uma reivindicação do princípio da igualdade racial, e removia a “tintura racial”. Acima de tudo, representava uma vitória da alma-força, que — escreveu Gandhi, na Indian Opinion — “se se tornasse universal, revolucionaria os ideais sociais e liquidaria os despotismos, bem como o militarismo sempre crescente, sob o qual as nações do
Ocidente estão gemendo...”
Com sua missão cumprida, Gandhi, cansado mas feliz, acompanhado pela sra. Gandhi, que estava linda no seu sári branco com alegres desenhos floridos, e por Herman Kallenbach,
embarcou para a Inglaterra, em 18 de julho de 1914. Antes de zarpar, enviou de presente ao general Smuts um par de sandálias que ele fizera na prisão. Smuts usou essas sandálias em sua fazenda, perto de Pretória, até 1939, quando, num gesto de amizade, as devolveu a Gandhi, que se encontrava na Índia, dizendo: “Tenho usado estas sandálias durante muitos verões, a contar daquela época, muito embora eu sinta não ser digno de pisar no calçado de um homem tão grande”. Esse estado de alma e essa generosidade demonstraram ser ele merecedor das simpatias de Gandhi. Este não havia conseguido uma vitória sobre Smuts; havia conquistado o próprio Smuts. O ajuste se procedeu, não quando Smuts deixou de ter forças para lutar, e sim quando ele já não tinha mais coração para lutar. “Não é possível atirar vinte mil indianos ao cárcere”, declarou Smuts, nessa oportunidade. Sentiu-se feliz quando a luta chegou ao fim. Escrevendo em 1939, em elegante contribuição para um grosso volume comemorativo do septuagésimo aniversário de Gandhi, Smuts, já então um estadista mundialmente famoso, disse que homens como Gandhi “nos redimem de uma sensação de lugar-comum e de futilidade, e constituem uma inspiração para nós, a fim de não nos cansarmos de fazer o bem... Foi meu destino ser o antagonista de um homem pelo qual, mesmo naquela época, eu nutria o mais elevado respeito... Ele nunca esqueceu o fundo humano da situação, nunca perdeu as estribeiras, nunca sucumbiu ao ódio; sempre preservou o seu delicado humor nas situações mais desesperadas. Suas maneiras e seu espírito contrastavam marcadamente, mesmo naquele tempo, bem como em fases posteriores, com a impiedosa e brutal preponderância da força, que se acha em voga nos nossos dias”. Escrever sobre tais coisas, vinte e cinco anos após, era muito
mais fácil do que vivê-las. “Devo admitir francamente”, prosseguia o artigo de Smuts, “que suas atividades me impunham séria provação... Gandhi fez uso de uma nova técnica... Seu método consistia em infringir deliberadamente a lei, e em organizar seus sequazes num movimento de multidões.” Muitos de seus sequazes foram encarcerados, e “Gandhi, em pessoa, recebeu — o que, sem dúvida, desejava — um período de repouso e de tranqüilidade na prisão.
Para
ele,
tudo
correu
de
acordo
com
os
planos
preestabelecidos. Para mim — defensor da lei e da ordem — o que houve foi a costumeira situação difícil, o ódio de aplicar uma lei que não gozava de forte apoio popular, e, finalmente, a derrota, quando a lei foi revogada”. Foram necessários três fatores, para a consecução da vitória na África do Sul, em 1914: Primeiro, Gandhi. Em tributo prestado a Gandhi, em 1914, no Hibbert Journal, o professor Gilbert Murray, de Oxford, escreveu: “Cuidado ao lidar com um homem que não se incomoda com os prazeres sensuais, nem com o conforto, nem com o louvor, nem com as honrarias, mas que está simplesmente resolvido a fazer o que acredita que é direito. Esse é um inimigo perigoso e inquietante, porque seu corpo, que podemos sempre conquistar, nos proporciona um domínio muito insignificante sobre a sua alma”. Isso explica a parte de Gandhi na vitória. Segundo, houve os satyagrahi indianos, que lembravam os heróis descritos num poema de Shelley, que Gandhi de uma feita leu perante uma assembléia de cristãos, na Índia:
“Stand ye calm and resolute Like a forest close and mute, With folded arms and looks which are
Weapons of unvanquished war.
And if the tyrants dare, Let them ride among you there, Slash, and stab, and maim and hew, What they like, that let them do.
With folded arms and steady eyes, And little fear, and less surprise, Look upon them as they slay, Till their rage has died away”.1
Conservai-vos calmos e resolutos / Como uma floresta fechada e muda, / Com braços cruzados e olhos que são / Armas de não vencida guerra. // E se os tiranos ousarem, / Deixai que cavalguem por entre vós, ali, I Que golpeiem, que apunhalem, que decepem e abatam a machadadas, / Deixai que façam aquilo que for do agrado deles. // Com braços cruzados e olhos fitos, / E pouco medo, e menos surpresa, / Contemplai-os de cima para baixo, enquanto eles chacinam, I Até que a fúria deles se exaura e se dissipe. (N. do T.) 1
Terceiro, houve Smuts. Um ditador não teria hesitado em prender vinte mil indianos, ou, com efeito, em mandar fuzilá-los, nem em encarcerar ou enforcar Gandhi. Não havendo democracia, não haveria Gandhi. Smuts concorreu para a formação de Gandhi, pelo fato de não o destruir. Gandhi elevou a estatura de Smuts.
Parte segunda
Gandhi na Ă?ndia
10 Ouvidos e bocas abertos Na Índia, as qualidades espirituais de Gandhi foram logo percebidas. Depois do seu regresso, em 1915, os presentes, nas reuniões, gritavam: “Mahatmaji, Mahatmaji!” (O sufixo “ji” indica afeição e respeito.) Algum tempo depois, o título de mahatma lhe foi conferido pelo poeta Rabindranath Tagore, ganhador do prêmio Nobel de literatura de 1913. “Grande alma em vestes de camponês”, escreveu o poeta; e a coroa pousou para sempre na cabeça do santo político. Tagore e Gandhi foram os indianos mais notáveis da primeira metade do século XX. Os dois se reverenciavam reciprocamente. Tagore chorou ao ver a Índia reduzida à condição de “eterno trapeiro, rebuscando nas latas de lixo dos outros”, sentimento compartilhado por Gandhi; e rezava, como fazia o Mahatma, para “a magnífica harmonia de todas as raças humanas”.
Os
dois
eram
nacionalistas
e,
ainda
assim,
internacionalistas, sentimentalmente inseparáveis e almas gêmeas até o fim. Mas eram também profundamente distintos um do outro, e travavam freqüentes batalhas verbais. Gandhi era frugal; Tagore, pródigo; Gandhi, o asceta emaciado, de cabeça e rosto raspados; Tagore, o homem de basta cabeleira branca, de grande barba alva, rico intelectual aristocrata, com um semblante de clássica beleza; Gandhi, o arrozal; Tagore, o roseiral; Gandhi, o general; Tagore, o arauto; Gandhi, o braço a trabalhar; Tagore, a
voz a cantar. Gandhi, por assim dizer, sentava-se numa praça de mercado pela qual transitavam dezenas de milhões de pessoas com suas carretas, suas preocupações, suas mercadorias e seus pensamentos, mas ele se sentava e permanecia imóvel, e, dentro dele, havia paz. Sentir-se-ia sufocar numa torre de marfim, ou numa altura olímpica, ao passo que Tagore dizia: “Se ouço uma canção, meu sítar pode captar a melodia, e posso juntar-me ao coro, porquanto sou cantor. Mas, no clamor louco da multidão, minha voz se perde, e eu me sinto desorientado”. “Os milhões de sofredores”, dizia Gandhi a Tagore, “pedem um poema: alimento revigorante.” Tagore dava-lhes música. Em Saintiniketan, os discípulos de Tagore cantavam e dançavam, usavam grinaldas e tornavam a vida bela. Quando Gandhi lá chegou, em visita, persuadiu os professores e os estudantes a ir para a cozinha, a coletar o lixo, a limpar as privadas, a varrer os terreiros. Tagore aquiesceu, tolerantemente, dizendo: “A experiência contém a chave da swaraj1”, ou do autocontrole, mas, quando Gandhi partiu, a experiência entrou em colapso. Talvez — visto que as origens provinciais são tão importantes na Índia (em conseqüência de separações lingüísticas e dos escassos meios de transporte) — a diferença entre Tagore e Gandhi fosse a diferença existente entre o Kathiawar isolado e a Bengala cosmopolita. Tagore aceitava o presente e o Ocidente, com sua cultura e suas máquinas, e emancipara-se a si mesmo da religião. Mas a torrente vital de Gandhi era o hinduísmo; o passado da Índia, a sua inspiração; Deus, o seu companheiro de todos os dias. Em retrospecto, ele assume a estatura de um reformador do hinduísmo, mais ou menos como Buda. Gandhi lutava pelo hinduísmo, mas contra as suas deformações, sendo, simultaneamente, um produto e um crítico da civilização ocidental. Amava o Ocidente, mas se opunha
à sua influência sobre a Índia; amava a sua pátria, mas condenava-lhe as falhas. Ideologicamente, mantinha-se com um pé no individualismo e no nacionalismo do século XIX europeu, e, com o outro, na época remota da glória e do obscurantismo hindustânicos. As duas correntes se confundiam nele, e ele procurava conseguir a mesma síntese no movimento em prol da independência indiana. Tentava orientar esse movimento para o que de melhor havia no Ocidente: Thoreau, Emerson, Ruskin, Mazzini e os socialistas utópicos (não os marxistas). Destes, hauria sua defesa do homem contra a máquina, e entrelaçava tudo com
as
raízes do hinduísmo.
Era
deles também
a
propugnação do individual contra o comunitário, que entretanto não encontrava contrapartida nos costumes sociais da Índia.
1
“Autonomia.” (N. do E.)
Gandhi queria um novo homem indiano no dia de hoje, não apenas uma Índia livre no dia de amanhã. Para ele, a verdadeira liberdade da Índia significava o surgimento de um indivíduo indiano livre e novo. Ele acreditava, com Tagore, que as algemas da Índia eram feitas por ela mesma. Tagore escreveu: “— Prisioneiro, dize-me quem foi que criou essa inquebrável corrente? — Fui eu — disse o prisioneiro — quem forjou, com todo o cuidado, essa corrente”. As idéias de Gandhi, diversas das convencionais, sobre a independência
indiana,
evoluíram
muito
cedo,
e
espontaneamente, na sua própria personalidade, pois ele as expressou antes de adquirir grande experiência, como adulto, na Índia. Tais idéias apareceram em 1909, no seu primeiro livro, Autonomia indiana, escrito com as duas mãos, no navio a vapor, de regresso de uma viagem de serviço à Inglaterra. Gandhi
permitiu que o livro fosse publicado em 1921, sem modificações, e, na introdução a uma outra edição ainda, em 1938, declarou: “Nada vi que me induzisse a modificar os pontos de vista nele explanados”. O panfleto de setenta e seis páginas, portanto, permanece como seu credo. “Alguns ingleses afirmam que eles tomaram e conservaram a Índia por meio da espada”, escreveu Gandhi. “As duas afirmativas são erradas. A espada é de todo inútil para conservar a Índia. Somente nós é que conservamos os ingleses... Gostamos do seu comércio; eles nos agradam por seus métodos sutis, e conseguem de nós o que desejam... Nós reforçamos o domínio deles pela discórdia entre nós mesmos.” A seguir, Gandhi formulou os princípios que deveriam orientar seus esforços através de decênios. “Se agirmos com justiça, a Índia será libertada mais cedo”, afirmou ele. “Vós vereis, igualmente, que, se evitarmos cada inglês, como se ele não fosse nosso inimigo, a autonomia será postergada. Se, porém, nós nos mostrarmos justos para com eles, receberemos seu apoio.” Não acusava nem maldizia os ingleses, e, contudo, esperava que a Índia livre passasse a ser diferente da Índia britânica. Alguns argumentavam que a Índia, depois da libertação, se assemelharia ao Japão, “com a nossa própria marinha, o nosso exército... o nosso próprio esplendor; e, então, a voz da Índia ressoará pelo mundo”. “Em outras palavras”, replicou Gandhi, “vós desejais a governança inglesa sem os ingleses. Vós quereis a índole do tigre, sem o tigre... Vós faríeis a Índia tornar-se inglesa... Esta não é a swaraj que eu desejo.” Os nacionalistas indianos, que ele havia encontrado em Londres, tinham escarnecido de sua preocupação com o futuro ético e social da Índia livre. O único objetivo de tais nacionalistas
consistia na expulsão dos ingleses, como Mazzini e Garibaldi haviam expulso os senhores estrangeiros da Itália. Gandhi observava, hesitante: “Se vós acreditais que a nação italiana é feliz porque os italianos governam a Itália, estais tateando na escuridão... De acordo com Mazzini, (a liberdade) destinava-se a todo o povo italiano, isto é, aos seus lavradores. A Itália de Mazzini ainda permanece em estado de escravidão”. Gandhi salientou o mesmo ponto numa carta dirigida a lorde Ampthill, antigo governador de Madrasta, em 9 de outubro de 1909: “Eu devia mostrar-me desinteressado quanto a saber quem é que governa”. A consideração importante é saber como governa. Os governantes indianos poderiam não ser melhores do que os governantes britânicos, exatamente como “um Rockefeller indiano pode não ser melhor do que um Rockefeller norte-americano”. Gandhi olhava para além da liberdade nacional; punha seus olhos na libertação social. Trinta e oito anos antes da independência, seus olhos de vidente previram os problemas que minam a Índia independente
de
hoje.
Não
era
a
nacionalidade
dos
administradores que lhe interessava, e sim os seus métodos e a sua moralidade. Esse interesse para com o conteúdo da liberdade, para com a verdade por trás da fachada, da forma e da bandeira, caracterizou os seus esforços, de 1915 a 30 de janeiro de 1948, e ele explica vários intervalos enigmáticos ocorridos quando ele abandonou a luta contra os britânicos para passar a lutar por um princípio. Gandhi aventou essas idéias durante o seu primeiro ano na Índia. G. K. Gokhale, presidente da Sociedade dos Servidores da Índia, lhe havia “ordenado” que passasse esse ano com “seus ouvidos fechados, mas com sua boca aberta”. Entretanto, nas muitas
reuniões,
nas
quais
os
compatriotas
agradecidos
comemoravam os atos de Gandhi na África do Sul, ele, naturalmente, falava — falava num tom franco, nada impressivo, de conversação. Alguns se mostravam desiludidos. Haviam esperado um novo gigante, o homem leonino que havia derrotado Smuts. Ao invés disso, viam uma figura pequena e magra, metida num turbante ridiculamente amplo e num lençol esvoaçante — uma figura que mal conseguia fazer-se ouvir, e que, para levar vantagem, dizia coisas estranhas. Uma fotografia, tirada nesse primeiro ano, mostra-o sentado numa plataforma, com os calcanhares encostados às coxas, nu, se não fosse o lençol que lhe chegava aos joelhos, fazendo discurso enquanto, ao seu redor, se aglomeram políticos indianos, em roupas européias. Gandhi dizia a esses políticos que rasgassem tais trajes. Como poderiam os líderes, envergando roupas da Bond Street, calças e paletós de Bombaim, chegar ao coração dos camponeses? Como poderiam os oradores, falando inglês, atingir-lhes a alma? Camponeses? Mas os políticos nada tinham que fazer com os camponeses. Os nacionalistas e os autonomistas indianos, bem como o Congresso Nacional da Índia, esperavam persuadir os britânicos a transferir parte do seu poder aos indianos. Com isso em mente, eles envergavam fraques negros e calças listradas; liam petições num inglês impecável, dirigidas a polidos burocratas ingleses. O templo da independência da Índia, pensavam eles, seria forrado de memoriais dirigidos a um soberano extremamente generoso, e ao sátrapa desse soberano. Outros, principalmente na tumultuária província de Bengala, treinavam suas mãos cor de cobre e seus olhos castanhos, enormes e em brasa, para disparar tiros contra esses burocratas ingleses. Não era por meio do terror, ensinava Gandhi, e não era por meio
de
“suplicantes”
aos
pés
dos
governantes
ingleses,
amestrados, como Tagore dizia, no uso da “correta lamúria gramatical”, que poderia ser conseguida a liberdade. “Nenhuma contribuição de papel nos dará jamais governo próprio”, disse Gandhi, a uma assembléia ilustre de notáveis e de estudantes, na cerimônia de inauguração do Hindu University Central College, de Benares,
em
fevereiro
de
1916.
“Nenhuma
quantidade
de
discursos nos tornará preparados para um governo próprio. Somente a nossa conduta nos tornará preparados para isso.” Muitos marajás e muitos rajás se encontravam na assembléia, fazendo “uma exibição de jóias”, disse ele, “que constituía um espetáculo opulento”. “Despojai-vos dessas jóias e colocai-as a serviço dos vossos compatriotas na Índia”, instigou. Mas Gandhi não esperava que eles assim procedessem. “Nossa salvação só poderá vir através dos trabalhadores das fazendas. Nem os advogados, nem os médicos, nem os ricos senhores de glebas poderão proporcioná-la.” A melhoria das aldeias era a Primeira Liberdade de Gandhi. Mais de oitenta por cento da população da Índia viviam nas aldeias; e os que ali viviam eram pobres, analfabetos, enfermos, desanimados. A libertação do camponês da pobreza não poderia ser a realização de uma pequena classe superior, nem o presente de
uma
potência
estrangeira.
Os
camponeses
tinham
de
conquistá-la. Gandhi desejava, para sua pátria, uma metamorfose psicológica que lhe pudesse dar liberdade interior e, depois, inevitavelmente, liberdade exterior; porque, uma vez adquirida pelo povo a dignidade individual, esse povo poderia insistir na exigência de melhor nível de vida, sem que ninguém conseguisse mais conservá-lo em estado de escravidão. As distâncias na Índia são grandes, e as comunicações, pobres. Poucos sabem ler, e poucos possuem radioreceptores.
Conseqüentemente, os ouvidos da Índia são enormes e sensíveis. Em 1916, esses ouvidos começaram a captar a voz de um homem que era corajoso e indiscreto — de um homem pequeno, que amava os pobres e que os defendia aos olhos dos ricos —, de um homem santo. Gandhi ainda não havia exsurgido à categoria de figura nacional. As centenas de milhões de habitantes da Índia não o conheciam. Mas a fama de um novo mahatma ia se difundindo. A força, as riquezas, os elefantes, as jóias, os exércitos e os policiais conseguem a obediência da Índia. Mas é a devoção que lhe conquista o coração. Depois, Gandhi sentou-se em seu ashram. Na Índia antiga, o ashram era um retiro religioso para monges. Seus membros renunciavam ao mundo, e, contemplando-se a si mesmos, por dentro e por fora, esperavam o fim. O ashram de Gandhi, entretanto, permaneceu em íntimo contato com o mundo. Na verdade, tomou-se o âmago da Índia. Os indianos contemplaram aquele retiro, e começaram uma nova vida. O Satyagraha Ashram situou-se primeiro em Kochrab, e depois, em caráter permanente, em Sabarmati, do outro lado do rio Sabarmati, a contar da superpovoada cidade de Ahmedabad. Ali, enraizando-se na areia, no solo e na alma do povo da Índia, Gandhi adquiriu pleno vigor. O ashram consistia num grupo de cabanas baixas, pintadas de branco, em meio a um horto de árvores frondosas. Abaixo do conjunto, via-se o rio, onde as mulheres batiam suas roupas sobre pedras chatas, e por onde vacas e búfalos vadeavam. Ao redor, o cenário apresentava-se delicadamente
pastoral;
mais perto,
porém, encontravam-se
massas retorcidas de cortiços como que amontoados uns sobre os outros, confundindo-se abaixo das feias chaminés das fábricas de tecidos de Ahmedabad, cujos proprietários financiavam o ashram.
O quarto de Gandhi era mais ou menos do tamanho de uma cela; suas janelas tinham barrotes de ferro, ali colocados por um ocupante anterior. Com exceção dos períodos passados na prisão, Gandhi viveu naquela cela durante dezesseis anos. Alguns dos mais ativos líderes do movimento de independência começaram sua carreira política aos pés do Mahatma, em Sabarmati. A população do ajuntamento flutuou entre trinta almas, no começo, e duzentas e trinta, quando atingiu o número máximo. Os membros do povoado tratavam das árvores frutíferas, teciam, fiavam, plantavam trigo, rezavam, estudavam e ensinavam nas aldeias circunvizinhas. Um ar de repouso, de tranqüilidade, ainda pairava sobre o ashram, quando eu o visitei, em 1948 — um decênio e meio depois de Gandhi transferir-se para outro lugar. Até hoje, o coração dos indianos sente dor pela glória perdida de sua pátria. Gandhi proporcionava-lhes bálsamo. Alguns procuravam uma ilusão de força, torcendo a cauda do leão; e esse gesto se tornou reflexo da ação que persistiu depois de o leão haver desaparecido. Gandhi não sucumbia freqüentemente a essa tentação. Ao contrário, sentava-se em meio às árvores, religiosamente
concentrado
e
imperturbável,
não
mais
macaqueando os cavalheiros ingleses, e sim assemelhando-se a um santo da Antiguidade, e recordando à nação que ela já havia visto muitos conquistadores, mas os havia conquistado pelo simples ato de se conservar fiel a si mesma. Gandhi restaurou a confiança da Índia. A vara mágica de sua personalidade tornou-se a lança de sua nação. A Índia teve grandes homens, antes de Gandhi, que sonharam e trabalharam em prol da regeneração nacional. Eram como luminosos planetas, num firmamento remoto — estrelas fulgurantes, lançando sua luz sobre uns poucos satélites. Gandhi
encontrava-se firmemente implantado na terra. Recebia sustento do povo que caminhava sobre ela, e, por sua vez, dava-lhe frutos. Era do povo, pelo povo e para o povo.
11 O Mahatma Gandhi e os britânicos Gandhi não era um hindu conformado, nem um conformado nacionalista. Nenhum “ismo” o prendia em suas garras. Ele nunca mordera uma isca. Era independente, imprevisível, e, por isso, um incitador e uma pessoa difícil para os britânicos. “Será que eu me contradigo?”, perguntava-se. “A consistência é um fantasma.” Gandhi tinha a coragem do rebelde, que consiste em ser fiel a si mesmo no dia de hoje, mas diferente no de amanhã. “Meu objetivo”, escreveu ele, de uma feita, “não está em ser coerente em relação às minhas afirmativas anteriores sobre uma determinada questão, e sim em ser coerente em relação à verdade, tal como ela se me apresenta num determinado momento. O resultado é que eu evoluí de verdade em verdade...” Seu pacifismo, como sua filosofia social, teve um crescimento lento. Em 1914, em viagem da África do Sul para a Índia, ele organizou um Corpo de Ambulância, composto de estudantes indianos, para servir o exército britânico, e admitiu, acusando-se a si mesmo, que “aqueles que se limitam ao atendimento dos feridos em campo de batalha não podem ser absolvidos da culpa de guerra”. Na Índia, mais tarde, incitou os indianos a cooperar com o esforço britânico de guerra. “Eu descobri”, disse ele, na defesa dessa atitude impopular, “que o império britânico possui certos ideais pelos quais eu me
apaixonei, e um desses ideais é o de que todo súdito do império britânico dispõe da maior liberdade possível para sua energia e para sua honra... Disse, mais de uma vez, que o melhor governo é o que governa menos. Descobri, no quadro do império britânico, que é possível para mim ser governado menos. Daí minha lealdade para com o império britânico.” Em julho de 1918, Gandhi recrutou elementos para o exército britânico, na cidade e nas zonas rurais. “Não pode haver parceria entre o bravo e o afeminado. Nós somos contemplados como um povo covarde. Se desejamos ficar livres desse reproche, temos de aprender a usar as armas.” Os camponeses, nas aldeias, retorquiam: “Vós sois pregador da não-violência”, diziam, “como podeis pedir que peguemos em armas?” “A parceria com o império é o nosso objetivo bem definido”, respondia ele. Gandhi queria que a Índia gozasse de situação semelhante à do Canadá, da Austrália e da Nova Zelândia. A idéia da separação completa ainda não havia conquistado o seu espírito, e estava longe da mente da maior parte dos nacionalistas indianos. “Se o império desaparecer, com ele desaparecerão as nossas mais caras aspirações”, argumentava. Em 1942, interroguei Gandhi a respeito de sua atitude favorável à guerra, no decurso do primeiro conflito mundial. “Eu tinha acabado de regressar da África do Sul”, explicou ele. “Ainda não havia encontrado meu ponto de apoio. Não me sentia seguro de minhas convicções.” Visto que transigia com relação a seu nacionalismo, a fim de permanecer nos limites do império, a sua inelutável honestidade o forçava a transigir também quanto a seu pacifismo, a fim de recrutar elementos para o exército britânico. O realismo triunfava sobre a religião. A política diluía o seu pacifismo.
Até essa altura, Gandhi tinha tido apenas uma pendência com os britânicos. O
episódio
começou
durante
a
convenção
anual
do
Congresso Nacional indiano, em Lucknow, nas Províncias Unidas, em dezembro de 1916. “Um camponês”, narrou Gandhi, “veio a mim; tinha o aspecto pobre e emaciado de qualquer outro camponês da Índia, e disse: ‘Eu sou Rajkumar Shukla. Nasci em Champaran, e desejo que visiteis o meu distrito’.” Gandhi nunca tinha ouvido mencionar aquele lugar; situava-se no sopé do Himalaia, no Estado de Bihar, nas vizinhanças do remoto reino do Nepal. Os meeiros estavam enfrentando dificuldades nas suas relações com os proprietários de terras britânicos. Não iria Gandhi ouvir-lhes as queixas? Era o que o camponês lhe perguntava. O Mahatma esclareceu que tinha compromissos em outros lugares. Shukla seguiu-o por toda parte, e, finalmente, chegou ao ashram. Durante semanas a fio, manteve-se constantemente ao lado de Gandhi. “Fixai uma data”, suplicava ele. Impressionado pela tenacidade do meeiro, Gandhi marcou um encontro em Calcutá, para vários meses depois. Shukla estava lá, de cócoras, quando Gandhi chegou, e esperou até que o Mahatma
ficasse
livre.
A
seguir,
os
dois
viajaram
para
Champaran. Gandhi encontrou dificuldades para esclarecer todos os fatos. Primeiro, visitou a associação dos proprietários de terras britânicos. O secretário lhe disse que não podia dar informações a pessoas estranhas à organização. Gandhi declarou que não era uma pessoa estranha. A seguir, visitou o comissário britânico, que,
ao
que
Gandhi
relata,
“começou
a
ameaçar-me,
aconselhando-me, afinal, a retirar-me dali...” Gandhi ficou.
A situação, de conformidade com as verificações de Gandhi e com a pesquisa histórica subseqüente, era esta: mais de um milhão de camponeses cultivava terra alugada de senhores ingleses; os locatários podiam plantar arroz, trigo, milho, cevada, ou qualquer outro vegetal que escolhessem; mas quinze por cento das terras tinham de ser semeados de índigo; a colheita do índigo devia ser toda entregue aos proprietários das terras, a título de pagamento do aluguel de toda a área cultivada. Entretanto, nos primeiros anos do século XX, a indústria de tintas químicas, na Alemanha, havia conseguido produzir e aperfeiçoar um índigo sintético; em conseqüência, entrou em colapso o mercado do índigo natural. Os proprietários de terras, em vista disso, deram ordens aos seus meeiros para que não plantassem mais índigo e, simultaneamente, aumentaram o aluguel. Agiram assim apoiandose num antigo acordo que dispunha que, se um camponês deixasse de cultivar índigo, seu aluguel poderia ser elevado. Os camponeses, porém, haviam tido notícias relativas ao índigo sintético, e ficaram sabendo do motivo pelo qual os proprietários não queriam mais que se plantasse índigo; portanto, resistiram ao aumento do aluguel. Os proprietários responderam com a coerção; os meeiros passaram a ser surrados; suas casas foram invadidas, seu
gado,
seqüestrado.
Coagidos,
milhares
de
camponeses
concordaram com os aumentos de aluguel. A pendência começara em
1912;
impotentes.
os Foi
camponeses isso
que
mostravam-se tornou
ressentidos,
Rajkumar
Shukla
mas tão
decididamente paciente no acompanhamento dos passos de Gandhi, até conseguir levar o Mahatma a Champaran, em 1917. Um dia, o Mahatma, no decorrer de suas investigações, viajava para uma aldeia, no dorso de um elefante, quando um policial o alcançou e o conduziu de volta à cidade. Ali, Gandhi
recebeu
uma
notificação
oficial,
ordenando-lhe
que
saísse
imediatamente de Champaran. Gandhi assinou a ordem, mas escreveu, no seu verso, que lhe desobedeceria. Em conseqüência, foi chamado ao tribunal, no dia seguinte. A vizinhança do tribunal se apinhou com a presença de milhares de camponeses que haviam tido notícia de que um mahatma chegara para os auxiliar em suas dificuldades com as autoridades. A polícia pediu a Gandhi que a ajudasse a conter a multidão. Gandhi mostrou-se amigo e cooperador; esta foi a prova concreta de que o poder das autoridades, até então não discutido e temido, poderia ser insuficiente, quando desafiado. No interior do tribunal, Gandhi declarou-se culpado. Havia desrespeitado a ordem de sair de Champaran, disse ele ao tribunal, “não por falta de respeito para com a autoridade constituída, mas em obediência à lei superior do nosso ser, à voz da consciência”. Concluiu pedindo a aplicação da pena que lhe coubesse. O magistrado disse que anunciaria a sentença depois de um recesso de duas horas; até então, Gandhi seria posto em liberdade, após o pagamento de fiança. Gandhi recusou-se a isso. Foi posto em liberdade sem ela. Quando o tribunal tornou a se reunir, o juiz declarou que redigiria o veredicto dentro de alguns dias. Entrementes, permitiu que o Mahatma permanecesse em liberdade. Vários dias após, o caso foi encerrado, em obediência a instruções procedentes de autoridade superior. A desobediência civil havia triunfado, afirmou Gandhi, pela primeira vez, na Índia. “O que eu fiz”, explicou Gandhi, “foi uma coisa muito comum. Declarei que os britânicos não podiam impedir minha locomoção em minha própria pátria.” Em verdade, nada havia de muito comum nisso.
Gandhi permaneceu em Champaran sete meses, e regressou para duas breves estadas. A visita, empreendida ocasionalmente, pela insistência de um lavrador meeiro analfabeto, na esperança de que duraria uns poucos dias, tomou cerca de um ano da vida do Mahatma. Afinal, os proprietårios de terras concordaram em
desistir de novos aumentos de aluguel e em reembolsar vinte e cinco por cento dos aumentos que já haviam recebido. Gandhi achou que o montante do reembolso importava menos do que o consentimento dos donos das plantações, no sentido de o realizar. Durante sua estada no distrito, Gandhi promoveu a ida para lá de um médico, para ministrar cuidados aos camponeses, e de professores para dar instrução às crianças. Kasturbai também para lá se dirigiu, passando a ensinar normas de higiene às mulheres. A experiência de Champaran obedeceu a um padrão tipicamente gandhiano; começou, não como um ato de desafio aos britânicos, mas como um esforço destinado a aliviar o sofrimento dos pobres. A política de Gandhi surgiu dos problemas práticos de milhões de pessoas desfavorecidas. A sua foi uma lealdade não para com abstrações, e sim para com seres humanos, em seu diaa-dia. Gandhi não manipulava mentalmente as idéias; punha-as em prática. Antes de deixar Champaran, Gandhi organizou uma junta de preeminentes advogados de Bihar, inclusive Rajendra Prasad, que mais tarde se fez presidente da Índia livre, destinada a proteger os meeiros, a fim de que estes não fossem molestados. Os advogados indianos
pediram
o
concurso
de
Charles
Freer
Andrews,
missionário pacifista inglês, que se havia tornado discípulo do Mahatma. Andrews concordou, mas Gandhi pôs objeções. “Vós pensais”, declarou ele aos advogados, “que, nesta luta desigual, talvez seja uma boa medida ter um inglês do nosso lado. Isso mostra a fraqueza do vosso coração. A causa é justa, e vós deveis confiar em vós mesmos, para ganhar a batalha.” “Ele tinha lido corretamente o nosso pensamento”, comentou Rajendra Prasad, “e nós não tivemos resposta... Gandhi, assim,
nos deu uma lição de autoconfiança.” Na fase de Champaran, Gandhi desenvolveu um enorme esforço no sentido da regeneração do seu povo, porque confiava na capacidade britânica de adaptação política. Se os indianos demonstrassem, por sua disciplina interior, por sua unidade, por sua dignidade e por sua confiança, merecer mais liberdade, a Inglaterra a proporcionaria. Essa tese recebeu extraordinário impulso com a adoção, em dezembro de 1916, do Pacto de Lucknow, que entrou em vigor entre o Congresso Nacional indiano, predominantemente hindu, e a Liga Muçulmana, cujo presidente, Mohammed Ali Jinnah, disse que sua organização “agora está em pé de igualdade com o Congresso Nacional indiano, pronta para participar de quaisquer esforços patrióticos em prol do progresso do país, considerado este como um todo”. Com hindus e muçulmanos concordes quanto a um amplo programa político moderado de reforma, cujos benefícios presumíveis as duas comunidades compartilhariam, muitos indianos esperaram prematura satisfação à petição enviada pelo Congresso a Sua Majestade, o rei-imperador, no sentido de a “Índia ser elevada, da posição de dependência, à de parceiro em pé de igualdade, no império, com os domínios governados por si próprios”. Sua esperança animosa foi revigorada pela nomeação de Sir Edwin S. Montag para o posto de secretário de Estado para a Índia. Sir Edwin, com efeito, anunciara, em 20 de agosto de 1917, na Câmara
dos
Comuns,
uma
nova
política
britânica,
que
contemplaria “não somente o aumento da participação dos indianos em todos os ramos da administração”, mas também a outorga de “instituições de autogovernança, tendo em vista a realização progressiva de um governo responsável na Índia, considerada esta como parte integrante do império britânico”.
Essas
palavras
foram
tomadas
como
penhor
de
iminente
concessão da categoria de domínio. Vastos círculos da Grã-Bretanha desejavam satisfazer as aspirações políticas normais e legítimas da Índia, ao passo que outros, de espírito não tão liberal, percebiam que a guerra, na qual
meio
milhão
de
soldados
indianos
havia
combatido
valentemente, e a doutrina de autodeterminação do presidente Woodrow Wilson haviam acirrado de maneira excessivamente profunda os povos coloniais, de modo que já não era permissível um simples retorno ao obtuso imperialismo antebellum. Muito antes, o primitivo período de ataque e pilhagem, de Robert Clive (em que se registraram a luta, os embustes, as artimanhas, as intrigas, a política e Deus sabe o que mais, com cujo emprego a Inglaterra ganhara poder na Índia) e do governador-geral Warren Hastings (cujo processo, na Inglaterra, de fevereiro de 1788 a abril de 1795, revelara grande falta de escrúpulo e inegável corrupção), havia chegado ao fim. Um ano depois do Motim de 1857, a governança da Companhia das Índias Orientais foi abolida, e a rainha Vitória, assumindo o governo da Índia, nomeou lorde Canning para a qualidade de seu primeiro vice-rei. Daí por diante, e lentamente, os ideais britânicos de governança decente se infiltraram na administração da Índia. Não obstante, o imperialismo britânico não podia negar suas origens, nem aquietar seus receios. — Afinal de contas — disse-me lorde Linlithgow, vice-rei britânico, em 1942 — nós somos a potência de ocupação. Desde o Motim, temos hesitado em pôr armas nas mãos dos indianos. De 1858 a 1947, a governança britânica continuou a ser ocupação estrangeira. Os ingleses estavam na Índia, nunca foram da Índia. Muitos funcionários britânicos se mostravam devotados
ao país, e, depois de vinte ou mais anos de serviço, se sentiam como que em casa na Índia, e como estrangeiros quando rumavam para seu lar, na Inglaterra. Ficavam com o coração partido e arruinavam a própria saúde, tratando de solucionar problemas difíceis e de fazer face a um povo também difícil, cuja gratidão desejavam, mas raramente recebiam. Os britânicos eram senhores em casa alheia. Sua simples presença constituía humilhação. Imperialismo é governo de outro povo, por outro povo, para outro povo. Constitui insulto perpétuo, porque parte da premissa segundo a qual os de fora têm o direito de governar os de dentro, os quais, entretanto, não podem governar-se por si mesmos. Ainda que os britânicos houvessem convertido a Índia numa terra banhada de leite e de mel — e, em verdade,
fizeram
com
que
alguns
desertos
se
banhassem
amplamente de água —, seriam sempre malvistos. A sujeição alimenta o desejo de libertação. Por isso, o imperialismo cava sua própria sepultura — e não pode haver bons colonizadores. No início do século XX, o número de indianos instruídos aumentou. Uma classe média indiana se constituiu; numerosos indianos, enriquecidos na indústria e no comércio, desejavam dispor de espaço econômico. Os nativos, que aspiravam ao poder, se viam diminuídos pela governança alheia. A vitória do Japão contra a Rússia em 1904-1905 (a primeira vez em que uma nação asiática
derrotou
brancos
europeus)
estimulou
a
oposição
nacionalista dos indianos à Inglaterra. Alguns políticos britânicos desejavam que se fizesse frente à hostilidade da Índia com sangue e ferro; outros, que se abrandasse essa hostilidade por meio de reformas. Em 1885, lorde Dufferin,
vice-rei
britânico,
antecipando-se
astutamente
a
tumultos populares, e na esperança de os canalizar para a calma
legalidade, amparou o Congresso Nacional indiano. Os vice-reis que se seguiram abençoaram o gesto. Mas os autocratas do ferro e sangue não prestaram auxílio aos moderados utilizadores de luvas de pelica. Debatendo-se entre sua sagacidade política e sua ânsia de domínio, os ingleses, através dos anos, cederam tanto poder aparente quanto as circunstâncias requereram, e tão pouca substância
desse
poder
quanto
as
condições
permitiram.
Inevitavelmente, quanto mais concessões eles faziam, tanto mais eram solicitados a fazer; e os intransigentes, à vista disso, se opunham
a
qualquer
concessão.
Para
caracterizar
essa
mentalidade intransigente, o Relatório Hunter, de 1920 — um documento oficial britânico —, citou o general Drake-Brockman, de Deli, assinalando que “a força é a única coisa para com a qual o asiático manifesta algum respeito”. Essa foi uma atitude generalizada na administração britânica. O mesmo se diga do conceito
do
marechal-de-campo,
lorde
Roberts:
“Foi
essa
consciência da inerente superioridade do europeu que conquistou para nós a Índia. Por mais bem-instruído e por mais capaz que seja um nativo, e por mais valoroso que ele demonstre ser, acredito que nenhuma categoria que possamos outorgar-lhe o levará a ser considerado um igual por um funcionário britânico”. Os indianos o sabiam, e tinham horror a isso. Sir Edwin Montagu definiu a governança britânica na Índia como sendo feita de
“excesso de
madeira, excesso de
ferro, excessivamente
inelástica e excessivamente antediluviana, de modo a não poder servir às suas finalidades nos tempos modernos”; em outras palavras,
era
vegetomineral,
como
um
complexo
incapaz
de
mudança,
dinossauro mas,
ainda
político assim,
conservado em vida pela alimentação que lhe era proporcionada
pelos intransigentes, em Londres, e pelos teimosos, em Deli. A seu tempo, conseqüentemente, a implícita promessa de condição de domínio, feita por Montagu, na fase da maré baixa dos êxitos britânicos de guerra, transformou-se em pergaminho amarelecido; e, quando a paz veio, uma Índia desiludida se fez tumultuada. Também Gandhi se desiludiu. Seu espírito era como um campo de batalha em que a cautela pelejava constantemente contra a paixão. Pronto a morrer por um princípio, ele preferia a transigência e a arbitragem. Era combatente por natureza, e pacificador nato. Desejava colaborar com os britânicos, e esperava que o século XX vencesse o antigo dinossauro. Todavia, quando a condição de domínio foi posta na prateleira — quando, em vez dessa condição, se confirmaram medidas repressivas de tempo de guerra —, o Mahatma empreendeu sua primeira ação deliberada contra o imperialismo britânico na Índia.
12 Sangue Tribunais secretos vinham sentenciando gente em todas as partes da Índia, pelos crimes de sedição e de oposição. Bal Gangadhar Tilak, nacionalista indiano de proa, foi encarcerado, dando-se o mesmo com a sra. Annie Besant, teosofista irlandesa de nascimento, oradora brilhante, que passara a amar, a viver e a trabalhar em favor da Índia. Dois poderosos líderes muçulmanos — os dois irmãos Shaukat e Mohammed Ali — se encontravam igualmente na prisão, com milhares de nacionalistas de menor influência. Os jornais haviam sido amordaçados pela censura de
tempo de guerra. Quando terminou a Primeira Guerra Mundial, em novembro de 1918, os indianos esperaram a restauração das consideráveis liberdades civis, que haviam usufruído, sob governança britânica, em tempos normais. Sentiram-se, pois, penosamente surpresos quando os rigores de tempo de guerra se prolongaram por força das leis Rowlatt, aprovadas pelo Conselho Legislativo Imperial de Nova Deli, em 18 de março de 1919. Classificando essa legislação de “injusta, subversora do princípio da liberdade e destruidora dos direitos elementares do indivíduo, no qual se baseia a segurança da comunidade considerada como um todo, e do próprio Estado”, Gandhi fizera campanhas contra ela. A ineficácia apoquentava-o. O Mahatma passara a ser um símbolo de força, para uma nação que se sentia impotente. A despeito de sua fraqueza, ele representava a virilidade; obteve alguns resultados; ele, pelo menos, reagia poderosamente. A Índia havia sido esvaziada de sua antiga robustez, ou assim pensavam os indianos. Gandhi estava lhe restaurando o vigor. Mas todos os protestos contra as leis Rowlatt haviam sido ignorados. Os indianos não significavam coisa alguma. Gandhi não significava coisa alguma. Que fazer? Em Madrasta, convalescendo dos efeitos de disenteria deliberadamente provocada por experiências dietéticas, Gandhi se pôs à procura de uma resposta. Certa manhã, anunciou, ao seu hospedeiro, Chakravarti Rajagopalachari, mais tarde governadorgeral da Índia: “Esta noite, veio-me a idéia, em sonho, de que deveremos convocar a nação para observância de um hartal geral”. Sendo uma suspensão completa da atividade econômica — com as lojas fechadas, as fábricas inativas, os navios não descarregados, os bancos cerrados —, o hartal colocaria vastas massas em ação, demonstrando sua unidade, disciplina e força.
Um hartal dura um, dois ou três dias. Como elemento de equilíbrio, Gandhi propôs um satyagraha, cuja campanha deveria começar com a resistência prolongada às limitações impostas contra as liberdades civis pelas leis Rowlatt. Planejou-se, como primeiro passo, a venda de literatura política proibida pelo governo. Gandhi sentiu-se feliz quando Seiscentos homens e mulheres,
em
Bombaim,
assinaram
o
compromisso
do
satyagraha. Os indianos zombaram do pequeno número de tais elementos. “A prova do pudim está no comer”, Gandhi respondeu. Ele havia ganho com menos gente na África do Sul. “Até mesmo um governo poderoso como o governo da Índia”, declarou ele, “terá de ceder, se formos fiéis ao nosso compromisso. O compromisso”, acentuou, “é o de uma tentativa no sentido de se introduzir o espírito religioso na política. Nós não podemos mais acreditar na doutrina do pagar com a mesma moeda; não responderemos com ódio ao ódio, com violência à violência, com o mal ao mal... Retribuiremos o mal com o bem. Nada é impossível”, concluiu ele. Esse diapasão vibrou de fé na pessoa humana, no povo e em Deus. O hartal consubstanciou-se num êxito enorme. Gandhi denominou-o “um espetáculo maravilhoso”. Mas ainda não conhecia seus compatriotas; havia-lhes subestimado o pendor para a violência. Nas grandes cidades, o hartal foi acompanhado de incêndios, de corte de fios telegráficos, de saque a armazéns, de bloqueio de comboios ferroviários e de agressões físicas contra ingleses. Como penitência, Gandhi jejuou durante três dias, e pediu aos seus sequazes para que jejuassem durante vinte e quatro horas. Depois, recebeu mais notícias relativas a violências praticadas em cidades pequenas. Bruscamente, em 18 de abril de 1919, ele dissolveu toda campanha do satyagraha. Aquilo fora um
“erro de cálculo do tamanho do Himalaia”, de sua parte, disse ele aos
seus
compatriotas.
“Devo
parar,
agora,
e
tomar
em
consideração a melhor forma de fazer face à situação.” Gandhi não se preocupou com o fato de admitir seu próprio erro. Não possuía nenhuma das inclinações dos ditadores à infalibilidade. Ao contrário. “Somente quando uma pessoa vê seus próprios erros, com uma lente convexa, e faz justamente o inverso no caso dos outros”, disse ele, em sua autobiografia, “é que essa pessoa se torna capaz de chegar a uma acertada estimativa relativa das duas partes.” Gandhi exagerava as proporções de seus enganos, e reduzia as de seus vizinhos. Alguém, de uma feita, sugeriu que ele poderia perder sua autoridade moral. “A autoridade moral nunca se conserva pelo fato de a gente se apegar a ela”, foi sua resposta. “Ela vem sem a gente a procurar, e é conservada sem esforço.” Sua autoridade moral residia nele, e, posteriormente, conseguiu uma existência independente; nada do que ele fez, nem mesmo seus maiores erros e seus maiores fracassos, a empanou. A pior manifestação, ou violência pós-hartal, ocorreu na província de Penjab, notadamente em Amritsar, cidade de cento e cinqüenta mil habitantes, sagrada para os siques de barba longa, de turbante e de aspecto másculo; isso pôs em relevo o quanto eram perigosos os rescaldos dos incêndios nos corações ingleses e indianos. Dois hartals — em 30 de março e em 6 de abril — transcorreram sem incidentes, ao que informou a Comissão Oficial Hunter, britânica, que procedeu a investigações sobre o caso: “Os europeus podiam andar, e andaram, sem ser molestados, em meio às multidões”. Em 9 de agosto, entretanto, as autoridades baniram, da província, dois líderes do partido do Congresso: um, muçulmano, o dr. Saifuddin Kitchlew, o mesmo que foi recebido por Stálin um pouco antes da morte do ditador, em março de
1953; e o outro, hindu, dr. Satyapal. “Iniciando-se com o desagrado produzido pela ação do governo, que deportou os dois políticos locais”, reza o Relatório Hunter, “uma turba amotinada varreu as ruas. Três ingleses preeminentes foram mortos.” Dois dias mais tarde, o brigadeiro-general Reginald E. H. Dyer — oficial regular do exército britânico, nascido na Índia, e antigo elemento operando em seu país — assumiu o comando, em Amritsar, e, em 12 de abril, emitiu uma proclamação proibindo procissões e comícios. “Mas”, diz o Relatório Hunter, “é evidente que, em muitas partes da cidade, a proclamação não foi lida.” A seguir, o Relatório Hunter conta o episódio do massacre de 13 de abril, verificado em Jallianwalla Bagh, massacre esse que deu forma aos acontecimentos de anos subseqüentes, e que está indelevelmente escrito na história da Índia. “Cerca de uma hora”, afirma o texto, “o general Dyer soube que o povo pretendia realizar um grande comício, lá pelas quatro e meia da tarde. Ao ser perguntado sobre a razão pela qual não havia adotado medidas destinadas a impedir que o comício fosse levado a termo, respondeu: “Dirigi-me para lá, assim que me foi possível. Tive de pensar sobre o assunto e tomar minha decisão”. “Quando examinado por nós”, assevera o Relatório Hunter, “ele (Dyer) explicou que seu espírito tomou a decisão no decorrer de sua ida para lá, em automóvel; se suas ordens contrárias à realização do comício fossem desobedecidas, ele estaria pronto a fazer fogo sem perda de tempo.” “Eu estava resolvido”, depôs o mencionado general. “Eu levaria todos os homens à morte.” Jallianwalla Bagh, ao que diz o relatório, “é um trecho retangular de terreno baldio, coberto, até certo ponto, por materiais de construção e destroços. É quase todo cercado pelas paredes dos edifícios. As entradas e as saídas, ali, são poucas e
imperfeitas... Na extremidade pela qual o general Dyer entrou, há uma elevação, de ambos os lados da passagem. Uma grande multidão se havia reunido na extremidade oposta do Bagh, e estava ouvindo um homem que se achava sobre uma plataforma erguida a uns cento e quarenta metros de distância, a partir do ponto em que o general Dyer estacionara suas tropas”. O relatório calcula que havia de dez a vinte mil pessoas no Bagh. “Nenhum dos manifestantes se encontrava munido de arma de fogo, embora seja possível que alguns deles estivessem armados de pau”, afirma o relatório. Dyer foi para o Bagh com vinte e cinco soldados gurcas, procedentes do Nepal, e vinte e cinco soldados beluchis, procedentes do Beluchistão, armados de carabinas; além disso, dispunha de quarenta gurcas (armados apenas de faca), e de dois carros blindados. O interrogatório a que a comissão submeteu Dyer diz:
“Pergunta: Supondo-se que a passagem fosse suficiente para permitir que os carros blindados entrassem, teríeis vós aberto fogo com as metralhadoras? Resposta: Penso que, provavelmente, sim”. “Os carros blindados eram muito grandes”, prossegue o relatório. “Assim que o general Dyer entrou no Bagh, estacionou vinte e cinco soldados de um lado da elevação, à entrada, e mais vinte e cinco soldados do outro lado. Sem dar, à multidão, ordem de dispersar — que considerou desnecessária, uma vez que os manifestantes ali se encontravam em desobediência à sua proclamação —, deu ordem aos soldados para que fizessem fogo; e a fuzilaria continuou durante cerca de dez minutos.” “Quando o fogo teve início, a multidão começou a dispersarse. Ao todo, 1 650 cartuchos foram deflagrados... Os tiros foram
individuais, e não de salva... Aproximadamente 379 pessoas foram mortas”, e, ao que a comissão calculou, as pessoas feridas foram em número umas três vezes maior. Portanto, 1 137 feridos, mais 379 mortos, ou 1 516 atingidos para 1 650 balas. A multidão constituíra um alvo perfeito. Os manifestantes haviam corrido para o lado do Bagh cercado pela parede mais baixa, que media um metro e meio de altura. Dyer ordenou a seus homens que mirassem aquele ponto. O relatório, a respeito do depoimento de Dyer, diz: “Pergunta: De intervalo a intervalo, vós mudáveis a direção do fogo e o dirigíeis para o lugar onde a multidão era mais compacta? Resposta: Exatamente”. O despacho do próprio general Dyer aos seus superiores militares — que é citado no Relatório Hunter, com os seus grifos — afirma: “Já não era apenas uma questão de meramente dispersar a multidão, e sim de produzir um efeito moral suficiente, não somente no espírito dos que ali estavam, mas mais particularmente em todo o Penjab. Não podia haver a hipótese de severidade indevida”. “Pensei que estivesse fazendo um grande bem”, foi a airada recapitulação de Dyer, quanto ao massacre de Jallianwalla Bagh. Mas a Comissão Hunter (cujas averiguações foram impressas pelo jornal East India) decidiu que “esta foi, infelizmente, uma errônea concepção do seu dever”. A publicação das averiguações obedeceu ao título de “Relatório da comissão nomeada pelo governo da Índia para investigar as perturbações ocorridas no Penjab, etc. Londres. Secretaria de Sua Majestade, 1920, Cmd. 681”.
