Apostila sobre Fé e Cultura

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Francisco Borba Ribeiro Neto*

FORMAÇÃO SOBRE FÉ E CULTURA PARA A DIOCESE DE GUARULHOS Campos do Jordão, 3 a 6 de novembro de 2014 Sumário APRESENTAÇÃO: UMA FÉ QUE NÃO SE TORNA CULTURA ....................................... 2 A RELAÇÃO ENTRE FÉ E CULTURA ................................................................................... 4 A FÉ QUE SE TORNA CULTURA NO CORAÇÃO DA PESSOA ..................................... 9 A FÉ QUE SE TORNA CULTURA NO CORAÇÃO DA SOCIEDADE ............................ 13 O DESAFIO À FÉ NA CULTURA PÓS-MODERNA ........................................................... 17 QUESTÃO MORAL, RELIGIÃO E CULTURA JUVENIL .................................................... 23 A CULTURA E O MAGISTÉRIO DO PAPA FRANCISCO ............................................... 29

Contato: fone 3670-8366 / e-mail: fborba@pucsp.br 1


APRESENTAÇÃO: UMA FÉ QUE NÃO SE TORNA CULTURA

A valorização da cultura, no contexto do que hoje chamamos de “nova evangelização”, é devida em grande parte a João Paulo II. O tema já está presente nos documentos conciliares, como a Gaudium et Spes, mas ganha especial relevo na perspectiva do papa polonês. A Polônia, que passou grande parte de sua história ocupada pelas potencias vizinhas, deve muito de sua existência como Nação a uma resistência cultural de seu povo. Por outro lado, a ocupação soviética teve sempre a preocupação de solapar suas bases culturais, fortemente religiosas, como forma de dominação. Por isso, João Paulo II percebia na cultura o eixo de uma batalha pela sobrevivência e até pela expansão do cristianismo no mundo atual. Ele escreveu na Carta de Instituição do Pontifício Conselho para a Cultura (1982): “uma fé que não se torna cultura é uma fé que não é plenamente aceita e totalmente pensada, nem fielmente vivida”. A cultura, portanto, não é apenas uma realidade a ser penetrada por uma fé que se incultura. Ela também é uma obra da fé, uma explicitação necessária da fé no mundo. A fé se torna cultura em primeiro lugar como mentalidade, forma de ver e julgar a realidade. Mas também gerando estruturas objetivas, modos de organizar a vida social, representações artísticas, etc. que refletem e testemunham esta mentalidade. O que caracteriza esta “mentalidade cristã”, este modo de ver o mundo que nasce da experiência de fé? A pergunta pode receber respostas um pouco diferentes, em função da história pessoal de cada um, mas a origem desta mentalidade é sempre a capacidade de ver a realidade como sinal, como “mensagem” que nos coloca em comunicação com Deus. Uma analogia pode nos ajudar a entender esta mentalidade. Suponhamos um buquê de flores que é entregue na casa de uma jovem. De modo geral, o que nós esperaríamos dessa jovem? Que ela passasse a procurar indicações de quem lhe enviou o buquê e qual era a intenção desta pessoa. Mas pode haver aquela garota que em vez de se perguntar quem lhe mandou esse buquê e com que intenção enviou, ficasse mostrando o buquê para todos repetindo: “Ganhei um buquê bonito. Olha que buquê legal”. Ou então aquela casa em que as pessoas estão tão surdas ao mundo exterior ou tão confusas pelo barulho das buzinas e dos carros na rua que nem mesmo escutam a campainha do entregador.. A realidade é como esse buquê, e nós podemos estar diante dela de um modo ou de outro, perguntando pelo seu sentido, nos preocupando apenas com a sensação imediata, ou até mesmo tão ensurdecidos e cegados por nossas preocupações que não nos damos conta do que acontece. Quem está se perguntando sobre o significado do buquê está numa posição religiosa. Porém também é de certa forma uma questão de lógica. A cultura católica começa ali onde esta pergunta sobre quem enviou o buque encontra a resposta e descobre o amor de Deus pelo ser humano. Por isso, a caridade cristã – que é o centro mesmo da mensagem e da cultura cristã – não se identifica com qualquer amor humano (ainda que todo amor humano tenha algo de reflexo do amor de Deus). A caridade implica neste diálogo entre Deus e a pessoa humana, esta percepção do amor como algo que não nasce de nós mesmos, mas que é dom e ao mesmo tempo sinal de um Outro. 2


Pode haver uma fé que não carregue em si esta mentalidade? Por paradoxal que possa parecer, pode haver sim. Uma visão da fé reduzida a norma, na qual o crente deixa de ter fé no amor de Deus, para ter fé nas normas que acredita representarem o amor de Deus. Ou numa visão “mágica” da fé, na qual a pessoa deve “dar alguma coisa a Deus” para “receber uma graça” em troca.

Uma Pastoral do discernimento e do diálogo O que é uma “Pastoral da Cultura”? Esta, provavelmente, é uma das pastorais menos entendidas na Igreja. Muita gente pensa nela como uma “pastoral de eventos e palestras” ou como uma “pastoral de tombamentos e obras de arte sacra”. Numa certa época ficaram famosos os “centros culturais” e ela foi vista como a “pastoral dos centros culturais”. Todas estas coisas estão ligadas à Pastoral da Cultura, mas nenhuma delas mostra o coração desta Pastoral, que pode ser encontrado em duas palavras: discernimento e diálogo. Não se trata de ter mais iniciativas, além de todas as que já fazemos, mas de ter – em tudo que fazemos – uma atenção especial para com o discernimento e o diálogo. Por isso esta é uma Pastoral particularmente necessária nos dias de hoje. Na prática, como fazemos uma Pastoral da Cultura? Para começar, buscando praticar – em tudo o que fazemos – o discernimento e o diálogo com todos. Em cada atividade, em cada decisão, em cada situação, temos que nos perguntar: a partir daquilo que tenho vivido desde que encontrei a Cristo, que passei a caminhar junto Dele, como avalio as coisas que acontecem? Como Ele, que está sempre junto comigo, gostaria que eu agisse agora? O que a Igreja me aconselha agora e por que ela dá estes conselhos? Mas isso pode ser falso se não vivemos um diálogo permanente entre nós, com as pessoas que estão próximas a nós, mas que pensam diferente, e com o mundo das ciências e do conhecimento. Um diálogo que não é proselitista ou arrogante, nem submisso, mas que busca o encontro e uma amizade verdadeira. Para nos ajudarmos neste caminho, podemos fazer jornaizinhos, organizar eventos, produzir panfletos, etc. Mas estes serão sempre instrumentos e não o coração da Pastoral da Cultura

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A RELAÇÃO ENTRE FÉ E CULTURA

Todas as culturas são constituídas por elementos subjetivos (visão de mundo, crenças, princípios morais, representações ideológicas, etc.) e elementos objetivos (as construções materiais, as obras de artes, as leis, a forma de organizar a sociedade). Ao longo da história, se formaram grandes tradições culturais que costumamos denominar como civilizações (por exemplo: grega, chinesa, ocidental). A civilização ocidental, extremamente complexa e plural, apresenta várias manifestações culturais. Podemos, por exemplo, distinguir a cultura ocidental medieval da liberal burguesa, ou a cultura popular (produção cultural mais difundida entre a população) da erudita (obras consagradas ao longo da história, geralmente mais sofisticadas e elaboradas que as demais). Em termos culturais todas as sociedades são plurais em algum grau. A chamada pósmodernidade é o tempo em que esta pluralidade se tornou mais evidente. Muitos autores falam em “subculturas”, mentalidades ou outros termos semelhantes, para designar as diferentes manifestações culturais que convivem no interior de uma mesma sociedade. Assim, quando os papas e a Igreja falam de “cultura da morte”, “cultura do descarte” ou “cultura do encontro”, por exemplo, referem-se a estas mentalidades que coexistem em nossa sociedade. Não existe apenas uma única cultura cristã, mas sim várias “culturas cristãs”, isto é, culturas nas quais o significado último da realidade foi iluminado pela revelação cristã. Diferentes culturas podem receber esta revelação de modo diverso, gerando diferentes expressões da fé, mas todas têm elementos em comum, que poderão estar mais ou menos amadurecidos em cada contexto histórico e social, como o reconhecimento de um Deus que é Pessoa, que ama e se doa ao ser humano, a afirmação da dignidade inviolável da pessoa humana, o valor da solidariedade, etc. Da mesma forma, podemos dizer que existem culturas que não são cristãs e até anticristãs, na medida em que se contrapõem a estes elementos comuns das culturas cristãs. Existe um vínculo profundo entre a cultura ocidental e o cristianismo, a tal ponto que não é possível separar a história do cristianismo da história da cultura ocidental. A maior parte dos valores professados pela sociedade ocidental são valores cristãos e/ou que adquiriram sua forma atual no contexto do cristianismo. Contudo, mesmo no Ocidente, muitos valores cristãos tiveram que ser amadurecidos ao longo dos séculos, como a tolerância e o respeito ao diferente. Além disso, a cultura ocidental moderna muitas vezes se afastou de sua matriz religiosa, deturpando muitos valores cristãos. Os valores da dignidade e da liberdade da pessoa humana, por exemplo, aparecem deturpados no individualismo e na autonomia sem limites da sociedade atual.