13 O caminho para o cárcere Gandhi respondeu ao massacre de Amritsar com uma diretriz política: a de não cooperação. Boicote das mercadorias britânicas, das honrarias britânicas, dos tribunais britânicos, das escolas
britânicas,
do
trabalho
britânico.
Advogou
esse
procedimento numa conferência muçulmana realizada em Nova Deli, em novembro de 1919. Em dezembro de 1919, entretanto, o governo permitiu que a convenção anual do Congresso se reunisse perto do local do massacre, e pôs em liberdade Shaukat e Mohammed Ali, os dois nacionalistas muçulmanos, de modo que pudessem ir diretamente da prisão para a assembléia. No mesmo mês — e na forma de novo bálsamo para o profundo ferimento infligido por Dyer — o reiimperador anunciou as reformas Montagu-Chelmsford, por meio das quais algumas repartições públicas importantes da província seriam entregues aos indianos. “Uma nova era está sendo inaugurada”, proclamou o monarca. Gandhi esperava que assim fosse. Pediu à Assembléia que aprovasse as reformas e ajudasse a pô-las em prática. Gandhi abandonou a não-cooperação, que havia proposto um mês antes, e passou a aconselhar a cooperação. “Confiar é uma virtude”, argumentou ele. “É a fraqueza que nutre a desconfiança.” Sabia que os indianos não queriam que se pensasse que eles eram fracos. A autoridade de Gandhi ia aumentando. Pertencia à classe média, e a classe média indiana o havia seguido no terreno da política. Os delegados da classe média predominaram nas
reuniões anuais do Congresso, tanto em 1919 como nos anos subseqüentes. Também os pobres compareceram. O Congresso adotou, de conformidade com isso, uma resolução favorecendo as reformas Montagu-Chelmsford. Entretanto, Tilak, Jinnah e outros nacionalistas de proa fizeram oposição a tais reformas (que eram coisa muito diversa da condição de domínio); e as desilusões do pós-guerra, causadas pelas promessas britânicas, se acentuaram ainda mais. A geração mais jovem depositava pouca confiança no império britânico. Lorde Chelmsford, o vice-rei, havia exonerado Dyer, e o Relatório Hunter, embora condenando o general, não recomendara medida alguma
contra
o
dyerismo.
Os
muçulmanos
mostravam-se
exaltados contra a Inglaterra, por esta haver imposto condições de paz consideradas duras à Turquia, nação islâmica, bem como por haver deposto o sultão-califa turco. Sempre ansioso no sentido de unir hindus e muçulmanos — sempre se fazendo eco das aspirações da juventude — e sempre sensível aos desvios dos elevados padrões morais, Gandhi regressou à sua política anterior de não-cooperação. Em dezembro de 1920, a convenção anual do Congresso, realizada em Nagpur, reconsiderou a sua decisão do ano anterior e votou contra a colaboração com os britânicos. À vista disso, Gandhi remeteu suas duas medalhas sul-africanas ao vice-rei, com uma carta dizendo: “Não posso conservar respeito, nem afeto, por um governo que tem caminhado de erro em erro, no propósito de defender sua própria imoralidade”. Esta mudança — do amor para com o império britânico à repulsa a esse mesmo império, ocorrência momentosa, tanto na vida de Gandhi quanto na da Índia — decorreu do banho de sangue de Jallianwalla. O intervalo de confiante cooperação,
refletindo a preferência congênita do Mahatma pela acomodação pacífica, foi logo encerrado por um descontentamento generalizado por toda a nação. Os atos de Gandhi se moldavam, muitas vezes, no receio de que, se ele não liderasse o povo, as violentas paixões o fariam. Sua estratégia, em tais ocasiões, consistia em avançar na direção do objetivo almejado pelo povo, mas insistindo na adoção de seus próprios métodos. Na sessão do Congresso, realizada em Nagpur, em dezembro de 1920, Gandhi — de acordo com essa estratégia — prometeu que, se a não-cooperação da Índia
continuasse
a
ser
não-violenta,
o autogoverno
seria
alcançado dentro de um ano. Gandhi transmitiu essa mensagem ao povo. Motilal Nehru abandonou sua rendosa banca de advogado, deixou de tomar álcool e tornou-se um não-cooperador total. C. R. Das, o líder do foro
de
Calcutá,
Ahmedabad
Vallabhbhai
Jawaharlal
Patel,
Nehru
e
rico
jurisconsulto
centenas
de
de
outras
personalidades abandonaram para sempre os tribunais britânicos. A
juventude
universitária
abandonou
suas
salas
de
aula.
Professores e estudantes rumaram para as aldeias, a fim de pregar a
não-cooperação,
sendo
que
esta,
para
os
camponeses,
significava o não-pagamento de taxas e o não-consumo de álcool — constituindo um golpe duplo contra as rendas do governo. Durante sete meses, Gandhi percorreu a zona rural, com tempo tórrido e úmido, locomovendo-se em trens quentes, superlotados e imundos, e discursando para assembléias de multidões de mais de cem mil pessoas; essas multidões, naqueles dias pré-microfônicos, apenas podiam esperar ser alcançadas pelo espírito do Mahatma. Por toda parte, as multidões ululantes exigiam a presença do Mahatma; queriam vê-lo; e o ato de o ver como que as santificava. Os habitantes de determinado lugar
fizeram saber que, se seu trem não se detivesse em sua pequena estação, eles se deitariam sobre os trilhos e deixariam que o comboio passasse sobre seus corpos. O trem parou; e quando Gandhi, despertando de um sono profundo, apareceu, a multidão, que até ali se mostrara palradeira e clamorosa, caiu de joelhos na plataforma ferroviária, e chorou. Durante aqueles exaustivos sete meses de viagem, todas as refeições do Mahatma, em número de três por dia, eram iguais; consistiam em meio litro de leite de cabra, três fatias de torradas, duas laranjas e um pouco de uvas frescas, ou mesmo de uvas passas. Essas refeições o enchiam de energia. A longa jornada de propaganda em prol da não-cooperação, efetuada por Gandhi, teve todos os atributos de uma revivescência religiosa. Em parte dessa jornada, os irmãos Ali, muçulmanos, o acompanharam. Gandhi esclarecia, aos seus ouvintes, que não deviam fazer uso de roupas estrangeiras; e, quando os ouvintes o aplaudiam, pedia-lhes que se despissem de todas as peças de indumentária feitas no exterior, e as amontoassem à sua frente. Na pilha que assim se formava, de camisas, calças, paletós, chapéus, sapatos e roupas de baixo, Gandhi riscava um fósforo, e, à medida que as labaredas iam abrindo seu caminho através daquelas mercadorias importadas, ele suplicava a todos que passassem a fiar e a tecer suas próprias roupas. Ele mesmo se dedicou à fiação, empregando nisso meia hora por dia. Deu, à fiação cotidiana, a denominação “sacramento”, que orientava para a direção de Deus a mente dos fiadores. Pouco tempo depois, nenhum indiano mais apareceu à sua presença usando qualquer peça de indumentária que não fosse tecida em casa. O ano passou sem o autogoverno prometido por Gandhi. Muitos nacionalistas aconselharam a rebelião aberta contra o
domínio britânico. As dissenções aumentaram, no Congresso. A insistência do Mahatma quanto à fiação, à temperança e ao desafio verbal ao Estado passou a ser ridicularizada. A juventude, principalmente, exigia ação. “Se a Índia adotar a doutrina da espada”, respondeu Gandhi, “ela poderá ganhar uma vitória momentânea, mas, então, a Índia deixará de ser o orgulho de meu coração.” “Sua repulsa à violência”, dizia o Mahatma, era adamantina, “quase beirando o fanatismo”; e visto que ele, agora, era indispensável ao movimento nacionalista, a comissão executiva do Congresso, reunindo-se em Deli, no dia 4 de novembro de 1921, aprovou uma resolução favorável a uma campanha não-violenta de desobediência civil; mas,
ao
mesmo
tempo,
concordou
em
não
agir
sem
o
consentimento do Mahatma. Rabindranath Tagore havia advertido Gandhi, com expressões de reproche, fazendo-o ver que o fogo que consumira as roupas estrangeiras poderia também inflamar os espíritos; e Gandhi sentiu-se receoso. Em dezembro de 1921 e em janeiro de 1922, dez mil indianos foram encarcerados por praticarem ofensas políticas. Motilal Nehru, C. R. Das e centenas de outros representantes do Congresso já se encontravam presos. Em várias províncias, os camponeses haviam iniciado movimentos espontâneos, contra o pagamento de impostos. A Índia estava de mau humor. Na
sessão anual
do Congresso,
que
se
realizou em
Ahmedabad, em dezembro de 1921, Gandhi, “com toda a humildade”, fez novo apelo à Grã-Bretanha. “Seja lá o que for que fizerdes”, explicou ele, “seja lá como for que nos reprimirdes, um dia conseguiremos fazer com que, embora relutantemente, vós vos arrependais; e tomai cuidado para não fazerdes, dos trezentos milhões de indianos, vossos inimigos eternos.” Esse desafio à
sabedoria britânica constituía também um pedido de auxílio. Gandhi sentia-se apreensivo com o que os indianos poderiam fazer, sob a provocação das medidas repressivas. A fim de impressionar a Inglaterra, e de satisfazer tanto sua necessidade de ação quanto a da Índia, Gandhi iniciou, então, uma campanha de desobediência civil na cidade de Bardoli (cuja população era de oitenta e sete mil almas), perto de Bombaim, onde poderia supervisionar pessoalmente a experiência. Em 1.° de fevereiro de 1922, informou lorde Reading, vice-rei, quanto ao seu plano. Gandhi restringiu a desobediência civil à experiência de Bardoli, porque não tinha certeza sobre se lhe seria possível conservar dentro de normas pacíficas uma campanha que abarcasse a nação toda; fez isso também com o propósito de induzir o povo da Grã-Bretanha, por meio de uma demonstração de retenção de impostos por parte dos indianos, a proporcionar à Índia uma independência muito maior do que a considerada possível para os indianos. A experiência de Bardoli tinha apenas começado quando, em 8 de fevereiro, Gandhi recebeu notícias de uma atrocidade cometida três dias antes, numa pequena cidade chamada Chauri Chaura, nas Províncias Unidas, a cerca de mil e trezentos quilômetros de distância de Bardoli. Realizou-se uma procissão legal. “Mas”, como Gandhi relatou no semanário Young India, “quando
a
procissão
passou,
seus
participantes
foram
interceptados e agredidos pelos policiais do governo. Os peregrinos gritaram por auxílio. A multidão regressou. Os policiais abriram fogo. A pouca munição de que dispunham logo se exauriu, e eles se retiraram para a prefeitura, em busca de segurança. A multidão — ao que meus informantes me contam — ateou, por isso, fogo ao
prédio. Os policiais, que lá se haviam encerrado voluntariamente, tiveram de sair para salvar a própria vida; assim que saíram, foram reduzidos a pedaços; e seus restos mutilados foram atirados à fúria das labaredas.” Esse assassínio brutal de vinte e dois policiais constituiu um mau agouro, declarou Gandhi. “Suponhamos que Deus permitisse que a desobediência não-violenta de Bardoli se coroasse de êxito, e que o governo abdicasse de seus rigores, em favor dos vitoriosos de Bardoli; quem controlaria os elementos desordenados que poderiam perpetrar desumanidades, à primeira provocação?” Gandhi não tinha segurança quanto a poder efetuar esse controle. De conformidade com isso, suspendeu o esforço de desobediência de Bardoli e proibiu qualquer desacato ao governo, em qualquer parte da Índia. “Deixemos
que
o
adversário
se
vanglorie
com
nossa
humilhação, ou com a assim chamada derrota”, exclamou ele. “É melhor ser acusado de covardia e de fraqueza do que ser culpado de violar nosso juramento e de pecar contra Deus. É um milhão de vezes melhor parecermos desleais perante o mundo do que sermos desleais conosco mesmos.” A uma palavra de Gandhi, a Índia se ergueria em revolta. Havia extremistas que diziam que os britânicos poderiam ser expulsos da Índia. O mundo se encontrava ainda profundamente envolvido pelo turbilhão do pós-guerra, e
a
Grã-Bretanha
defrontava-se com uma crise difícil em muitas partes do globo. Gandhi, porém, não compraria a independência ao preço de um derramamento nacional de sangue; uma Índia livre, nascida do assassínio, traria a marca disso, em sua fronte, durante decênios. Ele sacrificou o fim — em todo caso duvidoso, naquela época — porque os meios maléficos para o conseguir o envenenariam.
Tendo revogado a desobediência civil, condenado a rebelião e proibido a hostilidade franca ao Estado, Gandhi ficou desarmado, e lorde Reading mandou prendê-lo. Tinha havido pressão sobre Reading, procedente de Londres, bem como de governadores provinciais britânicos da Índia, para que Gandhi fosse encarcerado, mas Reading resistira a isso. Reading havia subido de menino de recados, a bordo de navios, à categoria de lorde do Supremo Tribunal, à de embaixador da Inglaterra em Washington, e, agora, à de vice-rei; seu espírito legalista desaprovava a prisão baseada apenas em meras palavras, proferidas ou escritas. Ele declarou: “Estou preparado para enfrentar as conseqüências da prisão de Gandhi, se ele entrar em ação”. Entretanto, quando teve a certeza de que Gandhi não empreenderia ação alguma, ordenou sua prisão; ordenou-a precisamente por essa razão, e também porque Gandhi havia assegurado, às autoridades, que não haveria conseqüências. Num artigo inserido em seu semanário Young India, em 9 de março de 1922, intitulado “Se eu for preso”, Gandhi escreveu: “Rios de sangue, derramados pelo governo, não podem atemorizar-me; mas eu me sentiria profundamente penalizado se o povo molestasse, ainda que levemente, o governo, por minha causa, ou em meu nome. Seria uma infelicidade para mim, se o povo perdesse seu equilíbrio por ocasião de minha prisão”. Ele foi preso em 10 de março às dez e meia da noite. Gandhi havia dado motivo para tanto. As acusações foram as de pregar sedição em três artigos publicados. No primeiro, de 19 de setembro de 1921, dissera: “Não hesito em dizer que é pecado, seja lá para quem for, militar ou civil, servir este governo... A sedição já se tornou o credo deste Congresso... A nãocooperação, sendo embora um movimento estritamente religioso e
moral, visa, deliberadamente, à derrubada do governo, e é, portanto, legalmente, sedição...” No segundo, de 21 de dezembro de 1921, escrevera: “Lorde Reading deve compreender que os nãocooperadores
se
encontram
em
guerra
contra
o
governo.
Declararam a rebelião contra ele... Lorde Reading está no direito, portanto, de os colocar fora das condições de lhe fazerem mal”. No terceiro, de 23 de fevereiro de 1922, Gandhi exclamara: “Como pode haver qualquer transigência, enquanto o leão britânico continuar a agitar suas garras ensangüentadas diante de nossos olhos?... Os milhões de indianos, comedores de arroz, imbeles, parece que resolveram realizar seu próprio destino sem mais tutela e sem armas... A luta que teve início em 1920 é uma luta de vida ou de morte...” A pequena sala do tribunal de Ahmedabad ficou apinhada no dia 18 de março. Depois da leitura da acusação, e depois de o promotor público, ali chamado advogado geral, haver apresentado as razões contra Gandhi, o Mahatma ergueu-se e declarou: “Aqui estou... para provocar e para me submeter alegremente à mais severa penalidade que me possa ser infligida, pelo que, perante a lei, é crime deliberado, e pelo que me parece ser o mais elevado dos deveres de um cidadão”. A seguir, passou a explicar “a razão pela qual, eu, de ferrenho legalista e cooperador, passei a ser um intransigente desafeto e não-cooperador”. Referiu-se às suas experiências sul-africanas; disse como fora para a guerra ao lado da Grã-Bretanha, e como, na Índia, recrutara elementos para o exército inglês. “Eu era levado pela crença”, esclareceu ele, “de que seria possível, por meio de tais serviços, conquistar o estado de perfeita igualdade, no império, para meus compatriotas.”
Depois, em 1919, haviam ocorrido os choques: as leis Rowlatt, o massacre de Jallianwalla, os açoitamentos, a injustiça praticada contra o califa turco. “Lutei pela cooperação e pela efetivação das reformas Montagu-Chelmsford. Mas cheguei com
relutância à conclusão de que os vínculos britânicos haviam tornado a Índia mais desamparada do que o fora em qualquer tempo antes, seja política, seja economicamente... Ela se reduziu a esse estado, por tal forma, que agora tem pouca força para resistir às fomes. Antes do advento dos ingleses, a Índia fiava e tecia, nos seus milhões de lares, exatamente as roupas de que precisava, para aumentar seus parcos recursos agrícolas.” As indústrias domésticas
haviam
sido
arruinadas
pelos
produtos
industrializados britânicos. Embora muitos funcionários ingleses pensassem estar ajudando a Índia, “eles não sabem que um sistema sutil, mas eficiente, de terrorismo, e que uma organizada demonstração de força, de um lado, combinada com a privação de todas as possibilidades de represália e de autodefesa, de outro, haviam emasculado o povo e induzido, nele, o hábito da simulação”. Gandhi, portanto, considerava “uma honra ser desrespeitoso”; por isso, solicitou “a pena mais severa”. Quando Gandhi se sentou, o juiz Bromfield curvou-se em reverência a ele, e proferiu a sentença. “A lei não é respeitadora de pessoas”, afirmou. “Não obstante, será impossível ignorar o fato de vós figurardes numa categoria diferente da de qualquer outra pessoa que jamais julguei, ou que jamais terei a possibilidade de julgar. Seria impossível ignorar o fato de, aos olhos de milhões de vossos conterrâneos, vós serdes um grande patriota e um grande líder. Até aqueles que divergem de vós, em política, olham para vós como para um homem de ideais superiores, e de nobre e mesmo de santa vida.” Assim dizendo, o juiz sentenciou Gandhi a seis anos de prisão. Quando o tribunal encerrou a sessão, a maior parte dos espectadores caiu aos pés de Gandhi e chorou. Gandhi sorriu, ao ser conduzido para fora dali, a caminho do cárcere.
Esta não foi a última vez que os ingleses prenderam e encarceraram Gandhi. Mas foi a última vez que o julgaram.
14 Jejuns de Gandhi Em 12 de janeiro de 1924, o Mahatma foi conduzido apressadamente da prisão central de Yeravda para o Hospital Sassoon, na cidade de Poona; nessa noite, o coronel Maddock, cirurgião britânico, procedeu a uma intervenção cirúrgica, em conseqüência de uma apendicite. A operação foi bem sucedida, e Gandhi agradeceu de todo o coração ao médico; contudo, desenvolveu-se um abscesso, e o restabelecimento foi lento. O governo achou que, naquelas circunstâncias, seria generoso e prudente pôr em liberdade o prisioneiro convalescentes e fez isso em 5 de fevereiro de 1924. A experiência deixou Gandhi “com uma reserva extremamente pequena... de energia”. Em dois meses, contudo, voltou ele a editar o Young India, o seu semanário de língua inglesa, e a Navajivan, revista publicada em Gujarati, na sua língua natal. Durante os vinte e dois meses que Gandhi passou no cárcere,
a
situação
Resumindo-a,
política
Gandhi
na
escreveu:
Índia
piorara
“Dezenas
de
seriamente. advogados
retomaram as tarefas de sua profissão. Alguns até lamentam têlas abandonado... Centenas de moços e moças, que se haviam retirado das escolas e dos colégios do governo, se arrependeram de sua ação, voltando a freqüentá-los”. Certo número de líderes nacionalistas — notadamente Motilal Nehru, pai de Jawaharlal, e
C. R. Das — haviam resolvido participar dos quadros legislativos municipais, provinciais e nacionais, no propósito de obstruir e instruir as autoridades britânicas. Gandhi desaprovou isso. Continuou a ser — ao que declarou no Young India, em 10 de abril de 1924 —“um forte descrente do governo”. Muita gente, porém, se sentia incapaz de fazer os sacrifícios que a não-cooperação exigia, e o Mahatma percebeu que o espírito claudicante do povo não poderia
sustentar
seu
boicote
antigovernamental.
Em
conseqüência, retirou-se da política, no sentido comum da expressão, e, durante os poucos anos seguintes, dedicou-se a ela no sentido que ele dava a esse vocábulo, que era o do enobrecimento do povo. “Estou certo de que”, escreveu ele, ao seu amigo inglês, Charles F. Andrews, “no instante em que a Índia se purificar, a Índia se tornará livre, e não um momento sequer antes disso.” A purificação não tinha acepção mística. Significava coisa concreta como a amizade hindu-muçulmana, porquanto, ao que o Mahatma afirmava, “nenhum problema é mais importante, nem mais premente do que ela”. Gandhi concordava com o líder muçulmano Jinnah em que “a união hindu-muçulmana significa swaraj”, ou seja, autogoverno. Em vez de união, entretanto, duas comunidades
religiosas
se
encontravam
de
punhais
desembainhados. “Pressinto a vinda da onda de violência”, Gandhi anunciou. Depois do regresso de Gandhi à Índia, em 1915, ele logo percebeu
que
as
relações
entre
hindus
e
muçulmanos
determinariam o futuro da Índia. Falou com freqüência sobre tal assunto, e dedicou a edição inteira de 29 de maio de 1924 do semanário Young India ao seu próprio artigo de seis mil palavras intitulado “A tensão hindu-muçulmana — sua causa e sua cura”.
Pôs a cura em umas poucas palavras. A amizade hindumuçulmana era possível, disse ele, “porque é tão natural, tão necessária, para as duas partes, e porque eu acredito na natureza humana”. Essa sentença contém quase todo o espírito de Gandhi. Uma vez que o objetivo é bom e que o homem é bom — dizia ele — , o objetivo pode ser alcançado. Aqui estava a fé que fizera dele um grande mahatma. Que importava que ele fracassasse? Ele era grande mesmo no fracasso. Qualquer pessoa pode ser menor no êxito do que na derrota; isso depende do que ela procura fazer. Em 1946, quando a Índia estava se dividindo entre o Paquistão, de Jinnah, e a República da Índia, de Nehru, para enorme e infindável sacrifício das duas partes, discuti com o sr. Jinnah, que, a essa época, já havia deixado de ser o reformador que fora em 1920; disse-lhe que o mundo “precisa de harmonia, não de novas discórdias”; precisava da unificação da Índia, não da sua divisão. “Eu sou realista”, respondeu ele: “Lido com as coisas tal como elas são.” Chamei a atenção dele para o caos em que as divisões religiosas e nacionalistas haviam transformado a Europa. “Tenho de lidar com as características divisoras que existem”, insistiu ele. Também Gandhi era um realista. “Sou um realista prático”, proclamava ele. O seu, porém, era o realismo que combate o mal, ao invés de fazer uso dele. Não sendo um utopista, ele sabia que, embora o homem fosse bom, a bondade tinha de ser evocada; do contrário, alguém exploraria a maldade. Para evocar a bondade, ele jejuava em intenção da amizade hindu-muçulmana. Os
jejuns
de
Gandhi
constituíam
um
processo
de
comunicação dele com seus semelhantes. “Evidentemente, nada do que eu digo, ou escrevo, pode aproximar as duas comunidades uma da outra”, declarava ele. Daí o jejum. Para se comunicar, o Ocidente fala ou se locomove. O Oriente contempla, senta-se, sofre. Gandhi recorria tanto aos métodos ocidentais como aos orientais. Quando as palavras falhavam, jejuava. Ao longo de sua vida, Gandhi explorou novos campos de comunicação. Por vezes, dirigia-se a uma gigantesca multidão, mas, em vez de proferir um discurso, sentava-se, de pernas cruzadas; inclinava-se, oscilando levemente de um lado para outro; não dizia coisa alguma; a seguir, sorria, unia as palmas das mãos, fazendo a saudação hindu, e a multidão se ajoelhava e chorava. Ele havia estabelecido a comunicação. Havia tocado no coração dos presentes. Nas entrevistas que concedia, Gandhi não fazia apenas declarações, nem apenas respondia a perguntas. Seu objetivo principal consistia em estabelecer uma relação íntima com a outra pessoa, porque isso contribuía, mais do que as palavras, para a mútua compreensão. O jejum era, também, um recurso para chegar ao coração e ao espírito dos homens. “Jejuei”, disse certa vez, “para reformar os que me amavam.” E acrescentou: “Não se pode jejuar contra um tirano, porque o tirano é incapaz de amor, e, por isso, inacessível a uma arma de amor, como o jejum”. Gandhi nunca jejuou para obter vantagens do governo britânico. Seus jejuns se dirigiam a seu próprio povo, porque, entre
esse
povo
e
ele,
uma
corda
de
simpatia
existia
presumivelmente, na qual o jejum tocava. O jejum tinha de ser altruísta. “Posso jejuar por meu pai, para curá-lo de um vício”, escreveu o Mahatma, “mas não jejuarei para conseguir dele uma
herança.” Uma vez que o jejum não se destinava à consecução de ganhos pessoais, mas ao benefício público, o povo acabaria por percebê-lo, sendo por isso afetado. Embora Gandhi o negasse, havia, a intervalos, um elemento de intimidação em seus jejuns, como quando ele jejuou porque os proprietários
de
moinhos,
de
Ahmedabad,
que
lhe
eram
devotados, se haviam recusado a aceitar a arbitragem numa greve. Os moageiros se submeteram, afinal, para que ele não morresse; a morte de Gandhi, por aquele jejum, seria como uma morte praticada pelas mãos dos moageiros. Mas o jejum em prol da união hindu-muçulmana estava destituído de compulsão. O hindu, em Allahabad, e o muçulmano, em Agra, não seriam compelidos a melhorar as relações entre as duas religiões, só porque Gandhi jazia moribundo. Fariam isso — se o fizessem — quando o sacrifício dele houvesse estabelecido uma espécie de sintonia entre o Mahatma e eles. O jejum era a maneira que Gandhi adotava para atingir as pessoas, o coração dos outros, para que pudessem sentir e reagir como ele próprio sentia e reagia. “Estou, portanto”, anunciou ele, “impondo a mim mesmo um jejum de vinte e um dias, a partir de hoje, e a concluir em 6 de outubro de 1924. Reservo-me a liberdade”, explicou, “de beber água, com ou sem sal.” A água, durante o jejum, lhe causava náuseas, e ele, por isso, lhe acrescentava uma pitada de sal ou de bicarbonato de sódio. Bebia água porque não desejava morrer. Amava a vida e desejava preservar o próprio corpo. Permitia que lhe fizessem massagens, dormia regularmente e caminhava, para ganhar forças. Todas as suas extravagâncias dietéticas, estranhas aos olhos
dos
ocidentais,
e
mesmo
aos
de
muitos
indianos,
destinavam-se a transformá-lo num instrumento biologicamente perfeito para a consecução de objetivos espirituais; e ele continuou a ser, até que uma bala o atingiu, um homem forte que poderia
ter
vivido
muito
mais.
Não
obstante,
quando
considerações morais tornavam imperativo o jejum, seu corpo não se opunha a isso. Se a carne fosse fraca, ela sofreria, e até mesmo sucumbiria; mas não podia opor-se. Dois médicos muçulmanos estiveram constantemente a serviço de Gandhi, durante o jejum de vinte e um dias em prol da união hindu-muçulmana; e Charles Freer Andrews, missionário cristão, lhe serviu de enfermeiro. O jejum foi feito em casa de Mohammed Ali, irmão mais moço de Shaukat. Durante vinte e um dias,
a
atenção
da
Índia
se
concentraria
naquela
casa
muçulmana. Os muçulmanos tratariam de fazer com que os Mohandas e os Mohammed se tornassem amigos. Os hindus acabariam vendo que seu santo havia confiado a própria vida a um muçulmano. Ali estava uma demonstração comovente de fraternidade. No segundo dia de jejum, Gandhi redigiu um apelo, que tomava toda uma página, em prol da “união na diversidade”. “A necessidade do momento”, afirmou ele, “não é uma religião, e sim o respeito mútuo, a recíproca tolerância dos devotos de religiões diferentes.” Ao sexto dia, preparou outro artigo sobre o mesmo tema. No décimo segundo dia, redigiu cento e doze palavras, para publicação, que mostraram o quanto a tônica de sua política se havia desviado. “Até agora”, afirmou ele, “tem sido uma luta e um anseio em prol da mudança de sentimentos entre os ingleses que compõem o governo da Índia. Essa mudança ainda está por vir. Mas a luta, no momento, deve ser transferida para a consecução de
uma
mudança
de
sentimentos
entre
os
hindus
e
os
muçulmanos. Antes que eles ousem pensar em liberdade, devem tornar-se suficientemente corajosos para se amarem uns aos outros, tolerarem as religiões uns aos outros, mesmo seus preconceitos e superstições, e para confiarem uns nos outros. Isso requer do indivíduo fé em si mesmo. E fé em si mesmo significa fé em Deus. Se tivermos essa fé deixaremos de nos temer uns aos outros.” Opor ao medo a fé constituía a própria essência de Gandhi. No vigésimo dia, ele ditou uma prece; os vinte dias, disse ele, haviam sido “dias de graça, de privilégio e de paz”. Naquela
noite,
o
Mahatma
Gandhi
se
apresentou
maravilhosamente brilhante e bem disposto; às quatro horas da madrugada seguinte, ao que Andrews informou, “fomos chamados para as preces da manhã”. Andrews perguntou a Gandhi se ele havia dormido bem. “Sim, muito bem, na verdade”, respondeu Gandhi; e Andrews escreveu: “Foi uma felicidade observar, desde logo, que a sua voz estava ainda mais firme do que na manhã anterior...” Seis horas depois, no último dia de jejum, Gandhi disse a Andrews: — Podeis recordar as palavras do meu hino cristão favorito? — Sim. Devo cantá-lo para vós, agora? — Não, não agora — explicou Gandhi —, mas tenho em mente fazer com que, quando interromper meu jejum, realizemos uma pequena cerimônia expressando a união religiosa. Gostaria que o Imã Sahib recitasse os versos de abertura do Corão. A seguir, gostaria que cantásseis o hino cristão; sabeis ao qual me refiro, aquele que começa assim: “Quando eu examino a maravilhosa cruz”, e termina com as palavras: “O amor, tão extraordinário, tão divino, exige a minha alma, a minha vida, o meu todo”.
Isso deveria ser seguido por um hino hindu. Ao meio-dia, Gandhi falou a meia voz, pedindo, aos seus muitos amigos que se achavam presentes, que “entregassem suas vidas, se necessário fosse, em prol da causa da fraternidade”. As canções foram então cantadas, e Gandhi bebeu um pouco de suco de laranja, a fim de quebrar o jejum de três semanas. Não há provas de que o ordálio haja sido muito eficaz. O amor de Gandhi não conseguiu dissolver a rocha de granito da hostilidade hindu-muçulmana — coisa que ele atribuiu, em larga escala, a noções falsas, relativas à defesa da religião. Assim, as procissões religiosas hindus com freqüência passaram à frente de mesquitas muçulmanas, na hora da prece; e isso irritava os sequazes do Profeta. Constituía erro, da parte dos hindus, pensar que sua religião exigisse que eles fizessem isso; e constituía erro, da parte dos muçulmanos, perpetrar represálias, efetuando agressões. Da mesma forma, os hindus adoravam a vaca, e os muçulmanos a comiam. Entretanto, embora Gandhi reconhecesse que a proteção à vaca simbolizava “a proteção de toda criatura de Deus”, e constituía, portanto, “o fato central do hinduísmo”, ele nunca pudera compreender — ao que esclareceu — a razão pela qual
isso
provocava
tamanha
antipatia
por
parte
dos
muçulmanos. “Nada dizemos a respeito da matança [de vacas] que ocorre todos os dias, por obra dos ingleses”, observava Gandhi, “mas nossa
fúria
se
faz
rubra como brasa,
quando
um
muçulmano abate uma vaca.” Ainda assim, ao fim das contas, “as vacas acabam com seu pescoço por baixo da faca do magarefe, porque os hindus as vendem... Em nenhuma parte do mundo o gado é mais maltratado do que na Índia... As condições de semiinanição, da maioria do nosso gado, são um desdouro para nós”. A música diante das mesquitas e a matança de vacas
provocaram com freqüência conflitos entre hindus e muçulmanos; mas o mesmo se pode dizer dos raptos e das conversões forçadas de mulheres e crianças de uma comunidade religiosa pelos homens de outra. Tais conflitos eram provocados até por boatos, como ocorreu, em Bombaim, em 1938, quando uma briga, em altos brados, teve início entre três hindus e um muçulmano, que haviam estado a jogar cartas e a beber num parque; a contenda originou boatos sobre combates, e afinal provocou verdadeiras batalhas de rua que resultaram numa lista de catorze mortos, noventa e oito feridos e duas mil e quatrocentas e oitenta e oito prisões. Essas ferozes explosões provinham de circunstâncias sociais e econômicas, que o Mahatma raramente discutia e geralmente subestimava. Uma chave para a compreensão dessa situação deve ser encontrada no fato de, em setecentas mil aldeias da Índia, os hindus e os muçulmanos viverem pacificamente, lado a lado. Ademais, no exército indiano, os hindus, os muçulmanos, os siques e os cristãos comiam, dormiam, faziam treinamentos e guerreavam lado a lado, sem maiores atritos. As tensões hindumuçulmanas constituíam uma enfermidade citadina, do século XX, enfermidade provocada pelo homem, enfermidade da classe média, que contagiava alguns políticos com a loucura do poder. Devido ao preceito islâmico, o grosso da riqueza muçulmana, na Índia, era aplicado em terras, deixando a indústria e o comércio aos hindus e aos parses, que preferiam alugar os serviços de
seus próprios correligionários.
A classe
média
muçulmana tardou, por isso, a surgir; e, quando surgiu, nos começos do século, mal podia competir com os hindus e os parses, que já gozavam as vantagens de maior cultura e de melhores relações. Os jovens muçulmanos tinham de enfrentar a mesma forte concorrência na conquista de empregos públicos, empregos
que, à vista do atraso econômico da Índia, constituíam uma das principais, se não a principal, atividades no país. Tais jovens, conseqüentemente, insistiam em que uma porcentagem dos referidos empregos fosse reservada a eles, independentemente de suas qualificações. Os líderes muçulmanos lançaram esse clamor; e, tanto por necessidade como por justiça, os britânicos cederam. Os muçulmanos, que integravam um quarto da população da Índia, e os hindus, que compreendiam três quartos, são parentes próximos. Numerosos muçulmanos da Índia são hindus convertidos — convertidos pelos invasores árabes, afegãos e persas, que começaram a penetrar na Índia no século VIII. O sr. Jinnah declarou que os hindus convertidos compunham setenta e cinco por cento da população muçulmana; o pândit Nehru elevou essa cifra a noventa e cinco por cento. Em algumas partes da Índia, os muçulmanos fazem suas adorações em templos hindus. Em muitas regiões, os muçulmanos e os hindus não se distinguem uns dos outros quanto à aparência, às roupas, ao idioma e aos costumes. Ali, os muçulmanos têm até castas, como os
hindus.
O
hindi
e
o
urdu,
idiomas
predominantes,
respectivamente, dos hindus e dos muçulmanos, se escrevem com caracteres
diferentes;
o
primeiro
absorveu
mais
vocábulos
sânscritos, ao passo que o segundo faz uso de maior número de palavras
persas;
mas
os
dois
continuam
sendo
muito
semelhantes. Ademais, em grandes áreas da Índia, os muçulmanos e os hindus não conhecem o urdu, nem o hindi, possuindo, ao invés, uma língua comum, o bengali, na província de Bengala, por exemplo. O próprio sr. Jinnah, nascido em Kathiawar, de descendência hindu, falava guzerate em casa de seus pais, exatamente como Gandhi.
Contudo, os vínculos lingüísticos e raciais eram minados pelas diferenças religiosas; e as novas rivalidades, surgidas da competição pelas limitadas oportunidades econômicas existentes na Índia, tornavam as coisas ainda piores. O hindu, ademais,
propende ao isolacionismo separatista, e, de velha data, adquiriu uma atitude de superioridade esnobe para com os muçulmanos, recusando-se, entre outras coisas, a misturar-se com eles através do casamento, ou a fazer suas refeições à mesma mesa em sua companhia. Um hindu ortodoxo pode visitar um lar muçulmano, mas não bebe sequer um copo d’água, nem come ali. Os políticos muçulmanos,
tirando
proveito
da
conseqüente
hostilidade,
disseram, aos seus seguidores, que a independência viria a significar a opressão por parte da maioria hindu; significaria ausência de empregos públicos, ausência de negócios, e, talvez, regresso compulsório ao hinduísmo. Essas ameaças, ao que Jinnah declarou em 1917, eram irreais. “Não temais”, clamava ele, “trata-se de um embuste apresentado a vossos olhos para que fujais da cooperação e da união, que são dados essenciais para a autonomia.” Entretanto, o embuste podia ser apresentado de uma maneira tão verossímil que, por fim, o próprio sr. Jinnah utilizouo para seus costumeiros propósitos. Os britânicos, sentindo-se inseguros na Índia, naturalmente tiraram proveito da dissensão entre hindus e muçulmanos. A GrãBretanha não dividia para reinar. Os indianos já estavam divididos. A Grã-Bretanha apenas os dividira um pouco mais, a fim de reinar mais facilmente. Frustrado pelo fracasso de seu jejum em prol da causa hindu-muçulmana, Gandhi viu que o estado de domínio e a liberdade nacional se encontravam muito mais distantes do que ele havia pensado. Na segunda metade do ano de 1924, o mundo afundou-se na “normalidade” do pós-guerra. O Plano Dawes empreendeu a tarefa de salvar a economia alemã. As grandes potências européias estavam reconhecendo a Rússia soviética. Com exceção do sul da China, onde o general Chiang Kaichek
tinha uma aliança com Moscou, O bolchevismo se encontrava em maré baixa. Coolidge e a complacência presidiam os Estados Unidos. O império britânico, desafiado pelo Sinn Fein1 irlandês e pelas revoltas do Oriente próximo, entre os anos de 1919 e 1923, estava, agora, como que acalmado, em águas plácidas. Na Índia, as paixões do período pósAmritsar se haviam extinguido, e as dúvidas e o desespero, bem como, provavelmente, a não-violência de Gandhi, estimulavam o ardor do nacionalismo beligerante. Não era hora para uma franca rebelião antibritânica. O Mahatma dedicou-se à reeducação de um país para a liberdade — um processo lento.
Organização política fundada em 1905 na Irlanda e que defendia sua completa separação política da Grã-Bretanha. (N. do E.) 1
15 Resposta a Moscou Entre 1924 e 1929, que foram os anos de modorra, o Mahatma Gandhi não podia saber o que os jornais teriam de informar em 1940, nem o que agora está registrado na história. Ele estava apenas tentando uma estrada para a liberdade. Contudo, o caminho que palmilhava, naquela fase da depressão política da Índia, conduzia à independência nacional. Teria tomado o mesmo rumo, em qualquer caso, porquanto o que fez, nos fins de 1920, era em si correto, era um meio desejável, fosse qual fosse o fim. Estava convencido de que um bom meio é, em si mesmo, um bom fim. Isso lhe dava a ânsia de prosseguir, muito embora não visse luz à saída do túnel; isso lhe dava uma sensação
de certeza, muito embora não estivesse seguro de sua direção. O emprego dos meios adequados, ao que ele sentia, nunca poderia constituir uma perda; deveria proporcionar um ganho duplo; deveria haver o benefício decorrente dos meios empregados, mais a consecução do fim almejado. Podia, portanto, ser paciente, porquanto estava indo para algum destino, mesmo quando não parecia estar se movendo para a frente. Tilak e Gokhale estavam mortos, e o Mahatma havia sido conduzido, pelo povo, ao pináculo da eminência. Sua choupana, no ashram de Sabarmati, era, agora, a Casa Branca da Índia; e, quando Gandhi se achava em excursão, as multidões o cercavam, aonde quer que ele fosse. “Não me deixam só nem sequer quando tomo banho”, escreveu ele. À noite, seus pés e suas pernas, dos joelhos para baixo, se cobriam de arranhaduras feitas por homens, mulheres e crianças que inclinavam a cabeça até o chão e lhe tocavam no corpo. Sua deificação estava começando; a tribo de Gond venerava-o. “Já manifestei meu horror e minha enérgica desaprovação quanto a esse tipo de idolatria”, exclamava ele. Muitos indianos consideravam-no uma reencarnação de Deus,
à
maneira
de
Buda
e
de
Krishna;
Deus
descido
temporariamente à terra. Vinham das montanhas, das planícies, das aldeias mais longínquas, para se santificarem vendo-o ou tocando-o. Em Dacca, na província de Bengala, um homem idoso, ostentando a fotografia de Gandhi pendurada no pescoço, apresentou-se chorando e disse que o Mahatma o havia curado de uma paralisia crônica. “Vós me fareis um favor tirando essa fotografia de vosso pescoço”, retrucou Gandhi. “Não fui eu, e sim Deus, que vos tornou são.” Nem mesmo os intelectuais estavam imunes. Certo dia, um advogado, viajando no mesmo trem com Gandhi, caiu ao chão, de
cabeça
para
baixo,
Quando
o
apanharam,
viu-se
que
se
encontrava ileso. O advogado atribuiu sua salvação ao fato de ser companheiro de viagem do Mahatma. “Nesse caso, não devíeis sequer ter caído”, riu Gandhi. Entristecido pela vazia glorificação, Gandhi escreveu: “Não sou nenhum mahatma. Minha condição de mahatma não tem valor”. Teria preferido que os indianos lhe seguissem as pegadas, a vê-los beijarem-lhe os pés. Queria auxílio., não aclamações, nem adoração.
Queria
auxílio,
acima
de
tudo,
para
implantar
indústrias domésticas e, em particular, a da fiação. “Para mim”, proclamava ele, “nada, no mundo político, é mais importante do que a roca.” Durante minha estada junto a Gandhi, em 1946, entrei em seu quarto, enquanto ele se encontrava fiando. Ele explicou aquela devoção: — Se trezentos milhões de indivíduos fizessem a mesma coisa, uma vez por dia, não pelo fato de Hitler o haver ordenado, e sim por se sentirem inspirados pelo mesmo ideal, poderíamos ter união suficiente de propósitos para conseguir a independência. Sugeri, jocosamente, que, quando ele parava de fiar, para falar comigo durante uma hora, estava adiando a independência. — É isso mesmo — riu ele. — Vós haveis atrasado o swaraj em seis metros. As tangas, xales, toalhas e lençóis de Gandhi eram todos de fazenda tecida em casa, ou khadi. Um número cada vez maior de indianos já passava a usar roupas de tais tecidos. Alguns, porém, escarneciam. “Envoltórios brancos e monótonos”, zombavam. “A libré de nossa liberdade”, replicava Jawaharlal Nehru. Gandhi acreditava tanto na roca, que a pôs no centro da bandeira do Partido do Congresso, que depois se tornou a
bandeira da Índia independente. Essa foi sua contribuição especial para a educação dos espíritos abertos para a política, que viviam nas cidades; aquilo os tornou conhecedores da população camponesa pobre e sem instrução. Constituiu uma aventura na identificação da liderança com as massas, porquanto ele sabia com que facilidade, na Índia, o esplendor dos palácios, feito de ouro, prata, sedas, jóias e elefantes — ou, em termos mais modernos, o glamour das gigantescas unidades industriais — podia esconder, à vista da gente, a pobreza animal que havia em suas choupanas. Para assistir o desfavorecido — ensinava Gandhi — é preciso compreendê-lo; e para compreendê-lo é preciso, às vezes, viver como ele vive. “Estou procurando progredir de baixo para cima”, declarava; e alertava os intelectuais, dizendo-lhes que, se não lhe apoiassem a política do khadi, “a Índia culta se separará do único vínculo visível e tangível que a une às massas”. A fiação era, assim, outro meio de comunicação, e um trabalho de amor. Organizar e financiar o movimento da roda de tecer eram a finalidade principal de suas várias excursões pela zona rural. Geralmente, Gandhi viajava de terceira classe. Sugeria que, se o vice-rei, o comandante-em-chefe e os marajás fizessem o mesmo, as condições higiênicas da terceira classe seriam melhoradas. Em toda parte a que se dirigia, coletava dinheiro. Ao longo de toda a sua vida, Gandhi sempre foi um irreprimível arrecadador de fundos. As quantias eram empregadas na compra de rocas e fusos para os camponeses, na abertura de lojas, nas cidades, para a venda do khadi das aldeias, no treinamento de fiadores e no preparo de mestres de tecelagem. Assim que o trem parava nas estações, ele punha para fora da janela a concha feita com a palma de sua mão, de modo que o povo pudesse ali depositar
moedas e cédulas. Ou, então, passava pelo meio das multidões, vendendo fazendas tecidas em casa. Gandhi aceitava também ouro e jóias. “O exército de minhas namoradas aumenta dia a dia”, orgulhava-se ele. “A última é Ranibala, de Burdwan, uma adorável garota talvez de uns dez anos. Não ousei perguntar-lhe a idade. Eu brincava com ela, como sempre faço, e lançava olhares furtivos a seus seis pesados berloques de ouro. Com delicadeza, expliquei-lhe que tais berloques constituíam peso excessivo para seus tenros punhos; e lá foi a mãozinha dela arrancando os berloques.”
Mais
tarde,
nesse
mesmo
dia,
ele
relatou
o
acontecimento numa reunião de mulheres e conseguiu “uma boa dúzia de berloques e dois ou três pares de brincos, tudo sem pedir. Escusado dizer que tudo será empregado em khadi”. Gandhi explicava às mulheres que elas aumentariam a própria beleza, dando a ele seus adornos: “Bela é quem o belo faz”, citava ele. Além disso, dizia, as mulheres indianas usavam um “mobiliário pessoal” excessivo em suas orelhas, no nariz, nos braços, nos tornozelos. Elas ficariam mais limpas sem isso. Os amigos o acusavam de exagerar a eficácia da fiação. Estamos na era da máquina, clamavam eles, e todo o seu trabalho, sabedoria e santidade não fariam retroceder os ponteiros do relógio. “Há cento e cinqüenta anos”, respondia Gandhi, “nós tecíamos todas as nossas roupas. Nossas mulheres fiavam ótimos fios, em seus lares, e com isso complementavam os ganhos de seus maridos... A Índia precisa de cerca de doze metros de pano por cabeça, ao ano. Ela produz, ao que penso, menos da metade dessa quantidade. A Índia planta e colhe todo o algodão de que precisa. Exporta vários milhões de fardos de algodão para o Japão e para Lancashire, e recebe, de volta, grande parte disso, na forma de tecido, embora ela seja capaz de produzir todo o pano e todo o
fio necessários para satisfazer suas conveniências, pelo processo da fiação manual e da tecelagem manual... A roca de tecer foi dada de presente à nação, a fim de proporcionar ocupação aos milhões de pessoas que, pelo menos durante quatro meses por ano, não tinham o que fazer.” A preocupação máxima de Gandhi era a de auxiliar o pobre mal empregado; visto como ele e seu Deus eram associados, ele alistou o Todo-Poderoso na sua tarefa. “A um povo faminto e ocioso”, escreveu, “a única forma aceitável, em que Deus ousa aparecer, é na de trabalho, e na de promessa de alimentos através dos salários.” A pobreza, sustentava o Mahatma, conduz à “degradação moral”. Queria uma Índia próspera e feliz. “Se não desperdiçarmos nossa saúde e nossa riqueza”, insistia, “o clima e os recursos naturais de nosso país são de tal ordem, que poderemos nos tornar o povo mais feliz do mundo.” A noção mais ou menos difundida, segundo a qual Gandhi favorecia o estado de pobreza, se deve, provavelmente, ao fato de ele praticar a pobreza consigo mesmo, por sua espontânea vontade, e de condenar os extremos da riqueza. “Na África do Sul, onde tive o privilégio de associar-me a milhares de nossos compatriotas, nos termos mais íntimos”, declarou ele, de uma feita, “observei, de maneira quase invariável, que, quanto maiores são os bens dos ricos, maior é a sua torpeza.” A seguir, citou Jesus: “É mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha, do que um rico entrar no reino de Deus”. Gandhi dizia ao rico que se fizesse um pouco mais pobre, dando aos pobres. Em Bengala, Gandhi foi hóspede de um fazendeiro que lhe servia leite numa tigela de ouro, e frutas em pratos também de ouro. “De onde obtivera ele aqueles pratos?”, perguntara Gandhi, mais tarde. “Da substância dos camponeses”, respondia. “Numa
terra em que a vida dos camponeses é uma longa e prolongada agonia, como ousa ele possuir tais coisas luxuosas?”
Gandhi temia que a industrialização deixasse os camponeses e os operários sem trabalho, e aumentasse o “torturante
pauperismo” da Índia. Por isso, preferia teares domésticos a fábricas de tecidos. “Se multiplicardes a produção individual milhões de vezes”, alertava, “isso não vos dará, por acaso, produção
em
massa,
em
escala
formidável?
Ouso
dizer,
entretanto, que vossa produção em massa é um termo técnico que designa produção pelo menor número possível de pessoas, através do concurso de maquinaria altamente complicada. Tenho dito a mim mesmo que isso está errado. Minha maquinaria deve ser do tipo elementar, para que eu possa pô-la no lar de milhões de pessoas.” Seu lema era: “Uma fábrica em miniatura em cada lar”. “Nessas
condições”,
um
entrevistador
recapitulou,
em
novembro de 1934, “vós fazeis oposição à máquina somente porque e quando ela concentra a produção e a distribuição nas mãos de uns poucos?” “Tendes razão”, respondeu Gandhi, “odeio o privilégio e o monopólio. Tudo o que não pode ser compartilhado pelas massas é tabu para mim. Isso é tudo.” É interessante assinalar que, hoje, na Índia, onde grande parte do ensinamento de Gandhi é ignorada, a economia do Mahatma, outrora considerada retrógrada e ingênua, agora está sendo aceita por um grupo cada vez maior de ocidentalizados, de indianos de mente moderna, de socialistas, por exemplo, e também por determinados membros do governo. As indústrias são naturalmente necessárias, mas em muitos países asiáticos e africanos, elas dão origem ao prolongado desemprego das massas, bem como à miséria, em vez de. proporcionar a prosperidade das multidões e lazeres compensadores. As pessoas substituídas por um torno complexo não são logo absorvidas por outras tarefas; morrem
de
fome.
“Se
as
indústrias,
na
Índia,
forem
completamente mecanizadas, não será possível dar emprego a
todo o nosso povo”, afirmou o primeiro-ministro de Bombaim, em dezembro de 1952. Pelas ruas de Madrasta, sob o sol canicular de agosto, vi homens de pele cor de chocolate, cobertos por turbantes e envoltos apenas em lençóis, puxando e empurrando pesadas cargas sobre plataformas munidas de roda, do tamanho de caminhões de duas toneladas. Sua força de trabalho é mais barata do que a dos animais. Tais homens se ressentiriam do emprego de bois ou de cavalos, não se falando sequer do emprego de veículos motorizados. Gandhi não era contra o Ocidente, nem contra a indústria; seu olhar indiano via simplesmente os problemas econômicos da . Índia e da Ásia com mais clareza do que os cegos apregoa-dores europeus da máquina pela máquina. Interrogado até o tédio sobre se opunha objeções à máquina, Gandhi exclamava: “Como posso fazer objeções, quando sei que até meu corpo é um exemplo bem delicado de máquina? A roca é máquina; um pequeno palito também é máquina. Aquilo a que ponho objeções é o culto da máquina, não à máquina considerada em si mesma. Nos dias de hoje, a máquina apenas ajuda uns poucos a cavalgar nas costas de milhões de pessoas. A máquina não deve tender a atrofiar os membros do homem. Por exemplo, eu poderia fazer exceções inteligentes. Tome-se o caso da máquina de costura Singer. É uma das poucas coisas realmente úteis jamais inventadas; e há romantismo a respeito da máquina considerada em si mesma”. Gandhi havia aprendido a costurar numa máquina Singer. “E não precisaríeis vós de grandes fábricas para produzir tais máquinas?” “Sim”, concordava Gandhi. “Mas idealmente”, acrescentava,
num argumento circular, tipicamente gandhiano, “eu proibiria todas as máquinas, ainda que tivesse de rejeitar meu próprio corpo, que não é dos mais prestimosos para a salvação, e procurar a libertação absoluta da alma. Desse ponto de vista, eu rejeitaria qualquer máquina; mas as máquinas permaneceriam, porque, como o corpo, elas são inevitáveis.” Com o mesmo espírito, ele disse “é e não é”, quando duas mulheres norte-americanas lhe perguntaram se era verdade que ele fazia objeções às estradas de ferro, consideradas como recursos de locomoção rápida. Gandhi também não repelia amenidades e habilidades de tipo ocidental. “O Ocidente”, escreveu a Miss Madeline Slade, “sempre mereceu minha admiração por suas invenções cirúrgicas e por seus progressos de ordem geral, em todas as direções.” Mas, sendo bem-indiano, e não se inclinando a imitar ostensivamente o Ocidente, nem a procurar impressionar fosse lá quem fosse, por meio de uma superestrutura tecnológica, erguida sobre a base apodrecida do atraso das massas, Gandhi se concentrava de preferência na aldeia indiana, onde, de acordo com o que todas as autoridades admitiam, o superpovoamento torna supérfluas quase todas as máquinas. Desde tempos imemoriais, a principal defesa da Índia contra o invasor foram suas aldeias. Invadida vinte e seis vezes, e sempre pelo Ocidente, a Índia o teme, e tem prazer em desafiá-lo, bem como em condená-lo. A confiança máxima de Gandhi em sua pátria fazia com que ele fosse o menos isolacionista de todos; queria “que as culturas de todos os países soprassem pela minha casa, tão livremente quanto possível” (embora se recusasse a ser “purgado por qualquer delas”), mas para uma emergência, o reduto central, a última fortaleza, contra o intruso armado ou
desarmado, seriam sempre os camponeses. Os forasteiros podiam conquistar e governar, nas capitais federais e provinciais, e mesmo
nos
distritos,
mas
as
aldeias,
isoladamente
sem
importância e remotas, possuíam sua própria Gibraltar interior — uma organização interna, popular, coesa, que Gandhi desejava manter intata. Ele falava freqüentemente do Panchayat, ou Conselho
dos
Cinco
Anciãos,
que,
desde
tempos
antigos,
governava cada uma das aldeias, autonomamente; e ele também advogava a independência econômica para a aldeia. Sua aldeia ideal, escreveu ele na revista Harijan, em 26 de julho de 1942, seria uma “república completa, independente de suas vizinhas quanto
às
suas
necessidades
vitais,
e,
ainda
assim,
interdependente quanto a muitas outras necessidades, nas quais a dependência é uma necessidade”. Essa aldeia produziria seus próprios alimentos e daria “colheitas úteis” — não de ópio — para vender; teria escolas, teatro, abastecimento de água potável, centros públicos, com eletricidade em cada choupana. Aqui estava uma prova concreta de sua aceitação das técnicas ocidentais, quando elas beneficiavam as massas de indivíduos necessitados. Uma
aldeia
autogovernada,
confiante
em
si
mesma,
comerciando principalmente com as aldeias vizinhas e autosuficientes, e importando um mínimo de dispositivos complicados, era a receita de Gandhi para a democracia na Ásia. Quanto mais essas pequenas unidades geográficas, que eram as aldeias, conseguissem desenvolver-se, devido ao esforço cooperativo feito em sua base, tanto menos espaço restaria para a ditadura procedente de cima e de longe. Ele as preferia às cidades quentes, sujas, parecidas com barris de arenques, da Índia, com seus cortiços de operários industriais. Não
há
qualquer
fundamento
na
pressuposição
freqüentemente repetida segundo a qual o Mahatma Gandhi advogava o regresso a uma sociedade pré-industrial; ele queria progresso, com auxílio da tecnologia ocidental, mas não às expensas do homem-entidade-biológica, nem do homem-serhumano-espiritual.
Os
males
do
industrialismo
europeu,
combinados com a exploração oriental, não são um belo espetáculo na Índia, nem em qualquer parte da Ásia. Num nível mais alto, filosófico,
Gandhi simplesmente
percebia, muito antes que outros o fizessem, os perigos e os horrores de uma civilização em que a máquina pode escravizar o homem, em vez de levar a termo sua função essencial, que é libertá-lo. Em Londres, em 1931, Charlie Chaplin pediu para ver Gandhi.
Gandhi,
que
nunca
vira,
até
então,
um
filme
cinematográfico, não conhecia o nome dele, e, ao ser informado, disse que não tinha interesse por atores. Mas, quando soube que o ator procedia de família pobre, que vivia nos cortiços de Lambeth, em Londres, recebeu-o. A conversação começou — como freqüentemente começava, no caso de visitantes ocidentais — com uma falsa concepção, por parte do próprio visitante, quanto à atitude de Gandhi em face da máquina; e a resposta, ao que parece, impressionou de tal forma Chaplin, que este dedicou uma de suas fitas ao tema da corrida diária entre homens e máquinas. Quanto mais rapidamente as máquinas se movem, tanto mais rapidamente o homem vive, e tanto maior é o tributo, em tensão nervosa, que ele paga às máquinas. A cultura, o lazer, e, com efeito, o próprio ato de viver, se tornam tão entrelaçados com as máquinas, que o homem, individualmente, tende a empobrecerse interiormente. O indivíduo fica mais ou menos na posição do selvagem que faz um ídolo e depois o serve e venera. Para Gandhi, a mecanização, ou qualquer outra forma de progresso, não era um
fim em si mesma; julgava os progressos materiais pelo seu efeito moral e espiritual sobre os seres humanos. O indivíduo era sua preocupação central. E julgava os indivíduos, não pelo que possuíam, e sim pelo que eram; não pela propriedade, e sim pela personalidade; não pela fortuna exterior, e sim pelas riquezas interiores. O seu era o individualismo do valor, não o da riqueza. A industrialização fizera homens ricos, mas fizera-os homens? Na qualidade de maior personalidade do século XX, se não de vinte séculos, e, por certo, do mais fervoroso defensor do individualismo em nossa era, Gandhi vivia a interrogar-se sobre quanto o rude materialismo poderia contribuir para o desenvolvimento dos indivíduos. Sonhava com uma Índia próspera que, entretanto, não lançasse seu povo para dentro de uma máquina que lhe reduzisse os membros, tomando-os pigmeus estandartizados e conformados. Observando o mundo, identificava a industrialização com o materialismo, e temia as duas coisas, como se fossem ameaças ao crescimento do homem. Sua crença, em defesa do indivíduo, o fazia
naturalmente
anticomunista;
contudo,
considerava
o
comunismo como um produto final de um processo que corrói também os países não-comunistas; portanto, a atitude que fazia dele um adversário do sistema soviético também o induzia a criticar a civilização ocidental; entre os dois, via uma diferença de grau, mais do que de espécie. “O bolchevismo”, afirmou Gandhi, “é o resultado necessário da moderna civilização materialista. Sua insensata adoração da matéria deu surgimento a uma escola que se
formou
para
considerar
o
adiantamento
materialista
a
finalidade da vida, e que perdeu o contato com as coisas de capital importância da vida... Predigo que, se desobedecermos à lei da supremacia final do espírito sobre a matéria, da liberdade e do amor sobre a força bruta, dentro de uns poucos anos teremos o
bolchevismo grassando por esta terra que foi outrora tão santa.” Isso se referia à Índia, mas poderia ter sido dito a propósito de qualquer país. O Ocidente talvez se mostre tão assustado com o bolchevismo, com o stalinismo, ou com o sovietismo, por sentir o germe da mesma enfermidade dentro de si. Gandhi tinha a resposta e o antídoto para o stalinismo: um indivíduo grande, valoroso, convencido da preponderância do espírito sobre a matéria, que pudesse resistir às invasões a sua liberdade por situar os princípios acima dos bens materiais. Essa receita deveria derrotar o comunismo e curar a democracia. Em todos os discursos, em todos os escritos, em todos os jejuns, em todos os atos políticos de Gandhi — em todas as suas lutas com o marechal Smuts na África do Sul, com britânicos e com seu próprio povo, na Índia —, ele se punha à altura do problema que se apresenta a toda pessoa na superfície do nosso planeta: “Como pode o indivíduo moderno manter sua paz interior e sua segurança exterior, como pode conservar-se honesto, livre e autenticamente ele próprio, em face dos assaltos que se efetuam contra ele, por parte da força de governos poderosos, da força de poderosas organizações econômicas, da força do mal que reside nas maiorias cruéis e nas minorias militantes, e da força que agora se extrai do átomo?” Muita gente fica em atitude de medo perante essas aglomerações de força; admite sua incapacidade de lutar, e submete-se. O resultado, em todos os países, é um homem que se encolhe cada vez mais. Isso abre a porta ao totalitarismo e ameaça a democracia, porquanto, sem um indivíduo que esteja pronto e seja capaz de se defender a si mesmo, contra as exorbitâncias do poder, a liberdade está condenada.
O poder foi a principal preocupação de Lênin e de Stálin. Desconfiando do indivíduo, que, portanto, precisava ser vigiado e esmagado, eles fundaram um movimento e um Estado, com base no princípio da liderança: um partido de elite, dominado por um homem,
lidera
as
“massas”
obedientes.
Daí
a
ditadura
desumanizada.
A
preocupação
principal
de
Gandhi
era
o
indivíduo, que ele treinava na afirmação de seu próprio eu e de sua própria vontade, não somente contra o Estado britânico, mas também contra qualquer outro Estado. “Gandhi endireitou nossas costas e enrijeceu nossa espinha”, disse Nehru. O poder não pode subir por um dorso ereto. Gandhi devotou a maior parte de sua vida a estudos relativos à nutrição; procurou vitaminas para o corpo e alimentos que
tornassem
os
homens
fortes.
Seu
cardápio
para
o
desenvolvimento tinha por base o destemor. Profeta da nãoviolência, ele declarou, não obstante, que “onde houver escolha entre a covardia e a violência, eu escolherei a violência”, porque a covardia reduz o amor-próprio do homem, e, portanto, sua estatura. Gandhi, pessoalmente, não tinha medo; foi esta, mais do que qualquer outra qualidade, a razão do seu crescimento, da condição de uma pessoa comum que ele era no segundo e no terceiro decênios de sua vida, para o homem grande como uma montanha em que ele por fim se transformou. Não temia governos, nem prisões, nem a morte; a morte o uniria ao seu Deus; a doença, ele podia conquistá-la; não temia, igualmente, a fome, a impopularidade, a crítica, nem a repulsa. O individualismo de Gandhi alimentava-se de coragem. “A não-violência”, disse ele, “requer muito mais coragem do que a violência.” Nenhum covarde seria capaz de conservar-se sentado, quieto, no chão, enquanto os cavalos da polícia avançassem galopando sobre ele; nem de deitar-se diante de um carro, nem de ficar imóvel tendo policiais a brandir cassetetes ao seu redor. Essa era a resistência ativa dos bravos. Gandhi aplicava uma técnica de combate que transformava a tradicional docilidade do afável hindu em heroísmo. O método provinha da sua fé no barro comum. Ele a
equiparava a si mesmo e vice-versa. “Os ideais que regulam minha vida”, escreveu, “são representados pela aceitação da humanidade em geral... Não tenho a menor sombra de dúvida de que qualquer homem, ou qualquer mulher, possa conseguir o que consegui, se realizar o mesmo esforço, cultivando a mesma esperança e a mesma fé. Sou apenas uma pobre alma lutadora, ansiando por ser inteiramente boa... Sei que ainda tenho diante de mim uma trajetória difícil a percorrer.” Reconhecia a fraqueza humana existente em si mesmo e nos outros, e não esperava a perfeição da parte de ninguém, mas acreditava verdadeiramente na capacidade de o homem emendar-se, bem como na infinita capacidade de sua ascensão. Recusando-se a concentrar-se no que havia de mau nas pessoas, com freqüência as modificava, considerando-as não como o que elas eram, mas como o que desejavam ser, como se o que havia de bom nelas fosse tudo o que havia nelas mesmas. Esse otimismo
criador
às
vezes ampliava
a
dimensão
de
seus
associados; e até mesmo o visitante casual sentia seus benefícios. Perpétuo reformador de homens, Gandhi aceitava-os, não obstante, como eles eram. O amor tornava-o indulgente. Possuía um código extremamente rigoroso de conduta para seu próprio uso, e outro código, indulgente, para aplicar aos outros. Vivia em feliz harmonia com os homens e as mulheres por ele convidados a fazer parte do ashram, mas que não acreditavam em Deus, nem na não-violência, nem na castidade, nem nele mesmo. Na verdade, encorajava a rebelião e o não-conformismo, considerando-os recursos
auxiliares
no
desenvolvimento
do
indivíduo.
A
deslealdade para com ele nunca o perturbava; perturbava-o, porém, a deslealdade para com os princípios. A universal deslealdade para com os princípios, sob todos os sistemas sociais, se deve ao custo deles. Sob a ditadura, o custo
pode ser a morte; numa democracia, o desconforto e o embaraço. Gandhi estava pronto a pagar, fosse qual fosse, o preço dos princípios pelos quais se batia Quanto mais pobre de bens materiais ele fosse, tanto mais ele poderia pagar. E tanto mais rico o pagamento o deixaria, em moeda do espírito, que era a única moeda a que ele atribuía valor. Gandhi alimentava a mesma atitude nos outros. Dizia a seus seguidores que sacrificassem suas relações e seus contatos com ele, em nome e em benefício de suas próprias crenças. Não chefiava apenas um movimento, fazendo esforços para seu bom êxito; estava forjando uma nação, pela moldagem de homens. Se estava para ser pai de uma nação, então queria ter filhos gigantes. Quando defrontado pela oposição, no Partido do Congresso, ou no círculo das pessoas mais chegadas, no ashram, Gandhi por vezes cedia, muito embora pudesse facilmente superá-la; respeitava a divergência. Esse respeito é o maior sinal de masculinidade. De uma feita, numa conferência sobre educação básica, todos os participantes concordaram com Gandhi, exceto Zakir Hussain, mestre-escola
muçulmano.
Gandhi
nomeou-o
presidente
da
sociedade em prol da educação básica. A força de vontade do Mahatma, juntamente com sua fé fanática nos princípios, poderia tê-lo transformado em ditador — ele tinha um traço de ditador dentro de si —, mas seu interesse na formação de indivíduos o tornava um democrata. Conseqüentemente, o séquito de Gandhi se fez grande, diverso e difuso. Sua personalidade atraía também uma ampla série de líderes. Pyarelal Nayyar, que foi secretário principal de Gandhi por muitos anos, enumerou alguns deles na revista Harijan, de 15 de março de 1952. “O círculo íntimo do Mahatma”, escreveu ele, “compreendia hábeis capitalistas e homens de
negócios, como G. D. Birla e Seth Jamnalal Bajaj; céticos como Acharya Kripalani; intelectuais e revolucionários como o pândit Jawaharlal Nehru; estadistas e políticos astutos como o pândit Motilal Nehru e Vithalbhai Patel; homens de fé e de renúncia, como
Vinoba
Bhave;
juristas
de
espírito
sutil,
como
Rajagopalachari; altruístas como o dr. Rajendra Prasad; espíritos profundos e teólogos, como Maulana Azad; médicos brilhantes, que eram geniais em seu ramo de atividade, como o falecido dr. Ansari e o dr. Hakim Ajmal Khan Saheb; personalidades pitorescas, como a irreverente e maternal Sarojini Naidu, o rouxinol da Índia; damas da sociedade de sangue azul, como Miss Slade e, por fim, mas não menos importante, o nosso Homem de Ferro, o pilar granítico da Índia livre, infelizmente agora tombado, Sardar Patel. Essa lista é apenas ilustrativa.” “Qual era”, pergunta Pyarelal, “o segredo dessa maravilhosa atração que Gandhi exercia sobre o espírito e o sentimento de lealdade dos homens?” Era o seu “realismo intenso e multilateral”, respondia ele, “era seu tato, sua profunda simpatia, sua delicadeza e seu encanto pessoal...” Os capitalistas sentiam-se arrastados por ele, “pela sua agudeza na compreensão dos negócios práticos, pela sua sinceridade, pela sua coragem”; Acharya Kripalani transformou-se em seu escravo, quando descobriu, no Mahatma, o rebelde e o revolucionário que ele próprio aspirava ser; o pândit Jawaharlal Nehru — requintado e intelectual — sentiu-se fascinado pelo seu dinamismo e pela obra de arte integrada pela sua vida. Recordo-me de como, em determinada ocasião, no decorrer de um debate acalorado, Nehru irrompeu, impacientemente: “Eu quero revolução, isto é apenas reformismo”,
ao
que
Gandhi
acrescentou:
“Eu
tenho
feito
revoluções, enquanto outros têm falado a respeito delas. Quando
vossa exuberância houver diminuído e quando vossos pulmões estiverem exaustos, podereis vir a mim, se estiverdes realmente falando a sério quanto a fazer uma revolução”. Motilal Nehru, pai de Jawaharlal, também tinha suas diferenças com Gandhi. “Eu disse ao Mahatmaji”, relatou de uma feita Nehru, pai, a Pyarelal, “que não acredito na espiritualidade dele, e que não me disponho a acreditar em Deus, pelo menos nesta vida.” “E o que foi que ele disse em resposta?”, indagou Pyarelal, ofegante. “Ele apenas riu”, respondeu Motilal Nehru. Maulana Azad, o erudito islâmico, continua Pyarelal, “achou que ele estava à altura de um sacerdote e representava uma catolicidade religiosa em ação”; Vinoba considerava Gandhi um santo da antiga Índia; “Rajagopalachari encontrou nele uma clareza de pensamento, uma perspicácia, uma maravilhosa rapidez de apreensão da causa de seu adversário, uma agudeza de percepção legal, que reduziam à condição de mesquinharia as acrobacias forenses das celebridades jurídicas convencionais”. Os médicos viam com bons olhos seu interesse pela saúde; a sra. Naidu descobriu que ele era “um poeta em ação”. Madeline Slade, filha de um almirante britânico que possuía as insígnias de cavaleiro, observa Pyarelal, recebeu, de Gandhi, “essa profunda espiritualidade pela qual ansiava a alma faminta do Ocidente, adoradora de riquezas materiais”; e Sardar Vallabhbhai Patel, o estadista-dono-de-máquinas, senhor do Partido do Congresso, “descobriu que, em Gandhiji, por fim, havia um líder político que não era discursador, mas homem de ação que fazia com que as coisas acontecessem, e que nunca deixava de fazer o bem, desde que resolvesse fazê-lo”.
Por certo, esses são os encômios de um discípulo fiel; não obstante, aproximam-se da verdade, porquanto Gandhi atraía, de fato, e guiava todos esses homens, todas essas mulheres e muitos outros. “Exercia influência sobre eles”, explica Pyarelal, “porque Gandhi nunca pôs ninguém a serviço de algo que não fosse do interesse da pessoa em questão. Usava de tal forma seus instrumentos, que tirava e desenvolvia o que de melhor havia nos homens, de maneira que estes cresciam, em robustez e em estatura, de dia para dia... Nos debates, nunca procurava sobrecarregar nem sobrepujar o opositor com demonstração de pujança intelectual. Fazia do opositor um companheiro à procura da verdade. O objetivo era sempre o de converter, nunca o de coagir, nem o de suprimir. O opositor nunca se apagava na humilhação da derrota; ao contrário, compartilhava plenamente a emoção e a alegria da descoberta da verdade, que era levado a sentir, tanto quanto as sentia o próprio Gandhiji. Isso tornava mais receptiva a mente do opositor, em vez de a fazer mais resistente.” Daí a jactância de Gandhi: “Eu sou um democrata nato”. O Mahatma Gandhi não amava a humanidade em sentido abstrato; amava os homens, as mulheres, as crianças; e esperava auxiliar a todos, como indivíduos e como grupos de indivíduos. Ele lhes pertencia; eles sabiam disso, e, por isso, pertenciam a ele. Por dar guarida ao desleal, ele desfazia a deslealdade. Sua lealdade provocava a deles. Dessa maneira, durante os piores anos de derrota e de depressão, de 1924 a 1929, preparou-se para os triunfos ulteriores. A Índia, agora, o chamava Bapu— “Pai”.
16 O sal da liberdade Em 1928, a Índia fervia de manifestações trabalhistas e nacionalistas de intranqüilidade. Em dezembro desse ano, o assistente do superintendente da polícia, Saunders, de Lahore, foi assassinado. Gandhi qualificou o fato de “um ato de covardia”. Bhagat Singh, o suposto assassino, evitou ser preso e logo alcançou a condição de herói. Em 8 de abril de 1929, entrou na Assembléia Legislativa, em Nova Deli, repleta dos seus membros ingleses e indianos; lançou duas bombas contra eles, e depois começou a atirar com seu revólver. Por sorte, somente um legislador ficou seriamente ferido. Na província de Bengala, que era sempre um centro de turbulência e de oposição tanto aos britânicos como à chefia exercida pelo Congresso, Subhas Chandra Bose, procelária de tempestade, cujo lema era “Dai-me sangue e eu vos prometo liberdade”, havia arregimentado grande número de seguidores rebeldes.
A
eloqüência
“independência,
agora”,
de
Jawaharlal
granjeou-lhe
Nehru,
popularidade
clamando entre
a
juventude. Uma batalha se fazia pressentir, mas Gandhi entrou no assunto cautelosamente. Aquela deveria ser uma batalha em que seu lado lutaria com uma espécie particular de arma: a desobediência civil. Nenhum arsenal de governo a produzia. Diversamente da maior parte dos rebeldes, Gandhi não tomava munição de seu adversário. Em viagem para a sessão anual do Congresso, em Calcutá, em dezembro de 1928, alguns amigos interrogaram Gandhi,
quando seu trem se deteve em Nagpur: — Qual seria a vossa atitude em face de uma guerra política de independência? — Eu declinaria de tomar parte nela — respondeu. — Hoje, estou ensinando ao povo a maneira de fazer face a uma crise nacional por meios não-violentos. Na sessão, contudo, os moços, liderados por Bose e Nehru, exigiram ação. Advogaram uma declaração de independência, e, por via implícita, uma guerra de independência. Gandhi insistiu em que se desse aos ingleses um prazo de dois anos. Sob pressão, reduziu o prazo para um ano. Se, em 31 de dezembro de 1929, a liberdade não houvesse sido conseguida, na forma de implantação de soberania, anunciou Gandhi: “Eu me declararei um walla independente... Já rompi com o passado”. O desfecho deveria ocorrer em 1930. Lorde Irwin, mais tarde lorde Halifax, vice-rei, ao que informa seu biógrafo, Alan Campbell Johnson, “esteve em grande parte absorvido”, durante os primeiros quatro meses de 1929, “na procura de soluções administrativas, com o propósito de fazer face aos perigos do terrorismo político e das greves industriais”. Funcionários das uniões trabalhistas foram presos às vintenas. O remédio, naturalmente, não estava nas medidas, e sim em sua capacidade como estadista. Isso foi vislumbrado como uma possibilidade, quando o Partido Trabalhista britânico subiu ao poder, na Inglaterra, tendo Ramsay MacDonald, um dos campeões da concessão da liberdade à Índia, na qualidade de primeiroministro. Gandhi sentiu-se encorajado. Na revista Young India, de 9 de maio de 1929, ele formulou a esperança de que a liberdade seria conseguida por meios não-violentos, “através de um acordo de cavalheiros com a Grã-Bretanha. Mas, a essa altura”, advertiu
ele, “não se tratará de uma altiva manobra imperialista britânica, no sentido da consecução da supremacia no mundo, e sim, de uma humilde tentativa da Inglaterra, no sentido de servir aos fins comuns da humanidade”. No verão, lorde Irwin foi a Londres, passou vários meses em conferências com o novo governo, e regressou a Deli para anunciar, em 31 de outubro de 1929, que o governo de Sua Majestade estava planejando uma conferência de delegados britânicos e indianos; afirmou, ademais, que “a finalidade natural do progresso constitucional da Índia... era a consecução da soberania”. Gandhi e os líderes nacionalistas mais velhos responderam favoravelmente a esse plano, e, sem se amedrontarem com os protestos que partiam de Jawaharlal Nehru e de Subhas Chandra Bose, bem como dos seus sequazes, se prepararam para transigir. Uma entrevista com lorde Irwin foi combinada para o dia 23 de dezembro. Entrementes, em Londres, lorde Reading, antigo vicerei, chefiou, na Câmara dos Lordes, um ataque contra a política de MacDonald na Índia, e, na Câmara dos Comuns, os tóris e os liberais se coligaram contra o governo trabalhista (que dispunha apenas de uma minoria parlamentar), para condenar a prematura promessa de soberania, feita por Irwin. A entrevista da tarde, com Gandhi, Jinnah, Motilal Nehru, Vithalbhai Patel e Sir Tej Bahadur Sapru, grande Constitucionalista, concluiu, naturalmente, com a ‘declaração do vice-rei, segundo a qual “ele se sentia incapaz de prejulgar, ou de conseguir qualquer compromisso da Conferência da Mesa Redonda, no sentido de qualquer diretriz em particular...” Essa foi a abertura perturbadora da notável sessão anual do Congresso, realizada em Lahore, em dezembro de 1929, sob a presidência de Jawaharlal Nehru, que festejara seu quadragésimo aniversário um mês antes. Com Gandhi na qualidade de diretor de
cena, a sessão desfraldou a bandeira da liberdade e adotou uma resolução a favor da independência irrestrita, bem como da separação da Índia do império britânico. “Swaraj, agora, significa independência completa”, afirmou Gandhi. O Congresso deu instruções, a seus membros e a seus amigos, no sentido de se retirarem das legislaturas, sancionando a desobediência civil e o não-pagamento de impostos. A comissão executiva do Congresso foi autorizada a decidir sobre quando a campanha do satyagraha deveria começar; Gandhi disse: “Eu sei que isso é um dever que recai primacialmente sobre mim”. Ele teria de ser o coração, o cérebro e a mão diretora de qualquer movimento de desobediência civil, e teria, portanto, de escolher a hora, o lugar e a finalidade exata. Gandhi retirou-se para o seu ashram, a fim de refletir sobre a questão. A Índia estava tensa, na expectativa. Rabindranath Tagore, a quem Gandhi dedicava a mais profunda veneração, encontrava-se nas proximidades do ashram de Sabarmati, e compareceu para uma visita, no dia 18 de janeiro. Tocado pela curiosidade, inquiriu o que o Mahatma tinha reservado para a Índia, em 1930. “Estou pensando incansavelmente, dia e noite”, respondeu Gandhi, “e não vejo luz alguma surgir dentro da escuridão circunstante.” “Há muita violência pairando no ar”, asseverou Gandhi. Nessas circunstâncias, a desobediência civil, a única alternativa em relação à “rebelião armada”, envolvia “riscos indubitáveis”; e ele andava, por isso, à procura de uma forma de desobediência civil que não pudesse explodir numa violência espalhada por toda a nação. Durante seis semanas, andou em busca da referida forma, enquanto o país esperava impacientemente. Os olhos da Índia estavam postos na choupana de Gandhi. Naquele momento, ele sabia o que tinha de fazer.
Antes de pôr em prática seu plano, comunicou-o ao vice-rei, porquanto sempre sustentava que “qualquer sigilo mina o verdadeiro espírito da democracia”. A carta dirigida a Irwin foi, por certo, a mais estranha jamais recebida por um chefe de governo.
“Caro amigo”, começava ela. “Antes de dar início à desobediência civil e de assumir o risco que receei enfrentar nestes anos todos, gostaria de me aproximar de vós para encontrar uma saída.” Gandhi acreditava em negociações que pudessem proporcionar ao adversário uma alternativa. “Não posso lesar intencionalmente nenhum ser vivo, e muito menos seres humanos, ainda que possam ter causado os maiores danos a mim e aos meus”, continuava a carta. “Embora, portanto, eu considere que o governo britânico seja uma maldição, não pretendo lesar um único inglês, nem qualquer interesse legítimo que ele possa ter na Índia... E qual o motivo por que eu considero o governo britânico uma maldição? Ele empobreceu milhões de criaturas, através de um sistema de exploração progressiva, bem como por meio de uma administração militar e civil, ruinosamente dispendiosa, que o país nunca poderá suportar. Reduziu-nos, politicamente, à servidão. Minou os fundamentos da nossa cultura... Receio... que nunca houve qualquer intenção de se conceder... a soberania à Índia, num futuro imediato...” A
seguir,
Gandhi
particularizava.
“Numa
Índia
independente”, escreveu ele, “todo o sistema de arrecadação deveria ser revisto, de maneira a fazer com que o bem do camponês fosse sua finalidade primacial. O sistema britânico, entretanto, parece ser concebido para espremer a própria vida para fora dele. O imposto que incide até sobre o sal que ele, camponês, tem de usar, para viver, é tão alto, que faz o fardo pesar ainda mais sobre seus ombros... O imposto é ainda mais ominoso sobre o homem pobre, quando se recorda que o sal é a única coisa que ele deve comer em maior quantidade do que o homem rico.” O missivista explicou ainda que o imposto sobre o sal, para o camponês, representava o ganho de três dias por ano. O
camponês consumia mais sal do que o rico, porque suava mais, ao trabalhar nos campos, sob o escorchante sol tropical da Índia. A carta de Gandhi queixava-se, mais adiante, de que “o imposto sobre bebidas e remédios é pago, igualmente, pelo pobre. Ele mina os fundamentos, tanto de sua saúde como de seu moral”. As iniqüidades exemplificadas acima, acusava o Mahatma, “estão sendo mantidas com o propósito de se levar avante uma administração estrangeira que é, como se pode demonstrar, a mais dispendiosa do mundo. Tomai o vosso próprio salário”, disse ele ao vice-rei, “de mais de vinte e uma mil rupias (cerca de sete mil dólares norte-americanos) por mês, afora muitos outros adicionais indiretos... Vós estais recebendo mais de setecentas rupias por dia (aproximadamente duzentos e trinta e três dólares norte-americanos). Comparai isso com a renda média do povo, na Índia, que é de menos de duas anás (quatro centavos de dólar norte-americano) por dia. Assim, vós recebeis muito mais do que cinco mil vezes a renda média da Índia. O primeiro-ministro britânico recebe apenas noventa vezes a renda média da GrãBretanha.
De
joelhos,
peço-vos
que
pondereis
sobre
esse
fenômeno. Apresentei uma ilustração pessoal, para pôr em relevo uma
verdade
penosa.
Eu
também
nutro
por
vós
grande
consideração como homem, e não desejo, por isso, melindrar vossos sentimentos. Sei que não precisais dos vencimentos que recebeis. Provavelmente, a totalidade desses vencimentos se destina a obras de caridade. Mas um sistema que proporciona e possibilita
semelhante
arranjo
merece
ser
sumariamente
cancelado. O que é verdade em relação ao salário do vice-rei é verdade, em geral, em relação a toda a administração...” “Nada, a não ser a não-violência organizada”, escreveu Gandhi, a seguir, “pode conter a violência organizada do governo
britânico... Essa não-violência será concretizada na desobediência civil... Minha ambição é, nada menos, a de converter o povo britânico por meio da não-violência, e assim induzi-lo a ver o dano que tem causado à Índia.” Depois, Gandhi abria caminho para negociações. “Convidovos, respeitosamente, a abrir o caminho para a erradicação imediata de tais males, e assim abrir um caminho para uma verdadeira conferência entre iguais.” “Mas”, e esse era o plano de Gandhi, “se vós não podeis ver vossa maneira de lidar com tais males, e se minha carta não causa emoção alguma ao vosso coração, no décimo primeiro dia deste mês tomarei a iniciativa, com os coopera-dores do ashram que eu conseguir, de desrespeitar as determinações das leis do sal... Cabe a vós frustrar meu desígnio, pelo recurso de me prender. Espero que haja dezenas de milhares de pessoas prontas, de modo disciplinado, a tomar a mesma atitude depois de mim.” Lorde Irwin não respondeu; seu secretário acusou o recebimento. Irwin recusou-se a ver Gandhi, e, por outro lado, não mandou prendê-lo. Ao aproximar-se a data de 11 de março, a Índia começou a ferver
de
excitação.
Dezenas
de
jornalistas,
indianos
e
estrangeiros, acompanhavam os passos de Gandhi no ashram. O que, exatamente, ele iria fazer? Milhares de pessoas acamparam nas redondezas da aldeia, para assistir ao espetáculo. Os telegramas procedentes do resto do mundo mantiveram em atividade a repartição postal de Ahmedabad. “Deus vos proteja”, telegrafou a Gandhi, de Nova York, o reverendo dr. John Haynes Holmes. No dia 12 de março, depois de as preces haverem sido cantadas, o Mahatma e setenta e oito elementos masculinos do
ashram, cujos nomes e cujas características pessoais foram publicados pela Young India, para conveniência da polícia, deixaram a aldeia, a pé. “Estamos marchando em nome de Deus”, disse Gandhi. O grupo rumou para o sul, em direção ao mar. Durante vinte e quatro dias, seus componentes caminharam. Gandhi apoiava-se num cajado de bambu, laqueado, de cerca de dois centímetros e meio de diâmetro e um metro e quarenta centímetros de comprimento, com ponta de ferro. Um cavalo se encontrava à disposição, mas Gandhi nunca se utilizou dele. “Menos de dezoito quilômetros por dia, em duas etapas, sem bagagem! É uma brincadeira de criança!”, declarava ele. Alguns dias, caminhavam cerca de vinte e três quilômetros. Gandhi tinha sessenta e um anos de idade. Vários de seus seguidores se cansaram e ficaram com os pés doloridos. “A moderna geração é delicada, fraca e excessivamente mimada”, comentou o Mahatma. Durante a marcha, Gandhi fiou e teceu uma hora por dia, e manteve um diário. Gandhi e sua congregação itinerante seguiram por estradas sujas e tortuosas, de aldeia em aldeia. Os camponeses aspergiam água nas estradas e espalhavam folhas sobre elas. Todos os povoados, na rota da marcha, se engalanaram com bandeiras da Índia. Quando os peregrinos passavam, os camponeses, que procediam da zona rural, caíam de joelhos. Duas ou três vezes por dia, os caminhantes se detinham para tomar parte em reuniões populares em que o Mahatma e outros exortavam a população a fazer e a usar tecidos de fabricação doméstica, a abandonar o álcool e o ópio, a deixar de lado o costume dos casamentos na infância, e a viver vida pura. Na área percorrida, mais de trezentos chefes de aldeias
renunciaram aos seus cargos governamentais. Geralmente, os habitantes de uma aldeia acompanhavam os peregrinos até a aldeia seguinte, constituindo uma espécie de guarda de honra. De todas as partes da Índia, moços e moças convergiram, a fim de se unirem à coluna que avançava. Quando Gandhi atingiu o mar, em Dândi, no dia 5 de abril, o pequeno grupo inicial já se havia transformado em verdadeiro exército de não-violência, com um efetivo de vários milhares de membros. Não dormiram a noite toda de 5 de abril; passaram-na rezando, e, bem cedo, na manhã seguinte, acompanharam o Mahatma ao mar. Ele entrou na água, depois voltou à praia e ali apanhou um pouco de sal deixado pelas ondas. A sra. Sarojini Naidu, de pé, ao seu lado, gritou: “Salve, libertador!” Gandhi infringiu assim a lei britânica que declarava ser crime passível de punição a posse pessoal de sal não adquirido do monopólio governamental desse produto. Ele, em pessoa, não tinha feito uso de sal durante uns seis anos. Se Gandhi houvesse ido de trem, ou de automóvel, para buscar sal, o efeito do empreendimento teria sido considerável. Mas o fato de ele caminhar cerca de trezentos e setenta quilômetros em vinte e quatro dias, de haver concentrado a atenção de toda a Índia, de haver palmilhado a zona rural do país, dizendo “Prestem atenção! Eu darei um sinal à nação”, e de haver apanhado um punhado de sal, em desafio público a um governo poderoso, foi coisa que exigiu imaginação, dignidade e sentido de espetáculo de um grande artista. O gesto impressionou os camponeses analfabetos e fascinou os críticos requintados, como Subhas Chandra Bose, que comparou a Marcha do Sal à “marcha de Napoleão a Paris, depois do seu regresso de Elba”.
Realizado o ato prometido, Gandhi retirou-se do cenĂĄrio. A Ă?ndia tinha a sua deixa; ele se havia comunicado com ela, furtando um pouco de sal de uma praia.
Ao longo da vasta faixa litorânea da Índia, bem como em suas numerosas baías e enseadas, os camponeses entravam na água, com panelas, e de lá retiravam sal, ilegalmente. A polícia procedeu
a
prisões
em
massa.
Voluntários
do
Congresso
passaram a vender sal clandestinamente nas cidades. Muitos elementos receberam sentenças de prisão de breve tempo. A polícia varejou a sede do Partido do Congresso, em Bombaim, onde o sal estava sendo preparado em frigideiras, nos telhados das casas. Reuniu-se um comício de protesto de sessenta mil pessoas; centenas de participantes foram algemados, ou levados para a prisão com os braços amarrados por cordas. O sal retirado por Gandhi, de uma praia, em Dândi, foi vendido ao maior ofertante, pelo preço de mil e seiscentas rupias — mais de quinhentos dólares norte-americanos —, que se destinaram a um fundo público. Jawaharlal Nehru foi condenado a seis meses de prisão, por violar a lei do sal. O prefeito de Calcutá recebeu sentença semelhante, por ler folhetos sediciosos numa reunião pública e por incitar o povo ao boicote de tecidos estrangeiros. Kishorlal Mashruwala, um dos discípulos mais fiéis do Mahatma, foi encarcerado por dois anos. Muitas cidades observaram o hartal1, quando os líderes do Congresso foram presos. Províncias inteiras foram despojadas de seus líderes nacionalistas. Vithalbhai Patel, o líder da maioria da Assembléia Legislativa federal, renunciou ao cargo e aconselhou os indianos a boicotar o governo. Em Peshawar, na fronteira noroeste, a polícia e os militares foram expulsos da cidade; mais tarde, as tropas retomaram-na, matando setenta pessoas e ferindo umas cem. O governo colocou sob censura todos os jornais nacionalistas. O vice-rei, escreve o biógrafo de lorde Irwin, “tinha enchido as masmorras com nada menos que sessenta mil criminosos políticos”. Um mês depois de
Gandhi se haver banhado no mar, em Dândi, a Índia fervilhava de revolta, furiosa porém pacífica. Ansiosos por prosseguir com o movimento e sabendo, por experiência, que Gandhi renunciaria a ele se o povo se mostrasse violento, os indianos permaneceram em estado de não-violência, a despeito dos espancamentos e das prisões.
Palavra hindi para designar a cessação coletiva do trabalho como forma de protesto (N. do E.) 1
No dia 4 de maio, menos de um mês após tornar-se um criminoso por violar a lei do sal, Gandhi foi preso, à noite, enquanto dormia numa tenda, a poucos quilômetros de distância da cena de seu crime. As autoridades que o prenderam mediram sua altura: um metro e cinqüenta e três centímetros. Sem dúvida, poderiam identificá-lo de novo, em prisões subseqüentes, pois lhe registraram os sinais de nascimento: uma pequena cicatriz, na coxa direita, uma pequena mancha na pálpebra inferior direita e uma cicatriz do tamanho de uma ervilha abaixo do cotovelo esquerdo. Gandhi gostou de ir para a cadeia: “Tenho me sentido perfeitamente feliz; refiz-me de muito sono atrasado”, escreveu ele a Miss Slade. A cabra da prisão era ordenhada em sua presença. (Gandhi não bebia leite de vaca nem de búfala, mas sua esposa, Kasturbai, o persuadira, durante uma enfermidade quase fatal, a beber leite de cabra. Deu certo; e ele continuou a tomar desse leite pelo resto da vida.) Vários dias antes de sua prisão, Gandhi informara o vice-rei de que “se Deus quiser” ele e alguns companheiros fariam um reide contra as salinas de Dharsana, cerca de duzentos e trinta quilômetros ao norte de Bombaim. Deus — ao que se averiguou posteriormente — não quis. A sra. Sarojini Naidu, a poetisa,
substituiu-o, como chefe da incursão. Do feito, participaram dois mil e quinhentos voluntários. Antes de iniciar o reide, a sra. Naidu advertiu a todos que seriam espancados, “mas”, disse ela, “não deveis opor resistência; não deveis erguer sequer uma das mãos, nem defender-vos de qualquer golpe”. Webb Miller, o conhecido correspondente da United Press que morreu na Inglaterra durante a Segunda Guerra Mundial, encontrava-se no local, e descreveu o acontecimento, primeiro em telegramas, depois em seu livro I found no peace. Manilal Gandhi, o segundo filho do Mahatma, avançou à frente dos excursionistas, e aproximou-se das grandes panelas de sal, que estavam rodeadas por fossos e por cercas de arame farpado, além de estarem guardadas por quatrocentos policiais de Surat, sob o comando de seis oficiais britânicos. “Em completo silêncio”, escreve Miller, “os homens de Gandhi seguiram avante e pararam a cerca de uns cem metros da paliçada. Uma coluna, composta de elementos escolhidos, se separou da multidão, atravessou os fossos e aproximou-se
das
cercas
de
arame
farpado.”
Os
oficiais
ordenaram-lhes que se retirassem, mas a coluna continuou a marchar para a frente. “De súbito”, continua Miller, “a uma voz de comando, dezenas de policiais nativos correram contra os peregrinos, que avançavam, e vibraram golpes contra suas cabeças, com seus cassetetes de aço. Não houve um só dentre os que marchavam que erguesse a mão para aparar qualquer golpe. Os que tombavam faziam-no como boliches. Do ponto em que me encontrava, eu ouvia o impressionante baque dos cassetetes contra os crânios desprotegidos. O grupo dos peregrinos que ficara à espera gemia e soluçava, contendo a respiração, em sofredora complacência, a cada golpe vibrado. Os atingidos caíam ao chão, inconscientes, ou contorcendo-se, com o crânio fraturado ou com
os ombros quebrados... Os sobreviventes, sem desfazer a fila, silenciosos e tenazes, prosseguiam marchando, até serem por sua vez abatidos.” Quando a primeira coluna foi prostrada ao solo, outra avançou. “Embora todos soubessem”, escreve Webb Miller, “que dentro de poucos minutos seriam espancados e abatidos, e talvez mortos, não consegui perceber neles qualquer sinal de hesitação ou de medo. Todos marchavam com firmeza, de cabeça erguida, sem o encorajamento de música, nem de aclamações, e também sem a possibilidade de sequer saírem ilesos de ferimentos ou da morte. A polícia correu de encontro à segunda coluna, e metódica e mecanicamente abateu-a também. Não houve luta, não houve combate, os peregrinos simplesmente marchavam para a frente, até serem abatidos.” Outro grupo, de vinte e cinco elementos, avançou e sentou-se. “A polícia”, ao que Miller testemunha, “começou a dar pontapés, selvagemente, nos homens sentados, atingindo-os no abdome e nos testículos.” Outra coluna se apresentou. Enfurecida, a polícia arrastou seus componentes pelos braços e pés, e atirou-os aos fossos. “Um deles foi arrastado para o fosso onde eu me encontrava”, registrou Miller. “O baque de seu corpo me borrifou de água lamacenta. Outro policial arrastou um homem de Gandhi até o fosso, lançou-o dentro dele, e martelou-lhe a cabeça com seu cassetete. Depois, durante horas e horas, os padioleiros transportaram uma corrente de homens inertes, a verter sangue.” Um oficial britânico tomou a sra. Naidu pelo braço e disse: — Sarojini Naidu, estais presa. Ela se desvencilhou da mão dele: — Eu irei — disse ela —, mas não me toqueis. Também Manilal Gandhi se submeteu à voz de prisão. As incursões e os espancamentos continuaram por vários
dias. A Índia, agora, estava livre. Legalmente, tecnicamente, nada se havia modificado. A Índia era ainda colônia britânica. Mas havia uma diferença. E Rabindranath Tagore explicou-a. Ele declarou, ao Manchester Guardian, de 17 de maio de 1930, que a “Europa havia perdido completamente seu antigo prestígio moral na Ásia. Ela já não é mais considerada pelo mundo a campeã da justiça, nem o expoente de um elevado princípio, mas apenas um reduto da supremacia da raça ocidental e a exploradora dos que se achavam além de seus limites. Para a Europa, esta foi, na realidade, uma grande derrota moral. Muito embora a Ásia seja fisicamente fraca e incapaz de se proteger contra as agressões a seus interesses vitais ameaçados, ela pode, ainda assim, olhar de cima para baixo, para a Europa, ao passo que, anteriormente, olhava de baixo para cima”. Tagore atribuiu aquele tento, na Índia, a Gandhi. A Marcha do Sal e suas conseqüências produziram dois efeitos: deram, aos indianos, a convicção de que poderiam se libertar do jugo estrangeiro que pesava sobre seus ombros; e tornaram os britânicos conscientes de que estavam subjugando a Índia. Era inevitável, depois de 1930, a Índia se recusar, mais cedo ou mais tarde, a ser governada e, ainda mais importante do que isso, a Inglaterra se recusar, mais cedo ou mais tarde, a governar. Quando os indianos se deixaram espancar pelos cassetetes e pelas coronhas das carabinas e não recuaram, mostraram que a Inglaterra era impotente, e que a Índia era invencível. O resto era apenas questão de tempo.