A fé e o pluralismo cultural Para a doutrina católica, as culturas são uma manifestação necessária da natureza humana. A pessoa humana só se realiza plenamente por meio da cultura (cf. Gaudium et Spes, nº 53). Podemos sobreviver e ser o que somos apenas por meio de uma interação entre nossa 4


natureza orgânica e instintiva e o contexto cultural no qual vivemos. Mesmo que todos os elementos humanos estejam presentes, não existe realização do humano sem a cultura. Assim, a doutrina católica se afasta daquelas escolas de pensamento que pregam uma ruptura entre natureza humana e cultura, que propõem a satisfação da instintividade – desvinculada de qualquer compromisso ético ou cultural – como única forma de realização humana. A Igreja sabe que a pessoa humana é, em si mesma, contraditória, nascida para a graça, mas capaz do pecado. As culturas refletem este aspecto contraditório do ser humano: buscam sempre a verdade, o bem e a beleza, mas podem se desvirtuar e não estar direcionadas para seus ideais últimos. Por isso, o trabalho cultural não é, para o cristão, uma mera condenação, mas sim uma purificação, que permite recuperar o sentido verdadeiro de cada coisa e rejeitar a coisa errada. Todos compartilhamos um conjunto de particularidades e exigências que caracterizam o ser humano. Aspiramos por felicidade, liberdade, reconhecimento da dignidade pessoal e amor. Mesmo que alguém não tenha consciência destas aspirações universais, em função de uma história pessoal na qual elas não foram apresentadas, irá aderir a elas quando as conhecer, pois correspondem a sua humanidade. É isto que a tradição cristã chama de “lei natural” e de “natureza humana”. O cristianismo pode ser universal, ser proposto a todas as culturas e valorizar a todas elas na medida em que dialoga com estes valores universais e responde a estas exigências profundas do coração de todos os seres humanos.

A inculturação do Evangelho Desde seus primórdios, a proposta evangélica nunca foi a de substituir uma cultura não cristã por outra cristã, mas sim de fazer com que a Boa Nova cristã fecundasse as outras culturas, mostrando o significado de suas tradições e de seu modo de ser e as tornando assim mais humanas. Este entrar nas culturas, para crescer dentro delas e com elas, é o que a Igreja chama de inculturação do Evangelho. É diferente de um processo de aculturação, na qual um povo é submetido à cultura de outro, perdendo sua identidade original. O maior exemplo de inculturação do Evangelho aconteceu no Império Romano, quando o cristianismo se inculturou na civilização helênica, criando a cultura ocidental. Nas Américas, na África e no Extremo Oriente, a ação dos missionários procurou ser um trabalho de inculturação, muitas vezes bem sucedido. Contudo, a dominação colonial europeia levou à destruição de muitas culturas e à aculturação dos povos não europeus, ofuscando e até mesmo destruindo a obra de inculturação e de valorização das outras culturas realizadas pelos missionários. Na América do Sul, o caso mais emblemático é o dos Sete Povos das Missões (séculos XVII e XVIII), onde missionários jesuítas ajudaram os índios guaranis a construir uma organização social que preservava os valores da cultura indígena e a autonomia dos índios, abraçava o Evangelho e incorporava os conhecimentos técnicos e científicos da sociedade europeia. A sociedade guarani dos Sete Povos foi muito desenvolvida e rica para o seu tempo e acabou sendo destruída pelo poder colonial português e espanhol. No contexto brasileiro, São José de Anchieta é um dos exemplos mais marcantes de experiência de inculturação. Sua biografia impressiona não só pelas obras materiais e espirituais que realizou, pela sua capacidade de entrar na alma indígena, mas também pela sua 5


vivacidade intelectual e pessoal. A inculturação, para ele, não se apresentava como uma missão exterior, mas como a consequência de sua personalidade apaixonada e fascinada pela vida e pela realidade.

Cultura e discernimento A cultura implica na construção de um discernimento sobre as coisas do mundo, na capacidade de perceber e compreender “os sinais dos tempos”. No discernimento, razão e fé se combinam, sem que uma cancele ou substitua a outra. Precisamos da razão para analisar e compreender o que está se passando a nossa volta, para entender as informações que nos vem da ciência e as consequências que poderão vir de nossas ações. Mas é a luz da fé que ilumina nossa razão neste processo. O problema é que muitas vezes a luz da fé parece uma coisa abstrata e distante, um sentimento de nosso coração ou deduções abstratas feitas a partir da Bíblia. Mas, como a fé inclui essas coisas, mas não se reduz a elas, frequentemente o que deveria ser discernimento acaba se confundindo com propostas ideológicas ou palavras de ordem até bem intencionadas, mas que não correspondem integralmente ao projeto de Deus para as pessoas e a sociedade. Num momento de discernimento, temos que comparar tudo que está a nossa frente com a experiência de vida que estamos fazendo a partir de nosso encontro com Cristo. Este é um trabalho pessoal, mas que não é individualista ou solitário, porque nossa vida de fé é comunitária e supõem todos os ensinamentos que chegam até nós pela comunidade e a tradição da Igreja. Sem este trabalho pessoal, sem a consciência de que o encontro com Cristo é um acontecimento que muda nossas vidas, que determina concretamente nosso agir, acabamos “comprando gato por lebre”. Pensamos que qualquer proposta bem intencionada é a mensagem cristã e aceitamos críticas supostamente cientificas que são feitas às propostas da Igreja simplesmente porque não entendemos realmente o que a Igreja está nos propondo. Por isso, para discernir temos que estar sempre prontos a dar as razões de nossa fé e as razões das propostas que nascem da sabedoria da Igreja. O discernimento cristão se sustenta em quatro pilares básicos: 1. Atenção aos sinais que Deus põe no mundo. Ele dialoga conosco por meio de suas obras e da história, mas é preciso estar atentos a estes sinais. 2. Oração, como pedido e “resposta” a este diálogo que Deus quer manter conosco (pois o diálogo com deus começa sempre por iniciativa Dele, ainda que em certos momentos tenhamos a impressão que começou conosco). 3. Estudo da doutrina, não como normas e regras a serem aplicadas, mas como indicações de uma visão de mundo a ser assumida. A pergunta nunca deve ser “o que a doutrina diz sobre isto?”, mas sim “por que a doutrina diz isto?”. 4. Presença da comunidade cristã, por meio do diálogo, da correção fraterna, da direção espiritual, da obediência à autoridade eclesial.

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Fé e diálogo Por meio do diálogo não só nos comunicamos com o outro, mas também ganhamos mais consciência de quem somos, de quais são os nossos valores e nos deixamos questionar pelo outro – podendo assim nos tornar mais verdadeiros. Por estes dois fatores, o diálogo é fundamental para que a fé se torne cultura. Mas existem duas ameaças a um diálogo real. A primeira é a falta de uma identidade por parte de um dos que dialogam ou de ambos. Se eu não sei quem eu sou, quais são meus valores, quais são as razões pelas quais eu defendo isso ou aquilo, não terei nada para comunicar ao outro. Não tem graça dialogar com quem não tem o que dizer. Ele não ajuda nem é verdadeiramente ajudado pelo outro. E, neste caso, o suposto diálogo vira doutrinação. O outro perigo é a falta de um encontro real. Em nossa sociedade, as pessoas frequentemente dizem estar dialogando, mas não querem se abrir ao outro, não querem se deixar questionar pelo outro e nem fazer um caminho juntos. O diálogo não tem sentido se não representa o começo de uma amizade, de um caminho em busca do bem daqueles que dialogam. E, em nossa sociedade, o diálogo que deveria levar à amizade e ao compromisso em comum frequentemente não passa de uma conversa que leva a pactos de coexistência – melhores que o confronto, mas incapazes de satisfazer a humanidade de uma pessoa que deseja sua realização e o bem comum. Para que haja o diálogo, cristãos também precisam “purificar” a sua posição, colocando-se numa postura correta diante do interlocutor. Não é possível iniciar um diálogo a partir da ideia de que temos a verdade, que a fé nos torna sempre certos. Papa Bento XVI, que sempre se bateu contra o relativismo atual, explicitou que “sem dúvida, não somos nós que possuímos a verdade, mas é ela que nos possui a nós” (Discurso aos membros da Cúria, 21/dez/2012). E a Verdade pode se valer de todos os caminhos e de todas as pessoas para se comunicar a nós. A consciência da nossa identidade e uma convicção segura são fundamentais para o diálogo, assim como a consciência dos limites de nossa capacidade intelectual, que nunca poderá compreender a totalidade do real. O cristão, no diálogo com os não crentes, deve procurar fazer as perguntas certas, aquelas que nos conduzem à descoberta compartilhada de nossa própria humanidade. Retomo dois exemplos do prof. Jean-Luc Marion, da Sorbonne. A pergunta “o que fazer para acabar com a pobreza?” é uma pergunta possível, mas não particularmente adequada para este diálogo. A pergunta, que nasce de uma experiência de fé, a ser lançada ao outro é “por que, apesar de todos os nossos esforços, a pobreza continua a existir no mundo?”. Num exemplo até mais inequívoco, a pergunta a ser lançada a um ateu não é “por que você não tem fé?”, mas sim “qual é o Absoluto no qual você deposita sua fé?”, pois todos precisamos de um Absoluto sobre o qual construir nossa vida e nosso raciocínios. Estas perguntas, se adequadamente trabalhadas, não são apenas um instrumento eficaz de diálogo com o outro, mas também uma grande ajuda para a construção de nossa percepção da fé como cultura.

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Sugestões de leitura 

CONSELHO PONTIFÍCIO DA CULTURA. Para uma Pastoral da Cultura. Vaticano, 23 de Maio de 1999.

FRANCISCO. Exortação Apóstolica Evangelii Gaudium, Nº 127-129, 132-134, 142-144, 221237. Vaticano, 24 de novembro de 2013.

MASSIMI, M. José de Anchieta e o desafio de ampliar a razão. Revista Passos-CL, Nº 158, Maio/2014, 30-33.

PRADES, J. A razão é inimiga do Mistério? Parte I: O itinerário da razão. Homepage do Núcleo Fé e Cultura, 2007 [Disponível em http://www.pucsp.br/fecultura/textos/fe_razao/inimiga_misterio.html].

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A FÉ QUE SE TORNA CULTURA NO CORAÇÃO DA PESSOA

O homem é um ser que se esquece das coisas. O esquecimento é parte integrante de nossos limites na terra. No livro Ideologia e utopia (Rio de Janeiro: Zahar Editora, 1982), K. Manheim considerava que “hoje em dia um pesquisador (mas poderíamos generalizar para um intelectual) poderia dizer com Nietzsche: ‘Esqueci por que comecei’ (Ich habe meine Gründe vergessen)”. No Apocalipse, para a igreja de Éfeso, o esquecimento das origens é descrito com palavras ainda mais dramáticas: “Conheço tuas obras, teu trabalho e tua paciência: não podes suportar os maus, puseste à prova os que se dizem apóstolos e não o são e os achaste mentirosos. Tens perseverança, sofreste pelo meu nome e não desanimaste. Mas tenho contra ti que esqueceste o teu primeiro amor. Lembra-te, pois, donde caíste. Arrepende-te e retorna às tuas primeiras obras. Senão, virei a ti e removerei o teu candelabro do seu lugar, caso não te arrependas” (Ap 2: 2-5). Por isso, o cristão é continuamente chamado a viver entre a memória e a esperança. A memória é mais que uma simples recordação afetiva ou narrativa da história, é um juízo sobre ela e seu significado na constituição de nós mesmos. Vivemos entre a memória de um encontro amoroso que mudou nosso existir, dos fatos através dos quais a história nascida desse encontro definiu nosso ser, e a espera do pleno cumprimento da promessa que nos foi feita naquele encontro. Discorrendo sobre este tema, Bento XVI escreveu uma passagem que se tornou emblemática de um momento da história da Igreja pós-conciliar: “Ao início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo” (Deus caritas est, 1). Papa Francisco fará uma retomada interessantíssima desta passagem ao escrever para o jornalista agnóstico Eugenio Scalfari: “A fé, para mim, nasceu do encontro com Jesus: um encontro pessoal, que tocou o meu coração e deu uma direção e um sentido novo à minha existência; mas, ao mesmo tempo, um encontro que se tornou possível pela comunidade de fé em que vivi e graças à qual encontrei o acesso ao entendimento da Sagrada Escritura, à vida nova que flui, como jorros de água, de Jesus através dos sacramentos, à fraternidade com todos e ao serviço dos pobres, verdadeira imagem do Senhor. Sem a Igreja – creia-me! –, eu não teria podido encontrar Jesus, embora ciente de que este dom imenso da fé está guardado em frágeis vasos de barro que é a nossa humanidade. Ora, é precisamente a partir desta experiência pessoal de fé vivida na Igreja que me sinto à vontade para perscrutar as suas perguntas e procurar, juntamente com o senhor, as estradas ao longo das quais possamos talvez começar a fazer um pedaço de caminho juntos” (Vaticano, 4 de setembro de 2013).

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Recordando o primeiro amor Por isso, para não esquecer a razão pela qual nós também fazemos as coisas, para olhar de modo adequado as perspectivas de nosso trabalho cultural, devemos nos perguntar sempre: por que começamos? Qual foi a primeira intuição que nos lançou nesse trabalho? No início de toda ação cultural existe o desejo inextirpável do ser humano de imprimir a marca de seu “eu” na realidade que o cerca, de criar um mundo no qual possa reconhecer-se através de suas obras. Assim, como uma jovem enamorada necessita comunicar a suas amigas que encontrou alguém que lhe corresponde, contar-lhes as coisas e as alegrias que compartilha com essa pessoa, assim para o cristão a excepcionalidade de seu encontro com Cristo gera uma necessidade de comunicação, de criação de novas obras que é raiz de cultura. Contudo, o mundo moderno está organizado de forma a reduzir, cada vez mais, o protagonismo social e a capacidade de expressão cultural das pessoas. Faz isso através de dois processos complementares: 1. A fragmentação do desejo de realização e felicidade que é inerente a toda pessoa, que é transformado numa série de necessidades e desejos parciais que podem ser satisfeitos segundo a lógica do mercado – mesmo quando se referem a outras pessoas ou ao sentido da ação. Assim, o desejo de realização e de autoexpressão na vida é trocado pelo acesso aos bens que podem satisfazer a essas necessidades e esses desejos parciais, num processo crescente de alienação. 2. A homologação do próprio protagonismo social ao Estado e aos grandes atores sociais (partidos e corporações), em troca de uma aparente possibilidade de autonomia individual. O Estado, o partido, o mercado e a mentalidade dominante determinam as grandes linhas de organização da sociedade (a esfera pública), enquanto os indivíduos aparentemente podem fazer o que quiserem em sua vida privada. Na verdade, como a vida privada sempre está condicionada pela esfera pública, a pessoa perde sua autonomia tanto no público quanto no privado.