17 O faquir seminu O primeiro-ministro Ramsay MacDonald viu-se em situação embaraçosa por ser o encarcerador de Gandhi. De todas as partes do mundo, bem como de todos os pontos de seu próprio país, chegou-lhe às mãos um dilúvio de telegramas, pedindo a soltura do Mahatma. O sr. MacDonald e alguns dos ministros de seu gabinete
poderiam
ser
colocados
diante
de
suas
próprias
declarações públicas, louvando Gandhi e favorecendo a autonomia indiana. Lorde Irwin se sentiu mais do que apenas embaraçado; a desobediência
civil
havia
paralisado
sua
administração.
A
arrecadação caiu verticalmente. A polícia e as forças militares resmungavam ao peso da sobre-humana incumbência de manter a lei e a ordem. Uma conferência de que participaram indianos que haviam sido nomeados pelo vice-rei reuniu-se em Londres, em fins de novembro de 1930, e não chegou a conclusão alguma; o Congresso, a única organização que gozava de prestígio popular na Índia, não esteve ali representado. Em sua sessão de encerramento, no dia 19 de janeiro de 1931, MacDonald manifestou a esperança de que o Congresso enviaria delegados à segunda conferência. Mas os delegados estavam todos na cadeia, na Índia. Lorde Irwin aproveitou a deixa — ou a ordem — e pôs em liberdade
Gandhi,
os
Nehru,
pai
e
filho,
e
vinte
outras
personalidades parlamentares, no dia 25 de janeiro, véspera do dia da independência, proclamado pelo Congresso. Em sinal de apreço para com este gesto amistoso, Gandhi escreveu a Irwin, pedindo-lhe uma audiência.
Irwin acedeu. O primeiro encontro se registrou em 17 de fevereiro, às catorze horas e trinta minutos, e durou três horas e quarenta minutos. “Com isso, o palco ficou armado”, escreve o biógrafo de Irwin, “para o mais dramático encontro pessoal entre um vice-rei e um líder indiano, em toda a efervescente história do rajá britânico.” Aquilo foi mais do que dramático. Foi histórico e decisivo. Winston Churchill viu isso melhor do que ninguém. Sentiu-se revoltado, ao que declarou, pelo “espetáculo nauseabundo e humilhante deste advogado do Templo Interior, e agora faquir sedicioso, a subir meio nu as escadarias do palácio do vice-rei, a fim de ali negociar e parlamentar, em pé de igualdade, com o representante do rei-imperador”. A zanga e o desprezo de Churchill, indisfarçados e ferozes, não lhe ofuscaram a visão. Ele captou os fatos básicos, que não consistiam na seminudez do Mahatma, nem na sua profissão abandonada, e sim na igualdade que ele havia conquistado e estava confirmando em suas conversações com Irwin. Gandhi não chegava, como a maior parte dos visitantes do vice-rei, para pedir favores. Surgia como o líder de uma nação, a fim de negociar, “em pé de igualdade”, com o representante de outra nação. A Marcha do Sal havia demonstrado que a Inglaterra não poderia governar a Índia contra Gandhi. O rajá britânico estava à mercê do faquir seminu; e Churchill sentiu-se enojado. Churchill percebia que a Inglaterra estava concedendo à Índia a independência, em princípio, embora negando-a temporariamente, na prática. Depois de muitos encontros e muita contenda, Irwin e Gandhi assinaram o que o biógrafo de Irwin denominou “Pacto de Deli”, no dia 5 de março. Dois estadistas haviam concluído um
pacto, um tratado, um texto redigido de mútuo acordo. A desobediência civil seria suspensa; os encarcerados, postos em liberdade; e o preparo do sal, permitido nas costas marítimas. O Congresso estaria presente à seguinte conferência, em Londres. Nada se prometeu; nem a independência, nem a soberania. Dentro de poucos meses, e, por certo, na perspectiva dos acontecimentos históricos, os termos do pacto perderam seu significado. Os porta-vozes britânicos sustentavam que, nas negociações que conduziram ao mencionado pacto, Irwin havia ganho a batalha, e a afirmativa tem sentido. Vários membros do Congresso criticavam o Mahatma por haver fracassado na consecução de uma posição concreta de independência. Qualquer outro político teria lutado por maiores concessões. Gandhi sentiuse satisfeito com a essência; tinha estabelecido os fundamentos de uma nova ordem de relações entre a Índia e a Grã-Bretanha. Dezessete anos mais tarde — um minuto, apenas, na vida de um povo antigo — a Índia seria independente. O pacto fora um passo, um meio, não um fim. A insistência nos meios dava a Gandhi perspectiva ampla, paciência e equanimidade. Poderia esperar pelos dividendos por todo o tempo em que o assunto se desenvolvesse de acordo com os princípios que considerava corretos.
18 Em Londres, de “minus fours” Gandhi embarcou, em Bombaim, a bordo do S.S. Rajputana, ao meio-dia de 29 de agosto de 1931, acompanhado por seu filho
mais jovem, Devadas, de seu secretário, Mahaved Desai, que, disse ele, “superara Boswell no próprio jogo de Boswell”, de Miss Slade, de Pyarelal Nayyar, seu ajudante, de G. D. Birla, o milionário proprietário de fábricas de tecidos, do pândit Malaviya e da sra. Naidu. Gandhi estava viajando como único delegado do Congresso à segunda conferência, em Londres. Nenhum outro delegado era necessário, uma vez que ele falava pela organização e também por uma considerável parte da Índia. Em Londres, de 12 de setembro a 5 de dezembro, ele esteve hospedado, a maior parte do tempo, no Kingsley Hall, na East Settlement House, como hóspede de Muriel Lester, que o havia visitado em 1926. Pelas manhãs, realizava um passeio pelas áreas de cortiços; homens e mulheres, a caminho do próprio trabalho, sorriam para ele; ele se empenhava em conversar com os transeuntes; e, mais tarde, ia mesmo à casa deles. As crianças o chamavam de “tio Gandhi”, punham-se a caminhar ao lado dele e davam-lhe a mão, conservando-a bem segura. Um pirralho traquinas e zombador gritou, certa vez: “Olá, Gandhi! Onde estão suas calças?” O Mahatma riu gostosamente. Gandhi constituía interessante tema, e os jornalistas se mantinham ao seu redor, incessantemente. Um repórter o interrogou a propósito de suas roupas. “Vós usais”, respondeu ele, “plus fours; eu uso minus fours.”1
Trocadilho intraduzível entre “plus fours” (calção folgado, preso embaixo dos joelhos, que se usa para jogar golfe) e “minus fours”, neologismo criado por Gandhi, opondo “minus” (menos) e “plus” (mais). (N. do E.) 1
Quando ele foi convidado a tomar chá, no Buckingham Palace, com o rei Jorge e a rainha Mary, toda a Inglaterra ficou preocupada com o que Gandhi vestiria. Ele se enrolou no
costumeiro lençol, usou sandálias, um xale e seu relógio de um dólar, a pender, balouçante. Posteriormente, alguém indagou de Gandhi se ele estivera suficientemente vestido. “O rei”, respondeu ele, “estava suficientemente vestido por nós dois.” Gandhi divertia-se em qualquer lugar. Conversava com lorde Irwin, com o primeiro-ministro durante a Primeira Guerra Mundial, David Lloyd George, com o arcebispo de Canterbury, com o marechal-de-campo Smuts, com Bernard Shaw e com dezenas de outras personalidades; e viajou para o interior do país, indo para as vizinhanças de Reading, a fim de apresentar seus respeitos ao coronel Maddock, que lhe havia retirado o apêndice, no cárcere de Poona. Winston Churchill recusou-se a avistar-se com ele. Gandhi falou também em numerosos comícios públicos, e passou dois memoráveis fins de semana em Oxford. Em discursos e em conversações particulares, procurou, acima de tudo, explicar o que entendia por independência da Índia. Ele separaria “inteiramente a Índia do império britânico, mas não da nação britânica, se é que desejo que a Índia ganhe e não que se prejudique. A qualidade de império deve ser cancelada, e eu gostaria de ser um parceiro em pé de igualdade com a Inglaterra, compartilhando de suas alegrias e de suas tristezas, e um parceiro em pé de igualdade com as autoridades. Mas é preciso que seja uma parceria em pé de igualdade”. Gandhi, assim, descrevia com precisão, e com notável previsão, a posição que a Índia livre assumiu na Commonwealth, em 1948. Gandhi foi ainda mais longe; viu o que muitos dos seus sequazes não haviam discernido. “A independência isolada não é o objetivo”, afirmou ele. “O
objetivo é uma interdependência voluntária.” As colônias libertadas apreciam tanto sua independência recém-conquistada, que a consideram uma realidade duradoura. Mas a lei da natureza, no amor, na amizade, no trabalho, no progresso, na segurança, é a interdependência criadora. Por toda parte, Gandhi fazia amigos, devido ao encanto pessoal, à sua franqueza, à sua humanidade, à sua acessibilidade. Chegou até a entrar na “toca do leão”, em Lancashire, onde seu movimento em favor do khadi e contra o uso de tecidos de fabricação estrangeira na Índia havia causado uma penosa situação de desemprego. Numa assembléia de tecelões, um homem disse: “Sou um dos desempregados; mas, se eu vivesse na Índia, diria a mesma coisa que o sr. Gandhi”. Uma encantadora fotografia, batida do lado de fora de Greenfield Mill, em Darwen, mostra Gandhi completamente envolto num lençol de produção doméstica, do pescoço aos joelhos, porque fazia frio, comprimido entre mulheres que o saúdam e o aplaudem; uma delas, para seu embaraço, está lhe segurando uma das mãos. Gandhi fazia amigos até mesmo entre aqueles aos quais magoava. “Descobri
que
meu
trabalho
deve
ser
feito
fora
da
conferência”, disse ele numa sessão em Londres. “Esta é a verdadeira Conferência da Mesa Redonda. A semente que agora está sendo lançada talvez consiga amaciar o espírito inglês e impedir a brutalização de seres humanos.” Os diários de Mahadev Desai mostram que o Mahatma com freqüência ia para a cama às duas horas da madrugada; punha-se novamente de pé às três horas e quarenta e cinco da mesma madrugada, para as preces; escrevia carta e lia os jornais;
repousava outra vez, das cinco às seis da manhã; e, daí para diante, não tinha mais descanso, até a madrugada seguinte, lá pela uma ou duas horas. Não admira, pois, que uma ou outra vez adormecesse durante as sessões da conferência. Não dava, a essa conferência, o melhor dos seus esforços. A
Conferência
fracassar.
Lorde
da
Mesa
Reading,
Redonda
membro
da
estava
destinada
delegação
a
britânica,
formulou o propósito britânico numa sentença: “Acredito que a verdadeira política entre a Grã-Bretanha e a Índia é a de que devemos esforçar-nos, tanto quanto nos for possível, no sentido de pôr em prática o pensamento da Índia, preservando, ao mesmo tempo, nossa posição, que não devemos e não podemos abandonar”. Uma força irresistível — o anseio indiano de ser livre — se defrontou com um obstáculo irremovível: o desejo britânico de permanecer na Índia. Isso tornou o acordo impossível. O governo britânico designara dois detetives da Scotland Yard para servir de guarda pessoal a Gandhi na Inglaterra. Eram policiais de tipo especial, de porte gigantesco, desses que usualmente protegem realezas. Os dois passaram a gostar do “pequeno homem”. Ao contrário da maior parte dos dignitários, Gandhi nem os mantinha ao alcance da mão, nem fingia ignorarlhes a presença. Discutia com eles assuntos públicos e visitava-os em suas casas. Antes de deixar a Inglaterra, solicitou que lhes fosse permitido acompanhá-lo até Brindisi, na Itália, de onde ele zarparia para a Índia. O chefe dos detetives perguntou a razão daquilo. “Porque eles fazem parte de minha família”, respondeu Gandhi. Da Índia, enviou a cada um dos detetives um relógio, com a
seguinte inscrição: “Com amizade, de M. K. Gandhi”.
19 Filhos de Deus “Regressei de mãos vazias”, disse Gandhi à multidão gigantesca que o recebeu em Bombaim. Disse-o logo ao descer do navio, em 28 de dezembro. Contudo, “a julgar pelo calor, pela cordialidade, pelo afeto demonstrado na recepção, dir-se-ia que o Mahatma havia regressado
com
o
swaraj na
concha
da
mão”,
observou,
causticamente, Subhas Chandra Bose. Gandhi regressara com a integridade intacta e extravasando boa vontade. “Não tenho consciência alguma de uma única experiência, durante meus três meses de Inglaterra e de Europa”, esclareceu Gandhi, “que me haja feito sentir que, afinal de contas, o Oriente é o Oriente, e o Ocidente é o Ocidente. Ao contrário, convenci-me, mais do que nunca, de que a natureza humana é sempre a mesma, pouco importando o clima sob o qual floresce, e de que, se a gente se aproxima de um semelhante com sinceridade e afeto, obtém decuplicada sinceridade e afeto mil vezes maior, em retribuição.” Exatamente uma semana mais tarde, ele estava na cadeia. Lorde Willingdon havia substituído Irwin, na qualidade de vice-rei, e, em outubro de 1931, um novo governo assumiu o poder, na Inglaterra, tendo, por certo, Ramsay MacDonald por primeiro-ministro, mas ministros conservadores nos postoschaves do gabinete. Sir Samuel Hoare passou a ser secretário de
Estado
para
a
Índia.
Dentro
de
várias
semanas,
foram
proclamadas as ordenanças de poderes de emergência na província de Bengala, nas Províncias Unidas e na província de Peshawar, na fronteira noroeste, onde o Congresso era acusado de tentar a obstrução do governo britânico através da instalação de um governo paralelo a ele. — O problema é saber — declarou Sir Harry Haig, ministro do Interior do governo da Índia — se o Congresso vai impor sua vontade a toda a nação. Jawaharlal Nehru e muitos outros líderes já haviam sido encarcerados, e agora Gandhi estava alojado na prisão de Yeravda; logo lhe foram fazer companhia Vallabhbhai Patel, que Gandhi apelidara de “Sardar”, ou nobre, e Mahadev Desai. O
Mahatma
sempre
obedecia
rigorosamente
aos
regulamentos da prisão, e também observava suas próprias normas, dentre elas, a de não provocar agitações dentro do cárcere. Uma vez que ele não podia ser político, concentrava-se no esforço de ser santo. Muitos foram os debates que manteve com Vallabhbhai e Mahadev, sobre temas sagrados; por vezes, outros prisioneiros,
bem como
os
próprios
carcereiros e
médicos
britânicos, participavam das conversações. Depois de algum tempo, Gandhi começou a escrever seus pensamentos sobre Deus e sobre a conduta ideal do homem; tais pensamentos foram publicados mais tarde em forma de um pequeno livro, sob o título de Yeravda Mandir (“Templo de Yeravda”). Um cárcere onde Deus é discutido e venerado se transforma em templo: “Deus existe”, escreveu Gandhi. O vocábulo “satya” significa “verdade”; deriva-se de “sat”, que significa “ser”. “Sat” também designa Deus. Portanto, “Verdade é Deus”, e Deus é o que é. “Somente Ele é”, registrou
Gandhi, porquanto “nada mais do que vejo meramente através dos sentidos pode persistir, nem persistirá.” Ao longo dos anos, Gandhi procurou provar a existência de Deus. “É impossível demonstrar, pela razão, a existência de Deus em sentido limitado”, arriscou-se a dizer. “Há uma ordem no universo; há uma lei inalterável que governa todas as coisas e todos os seres que existem ou vivem. Não se trata de uma lei cega, pois nenhuma lei cega pode governar a conduta dos seres humanos... Essa lei, pois, que governa a vida toda é Deus... Percebo longinquamente que, ao passo que tudo ao meu redor está sempre mudando, sempre morrendo, existe, na base de toda essa mudança, uma força viva, que não se modifica, que sustenta o conjunto inteiro, que cria, que dissolve e que torna a criar. Esta força normativa, ou espírito, é Deus... Em meio à morte, a vida persiste; em meio às inverdades, a verdade persiste; em meio às trevas, a luz persiste. Daí eu deduzo que Deus é Vida, Verdade e Amor. Ele é Amor. Ele é o supremo Deus.” Contudo, desconfiando do fracasso desse valente esforço racional, concedeu que “a fé transcende a razão... Se pudéssemos resolver todos os mistérios do universo, seríamos iguais a Deus. Cada gota do oceano compartilha a glória do oceano, mas não é o oceano”. Por analogia, todo ser humano compartilha a natureza de Deus, mas não é Deus, e não pode saber o que Ele é. “O comportamento mais seguro”, aconselhava o Mahatma, “é o de acreditar no governo moral do mundo, e, portanto, na supremacia da lei moral, a lei da verdade e do amor...” Gandhi se preocupava muito com a existência de Deus, mas ele nunca tivera uma experiência mística; nunca ouvira uma voz, nem contemplara uma visão, nem tivera alguma experiência reconhecida de Deus. Muito embora alguns místicos não-indianos,
ansiosos por situar seu misticismo num ponto fixo, se apegassem ocasionalmente a Gandhi, este não era um místico, e desmentia que o fosse. “Não tenho qualquer revelação especial da vontade de Deus”, insistia. Sustentava, ao contrário, que “Deus se revela a Si mesmo, todos os dias, a todos os seres humanos; mas nós fechamos nossos ouvidos à ‘ainda pequena voz’... Deus nunca vos aparece em pessoa, e sim em ação”. Agora, nos silêncios da prisão do Templo de Yeravda, o Mahatma ouviu aquela ainda pequena voz a chamar por ele, a fim de que entrasse em ação. O resultado foi a mais tensa das quinzenas, da moderna história da Índia. “Para encontrar um paralelo para a angústia de setembro de 1932”, escreveu Rajagopalachari, “temos de remontar à Atenas de vinte e três séculos passados, quando os amigos de Sócrates se reuniram ao redor do filósofo, na prisão, e insistiram em que ele fugisse da morte...
Sócrates
sorriu
a
essa
sugestão...
e
advogou
a
imortalidade da alma.” Sem medo de morrer — certo de que a alma nunca morre — o Mahatma empreendeu um jejum até a morte, por causa de um tema que, para ele, se afigurava supremamente religioso. Dizia respeito aos intocáveis — os mais infelizes dentre os muitos infelizes, no seio do povo da Índia. Um hindu ortodoxo não deve tocar um intocável, nem qualquer coisa que seja tocada por um intocável. Se, por acaso, isso ocorre, tem de se purificar por meio de abluções ritualmente prescritas. Até mesmo a sombra de um intocável é considerada impura, em algumas zonas da Índia. Obviamente, portanto, os intocáveis não devem entrar num templo hindu. Habitam os
piores setores dos piores cortiços do mundo, e, nas aldeias, vivem nos mais infectos arredores, para onde se drenam os esgotos e as águas servidas; mas essas são as únicas águas de que eles podem se servir, porque o uso de poço lhes é vedado. O poço passaria a ser poluído. Os intocáveis são párias, fora-de-casta, no sentido hindu do vocábulo, significando que eles não pertencem a qualquer das quatro castas hindus, que são, da superior para a inferior: os brâmanes ou sacerdotes, os xátrias ou governantes e guerreiros, os vaixás ou comerciantes e lavradores e os sudras ou artesãos. Abaixo dessas castas, mas muito no i fundo, de modo a não poder enquadrar-se nem sequer no último degrau da escala social hindu, é que vem o pária, ou o intocável, que é o hindu do lado de fora da paliçada. Em séculos idos, as castas e seus milhares de subdivisões então existentes dentro de cada casta eram guildas profissionais e hereditárias. Assim, Gandhi pertencia à casta vaixá e à subcasta de modh-bania. Os banianos são comerciantes; os Gandhi, num passado remoto, foram merceeiros. Gandhi quer dizer “merceeiro”. A tradição e as autoridades locais mantinham todos os adultos na esfera de sua guilda, de modo que as castas mais elevadas não perdessem a casta pela infiltração de membros de castas inferiores; da mesma forma, as castas inferiores não eram invadidas pelos desempregados das castas superiores. Esse ajuste dava, presumivelmente, a cada grupo, a vantagem da segurança econômica, mas submetia o indivíduo à regimentação econômica. Embora a casta com freqüência exercesse essa função economicamente estabilizadora, sua origem é política, e sua sanção, religiosa. Os árias, que desceram para o sul, procedendo de suas terras natais na Ásia central, há milhares de anos,
durante a longa noite não registrada em cronologias, antes do surto da história escrita, conquistaram gradativamente a Índia, desde o rio Indo e desde a cordilheira do Himalaia, até a ponta sul da península, no cabo Comorim; e, à medida que avançavam, misturavam tolerantemente seus costumes e suas idéias aos costumes e às idéias da cultura autóctone. O produto é o composto agora conhecido sob a denominação de hinduísmo. Contudo, os árias transformaram os habitantes nativos em seus instrumentos econômicos, conservando para si mesmos as tarefas proveitosas e aristocráticas de governar e combater. A força da religião, entretanto, era tão grande, que os brâmanes se colocaram como integrantes da casta mais elevada — acima da casta dos governantes e dos guerreiros; e isso aconteceu principalmente porque eles foram capazes de dar à graduação das castas uma garantia de estabilidade, nimbando-a com o manto da religião. Os brâmanes como que enrouparam cada casta numa fórmula sagrada de destino imutável. Vós sois um brâmane, ou um sudra, ou um intocável, em conseqüência de vossa conduta numa encarnação
prévia.
A
categoria
da
casta,
portanto,
é
predeterminada para esta vida, e todos devem submeter-se a ela. Contudo, a boa conduta presente pode dar origem a uma promoção póstuma, ou vice-versa. Um brâmane ambicioso pode renascer na classe dos comerciantes, ao passo que um mercador espiritual e culto pode regressar a esta vida na qualidade de brâmane. Uma mulher pode tornar-se homem na encarnação seguinte, e vice-versa. Alguns hindus gostariam de ter consciência de, ao renascer, estar pertencendo ainda à mesma família, apesar da possibilidade da mudança de parentesco; um marido e uma esposa podem vir a ser irmão e irmã, ou irmã e irmão. Os homens com inclinações femininas podem transformar-se em mulheres; e
a alma de um hindu sanguinário pode reencarnar-se num animal. Alguns
intocáveis
tentaram,
através
da
adoção
do
cristianismo, ou do islamismo, fugir ao seu destino humilhante e tormentoso, mas os cinqüenta milhões, ou os sessenta milhões, que é a quanto, mais ou menos, eles montam, se curvam ao destino, na crença de que estão fazendo penitência pelas fraquezas ancestrais, e na esperança de se elevarem numa encarnação vindoura. Com apenas umas poucas centenas de exceções, portanto, os intocáveis da Índia continuam segregados nos seus misteres humildes, encarregando-se de varrer as ruas, de esfregar os assoalhos, de limpar lavatórios, de fazer trabalhos em couro, e de realizar outras coisas que, para o sistema hindu de casta, constituem tabus religiosos. Até os dias de hoje, na divisão altamente minuciosa do trabalho, uma enfermeira de hospital não toca numa comadre (recipiente em que os doentes acamados fazem suas necessidades sem sair do leito), nem arruma uma cama; e a empregada que faz uma cama e transporta a bandeja de alimentos se recusa a atender o pedido de um enfermo para apanhar um pedaço de gaze caído no chão; e mais ainda se recusará, se o pedido for para lidar com qualquer objeto pertencente ao banheiro; todos esses afazeres se reservam aos intocáveis.
Há
uma
escala
social
até
mesmo
dentro
da
comunidade dos intocáveis; na casa de um rico amigo, em Bombaim, os intocáveis, que são os seus criados permanentes, não limpam as privadas porque isso pode chegar aos ouvidos dos moradores de suas aldeias, e, em conseqüência, degradá-los. Para tais misteres, eles saem pela cidade, a fim de alugar os serviços de intocáveis inferiores a eles próprios. Em contraste com a rigidez que mantém os intocáveis no seu devido lugar, bem no fundo da escala, as barreiras ocupacionais
entre os membros das castas hindus começaram a ser superadas logo no alvorecer do século XIX; em alguns setores, isso ocorreu muito antes. O avô e o pai de Gandhi, por exemplo, não foram merceeiros; foram primeiros-ministros. Hoje, um brâmane pode ser
motorista
de
praça;
se,
porém,
ele
for
lavrador,
em
determinados distritos, não empunhará o arado; em vez disso, pagará a um hindu de casta menos elevada que a dele, para fazer tal serviço em seu lugar; um vaixá pode ser um alto funcionário público, ou um professor; e um xátria ou guerreiro pode ser empregado como guarda-livros. Entretanto,
embora
as
castas,
como
agrupamentos
profissionais, estejam se desintegrando ao impacto das pressões econômicas modernas, as distinções sociais entre elas persistem teimosamente. Não importa o grau de pobreza de um brâmane, nem a simplicidade de sua tarefa; ele nunca permitirá que seus filhos se casem com membros de uma casta inferior à dele. E também não receberá hindus de baixa casta à sua mesa. Nos primeiros anos de seu sacerdócio de mahatma, Gandhi favorecera o sistema de castas. “Considero as quatro divisões fundamentais, naturais e essenciais”, disse ele, em 1920; e, em 6 de outubro de 1921, escreveu, na Young India, que a “proibição dos casamentos cruzados e da promiscuidade de companhia à mesa é essencial à evolução da alma”. Essa defesa de um aspecto ignóbil da ortodoxia hindu permanece como acusação sempre capaz de ser citada contra Gandhi, mas ele, na verdade, se retratou completamente, nas palavras e nos atos. “As restrições quanto à promiscuidade de companhia à mesa e quanto aos casamentos entre elementos de castas diferentes”,
declarou Gandhi, em 4 de dezembro de 1932, “não fazem parte da religião hindu.” Hoje, essas duas proibições estão enfraquecendo a sociedade hindu. Em 1921, elas eram “essenciais”; em 1932, debilitantes. Gandhi era um observador extremamente agudo, flexível e honesto, de modo que não podia dar seu apoio a uma discriminação
sistemática
que
estava
fragmentando
e
corrompendo a sociedade hindu. É possível que uma experiência íntima haja concorrido para mudar-lhe o ponto de vista. Em 1927, o mais moço dos filhos de Gandhi,
Devadas,
apaixonou-se
por
Lakshmi,
filha
de
C.
Rajagopalachari, e desejou casar-se com ela. Mas Rajagopalachari era brâmane, e Gandhi, vaixá; Gandhi, portanto, fez objeções ao casamento entre pessoas de castas diversas, bem como aos noivados que não fossem arranjados pelos progenitores. Gandhi era suficientemente antiquado, de modo que sustentava (como ainda faziam e fazem, de resto, inúmeros hindus instruídos) que os casamentos contratados pelos progenitores eram mais felizes do que os oriundos do afeto. Entretanto, Devadas e a moça persistiram, e, finalmente, o ilustre pai concordou em sancionarlhes a união, desde que os jovens ainda se quisessem, depois de cinco anos de separação. Assim, os dois esperaram, penosamente, até que se casaram, com pompa, em Poona, em 16 de junho de 1933, na presença dos dois pais jubilosos. Nos anos subseqüentes, Gandhi recusou-se a comparecer a qualquer casamento que não fosse de pares pertencentes a castas diversas. Com efeito, tendo rompido com a ortodoxia hindu, marchou cada vez mais para longe do hinduísmo, até tornar-se capaz de dizer, no Hindustan Standard, de 4 de janeiro de 1946: “Declaro, portanto, aos moços e às moças que desejam casar-se,
que não podem casar-se no ashram de Sevagram [para o qual Gandhi se mudara, depois de haver deixado Sabarmati], a menos que um membro da assistência seja intocável”. Gandhi havia, pois, percorrido a volta toda, indo da extrema desaprovação dos casamentos entre elementos de castas diferentes à aprovação unicamente de tais casamentos, e daí ao apogeu do horror para com os hindus ortodoxos: para os casamentos entre um elemento de casta e outro fora-de-casta, ou pária, com bênção pessoal. O fato de ele, não obstante, ter um número sempre crescente de sequazes entre os hindus é parte do milagre de Gandhi, bem como um tributo de homenagem à tolerância dos hindus, em meio à sua própria intolerância. Uma sabedoria maior mostrou a Gandhi os males do sistema de castas, mas sua hostilidade à intocabilidade era emocional, e aparecera na infância. “Eu costumava rir de minha mãe”, escreveu ele, numa carta dirigida a Charles Freer Andrews, “por obrigar-nos a tomar banho, quando nós, os seus filhos, tocávamos em qualquer pária.” Gandhi brincou com um menino intocável, mesmo depois de a sua amada Putlibai o proibir. Na África do Sul, alguns de seus clientes de advocacia e alguns de seus amigos eram intocáveis; de uma feita, hospedou um deles em sua residência. Regressando à Índia, tomou parte num comício realizado em maio de 1918, reunido para pedir melhoria de condições de vida dos intocáveis. Ao ser apresentado aos assistentes, perguntou : “Há aqui algum intocável?” E quando viu que nenhuma mão se erguia Gandhi recusouse a proferir seu discurso. Nem bem se havia instalado em Sabarmati, quando convidou um pai, uma mãe e sua pequena filha, Lakshmi, todos intocáveis, para ali morar, na qualidade de
membros da comunidade. Os magnatas de Bombaim e de Ahmedabad, à vista disso, retiraram seu apoio financeiro ao ashram. Sem se deter por tal motivo, Gandhi declarou que iria viver numa choupana, no bairro dos intocáveis. Mas, certa manhã, um homem, que, soube-se depois, era Ambalal Sarabhai, o maior fabricante de tecidos de Ahmedabad, para lá se dirigiu, em seu automóvel; deixou treze mil rúpias, em cédulas, nas mãos de Gandhi, e retirou-se. Ainda assim, as mulheres do ashram se recusaram a trabalhar na cozinha, em companhia das mulheres intocáveis. Os hindus dão grande importância aos alimentos, e a presença de mulheres intocáveis, no lugar em que eles eram preparados, poluía tudo quanto a comunidade comesse. Até mesmo Kasturbai, embora acostumada, como estava, com as idiossincrasias de seu santo marido, não conseguia tolerar isso. Gandhi apelou para sua razão e para sua natureza generosa; mas a crença na intocabilidade reside em algum remoto recesso nervoso, onde, juntamente com a intolerância racial, com o dogma e com o preconceito de cor, resiste às investidas do senso comum e do sentimento de humanidade. Ele, portanto, disse-lhe que, se aquilo fosse pecado, o pecado era dele, uma vez que era ele o responsável, e que ela, como esposa de hindu, devia obedecer. Estas foram expressões que ela compreendeu. As outras mulheres do ashram a acompanharam na aquiescência. Mas isso não deu por concluídas as dores de cabeça. Certa manhã, o Mahatma anunciou que havia adotado a pequena Lakshmi como sua filha, e, portanto, como filha de Kasturbai. A devota e semi-analfabeta Kasturbai ficou perplexa, sem compreender. Sob muitos aspectos, entretanto, ela possuía um caráter mais santo, mais iogue, do que seu tempestuoso marido; principalmente depois que ele passara a ser casto, ela o aceitou como seu mestre. Quem era ela para
discutir com o homem de Deus? A aversão para com os intocáveis continuou, não obstante, a roer seus nervos.
Com o correr dos anos, muitos milhares de hindus da casta superior passaram a sentir-se honrados por ir ao ashram, por falar com Gandhi e por sentar-se à sua mesa. Uns poucos, sem dúvida, purificavam-se depois de sair de lá, mas muitos não conseguiam ser tão hipócritas. A intocabilidade perdera uma parte de sua maldição, para eles. A massa, porém, podia adorar Gandhi e ter horror aos intocáveis. Sendo, teoricamente, uma barreira oposta à contaminação, a intocabilidade contagia os que a praticam, bem como o país que permite sua existência. Os degradadores são arrastados para baixo, moral, econômica e socialmente, juntamente com aqueles que degradam. O êxodo em massa dos intocáveis do hinduísmo deveria enegrecer para sempre a consciência dos hindus, sem acarretar benefício algum para os intocáveis. Em vez de concordar com semelhante derrota — que, em todo caso, era apenas a sugestão de uns poucos dos seus líderes, e não desfrutava de qualquer perspectiva de ampla aceitação, porque os intocáveis, que eram religiosos ingênuos, tinham medo de arriscar suas probabilidades de melhor vida em futuras encarnações —, Gandhi preferiu “espicaçar a consciência hindu, no sentido da realização de ações religiosas justas”. Essa era a razão de seu jejum até a morte. Do grande drama que se encontrava em iminência de ocorrer, os protagonistas foram o Mahatma e Ambedkar. O dr. Bhimrao Ramji Ambedkar, principal chefe dos intocáveis, era dono de um corpo poderoso e de um intelecto robusto, tenaz, superior. Seu avô e seu pai se haviam distinguido pela prestação de serviços no exército britânico, e, através deles, ele se tornou conhecido do marajá de Baroda, que o mandou para a faculdade de direito da Universidade de Columbia, em Nova York. Sua brilhante carreira,
como advogado, o guindou à preeminência, fazendo com que fosse admitido como porta-voz dos intocáveis. Nessa qualidade, estivera presente à Segunda Conferência, em Londres, nos meses de setembro a dezembro de 1931; ali, propôs um eleitorado separado para os intocáveis, ou, pelo menos, a reserva de assentos para os intocáveis, dentro do bloco hindu das legislaturas indianas. Gandhi opôs-se a ambas as propostas, por as considerar divisionistas, reacionárias e infrutíferas. Subseqüentemente, entretanto, as autoridades londrinas prosseguiram na elaboração de uma Constituição para a Índia, e, dentro de pouco tempo, chegou aos ouvidos de Gandhi, na prisão de Yeravda, a notícia de que os novos estatutos instituiriam não somente um eleitorado muçulmano em separado, mas também um eleitorado à parte para as “classes oprimidas”, que era como os britânicos denominavam, oficialmente, os intocáveis. (Gandhi denominava-os harijans, que significa “filhos de Deus”, e, por isso, seu novo semanário recebeu o título de Harijan.) Em 1909, os britânicos haviam introduzido eleitorados separados para os hindus e os muçulmanos. Em conseqüência, e enquanto os rajás britânicos permanecessem na Índia, um muçulmano só poderia votar num candidato muçulmano, e um hindu, somente num hindu. Os danos causados por semelhante instituição foram incalculáveis, porque ela elevou as diferenças religiosas à categoria de fator decisório em todas as questões políticas. Era como se os católicos, na Inglaterra, nos Estados Unidos e na França, pudessem votar somente em candidatos católicos, tanto ao Parlamento como a todos os outros cargos eletivos,
como
se
os
protestantes
só
pudessem
votar
em
candidatos protestantes, e os judeus nos judeus. O problema central era o de se construir uma ponte que superasse o abismo
que ficava entre os hindus e os muçulmanos, e, assim, transformar a Índia numa nação; entretanto, os eleitorados, apartados, fechando a porta às condições políticas, destruíam a ponte e ampliavam a distância a transpor. Agora, além disso, a Inglaterra planejava a instituição de um eleitorado à parte para as “classes oprimidas”. Gandhi, à vista dessa circunstância, protestou perante Sir Samuel Hoare, em 11 de março de 1932, e declarou que, se, de fato, os britânicos criassem um eleitorado intocável em separado, “eu jejuarei até a morte”. Sabia que isso criaria obstáculos às autoridades de quem era prisioneiro, “mas, para mim, o passo tomado em consideração não é um método, é uma parte de meu ser”. O ministro respondeu ao prisioneiro, dizendo que nenhuma decisão havia sido tomada ainda, e que, antes de ela ser tomada, os pontos de vista do Mahatma seriam levados em conta. Nenhum novo desenvolvimento ocorreu, até 17 de agosto de 1932, quando o primeiro-ministro, Ramsay MacDonald, se pronunciou a favor dos eleitorados separados. No dia seguinte, Gandhi enviou uma carta ao primeiro-ministro, afirmando que “tenho de resistir à vossa decisão com minha vida”. O jejum, escreveu ele, começaria ao meio-dia de 20 de setembro. Numa resposta sensivelmente longa, remetida de Downing Street, 10, a 8 de setembro de 1932, o sr. MacDonald manifestou sua “surpresa e, permiti-me que acrescente, meu pesar muito sincero”. O sr. Gandhi, sugeria o primeiro-ministro, havia entendido mal; os britânicos haviam tomado em consideração sua conhecida devoção aos intocáveis. A nova legislação, explicou o primeiro-ministro, permitiria que a classe dos oprimidos votasse com o eleitorado hindu, em pé de igualdade. Não era isso, por
acaso, o que o Mahatma desejava? E, ademais, durante os vinte anos seguintes, os oprimidos votariam, num número determinado de distritos eleitorais especificados, como intocáveis, escolhendo seus próprios legisladores. Em outras palavras, acentuou o sr. MacDonald, um intocável “terá dois votos”. Por certo, seu defensor, Gandhi, não objetaria. A resposta de Gandhi, enviada a Downing Street, da prisão central de Yeravda, argumentou que “o mero fato de as classes oprimidas terem dois votos não as protege nem a elas, nem à sociedade hindu, contra futuras dissoluções... Eu não deveria ser contra, inclusive quanto ao excesso de representação das classes oprimidas. Sou contra a separação constitucional delas, mesmo que em forma limitada, do enquadramento hindu, enquanto elas preferem pertencer a esse mesmo enquadramento”. Isso encerrou a correspondência entre o prisioneiro e o primeiro-ministro. Gandhi jejuam. A divisão da Índia em dois eleitorados já era coisa suficientemente má. Não lhe era possível contemplar três Índias. De
todos
os
lados,
chegaram-lhe
cartas,
mensagens,
tentando dissuadi-lo. Muitos amigos não compreenderam a razão pela qual ele tencionou morrer por tal questão. Nehru, no cárcere, “sentiu-se
aborrecido
com
ele”,
ao
que
escreveu
em
sua
autobiografia Toward freedom, “por escolher uma saída lateral para seu sacrifício supremo... Senti-me irritado com ele...” Gandhi não se demoveu da idéia. Ele via além dos legalismos e da lógica. Era verdade que o projeto de MacDonald daria origem a um eleitorado separado e a um eleitorado conjunto hinduharijan. Mas o efeito psicológico positivo do eleitorado conjunto seria anulado pelo efeito do eleitorado separado. Com um eleitorado separado, os candidatos e os legisladores harijans
eleitos acentuariam os fatores que os separavam dos hindus de casta. Uma máquina político-partidária poderia surgir daí, com visível interesse em perpetuar o abismo entre castas e indivíduos fora-de-casta. Sua munição política seria a injustiça hindu — munição muito abundante, com efeito. Esse arranjo era contrário aos princípios básicos de Gandhi: harmonia na diversidade; amor a despeito das diferenças. As divisões convidam às colisões; a separação alimenta o ódio e a violência, tanto no pensamento como na ação. Gandhi não jejuava contra a Inglaterra, jejuava para remover as incapacidades dos harijans, de modo que eles desejassem formar uma unidade política com os hindus. Seu objetivo era uma comunidade hindu. MacDonald havia afirmado que, se os hindus e os harijans concordassem com um arranjo eleitoral diferente, mas mutuamente satisfatório, a Grã-Bretanha o aceitaria. Às onze horas e trinta minutos da manhã de 20 de setembro, Gandhi tomou sua última refeição. Consistiu ela num copo de água quente, com mel e suco de limão.
20 O mágico No dia em que começou seu jejum, Gandhi acordou às duas e meia da madrugada, e escreveu uma carta a Rabindranath Tagore. “Pela madrugada, às três horas, terça-feira”, começou ele. “Entrarei nos portões de fogo ao meio-dia. Se puderdes abençoar o esforço, desejo-o.” Solicitou, igualmente, a crítica de Tagore, “se vosso coração condena meu gesto. Não sou tão orgulhoso a ponto
de deixar de fazer uma confissão pública de meu erro, seja qual for o preço dessa confissão, se eu me considerar a mim mesmo em falta”. Mas, se Tagore aprovasse, Gandhi ansiava por sua bênção. “Ela me amparará”, disse o Mahatma, humildemente. Outros poderiam não entender, mas Tagore conhecia a Índia; Gandhi respeitava-lhe os pontos de vista, e tomá-los-ia em consideração. No momento em que Gandhi se preparava para fechar a carta, chegou-lhe um telegrama de Tagore. “Vale a pena sacrificar uma vida preciosa”, dizia o despacho, “pela causa da unidade
da
Índia
e
de
sua
integridade
social...
Espero,
fervorosamente, que não sejamos tão insensíveis, a ponto de permitir que tamanha tragédia nacional atinja sua duração extrema.” Gandhi, então, acrescentou um post scriptum, agradecendo “vosso telegrama afetuoso e magnífico. Ele me amparará em meio à tempestade na qual estou prestes a entrar”. Nessa noite, Tagore discursou perante sua escola, em Shantiniketan: “Uma sombra se abate, hoje, sobre a Índia, como uma sombra projetada por um sol eclipsado... Mahatmaji, que, por meio de sua vida de dedicação, fez com que a Índia se tornasse sua na verdade, começou seu voto de supremo sacrifício pessoal”. Explicou o jejum: “Cada país tem sua própria geografia, onde o espírito mora e onde a força física nunca pode conquistar sequer uma polegada de chão. Os governantes que procedem de fora devem ficar do outro lado dos portões”. A Inglaterra não governava a alma da Índia. Mas a Grande Alma... mantém seu domínio, mesmo quando já não está mais fisicamente presente... O sofrimento que o Mahatma avocou a si mesmo não é um ritual; é uma mensagem a toda a Índia e ao mundo... Nenhuma sociedade civilizada pode vicejar, desde que sua humanidade haja
sido permanentemente mutilada... nós insultamos nossa própria humanidade, impotente...
insultando Contra
o
essa
homem fraqueza
naquilo moral,
em
que
ele
é
profundamente
estratificada, de nossa sociedade, o Mahatma pronunciou seu ultimato”. Não se tratava de uma demonstração acessória. Gandhi estava jejuando para salvar a alma da Índia. Imediatamente, líderes hindus se reuniram em Bombaim, para conferenciar com líderes harijans, principalmente com Ambedkar. A secular crueldade hindu, para com os seus infelizes companheiros de casta, enchera Ambedkar de fúria e de desprezo. Se alguém, na Índia, houvesse podido contemplar a morte de Gandhi com equanimidade, esse homem teria sido ele. Ambedkar qualificou o jejum de “uma jogada política”. Na conferência, enfrentou as maiores inteligências hindus, e deve ter auferido um prazer muito doce, vendo-as cortejá-lo, para salvar a vida do Mahatma que tanto amavam. O propósito dos representantes hindus naquela conferência era a consecução de um eleitorado conjunto, que, não obstante, satisfizesse o desejo de Ambedkar, quanto à admissão de legítimos representantes harijans na legislatura. Ambedkar argumentava que, se os harijans fossem eleitos conjuntamente, por eleitores harijans e hindus — como Gandhi insistia —, os harijans se tornariam vassalos dos hindus, e hesitariam em expor suas pretensões, com receio de que os hindus os derrotassem na eleição seguinte. A fim de dissipar a apreensão legítima de Ambedkar, Sir Tej Bahadur Sapru, jurista eminente, propôs uma coisa nova para a Índia: as eleições prévias. Os candidatos harijans a algumas cadeiras na legislatura seriam selecionados em consultas privadas entre hindus e intocáveis. Mas o restante dos candidatos às
cadeiras reservadas aos harijans não figuraria na chapa. Gandhi havia aceito a reserva de cadeiras aos harijans, no dia anterior ao do começo de seu jejum. Aqueles candidatos restantes seriam escolhidos em eleições prévias, nas quais somente os harijans votariam. Para cada cadeira, haveria uma lista de três harijans; e, nas eleições finais, os hindus votariam em um deles. Isso permitiria que os harijans elegessem seus defensores mais valorosos e mais expressivos; e os hindus nunca os poderiam derrotar. Ambedkar examinou o esquema devagar, minuciosamente. Saiu da conferência, permanecendo fora dela várias horas, a fim de estudar o caso com seus colegas intocáveis. A seguir, voltou à conferência, e, a título de tentativa, aceitou. Agora, o problema era Gandhi. Sapru, Jayacar, Rajagopalachari, Devadas Gandhi, Rajendra Prasad e Birla tomaram o trem da meia-noite, de Bombaim para Poona, e compareceram diante de Gandhi às sete horas da manhã, no segundo dia de jejum. Gandhi já se encontrava enfraquecido. Ouviu a exposição do plano, fez perguntas, mas permaneceu intransigente, embora compreensivo e cordato. Queria ver aquilo por escrito, desejava falar com Ambedkar e com o sr. M. C. Rajah, um harijan próGandhi na legislatura. Na manhã seguinte, Gandhi criticou a proposta de Sapru. Por que razão estabelecer uma distinção entre dois grupos de candidatos harijans? Por que razão não se poderiam indicar todos os candidatos nas eleições prévias em que só os harijans tomariam parte? Por que razão deveria qualquer harijan ficar em regime de dívida política para com os hindus? Ambedkar chegou à prisão de Gandhi naquela tarde. Foi ele quem falou quase o tempo todo. Declarou-se pronto a concorrer
para a salvação da vida do Mahatma, mas “desejo minha compensação”, esclareceu. Gandhi havia começado a ceder. O jejum estava afetando-o severamente. Nos jejuns anteriores, tomava água de hora em hora. Dessa vez, passou a bebê-la irregularmente. Nos jejuns anteriores, a massagem lhe moderava as dores. Desta feita, recusava as massagens. Mostrava-se muito agitado. Dores agudas sacudiamlhe o corpo depauperado. Para ir ao gabinete sanitário, tinha de ser levado em padiola. O mais leve movimento, e, por vezes, o simples ato de falar davam-lhe náuseas. Quando Ambedkar disse “desejo minha compensação”, Gandhi ergueu-se enérgica mas penosamente, apoiou-se num cotovelo,
e
falou
durante
vários
minutos.
Mencionou
seu
devotamento para com os intocáveis. Discutiu o Plano Sapru ponto por ponto, e definiu sua objeção: por que motivo não se deveriam
ter
harijans?
A
somente seguir,
candidatos
Gandhi
harijans,
tombou,
escolhidos
exausto,
por
sobre
seu
posto
sob
travesseiro. Ambedkar
estava
encantado.
Esperava
ser
pressão, na presença do Mahatma moribundo, a fim de ser forçado a recuar da posição que assumira. Entretanto, em vez disso, Gandhi lhe oferecia mais do que ele havia aceito a título de tentativa. Em conseqüência, Ambedkar aprovou as alterações introduzidas por Gandhi no texto de Sapru. Mais tarde, naquele dia, a sra. Gandhi foi transferida da prisão de Sabarmati para a de Yeravda. Ao caminhar, lentamente, na direção de seu marido, ela abanou a cabeça, de um lado para outro, em sinal de reprovação, e disse: “Outra vez a mesma história, hein?” Gandhi sorriu. Sua companhia dava-lhe alegria. O Mahatma
permitiu que ela lhe fizesse massagens, e, depois, aceitou os serviços de um massagista profissional, mais por causa dela do que por desejá-los. No dia 23 de setembro, sexta-feira, o dr. Gilder, especialista em moléstias do coração, chegou de Bombaim, e, juntamente com os médicos da prisão, diagnosticou as condições do prisioneiro, considerando-as
perigosas.