O trabalho cultural na maturidade No amanhecer do nosso amadurecimento à consciência da fé, o trabalho cultural nasce como oposição a essa alienação e a essa homologação, como desejo de expressão de nosso “eu” mudado pelo encontro com Cristo. Porém, na maturidade da fé, outro elemento se soma a esse. “Jesus viu uma grande multidão e compadeceu-se dela, porque era como ovelhas que não têm pastor. E começou a ensinar-lhes muitas coisas” (Mc 6, 34). Agora, ainda que explicitar a própria fé permaneça como o grande objetivo da ação, sua razão de ser muda, não é mais a afirmação de si mesmo no mundo, mas sim o desejo que os outros realizem o mesmo encontro e que tenham a mesma abundância de vida que descobrimos Nele. Agora, a compaixão, entendida como paixão ou dor compartilhadas, e a capacidade de “com-moção”, iniciativa, movimento feito junto com o outro, se tornam os grandes sentidos do trabalho cultural. Quando permitimos que o esquecimento se instale em nossa consciência e obscureça a perspectiva do trabalho cultural, nos tornamos escravos das três grandes tentações de Cristo (Lc 4, 1-13), que podemos entender como sendo, em nosso caso, (1) o acomodar-se em troca do conforto material; (2) a ânsia de poder e dominação; e (3) o egocentrismo, tão típico de 10


intelectuais, artistas e outras personalidades que trabalham no âmbito da cultura. As duas últimas tentações têm consequências particularmente graves para o trabalho cultural dos cristãos. O homem moderno costuma dizer que tem uma grande resistência à Igreja por sua intransigência, sua tendência de ditar normas, sua falta de abertura ao diferente. Considera que essas posturas nascem de uma certeza que caracteriza a experiência cristã e defende, muitas vezes com boa intenção, uma postura de incerteza frente à vida. Porém, essa intransigência que parece ser percebida entre os cristãos não nasce da certeza, mas sim do desejo de dominação ou de afirmação do próprio ego que pode caracterizar nossa ação, assim como a de qualquer pessoa que se esquece que vive por um grande ato de Amor. Do mesmo modo, a falta de unidade entre os cristãos, que nos leva a perder o sinal mais evidente da presença de Cristo entre nós, pode ser compreendida como vitória do desejo de poder ou de afirmar o próprio ego mais do que afirmar o acontecimento de amor que nos reuniu.

Um caminho de fidelidade a Cristo Em sua pedagogia universal, a Igreja nos indica, como caminhos para manter presente a memória, a vida de oração, os sacramentos e a vida comunitária. Porém, existem dimensões da vida cristã que são particularmente importantes para aqueles que se dedicam ao trabalho cultural. A primeira dentre essas dimensões é a experiência elementar do desejo profundo e radical que está em nosso coração, que orienta todo ser humano em sua busca última por felicidade. A sociedade moderna nos ensinou a duvidar da existência desse desejo ou a crer que se trata de uma particularidade dos espíritos religiosos. Assim, como já vimos, esse desejo unitário pode ser substituído por necessidades e desejos parciais facilmente manipuláveis. Porém, a fidelidade a esse desejo fundamental é o critério último de discernimento que nos permite perceber a falsidade que se esconde por detrás das ilusões que a mentalidade dominante nos impõe; ou das tentações do poder e de nosso próprio ego. A segunda dimensão é a da vida como missão. A cultura moderna fecha o ser humano em si mesmo, sua vida existe só para ele mesmo ou, quando muito, para seus entes mais queridos. Porém, todo ser humano faz a experiência de perceber que sua vida é maior que ele mesmo, se sente chamado a qualquer coisa mais que seus próprios limites, a um amor tão grande como a própria realidade. A missão é a dimensão de nossas vidas em que esse amor se apresenta em toda a sua grandeza e amplidão. Não importa se a missão é cuidar de uma criança pequena ou administrar uma nação, em seu horizonte toda a realidade se torna sinal do sentido da vida e, para os cristãos, do Amor primeiro que nos deu essa tarefa. A missão não é, para o adulto na fé, uma escolha individual, mas sim uma oferta, a aceitação do caminho que Outro nos dá. Como Pedro, também nós somos chamados à disponibilidade de estender nossos braços para que outro nos leve aonde não queremos ir (cf. Jo 21, 18). A missão é oferta de si mesmo e obediência. E justamente a liberdade dos que obedecem é a terceira dimensão que nos ajuda a viver na memória. A obediência cristã não é submissão à vontade de quem tem o poder, mas sim oferta, entrega de si mesmo a Deus através da comunidade humana que Cristo mesmo criou em sua Igreja. O verdadeiro ato de 11


obediência implica em um gesto de pobreza e de memória, no reconhecimento de que Ele, e não nosso projeto individual, é o centro e o sentido de nossa ação. Por isso, numa cultura cristã, a obediência coincide com a suprema liberdade, pois é através dela que fazemos memória do Amor que nos chamou e recuperamos a esperança de uma positividade que não depende da nossa genialidade ou coerência ou daqueles a quem obedecemos, mas sim do poder de Deus, que é capaz de mudar o mal em bem, e resgatar até mesmo aquilo que nos parecia irremediavelmente perdido. No trabalho cultural, nós cristãos somos frequentemente tentados a minimizar ou disfarçar a obediência, buscando uma aceitação mais fácil da mensagem católica pelo mundo laico. As palavras seriam muito duras, os pastores muito pouco flexíveis, o Magistério não seria adequado à especificidade de nossas situações. Esse é um erro lamentável entre nós. Em primeiro lugar porque não é educativo para nossa liberdade. E não podemos esquecer que Deus pode mudar o mundo como quiser, porém não muda nossa vida sem o consentimento de nossa liberdade. Porém, o mundo também nos interroga sobre os desígnios de Deus segundo a Igreja, e não sobre a nossa interpretação dos desígnios de Deus. Assim, a fidelidade e a obediência à mensagem da Igreja são também fidelidade a nós mesmos e a nossos interlocutores não católicos.

Sugestões de leitura 

FRANCISCO. Carta ao diretor do jornal italiano «La Repubblica» E. Scalfari. Vaticano, 4 de setembro de 2013).

GIUSSANI, L. Em busca do rosto do homem. São Paulo: Ed. Companhia Ilimitada, 1996.

GIUSSANI, L. O senso religioso. Brasilia: Ed. Universia, 2009.

PRADES, J. A razão é inimiga do Mistério? Parte II: A vida é ser chamado por Outro. Homepage do Núcleo Fé e Cultura, 2007].

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A FÉ QUE SE TORNA CULTURA NO CORAÇÃO DA SOCIEDADE

O desejo de construir, de moldar um mundo que nos corresponda, está inscrito em nossos corações. João Paulo II, na Laborem exercens (Nº 6), ressalta que o trabalho humano tem o sentido de continuar a obra criadora de Deus. Pelo trabalho o ser humano cria o seu mundo, um mundo que é (ou deveria ser) adequado a ele. A inculturação do Evangelho leva a construções objetivas, materiais ou não, inspiradas na experiência da fé. A moderna sociedade ocidental é um resultado nítido deste processo. Traços culturais tão diversos como os direitos humanos, os sistemas de seguridade social, a democracia moderna, a ciência ou o amor romântico se desenvolveram no Ocidente cristão de um modo único no mundo. Todos estes avanços estão intimamente associados a uma visão de mundo que nasce da fé. Não é o caso, aqui, de retomar a contribuição da mentalidade cristã para o progresso do Ocidente (para isto, ver bibliografia no final do capítulo). Nossa questão agora é procurar entender como a experiência da fé, vivida numa perspectiva integral, cria estas estruturas objetivas que constituem a cultura de uma sociedade.

A caridade e a verdade Na origem deste processo está sempre a caridade, o amor gratuito de Deus pelo ser humano, e a necessidade do ser humano de responder a este amor gratuito – quer com obras e ações que prestem culto a Deus, quer com obras e ações que levem esta gratuidade aos demais. Porém, como Bento XVI sempre insistiu, a fé cristã não seria o que é se os cristãos não tivessem buscado um diálogo permanente com a razão, com vistas ao conhecimento mais fiel possível da verdade. Esta afirmação necessita de uma explicação, pois nossa mentalidade moderna criou uma dissociação entre racionalidade e afetividade que é totalmente estranha ao cristianismo. Reduzimos a razão à lógica e à construção de cadeias de causa e efeito onde o elemento afetivo entra como uma irracionalidade. Mas os cristãos primitivos se relacionaram com a filosofia – e através dela com a razão – não para controlar e eliminar os afetos, mas sim para melhor compreender e desenvolver o grande afeto que lhes tomava a vida. “Dar as razões da própria fé” não é apenas um exercício apologético voltado aos que não tem fé, mas principalmente um mergulho na própria experiência humana do crente e no significado da natureza como sinal de um Outro. Esta crença num Deus racional, que cria um universo ordenado e capaz de ser compreendido e até manipulado pelo ser humano está na base do desenvolvimento das ciências no Ocidente. Os primeiros passos da ciência moderna não foram dados por céticos empedernidos, dedicados a livrar o mundo do obscurantismo religioso, mas sim por homens religiosos que procuravam desvendar as mensagens de Deus inscritas no livro da criação. 13


Rubem Alves, em Filosofia da Ciência: uma introdução ao jogo (São Paulo: Ars Poética, 1996), cita estas palavras de Kepler, falando sobre sua teoria das órbitas dos planetas em torno do Sol: “Entrego-me a uma verdadeira orgia sagrada [...] Enfurecerei a humanidade com a cândida confissão de que roubei os vasos de ouro dos egípcios, a fim de construir com eles um tabernáculo para o meu Deus [...] O livro está escrito [...] Ele pode esperar cem anos pelo seu leitor, se o próprio Deus esperou seis mil anos para que um homem contemplasse a Sua obra”. Desta postura cristã nasce uma atenção especial com a educação. A capacidade de ler, o aprendizado da matemática, o conhecimento sobre as coisas da natureza são condições necessárias para a familiaridade com um Deus que não se manifesta no puro arbítrio de uma vontade irracional (como eram os deuses pagãos, passíveis de serem conquistados com dádivas e oferendas, ou que causavam o caos e a catástrofe quando irados). Assim, a promoção humana realizada pela educação e o encontro com Cristo acontecem num mesmo processo formativo. Muitos fatores levaram ao rompimento desta unidade entre fé e razão, que tanto bem fez à civilização ocidental. A frequentemente citada perda da identidade das escolas católicas tem aqui sua origem, bem como a expansão das interpretações fundamentalistas da fé. No campo laico, esta separação leva à progressiva perda de referenciais objetivos para a reflexão, eliminado a busca pelo sentido e reduzindo a razão a mera lógica instrumental.

A caridade e a beleza Não existe amor que não deseje se expressar ou se ver expresso como beleza. O amor entre Deus e o ser humano não poderia estar fora desta dinâmica. Por isto a arte ocupa um espaço privilegiado em todas as religiões e grande parte das manifestações artísticas acumuladas pela humanidade ao longo dos séculos está associada às religiões. Não é necessário discorrer aqui de como a Igreja Católica tem sido fonte de inspiração para a arquitetura, a pintura, a escultura e a música do Ocidente, É mais interessante nos determos na fratura entre fé e beleza que acontece na Modernidade, em função do utilitarismo e da subjetivação tanto da fé quanto da beleza. O utilitarismo levou à ideia de que a beleza é um supérfluo, algo “a mais” que não deve ser buscado num mundo ainda marcado pela fome e pela pobreza. Em grande parte esta mentalidade está associada à identificação da beleza com o luxo e a ostentação, mas também com um profundo desconhecimento da própria alma humana. Sentimos necessidade de retribuir de alguma forma ao amor recebido, a gratidão não é uma imposição moral, mas uma reação natural que nasce em qualquer coração não desfigurado pela solidão, a dor e o sofrimento. Por outro lado, o espaço sagrado, o culto e a oração precisam se revestir de beleza porque são os locais e os tempos de celebração do amor. A beleza não é só para Deus ou para os sacerdotes e autoridades eclesiásticas, mas para todo fiel que deseja explicitar o amor que recebe e ao qual tenta retribuir. É verdade que, ao longo da história, muitas vezes o luxo e a ostentação desvirtuaram o sentido da beleza na Igreja, mas isso não elimina a necessidade da beleza, que subsiste mesmo nas situações de maior carência material. A influência do utilitarismo, contudo, é reflexo de outro problema mais profundo: a perda da objetividade da fé e da beleza, que acompanha o antropocentrismo da mentalidade 14


Iluminista. A partir do Iluminismo, o ser humano (na verdade a subjetividade de alguns seres humanos) passa a ser vista como o centro, se não do universo, pelo menos do conhecimento. No campo da fé, o diálogo com Deus passa a ser visto cada vez mais como um processo totalmente subjetivo, que acontece apenas no intimo de cada pessoa, mediado por uma Sagrada Escritura que se descola cada vez mais de uma interpretação dada pela Tradição. Trata-se da versão do cristianismo nascida da Reforma Protestante, mas que se estenderá também por boa parte do mundo católico. No campo da estética, a beleza passa a ser vista como um elemento totalmente subjetivo, determinado por inclinações e peculiaridades da história de cada um. O resultado é que passa a faltar, na comunidade cristã, a ideia de uma beleza objetiva, que reflete uma fé igualmente objetiva. Se fé e beleza são totalmente subjetivas, entende-se que uma mentalidade utilitarista possa considerar a beleza como um supérfluo, que agrada a algumas sensibilidades particulares e que por isso pode ser posta de lado na vida cristã. Acontece que a fé cristã, ao menos em sua interpretação católica, é um acontecimento objetivo. Retomamos a ideia de Bento XVI, na Deus caritas est, lembrada por Francisco na carta a Scalfari: “Ao início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo” (Deus caritas est, 1). Ora, sendo o encontro com uma Pessoa objetiva, a fé define também uma estética objetiva. Não rezamos apenas como nossa subjetividade nos sugere, mas como Ele nos ensina e nos sugere, como lembra o Novo Testamento (Lc, 11: 1, cf. Ro 8: 26). Assim como os amantes educam sua sensibilidade para adaptarem-se um ao outro, o cristão é convidado a se deixar educar a uma sensibilidade e a uma percepção da beleza que é própria da Tradição. A objetividade da beleza cristã exige uma educação e hoje pode parecer não atrativa. Mas se entrarmos no intimo desta estética, veremos que é construída a partir de arquétipos que impactam a qualquer pessoa, em qualquer época. O problema é que as obras, os gestos, as canções que formam esta grande Tradição não podem ser saboreados de forma isolada ou fragmentada. Eles exigem uma unidade entre coração, ambiente e expressões para ser adequadamente percebida. Quando esta unidade é apresentada, a estética cristã tem sempre um profundo impacto sobre a consciência das pessoas (ver nas sugestões de leitura o artigo de 'Marcelo Coelho, um ateu declarado, sobre sua experiência ao assistir uma bela missa). O ser humano pode chegar a Deus por vários caminhos. O mais frequente é o da caridade. Intuímos a existência de Deus ao ver pessoas capazes de amar o outro de forma gratuita, sem pedir nada em troca. Outro, menos comum, é o da pergunta sobre a verdade. A inquietação filosófica e existencial aguça a sensibilidade para perceber os sinais de Deus e seu amor no mundo. Contudo, segundo Hans Urs von Balthasar, um dos maiores pensadores católicos do século XX, esses caminhos, se não se expressam como beleza, perdem com o tempo sua força de atração. O amor se torna moralismo, a verdade se reduz a norma ou a arrogante presunção de superioridade. Por isso, o Pontifício Conselho para a Cultura considera a via da beleza (via pulchritudinis) como um caminho necessário para a evangelização nos tempos de hoje.

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A caridade e as obras sociais Desde os primeiros tempos do cristianismo, a acolhida ao pobre, ao estrangeiro, à viúva, o trato dos doentes, foi organizado pelos cristãos como uma decorrência da caridade. Deus amou o ser humano gratuitamente, e o ser humano responde a este amor doando-se gratuitamente pelos que sofrem mais do que ele. Pode parecer estranho aos nossos ouvidos atuais, mas as políticas públicas que hoje consideramos atribuições do Estado se desenvolveram na cultura ocidental como uma forma de “imitatio Christi” – imitação de Cristo. Em seu processo de consolidação, o Estado moderno se organizou em primeiro lugar com o monopólio da força, teoricamente para defender a Nação do inimigo externo e para aplicar a justiça, para depois acrescentar a suas atribuições também a execução de políticas públicas voltadas ao bem estar e ao reconhecimento dos direitos dos cidadãos (educação, saúde, etc.). Hoje, pensamos o atendimento das necessidades dos mais pobres e fragilizados como um dever do Estado. A tradição de presença da comunidade cristã na sociedade, com suas santas casas, irmandades e outras associações, se aproxima muito mais do modelo de uma sociedade ativa e protagonista, no estilo implementado pelas ONGs e pelo Terceiro Setor, que de um Estado centralizador e assistencial, como muitas vezes se torna o modelo do Estado do Bem Estar Social quando aplicado na América Latina. Este modo de presença muitas vezes não foi percebido dentro das próprias comunidades católicas no Brasil. A experiência das comunidades eclesiais de base ao invés de se desenvolver na direção de uma sociedade protagonista e criativa, onde o Estado viesse em apoio ao empreendedorismo da pessoa e às soluções nascidas da própria comunidade local, avançou no sentido de uma prática exclusivamente reivindicatória, que pede soluções ao governo, podendo incentivar o populismo. Procurando sistematizar esta visão de sociedade, a doutrina social da Igreja desenvolveu o conceito de Estado subsidiário, que ajuda, apoia, “subsidia” as ações da sociedade, só tomando a iniciativa lá onde a sociedade não é capaz de resolver os problemas. É importante notar que o Estado subsidiário não se confunde com Estado mínimo liberal, pois se organiza para ajudar a sociedade e deve ter recursos e iniciativas para financiar projetos sociais, combater os grandes interesses econômicos, fazer obras de infraestrutura necessárias, etc. Ele apenas não se sobrepõe ao protagonismo da pessoa e das organizações sociais.