A
pressão
do
sangue
era
alarmantemente alta. (A pressão do sangue de Gandhi sempre subia, quando grandes decisões estavam na iminência de ser tomadas.) A morte poderia sobrevir a qualquer momento. Durante representantes
o
dia
todo,
hindus.
Ambedkar
Apresentou-lhes
negociou novas
com
os
exigências,
incorporando a elas sua “compensação”, 1) A aquiescência do primeiro-ministro MacDonald havia dado, aos intocáveis, um total de setenta e uma cadeiras nas legislaturas provinciais. Ambedkar pediu cento e noventa e sete. 2) Sapru havia sugerido uma lista de três candidatos harijans para cada cadeira. Gandhi sugeriu cinco; Ambedkar, dois. Quanto menor fosse o número de candidatos postos na lista das eleições prévias, tanto mais facilmente Ambedkar os poderia controlar. 3) Finalmente, havia o problema de um referendo em que os eleitores harijans teriam de decidir sobre a época em que as cadeiras
reservadas
aos
harijans
deveriam
ser
abolidas,
cancelando-se quaisquer distinções entre harijans e hindus. Gandhi desejava esse cancelamento em cinco anos. Ambedkar, em quinze. Bem tarde, nessa sexta-feira, Ambedkar visitou novamente Gandhi. O dia estava quente, sufocante. Gandhi estendia-se no catre, sobre um lençol branco, no pátio da prisão, à sombra de
uma frondosa mangueira. Nem uma folha se movia. A pressão sangüínea do Mahatma havia subido ainda mais. Ele não podia falar a não ser em sussurros. Ambedkar regateou duramente. Não se chegou a nenhuma decisão. O sábado, quinto dia do jejum, poderia ser, ao que concordavam os médicos, o último dia de vida de Gandhi. Durante toda a manhã, Ambedkar discutiu com os hindus, e, ao meio-dia, apareceu ao lado do Mahatma. Informou-o de que haviam chegado a um entendimento entre as setenta e uma cadeiras oferecidas por MacDonald e as cento e noventa e sete exigidas por ele. O número delas seria cento e quarenta e sete. Gandhi aprovou. Haviam chegado a um entendimento também quanto ao número de nomes na lista. Um desentendimento persistiu: versava sobre o tempo em que a distinção política entre hindus e harijans, nas eleições, continuaria a existir. Ambedkar cedera até dez anos. Gandhi não desistiu dos cinco. Os negociadores se encontraram de novo, e encontraram Ambedkar irredutível. Então, Rajagopalachari fez uma coisa que, provavelmente, foi a que salvou a vida de Gandhi. Sem consultar o Mahatma, ele e Ambedkar concordaram em que o tempo da abolição da diferença eleitoral entre hindus e harijans fosse determinado
em
discussão
ulterior.
Isso
poderia
tornar
desnecessário o referendo. Rajagopalachari correu à prisão e explicou a Gandhi a nova combinação. “Fazei-me o favor de repeti-la”, pediu Gandhi. Estava esgotado. Rajagopalachari repetiu-a. “Excelente”, murmurou o Mahatma.
Nesse sábado, o Pacto de Yeravda, que é como a história da Índia o designa, foi assinado pelos principais chefes hindus e harijans. Entretanto, aquilo não era um pacto, e Gandhi recusou-se a abandonar o jejum antes de o governo britânico haver oficialmente aceito seus termos, ao invés do esquema originai de MacDonald. O texto foi telegrafado para Londres. Entretanto, era domingo, e a maioria dos membros do governo inglês havia saído da cidade. MacDonald fora assistir aos funerais de uma tia, em Sussex. Ao ter notícia do acordo feito em Poona, MacDonald regressou apressadamente ao prédio número 10 da Downing Street. Em companhia de Sir Samuel Hoares e de lorde Lothian, estudou o texto até a meia-noite. Entrementes, a vida de Gandhi ia se esvaindo. O Mahatma disse a Kasturbai a maneira como ela deveria distribuir seus poucos pertences, que se encontravam ao redor de seu catre. Tagore chegou de Calcutá e cantou algumas canções que aliviaram o prisioneiro moribundo. Na segunda-feira, de manhã, o governo britânico anunciou, em Londres e em Nova Deli, que havia aceito o Pacto de Yeravda. Às cinco e quinze da tarde, Gandhi interrompeu o jejum, bebendo um copo de suco de laranja, que Kasturbai lhe oferecera. Nos seis dias do “Jejum Épico”, como se passou a denominálo, os acontecimentos importantes não ocorreram no pátio da prisão, nem na sala em que Ambedkar forçara os hindus a ceder, nem em Londres. Ocorreram por toda a Índia. Nehru, que, de início, se mostrara zangado com Gandhi, por jejuar a propósito do caso dos intocáveis, logo viu a luz. “Então”, é o que registra a sua autobiografia, “chegou a notícia da tremenda subversão, por todo o país... Que grande mágico, pensei eu, era aquele pequeno
homem sentado na prisão de Yeravda! E como ele conhecia bem a maneira de puxar os cordões que moviam o coração do povo!”
A mudança de sentimentos do coração hindu fora o propósito do jejum de Gandhi. “Nenhum acordo alinhavado entre os líderes dos hindus de casta e os líderes de sua rival, a classe depreciada, corresponderá a meu propósito”, declarara ele, cinco dias antes do começo do jejum. “O acordo, para ser válido, tem de ser real. Se o espírito da massa hindu ainda não está preparado para arrancar de seu seio as raízes e os ramos da intocabilidade, tenho de me sacrificar sem a menor hesitação.” Assim, enquanto ele ali estava definhando, tinha os olhos fitos além das negociações, na realidade viva das relações dos hindus com os intocáveis. A notícia do jejum difundiu-se por toda a Índia. Os que sabiam ler contavam aos que não sabiam: — O Mahatma está jejuando. — Por que o Mahatmaji está jejuando? — Porque nós, os hindus, fechamos nossos templos aos intocáveis e os tratamos mal. As cidades fervilhavam de excitação. Os camponeses, que iam ao mercado nas cidades, levavam os relatos para as aldeias. Os ouvidos da Índia estavam alerta para a captação de mais notícias. “O Mahatmaji está definhando.” “O Mahatmaji está morrendo.” “Temos de nos apressar.” Era mau prolongar a agonia de Gandhi. Ele representava uma fatia de Deus; era o mensageiro de Deus na terra. As relações da massa com ele eram altamente emocionais, transcendendo a lógica. Bem no começo da semana do jejum, o famoso Templo Kalighat, de Calcutá, bem como o Ram Mandir, de Benares — sendo ambos cidadelas da ortodoxia hindu —, abriram suas portas aos intocáveis, pela primeira vez nos vários milhares de anos da história hindu. Em Bombaim, uma
organização feminina instituiu um pleito, em frente a sete grandes templos hindus, com urnas de votos vigiadas por voluntários. Os adoradores lançaram vinte e quatro mil oitocentos e noventa e sete votos a favor da admissão dos harijans, e quatrocentos e quarenta e cinco contra. Imediatamente após, alguns templos, nos quais jamais um harijan pisara, foram abertos. Em Allahabad, doze templos, até então inacessíveis aos intocáveis, abriram suas portas no primeiro dia do jejum de Gandhi. Nos Estados nativos de Baroda, Caxemira, Bhor e Kolhapur, a discriminação religiosa nos templos cessou. Os jornais imprimiram os nomes de centenas de templos que procederam de igual maneira. Em Deli, hindus de casta e harijans confraternizaram-se publicamente nas ruas. Na Universidade de Benares, estritamente hindu, o reitor Dhruva, com numerosos brâmanes, jantara, em público, com numerosos limpadores de ruas, remendões e lixeiros. Os alunos hindus também aderiram, tomando assento em bancos anteriormente reservados aos intocáveis. As estradas e as ruas se abriram aos harijans. Muitas aldeias e muitas pequenas cidades permitiram que os intocáveis passassem a usar os poços de água de uso comum. A sra. Swarup Rani Nehru, mãe de Jawaharlal, dama extremamente ortodoxa, fez divulgar a notícia de que ela havia recebido alimento das mãos de um intocável. Milhares de damas hindus, de grande projeção, seguiram seu exemplo. Nas aldeias e nas cidades, por toda a Índia, milhares de organizações adotaram resoluções, prometendo fazer cessar a discriminação e combatê-la. Cópias telegrafadas de tais decisões começaram a formar uma pilha da altura de um homem no pátio da prisão de Gandhi. Uma mãe, curvada sobre o berço de um filho em crise de alta temperatura, não poderia mostrar-se mais ansiosa do que aquela
Índia que contemplava o catre branco do Mahatma, que morria. Embora Gandhi não fosse místico, afetava os outros de maneira mística. A razão desaparecia. Apaixonada, freneticamente — porque o fim poderia chegar a qualquer momento —, os hindus reagiam com um único soluço esperançoso: “Ele não deve morrer”. Durante o jejum de seis dias, os casamentos foram adiados; muitos hindus se abstiveram de ir ao cinema, ao teatro e aos restaurantes.
Um
espírito
de
reforma,
de
penitência,
de
autopurificação, varreu a terra. O mágico era também um músico, com o gênio de um artista para tocar nas cordas sensíveis do coração do homem interior. “Ninguém será considerado intocável, em conseqüência de seu nascimento”, estatuía o Pacto de Yeravda. Os hindus devotos, com grande número de seguidores religiosos, assinaram a declaração. Ela marcou uma reforma religiosa, uma revolução psicológica,
a
liquidação
de
uma
enfermidade
milenar
do
hinduísmo. Constituiu alimento para a saúde moral da Índia. Nenhum acordo político, friamente acertado, entre Gandhi e Ambedkar, sem jejum, teria conseguido semelhante resultado. O “Jejum Épico” melhorou permanentemente as condições dos harijans; rompeu uma corrente que se estendia para trás, na Antiguidade, e que escravizara dezenas de milhões de pessoas. Alguns elos da corrente permanecem. A revista Harijan, de 14 de junho de 1952, informou: “Em Parli, perto de Natham, um jovem harijan, que se recusou a tomar chá numa casca de coco, insistindo em que fosse servido numa chávena de vidro, recebeu pontapés e foi pisado, com saltos de sapatos, na cabeça, por obra de um hindu de casta, que depois foi condenado e multado... Em Kottagudi, um barbeiro de aldeia que se recusou a cortar o cabelo de um menino harijan foi acusado pela polícia e condenado pelo
magistrado local. Mais tarde, porém, os harijans foram convocados pelos hindus de casta... e advertidos no sentido de não mais se servirem daquele barbeiro, sob pena de uma multa coletiva lhes ser imposta... Em Kidaripatti, os harijans não têm permissão para transportar os restos mortais dos que lhes são caros, pelos passeios públicos, nem para rodar pelas ruas das aldeias em bicicletas... Em Kelavaloo, os harijans retiram a água de uma lagoa suja, onde os homens se banham e o gado é lavado”. Casos como estes formavam legião. Os preconceitos viscerais não morrem num dia, nem num decênio. Mas o jejum transformou a discriminação antiintocável de dever religioso em pecado moral, e inscreveu, na própria vida, uma declaração de direitos dos harijans. Gandhi ficou satisfeito. Cinco dias após o término do jejum, ele já estava tecendo, fiando e escrevendo durante muitas horas por dia, e seu peso já havia atingido cerca de cinqüenta quilos. “O jejum”, disse ele, em carta dirigida a Miss Slade, “foi realmente nada, se comparado com as misérias que os párias sofreram através das idades. E assim eu continuo a murmurar: Deus é grande e misericordioso,” O Mahatma permaneceu na prisão,
21 Pessoal No dia 8 de maio de 1933, ainda no cárcere, Gandhi empreendeu um jejum de três semanas, porque uma jovem norteamericana, muito atraente, havia provocado algumas apostasias
no ashram. O governo pôs o Mahatma em liberdade, logo no primeiro dia; recordando-se do “Jejum Épico” em prol dos harijans, o governo não queria saber de ficar com o Mahatma morto em suas mãos. Mas Gandhi suportou o jejum com muita facilidade; o espírito e a mente repousaram. A seguir, Gandhi transferiu o ashram de Sabarmati a um grupo de intocáveis e estabeleceu seu próprio quartel-general em Wardha, pequena cidade perto do centro geográfico da Índia. Mais tarde, instalou-se na aldeia de Sevagram, a poucas milhas de distância de Wardha. Em novembro de 1933, partiu dali, para uma excursão de dez meses, em benefício do bem-estar dos harijans, visitando todas as províncias da Índia, sem regressar uma só vez à sede. De 1934 a 1939, Gandhi dedicou-se à fiação, à educação básica, à difusão das línguas hindi e hindustani como idiomas nacionais, à prática de dietas corretas, à cura natural, ao alívio das condições dos párias e aos assuntos do Congresso. O principal organizador do Partido do Congresso era Sardar Vallabhbhai Patel, advogado possuidor de espírito altamente perspicaz e de maravilhosa memória para os nomes — homem que podia ser amigo e enérgico, e que se sentia como que em casa quando se encontrava no meio de controvérsias decorrentes de interesses litigiosos entre províncias, negócios, classes, religiões e políticas, acima e ao redor dos quais o Congresso formava uma espécie de tenda de abas esvoaçantes. O principal propagandista do Congresso era Jawaharlal Nehru, bem-apessoado, delicado, caprichoso, que se dizia socialista, e que atraía os jovens e os intelectuais, devido à sua eloqüência e ao seu comportamento. Gandhi dava, ao partido, alguma atenção, mas a subversão social o absorvia muito mais. Em sua revista, publicava fórmulas para o preparo de estrume animal, bem como prescrições para a cura de
mordidas de serpentes e da malária. Demorava-se, por vezes, no valor nutricional do amendoim. O amendoim integrava assunto político, tão político como os partidos políticos, as eleições ou as conferências. Nada do que era indiano era alheio a seu interesse. Ele era a Índia, e a Índia reclamava-o como sua propriedade. Todas as questões e todos os problemas eram levados à sua consideração, e sua opinião tinha, com freqüência, a autoridade de lei e de veredicto de corte suprema. Vivia sem paredes ao seu redor; era acessível a toda gente; comia, dormia, caminhava, trabalhava, lia e tecia em público; e todos os seus atos, bem como todos os seus pensamentos, constituíam propriedade pública. Quando permitia que um bezerro doente e presa de sofrimento fosse eliminado pelo processo de morte indolor, por meio de injeção aplicada por veterinário, a correspondência de protesto se fazia numerosa e feroz. Ele insistia em que havia procedido corretamente. Outra controvérsia, que chegou às raias da ameaça de ataque físico, foi provocada pelo comentário que Gandhi proferiu, ao receber a notícia de que um fabricante de tecidos havia dado caça a sessenta cães vagabundos, na sua propriedade industrial, matando-os em seguida. “Haveria outra coisa a fazer?”, indagou Gandhi. Essa atitude era ofensiva ao hinduísmo, clamaram os seus críticos. E Gandhi encheu edições inteiras de sua revista com as cartas de protesto. Os missivistas diziam, entre outras coisas, que Gandhi sucumbira à desumanidade dos ocidentais. Sua resposta calou fundo: “O ideal de humanidade, no Ocidente”, disse ele, com suavidade, “talvez seja inferior, mas sua transposição para a vida prática é muito mais íntegra do que a nossa. Nós nos contentamos apenas com o ideal, e somos vagarosos, ou preguiçosos, na sua
execução.” O problema das crianças enviuvadas também o preocupava. Os progenitores casavam suas filhas ainda pequenas, com filhos ainda pequenos de outras famílias, e até mesmo com homens velhos; quando o marido morria, na infância ou na senilidade, a criança viúva, que podia ter a idade de três ou seis anos, não podia, por força da lei hindu, tornar a casar-se. “A existência de crianças viúvas”, escreveu Gandhi, “é uma grande mancha no hinduísmo... Considero o novo casamento das viúvas virgens não somente desejável, mas também o imperioso dever de todos os progenitores que por acaso tenham filhas nessas condições.” Aos beatos hindus, que afirmavam que isso constituía um segundo casamento
proscrito
pela
religião,
Gandhi
respondia:
“Tais
crianças na verdade nunca foram casadas”. A objeção do Mahatma, quanto às crianças viúvas, era a de que elas eram “alheias ao amor”, e que todo ser humano deve ter amor. Contudo, o amor físico devia ser restrito. Gandhi acreditava que o intercurso sexual freqüente produzia efeitos debilitantes nos indianos. Quando Margaret Sanger o visitou, em dezembro de 1935, a fim de conseguir seu apoio, que seria decisivo, à campanha favorável ao controle da natalidade na Índia, não recebeu qualquer encorajamento. “Ainda que se presuma”, disse ele, em certa ocasião, “que o controle da natalidade, por meios artificiais, seja justificável sob determinadas condições” — o que já era uma hipótese valiosa —, “ele é impraticável entre milhões de pessoas” — para as quais um pêni é o salário de um dia. Gandhi percebia a necessidade de se limitar a população da Índia. “Se eu conseguisse encontrar um recurso de deter a procriação, de uma forma civil e voluntária, enquanto a Índia
permanece no seu miserável estado presente, eu o poria em prática hoje”, escreveu ele a Charles F. Andrews. O controle que ele incentivava era o da disciplina mental. “O autocontrole é o meio único de se regular o índice da natalidade.” Sua contribuição realística, para a solução do problema do controle do aumento da população, consistia no casamento tardio — não antes dos vinte e um anos de idade para as mulheres, nem antes dos vinte e cinco anos de idade para os homens. Gandhi procurou evitar que seus filhos se casassem cedo. Mas um aumento de cinco milhões de bocas por ano, nos decênios de 1940 e 50 (indubitavelmente excessivo nas condições da Índia, visto que isso anularia até o considerável
progresso
econômico
do
período
após
a
independência, e, portanto, conduziria à frustração), não poderia ser eliminado apenas pela elevação de uns poucos anos na idade mínima para o casamento. Ao negar que “a indulgência sexual, pelo simples prazer que ela proporciona” — e não para finalidades de procriação —, “é uma
necessidade
humana”,
Gandhi
esquecia
sua
própria
juventude e sua própria masculinidade juvenil. Mesmo mais tarde, embora ele se mantivesse casto, dos trinta e sete anos de idade até ser assassinado, seu sexo não se havia extinto. “Minha hora mais negra”, revelou o maduro Mahatma de sessenta e sete anos de idade, no Harijan, de 26 de dezembro de 1936, “ocorreu quando eu me encontrava em Bombaim, alguns meses atrás. Aquela foi uma hora de tentação. Enquanto eu dormia, senti, de súbito, o desejo de ver uma mulher. Um homem resoluto, que procurara erguer-se e tornar-se superior ao instinto, durante cerca de quarenta anos, passou a sentir-se intensamente angustiado, quando teve essa pavorosa experiência. Por fim, dominei aquele sentimento, mas me vi cara a cara com o mais negro instante de
minha vida; se eu sucumbisse a ele, o fato teria significado o meu fracasso absoluto.” A maior parte das pessoas é incapaz de semelhante
auto-revelação,
e
talvez
mesmo
a
julgasse
desnecessária, mas ele queria que o mundo ficasse sabendo a verdade a seu respeito; a sua autobiografia se intitula Minha vida e minhas experiências com a verdade, e a verdade era a inteira verdade que — ao que ele esperava — teria de ser uma lição para os outros. “Como sempre afirmei, ao longo de minha vida, que aquilo que é possível para uma pessoa é possível para todas as outras”, disse ele, “minhas experiências não têm sido realizadas às ocultas, e sim a céu aberto.” Durante os últimos anos de sua vida, e contra os protestos de seus discípulos masculinos, Gandhi se empenhou
num
doce
teste
de
autocontrole,
dormindo
publicamente, na mesma cama, com uma ou outra de suas devotadas assistentes. Fazer isso era muito mais honesto do que suprimir o anseio; contudo, aquele santo extremamente complexo conseguia ser encantadoramente ingênuo; e ele provavelmente acreditava, de verdade, que a inocente alegria constituísse apenas um estudo psicológico. A preocupação do Mahatma com toda espécie de questões íntimas, de ordem pessoal ou social, levou à porta sempre aberta do seu ashram todos os tipos de monstros, de charlatães, de vagabundos e de cruzados, ansiosos por conseguir a aprovação dele para seus planos, por vezes fanfarrões, por vezes sérios. Gandhi recebia também visitas de amigos, de conhecidos, de associados
políticos
e
de
estranhos,
que
lhe
pediam
consentimento para se casar ou para se separar — porquanto ele era o pai adotivo, o “Bapu”, da maior parte dos indianos. O motivo pelo qual admitiam que Gandhi soubesse o que era melhor para eles, e o motivo pelo qual aceitavam um conselho que com
freqüência dava resultados penosos, constituem um enigma no terreno da adulação. Gandhi, ele próprio, estava longe de haver sido marido perfeito e um pai perfeito. Um estrangeiro, de uma feita, lhe perguntou — e somente um estrangeiro poderia perguntar-lhe semelhante coisa: — Como vai sua família? — Toda a Índia é minha família — respondeu Gandhi. Essa atitude o tornava mais ou menos impessoal para com sua esposa e seus filhos. Considerável tensão havia assinalado suas primeiras relações com Kasturbai; com a idade, porém, a tensão se afrouxara; e os dois se transformaram num casal modelo: ela, o máximo de prestatividade; ele, o padrão de consideração. Ela nunca se portou como sendo a sra. Gandhi; nunca aceitou qualquer privilégio; nunca se esquivou ao trabalho mais duro; e nunca deu mostras de notar a existência do pequeno grupo composto de moças e discípulas de meia-idade, que, em atitude de adoração, se interpunha entre ela e seu ilustre esposo. Durante a semana que passei com Gandhi, em 1942, nunca a ouvi dizer uma única palavra ao marido, nem ele falou com ela. Às refeições e às preces, ela se sentava logo atrás do ombro esquerdo dele, abanando-o solicitamente, e sempre fitando-o. Ele raramente olhava para ela; contudo, queria que ela se conservasse o mais possível perto dele; e sempre pareceu haver perfeito entendimento entre os dois. Era óbvio que, embora fosse a sombra do Mahatma, ela era também ela mesma, com personalidade bem marcada, dona de grande força de vontade, desprendida, observadora. Suas faces chupadas, sua boca em linha reta e de lábios finos, seus maxilares quadrados, sugeriam sofrimento e dedicação, mas indicavam também determinação. Ela nunca se rendeu a ele, e parecia ter prazer nisso. “Ba”, disse ele, de uma feita, referindo-se
a Kasturbai como “mãe”, “toma chá, a despeito do fato de viver comigo.” Da mesma forma, ela o desafiava, bebendo café. “Eu até seria capaz de o preparar afeiçoadamente para ela”, acrescentava ele. Gandhi acabou amando Kasturbai. Contudo, o Mahatma nunca aprendeu a ser pai para seus filhos. Admitindo que eles deveriam ser filhos de santo, e, portanto, santos em miniatura, negou-lhes toda educação formal, com fundamento na convicção de que o caráter fosse mais precioso do que a instrução, e o serviço público, mais importante do que uma profissão. Os filhos ressentiram-se disso. Seu filho mais velho, Harilal, tornou-se beberrão dissoluto e perverso, separado de sua mulher e de seus filhos, e, por certo com o propósito de fazer o Mahatma sofrer, converteu-se ao islamismo, sob o nome de Abdulla. Manilal, segundo filho de Gandhi, aceitava a indevida punição paterna, bem como sua disciplina, com o espírito de auto-abnegação de seu pai asceta; ao contrário do rebelde Harilal, procurava chegar o mais perto possível do ideal de seu pai, seguindo-lhe as pegadas, na qualidade de líder da resistência popular contra a moderna perseguição às pessoas de cor, criada pelo primeiro-ministro Malan, na África do Sul. Ramdas viveu tranqüilamente numa pequena cidade indiana de província, gerindo a filial de uma firma comercial. Somente Devadas, o mais moço de seus filhos, permaneceu perto do pai, servindo-lhe
de
secretário,
quando convidado
a
isso,
mas
observando, de vez em quando, que o Mahatma era mais afetuoso na qualidade de avô. A explicação disso talvez esteja no fato de Gandhi ter um conceito impessoal da imortalidade. “Mas não poderá um artista, ou um poeta, ou um grande gênio, deixar o legado de sua genialidade à posteridade, através de seus filhos?”, perguntou alguém.
“Sem dúvida, não”, respondeu o Mahatma. “Ele terá mais discípulos do que os filhos que jamais possa ter.” Gandhi amava muitas crianças e acreditava em sua bondade; “o mal aparece apenas quando elas se fazem adultas”. Eu o vi olhando, divertido, para as crianças, no ashram, e beliscando-as carinhosamente. “Ela é meu repouso”, disse ele, a propósito de uma menina que acariciava em minha presença. Há uma deliciosa fotografia de Gandhi acarinhando com o nariz uma menina que estava em seus braços, e outra fotografia dele mesmo, a correr atrás de um neto, filho de Ramdas, ao mesmo tempo que os dois, neto e avô, seguram as extremidades opostas da mesma vara. Moços e velhos ficavam como que de boca aberta junto de Gandhi; as relações pessoais com ele, dentro e fora do ashram, eram simples, diretas e amistosas. Gandhi respondia a todas as cartas de sua volumosa correspondência, e nunca o fazia com formalidades. Sempre que as pessoas se apresentavam a ele, para que lhes resolvesse os problemas e os aborrecimentos privados, ele, pacientemente, abrandava tudo e tudo suavizava. Durante as fatídicas negociações com o governo britânico, em 1946, quando os colegas e os ministros componentes do gabinete competiam para obter um pouco do seu tempo, eu o vi, andando de um lado para outro, à frente de seu pórtico, por mais de um quarto de hora, a falar com uma jovem mulher paralítica, e, depois, por um período igual, com um jovem; e, quando perguntei a razão disso, foi-me dito, por um assistente, que se tratava de um casal de intocáveis, cujas relações se haviam interrompido. Gandhi estivera tentando ajudá-los. O Mahatma dava e recebia amor ao infinito. Havia nele algo de feminino. Com freqüência, comparava-se a si mesmo a uma mãe, e falava de haver sido “enviuvada”.
“Espero que não tenhais deixado de notar a mulher que existe em mim”, escreveu ele, de uma feita, à sra. Naidu. Gandhi era caprichosamente
asseado,
meticulosamente
econômico, e muito delicado. Sua capacidade para sofrer e para se identificar, seu ato de tecer e sua inclinação para a não-violência, continham, provavelmente, elementos de ordem feminina. Gostava de atender os doentes, de cuidar dos fracos — mas desdenhava essa ordem de cuidados para consigo mesmo. Tinha aparência bem máscula e era dono de um corpo e de uma vontade de aço; não obstante, era também docemente gentil e suavemente terno; firme, embora acariciante; duro, embora complacente; valente, embora meigo. Tinha o poder de um ditador, mas o espírito de um democrata; por isso, preferia conquistar mais com o afeto do que com a força. O que ganhava com o ferro, ele o ocultava. A intuição era a aliada de seu intelecto, e, com efeito, por vezes o guiava, ou a ele se sobrepunha. Essa combinação de qualidades masculinas e femininas, entrelaçadas harmoniosamente, sem deixar vinco, nem emenda, tornava Gandhi intricado e fascinante, constituindo uma chave importante para a interpretação de sua vida pessoal e de sua atuação pública,
22 Jesus Cristo e o Mahatma Gandhi Entre aqueles que foram sentar-se aos pés de Gandhi, encontravam-se missionários cristãos. Gandhi amava Jesus; e os devotos hindus chegavam a acusá-lo de ser secretamente cristão. O Mahatma considerava isso “ao mesmo tempo um libelo e um
louvor: um libelo, porque há homens que me acreditam capaz de ser secretamente seja lá o que for... um louvor, porque se trata de um reconhecimento, embora relutante, de minha capacidade de apreciar as belezas do cristianismo”. Sempre tolerante e de espírito aberto, Gandhi duvidava que somente os sagrados Vedas hindus fossem a palavra revelada de Deus. “Por que não a Bíblia e o Corão?”, perguntava ele. Gandhi evitava o estabelecimento de rivalidades entre religiões. Em 1942, quando eu era hóspede de sua casa, notei a única decoração que havia nas paredes de barro da sua pequena choupana: uma estampa em branco e preto de Jesus Cristo, sob a qual estava escrito: “Ele é nossa paz”. Perguntei-lhe o que significava aquilo. “Vós não sois cristão”, observei-lhe eu. “Eu sou cristão, hindu, muçulmano e judeu”, respondeu Gandhi. E isso fazia dele um cristão muito mais cristão do que a maior parte dos cristãos. Gandhi
apresentava
um
problema
desconcertante
aos
teólogos cristãos da Índia. Ele, hindu, era a pessoa mais semelhante a Cristo do mundo. “E, por conseguinte”, comentava o dr. E. Stanley Jones, preeminente missionário norte-americano, que passara muitos anos na Índia e muitas horas em comunhão com Gandhi, “um dos homens mais parecidos com Cristo, da história, não era de forma alguma chamado cristão.” “Deus”, declarou o dr. Stanley Jones, “faz uso de muitos instrumentos; e Ele pode ter recorrido ao Mahatma Gandhi para cristianizar a cristandade não-cristã.” A mensagem de Gandhi aos cristãos, por toda parte, é a de que o homem do século XX pode ser cristão. O sr. S. K. George,
cristão sírio da Índia e conferencista do Colégio do Bispo, de Calcutá, escreveu um livro intitulado Gandhi’s challenge to christianity (O desafio de Gandhi à cristandade), e dedicou-o “Ao Mahatma Gandhi, que tornou Jesus e a Sua mensagem reais para mim”. O reverendo K. Matthew Simon, da igreja sírio-cristã de Malabar, na Índia, disse, referindo-se a Gandhi: “Foi a vida dele que provou, a meus olhos, mais do que qualquer outra coisa, que o cristianismo é religião praticável até no século XX”. Durante muitos anos de terna amizade, Charles Freer Andrews, o missionário britânico, e Gandhi se tornaram tão íntimos, que o Mahatma referiu-se a ele dizendo: “Ele é mais do que um irmão de sangue, para mim”. Gandhi chamava-o “Charlie”; e ele chamava Gandhi de “Mohan”. “Não creio que eu possa dizer que tenho, por qualquer outra pessoa, um apego mais profundo do que pelo sr. Andrews”, escreveu Gandhi. O santo hindu não encontrou alma que fosse mais aparentada com a dele próprio do que a de Andrews, o cristão; o missionário cristão não encontrou melhor cristão do que Gandhi, o hindu. Na África do Sul, por um momento, Gandhi pensara em tornar-se cristão. Mas houve perguntas que não encontraram respostas satisfatórias. “Por que motivo”, perguntava ele aos cristãos que procuravam convertê-lo, “Deus teve apenas um filho? Se Ele teve um, por que não teve outro? No hinduísmo, houve certo número de encarnações humanas do Todo-Poderoso. Por que razão posso ir para o céu e conseguir salvação exclusivamente por ser cristão?”, indagava. Era o céu reservado aos cristãos? Era Deus cristão? “Acredito”, disse ele, anos mais tarde, na Índia,
“que, no outro mundo, não haja hindus, nem cristãos, nem muçulmanos.” Em Sabarmati e Sevagram, os missionários, sentados no chão da sua choupana, tentaram convertê-lo ao cristianismo. Ele, falando em voz baixa, tentara fazer o mesmo com eles. (Mas por que arrolar um santo, numa igreja?) Em tais seminários, Gandhi zombava ocasionalmente dos missionários, por transformarem em cristãos os famintos indianos que eles alimentavam e os indianos enfermos que eles curavam. “Fazei de nós melhores hindus”, suplicava. Gandhi poderia ter convertido muitos cristãos ao hinduísmo. A uma alusão de sua parte, Miss Slade e outros se teriam tornado hindus. Ele, entretanto, lhes disse apenas que tratassem de ser bons cristãos. Por fim, Gandhi abraçou Cristo, mas repeliu o cristianismo. E definiu sua atitude, com maior clareza, na Associação Cristã de Moços, em Colombo, no Ceilão, em 1927. “Se naquela oportunidade eu tivesse de enfrentar somente o Sermão da Montanha e minha própria interpretação dele”, declarou Gandhi, “não hesitaria em dizer: ‘Oh, sim, sou cristão...’ Mas, negativamente, posso dizer-vos que muita coisa que passa por cristianismo é uma negação do Sermão da Montanha.” E Gandhi lançou uma farpa: “Por obséquio, tomai nota de minhas palavras”, prosseguiu. “Não estou falando, no presente momento, da conduta cristã. Estou falando do credo cristão, do cristianismo tal como ele é entendido no Ocidente.” O Mahatma lançou um pouco mais de luz sobre esse seu ponto de vista quando permaneci ao seu lado, em 1946. “Paulo”, disse ele, “não era judeu, era grego, tinha espírito
inclinado para a eloqüência e para a dialética, e distorceu Jesus. Jesus possuía uma grande força, a força do amor, mas o cristianismo se desfigurou quando foi para o Ocidente. Tornou-se uma religião de reis.” Esse raciocínio refletia seu desapontamento, que cada vez mais se aprofundava, em face da civilização ocidental. Observando a inclinação do mundo para a guerra, durante a década de 30, Gandhi se fez cada vez mais crítico do Ocidente, e cada vez mais pacifista. Nunca chegou a ser pacifista completo, nem tolstoiano absolutista no sentido de pessoa incapaz de defender a guerra sob quaisquer circunstâncias. Mas, para aqueles que indagassem o motivo pelo qual ele havia apoiado a Primeira Guerra Mundial, recusando-se, contudo, a apoiar a Segunda Guerra Mundial, mais justificável, contra o nazismo alemão, contra o fascismo italiano e contra o militarismo japonês, poderia responder que ele, Gandhi, era diferente, e que o mundo também era diferente. O Mahatma tinha mais fé na não-violência do que no Ocidente. Via o fascismo, o stalinismo, a guerra, o crime e a corrupção como demonstrações correlatas do triunfo da violência ocidental sobre a moral cristã; e percebia, portanto, que a violência não podia curar os males que a própria violência havia produzido. Como político cujo país estava na iminência de ser invadido, Gandhi talvez não se permitisse o luxo de perspectivas de longo alcance (que é, provavelmente, a razão pela qual prometeu permanecer “fora do mundo oficial”, mesmo numa Índia independente), mas, como superpolítico, via, com os olhos do espírito, que a humanidade se destruiria a si mesma, se não adotasse um processo longo e terapêutico. No limiar da guerra, sempre há poderosa justificação para se entrar nela. É quando as sementes da provação são semeadas pela ganância e sopradas ao vento pelo ódio e pela estupidez, que a
estratégia gandhiana pode ser aplicada. A não-violência de Gandhi era, acima de tudo, um credo de ética pessoal, que incluía a verdade, o amor, a prestatividade, métodos e meios escrupulosos, a tendência a não melindrar por fatos nem por palavras, a afável tolerância de diferenças, e a ausência de desejo, ou, pelo menos, a moderação na corrida aos bens materiais. A não-violência gandhiana, em segundo lugar, é uma técnica destinada a prevenir o conflito entre raças, comunidades e países. “Virai o farol para dentro”, insistia ele, repetidamente, “talvez a falta seja, em parte, nossa. Adjudicai, negociai, arbitrai”, suplicava ele, “do contrário, uma rixa inter-religiosa, ou um incidente racial, dará, imediatamente, combustível para outro; e uma guerra originará os venenos, os medos e os planos militares que tornam mais provável a eclosão de uma segunda e de uma terceira. A violência perpetua-se por si mesma.” Essas são verdades simples. Gandhi sabia disso. Sugeri-lhe, em 1946, que deveria pregar a paz para o Ocidente. “Por que razão precisa o Ocidente de mim para lhe dizer que duas vezes dois são quatro?”, ruminava ele. Ao que parece, o cérebro ocidental captou essa aritmética, mas a consciência ocidental, bem como o coração do Ocidente, não conseguem deduzir as conclusões práticas que dela decorrem. Daí as críticas de Gandhi ao mundo cristão. Mas, por outro lado, ele não era cego às falhas da Índia. “Tenho um trabalho não acabado por aqui”, afirmou Gandhi, ao discutir uma sua visita ao Ocidente. “Temos excesso de homens de ciência, mas escassez de homens de Deus. Captamos o mistério do átomo e rejeitamos o Sermão da Montanha.”
Não era Gandhi que dizia isso; era o general Omar N. Bradley, chefe do estado-maior conjunto das forças armadas dos Estados Unidos, em discurso proferido em Boston, a 10 de novembro de 1948. “O nosso”, prosseguia Bradley, “é um mundo de gigantes nucleares e de pigmeus morais. Sabemos mais a respeito de guerra do que a respeito de paz, mais a propósito de matar do que a propósito de viver.” Gandhi não sabia coisa alguma a propósito de matar, mas havia encontrado o segredo de uma vida feliz e útil. Ele era um pigmeu nuclear e um gigante moral. Rejeitava o átomo, por haver aceito o Sermão da Montanha, de Cristo. Era cristão, hindu, muçulmano e judeu. Quem mais o é? Talvez seja essa a razão pela qual foi um hindu que se tornou “porta-voz da consciência da humanidade”. Uma vez que sempre dava ouvidos aos imperativos de sua própria consciência, podia falar pela e para a consciência dos outros.
23 Winston Churchill versus Mohandas Gandhi No dia em que a Segunda Guerra Mundial teve início, a GrãBretanha
arrastou
proclamação
sem
a
Índia
prévia
para
o
consulta.
conflito, A
por
Índia
meio
de
protestou
veementemente contra essa revelação adicional e humilhante de sua impotência. Mas, já no dia seguinte, Gandhi tomou um trem para Simla, capital indiana de verão, e chorou, numa entrevista com lorde Linlithgow, vice-rei britânico.
“Quando me pus a descrever, aos olhos dele, o Parlamento e a Abadia de Westminster, assinalando sua possível destruição”, informou Gandhi, “comecei a chorar. Senti-me desconsolado. No íntimo de meu coração, encontro-me em perpétua querela com Deus, pelo fato de Ele permitir que tais coisas continuem a acontecer.” O hitlerismo, disse ele, “significa força bruta e impiedosa, reduzida à categoria de ciência exata, e manobrada com precisão científica. Cheguei à conclusão de que Herr Hitler é o responsável pela guerra”. “Minha simpatia para com a Inglaterra e para com a França”, explicou, “não é resultado de emoção momentânea...” Quando a França se rendeu aos nazistas, e a vida da Inglaterra passou a depender da força aérea, Gandhi profetizou, sobriamente: “A Inglaterra resistirá até a morte, e morrerá heroicamente, se tiver de morrer. Teremos notícias de reveses, mas não teremos notícias de desmoralização”. O respeito de Gandhi para com as virtudes do povo britânico se manteve alto durante a guerra toda. “Não quero que a Inglaterra seja derrotada e humilhada”, declarou, num discurso dirigido à Comissão do Congresso Pan-Indiano, em 15 de setembro de 1940. “Portanto, nada tenho, a não ser votos de felicidade, a fazer para o vosso país e para a Grã-Bretanha”, escreveu Gandhi, em carta dirigida ao presidente Roosevelt, datada de 1.° de julho de 1942, que me incumbiu de entregar. No ano de 1942, os japoneses se expandiram rapidamente pelo sudeste da Ásia, até as fronteiras da Índia, ameaçando invadi-las. Gandhi manteve-se firme contra eles. “Se os japoneses vierem, como poderemos oferecer-lhes resistência não-violentamente?”, perguntaram-lhe. “Não lhes daremos alimento, nem abrigo”, respondeu o
Mahatma, em 14 de junho de 1942, pelas colunas do Harijan, “nem com eles faremos quaisquer negócios. Eles deverão ser levados a sentir que não são desejados... O povo... deverá evacuar os lugares infestados, a fim de evitar a prestação compulsória de serviço ao inimigo.” Antes disso, quando o sr. Takaoka, membro do Parlamento nipônico, lhe pedira uma mensagem para o partido político japonês que atuava sob o lema “A Ásia para os asiáticos”, Gandhi recusara, dizendo: “Não subscrevo a doutrina da Ásia para os asiáticos, se ela tem o sentido de uma combinação antieuropéia”. Durante a guerra toda, Gandhi conservou-se contra os japoneses, contra os nazistas e contra Mussolini, sendo a favor dos britânicos, dos franceses, dos norte-americanos. Afetado pela devoção de tempo de guerra, de Nehru, para com o generalíssimo e a sra. Chiang Kaichek e para com a União Soviética, o Mahatma também fez declarações de apoio à China e à URSS. “Não é porque amo a nação britânica e odeio a germânica”, afirmou ele. “Não considero os alemães, na qualidade de nação, piores do que os ingleses, nem do que os italianos. Nós todos somos lambuzados pelo mesmo pincel; somos todos membros da vasta família humana. Recuso-me a reconhecer quaisquer diferenças... Não tenho o direito de reclamar qualquer superioridade para a Índia.” Gandhi opunha-se, simplesmente, aos governos agressores. Em conseqüência, no dia seguinte ao do começo da guerra, assumiu publicamente o empenho de não causar embaraços à Inglaterra; com efeito, deu à Inglaterra e aos aliados dela seu apoio moral. Gandhi não iria nunca além disso. Não poderia participar do esforço de guerra. O Partido do Congresso não se encontrava inibido da mesma
forma. Com exceção dos discípulos mais chegados do ashram de Gandhi, e de homens como Khan Abdul Ghaffar Khan, “o Gandhi da fronteira”, um doce gigante patã, poucos líderes do Congresso eram pacifistas ou acreditavam na não-violência. Acompanhavam Gandhi na sua campanha de não-violência, porque esse era, em regra, o preço que tinham de pagar pela sua liderança, e também porque a Índia não tinha outra alternativa, uma vez que não possuía armas. Gandhi sabia disso. Para ele, a não-violência constituía um credo; para o Congresso, “uma política”. O Congresso, portanto, estava pronto a lançar, de todo o coração, a Índia no conflito armado, a troco de uma compensação. “Uma Índia livre e democrática”, afirmou o Congresso, num manifesto redigido por Nehru, “se associará prazerosamente a outras nações livres, para a defesa mútua contra a agressão e a favor da cooperação econômica...” “Lutarei contra o Japão, de espada na mão”, disse Nehru, numa oportunidade ulterior, “mas só poderei fazer isso como homem livre.” Gandhi não interferiu; apenas se absteve. O governo britânico, entretanto, não tinha intenção de dar à Índia liberdade, independência, soberania, nem sequer direitos menos expressivos. Winston Churchill era primeiro-ministro, e continuava a ser guiado pela sua famosa frase de 10 de novembro de 1942: “Não me fiz primeiro-ministro do rei a fim de presidir à liquidação do império britânico”. Churchill detestava, talvez até temesse, o “faquir seminu”, que amava a Inglaterra, mas que poderia destruir o império. “O gandhismo e tudo aquilo por que ele se bate deve finalmente ser agarrado e definitivamente esmagado”, declarou Churchill, em 1935. Agora, pela primeira vez, depois de 1935, Churchill se encontrava no poder — no supremo poder —, e
nutria o propósito de esmagar o gandhismo, a fim de salvar sua Inglaterra. Um grande homem é feito de uma peça só, como uma boa escultura. Churchill e Gandhi eram semelhantes, porquanto cada qual dava a própria vida em benefício de uma única causa. O propósito absorvente de Churchill era a preservação da GrãBretanha, na qualidade de potência de primeira grandeza. Ele era produto do século XIX, e gostava de o ser. Amava a realeza, a casta, o império. Lloyd George desprezava as classes superiores inglesas, os generais, a nobreza — e combatia tudo isso. Seu apego não era tanto para com as referidas coisas, era para com o século XIX, que lhes havia dado existência. O século XIX fora o século britânico, o século da Pax Britannica, depois da derrota da França napoleônica, e antes do surto da Alemanha do cáiser; o século do florescente império, sob o cetro da rainha Vitória. A glória passada da Inglaterra era o deus de Winston. As classes superiores eram sinônimo, para ele, da grandeza de sua pátria. O mesmo se diria da democracia parlamentar, e o mesmo da Índia. Churchill tomou parte na Segunda Guerra Mundial para preservar o legado da Grã-Bretanha. Permitiria ele que um faquir seminu roubasse à sua pátria aquele legado? “Temos o propósito de conservar o que é nosso”, disse Churchill. A Índia era propriedade da Inglaterra, que se recusava a desistir dela. A partir do momento em que se tornou primeiroministro do rei, em 1940, até o dia em que, em 1945, foi afastado do poder, Churchill moveu guerra contra o Mahatma Gandhi. Aquilo foi uma peleja entre o passado da Inglaterra e o futuro da Índia. Para Churchill, o poder era poesia. Ele era um Napoleão
byroniano. Odiava, com paixão, as tiranias estrangeiras que ameaçavam a Inglaterra, e orientava contra elas todo o fervor moral que seu gênio podia gerar, mas não alimentava simpatia alguma para com a luta moral de Gandhi contra a dominação britânica. Poderia ter morrido, para conservar a Inglaterra livre, mas detestava aqueles que desejavam que a Índia se tornasse livre. Para ele, os indianos constituíam o pedestal de um trono. Isso explica o fracasso da missão empreendida por Sir Stafford Cripps, em nome do governo britânico, em meados de 1942. Cripps, o magro, austero, rico, ascético e vegetariano trabalhista, poderia ter chegado a um acordo com o Partido do Congresso; poderia, mesmo, ter o Congresso em suas mãos, mas Churchill visualizava Gandhi a subir os degraus da escadaria do palácio do vice-rei, a fim de dividir o poder com o rei-imperador; e Gandhi não deveria partilhar desse poder. Na perspectiva histórica dos acontecimentos subseqüentes, é claro que o ano de 1942 teria sido o melhor para se levar Patel, Nehru, Rajagopalachari, Azad e outros seus colegas por aqueles degraus acima, passando pela guarda indiana soberbamente bemapessoada, estatuária, imóvel e pitoresca, com suas lanças, a caminho das câmaras internas do poder, e assim preparar o caminho
para
uma
Índia
independente,
voluntariamente
associada, como agora, à Commonwealth. O exército e a polícia dos britânicos, que na época se encontravam em pleno controle da situação, poderiam ter garantido uma transição pacífica, e evitado a divisão da Índia em República indiana e Paquistão, bem como todo o seu enorme custo em vidas, em ódios, em ruína econômica e em tensões políticas, coisas pelas quais as duas partes estão pagando, e continuarão a pagar ao longo de decênios. Alguns perceberam isso naquela época.
“Nós estaremos fora daqui dentro de dois anos depois do fim da guerra”, disse-me Sir Reginald Maxwell, membro do conselho do vice-rei para os assuntos internos; disse-o com uma precisão notável, em 1942. “Não estamos destinados a permanecer na Índia”, disse-me o vice-rei, numa entrevista. É provável que também Churchill soubesse disso. Mas a mesma vontade, gloriosamente
indomável,
que
permitiu
que
Churchill
permanecesse impertérrito, em presença daquilo que chegou a parecer inevitável derrota nas mãos de Hitler, fazia dele um bloco inamovível, posto na estrada que a Índia teria de percorrer, rumo à sua inevitável liberdade. Churchill não seria o instrumento da liquidação do império. Isso foi deixado a outro governo britânico, de outra Inglaterra, nobre na vitória, mas enfraquecida pelo preço dessa mesma vitória.
24 Minha semana com Gandhi A tonga — carruagem de um cavalo e duas rodas, em que os passageiros se sentam olhando para trás — levou-nos, ao dentista de Gandhi e a mim, da cidade de Wardha para a aldeia de Sevagram. Durante a viagem de cinco milhas, ou cerca de nove poeirentos quilômetros, tentei fazer com que me falasse do Mahatma como paciente. Ele, entretanto, falou dos britânicos na Índia. Gandhi esperou-nos no ponto em que a estrada se encontra com a aldeia. Aquela era a primeira vez que eu o via. Ele deu alguns passos na minha direção e disse, estendendo os braços
abertos: “Sr. Fischer”. Pareceu-me
mais
alto
do
que
eu
havia
presumido.