Sugestões de leitura 

COELHO, M. Missa Cantada. Folha de São Paulo, 07 de setembro de 2011

JOÃO PAULO II. Carta encíclica Fides et Ratio. Vaticano, 14 de setembro de 1998.

PASTRO, C. Via Pulchritudinis - O Caminho da Beleza. São Paulo: Loyola, 2007.

WOODS Jr., T. E. Como a Igreja Católica construiu a Civilização Ocidental. São Paulo: Quadrante, 2008.

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O DESAFIO À FÉ NA CULTURA PÓS-MODERNA

Um dos fenômenos culturais aparentemente mais evidentes do século XX seria o do crescimento do ateísmo e da redução do cristianismo. Comparemos a porcentagem de cristãos e católicos no mundo em 1910 e 2010. Os números são imprecisos, mas a porcentagem de católicos no mundo passou de 17% para 16%, e a de cristãos de 35% para 32%. Neste período, enquanto a porcentagem de cristãos caiu de 96% para 86% nas duas Américas somadas e de 95% para 76% na Europa, passou de 9% para 62% na África Subsaariana e de 2,7% para 7% no Pacífico Asiático (Pew Research Center). Uma religião de povos pobres e subdesenvolvidos em contraste com o agnosticismo e o ateísmo dos ricos e desenvolvidos? Talvez. O cristianismo, em suas origens, não se apresentou como uma religião para os ricos, os sábios do mundo e os grandes da história, mas sim como uma religião para os pequenos, os fracos e os humildes. Mas podem haver outras explicações... A redução do número de católicos frequentemente gerou grandes discussões sobre os méritos pastorais de progressistas e conservadores, com os extremistas de ambos os lados se acusando. Contudo, entre os sociólogos da religião é frequente uma interpretação menos partidarizada, que vê nesta redução um processo de acomodação natural de sociedades homogêneas a uma condição plural. No passado, os países e comunidades costumavam ser relativamente homogêneos em termos religiosos, com alguns poucos grupos religiosos disputando a hegemonia cultural e política da Nação. As pessoas tendiam a assumir a religião dos pais ou do grupo circundante em função do peso da tradição e/ou da pressão social. Num contexto moderno e pósmoderno, que reconhece cada vez mais o direito à diversidade, a pessoas têm maior tendência de optar por novas crenças religiosas – ou mesmo à ausência de crenças. As religiões mais tradicionais têm maior número de fieis que aderiram a elas por tradição e assim são as que mais perdem membros neste processo. No Brasil, estamos passando de um cristianismo predominantemente católico para um cristianismo plural, no qual é cada vez mais difícil reconhecer a hegemonia incontestável de um grupo religioso. A população brasileira continua majoritariamente cristã (se somarmos católicos, evangélicos de todas as denominações e espíritas, veremos que Cristo ainda é referência religiosa para quase 90% da população brasileira), mas agora numa nova configuração. Frequentemente se supõe que a redução quantitativa do catolicismo vem associada a um crescimento equivalente do agnosticismo e do ateísmo. Nesta visão, a religião estaria associada ao obscurantismo do passado e iria sendo abandonada à medida que a educação formal e a ciência abrissem a consciência das pessoas. Mas ainda hoje apenas cerca de 7,5% dos brasileiros se declara sem religião. Na última década, por exemplo, para uma queda de quase 10% na porcentagem de católicos, os sem religião aumentaram menos de 1%. Além disso, muitos grupos pentecostais se caracterizam por seu caráter de resistência cultural à modernidade, tornando-se fundamentalistas e sectários. Compreender o processo políticocultural da sociedade brasileira passa pela compreensão deste fenômeno. 17


O chamado catolicismo popular brasileiro sempre foi sincrético, muitas vezes distante tanto da estrutura quanto da doutrina católica. A enorme maioria católica era fruto muito mais de uma convenção social do que de uma convicção pessoal. O “catolicismo popular” do passado era muito mais um cristianismo popular – e assim continua sendo, só que agora com um reconhecimento explícito desta diversidade antes oculta. A questão importante é compreender, neste quadro, o que vem se fortalecendo, porque vem se fortalecendo e quais as implicações deste fortalecimento. As discussões sobre este ponto frequentemente se perdem em aspectos relevantes, mas secundários, neste processo. As denominações pentecostais, por exemplo, trabalham com doutrinas simples, que não exigem grande aperfeiçoamento dos pastores, o que facilita a existência de muitos pastores e sua proximidade em relação às comunidades de fieis. Contudo, o fator fundamental é a capacidade que a proposta religiosa tem de mostrar um Deus presente e atuante na vida do fiel. A pessoa espera que Deus represente uma ajuda eficaz em sua vida, que a faça superar as dificuldades financeiras ou de saúde, encontrar consolo e sentido na vida após a morte de um ente querido, etc. A crítica, em grande parte justa, à chamada “teologia da prosperidade” muitas vezes obscureceu este fator que – em última análise – é essencial a qualquer experiência religiosa: o transcendente precisa se manifestar na vida do fiel para que ele creia. Isto pode explicar inclusive o fato de porque as grandes igrejas pentecostais começam a perder fieis para as novas denominações. Não é só um problema de crescimento da organização e distanciamento em relação aos fiéis. Estas igrejas se apresentaram como possibilidade de uma mudança de vida, de encontro com um Deus próximo e comprometido com a vida do fiel. À medida que esta promessa não se realiza, o fiel procura outra igreja, na esperança de encontrar um lugar onde esta promessa realmente se cumpra. Num mundo cheio de opções, as mudanças de religião podem ser lidas como sinal de uma inconstância característica dos tempos atuais – mas também podem ser sinal de uma eterna busca da pessoa por uma resposta satisfatória e abrangente a sua demanda por sentido, consolação, felicidade e solidariedade diante de um mundo sempre hostil e árduo. As duas leituras têm cada uma a sua validade, mas se estamos diante apenas de comportamentos instintivos ou sentimentais não há possibilidade de buscar um diálogo racional em busca de um entendimento entre diferentes e de um caminho de busca pelo bem comum. Se, pelo contrário, existe uma busca ativa e consciente por uma resposta ao drama humano de cada um, existe a possibilidade de um diálogo e de um entendimento – que não implica em concordância, mas sim em respeito mútuo. Na verdade, a relação das pessoas com a Divindade permanece um segredo guardado no coração do próprio Deus. O que as estatísticas medem – e isso é muito significativo – é a força social de uma religião, em termos de número de adeptos. As estatísticas não medem uma suposta perda de fé da humanidade, mas sim uma perda de poder político-cultural dos cristãos, e dos católicos em particular. Assim a questão se divide, para nós, em duas de significado bem diverso: (1) por que o meu irmão perdeu a fé? o que isto significa para minha vida interior e para minha relação com ele? e (2) como a cultura atual se relaciona com a fé? por que a fé parece tão ameaçadora e é tão combatida pela cultura moderna?