Envergando apenas o seu célebre lençol e calçando sandálias, fazia um forte contraste entre um branco rutilante e um bronzeado suave. Parecia bem-constituído, o peito redondo, a cintura fina e as pernas longas, magras e musculosas; seus joelhos eram marcadamente salientes. Gandhi, naquela época, tinha setenta e três anos. Convidou-me a sentar junto dele, num banco; sentou-se em primeiro lugar, e, com a palma da mão, como que limpou o local onde eu estava para me sentar. A maneira como fez isso sugeria: “Esta é a minha casa; entre”. Senti-me imediatamente como que em minha casa. Percebendo meu desejo de saber o que me estava sendo reservado, disse-me que eu poderia ter uma palestra de uma hora com ele, depois do almoço, e caminhar em sua companhia, à tarde. Entregou-me aos cuidados de Kurshed Naoroji, neta do famoso nacionalista indiano parse, Dadabhai Naoroji, que havia abandonado seus estudos sobre a voz, na Europa, para servir a Gandhi. Ela, então, apareceu e me instalou na casa dos hóspedes: uma choupana de paredes de taipa, coberta de bambu, que se compunha de uma sala, com chão de terra batida, e um pequeno quarto contíguo, com bacias, baldes e jarros de água no seu piso de cimento. A temperatura era de quarenta e três graus centígrados lá fora, e não muito mais baixa, dentro; cinco ou seis vaporizações diárias constituíam o mínimo, para se ter algum conforto. A aldeia e o ashram não dispunham de água corrente, nem eletricidade, ventiladores, rádio ou telefone. Assim era a Índia. Às onze horas, Kurshed me conduziu à choupana de
Gandhi. Deixei meus chinelos do lado de fora e entrei numa sala em penumbra, onde Gandhi estava deitado numa enxerga, sobre o chão de terra batida. Ao seu lado, havia alguns manuscritos e uma estante de madeira, de uns vinte e cinco centímetros de altura, munida de vários orifícios circulares, nos quais se viam sua caneta-tinteiro e seu lápis. Fui apresentado aos secretários: Mahadev Desai, Pyarelal e Kishorlal Mashruwala. Depois de um momento, Gandhi soergueu-se, e, em tom de fingido comando, disse-me: — Venha comigo. Era hora de almoço. — Agora, calce seus sapatos e ponha seu chapéu — disse ele. — Essas coisas são indispensáveis aqui. Não vá sofrer insolação. Duas longas paredes feitas de esteiras, unidas por outra parede, ao fundo, e por um teto, tudo do mesmo material, constituíam a sala de refeições. Cada pessoa, cerca de trinta com as crianças, tinha uma fina esteira de palha por baixo, e uma bandeja de cobre à frente. Gandhi sentou-se numa almofada. Membros do ashram, femininos e masculinos, movendo-se sem fazer barulho, descalços, depositavam alimentos nas bandejas, panelas e frigideiras junto às pernas de Gandhi. O Mahatma me passou uma tigela de bronze, cheia de vegetais moídos, em cujo interior pensei discernir folhas picadas de espinafre e pedaços de algo parecido com abóbora. Uma mulher deitou uma pitada de sal em minha bandeja; outra me deu um caneco de metal, com água quente, e outro, com leite quente. A seguir, recebi duas pequenas batatas cozidas e vários pãezinhos, chatos e circulares, de trigo. Gandhi — eu me encontrava sentado ao lado dele, com outra pessoa entre
mim e ele — passou-me um biscoito salgado, duro, da espessura de uma folha de papel, tirando-o de um recipiente de metal que estava à sua frente. Ao som do gongo, um moço robusto, de calções, parou de cuidar das bandejas, pôs-se de pé, fechou os olhos, de modo que somente uma estreita fresta branca se manteve aberta (fazendo-o parecer cego), e começou um canto estridente, no que foi acompanhado por todos. A prece terminou com “Shahnti, Shahnti, Shahnti” (Paz, Paz, Paz). Depois, todos começaram a comer com as mãos; pescavam os vegetais, com um daqueles biscoitos dobrados em triângulo. Deram-me uma colher de chá. Gandhi mastigou ativamente, parando apenas para servir sua mulher e os vizinhos mais próximos. — Vós vivestes na Rússia soviética durante catorze anos. Qual vossa opinião sobre Stálin? Essa foi a primeira pergunta política que Gandhi me fez. Eu
sentia
um
calor
enorme;
minhas
mãos
estavam
pegajosas; meus tornozelos e minhas pernas começavam a doer, por eu estar sentado em cima deles; por isso, respondi, brevemente: — Muito capaz e muito impiedoso. — Tão impiedoso como Hitler? — indagou ele. — No mínimo. Depois de uma pausa, o Mahatma voltou-se para mim e disse: — Já vistes o vice-rei? Eu respondi que sim. (“Não tenha dúvida alguma quanto a isso, dissera-me o vice-rei, o velho Mahatma é a maior coisa que existe na Índia.”) Serviram-me uma segunda vez meus alimentos.
— Podeis beber quanta água desejardes — apressou-se Gandhi a dizer. — Tomamos sempre o cuidado de fazer com que ela seja fervida. E, agora, comei vossa manga. Comecei a descascar minha fruta; ele riu; outros riram também. O Mahatma explicou que os indianos, em regra, giravam e espremiam a manga em suas mãos, a fim de a amaciar, e, depois, chupavam-lhe a polpa por uma das extremidades, mas, acrescentou ele, eu tinha o direito de a descascar, a fim de ver se estava em boas condições. O jantar, com quase o mesmo cardápio, foi servido logo antes do cair do sol. Tomei o desjejum sozinho, na choupana de hóspedes: chá, biscoitos, pão, manteiga, mel e manga. Ao almoço, no segundo dia, Gandhi trocou minha colher de chá por uma colher de sopa. — Isso é mais consentâneo com vosso tamanho — zombou ele. Ofereceu-me uma cebola cozida. Eu preferi uma crua, que representava um alívio em relação à insípida dieta. Ao almoço, no terceiro dia, Gandhi disse: — Fischer, dai-me vossa tigela; vou enchê-la de verdura. Eu lhe disse que, depois de comer quatro vezes o mesmo prato de espinafre e abóbora, em dois dias, não tinha desejo de fazer isso outra vez. — Vós não gostais de verduras — comentou. — Eu não gosto dessas verduras três dias seguidos. — Ah! — sugeriu ele — deveis acrescentar bastante sal e limão. — Desejais que eu lhes destrua o gosto. — Não — riu ele. — Que lhes enriqueça o gosto. — Sois tão contrário à violência, que não devíeis sequer
destruir um sabor. — Se fosse apenas isso que o homem matasse, não me importaria — observou. Enxuguei a transpiração de meu rosto e de meu pescoço. — Da próxima vez que eu vier à Índia... — comecei eu. Não me pareceu que ele estivesse ouvindo; por isso, parei. — Sim — estimulou-me ele. — Da próxima vez que vierdes à Índia... — Ou devereis ter ar condicionado em Sevagram, ou ir viver no palácio do vice-rei. — Está bem — concordou ele, sem indicar sua escolha. Gandhi estimulava a brincadeira e a piada. Certa tarde, citou uma observação que fizera em Londres, a lorde Sankey. — Pensais que eu chegaria a esta verde idade avançada, se não tomasse cuidado comigo mesmo? Esta é uma de minhas faltas. — Pensei que fôsseis perfeito — gracejei. Ele riu; e os oito ou dez membros do ashram que usualmente conversações
se da
sentavam tarde,
em
também
sua
companhia,
riram.
(Gandhi
para me
as
havia
perguntado se eu fazia objeções à presença deles.) — Não — assegurou o Mahatma. — Sou muito imperfeito. Antes de vos retirardes, descobrireis centenas de falhas em mim; e, se não as descobrirdes, eu vos ajudarei a achá-las. Geralmente, antes de iniciar a entrevista, ele procurava para mim o ponto mais fresco do chão. Depois, com um sorriso, dizia: — Agora, convido vossos sopros. De uma feita, uma mulher muçulmana lhe apresentou um pouco de lama empacotada, para pôr sobre o abdome; o Mahatma estendeu o braço e disse:
“Receberei vossos sopros deitados”. Ao fim de uma hora, ele olhava para seu relógio de um dólar, e anunciava: “Vossa hora terminou”. Gandhi era minuciosamente pontual. Uma vez, quando eu me retirava, ele disse: “Ide e sentai numa banheira”. Fiquei a meditar sobre se isso seria o equivalente indiano ao “vá tomar banho”. Contudo, ao cruzar, sob o sol escaldante, os cem metros que separavam a cabana dele da casa de hóspedes, o calor secou o interior de minha cabeça, e eu decidi que sentar numa banheira deveria ser uma excelente idéia. Com efeito, admiti que poderia até aperfeiçoá-la. Depois de cada conversação, eu redigia, à máquina, literalmente as memórias; e este era o ordálio do dia, porque, dentro de cinco minutos, me via cansado e coberto de suor. Estimulado pela sugestão de Gandhi, no sentido de ir sentar-me numa banheira, preparei uma pequena caixa de madeira e uma das tinas de lavar roupa, cheia de água; pus uma toalha turca, dobrada, sobre a caixa; a seguir, dispus uma caixa ainda mais alta, do lado de fora da tina; e coloquei minha máquina de escrever sobre ela. Após completar esses arranjos, sentei-me, despido, na caixa posta dentro da tina, e datilografei minhas notas. A intervalos de uns poucos minutos, assim que eu começava a transpirar, afundava um caneco de bronze na água da tina e derramava o líquido sobre meu pescoço, minhas costas, minhas pernas. Esse método me permitia datilografar uma hora inteira, sem me sentir exausto. A inovação foi motivo de divertimento no ashram, e provocou comentários alegres. Aquela não era uma comunidade insossa. Gandhi cuidava disso.
As noites eram refrescantes e repousantes. Cada qual dormia do lado de fora de sua choupana, numa rede de cordas, coberta por uma manta e sustentada por quatro suportes de madeira, de uns trinta centĂmetros de altura. Dormi melhor ali do
que o havia feito durante anos. As noites eram tranqüilas; o céu, cheio de estrelas. Kurshed advertiu-me para que não pusesse os pés no chão, no escuro, sem sapatos: havia escorpiões por ali. Pelas manhãs, às cinco horas, quando me dirigia, a pé, para a choupana de Gandhi, encontrava-o sentado em sua cama, ao ar livre, tomando o desjejum de polpa de manga com uma colher. Terminada a parca refeição, ele recebia de Kasturbai uma toalha e uma garrafa de água, longa, retangular, de gargalo estreito, arrolhada, e lavava suas mãos, antes de começar uma caminhada pelos campos vizinhos. De uma feita, uma gota do suco de manga amarelo caiu no lençol com que ele envolvia o corpo; ele esfregou a mancha, ativamente, durante vários minutos. Nas caminhadas da manhã, bem como da tarde, ele pousava os braços nos ombros de dois rapazes, ou de duas moças — todos disputavam esse prazer —, mas o Mahatma caminhava para a frente, com grandes passadas, e falava durante meia hora, sem se cansar e sem perder o fôlego. O corpo do Mahatma não revelava sua idade. Sua pele era tenra e macia, e tinha um brilho saudável. Suas belas mãos não tremiam, quando ele comia ou escrevia. Nunca se entregava a lembranças. Lloyd George, nos seus setenta anos, começava a responder a perguntas sobre ocorrências do dia, e logo passava a falar de sua própria conduta numa campanha da Primeira Guerra Mundial, ou de sua luta por algumas reformas sociais, no começo do século. Gandhi concentrava-se nos planos para o futuro e nas lutas do dia-a-dia. O vigor de seu pensamento social também testemunhava sua juventude intelectual. Tornava-se cada vez menos conservador, à medida que se tornava mais idoso. Nas décadas de 20 e 30, por exemplo, advogara doações voluntárias de terra dos donos de fazendas aos camponeses, mas, um decênio
mais tarde, embora sem abandonar o método das doações voluntárias, insistia em que se pusesse em prática uma orientação mais drástica. “Os camponeses deviam tomar as terras”, respondeu-me quando lhe perguntei a respeito de seu programa agrário para uma Índia livre. Perguntei se os donos de fazendas seriam compensados. “Não”, disse ele, “isso seria impossível, do ponto de vista fiscal.” A esclerose não lhe modificara a capacidade de mudar, de aprender, de agir. Seu rosto, naturalmente, acusava sua idade. Esse rosto constituía uma pequena parte de uma cabeça de abóbada alta, de que as grandes orelhas se desprendiam quase em ângulo reto. O lábio superior, coberto por um restolho de bigode branco e preto, era tão estreito, que quase se ligava ao nariz, grosso, de ponta caída. A expressão de seu semblante provinha dos olhos serenos, tranqüilos, suaves; o lábio inferior, muito delicado, indicava autocontrole, resistência e sofrimento; o sorriso, sempre presente, punha à mostra as gengivas nuas. (Gandhi usava sua dentadura somente para comer; depois da refeição, tirava-a e lavava-a em público.) Os traços faciais, com exceção dos olhos, eram feios; em repouso, seu rosto seria feio, mas raramente se apresentava em repouso. Estivesse ele falando, ouvindo ou pensando, seu rosto era um espelho tremeluzente, com muitas facetas a refletir o que lhe ia por dentro. O Mahatma não tentava formular suas idéias em forma acabada; pensava falando alto, de modo que a gente como que podia ouvir-lhe o cérebro a funcionar. Não se ouviam apenas palavras; ouviam-se os pensamentos a nascer. Não se recebia um produto polido de propaganda, como acontece com muitos
políticos; assistia-se a um processo mental, que era criador para ele e para a gente. Lloyd George tinha a aparência do grande homem. Churchill e Franklin D. Roosevelt apresentavam estatura e distinção. Davase
o
contrário
com
Gandhi.
A
proximidade
íntima,
sem
formalidades, em conversações, em caminhadas, às refeições, com esse homem quatro quintos despido, era o que de menos indicado podia haver para conduzir alguém à admiração ou à veneração; contudo, por essa mesma razão, dava origem ao milagre de sua personalidade, produzindo um impacto poderoso. Todos os recursos da capacidade de impressionar de um grande homem — como o palácio, ou a mansão histórica, os guardas, a espera na ante-câmara, a porta fechada na iminência de abrir-se, o poder da autoridade — faltavam nele. A simplicidade terra-a-terra de Gandhi, despida de qualquer traço de poder, aparente ou real, acentuava-lhe a autoridade. Esse ditador onipotente é o que apresentava menos probabilidade de ter qualquer autoridade. Gandhi não tinha força para compelir, nem para punir, nem para recompensar. Seu poder era nulo; sua autoridade, enorme. Provinha do amor. Convivendo com ele, podia-se perceber o motivo pelo qual era amado: ele amava. Não somente em incidentes isolados, mas também na sucessão dos dias, de manhã, ao meiodia, à noite, através de decênios, em cada ato, em cada palavra, manifestara o seu amor para com os indivíduos e para com a humanidade. Nem se lhe podia deixar de notar, em cada sentença, em cada atitude, sua lealdade de toda a vida para com uns poucos princípios simples, amplamente propalados: a exaltação dos meios acima dos fins; a não-violência; a primazia da verdade; as qualidades curativas da confiança; a consideração para com as dúvidas, as perdas de tempo, o meio circunstante e os conflitos
interiores dos outros. Encarava os problemas de todos os dias à luz de valores eternos e universais. Indo ao coração ético de um problema prático, e deixando de lado considerações superficiais, Gandhi encontrava o núcleo permanente que existia no efêmero. Isso permitia que ele estilhaçasse o átomo social e encontrasse uma nova fonte de energia nas massas. Alguns escreveram ou discursaram como ele, ou ainda melhor. A grandeza de Gandhi estava em fazer o que os outros deveriam fazer, mas não faziam. Ficava-se
maravilhado,
a
contemplar
o
milagre,
pois,
na
aparência, aquela era uma maneira de viver, conseguida sem a manifestação de qualquer esforço, em vez de constituir a execução de um programa consciente. “Talvez não obtenha êxito”, escreveu Tagore a respeito de Gandhi. “Talvez falhe, como falhou Buda e como Cristo falhou, na tarefa de desviar os homens de suas iniqüidades, mas ele será sempre recordado como alguém que fez de toda a própria vida uma lição para os tempos vindouros.” Gandhi subira acima de seus atos, ganhara considerável independência, em relação a seu êxito ou a seu fracasso. Ele é que era importante, não seus atos, nem suas palavras. Talvez nisso estivesse a razão pela qual os homens podiam divergir de seus pontos de vista, sem repelir sua pessoa, e aceitar suas diretrizes, contrárias ao melhor juízo dos outros, sem qualquer sentimento de humilhação. Uma tarde, fui à choupana de Mahadev Desai, e contempleio a fiar. Contei-lhe que estivera ouvindo Gandhi e estudando minhas anotações, e que ficara a meditar sobre aquilo que poderia ser sua força de agarra na alma do povo; eu chegara à conclusão preliminar de que era sua paixão que constituía essa força. — É certo — concordou ele.
— Qual é a raiz de sua paixão? — perguntei. — Esta paixão é a sublimação de todas as paixões de que a carne é herdeira — explicou. — Sexo? — Sexo, raiva e ambições pessoais. Gandhi encontra-se sob seu próprio completo controle. Isso dá origem a uma tremenda energia e a uma tremenda paixão. Na semana que passei no ashram, essa energia e essa paixão estavam levando o Mahatma a outra campanha de desobediência civil. Sir Stafford Cripps fora à Índia, fracassara e de lá se retirara; Churchill
fazia
oposição
à
independência
indiana.
Sempre
ansioso, como Krishna, por entrar em ação, o Mahatma, em junho de 1942, estava cogitando da realização de um movimento contra o governo, sob o lema “Saia da Índia”. A ação era seu antídoto para a frustração. Gandhi sustentava que a posição das democracias, na guerra, seria moralmente indefensável, se a Índia não conseguisse sua independência. “Vosso presidente”, disse-me ele, certa tarde, “fala a respeito das Quatro Liberdades. Inclui-se, nelas, a liberdade de ser livre?” Roosevelt havia feito pressão, com efeito, para que Churchill cedesse, e permitisse que Cripps conquistasse os indianos para o esforço de guerra, mas o primeiro-ministro do rei se manteve irredutível. Jawaharlal Nehru e Maulana Azad, presidente do Congresso, se opuseram, não obstante, à campanha de desobediência civil proposta por Gandhi. Nehru passou três dias discutindo com Gandhi, no ashram, enquanto eu me encontrava lá. “Ele combateu minha posição com uma paixão que não tenho palavras para descrever”, Gandhi informou, afetuosamente,
pelas colunas do Harijan. Os contatos pessoais com Nehru, explicou o Mahatma, “fazem-no sentir muito mais a miséria da iminente ruína da China e da Rússia... Nessa miséria, ele procurava esquecer sua antiga querela contra o imperialismo [britânico]. Mas, antes de deixar o ashram, a lógica dos fatos”, como Gandhi dizia, “o assoberbou”. É muito mais provável que tenha sido Gandhi a sobrepujá-lo. Em minha presença, Gandhi disse a Nehru que lançaria a campanha da desobediência civil com ou sem a sua adesão. Algo de profundo, na índole de Nehru, se rebela contra a rendição. A obediência automática, que a maior parte dos indianos davam a Gandhi, era recusada a Jawaharlal. Nehru adquiriu um sentimento de independência dizendo não ao mestre indiscutido; a resistência lhe proporcionava a ilusão de força. As explosões públicas de seu humor e as trovoadas de sua oratória de desafio eram, igualmente, reforços psicológicos para uma pessoa que disso precisava. A esse respeito, Nehru se fazia estranhamente parecido com a Índia, e dessemelhante de Gandhi. Nehru brincava de pujança. Uma personalidade fraca e uma fraca nação faziam os movimentos e os rumores de um forte. O forte Gandhi emprestava pujança ao fraco. Contudo, tendo sido sobrepujado pela premência de Gandhi, Nehru se transformou em advogado ainda mais impertérrito da desobediência civil do que o próprio Gandhi. O Mahatma era maleável. “Afigura-se-me”, argumentei, no decorrer de uma entrevista vespertina, “que os britânicos não podem, provavelmente, deixar a Índia de uma só vez. Isso significaria entregar a Índia de presente ao Japão. A Inglaterra nunca concordaria, nem os Estados Unidos aprovariam. Se pedirdes que os britânicos se retirem com armas e
bagagens, estareis pedindo simplesmente o impossível; estareis ladrando contra uma árvore. Não quereis dizer que eles devem também retirar seus exércitos, ou é isso o que pretendeis?” Durante pelo menos dois minutos, um pesado silêncio encheu a choupana. Gandhi ouvira-me; e agora estava ouvindo a si mesmo. “Tendes razão”, disse, por fim. “Não. A Inglaterra, os Estados Unidos e outros países podem conservar seus exércitos aqui e fazer uso da Índia como base de operações militares.” Mais tarde, no mesmo dia, Mashruwala me disse que discordava energicamente desse ponto de vista. Mas Gandhi estava pronto a transigir; e escreveu ao presidente Roosevelt que, “se os Aliados julgam necessário, podem conservar suas tropas, às suas próprias expensas, na Índia...” “Dizei a vosso presidente que desejo ser dissuadido”, disseme ele. Estava preparado para cancelar seus planos a respeito da desobediência civil e desejava discutir o assunto com o vice-rei. Antes de eu deixar o ashram, Desai me pediu que sugerisse ao vice-rei um encontro com Gandhi. Eu não tinha liberdade para revelar isso a Nehru, mas quando, em viagem para Deli, o encontrei em Bombaim, na residência de sua irmã, a sra. Krishna Hutheesing, perguntei-lhe se pensava que Gandhi deveria avistarse com o vice-rei. “Não. Para quê?”, exclamou Nehru. Estava, de novo, opondo resistência à rendição, ao passo que Gandhi ainda tinha esperança de que ele e Linlithgow pudessem encontrar o caminho para um entendimento. Intransigente quanto a princípios, Gandhi sempre transigia quanto a tempo e ritmo. Lorde Linlithgow se recusou a receber Gandhi.
25 Frustração e irritação Em maio, junho e julho de 1942, sentia-se uma sufocante falta de ar na Índia. Os agressores japoneses se encontravam nas redondezas, na Birmânia. A Inglaterra parecia excessivamente fraca, não podendo proteger a Índia contra uma invasão. Os políticos indianos de voz ativa mostravam-se exasperados por sua extrema impotência. Não podiam defender sua pátria nem explorar a emergência britânica para libertá-la. Nessa pesada atmosfera, a Comissão do Congresso Panindiano se reuniu em Bombaim, em 7 de agosto, a fim de discutir a
campanha
de
desobediência
civil
proposta
por
Gandhi.
Conciliatório, a despeito de reveses, o Mahatma disse a A. T. Steele, do Herald Tribune, de Nova York, que “se alguém pudesse convencer-me de que, em meio à guerra, o governo da GrãBretanha não pode declarar livre a Índia, sem comprometer seu esforço de guerra, eu gostaria de ouvir sua argumentação”. Steele perguntou se ele desistiria da desobediência civil, se fosse convencido disso. “Naturalmente”, respondeu Gandhi. “Minha queixa é de que essa boa gente fala a meu respeito, jura por mim, mas nunca condescende em falar comigo.” Logo depois da meia-noite de 8 de agosto, o Mahatma discursou perante os delegados. Uma resolução, aprovando a desobediência civil, havia sido aprovada. Mas Gandhi advertiu os delegados dizendo que “a luta verdadeira não começa neste
preciso momento”. Como em ocasiões semelhantes, em anos anteriores, ele recordou: “Vós apenas haveis colocado alguns poderes nas minhas mãos”. O Mahatma procuraria evitar aborrecimentos. “Meu primeiro ato será o de esperar pela manifestação de Sua Excelência, o vice-rei...” Duas ou três semanas se passariam. Que é que eles fariam, nesse ínterim? “Há a roca... Mas há algo mais que tendes de fazer... Cada um de vós deveria, a partir deste momento, considerar-se a si mesmo um homem livre ou uma mulher livre; devíeis até mesmo agir como se fôsseis livres, e não mais como criaturas sujeitas ao tacão do imperialismo.” Isso inverteu o conceito materialístico de que as condições é que determinam a psicologia. Não. Gandhi dizia que o homem pode refazer sua psicologia, e, por meio dela, sua condição. “O que pensais passais a ser”, afirmou ele, de uma feita. Obviamente, Gandhi, conhecendo o humor do país, percebeu a necessidade de ação. Obviamente, receava a ação violenta, e, para evitá-la, planejou outra tentativa de entendimento com o vice-rei. Obviamente, o vice-rei tinha instruções para não parlamentar com o rebelde seminu. Antes do despontar do sol, do dia 9, Gandhi, Nehru e algumas dezenas de outros membros do Congresso, de primeira plana, foram levados para a prisão. Gandhi, com a sra. Naidu, Mahadev Desai, Miss Slade e Pyarelal, foram alojados no palácio de Aga Khan, em Yeravda, perto de Poona. No dia seguinte, Kasturbai e o dr. Sushila Nayyar foram levados para lá. No momento em que as portas da prisão se fecharam atrás
de Gandhi, as comportas da violência se abriram. Postos policiais e edifícios públicos foram incendiados; trilhos de estradas de ferro, arrancados; britânicos,
linhas assaltados
telegráficas, e
mortos.
destruídas; Um
poderoso
funcionários movimento
subterrâneo veio à luz, liderado em muitos casos pelos socialistas, que constituíam, então, um segmento do Congresso. Em algumas áreas, a ordem de Sua Majestade não vigorava mais; governos indianos livres foram constituídos em grande número de cidades e distritos. As declarações britânicas lançaram à porta de Gandhi a culpa pelas perturbações da ordem. Numa carta escrita na prisão e dirigida ao vice-rei, Gandhi repeliu a acusação, e por sua vez acusou o governo de “distorções e de inverdades”. A resposta do vice-rei discordava disso. O fato de ele, o apóstolo da não-violência, ser classificado como autor de uma violência amplamente difusa e sangüinária irritava Gandhi, ao que parece, a ponto de o pôr fora de sua costumeira equanimidade de julgamento. Na véspera do ano-novo de 1942, tornou a escrever ao vice-rei. “Esta é uma carta muito pessoal... Não devo deixar que o velho ano expire sem desabafar aquilo que rouqueja em meu peito contra vós. Pensei que fôssemos amigos... Por que motivo, antes de adotar medidas drásticas, não me chamastes?... Sou perfeitamente capaz de verme, a mim mesmo, como os outros me vêem.” O governo “culpara homens inocentes”. Esse governo, não ele, o Mahatma, havia provocado os incêndios e os assassinatos, mas, visto que o governo insistia em acusá-lo falsamente, ele jejuaria; “crucificaria a carne através do jejum”.
Uma carta, pela volta do correio, da parte do vice-rei, estigmatizou
o
projetado
jejum,
considerando-o
“chantagem
política”. Não obstante, dois dias antes do fixado para o começo do jejum,
o
governo
ofereceu
liberdade
a
Gandhi
e
a
seus
companheiros. O Mahatma recusou. Não estava na iminência de
jejuar para conseguir soltura; o jejum “é, de minha parte, um apelo ao Altíssimo Tribunal, a fim de conseguir a justiça que não pude obter de vós”. Era inocente, e desejava purificar-se do reproche. O jejum de três semanas quase o matou. No décimo terceiro dia, Kasturbai ajoelhou-se diante de uma planta sagrada e rezou; havia-o dado já por perdido. O pulso do Mahatma era fraco; e sua pele, fria. Ele sobreviveu. Gandhi não encontrou repouso. Andou à procura do “bálsamo suavizante para minha dor”. Bombardeou a todos, funcionários ou não, na Índia e na Inglaterra, com a evidência de que não lhe cabia responsabilidade alguma pelas destruições e pelas mortes produzidas pelo movimento subterrâneo e pela sua repressão. Se ele fosse um homem livre, poderia ter evitado a violência, poderia ter jejuado contra seus colegas do Congresso envolvidos nas desordens. Nenhuma de suas cartas foi publicada na época. Gandhi não teve acesso à imprensa. Não pôde, de um lado, rebater publicamente os falsos argumentos apresentados pelo governo, nem, de outro lado, conter a violência de seus amigos. Um ressentimento tempestuoso imperou dentro do seu peito. Sofreu
tormentos.
Um
iogue
perfeito
teria
permanecido
indiferente, mas o Mahatma não se encontrava completamente desprendido. Para
completar
a
tragédia,
Mahadev
Desai,
amigo,
conselheiro e cronista de Gandhi, a quem dedicava mais estima do que a um filho, morreu, a seu lado, na prisão, de enfarte do miocárdio. E, no dia 22 de fevereiro de 1944, Kasturbai, com a cabeça pousada no regaço de seu marido, exalou seu último suspiro. O
Mahatma ficou desconsolado. Também nisso ele não conseguira atingir o desprendimento. Pranteou a morta. Daí por diante, no dia 22 de cada mês, até sua morte, Gandhi levou a efeito um serviço religioso por intenção de Kasturbai; nesse serviço, as preces eram cantadas, recitando-se, ademais, o texto inteiro do Gita. Seis semanas após o passamento de sua esposa, Gandhi sofreu um ataque de malária terçã benigna, que o mergulhou em delírio. Uma agitação, em prol de sua soltura, varreu a Índia. A morte era esperada de um momento para outro. O governo colocou uma guarda pesadamente armada ao redor da prisão. Às oito horas da manhã do dia 6 de maio de 1944, Gandhi e seus companheiros foram postos em liberdade. Aquela foi a última vez que esteve preso. Ao todo, o Mahatma passou dois mil e oitenta e nove dias em cárceres indianos (quase seis anos); e duzentos e quarenta e nove dias em prisões da África do Sul. Gandhi recuperou-se numa praia, perto de Bombaim, na agradável residência de um amigo. A dona da casa sugeriu-lhe que fosse ao cinema; ele nunca havia assistido a uma fita, fosse ela muda ou sonora. Gandhi concordou, com relutância. O filme Missão em Moscou, em exibição num subúrbio adjacente, foi levado àquela casa e ali exibido. Qual foi a apreciação do Mahatma? “Não gostei do filme”, declarou ele. Não lhe agradara a dança no salão de baile, com mulheres escassamente vestidas. O
Mahatma
passou
recuperando suas forças.
várias
semanas
repousando
e
26 Jinnah versus Gandhi Tendo regressado à arena política, em julho de 1944, Gandhi procurou obter uma audiência com o novo vice-rei, lorde Wavell, cavalheiro, general e poeta. Wavell recusou-se a vê-lo. Incitado por obra de Rajagopalachari — que, sob alguns aspectos, se fizera mais gandhiano do que o próprio Gandhi, na qualidade de conciliador —, o Mahatma então escreveu a Mohammed Ali Jinnah, presidente da Liga Muçulmana, sugerindo a conveniência de conversações. Um entendimento entre o Congresso e a Liga — pensava Gandhi — deveria impelir os ingleses da Índia a ceder o poder. “Irmão Jinnah”, foi a saudação dirigida por Gandhi ao chefe muçulmano; e o Mahatma assinou “Vosso irmão, Gandhi”. A resposta de Jinnah foi dirigida a “Caro senhor Gandhi”, e assinada “M.
A.
Jinnah”.
Na
correspondência
subseqüente,
Gandhi
começou suas cartas com a expressão “Caro Quaid-e-Azam”, ou Grande
Líder,
título então recentemente
adquirido.
Jinnah
continuou a escrever “Caro senhor Gandhi”. Suas conversações duraram dezessete dias e deram em nada. Em maio de 1945, a Alemanha se rendeu. No dia 26 de julho de
1945
o
Partido
Trabalhista,
na
Inglaterra,
derrotou
decisivamente os conservadores, e Clement R. Attlee substituiu Churchill, na qualidade de primeiro-ministro. No dia 14 de agosto de 1945 o Japão rendeu-se. O novo governo,
constituído
imediatamente,
que
pelo
Partido
procurava
“uma
Trabalhista, pronta
anunciou,
realização
do
autogoverno para a Índia”; a seguir, convocou Wavell para que fosse a Whitehall. Ao regresso do vice-rei a Deli, ele prometeu a
restauração da governança provincial pelos indianos, bem como a reunião de uma assembléia destinada a redigir uma Constituição federal. O mesmo vice-rei formaria um Conselho Executivo do Congresso Muçulmano. Era uma espécie de gabinete ministerial, sob supervisão britânica, na capital federal. Jinnah, contudo, só aceitaria a divisão da Índia. “Nós poderíamos liquidar o problema da Índia em dez minutos”, declarou ele, em Bombaim, em dezembro de 1945, “se o sr. Gandhi dissesse: ‘Concordo em que deva existir um Paquistão; concordo em que um quarto da Índia, composto de seis províncias — que são a de Sind, do Beluchistão, do Penjab, da província da Fronteira do Noroeste, de Bengala e do Assam —, com os seus limites atuais, passem a constituir o Estado do Paquistão’.” O sr. Gandhi, entretanto, nunca diria isso. Considerava a “vivissecção” da Índia uma “blasfêmia”. Em qualquer caso, a bissecção da Índia, nos termos propostos por Jinnah, era impossível e injusta. Jinnah queria constituir o Paquistão, para que os hindus não predominassem sobre os muçulmanos. Mas o Assam, que ele pedia para o Paquistão, possuía apenas 3 442 479 muçulmanos, contra 6 762 254 não-muçulmanos. Na vasta província do Penjab, os muçulmanos montavam a 16 217 242; os não-muçulmanos, a 12 201 577. Em Bengala, com cerca de sessenta milhões de habitantes, os muçulmanos representavam cinqüenta e dois por cento — ou pouco mais do que a metade. Somente nessas três províncias, se elas fossem incluídas no Paquistão, cinqüenta milhões de muçulmanos predominariam sobre quarenta e sete milhões de hindus e de siques. O Paquistão nasceria com um pesado problema de minoria ao redor de seu jovem pescoço. Ao mesmo tempo, o Paquistão proposto por Jinnah deixaria vinte milhões de muçulmanos, ou um quinto dos
muçulmanos da Índia, sob governança hindu. Ainda assim, Jinnah se mostrava surdo à lógica e cego à aritmética. Uma resolução irracional, mesmo quando entra em conflito com o interesse próprio, faz, não obstante, e com freqüência, a história. Mohammed Ali Jinnah era uma figura notável. Com mais de um metro e oitenta centímetros de altura, pesava uns sessenta quilos; e era um homem extremamente esguio. Seus cabelos, bastos, longos, grisalhos, penteados para trás, cobrindo-lhe a cabeça bem-modelada. O rosto bem-barbeado era fino; o nariz, longo e aquilino. Suas têmporas e suas faces constituíam depressões profundas que faziam com que os zigomas saltassem, como elevados planaltos horizontais. Quando não estava falando, esticava para fora o queixo, apertava os lábios e unia as sobrancelhas,
tudo
formando
uma
expressão
de
inviolável
seriedade. Jinnah quase nunca ria. Usava, com freqüência, roupas européias; contudo, em cerimônias públicas e privadas também envergava roupas muçulmanas: uma túnica cor de palha que lhe chegava até os joelhos, calças indianas, apertadas, que se agarravam a suas pernas ossudas, sapatos de couro, pretos — e um
monóculo
que
pendia
de
um
cordão
negro.
Era
“indubitavelmente”, escreveu George E. Jones, em The New York Times, de 5 de maio de 1946, “um dos homens mais bem-vestidos do império britânico”. O sr. Jones, que entrevistou Jinnah várias vezes, descreveu o líder muçulmano, em seu livro Tumult in India, como “um soberbo manipulador político, um Maquiavel, na acepção amoral da designação... Seus defeitos pessoais redundam numa reserva por vezes hostil, num grande convencimento e numa
visão
estreita...
Trata-se
de
homem
extremamente
desconfiado, que sente que sofreu injustiça muitas vezes na vida. Sua reprimida intensidade beira o psicopática. Retirado e isolado,
Jinnah é arrogante, a ponto de ser descortês...” Jinnah não era muçulmano devoto. Infringia o código islâmico bebendo álcool, comendo carne de porco e indo pouco à mesquita. Sabia mal o idioma urdu, e não falava árabe. Desligouse de sua comunidade religiosa por volta de seus quarenta anos — a fim de casar-se com uma moça parse, de dezoito anos de idade. Não obstante, o não-religioso Jinnah queria o estabelecimento de dois Estados religiosos, ao passo que o religioso Gandhi só se daria por satisfeito com um Estado secular e unido. Jinnah, primeiro filho de um rico mercador de peles, couros e
goma-árabica,
era
muçulmano
khoja.
Os
khojas
eram
muçulmanos recém-convertidos. Muitos khojas conservam o sistema conjunto de famílias e usam nomes hindus. “Jinnah” é um nome hindu. Nos séculos XVIII e XIX, os khojas tentaram regressar ao hinduísmo, mas foram repetidamente repelidos. Isso pode ter sido um fator inconsciente no ódio manifestado por Jinnah contra os hindus. Era, igualmente, uma questão pessoal. “Encontro-me neste movimento há trinta e cinco anos”, disse-me ele, na primeira das duas entrevistas que me concedeu, em sua opulenta villa de Bombaim, em junho de 1942. “Nehru trabalhava sob as minhas ordens, na Sociedade Pró-Autonomia. Gandhi trabalhou também sob minhas ordens. Eu desenvolvia grande atividade no Partido do Congresso... Meu objetivo era a união hindu-muçulmana... E tudo se manteve assim, até 1920, quando Gandhi foi conduzido à ribalta. As relações hindu-muçulmanas começaram a piorar... Tive a impressão clara de que a unidade estava irremediavelmente perdida — de que Gandhi não a desejava. Resolvi ficar na Inglaterra. Nem sequer fui para a Índia, a fim de vender as propriedades que tinha lá; vendi-as através de um corretor.
Permaneci na Inglaterra até 1935. Encetei a carreira de advogado, perante o Conselho Privado, e, contrariamente às minhas expectativas, obtive grande êxito.” Num artigo sobre Jinnah, no Economist, de Londres, de 17 de setembro de 1949, um articulista que, sem dúvida alguma, conhecia seu trabalho, assinalou que, enquanto Jinnah exercia sua profissão de advogado em Londres, alguém “lhe repetiu que Nehru — a quem Jinnah desprezava e odiava — dissera, em rodas íntimas,
que
‘Jinnah estava
liquidado’.
Enfurecido,
Jinnah
arrumou imediatamente as malas e embarcou de regresso à Índia, somente para ‘mostrar a Nehru’... Ao nariz de Cleópatra, como traço marcante na história, talvez se deva acrescentar o orgulho pessoal de Jinnah”. O amor-próprio ferido é um animal feroz. O ciúme, despertado por um mesquinho ponto de vista de um rival que está começando a subir a escada do sucesso, pode transformar-se em poderoso estímulo no sentido da conquista do poder, com o propósito de se fazer mal a esse rival e a outros. Razões desse calibre fizeram história. Mas a história deve proporcionar auxílio, oferecendo, ao enciumado, uma oportunidade; deve ajustar as próprias mãos, por baixo dos pés dele, para lhe imprimir impulso. Os acontecimentos históricos integraram, com efeito, um estribo, para ajudar Jinnah a subir à sela. Os muçulmanos das classes superiores e médias da Índia tinham, na verdade, medo da governança hindu; e, visto que o trabalho de Gandhi, nos decênios de 20 e 30, tornava inevitável a independência do país, num futuro previsível, esses muçulmanos se organizaram para lhe reduzir o alcance. Uma Índia livre, ao que eles acreditavam, seria uma Índia dominada pelos hindus. “Hinduraj” — é como designavam o caso. E é verdade que cem milhões de muçulmanos
passariam a ser sempre uma minoria, no seio de trezentos milhões de não-muçulmanos (hindus, siques, parses, cristãos e outros), se os sentimentos religiosos tivessem de dar forma à política. Os muçulmanos ricos, juntamente com a classe média maometana, que então começava a emergir, compondo-se de intelectuais e de comerciantes, presumiam que, numa Índia livre, onde houvesse maioria de hindus, estes conseguiriam a maior parte dos postos governamentais e gozariam de outras vantagens econômicas. Mostravam-se, pois, relutantes e não queriam assistir à saída dos britânicos que os haviam ajudado na consecução de cargos políticos e de adequada representação parlamentar. O projetado Paquistão, entretanto, daria aos muçulmanos toda a força política, todos os cargos governamentais e todos os controles sobre a indústria e o comércio. Ainda mais importante era a sociedade rural. Com exceção de Jinnah, os fundadores e os chefes da Liga Muçulmana eram donos de terras que temiam que uma Índia chefiada por Nehru lhes subdividisse as propriedades para dá-las aos cultivadores. O Partido do Congresso, da província da Fronteira do Noroeste, inteiramente muçulmana, havia, com efeito, conquistado poder político, organizando os camponeses. Mas um Paquistão teocrático — como esperavam as classes superiores — constituiria um veneno para o radicalismo social; o camponês, presumivelmente, seria persuadido a colocar a pátria acima da propriedade rural. O
Paquistão
era,
assim,
a
resposta
às
preces
dos
muçulmanos ricos e aos sonhos da classe média maometana. Um Estado religioso lhes ofereceria segurança social, bem como monopólio político e econômico.
Nenhuma pessoa, arrastada pela desalmada ambição de ganho dos donos de terras, ou pelas aspirações a funcionário dos instruídos desempregados, ou pelo obscurantismo dos mullahs (pregadores), poderia fundir todos esses impulsos numa cruzada
nacional. Isso exigia a atuação de alguém que se encontrasse acima de tais premências, assim como Hitler, pessoalmente, se havia encontrado acima das finalidades financeiras e negocistas da camada superior da burguesia alemã e dos barões rurais da Prússia Oriental. Jinnah era esse homem. Incorruptível, rico e desinteressado de benefícios econômicos para si próprio, foi o seu ódio furioso contra Gandhi e Nehru — que haviam trabalhado “sob suas ordens”, e que o haviam empurrado para fora da política —, juntamente com seu convencimento e sua “reprimida intensidade” que beirava o psicopático, que o fizera voltar à política, estando ele já na casa dos sessenta, com uma tenacidade que não conhecia qualquer princípio, exceto o do êxito a todo o custo. Entrevistar Jinnah era como ficar a ouvir um disco quebrado; não havia discussões, nem assunto; apenas infinitas repetições de frases feitas tais como: Os hindus e os muçulmanos são nações separadas; Gandhi quer o Hinduraj; O Paquistão deve ser criado. Esse fanatismo unilateral, essa paixão irracional, esse ódio ilimitado — tudo reunido numa pessoa não-suspeita de motivos egoísticos — exerciam um fascínio enorme sobre o espírito de pessoas cuja vida dura e cujas frustrações as tornavam presa fácil de objetivos simples, carregados de emoção: Os muçulmanos devem possuir seu próprio país; Os muçulmanos governarão os hindus e os siques, em vez de serem governados; Que se retirem os hindus mercadores, industriais, lavradores e funcionários públicos. As vítimas de Jinnah ignoravam, exatamente como ele, a matemática das minorias e as considerações de ordem prática. Jinnah dava-lhes um estandarte intoxicante: Paquistão. Ele pensava exclusivamente em conseguir o Paquistão; não pensava nunca nos problemas do Paquistão. Com efeito, durante os primeiros poucos anos depois de haver esboçado a idéia, recusou-
se até a indicar os próprios limites territoriais do Paquistão. Quanto menos concreto o plano, tanto mais fascinante ele se fazia e tanto menos sensível se tornava à crítica. A situação era um paraíso de fanático. Jinnah se havia transformado no maior problema de Gandhi.
Parte terceira
Vit贸ria e trag茅dia
27 Procurando o divino no homem Gandhi resolvera que desejava viver até a idade de cento e vinte e cinco anos; naturalmente não como “um cadáver animado, como um fardo para os parentes e a sociedade”, e sim fisicamente, em forma e ativo. Toda pessoa pode atingir essa idade madura — afirmava ele — por meio da cura natural: nada de remédios; apenas a dieta correta, as aplicações de compressas de lama, os banhos, o sono regular, as lavagens internas quando necessárias, nada de álcool, nada de estimulantes — desde que possuísse também a verdadeira chave da longevidade: “o desprendimento do espírito”. O “néctar” que sustenta a vida é a prestação de serviço, é a renúncia aos proveitos. Isso não deixa “espaço para os aborrecimentos nem para a impaciência”. O desapego de si mesmo conserva a vida, ao passo que o amor do “eu” a mata. De certo modo, a ânsia de Gandhi no sentido de viver durante mais meio século representava um convencimento, ao mesmo tempo que um reflexo de sua fé e de seu realismo. O trabalho que restava desenvolver poderia ser feito, mas não no tempo normal de duração do homem mortal. Quando visitei o Mahatma Gandhi de novo, em fins de junho de 1946, ele se encontrava em excelente forma. Assim que cheguei a Nova Deli, dirigi-me de táxi para o cortiço de intocáveis em que ele vivia. A reunião devocional da noite se encontrava em curso; postei-me ao pé dos três degraus de madeira por onde Gandhi
desceria da plataforma de preces. — Ah! Aí estais vós — disse ele. — Bem, não melhorei muito minha aparência nestes últimos quatro anos. — Eu não ousaria divergir de vós — respondi. Ele atirou a cabeça para trás e riu. Tomando-me pelo braço, caminhou na direção de sua choupana de pedra; perguntou-me sobre minha saúde, minha viagem, minha família; depois, pediume que fizesse a caminhada com ele, às cinco e meia da manhã seguinte. Nas três semanas que se seguiram, permaneci em sua companhia. Suas mãos tremiam levemente, quando ele comia; e ele já não caminhava tão agilmente como o fazia quatro anos antes; nem sua voz soava tão firme como anteriormente, mas o Mahatma mostrava-se igualmente ligeiro em seus movimentos e regular em seus exercícios. Depois do jantar, certo dia, na clínica de cura natural do dr. Dinshah Mehta, em Poona, convidou-me a caminhar a seu lado. — Por certo, não ireis caminhar sob a chuva — protestei levemente. — Vinde comigo, ancião — disse ele, e estendeu-me um braço. Sua tendência para a piada e o riso continuava intacta. Não obstante, havia sombras a escurecer-lhe a vida. — Não convenci a Índia — disse-me. — Há violência a nosso redor. Sou uma bala disparada. Ainda pensava que poderia ganhar a batalha travada com seu próprio povo, e desejava ter mais anos de saúde, para fazer isso, mas seu otimismo, tão intrínseco como seus músculos e seus ossos, agora se apresentava empanado por dúvidas. De um determinado ponto de vista, entretanto — o mais importante —, ele prosseguia sendo o mesmo: era o carma iogue, o homem sempre ativo, sempre em movimento, sempre a caminho
de sua meta. O mínimo que ele costumava fazer era o máximo possível.