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A fé (e a falta de fé) do meu irmão Por que as pessoas perdem a fé ou mudam de religião? Os estudos de caso e análises de história de vida mostram que a perda da fé está quase sempre associada à incapacidade da religião explicar e dar um sentido à experiência da dor e do sofrimento, cujo limite último é a morte. Não é verdade que as pessoas perdem a fé porque percebem que uma análise racional da natureza e da realidade em geral mostra que Deus não existe. Os próprios filósofos da ciência são os primeiros a reconhecer que a existência de Deus está além do escopo da ciência. Mas é comum as pessoas perderem a pouca fé que têm quando se deparam com a dor e o sofrimento dos inocentes. Um Deus de amor não faria inocentes sofrerem injustamente, portanto Deus, se existe, é um ser que não se importa com o ser humano e que por isso não conta na história da pessoa. Para as pessoas com uma fé mais estruturada e educada, o sofrimento dos inocentes pode não levar ao ateísmo. Porém, a falta de consolação no momento da própria dor, a solidão e o isolamento são as principais causas da perda da fé neste grupo. Nos dois casos, podemos dizer que a fé não sobrevive ao escândalo do mal, quer este se apresente como uma catástrofe natural incontrolável, quer se apresente como o resultado da maldade promovida pelo próprio homem. Sem querer entrar aqui num terreno teológico tão vasto e espinhoso quanto o da questão do mal, vale a pena retomar alguns elementos culturais do diálogo entre a fé e o sofrimento na cultura moderna. J.R.R. Tolkien, autor de um dos mais importantes épicos do século XX, “O Senhor dos Anéis”, e um dos escritores mais claramente confessionais deste século, escreveu um conto em que Deus (Eru-Iluvatar), com a ajuda dos anjos (Ainur), cria todo o universo. Mas Lúcifer (Melkor), que ainda não é um anjo caído, mas já começa a revelar sua maldade, interfere em toda a obra divina. Deus responde aos anjos, quando estes perguntam por que não interferiu quando Lúcifer deturpou a criação, que deixou que o futuro demônio agisse para que os demais pudessem saber que Ele, Deus, “era capaz de fazer coisas maiores ainda” e criar o bem a partir do mal. João Paulo II, na encíclica Salvifici doloris – “sobre o sentido cristão do sofrimento humano”, se faz a seguinte pergunta: por que Deus permite ao homem o sofrimento? A primeira ideia que o homem teve para explicar o sofrimento de uma perspectiva teológica, lembra ele, é que o sofrimento é um castigo. Mas isso é totalmente irracional, pois encontramos pessoas boas que são castigadas e pessoas ruins que não são castigadas. Deus não seria nem bom nem racional se usasse o sofrimento para castigar as pessoas. A segunda possibilidade, é que o sofrimento faz parte de um processo de prova e aprimoramento do ser humano. Deus dá o sofrimento para que a pessoa se torne melhor. E o Papa considera que aqui já existe um pouco mais de sentido, porque de fato fazemos a experiência de depois de um sofrimento nos sentirmos mais maduros... Porém, isso ainda é insuficiente. Porque, quando estou sofrendo, não quero sofrer para melhorar. Quero melhorar sem sofrer. Tenho tantas coisas para melhorar, ainda tenho de aguentar isso? Não parece uma coisa de um Deus de amor. E João Paulo II conclui que o significado último do sofrimento é que o homem se identifique com Cristo. Deus, sabendo que o homem é uma criatura limitada, e que teria de sofrer por ser limitada, escolhe Ele próprio sofrer junto com sua criatura. Ele fez uma criatura destinada ao sofrimento, e diz para essa criatura: “Tudo bem, Eu sofro junto com você”. A partir do momento em que Deus sofre como homem, todo homem quando sofre pode se tornar um pouco como Deus através do seu sofrimento. 19


Estas duas respostas são exemplares como demonstração de um modo alternativo de ver o sofrimento, que se choca com a cultura atual. Mas o passo decisivo para entendermos nossa questão encontra-se na logoterapia de Victor Frankl. O psiquiatra judeu, refletindo sobre sua experiência e a de seus companheiros nos campos de concentração nazistas, conclui que nossa capacidade de suportar o sofrimento está diretamente ligada a nossa capacidade de atribuir-lhe um sentido. O sentido de Deus permitir as obras do mal é demonstrar uma grandeza, um amor, ainda maior, na obra de Tolkien. O sentido do sofrimento, na encíclica de João Paulo II, é identificar o ser humano com Cristo sofredor e permitir que descubra e compartilhe o amor de Deus. O primeiro problema cultural da fé em nossa sociedade é uma ruptura dramática entre as vivências, dominadas pela instintividade e a emotividade, e o sentido, entendido como abstração intelectual, ilusória e/ou ideológica. Esta ruptura não permite a verificação do Anúncio na experiência, pois esta é justamente o encontro entre as vivencias e o seu sentido.

A perseguição à fé Vendo o problema sobre outro ângulo, constatamos que não é paranoia conservadora dizer que a cultura moderna se coloca sistematicamente contra a experiência da fé – e da fé católica em particular. E esta oposição tem razões bem precisas. A estrutura da dominação cultural em nossa sociedade se baseia na ideia de que a pessoa tem total autonomia na vida privada, mas deve se conformar às regras sociais na vida pública. Um jovem poderá se autodestruir consumindo drogas, se isso acontecer entre as quatro paredes de sua casa ou com um grupo de amigos. Mas não poderá fumar um cigarro em público, pois isso fará com que os demais se tornem “fumantes passivos”. Um profissional poderá dar quanto quiser do seu tempo livre e de seu dinheiro para ajudar a obras de voluntariado – e isso poderá até ser valorizado num processo de seleção para um novo emprego – mas não poderá questionar a justiça das ações de sua empresa, seja internamente, seja em suas consequências sociais. Um político não precisa ser fiel a sua esposa, mas se exige que seja fiel a seu eleitor – como se a fidelidade fosse um comportamento seletivo e não um modo de ser da pessoa. O que não se percebe é que, sob a força da interação entre a proposta midiática e a vivência particular, as normas sociais da vida pública entram também na vida privada, de modo que as pessoas acabam perdendo sua liberdade nos dois âmbitos, ainda que tenham a ilusão da autonomia. Existe uma diferença substancial entre a autonomia, que é a possibilidade de se fazer o que se quer num determinado momento, e a liberdade, que é a possibilidade de utilizar a própria autonomia para a realização pessoal. A autonomia numa vida privada vivida de forma acrítica e instintiva se torna uma perda de liberdade tanto nos âmbitos públicos quanto nos privados, pois o próprio sentido da vida e da realização pessoal se perdeu. Mas as religiões (e não só a católica) representam exatamente a negação desta lógica. No mundo religioso não existe uma clara delimitação entre público e privado, a ética, as manifestações sociais, os valores são sempre vividos numa perspectiva unitária. Por isso a lógica religiosa é uma ameaça à mentalidade moderna e a todos os esquemas de dominação ideológica do mundo atual. Esta oposição será tão mais forte quanto maior for a capacidade da estrutura mental de uma religião de apresentar uma unidade entre condutas, valores, sentido da vida e práticas religiosas. 20


No caso do cristianismo e do catolicismo, em particular, na sociedade ocidental, esta problemática se torna mais grave por um dado histórico. Ao longo dos séculos, a Igreja se apresentou como a grande construtora da moral e elemento disciplinador – e portanto repressor – da vida social. A sociedade delegava à Igreja este caráter de organismo repressor no âmbito moral, dando-lhe para isso poder e influencia. À medida que a repressão à moral privada deixa de ser necessária à construção da mentalidade moderna, a Igreja passa a ser vista como uma inimiga, como um arcaísmo a ser superado. O problema se torna mais complexo quando se constata que o ideal de total autonomia na vida privada é impossível na vida real, como acontece no caso da educação dos filhos. A escola católica, com suas contradições e dificuldades, é o exemplo mais característico deste processo. Sua força histórica não vinha de uma capacidade de formação intelectual particular ou de uma adesão espiritual consciente das famílias, mas sim do fato de que “ensinavam uma boa moral” às crianças, compartilhando inclusive um papel repressor que os pais não gostariam de desempenhar na adolescência. A própria identidade da escola católica entra em crise quando estes valores disciplinadores deixam de ser buscados pela sua “clientela”, pois a espiritualidade e a identidade cristãs não foram trabalhadas e elaboradas num período recente.