Trabalhava
incessantemente
com
as
numerosas
organizações que havia instituído para o bem-estar dos harijans, tratando de educação, de fiação, do reerguimento das aldeias; agora, estava fundando uma instituição de cura natural. Escrevia vários artigos, todas as semanas, para seus jornais em língua inglesa e em língua guzerate; respondia a dúzias de cartas, todos os dias; e coletava dinheiro das massas, nos comícios, e também de particulares, principalmente de amigos ricos. Foi a sua maneira de tomar dinheiro dos ricos que deu margem a que a sra. Naidu proferisse seu famoso ditério: “Custa um mundo de dinheiro conservar Gandhi pobre”. Um milionário, dono de fábricas de tecidos, G. D. Birla, sustentara o ashram, com seu hospital e sua leiteria, a partir de 1935, ao preço de dezessete mil dólares norteamericanos por ano. Além de suas múltiplas atividades para o bem-estar social, Gandhi também se dedicava ao Partido do Congresso. Embora o homem forte do Congresso fosse Sardar Vallabhbhai Patel, e embora seu estadista (concordasse Gandhi com sua política, ou deixasse de fazê-lo, como freqüentemente acontecia) fosse C. Rajagopalachari, mais conhecido por muitos pelo nome de Rajaji, o certo é que Jawaharlal Nehru já havia sido designado para a categoria de sucessor político do Mahatma. Nehru não era cem por cento gandhiano e não se equiparava a Gandhi, mas, entre Gandhi e Nehru, existia uma relação afetuosa de pai para filho que nenhum desentendimento conseguia arrefecer. “Alguém sugeriu que o pândit Jawaharlal e eu nos havíamos afastado um do outro”, declarou o Mahatma, numa reunião executiva do Congresso, em 15 de janeiro de 1942. “Será necessário muito mais do que simples diferenças de opinião para
nos separar. Tivemos divergências a partir do momento em que passamos a trabalhar juntos; e, contudo, venho dizendo, há já vários anos, e digo agora, que não Rajaji, e sim Jawaharlal será meu sucessor. Diz ele que não compreende minha língua e que ele fala uma língua que é estrangeira para mim. Isso pode ou não ser verdade. Mas o idioma não é barreira que se oponha à união de corações. E disso eu tenho certeza: quando eu me houver ido, ele falará minha língua.” “Nehru tem mentalidade de orador”, disse-me Gandhi, em 1946. Patel orgulhava-se de ser o homem que dizia sempre amém a Gandhi. Nehru era o homem que ora dizia e ora não dizia amém a Gandhi. Daí a esperança de Gandhi de que ele, um dia, falasse a língua do coração do Mahatma. À medida que a independência nacional da Índia se aproximava, as atividades políticas se faziam mais intensas, e Gandhi se mantinha em seu epicentro, Nehru, Patel, Rajaji e outros
líderes
eram
visitantes
diários
naquele
cortiço
de
intocáveis. Todos iam para lá, a fim de conseguir a aprovação sem a qual não se sentiam nunca seguros quanto à aceitação pública de seus planos e de suas propostas; iam, igualmente, em busca da orientação proporcionada por Gandhi. Todos precisavam do seu “instinto”, ou da sua intuição — vocábulo vago que, não obstante, se tornava o problema central nas negociações para a libertação da Índia. Uma impressionante Missão Ministerial Britânica chegou à Índia, em 23 de março de 1946, a fim de estabelecer os termos da libertação nacional do país; eram seus membros: lorde PethickLawrence, secretário de Estado para a Índia; Sir Stafford Cripps, presidente da Câmara do Comércio; e Albert V. Alexander, primeiro lorde do almirantado; essas personalidades solicitaram
sugestões aos líderes indianos sobre os ajustes requeridos para se substituir a governança britânica pela liberdade indiana. Mas os líderes do Congresso e da Liga Muçulmana não conseguiam entrar em acordo sobre aquilo que desejavam; e a missão ministerial, em vista disso, redigiu seu próprio plano, publicando-o em 16 de maio de 1946. Depois de minucioso estudo, Gandhi declarou sua “convicção... de que este é o melhor documento que o governo britânico poderia ter apresentado, naquelas circunstâncias.... O propósito único da Inglaterra”, afirmou ele, “é dar por finda a governança britânica tão cedo quanto possível”. A publicação da missão ministerial referira-se a uma “volumosa evidência” de um “desejo quase universal, fora do círculo dos que apóiam a Liga Muçulmana, de unidade da Índia”. Por outro lado, revelara a existência de “uma muito genuína e aguda ansiedade”, no seio dos muçulmanos, “com receio de se encontrarem submetidos a uma perpétua governança de maioria hindu”. A missão, em face de tais fatos, examinara “bem de perto, e imparcialmente, a possibilidade da divisão da Índia”, mas votou contra ela. As “duas metades do proposto Estado do Paquistão”, afirmara a publicação da missão ministerial, “estão separadas por uma distância de cerca de mil e cem quilômetros, e as comunicações entre as duas, tanto em tempo de guerra, como em tempo
de
paz,
ficariam
dependentes
da
boa
vontade
do
Hindustão”. Na metade ocidental do Paquistão — observara aquela publicação — a minoria não-muçulmana constituiria trinta e sete por cento de toda a população; e, na metade oriental, quarenta e oito por cento; enquanto isso, vinte milhões de muçulmanos ficariam
fora
do
Paquistão,
na
qualidade
de
minoria,
no
Hindustão. “Esses algarismos mostram”, afirmava o documento
britânico, “que a instituição de um Estado soberano separado, denominado Paquistão, de acordo com os planos admitidos pela Liga Muçulmana, não resolveria o problema da minoria comunal”, que era o propósito presumível da referida instituição. Os três ministros do gabinete britânico estudaram então a conveniência da instituição de um Paquistão menor, fora das áreas hindu e sique, mas “um tal Paquistão”, disseram eles, “é considerado,
pela
Liga
Muçulmana,
de
todo
impraticável”.
(Entretanto, esse é o Paquistão que agora existe.) O Paquistão menor — escreveram os ministros — exigiria a divisão do Assam, de Bengala e do Penjab — medida que, em sua opinião, “seria contrária aos desejos de grande percentagem da população das mencionadas
províncias.
“Bengala
e
Penjab”,
continuava
o
documento, “têm cada qual seu idioma comum, afora uma longa história própria e uma tradição. Ademais, qualquer divisão do Penjab
dividiria,
necessariamente,
os
siques,
deixando
substanciais grupos de população sique de ambos os lados da linha de fronteira.” Por essas razões, a missão ministerial recomendara ao governo britânico que não dividisse a Índia. Recomendara-lhe, ao invés: 1) uma Índia unida, abarcando a Índia britânica e os Estados nativos dos marajás e dos rajás, com um governo federal responsável
pela
defesa,
pelas
relações
exteriores
e
pelas
comunicações; 2) um parlamento federal que não poderia aprovar qualquer medida de maior alcance, de caráter racial ou religioso, a menos que a seu favor votasse a maioria dos deputados hindus e a maioria dos deputados muçulmanos; e 3) governos provinciais com
amplos
poderes.
O
governo
federal,
controlado
por
salvaguardas adequadas a favor das minorias, se limitaria a umas poucas e inevitáveis tarefas, enquanto tudo o mais ficaria a cargo
dos governos provinciais, que, nas zonas de maioria muçulmana, se comporiam principalmente de maometanos. A Assembléia Constituinte, convocada para redigir uma Constituição baseada nesses princípios, reunir-se-ia dentro de pouco tempo, em Nova Deli; e depois se subdividiria em três seções. A seção A compreenderia delegados do grupo de províncias da Índia central, de maioria hindu; a seção B, os delegados das províncias da Índia ocidental, preponderantemente muçulmanas, abarcando a província da Fronteira do Noroeste, a de Sind e a do Penjab; a seção C, os delegados de Bengala e do Assam. O objetivo dessas três assembléias constituintes secionais seria o de organizar as constituições para as três subfederações em que a Índia estava para ser dividida. Foi de encontro a esse recife que o plano da Missão Ministerial Britânica se espatifou. O instinto de Gandhi — como ele
o
denominava
—
rebelou-se
à
idéia
das
assembléias
constituintes secionais. Era possível — argumentou o Mahatma — que a província da Fronteira do Noroeste, que sempre fora próCongresso, preferisse fazer parte da seção A; por que razão deveria ela ser forçada a pertencer à seção B? O Assam era, em sua maior parte, hindu; por que motivo deveria juntar-se a Bengala, que possuía
pequena
maioria
muçulmana?
Ele
tomou
em
consideração essa coação. Não — responderam os britânicos —, essas
áreas
tomariam
parte
apenas
nas
assembléias
que
redigissem Constituições; e se, mais tarde, não concordassem com elas, poderiam retirar-se de seu grupo e unir-se a outro. Assim, o Assam poderia juntar-se à seção A, hindu. Gandhi receou que, depois de redigida a Constituição, seria muito tarde; que a província do Assam, por exemplo, ou a província da Fronteira do Noroeste ficassem vinculadas entre si, por qualquer liame legal, e
não pudessem mais retirar-se. O fato é que Gandhi, pelo menos dessa vez em sua vida, e num momento dos mais críticos, se tornou vítima de suas próprias suspeitas. Havia dado aos britânicos um certificado de boa vontade. Por outro lado, alimentava dúvidas: não seriam aquelas seções e aqueles grupos uma cilada, destinada a fazer deslizar, por ali, pela porta traseira, um quarto do Paquistão, ou uma metade do Paquistão? A situação não se tornou mais desafogada quando Jinnah, depois de denunciar a missão ministerial, por fazer uso de “argumentos
que
eram
lugares-comuns,
e
já
haviam
sido
inutilizados”, contra o Paquistão, ainda assim, no dia 4 de junho aceitou o plano dessa missão. Isso pode ter sido uma política hábil e um feliz golpe psicológico, porquanto qualquer coisa que a Liga Muçulmana aprovasse era ipso facto considerada errada aos olhos de muitos membros do Congresso. O Congresso debateu o problema durante semanas. As suspeitas os perturbavam. Nehru, sentado, de pernas cruzadas, na minha cama, na clínica de cura natural do dr. Mehta, ponderando sobre as intenções dos britânicos, disse: “Não parece que eles se estejam preparando para deixar a Índia”. O seu companheiro constante, sr. Krishna Menon, mais tarde alto comissário em Londres e delegado indiano junto às Nações Unidas, compartilhava e alimentava esse ceticismo, aliás amplamente difundido entre os membros do Congresso. Ao longo de vários meses, na Índia, durante esse período, quase não encontrei nacionalista indiano que conseguisse persuadir-se de que a Inglaterra se retiraria com autoridade. Isso se afigurava irreal, coisa excessivamente boa e impossível de ser verdadeira, extremamente desnecessária. Alguns membros do Congresso,
principalmente entre os socialistas, que haviam tido seu batismo de violência em 1942 e 1943, pensavam que a independência só seria sólida e permanente se eles lutassem por ela e expulsassem os britânicos. Como sempre, o clima político do país pairava como um banco de bruma também sobre os círculos fechados dos políticos, influenciando suas decisões. As suspeitas de Gandhi espessavam ainda mais a bruma. Contudo, ele não permitia que o Congresso repelisse o plano britânico; ao contrário, insistia em sua adoção. Disse ele que, uma vez que sua razão não lhe amparava o instinto, suas suspeitas talvez fossem injustificadas. De
conformidade
com isso,
o
Congresso concordou em participar da Assembléia Constituinte. Mas as dúvidas do Mahatma sobreviveram em outros espíritos; no começo de julho, Nehru indicou, em animada entrevista concedida à imprensa, em Bombaim, que o Congresso não faria parte de assembléias secionais, destinadas a redigir constituições para as três subfederações. Isso matou o plano da missão britânica, de 16 de maio de 1946. Jinnah, agora, estava livre para cancelar sua aceitação do esquema. Em retrospecto, afigura-se que a proposta britânica era a melhor que Gandhi, Nehru e o Congresso poderiam haver esperado; muito melhor até do que a divisão da Índia, que de fato ocorreu. Por certo, argumentar-se-á que o plano não funcionaria, ou que, de qualquer forma, conduziria à constituição de um Paquistão uno. Em política, porém, nunca é possível provar que alguma coisa que não aconteceu pudesse ter acontecido. A questão é simplesmente que o plano britânico, de 16 de maio de 1946 — que poderia ter sido emendado e aperfeiçoado —, continha os elementos para a constituição de uma Índia unida, com um governo federal, e, portanto, poderia ter impedido o horror
da divisão cirúrgica realizada posteriormente. Não se tem certeza alguma sobre se Jinnah permitiria ou não que um governo federal, de uma Índia unida, funcionasse. O vice-rei Wavell estivera procurando criar um governo federal provisório, representando o Congresso e a Liga Muçulmana. Jinnah concordou, sob a condição, porém, de que ele nomeasse todos os muçulmanos que tivessem de participar do gabinete. O Congresso protestou, porque não se havia considerado a si mesmo puramente hindu nem religioso; tinha membros muçulmanos, e alguns deles, como o presidente Azad, sem dúvida preeminentes. Reconhecer a Jinnah o direito exclusivo de selecionar os muçulmanos do governo equivaleria a aceitar a proposta segundo a qual a Liga Muçulmana falaria por todos os muçulmanos da Índia, e que a Índia, por conseguinte, deveria ser dividida politicamente, porque já se encontrava dividida religiosamente. Defrontado por essa poderosa objeção do Congresso, Wavell cedeu, pedindo a ambas as organizações que apresentassem suas listas de candidatos a membros do governo; ficava entendido, entretanto, que nenhum dos lados poderia vetar os nomeados pelo outro. À vista disso, Jinnah declinou de participar do governo. Em 12 de agosto de 1946, Wavell autorizou Nehru a formar o governo. Nehru foi avistar-se com Jinnah, oferecendo-lhe uma escolha de cadeiras no gabinete; Gandhi disse que Jinnah poderia ser até primeiro-ministro, ou ministro da Defesa. Jinnah rejeitou o oferecimento. Nehru, então, nomeou um gabinete composto de seis membros do Congresso; destes, cinco eram hindus de casta e um harijan, além de dois muçulmanos, um sique, um cristão e um parse. Jinnah respondeu declarando ser o dia 16 de agosto o “Dia da Ação Direta”. Um tumulto, que durou quatro dias, ocorreu em
Calcutá; desse tumulto, ao que lorde Pethick-Lawrence afirmou, as conseqüências foram “cerca de cinco mil mortos e quinze mil feridos”. Vários dias após, um dos muçulmanos nomeados por Nehru para o gabinete foi colhido numa emboscada, em lugar solitário, em Simla, e apunhalado sete vezes. “Obviamente político”, foi como as autoridades britânicas qualificaram o assalto. Nehru tornou-se primeiro-ministro da Índia, no dia 2 de setembro. Jinnah proclamou aquele como um dia de lamentação e deu aos muçulmanos instruções para que hasteassem bandeiras negras; no dia seguinte, em Bombaim, ele disse: “Os soviéticos podem ter interesse maior do que o de simples espectadores nos negócios da Índia, e, ademais, não se encontram muito longe da Índia”. Jinnah devia sentir-se realmente enfurecido e pronto a utilizar-se de qualquer meio para conseguir seus fins. As bandeiras negras dos muçulmanos foram o mesmo que bandeiras vermelhas para os hindus. Tiroteios e apunhalamentos se verificaram em Bombaim, espalhando-se pelo Penjab, por Bihar e pela província de Bengala. A Liga Muçulmana anunciou que boicotaria a Assembléia Constituinte, que concordara em apoiar. Gandhi afirmou que o país estava se aproximando de uma guerra civil. Alarmado, Wavell redobrou seus esforços, no sentido de introduzir os jinnahistas no governo de Nehru. Jinnah, por fim, concordou
e
nomeou
cinco
ministros,
dos
quais
quatro
muçulmanos e um intocável contrário a Gandhi. Jinnah sempre havia sustentado que a Liga Muçulmana representava todos os muçulmanos, e exclusivamente os muçulmanos. Por que razão, então, havia ele escolhido um hindu, um intocável, a não ser para causar aborrecimentos ao Congresso e aos hindus de casta? Esse,
com efeito, foi o propósito de Jinnah; e Liaquat Ali Khan, o mais conspícuo dos membros da Liga que faziam parte do governo, declarou, francamente, que os muçulmanos não reconheciam o governo de Nehru como o governo da Índia; não se sentiam, portanto, na obrigação de cooperar com ele. E não cooperaram. Juntaram-se para o boicotar. O governo passou a ser uma casa dividida — pela religião. A maior parte dos membros do Congresso, incluídos no gabinete, e muitos de seus assistentes, rumaram para a choupana de Gandhi, em pleno cortiço, para pedir conselho; alguns iam lá diariamente. Gandhi era o “superprimeiro-ministro”. O Mahatma, entretanto, conservava suas vistas na questão central, que eram as relações hindu-muçulmanas. “Eu
teria
preferido
que
os
hindus
morressem
sem
represálias”, disse, referindo-se aos assassinatos contínuos. A envenenada situação política não conseguiu desviar-lhe a atenção de outros problemas fundamentais; Gandhi afirmou que, quando havia um surto epidêmico, os harijans “são surrados e não podem tirar água dos poços”; insistiu na rejeição da Lei do Sal, suplicando ao mesmo tempo, ao povo, que fosse paciente com os novos ministros, que se debatiam sob responsabilidades a que não estavam acostumados. Escreveu sobre a lepra, bem como sobre a necessidade de preces coletivas. (De uma feita, fizera massagem num leproso, que aparecera no ashram pedindo auxílio.) O
“fogo
enfurecido”
do
antagonismo
entre
hindus
e
muçulmanos o atormentava. “Por que motivo não posso sofrer essa angústia com imperturbada calma de espírito?”, perguntou. “Receio que não tenha o desprendimento requerido para viver cento e vinte e cinco
anos.”
Ainda
assim,
sua
fé
nos
seres
humanos
persistia,
encontrando revigorante apoio até mesmo em pequenas migalhas. “Em Bombaim”, escreveu em sua revista, “um hindu deu abrigo a
um amigo muçulmano. Isso enfureceu a turba hindu, que pediu a cabeça do muçulmano. O hindu se recusou a entregar o amigo. Em conseqüência, os dois tombaram, literalmente, num abraço fatal... Não é esse o primeiro exemplo de cavalheirismo, no meio do endoidecimento. Durante o recente banho de sangue ocorrido em Calcutá, registraram-se episódios de muçulmanos que, com perigo para suas vidas, deram abrigo a seus amigos hindus, e vice-versa.” Gandhi sentiu-se encorajado. “A humanidade”, afirmou, “morreria, se não houvesse exibição, em qualquer tempo, em qualquer lugar, daquilo que há de divino na criatura humana.” Desse ponto em diante, até sua morte, Gandhi andou à procura do divino que admitia existir no homem e da parte sadia que devia haver na Índia. Chegaram a ele relatos de violências nas remotas regiões de Noakhali e de Tippera, em Bengala oriental, onde muçulmanos matavam e convertiam, à força, hindus e raptavam suas mulheres. O fato de os tumultos se alastrarem pelas aldeias causava perturbação especial ao espírito de Gandhi; e ele resolveu ir a Noakhali. Os amigos procuraram dissuadi-lo; disseram-lhe que sua saúde era precária e que os membros do Congresso, pertencentes ao governo, precisavam dele em Nova Deli. “Tudo o que sei é que não estarei em paz comigo mesmo, a não ser que vá para lá”, respondeu. Pediu ao povo que não comparecesse à estação de estrada de ferro para receber sua bênção; não se encontrava com o espírito preparado para dá-la. O povo compareceu em hordas. A caminho de
Bengala,
imensas
multidões
assediaram
as
estações
ferroviárias, invadindo completamente os trilhos. Os populares subiam
aos
telhados
das
estações
terminais;
quebravam
venezianas e vidraças e criavam uma algazarra de romper os tímpanos. De uma feita, por várias vezes o maquinista deu o sinal de partida do trem, mas alguém puxou repetidamente o freio de emergência, e o trem parou, com um solavanco. Numa estação, as autoridades ferroviárias voltaram as mangueiras de incêndio contra o povo que se encontrava entre os trilhos, e inundaram o compartimento em que Gandhi viajava. O Mahatma chegou a Calcutá com um atraso de cinco horas, fatigado pelo barulho — e triste. Trinta e duas pessoas haviam sido mortas em conflitos de índole religiosa, em Calcutá, poucos dias antes da chegada do Mahatma. Em companhia do muçulmano H. S. Suhrawardy, primeiro-ministro de Bengala, Gandhi percorreu as áreas afetadas da cidade; rodou, de automóvel, através de ruas desertas, onde o lixo alcançava quase um metro, e onde se viam casas assaltadas e lojas fechadas. Gandhi declarou sentir-se assoberbado “por uma sensação depressiva, em face da loucura multitudinária que pode pôr o homem abaixo de um selvagem”. Contudo, sua determinação persistiu. Permaneceria em Calcutá e em Noakhali. “Não deixarei Bengala”, disse ele, numa reunião de preces, “enquanto o último dos provocadores do tumulto não houver sido expulso. Posso permanecer por aqui durante um ano ou mais. Se necessário, morrerei aqui. Mas não aceitarei o fracasso. Se o único efeito de minha presença, em carne e osso, é o de fazer com que o povo olhe para mim, numa esperança e numa expectativa que nada posso fazer para satisfazer, então será muito melhor que os meus olhos se fechem na morte.”
28 Na véspera Enquanto se preparava para ir a Noakhali, para aquilo que deveria tornar-se um dos capítulos mais desconcertantes de toda a sua desconcertante vida, chegaram a Gandhi, em Calcutá, notícias relativas a negros acontecimentos ocorridos na vizinha província de Bihar, onde havia uma população composta de trinta e um milhões de hindus e de cinco milhões de muçulmanos. Os ataques de muçulmanos contra os hindus em Noakhali haviam inflamado os hindus de Bihar. O dia 25 de outubro foi declarado “Dia de Noakhali”. Os discursos proferidos por membros do Congresso (que seriam talvez capazes de se atirar de borco, ao chão, e beijar os dedos dos pés do Mahatma) e as manchetes sensacionalistas dos jornais, exagerando o número das vítimas hindus, nos conflitos de Noakhali, lançaram os hindus em plena histeria; milhares deles desfilaram pelas ruas e pelas estradas rurais, clamando “sangue por sangue”. Na semana que se seguiu, ao que informou o correspondente do Times, de Londres, que se encontrava em Deli, o número de pessoas que os funcionários reconheceram como mortas nos tumultos, em Bihar, foi de quatro mil quinhentos e oitenta. Gandhi, mais tarde, elevou o total a mais de dez mil, na maioria muçulmanos. Em face das paixões facilmente
inflamáveis,
bem
como
das
condições
de
superpovoamento da Índia, os massacres ocorriam, em regra, em grande escala. Abatido pelo sofrimento, Gandhi dirigiu um manifesto aos habitantes de Bihar. “As iniqüidades dos hindus de Bihar”, disse ele, “justificam a afrontosa afirmativa de Quaid-e-Azam Jinnah,
segundo a qual o Congresso é uma organização hindu... Façamos com que não sejam os habitantes de Bihar, que tanto conseguiram no sentido de elevar o prestígio do Congresso, os primeiros a cavar-lhe
a
sepultura.”
Como
penitência
pelos
assassínios
ocorridos em Bihar, Gandhi anunciou que se manteria “com a dieta mais reduzida possível”, e que isso poderia transformar-se em “jejum até a morte, se os habitantes de Bihar que erraram não virarem outra página”. Nessa conjuntura, o primeiro-ministro Nehru, Patel, Liaquat Ali Khan e Abdur Rab Nishtar — sendo estes dois últimos membros do gabinete de Nehru — voaram para Bihar. Enfurecido pelo que viu e ouviu ali, Nehru ameaçou bombardear Bihar, por via aérea, se as matanças não cessassem. “Mas essa é a maneira britânica”, comentou Gandhi. Depois de algum tempo, Bihar tranqüilizou-se, e Calcutá voltou à calma; por isso, Gandhi prosseguiu viagem para Noakhali, onde os hindus aterrorizados fugiam, em presença da violência da maioria muçulmana. Noakhali, no delta inundado de água dos rios Ganges e Brahmaputra, é uma das áreas menos acessíveis da Índia; algumas aldeias só podem ser atingidas por meio de barcos a remo. De Calcutá a Noakhali, ambas as cidades pertencentes à mesma província de Bengala, Phillips Talbot, estudante norteamericano em missão de pesquisas, viajou quatro dias, de trem, de vapor, de bicicleta, de balsa movida a vara que os próprios barqueiros empunhavam, e a pé, a fim de chegar à aldeia em que Gandhi se encontrava. Gandhi costumava levantar-se às quatro horas da manhã; fazia uma caminhada de uns cinco ou seis quilômetros, por vezes descalço; ia a uma aldeia vizinha; lá permanecia
um,
dois
ou
três
dias;
conversava
e
rezava
incessantemente, em companhia de seus habitantes; de lá rumava
para o povoado rural seguinte. Abrigava-se nas choupanas dos camponeses que concordavam em proporcionar-lhe alojamento; alimentava-se de frutas e de verduras, a que acrescentava leite de cabra, quando havia. Essa foi sua maneira de viver, de 7 de novembro de 1946 a 2 de março de 1947; tinha acabado de ver passar o seu septuagésimo sétimo aniversário. Naqueles quatro meses, viveu em quarenta e nove aldeias. As
caminhadas
eram
particularmente
difíceis.
Gandhi
começou a sofrer de frieiras. Com freqüência, elementos hostis espalhavam lixo e ramos espinhosos por onde ele passava, entre aldeia e aldeia. Gandhi não se queixava dos que assim procediam; dizia que haviam sido induzidos ao mal pelos seus políticos. Em certo número de lugares, a viagem, de um lugar para outro, implicava a passagem por pontes que se compunham apenas de quatro ou cinco troncos de bambu, de cerca de uns dez centímetros de diâmetro, unidos entre si por amarras de juta, ou de videira, e apoiados em estacas também de bambu, da altura de três a cinco metros, fincadas em chão pantanoso. Essas estruturas
rudimentares,
claudicantes,
tinham
às
vezes
balaustradas de um lado só; outras vezes, não. De uma feita, o pé de Gandhi escorregou e ele quase caiu no chão lamacento, bem embaixo; mas conseguiu mal e mal recuperar o equilíbrio. A fim de adquirir mais firmeza nos pés e de dissipar o medo, nas passagens por aquelas pontes amarradas com corda, o Mahatma exercitavase caminhando por pontes mais fáceis, montadas a poucos centímetros do chão. Gandhi aceitou deliberadamente o desafio físico e espiritual representado pelas condições daquelas paragens remotas e dos seus dois milhões e meio de habitantes, dos quais oitenta por cento eram muçulmanos. Mês após mês, ele persistiu. “Minha
presente missão”, escreveu de Noakhali, em 5 de dezembro, “é a mais difícil e complicada de minha vida. Estou preparado para qualquer eventualidade. O faça ou morra tem de ser posto à prova aqui. O faça, aqui, significa que os hindus e os muçulmanos devem aprender a viver juntos, em paz e amizade. Do contrário, eu morrerei na tentativa.” O Mahatma dispersou sua comitiva habitual; Pyarelal, sua irmã, o dr. Sushila Nayyar, Sucheta Kripalani, uma bengali, Kanu Gandhi, a esposa de Kanu, Abha, e outras pessoas, cada qual foi enviada a uma aldeia diferente, com freqüência isolada e hostil, com ordem de lá permanecer. Quando Pyarelal caiu de cama, com malária, e remeteu um telegrama a Gandhi, pedindo que sua irmã tivesse permissão para ir ter com ele e assisti-lo, o Mahatma respondeu: “Se meus emissários caírem doentes, devem restabelecer-se ou morrer lá... Na prática, isso significa que eles devem dar-se por satisfeitos com remédios caseiros ou com a terapia dos cinco elementos da natureza. O dr. Sushila tem sua própria aldeia para cuidar...” Gandhi submetia-se, ele próprio, à mesma disciplina, inflexível e cruel. Tinha em sua companhia apenas o professor de antropologia, Nirmal Kumar Bose, um antigo companheiro de ashram, que lhe servia de intérprete bengali; tinha, igualmente, Parasuram, seu estenógrafo permanente, para cuidar da enorme correspondência, parte da qual se realizava com ministros do gabinete, que seguiam suas diretrizes; e Miss Manu Gandhi. O Mahatma ajudava-a a preparar as refeições e a limpar a choupana; por vezes, fazia automassagem. De
quando
em
quando,
Gandhi
parecia
sentir-se
desesperado. O professor Bose, de uma feita, surpreendeu Gandhi
murmurando, de si para si: “Que é que eu deveria fazer? Que é que eu deveria fazer?” De acordo com a informação do governo muçulmano de Bengala, duzentas e dezesseis pessoas haviam sido mortas nos tumultos então recentes ocorridos em Noakhali e no distrito vizinho de Tippera. Mais de dez mil casas haviam sido pilhadas. Em Tippera, nove mil oitocentos e noventa e cinco hindus tinham sido forçados a converter-se ao islamismo; em Noakhali, o total era maior. Milhares de mulheres hindus tinham sido raptadas e forçadas a casar-se com muçulmanos, para que a comunidade hindu nunca mais as recebesse de volta. Com o mesmo propósito, os hindus tinham sido compelidos a abater vacas e a comer-lhes a carne. Os hindus haviam sido forçados a deixar a barba, a envolver-se em seus lençóis, torcendo-os, à maneira muçulmana, em vez de os usar à maneira hindu, e a recitar o Corão. No começo da peregrinação Noakhali—Tippera de Gandhi, alguém sugeriu que ele deveria instigar os hindus a mudarem-se para outras províncias. O Mahatma repeliu veementemente semelhante ato de derrotismo, porque a troca de populações corresponderia à admissão da impossibilidade de se conservar unida a Índia. Isso tolheria, à fé de Gandhi, um esteio básico: o de que uma afinidade existe, ou pode ser estabelecida, entre povos que se consideram diferentes. Esta era, agora, sua tarefa. “Eu, porém, digo-vos: Amai vossos inimigos; fazei bem aos que vos odeiam; e orai pelos que vos perseguem e caluniam, para que sejais filhos de vosso Pai, que está nos céus, o qual faz nascer seu sol sobre bons e maus e manda a chuva sobre justos e injustos. Porque, se amais somente os que vos amam, que recompensa haveis de ter?” Assim falou Jesus. Assim Gandhi vivia — e pedia aos outros que vivessem. De
uma feita, estava ele sentado no chão de uma choupana muçulmana; discursava sobre as belezas da não-violência, quando alguém lhe entregou uma nota informando que o homem à sua direita havia matado certo número de hindus. Gandhi sorriu levemente, e prosseguiu falando. Algum tempo depois, vários muçulmanos depositaram-lhe aos pés suas armas mortíferas. Os muçulmanos mais pobres compareciam diariamente, aos grupos, às suas reuniões de preces, mas os muçulmanos ricos e instruídos ameaçavam os pobres com a aplicação de sanções econômicas;
também
desaconselhavam
os
os
políticos
contatos
com
muçulmanos Gandhi.
de
Na
Calcutá
aldeia
de
Narayanpur, um muçulmano deu abrigo e alimento a Gandhi. Este agradeceu em público. Semelhante hospitalidade ia se tornando
freqüente.
Cinco
mil
hindus
e
muçulmanos
compareceram à reunião promovida por Gandhi no dia 22 de janeiro, na aldeia de Paniala. Ele interrompeu os serviços religiosos para permitir que os muçulmanos se afastassem da multidão e se voltassem em direção a Meca, a fim de fazer suas preces. Num domingo, em Raipur, Gandhi foi convidado a um jantar oferecido por comerciantes hindus a duas mil pessoas, compreendendo hindus de casta, intocáveis, muçulmanos e cristãos. Sentiu-se feliz. O sacerdote muçulmano conduziu-o à mesquita
local.
Grupos
de
camponeses
acorreram
à
sua
choupana, em busca de conforto e confissão. Ele disse aos hindus que não ficassem na dependência dos militares, nem da polícia, mas sim de sua própria bondade. “A democracia e a dependência dos militares, ou da polícia, são coisas incompatíveis”, ensinou ele. Na aldeia de Chandipur, Gandhi ficou sabendo que hindus que haviam fugido durante os tumultos estavam começando a
voltar. Este constituía o objetivo de sua missão. Os ouvintes perguntavam-lhe o motivo pelo qual percorrera tão longo caminho; por que motivo não havia ele chegado a um acordo com Jinnah, em vez de se sujeitar pessoalmente a tão exaustiva peregrinação? “Um líder”, respondia ele, “é feito pelos que o seguem. O povo deve estar em paz consigo mesmo; então, seu desejo de paz com seus vizinhos será refletido por seus líderes.” Gandhi dirigira-se a Noakhali para criar um vínculo humano entre
hindus
e
muçulmanos,
antes
que
a
política
e
as
determinações legais erguessem uma muralha entre eles. O Mahatma se encontrava, na verdade, numa corrida contra os políticos. Conseguiria êxito sua terapia, antes que os políticos dessem início à própria cirurgia? Os escalpelos estavam prontos. Em fins de novembro de 1946, o primeiro-ministro Attlee chamou Nehru, Jinnah, o ministro da Defesa, Baldev Singh, e Liaquat Ali Khan, ao edifício número 10 da Downing Street, para a realização de uma conferência extraordinária a respeito da Assembléia Constituinte indiana, projetada para reunir-se em Nova Deli, no dia 9 de dezembro. Jinnah anunciara que a Liga Muçulmana não tomaria parte na assembléia, porque o Congresso havia rejeitado o plano das reuniões secionais em que as seções A, B e C redigiram Constituições para as três subfederações. Se, porém, a Liga Muçulmana
se
recusasse
a
participar
da
redação
das
Constituições da Índia livre, como poderia a Inglaterra libertar a Índia? A quem seriam transferidos os poderes? Foi para obter resposta a essas perguntas que Attlee convocara os líderes indianos para uma reunião em sua residência oficial. Durante
sua
estada
em
Londres,
Jinnah
declarou
publicamente que esperava que a Índia fosse dividida em um Estado hindu e um Estado muçulmano, acrescentando que compartilhava das apreensões do sr. Churchill “a propósito das possibilidades de guerra civil e de tumultos na Índia”. Essa declaração foi lida como se fora uma advertência: “Paquistão ou guerra civil”. Inevitavelmente, portanto, as conversações da Downing Street, 10, se concluíram em desentendimento. Regressando à Índia, o ministro Nehru fez a longa viagem à aldeia de Srirampur, em Noakhali, a fim de apresentar a Gandhi um relato do fracasso registrado em Londres. O Mahatma, não obstante, insistiu em que o Congresso permanecesse fora dos comitês de redação das Constituições para as três subfederações; considerava-as uma armadilha para dividir a Índia. Contudo, em 6 de janeiro de 1947, a Junta Pan-indiana, em desafio a Gandhi, resolveu, por noventa e nove votos contra cinqüenta e dois, participar dos comitês. No entanto, esse esforço da missão ministerial britânica no sentido de reviver o plano de 16 de maio de 1946 chegou tarde e foi inútil. A situação evoluíra além disso. O primeiro-ministro Attlee anunciara, na Câmara dos Comuns, no dia 20 de fevereiro de 1947, que a Inglaterra sairia da Índia, “numa data não posterior à de junho de 1948”; o lorde e almirante Louis Mountbatten, bisneto da rainha Vitória, substituiria Wavell. Seria o vigésimo e último vice-rei britânico da Índia. Attlee não dissera que a Índia seria dividida, mas os acontecimentos, agora, se desenrolavam muito rapidamente. Os tumultos se multiplicavam na populosa província do Penjab, terra de muçulmanos, de siques e de hindus. O Penjab, que era o coração e a parte maior do projetado lobo ocidental do Paquistão, e Bengala, sua fração ocidental, manifestavam pouco entusiasmo, dando pouco apoio à idéia da formação do Paquistão. Sendo essa
província muçulmana em sua maioria, não temia o domínio hindu. Por outro lado, também os muçulmanos do Penjab e de Bengala
não
sentiam
um
parentesco
tão
acentuado
que
desejassem pertencer, juntos, ao mesmo Estado nacional. Mesmo assim, o apelo de Jinnah, para que se recorresse à ação direta, sufocou a razão por meio das paixões, em todos os setores; e o Penjab passou a inundar-se de sangue. Na primeira semana de março,
uma
resolução
da
Junta
Funcional
do
Congresso
examinou a probabilidade da “divisão do Penjab em duas províncias, de modo que a parte predominantemente muçulmana pudesse separar-se da parte não-muçulmana”. Esse foi um divisor de águas político. De um lado, a resolução forneceu um espelho aos muçulmanos do Penjab, mostrando-lhes que os tumultos persistentes resultariam na vivissecção de sua província. De outro lado, a Junta Funcional do Congresso passou a aceitar, com isso, o princípio de um Paquistão menor — o Paquistão dos dias de hoje. Perturbado por tais desenvolvimentos do problema e tendo, de algum modo, acalmado Noakhali, Gandhi rumou para o oeste, na direção do Penjab. Na viagem, viu-se detido pelo derramamento de sangue de Bihar. Sem descanso, percorreu a província. “Os hindus de Bihar”, declarou, “haviam esquecido, num repente de insanidade, que eram seres humanos.” Admoestou-os contra qualquer iniciativa tendente a vingar a matança dos hindus por muçulmanos, no Penjab. Nesse rumo se encontrava a ruína para toda a Índia. Insistiu em que as pessoas procuradas pela polícia, em conexão com os tumultos ocorridos, deveriam apresentar-se às autoridades ou a ele próprio. Centenas de pessoas assim procederam. Um dia, chegou um telegrama de um hindu, advertindo o Mahatma de que não condenasse os hindus por
aquilo que haviam feito. Gandhi leu o despacho em sua reunião de preces; e respondeu que “eu renegaria minha condição de hindu, se exaltasse as injustiças praticadas por meus companheiros hindus”. Suplicou, aos hindus, que suspendessem seu boicote econômico contra os muçulmanos, mas “nem sequer um hindu se levantou para proporcionar a indispensável segurança... Portanto, não havia muito de que se maravilhar, se os muçulmanos se sentissem, como de fato se sentiam, receosos de regressar às suas aldeias”. Gandhi lhes disse que, se os tumultos prosseguissem, a Índia “poderia perder a maçã de ouro da independência”. Essa era a situação, no dia 22 de março de 1947, quando lorde Mountbatten, bem-posto em seu uniforme naval branco, chegou a Nova Deli, em companhia de sua esposa, Edwina, a vicerainha. O encanto pessoal dos dois, bem como suas maneiras amistosas, conquistaram muitos corações, tanto nas camadas superiores, como nas inferiores. Dentro de quarenta e oito horas, entretanto, Jinnah enviou uma informação a Mountbatten dizendo que “terríficos desastres” estavam reservados à Índia, se não se instituísse o Paquistão. Quatro dias depois de sua chegada, o novo vice-rei convidou Jinnah e Gandhi para que fossem avistar-se com ele.
Gandhi
encontrava-se
em
regiões
remotas
de
Bihar.
Mountbatten lhe ofereceu um aeroplano. Gandhi preferiu a locomoção de milhões de pessoas. Na estação de Patna, antes de o trem partir, coletou dinheiro para auxiliar os harijans. Em 31 de março, conferenciou com lorde Louis durante duas horas e um quarto. Os dois tiveram outros cinco encontros demorados, entre esse dia e o dia 12 de abril. Jinnah realizou um número igual de conferências com Mountbatten, no mesmo período. Essas duas semanas, e os dois meses que se lhes seguiram, foram os que mais pesaram nos destinos da moderna história da Índia. Quando
o inteiro e doloroso processo da vivissecção da Índia se completou, Mountbatten contou sua história.
29 Cabra-cega ao redor da amoreira Lorde Mountbatten discursou perante os membros da Real Sociedade do Império, em Londres, em 6 de outubro de 1948; e apresentou-lhes seu relato do que havia acontecido. “Na Índia”, disse ele, “Gandhi não era comparado a qualquer estadista, como Roosevelt
ou
Churchill.
Os
indianos
classificavam-no,
simplesmente, em seu espírito, como Maomé ou Cristo.” Em seu primeiro encontro com Gandhi, pedira-lhe que lhe dissesse algo a propósito de suas experiências na África do Sul. A Jinnah, perguntara a respeito de sua vida anterior em Londres. “Eu apenas desejava falar com eles, a fim de travar conhecimento, de estar junto deles, de conversar.” Dissera a Gandhi e a Jinnah, em separado, “algumas coisas a respeito de minha vida anterior. Depois, quando pensei dispor de alguma espécie de entendimento com os homens com os quais tinha de lidar, comecei a falar-lhes a propósito dos problemas que nos deparavam”. A missão de Mountbatten consistia em retirar a Inglaterra da Índia até junho de 1948. A fim de dar, ao Parlamento britânico, o tempo necessário para os debates e a aprovação da indispensável legislação, para essa diminuição do império, a solução deveria estar pronta lá pelos fins de 1947. Mas, no local, ele e seus conselheiros
concordaram
em
que
esse
programa
seria
excessivamente lento; as coisas estavam acontecendo de modo
excessivamente rápido. O mal, explicou Mountbatten, tinha começado com o Dia da Ação Direta, de Jinnah, em 16 de agosto de 1946. A isso se seguiu o massacre de hindus, em Noakhali, por sua vez seguido pelas represálias hindus em Bihar; depois, os “muçulmanos massacraram os siques em Rawalpindi (no Penjab)”; e uma insurreição irrompeu na província da Fronteira do Noroeste. “Lá cheguei”, contou Mountbatten aos seus ouvintes, “para
encontrar
esse
terrível
pêndulo
de
massacre
num
movimento cada vez mais amplo.” “Pessoalmente, eu estava convencido de que a solução correta, na época, como ainda hoje, seria a conservação de uma Índia unida, de acordo com o plano de 16 de maio de 1946”, revelou Mountbatten. Mas isso pressupunha a cooperação entre as duas partes. “O sr. Jinnah, entretanto”, afirmou Mountbatten, “tornou intensamente claro, desde o primeiro momento, que, enquanto ele vivesse, não aceitaria nunca uma Índia unida. Pedia a divisão; insistia na formação do Paquistão. O Congresso, de outro lado, favorecia o critério de um país não-dividido, mas os líderes do Congresso concordavam em que aceitariam a divisão, no propósito de evitar a guerra civil.” Mountbatten “estava convencido de que a Liga Muçulmana lutaria”. O Congresso, todavia, disse Mountbatten, recusava-se a permitir que grandes áreas não-muçulmanas fossem dadas ao Paquistão. “Isso significava, automaticamente, a divisão das grandes províncias do Penjab e de Bengala”, de modo que suas áreas
não-muçulmanas
deixassem
de
ser
incorporadas
ao
Paquistão muçulmano. “Quando eu disse ao sr. Jinnah”, confiou Mountbatten à Real Sociedade do Império, “que tinha o acordo provisório [do Congresso], quanto à divisão da Índia, ele se mostrou
exaltadamente
satisfeito.
Quando
eu
disse
que,
logicamente, estava implícita a divisão do Penjab e de Bengala, ficou horrorizado. Apresentou os mais poderosos argumentos para demonstrar as razões pelas quais as referidas províncias não deveriam
ser
divididas.
Declarou
que
elas
possuíam
características nacionais e que a divisão seria desastrosa. Concordei mas acrescentei o quanto sentia que as mesmas considerações se aplicavam à divisão da Índia. Jinnah não gostou disso, e passou a explicar as razões pelas quais a Índia deveria ser dividida; e assim fizemos uma espécie de Cabra-cega ao redor da amoreira, até que ele, finalmente, percebeu que poderia obter ou uma Índia unida, com o Penjab e Bengala não divididos, ou uma Índia dividida, com o Penjab e Bengala igualmente secionados; por fim, aceitou esta última solução.” Dessa forma, decidiu-se dividir a Índia, país de quatrocentos milhões de habitantes. Gandhi nunca concordou com isso. Na realidade, esperava conseguir a revogação de tal decisão.
30 O nascimento de duas nações “Sr. Gandhi”, esclareceu lorde Mountbatten ao Mahatma, em um de seus seis encontros, “hoje, o Congresso está comigo.” “Mas a Índia”, respondeu Gandhi, “está comigo hoje.” Ao relatar essa troca de afirmativas ao professor Nirmal Kumar Bose, Gandhi qualificou de “impudente” a declaração de Mountbatten;
entretanto,
aquela
declaração
correspondia
à
verdade, e passou a constituir a chave da divisão da Índia, ao passo que a declaração de Gandhi expressava meramente uma
esperança. Se a Índia tivesse estado, de fato, com Gandhi, ele conseguiria inverter a orientação do Congresso. Os ministros do Congresso haviam passado por uma experiência desconcertante e traumática, no seio do gabinete de Nehru, onde seus colegas muçulmanos estavam fazendo uso de todas as oportunidades e de todos os estratagemas, no sentido de obstruir o trabalho do governo. Distraídos e desgastados pelo contato diário com os obstrucionistas não-disfarçados, que se encontravam em seu meio, os membros do gabinete do Congresso, juntamente com muitos de seus sequazes, estavam começando a inclinar-se para a aceitação da opinião resumida nesta sentença: “Pois bem, se insistis na formação do Paquistão, que ele seja formado”. Nehru pôs esse sentimento em palavras, quando disse, em 21 de abril de 1947: “A Liga Muçulmana poderá ter o Paquistão, se desejar tê-lo, mas apenas sob a condição de que ela não tome outras partes da Índia que não desejam juntar-se ao Paquistão”. Essa aceitação relutante do Paquistão menor, que é o que hoje existe, com as províncias de Assam, Bengala e Penjab divididas, foi o resultado de uma subestimação da catástrofe que a divisão poderia produzir. Em Nova York, em 16 de outubro de 1949, o primeiro-ministro Nehru declarou que lutaria até o fim contra o estabelecimento do Paquistão, se tivesse previsto as terríveis conseqüências que desse estabelecimento decorreram. A divisão da Índia provocou a morte de centenas de milhares de indianos, e o desenraiza-mento de quinze milhões de pessoas, que se tornaram refugiadas. Deu origem à guerra na Caxemira, a gigantescas
perdas
subcontinente hostilidade
econômicas
representado
pela
religiosa-nacionalista,
em
todos
Índia com
e
os a
setores
uma
desastrosos
do
contínua efeitos
e
incalculáveis ameaças potenciais. Pouco importa que Gandhi tenha ou não pressentido intuitivamente a eclosão dessas conseqüências; ele julgava e repelia as divisões, não pelos seus resultados possíveis, mas por achá-las essencialmente negativas. Isso lhe dava energia para lutar, ao passo que os líderes mais moços, como se expressou um íntimo associado do ashram de Gandhi, eram “cansados e míopes”. A luta contra a divisão teria retardado a independência, na esperança de conquistar a liberdade para um país unido. Mas numerosos líderes do Congresso, com exceção, naturalmente, de seus homens de proa, já tinham cheirado o caldeirão do poder e dos empregos governamentais; tinham horror, por isso, ao pensamento de voltar à parcimônia e à austeridade da luta. Ademais, a luta poderia terminar na prisão. O cárcere, para Gandhi, significava repouso e consecução de seu objetivo; para os outros, significava sofrimento. “Minha passagem pelo cárcere, dessa feita, se transformou, para meus nervos, em ordálio muito maior do que haviam sido minhas visitas anteriores”, escreveu Nehru a Gandhi, em 13 de agosto de 1934. O ordálio se fez progressivamente pior, e a última prisão de Nehru, de 9 de agosto de 1942 a 14 de julho de 1945 — quase três anos —, não podia fazer com que um novo período de confinamento se tornasse mais convidativo, principalmente porque a sensatez da luta se lhe afigurava muito duvidosa. A guerra civil ameaçada por Jinnah já havia projetado sua sombra sangrenta diante de si, na forma de tumultos repetidos; o governo inglês não mostrava ânimo — logo após
a
Segunda
Guerra
Mundial
—
de
lutar
contra
os
muçulmanos da Índia; Mountbatten descrevera a divisão como algo inevitável e a independência como uma coisa fascinante; oferecera poder ao Congresso, enquanto Gandhi, ao mesmo
Congresso, oferecera prisão. Contra essas realidades formidáveis, Gandhi nada de mais substancial poderia opor do que sua não demonstrada pressuposição segundo a qual o povo da Índia era uno e que seria “blasfêmia” dividi-lo. O Mahatma conhecia a fraqueza de sua posição; quando dissera a Mountbatten “Mas a Índia está comigo no dia de hoje”, a frase constituíra apenas uma enunciação de fé, e ele não poderia esperar ser acreditado no que dizia. Percebera que o fardo da prova caíra sobre seus próprios ombros. Gandhi, portanto, deixou Deli imediatamente depois de suas conversações com o vice-rei e regressou a Bihar. A província, em abril, estava tropicalmente quente, e ele mal podia suportar o esforço exigido pelas extensas excursões que fazia às aldeias. Entretanto, não dava grandes considerações ao próprio corpo. A paz, em Bihar, “dissolveria” as desordens em Calcutá e em outras partes. Sua mãe, que não recebera instrução, costumava dizer-lhe que o átomo refletia o universo; se cada pessoa tomasse sob seus cuidados suas proximidades imediatas, o mundo seria um lugar bem melhor. O general Shah Nawaz, cidadão muçulmano que Gandhi deixara em Bihar quando fora para Deli, informara que os muçulmanos estavam regressando às suas aldeias, de onde haviam fugido. O Mahatma se sentiu feliz. A essa altura, Nehru telegrafou a Gandhi, pedindo-lhe que se dirigisse à capital federal; a Junta Executiva do Congresso estava sendo convocada para uma decisão histórica: aprovar ou rejeitar a formação do Paquistão. O Mahatma fez a viagem de mais de oitocentos quilômetros no calor sufocante de um trem poeirento. Nehru apoiava a aceitação da formação daquele Estado, como a única evasiva de uma situação intolerável. Vallabhbhai Patel hesitava. Teria preferido submeter à prova da força a ameaça
de guerra civil de Jinnah, e suprimir, nesse ínterim, os tumultos, por meio das armas. Por fim, porém, também concordou. Dois anos e meio depois, explicou que “concordara com a divisão, por ser esta a última tábua de salvação quando atingimos uma fase na qual poderíamos perder tudo”. A alternativa parecia ser: ou o Paquistão ou a continuação da governança britânica. Gandhi
não
fez
segredo
algum
de
sua
mágoa,
em
conseqüência da decisão do Congresso. “O Congresso”, disse ele, numa reunião de preces, numa colônia de intocáveis, em Nova Deli, no dia 7 de maio, “tinha aceito o Paquistão e solicitava a divisão do Penjab, bem como da província de Bengala. Eu me oponho a qualquer divisão da Índia, agora, como sempre me opus. Mas, o que é que posso fazer? A única coisa que posso fazer é desassociar-me de semelhante esquema. Ninguém pode forçar-me a aceitá-lo, com exceção de Deus.” A julgar pelas aparências, Deus não interferira no caso. O Mahatma foi, então, ver Mountbatten, para ter com ele uma entrevista crucial. “Os britânicos”, aconselhou, “deviam sair da Índia com suas tropas, e enfrentar o risco de entregá-la ao caos ou à anarquia.” À primeira vista, isso parecia insensatez, mas, na verdade, ocultava uma solução astuta: os britânicos, obviamente, não poderiam abandonar a Índia sem governo; Gandhi disse a Mountbatten que, se houvesse governo, deveria ser um governo constituído pelos membros do Partido do Congresso; se a Inglaterra se recusasse a isso, o Congresso se retiraria do gabinete provisório; então, visto que a minoria da Liga Muçulmana não conseguiria governar a Índia, contra a oposição do Congresso, a Grã-Bretanha, a despeito de seu desejo de retirar-se, ver-se-ia obrigada a ficar.
Gandhi percebeu que era impossível para a Grã-Bretanha fazer antagonismo à maioria, a fim de aplacar a minoria. Conseqüentemente, se o Congresso não aprovasse a formação do Paquistão, a Inglaterra não poderia criar esse Estado; e, se a
Inglaterra não o criasse, não poderia haver Paquistão. Essa estratégia, entretanto, exigiria que o governo britânico, com o apoio do Congresso, enfrentasse a ameaça de violência feita por Jinnah — coisa que não se sentia inclinado a fazer. Por outro lado, caso os britânicos abandonassem a Índia, o Congresso teria de combater, sozinho, a Liga Muçulmana —, o que, tampouco, se sentia inclinado a fazer. Tendo captado essas trágicas verdades, Gandhi atravessou, apressado, o continente, rumando para Calcutá. O Paquistão não nasceria, a não ser que a província de Bengala consentisse num ato de cirurgia que lhe separaria os músculos dos ossos, o coração do cérebro, o leste do oeste. — Quando tudo corre mal — perguntou Gandhi ao seu auditório, em Calcutá —, pode a bondade do povo da camada mais baixa fazer-se valer contra qualquer influência maléfica? Esse foi seu sonho desesperado. A província de Bengala tinha um idioma, uma cultura, uma história de resistência à divisão de seu território, por obra dos britânicos, logo no começo do século. Deixaria ela de se opor a Jinnah, agora? Depois de seis dias de incessante trabalho, em Calcutá, Gandhi viajou para Bihar. A despeito do calor tórrido, visitou muitas aldeias. Seu refrão era sempre o mesmo: “Se os hindus dessem mostras de possuir espírito de fraternidade, isto seria bom para Bihar, para a Índia e para o mundo”. “Ele está queimando a vela pelas duas extremidades”, informou Sushila Nayyar, seu médico. O Mahatma esforçava-se no sentido de deter a maré favorável à divisão. Se o esforço o matasse, que importaria? “Na Índia que se está formando nos dias de hoje, não há lugar para mim”, disse ele, com voz trêmula de emoção. “Já
renunciei à esperança de viver cento e vinte e cinco anos. Devo durar, talvez, um ano ou dois.” Entrementes, o governo britânico tomara sua decisão: aceitaria a divisão, se as províncias de Bengala e do Penjab votassem a favor da própria divisão. “Oponho-me naturalmente tanto à divisão das províncias, como à divisão da própria Índia”, declarou Mountbatten, pelo rádio, em Nova Deli. Ademais, esclareceu ele, seu esquema “não excluía negociações entre as comunidades, para a consecução de uma Índia unida”. De Londres, Herbert L. Matthews telegrafou para The New York Times, dizendo que “o sr. Gandhi constitui uma verdadeira dor de cabeça, porque, se resolver ‘fazer jejum até a morte’, poderá muito bem provocar a ruína do plano”. Em 15 de junho de 1947, a Comissão Pan-indiana do Congresso deu ao plano sua aprovação, pela maioria de cento e cinqüenta e três votos contra vinte e nove, com algumas abstenções. O Congresso já havia abandonado Gandhi. O presidente do Congresso, J. B. Kripalani, num discurso franco, explicou as razões disso: “Vi um poço, onde mulheres e suas crianças, cento e sete criaturas ao todo, se atiraram, para salvar a própria honra. Em outro lugar — um lugar de adoração — cinqüenta moças foram mortas por seus parentes masculinos, pela mesma razão... Essas pavorosas experiências afetaram, sem dúvida, meu modo de entender a questão. Alguns membros nos acusaram de haver tomado essa decisão por decorrência do medo. Devo admitir o fundamento da acusação, mas não no sentido em que ela foi feita. O medo não é pelas vidas perdidas, nem pelo lamento das viúvas, nem pelo choro dos órfãos, nem pelas muitas casas que se incendiaram. O medo é de que, se continuarmos como até agora,
tomando represálias e amontoando indignidades uns contra os outros, nós nos reduziremos, progressivamente, a um estado de canibalismo ou de coisa ainda pior...” “Tenho estado em companhia de Gandhi durante estes últimos trinta anos”, continuou Kripalani. “Juntei-me a ele em Champaran. Nunca me desviei da lealdade para com ele... Mesmo quando tenho divergido dele, sempre considerei seu instinto político mais correto do que minhas atitudes laboriosamente arrazoadas. Hoje, também sinto que ele, com seu supremo destemor, está certo, e que o meu comportamento é errado.” A maior parte dos opositores de Gandhi provavelmente sentia o mesmo. “Por que motivo, então, não estou com ele?”, interrogou Kripalani. Com efeito, por que motivo ele não seguia Gandhi, uma vez que reconhecia que ele estava certo? “É porque”, respondeu, “Gandhi não encontrou ainda a maneira de atacar o problema por um critério básico de massa.” O país não estava respondendo ao apelo de Gandhi a favor da paz e da fraternidade. Esse foi o motivo pelo qual Gandhi não passou a jejuar. Um jejum até a morte impediria que o Congresso sancionasse a divisão. O que aconteceria, então? O fato desconjuntada o Partido do Congresso, que ele alimentara para que passasse a governar a Índia. Poderia fazer isso, de qualquer maneira, se o povo estivesse com ele. “Ainda
que
apenas
a
Índia
não-muçulmana
estivesse
comigo”, afirmou o Mahatma, “eu conseguiria o modo de desfazer a divisão proposta.” Mas a Índia não-muçulmana havia desertado de junto dele. “Não concordo com o que os meus amigos mais
íntimos fizeram, ou estão fazendo”, declarou o Mahatma. “Trinta e dois anos de trabalho”, esclareceu Gandhi, “chegaram a um fim inglório. É preciso ter muita coragem para dizer isso, e dizê-lo em público.” Foi preciso uma coragem ainda maior para continuar a trabalhar em meio aos destroços de uma obra que durara uma vida toda. Gandhi, nessa fase, se guindou a uma altura suprema.
31 Gandhi rastela o seu jardim O Mahatma Gandhi fracassou na tarefa de impedir a divisão da Índia, porque as divergências religiosas eram mais fortes do que as coesões nacionalistas. Os demagogos apelavam, com mais êxito,
para
os
sentimentos
que
separavam
os
hindus
muçulmanos, do que Gandhi, Nehru e outros podiam fazê-lo para os interesses que deveriam uni-los. Os cristais do nacionalismo hindu ainda não se encontravam estruturados e coesos numa massa suficientemente dura, capaz de impedir que o machado da religião a cortasse em duas partes. A Grã-Bretanha assegurara liberdade nacional à Índia, antes que a Índia se houvesse transformado
em
nação;
conseqüentemente,
a
Índia
se
transformava em duas nações. Dessas duas, o Paquistão integrava uma
comunidade
religiosa
debatendo-se
para se erguer à
categoria de nação, e a República indiana não passava de uma quase-nação perturbada por isolacionismos provinciais, diferenças lingüísticas e ódios religiosos. Gandhi era, na verdade, o pai de uma nação ainda não nascida.
Como todos os seres humanos, Gandhi deve ser medido por aquilo a que aspirava; queria uma nação indivisível, conduzida e povoada por grandes personalidades, livre e destemida, num mundo similarmente constituído. Não estava disposto a aceitar menos do que isso. No último ano de sua vida, portanto, Gandhi deve ser julgado, também, por aquilo a que não aspirava. Seu objetivo nunca havia sido o da expulsão dos britânicos, com a correspondente substituição de seu governo por indianos. Uma independência em duas peças, separadas pela religião, pelo ódio e pela ambição de poder, e entregues a um mar de sangue, não lhe proporcionava prazer algum. O Mahatma tinha a força e a coragem de a rejeitar; essa é a verdadeira dimensão de sua grandeza. A Índia conseguiu sua independência no dia 15 de agosto de 1947, mas Gandhi anunciou: “Não posso participar das comemorações”. Encontrava-se ele em Calcutá, de novo lutando contra os tumultos. Convidado a ir à capital, a fim de assistir ao surgimento oficial da vida da nação, declinou do convite e não enviou mensagem alguma ao país. Durante aquele dia inteiro, jejuou e rezou. “Há perturbações por perto”, escreveu a Rajkumari Amrit Kaur, no dia seguinte. Em meio às festividades, seu coração se sentia pesado e seu espírito, triste. “Haverá alguma coisa errada em mim?”, perguntava-se ele, “ou será que as coisas estão, de fato, caminhando mal? Encontro-me muito longe da condição de equanimidade.” Seu desapego, pregado pelo Gita, estava claudicante. Contudo, sua fé nunca o abandonou. “Nenhuma causa, que seja intrinsecamente justa, pode jamais ser descrita como perdida.” Gandhi escreveu outra carta a Rajkumari, em 29 de agosto: “A humanidade é um oceano. Se umas poucas gotas do oceano se sujam, nem por isso o oceano fica sujo”. O Mahatma conservava
sua fé na humanidade e em si mesmo. “Sou um combatente nato, que não conhece o fracasso”, esclareceu, numa reunião de preces, em Calcutá. A divisão era um fato, mas “sempre é possível, por meio da conduta correta, diminuir um mal, e, em certa altura, fazer com que o bom surja do que é mau”. Ele também voltava seu sentido perscrutador para seu íntimo. “Estou andando às apalpadelas, hoje”, afirmou. Estava cheio de “perguntas penetrantes”. A Kurshed Naoroji escreveu: “Posso fazer eco à vossa prece, para que eu realize a paz e me encontre a mim mesmo. Trata-se de tarefa difícil, mas estou procurando efetuá-la. Oh, Deus! Conduzi-nos da escuridão para a luz!”
Gandhi
aproximava-se
de
seu
septuagésimo
oitavo
aniversário. O mundo que construíra jazia parcialmente em ruínas a seu redor. Contudo, preparava planos para o futuro. São Francisco de Assis estava rastelando seu jardim, quando alguém lhe perguntou sobre o que ele faria se, de súbito, viesse a saber que teria de morrer antes do pôr-do-sol, naquele mesmo dia. “Eu acabaria de rastelar meu jardim”, respondeu ele. Gandhi continuou a rastelar seu jardim.
32 Amor sobre águas revoltas A presença de Gandhi em Calcutá, durante o mês de agosto de 1947, acalmou a tempestade inter-religiosa; e os jornais prestaram homenagem ao mágico envolto num lençol. Mas a divisão de Bengala, prejudicial para muçulmanos e hindus, de novo os lançou em louco frenesi. A divisão deu origem a mais
problemas do que aqueles que solucionou. Lá pelo fim do mês, o mar de ódio cresceu e inundou a própria residência onde Gandhi se encontrava hospedado. Ele acabara de ir para a cama, na noite de 31 de agosto, quando um grupo descontrolado de hindus, carregando o corpo de um hindu que se dizia haver sido apunhalado por muçulmanos, irrompeu dentro da casa, aos brados. Os membros do grupo quebraram vidraças com pedras e socos; vibraram pontapés contra as portas; e procuraram danificar a instalação elétrica. Gandhi levantou-se da cama, para os apaziguar. “Comecei a gritar com eles”, narrou o Mahatma, numa carta datada do dia seguinte, dirigida a Sardar Vallabhbhai Patel, “mas quem estava em condições de ouvir?” Os muçulmanos formaram um círculo para o proteger com seus corpos. Um tijolo foi atirado contra Gandhi. O tijolo alcançou um muçulmano que se encontrava de pé, ao lado de Gandhi. Um dos amotinados brandiu um pau, longo e fino, que por muito pouco deixou de atingir o Mahatma na cabeça. Gandhi abanou a cabeça, entristecido. Por fim, chegou a polícia; o chefe da polícia apelou para Gandhi, a fim de que se retirasse para seu quarto. Lá fora, os policiais
dispersaram
a
multidão
com
bombas
de
gás
lacrimogêneo. O Mahatma resolveu jejuar. Numa declaração dirigida à imprensa, no dia 1.° de setembro, disse: “Fazer ato de presença, em face de uma multidão ululante, é coisa que nem sempre dá resultados. Por certo, não deu resultados na noite passada. O que minha palavra, proferida por mim em pessoa, não pôde fazer, talvez meu jejum faça. O jejum tocará o coração de todas as facções que se digladiam no Penjab, se o fizer em Calcutá. Portanto, começarei a jejuar a partir das oito e quinze esta noite, para concluir somente se e quando a tranqüilidade voltar a
Calcutá”. Era um jejum até a morte. Os grupos de pessoas começaram a afluir para a residência de Gandhi, no dia 2 de setembro. Fariam fosse lá o que fosse, para lhe salvar a vida — ao que diziam. Essa era uma interpretação errada, explicou ele. Seu jejum “tinha intenção de sacudir a consciência e de remover a preguiça mental”. Salvar-lhe a vida era coisa secundária, posterior à mudança de sentimentos. Vários muçulmanos preeminentes apareceram, e também um funcionário da União dos Marinheiros do Paquistão compareceu, para lhe assegurar que todos trabalhariam em prol da harmonia interreligiosa. No dia 4 de setembro, a municipalidade informou que a cidade estivera absolutamente em paz, durante vinte e quatro horas. Quinhentos policiais, inclusive seus oficiais britânicos, haviam começado um jejum de solidariedade, de um dia, mesmo permanecendo em serviço. Matadores brutais, chefes de bandos de rufiões, aproximaram-se da cabeceira de Gandhi, e choraram, ao contemplar-lhe o corpo esquelético; juraram abster-se de depredações. Muitas deputações hindus, muçulmanas e cristãs, de comerciantes e de operários, fizeram voto, na presença do Mahatma, assegurando que não haveria mais desordens em Calcutá. Gandhi acreditou naquela gente; dessa vez, porém, quis o voto por escrito. E, antes que os presentes assinassem, disse o Mahatma, eles deviam ficar sabendo que, se o voto fosse violado, ele daria início a um “jejum irrevogável”, que se concluiria somente com sua morte. Os presentes retiraram-se, deliberaram e assinaram. Gandhi, em conseqüência, interrompeu seu jejum de setenta e três horas. A partir daquele dia, através de muitos meses durante os quais o Penjab e outras províncias foram sacudidas por massacres religiosos, a cidade de Calcutá, bem como os grupos muçulmanos
e hindus da dividida província de Bengala, se mantiveram livres de desordens. Bengala manteve sua palavra para com o Mahatma. No dia 7 de setembro, Gandhi deixou Calcutá, rumando para o Penjab. Um outro setor de seu jejum requeria o rastelo. Na viagem, o trem parou em Deli, onde Sardar Patel, o ministro da Saúde Rakcumari Amrit Kaur, e várias personalidades associadas foram ao encontro de Gandhi com as trágicas notícias de que os tumultos se repetiam por toda Deli. O Mahatma deixou o trem. Os amigos disseram-lhe que ele não poderia ficar em segurança nos bairros dos intocáveis, que podiam ser facilmente varridos pelos assassinos profissionais. Gandhi, por isso, instalou seu acampamento na “palaciana comunidade Birla”, como ele a denominou. Os serviços vitais, tanto em Nova Deli como em Deli, a velha, foram interrompidos pelas desordens; nada de vegetais, de leite, de frutas frescas. As duas cidades se assemelhavam a “uma cidade dos mortos”. Os refugiados hindus e siques, procedentes do Penjab, começaram a entrar em Deli, aos milhares, levando consigo narrativas ora autênticas ora exageradas de atrocidades praticadas pelos muçulmanos; isso incitou as represálias contra os muçulmanos de Deli, às quais os refugiados se associaram entusiasticamente. O assassinato espalmou-se pelas ruas, e ninguém estava imune. Em Okla, aldeia a cerca de vinte e dois quilômetros da cidade, numa região repleta de tradição muçulmana e rica em ruínas de antigas fortalezas e mesquitas da civilização mongol, ficava a Jamia Millia Islamia, escola muçulmana de preparação para os cursos secundários. A escola era dirigida por um amigo de Gandhi, o dr. Zakir Hussain, educador bem-posto, de longa barba, possuidor de uma bela cabeça e de um coração nobre. Desde
agosto de 1947, a escola se encontrava engolfada num mar de refugiados siques e hindus, todos enfurecidos; havia, ademais, uma vizinhança composta de camponeses para os quais tudo o que era islâmico, fosse criatura humana ou edifício, não merecia mais do que ódio. À noite, os estudantes e os professores montavam guarda, esperando um assalto de hora em hora. Num círculo a seu redor, podiam ver aldeias e residências muçulmanas incendiadas. Nas proximidades, corria o rio Jumna. Noite após noite, ouviam muçulmanos pular, gemendo, para as águas, a fim de fugir a seus perseguidores; depois, os perseguidores pulavam no rio atrás deles; verificavam-se lutas e baques; a vítima era conservada com a cabeça debaixo da água até afogar-se ou até emitir um último grito desesperado, enquanto uma faca lhe tocava a garganta nua. Fechando-se cada vez mais, o círculo de violência aproximava-se da escola apavorada. Numa noite escura, chegou um automóvel de praça ao pátio de Jamia Millia. Do carro desceu Jawaharlal Nehru. Com sua característica coragem física, sua habitual despreocupação, havia viajado sozinho, guiando o veículo e atravessando a faixa formada pela multidão enlouquecida até a ameaçada escola muçulmana, com o propósito de passar a noite em companhia do dr. Zakir Hussain e proporcionar-lhe proteção. Quando Gandhi teve notícia do perigo em que se encontrava a escola, saiu de automóvel, passou uma hora com o dr. Hussain, e discursou para os estudantes. Sua presença tornou o lugar como que sagrado. Depois disso, a escola ficou a salvo. Na viagem de regresso à Comunidade Birla, Gandhi visitou vários acampamentos de refugiados. Insistiu-se em que ele tomasse uma guarda pessoal armada; os hindus e os siques, enlouquecidos pelos assassínios e pelos raptos de pessoas que lhes eram caras, poderiam atacá-lo, como se ele fosse pró-
muçulmano. Gandhi seguiu sem escolta. A essa altura, o Mahatma
desenvolveu
energia
desordenada,
empreendendo
inspeções diárias aos campos de concentração de refugiados nas redondezas da cidade e percorrendo várias vezes por dia suas vizinhanças em tumulto. Choveu no dia 20 de setembro. “Estou pensando hoje no pobre refugiado de Deli”, narrou ele, em sua reunião de preces, “tanto no Penjab oriental (na República indiana), como no Penjab ocidental (no Paquistão), enquanto chove. Tive notícia de que uma coluna humana de cerca de noventa quilômetros está despejando gente na União indiana, que procede do Penjab ocidental”, disse ele. “Sinto calafrios, ao pensar que isso pode acontecer. Uma coisa dessas não tem paralelo na história do mundo e faz com que eu curve a cabeça ao peso da vergonha, como também deveria fazer com que vós curvásseis a vossa.” Gandhi não estava exagerando. A coluna humana de cerca de noventa quilômetros era uma dentre muitas, na Grande Migração; nela, quinze milhões de infelizes seres humanos percorreram centenas de milhas para longe de seus lares, a caminho do desconforto, da doença, da morte. Para fora da parte do Penjab entregue ao Paquistão, rumando para o oriente, em direção a Deli, saíam milhões de hindus e de siques, fugindo aos punhais e aos bastões dos muçulmanos. Para fora da União indiana,
rumando
para
o
Paquistão,
saíam
milhões
de
muçulmanos, temendo as adagas e os dardos dos hindus e dos siques. Uns poucos policiais e jovens voluntários eram tudo o que distinguia as referidas colunas das figuras desordenadas do povo em pânico. Muitos fugiam em seus carros de bois; os que nunca haviam possuído um carro desses, ou os que o haviam possuído mas tinham sido despojados de sua propriedade, marchavam a
pé; famílias inteiras caminhavam pelas estradas poeirentas, durante semanas; os adultos carregavam as crianças; os homens carregavam os fracos e os aleijados em cestos; os velhos eram levados ao ombro. Com freqüência, os enfermos e os decrépitos eram abandonados à beira da estrada, e lá deixados a morrer. A cólera, a varíola e doenças mortais desse tipo dizimavam as hordas migradoras. Os cadáveres, no chão, e os corvos a fazer círculos sobre eles, assinalavam-lhes a rota. Por vezes, duas colunas hostis, avançando em direções opostas, se encontravam, e, a despeito das energias combalidas e das miríades de preocupações,
prosseguiam
em
suas
insensatas
vinganças
recíprocas, nos campos arados. O Penjab, celeiro da Índia, morria à míngua, com seu trigo precioso e abundante, pisado e calcado para dentro da terra por milhões de pés cansados. A União indiana sentia a garra da fome. O governo de Nehru organizou acampamentos, fora de Deli, destinados a receber os migrantes, antes que eles conseguissem inundar a cidade. Ainda assim, milhares e milhares de pessoas fugiam através dos cordões policiais; iam saquear armazéns, dormir em portais, em alpendres, em sarjetas, em templos, em lares abandonados; e, por essa forma, desorganizavam a vida da capital e os serviços do governo. Reduzidas a um tipo primitivo de viver, as pessoas deslocadas se viam impelidas por paixões também primitivas, que contagiavam até as pessoas que se encontravam em situação diferente. Nessa cidade de loucos e de mortos, o Mahatma Gandhi procurou difundir o evangelho do amor e da paz. Interpôs-se à torrente das paixões em ebulição, e falou, com apoio na razão fria: os muçulmanos molestados deviam ficar; “os hindus e os siques, que
os
molestassem,
desacreditariam
sua
própria
religião,
causando danos irreparáveis à Índia”; os portadores de armas
deviam entregá-las a ele; “pequenas somas me foram entregues espontaneamente”. Gandhi aventurou-se a comparecer a um comício de quinhentos membros da Rashtriya Sevak Sangha, ou RSS,
corporação paramilitar de hindus militantes, altamente
disciplinada e ferozmente antimuçulmana, e disse, aos presentes, que eles próprios destruiriam o hinduísmo, por força de sua intolerância;
as
atrocidades
praticadas
pelo
Paquistão
não
constituíam justificativa para as atrocidades levadas a efeito pelos hindus; “nada se lucra, retribuindo-se o mal com o mal”; na realidade, o Mahatma era amigo dos muçulmanos e também dos hindus e dos siques; “parece que os dois lados enlouqueceram”. Depois desse discurso, disse que responderia a perguntas. “Permite o hinduísmo o assassínio e os maus-tratos?”, indagou um membro da RSS. “Um malfeitor não pode punir outro”, respondeu Gandhi. Durante o dia todo, o Mahatma cruzou e recruzou a cidade, correndo para setores onde, ao que o informavam, se estavam reunindo multidões sedentas de sangue. O enfurecido mar humano se dividia, quando ele o atravessava; punha-se de semblante sorridente e de mãos como que postas, palma contra palma, no ato tradicional de bênção. As ondas de ódio se acalmavam. Gandhi esteve presente a uma comemoração que reunia cem mil siques barbados, com as respectivas famílias — e condenou-lhes as violências praticadas contra os muçulmanos. Os siques tinham estado a beber e a provocar tumultos, acusou ele. “Conservai limpos vossos corações e descobrireis que todas as outras comunidades vos seguirão o exemplo.” Nas reuniões de prece, Gandhi coletava dinheiro para a compra de lençóis destinados aos refugiados. Nos campos de refugiados, aconselhou os internos a tecer e a limpar as coisas e os lugares de que se
utilizavam. Todas as noites, perguntava à sua congregação de rezadores, composta principalmente de hindus, se alguém fazia objeções à leitura de alguns versículos do Corão. Em regra, havia dois ou três vetos. Ainda assim, conservar-se-iam quietos os objetantes, durante a leitura? Conservar-se-iam. Tinha a maioria ressentimentos acerca da presença dos objetantes? Não tinha. Então, ele lia os versículos. Essa era uma lição viva de tolerância e de disciplina. Nem todos podiam concordar, mas todos podiam ser não-violentos a despeito do seu desacordo. Entrementes, Gandhi não se esquecia do futuro político. Na primeira quinzena de dezembro de 1947, convocou uma série de conferências de colaboradores de sua confiança, de fora do governo; eram homens e mulheres que haviam ficado ao lado dele, nas suas várias unidades constituídas para promover o bem-estar dos intocáveis, para difundir o hábito da fiação e da tecelagem domésticas, bem como para propagar a educação básica, a cura natural, etc.; Gandhi propôs que todos se organizassem numa grande sociedade para a realização de trabalhos construtivos, e também de atos políticos, mas “não entrando, contudo, na política”, pois “isso significaria a ruína”, mas, “abjurando o poder e devotando-nos ao puro serviço altruísta dos eleitores, poderemos guiar e exercer influência sobre os políticos”. Incapaz de dirigir o Congresso, o Mahatma esperava construir um novo veículo que impulsionasse o governo e que, em qualquer emergência, lhe carregasse o fardo. — Por que razão não poderia o Congresso ou o governo tomar a si o encargo dos trabalhos construtivos? — perguntou um dos delegados. —
Porque
suficientemente
os
membros
interessados
em
do
Congresso trabalho
não
estão
construtivo
—
respondeu Gandhi, simplesmente. — Devemos reconhecer o fato de que a ordem social dos nossos sonhos não pode vir através do Partido do Congresso atual... Há tanta corrupção, na atualidade, que o caso me apavora. Todos querem levar grande quantidade de votos em sua algibeira, porque os votos dão o poder. Kripalani
descreveu
a
situação
como
“burocratismo,
empreguismo, corrupção, suborno, mercado negro e ganância”. A despeito da manifesta desilusão de Gandhi quanto ao Congresso e ao governo, ele ainda constituía a chave da política na Índia; e os ministros, de Nehru para baixo, o consultavam regularmente. O Mahatma, entretanto, ansiava por campos mais vastos de atividade. Esperava poder ir ao Penjab e ao Paquistão, a fim de os pacificar. Os planos para sua viagem ao Paquistão já se encontravam em elaboração. Contudo, hesitava em sair de Deli. As
violências
esporádicas
prosseguiam.
Um
comerciante
muçulmano, pensando que as coisas já se houvessem acalmado, abrira as portas de sua loja; uma bala o abateu. Ainda não havia segurança para os muçulmanos que saíssem à rua, na maioria dos setores da cidade. Intuitivamente, Gandhi percebeu a possibilidade de se renovarem os tumultos. Resolveu jejuar. “Veiome essa idéia, num clarão”, disse ele, e anunciou o jejum sem consultar Nehru, Patel ou o médico. Esse foi seu último jejum, e imprimiu uma imagem de bondade no cérebro da Índia.
33 A vitória é para quem está pronto a pagar-lhe o preço O Mahatma Gandhi começou seu último jejum na manhã de 13 de janeiro de 1948. Deu-lhe o nome de “jejum dos jejuns”, até a morte se necessário fosse, dirigido à “consciência de todos”, hindus e muçulmanos, nas duas partes da Índia dividida. Se todos respondessem, ele se sentiria feliz; se um grupo, como por exemplo o dos siques, respondesse, consideraria isso um milagre e iria, então, para o meio dos siques e passaria a viver entre eles. Sabia que poderia morrer, “mas a morte, para mim, seria uma gloriosa libertação, preferível a transformar-me em testemunha impotente da destruição da Índia, do hinduísmo, do siquismo e do islamismo”. Seus amigos não deveriam preocupar-se: “Estou nas mãos de Deus”. No primeiro dia, dirigiu-se a pé para sua reunião de preces, no pátio da Comunidade Birla, e realizou os serviços religiosos, como de costume. Alguns o acusaram, disse ele, de estar jejuando a favor dos muçulmanos. Eles estavam certos. “Durante toda a minha vida, estive, como todos deveriam estar, do lado das minorias e dos necessitados... Espero uma purificação integral dos corações.” Não importava o que os muçulmanos do Paquistão estavam fazendo. Os hindus e os siques deviam recordar-se da canção favorita de Tagore: “Se ninguém responde ao teu chamado, caminha sozinho, caminha sozinho”. No segundo dia, os médicos lhe disseram que não fosse às preces; por isso, ele ditou uma mensagem para ser lida à congregação. Mas quando a hora das preces chegou, não pôde
resistir, e foi para lá. O jejum, explicou o Mahatma, era pela purificação de todos; dele, em primeiro lugar. “Suponhamos que haja uma onda de autopurificação por todas as partes de ambas as Índias!”, exclamava ele, esperançoso. Uma verdadeira amizade entre as religiões o faria “pular como uma criança”, e, então, seu desejo de viver cento e vinte e cinco anos renasceria. Gandhi repeliu os médicos. Não desejava ser examinado. Recusou-se a beber água, com ou sem sal, ou suco de fruta cítrica. Seu peso caía um quilo por dia. Seus rins funcionavam mal, e Gandhi começava a perder forças. Não se incomodou com isso; “Entreguei-me a Deus”. No terceiro dia, submeteu-se a uma lavagem do cólon. Às duas e meia da madrugada, acordou, pediu um banho quente, e, na banheira, ditou a Pyarelal uma declaração insistindo em que o governo de Nehru pagasse ao Paquistão quinhentos e cinqüenta milhões de rupias, ou cento e vinte e cinco milhões de dólares, correspondendo à parte do Paquistão nos haveres da antiga Índia unida. Mais tarde, naquele dia, o dr. John Matthai, ministro das Finanças do governo de Nehru, o próprio Nehru em pessoa e Sardar Vallabhbhai Patel visitaram Gandhi, a fim de lhe explicarem as razões pelas quais o gabinete votara contra aquele pagamento. Em primeiro lugar, o dr. Matthai e Nehru explicaram suas razões; a seguir, Patel falou durante uma hora e meia, justificando a recusa. Quando Patel terminou, Gandhi sentou-se em seu catre e disse: “Sardar, vós não sois mais o Sardar que eu conheci”, e rompeu em pranto. Matthai, Nehru e Patel, à vista disso, retiraram-se e convocaram outra reunião do gabinete que, depois de ouvir o relato da reação do Mahatma, votou a favor do pagamento dos cento e vinte e cinco milhões de dólares. A soma foi paga.
Durante grande parte desse dia, uma fila infinita de indianos e de estrangeiros, milhares e milhares, passou a três metros de distância do catre de Gandhi, no pátio interno da Comunidade Birla. O Mahatma ficava a maior parte do tempo em posição agachada, como um embrião, com os joelhos para cima, na direção do estômago, e os punhos abaixo do peito. O corpo e a cabeça estavam completamente cobertos por um lençol branco, feito de fazenda tecida em casa, que lhe emoldurava o rosto. Os olhos conservavam-se fechados, e o Mahatma parecia estar dormindo ou em estado de semiconsciência. Um sofrimento agudo se estampava em sua fisionomia. Ainda assim, de qualquer maneira, mesmo no sono ou na semiconsciência, o sofrimento parecia sublimar-se; era um sofrimento atenuado pela exaltação da fé e moderado pela consciência da devoção. Gandhi afiguravase plenamente em paz consigo mesmo; e, quando acordava, sorria. Tentou ir à reunião de preces, mas não conseguiu ficar de pé; em conseqüência, de seu leito, falou por um microfone ligado a um alto-falante que se encontrava no pátio onde se faziam as preces e a uma cadeia nacional de rádio, que transmitiu sua palavra a todas as regiões do país. “Não vos preocupeis com o que os outros estão fazendo”, comentou, com voz fraca. “Cada um de nós deveria voltar a vista para dentro de si e purificar o coração tanto quanto possível.
Estou
convencido
de
que,
se
vos
purificardes
suficientemente, auxiliareis a Índia e encurtareis o período de meu jejum.” Mas os indianos não deveriam pensar primacialmente nele. “Não. Ninguém pode fugir à morte. Assim sendo, por que razão recear a morte? Na verdade, a morte é uma amiga que traz a libertação do sofrimento.” Nesse momento, Gandhi teve um colapso, e o resto de sua mensagem foi lido para ele. Os médicos advertiram o Mahatma, no quarto dia do jejum, assegurando-lhe
que, mesmo que sobrevivesse, passaria a sofrer permanentemente de séria lesão. Estivera sem beber água, e seus rins não estavam funcionando. Desprezando a advertência, falou à reunião de preces pelo microfone durante dois minutos e jactou-se de “nunca me haver sentido tão bem no quarto dia de qualquer jejum”. Sua voz parecia também mais forte. Em 17 de janeiro, seu peso estabilizara-se em cerca de cinqüenta quilos. Mandou que Pyarelal fosse à cidade, a fim de certificar-se de que havia segurança para o regresso dos muçulmanos. Centenas de telegramas chegaram de marajás, de muçulmanos do Paquistão e de todas as partes da Índia. Gandhi sentiu-se gratificado, mas emitiu uma advertência segundo a qual “nem os rajás, nem os marajás, nem os hindus, nem os siques, nem quaisquer outras pessoas prestarão serviço a si próprio, nem à Índia considerada como um todo, se nesta conjuntura, que é para mim sagrada, procurarem iludir-se, tendo em vista a cessação de meu jejum. Todos deveriam saber que nunca me sinto tão feliz como quando jejuo para o espírito. Esse jejum me proporcionou a felicidade mais elevada do que até agora tive. Ninguém precisa perturbar esse estado feliz, a menos que possa afirmar, franca e honestamente, que em sua jornada se voltou deliberadamente de Satã para Deus”. No dia 18 de janeiro, o Mahatma sentiu-se melhor, e permitiu que lhe fizessem uma leve massagem. Seu peso permanecia nos cinqüenta quilos. Desde que o jejum começara, às onze horas da manhã do dia 13 de janeiro, várias conferências foram realizadas, na residência do dr. Rajendra Prasad, novo presidente do Congresso, tendo em vista uma paz verdadeira entre os elementos divergentes, e não apenas uma cessação de ataques violentos. Gandhi explicara-lhes que meras promessas assentadas no papel não abalariam sua
determinação de jejuar até a morte. Exigia garantias, além de planos detalhados para sua execução. Os delegados não deviam prometer mais do que aquilo que sabiam que os seus seguidores estivessem prontos a conceder. Durante cinco dias, estiveram eles palestrando, debatendo, planejando, consultando colegas e consciências. Finalmente, na manhã do dia 18 de janeiro, cem conferencistas hindus, siques, muçulmanos, cristãos e judeus, mais os representantes da RRS, juntamente com os dois hindus mahasabha,
contando-se
igualmente
o
alto
comissário
do
Paquistão, Prasad, Nehru e Azad, todos se apresentaram perante Gandhi. Prometeram, por escrito, “proteger a vida, a propriedade e a fé” dos muçulmanos, bem como garantir sua livre circulação pelas áreas onde temiam aparecer. As mesquitas lhes seriam devolvidas; os refugiados hindus que nelas se haviam abrigado seriam evacuados; e os homens de negócios muçulmanos que haviam fugido ou que se haviam ocultado poderiam retornar à atividade. Todas essas medidas deveriam ser tomadas sem o concurso da polícia ou da força militar; o povo cuidaria delas. Como evidência da seriedade da mudança, já se haviam registrado cenas emocionantes de confraternização hindu-muçulmana; e tais cenas foram descritas ao Mahatma, fatigado e em jejum. Gandhi então ergueu-se no catre, fraco mas vibrante, e discursou aos delegados. A imprensa havia relatado atrocidades ocorridas em Allahabad, disse ele. Gandhi indicou claramente que as RRS e os hindus mahasabha, cujos representantes se achavam ali na sala, arcavam com a responsabilidade. “Se vós não podeis fazer com que a Índia toda se conscientize de que os hindus, os siques e os muçulmanos são irmãos”, declarou, “isso será de mau agouro para os dois domínios. Que acontecerá à Índia, se os dois se desentenderem?” Esse pensamento sacudiu o Mahatma, e as
lágrimas começaram a rolar pelas suas faces encovadas. Os presentes soluçavam. Quando Gandhi recuperou o controle de si mesmo, sua voz estava excessivamente fraca e mal podia ser ouvida; o Mahatma sussurrou suas observações ao ouvido do dr. Sushila Nayyar, que as foi repetindo em voz alta. Estariam eles procurando iludi-lo? Estariam eles tentando salvar-lhe a vida? Desejava ir ao Paquistão. Libertá-lo-iam por meio da conservação da paz? Maulana Azad, líder muçulmano do Congresso, os portavozes da RSS, o embaixador do Paquistão e um sique fizeram declarações tranqüilizadoras. Gandhi sentou-se em seu catre, silencioso, e mergulhou em pensamentos. Nesse momento, estava decidindo se devia ou não morrer. Anunciou que suspenderia o jejum. Em primeiro lugar, leram-se trechos das Escrituras parse, muçulmana e japonesa; depois, o versículo hindu:
“Conduzi-me da inverdade para a verdade, Das trevas para a luz, Da morte para a imortalidade”.
A seguir, as moças do ashram cantaram um hino hindu, e Quando eu contemplo a maravilhosa cruz, hino cristão favorito de Gandhi. Por fim, o Mahatma aceitou um copo contendo cerca de duzentos e cinqüenta gramas de suco de laranja; lentamente, bebeu-o. Interrompeu o ato de beber para dizer que, se as promessas de paz fossem mantidas, isso lhe reavivaria o desejo de chegar aos cento e vinte e cinco anos de idade ou talvez mesmo aos cento e trinta e três. Naquela tarde, teve uma entrevista com Arthur Moore, antigo redator do diário Statesman, de propriedade britânica. Moore informou que Gandhi “se apresentava aliviado e alegre; e seu interesse, enquanto esteve falando comigo, não se
concentrava nele mesmo, e sim em mim; assediava-me com perguntas de difícil resposta”. Discursando na reunião de preces, daquela noite, Gandhi interpretou as promessas como significando “Aconteça o que acontecer, haverá completa amizade entre hindus, muçulmanos, siques, cristãos e judeus — uma amizade que não deverá mais ser interrompida”. De que isso era mais do que a piedosa ilusão de um homem em busca de bálsamo, foi testemunha Sir Mohamed Zafrullah Khan, ministro do Exterior do Paquistão, que disse ao Conselho de Segurança das Nações Unidas em Lake Success: “Uma nova e imensa onda de sentimento e de desejo de amizade entre os dois domínios está varrendo o subcontinente, em resposta ao jejum”. Ele era de fato um mágico. Se, porém, os políticos deixassem de interferir... O fim do jejum restaurou a habitual alegria de Gandhi, e ele voltou ao trabalho, com vigor. Encontrava novo apego à vida, porque havia destemidamente enfrentado a morte.
34 Morte antes da prece No primeiro dia depois do jejum, Gandhi foi conduzido às preces, numa cadeira. Em seu discurso, que mal se podia ouvir através do microfone, informou que um representante dos hindus mahasabha, que acreditavam na supremacia hindu, e que haviam sido os progenitores ideológicos da militante RSS, havia repudiado o pacto de paz de Deli. Gandhi manifestou seu pesar por isso. Enquanto o Mahatma discursava perante os que se haviam
reunido para as preces, na noite seguinte, ouviu-se o barulho de uma explosão. O auditório se agitou. “Não vos preocupeis com isso”, apressou-se Gandhi a dizer. “Ouvi-me.” Uma granada de mão havia sido atirada contra ele, por cima do muro do jardim vizinho. No dia seguinte, Gandhi dirigiu-se, a pé, para o local das preces — pela primeira vez, depois de concluído o jejum. Foram enviadas a ele milhares de felicitações, asseverou Gandhi, por haver permanecido calmo durante o incidente da bomba. O Mahatma esclareceu o caso: “Eu teria merecido elogios”, disse, “somente se tivesse tombado em conseqüência de semelhante explosão e, ainda assim, conservado o sorriso em minha face e nenhum rancor contra o assaltante. Ninguém deveria olhar de cima para baixo para o jovem transviado que havia atirado a bomba. Provavelmente, ele olha para mim como se eu fosse um inimigo do hinduísmo.” O Mahatma pediu ao rapaz que se recordasse de que “aqueles que divergem de mim não são necessariamente maus”; e solicitou à congregação que tivesse piedade do “infiel” e que procurasse convertê-lo. O jovem era Madan Lal, refugiado procedente do Penjab que vivera numa mesquita de Deli até que a polícia, de acordo com o pacto de paz feito com Gandhi, começara a desocupar os locais muçulmanos de preces. “Vi com meus próprios olhos coisas horríveis, no Paquistão”, testemunhou ele, no processo. “Fui também testemunha ocular do abatimento de hindus, a tiros, nas cidades do Penjab...” Enfurecido, participara de uma conspiração da RSS destinada a matar Gandhi. Quando foi preso, depois que sua granada de mão não chegou a atingir Gandhi, Nathuram Vinayac Godse, seu companheiro de conspiração, chegou a Deli
procedente de Bombaim. Godse, de trinta e cinco anos de idade, era redator-chefe de um semanário hindu mahasabha, em Poona, além de ser brâmane de elevada categoria. Godse, Madan Lal e sete outros conspiradores foram processados juntos; o processo durou mais de seis meses. “Sentei-me e fiquei a meditar intensamente
sobre
as
atrocidades
perpetradas
contra
o
hinduísmo, bem como sobre seu futuro, negro e fatídico, se deixado a enfrentar o Islã por fora e Gandhi por dentro”, afirmou Godse, ao fazer seu depoimento; “e... resolvi, de súbito, tomar a medida extrema contra Gandhi.” O êxito do então recente jejum do Mahatma estimulara, de modo especial, os planos de Godse e Madan Lal. Sentiram-se atarantados diante da autoridade do Mahatma e não encontraram armas contra isso. Lal, em seu depoimento, declarou que ficara exasperado pelo pagamento dos quinhentos e cinqüenta milhões de rupias ao Paquistão. Depois da prisão de Lal (uma velha mulher, analfabeta, se havia agarrado a ele, segurando-o até a chegada da polícia), Godse começou a rondar a Comunidade Birla. No bolso de seu paletó cáqui, escondia um pequeno revólver. No domingo, dia 25 de janeiro de 1948, os participantes da reunião de preces foram particularmente numerosos. Satisfeito com o fato, Gandhi disse aos fiéis que fossem buscar esteiras de palha ou panos grossos, tecidos em casa, a fim de se sentarem, porque o chão no inverno é frio e úmido. Alegrava-lhe o espírito, disse Gandhi, a notícia de que os hindus e os muçulmanos estavam passando por uma fase de “reunião de corações”. Será que cada hindu e cada sique que vier às preces daqui por diante quererá trazer consigo “pelo menos um muçulmano”, como manifestação concreta de fraternidade? Godse, de atalaia no seio da multidão, não poderia ter concordado com isso. Por que razão
— ele e os seus companheiros de conspiração perguntaram — deveriam os muçulmanos ir às preces dos hindus? Por que razão deveria o Corão ser lido por um mahatma hindu? Se eles conseguissem livrar-se de Gandhi, os muçulmanos ficariam indefesos, e, então, os hindus teriam liberdade de atacar o Paquistão e reunir a Índia. Godse estava encolerizado, mas contemporizou. Os ministros do governo faziam pressão sobre Gandhi, para que aceitasse uma guarda pessoal e permitisse que os fiéis fossem revistados. Essa idéia repugnava Gandhi. O primeiro-ministro Nehru e o deputado do primeiroministro, Sardar Patel, não andavam muito de acordo a respeito de vários assuntos. Eram opositores temperamentais. A disputa entre os dois preocupava Gandhi. O Mahatma ficava a indagar se eles poderiam permanecer juntos no mesmo gabinete ministerial. Parecia que Gandhi teria de fazer uma escolha e pedir ao outro que se demitisse. Os dois haviam entregue a situação nas mãos do Mahatma. Gandhi amava Nehru e sentia-se seguro de sua imparcial
amizade
para
com
os
hindus,
os
siques
e
os
muçulmanos. Patel, entretanto, era estadista, além de ser hábil administrador; sua saída paralisaria a governança. Por fim, Gandhi resolveu contra a necessidade de sacrificar qualquer dos dois; os dois eram indispensáveis um ao outro. De acordo com isso, o Mahatma escreveu uma nota, em inglês, a Nehru, dizendo que os “dois deveriam manter-se juntos”. Às quatro da tarde do dia 30 de janeiro Patel ouviu igual mensagem da boca de Gandhi. Às quatro e meia, a última refeição de Gandhi lhe foi servida; compunha-se de leite de cabra, verduras cruas e cozidas, laranjas e uma poção feita de gengibre, limão, um pouco de manteiga e suco
de
babosa.
Enquanto
ele
se
alimentava,
os
outros
conversavam. Já eram cinco horas. E Abha, sabendo da devoção de Gandhi à pontualidade, levantou seu relógio niquelado. “Preciso dividir-me em dois”, disse Gandhi a Patel. E saiu rapidamente, a pé, para o ponto de reunião de preces. “Estou dez minutos atrasado”, observou a Abha e a Manu, em cujos ombros se apoiava. “Tenho horror a atrasar-me. Devia ter estado aqui às cinco em ponto.” Assim dizendo, o Mahatma subiu rapidamente os cinco degraus que o puseram ao nível do assoalho ocupado pelos fiéis, para a prece. Gandhi encontrava-se, agora, a apenas poucos metros da plataforma de madeira sobre a qual costumava sentarse durante os serviços religiosos. A maior parte dos presentes se pôs de pé; muitos se acotovelaram para a frente, a fim de ficar mais perto dele; os que se encontravam mais próximos curvaramse até seus pés. Gandhi ergueu os braços, sorriu e uniu as palmas de suas mãos, no ato tradicional de saudação e de bênção. Godse conseguira colocar-se na fila da frente; tinha a mão sobre o revólver, no bolso. Não alimentava ódio pessoal contra Gandhi, declarou Godse no processo pelo qual foi condenado à morte por enforcamento: “Antes de deflagrar os tiros, eu, na verdade, desejei-lhe felicidade e curvei-me à sua frente, em reverência”. Godse colocara-se na passagem pela qual Gandhi deveria transitar e inclinara-se, Manu procurara afastá-lo dali, para um lado, de modo que Gandhi pudesse começar os serviços sem mais delongas, Godse empurrou-a para longe, e, plantandose a menos de um metro diante do Mahatma, atirou três vezes. O sorriso desvaneceu-se do rosto de Gandhi; os braços do Mahatma penderam-lhe dos lados do corpo. “Oh, Deus!”, murmurou e caiu morto no mesmo instante. Seu legado é a coragem, sua lição, a verdade, sua arma, o
amor. Sua vida ĂŠ seu monumento. Ele agora pertence Ă humanidade.
O AUTOR E SUA OBRA
O jornalista americano Louis Fischer esteve presente no centro nervoso dos principais acontecimentos de nossa época. Interessado na Revolução Soviética, seguiu para a Rússia em 1922 como correspondente free lance. Durante catorze anos, observou as transformações políticas e sociais ali ocorridas. Conheceu de perto os principais líderes soviéticos e escreveu uma biografia de Lênin que lhe valeu o National Book Award dos Estados Unidos. Sua atitude inicial de entusiasmo transformou-se, pouco a pouco, em amargo desapontamento. Nascido a 29 de fevereiro de 1896, em Filadélfia, formou-se em pedagogia em 1916 e, em seguida, alistou-se como voluntário na causa israelense pela reconquista de Jerusalém. Vinte anos mais tarde, foi o primeiro americano a apresentar-se para lutar na Guerra Civil Espanhola pela causa republicana, juntando-se à Brigada Internacional. O pacto entre a Alemanha e a União Soviética, em 1939, e a invasão da Finlândia pelo exército russo foram o ponto final de suas esperanças revolucionárias. Retornou definitivamente aos Estados Unidos com sua esposa russa, Bertha Mark, e seus dois filhos. Mas suas viagens pelo mundo continuaram. A Índia passou a ocupar todas as suas atenções, e Fischer tornou-se um grande admirador do Mahatma Gandhi, que conheceu em 1942. Ao mesmo tempo em que convivia com o grande líder indiano, devotava-se a conhecer a realidade do país. Dessa experiência, nasceu o livro “Gandhi, sua vida e mensagem para o mundo”, publicado pela primeira vez em 1952. Baseado nessa obra, o diretor inglês Richard Attenborough realizou, em 1982, o filme “Gandhi”, que recebeu vários Oscars e conquistou
sucesso mundial. Antes desse livro, Fischer já havia lançado uma biografia de Gandhi: “The life of Mahatma Gandhi” (1950). Distinguindo-se sobretudo como especialista em questões soviéticas, Fischer continuou sua atividade de correspondente estrangeiro e ampliou sua fama, proferindo
inúmeras conferências
sobre questões
internacionais. Foi também professor da Woodrow Wilson School, da Universidade de Princeton. Ao morrer, a 15 de janeiro de 1970, deixava uma vasta obra, da qual se destacam sua autobiografia, “Men and politics” (1941), e “Fifty years of soviet communism, an appraisal” (1968). Aí transparece a coerência de um homem que lutou pelas causas em que acreditava, mantendo sempre sua integridade através da distância crítica diante de seus próprios engajamentos. Enfim, um homem que viveu intensamente os grandes dilemas de seu tempo.
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