O politicamente correto Neste sentido podemos entender o significado e as implicações do chamado “pensamento politicamente correto”. Nenhuma sociedade consegue sobreviver sem uma ordem interna, que implica em algum grau de coerção física ou moral. Existe um mecanismo de compensação entre a coerção física e a moral, quanto maior uma, menor a outra, e quanto mais harmônica for a sociedade, menor a coerção física e maior a moral. Isto também é válido para a sociedade moderna, apesar de seu ideal de absoluta autonomia na esfera privada. Além disso, o ser humano não é por natureza nem totalmente bom, nem totalmente mal, ele é contraditório – nele coexistem tanto o desejo de bem quanto a incapacidade de realiza-lo, tanto a aversão ao mal quanto a tendência de praticá-lo por conta de seu egoísmo e individualismo. Assim, uma sociedade não consegue se sustentar moralmente sem um aceno decidido também à bondade humana. O pensamento politicamente correto consiste no esforço da sociedade ocidental de construir uma ética positiva, isto é, que incentiva o bom mais do que condena o mal, que mantém a autonomia individual mas impede aqueles comportamentos considerados “antissociais” no contexto atual. A atenção à questão das “minorias”, dos grupos sociais excluídos ou estigmatizados, assume um papel normativo, que permite a construção de um edifício ético que não se debruça seriamente sobre o problema dos comportamentos privados e da realização da pessoa. Mais que um inimigo, o pensamento politicamente correto representa uma armadilha para o cristianismo. Ele se constrói a partir de ideais nobres, em grande parte retirados da própria tradição católica ocidental, mas nega um princípio unitário e universal de construção da pessoa, que é básico para a compreensão do Anúncio cristão. A armadilha reside no fato de que os católicos, ao combaterem o pensamento politicamente correto, acabam negando ideais que são constitutivos do próprio cristianismo. O que deveria ser uma afirmação de bom senso 21


que denuncia o caráter ilusório de um ideal ingênuo e contraditório se apresenta como a negação preconceituosa e até maldosa de um ideal humanista e humanitário. Como se posicionar então diante de afirmações “politicamente corretas”, mas que se mostram claramente limitadas e danosas em longo prazo numa perspectiva realmente humanista? Não se trata tanto de combate-lo, mostrando suas limitações e mentiras internas. Este processo leva, em última análise, a um pensamento cínico e igualmente deletério para os valores cristãos. A única forma de superá-lo é construir um discurso alternativo, com um significado humanista ainda mais abrangente. Este recurso foi muito usado pelos defensores do pensamento politicamente correto contra o próprio pensamento católicos, agora se trata de inverte o processo. Uma análise cultural dos pronunciamentos do Papa Francisco mostra claramente esta estratégia “reversa” de luta contra o pensamento politicamente correto.

Sugestões de leitura 

BENTO XVI. Carta encíclica Spe Salvi. Vaticano, 30 de novembro de 2007. Nº 7-9.

FRANCISCO. Exortação Apóstolica Evangelii Gaudium, Nº 255-283. Vaticano, 24 de novembro de 2013.

FRANKL, V. Em busca de sentido. Um Psicólogo no Campo de Concentração. Petrópolis: Vozes, 2008.

JOÃO PAULO II. Carta Apostólica Salvifici Doloris. Vaticano, 11 de fevereiro de 1984.

PONDÉ, L.F. Guia Politicamente Incorreto da Filosofia. São Paulo: Leya, 2012.

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QUESTÃO MORAL, RELIGIÃO E CULTURA JUVENIL

De todas as questões que desafiam a fé católica no mundo atual, nenhuma parece tão debatida como a da moral sexual, particularmente entre os jovens. Dois elementos para entender esta questão já foram dados, quando discutimos a imagem ilusória de autonomia individual apresentada pela sociedade moderna e a crise de sentido que afeta a cultura contemporânea. Para continuarmos nossa reflexão rumo à compreensão da questão da moral sexual e da juventude, temos que acrescentar três novos elementos: a crise da cultura dos valores e a perda de referências num mundo plural, a pressão crescente por felicidade e realização entre os jovens, a fragmentação do desejo e o ceticismo quanto à sua realização.

A crise da cultura dos valores Ideais e valores sempre andam juntos, e o desenvolvimento de nossa sociedade sempre aconteceu à sombra de um conjunto de valores morais. O trabalho, a família, a solidariedade, a honestidade, a justiça, a coerência – entre outros valores – estão na base da convivência social e do desenvolvimento econômico do Ocidente. Se as pessoas não quiserem trabalhar, não se preocuparem em construir um patrimônio que dê segurança material a suas famílias, não respeitarem os acordos que fazem entre si e a propriedade uns dos outros, não haverá crescimento econômico e a vida social se tornará um caos. A sociedade moderna foi erguida a partir de uma “cultura dos valores”. Mas ao longo da Modernidade, o trabalho foi cada vez mais compreendido como explorado e marcado pela desigualdade social, a família vista como uma instituição autoritária, onde pais despóticos se impunham a mulheres submissas e filhos obedientes, a solidariedade como discurso ideológico que ocultava o caráter conflitivo da sociedade – e assim por diante. Os valores foram sendo progressivamente esvaziados de seu conteúdo original, aparentemente perdendo seu significado e até sua razão de ser. A ciência, novo oráculo do mundo, permitiu grandes avanços materiais, mas não criou uma sabedoria capaz de reconstruir os valores morais, pelo contrário. Pensadores como Marx e Freud enfraqueceram ainda mais a crença nos valores comuns que haviam construído a sociedade ocidental. A análise das ideologias mostrava que todos os ideais ocultavam interesses de dominação e exploração material dos poderosos, a psicologia mostrava que nosso comportamento é determinado mais por motivações inconscientes que pela adesão consciente aos valores morais. O mundo da liberdade e da autodeterminação da pessoa só podia ser alcançado com o reconhecimento da falsidade das crenças e valores do passado. À medida que a cultura se afastava de qualquer referência religiosa, os valores perdiam legitimidade diante das mazelas do mundo. Para que ser bom? Para que trabalhar? De que vale ser honesto? Fora de um universo religioso, estas perguntas parecem tolas e sem sentido num mundo onde os fortes, astutos e desonestos frequentemente se dão bem. O problema não é abandonar os valores do passado para aderir aos valores do futuro, mas não acreditar mais nos valores do passado sem ter fé no que se supunha serem os valores do 23


futuro. São as próprias bases sobre as quais assentar os valores que estavam se perdendo. Em 1926, no livro A tentação do Ocidente, o escritor francês André Malraux escreveu: “Não há ideal a que possamos sacrificar-nos, porque de todos eles conhecemos a mentira, nós os que ignoramos em absoluto o que seja a verdade”. Esta afirmação, que a primeira vista parece de um cético raivoso, anunciava a crise da cultura moderna ocidental e é uma das marcas da pós-modernidade. Malraux percebia que as pessoas estavam perdendo a fé em seus valores, se tornando descrentes da validade de seus ideais. A crise da família tradicional, a dificuldade que os educadores encontram ao lidar com os jovens nas escolas, a descrença da ordem institucional e nas boas intenções dos políticos são algumas das muitas manifestações deste declínio desta cultura dos valores, que leva inevitavelmente a uma perda de referências entre os jovens.

A obrigação de ser feliz O historiador francês Philippe Ariès, no seu clássico História da morte no Ocidente (Rio de Janeiro: Ediouro, 2003), observa que vivemos numa sociedade em que a pessoa tem a obrigação de ser feliz. A pessoa bem sucedida deve ser feliz e a nossa infelicidade, se exposta publicamente, nos mostra como “perdedores” – “loosers”, na expressão com que a cultura norte-americana marca a derrota pessoal diante da vida. Nas sociedades tradicionais, o jovem sabia que sua vida estava determinada pelo seu lugar social. Se não cometesse nenhuma falta grave ou acontecesse uma catástrofe, como tornar-se um criminoso ou um bêbado, desrespeitar a ordem estabelecida, ser acometido por alguma doença incurável ou acontecer uma guerra, ocuparia um lugar no mundo semelhante ao de seus pais. Na primeira fase da Era Moderna, aquela que correspondeu ao período de expansão do capitalismo, os jovens burgueses aprenderam que seu futuro não dependia apenas de seu lugar social, mas também de sua capacidade de trabalho, de seu esforço. Agora existem muitas possibilidades para a vida do jovem, algumas mais bem sucedidas do que outras – e ele sabe que o mundo vai avalia-lo pelo seu sucesso e, como diária Ariès, pela felicidade que ele demonstrar. A perda de referências trará um novo ingrediente a este drama pessoal de todo jovem. Agora não basta se esforçar para ser bem sucedido, é preciso também descobrir como ser bem sucedido e feliz. Guardar-se virgem para o casamento ou ter prazeres agora e ser simpático(a) para o grupo de amigos? Curtir as festas ou se esforçar para “ser alguém no futuro”? Seguir as regras ou transgredi-las com inteligência? Todas estas dúvidas estão dadas e incomodam a consciência dos jovens. Nossa sociedade se autoimagina como um mundo onde não só se pode, mas se deve ser sempre feliz. Nesta visão, a infelicidade é uma desgraça que cabe aos pobres e muito pobres, aos acometidos por graves enfermidades, às vítimas das guerras, aos reféns do atraso cultural – aos que se supõe viverem na “periferia da existência”. Entre as classes médias e ricas das regiões desenvolvidas ou em desenvolvimento do mundo não deveria haver espaço para a infelicidade. E, se não é assim, há sempre um culpado: você mesmo, vítima de problemas psicológicos, ou uma pessoa má que faz você sofrer. A infelicidade se torna muitas vezes como que uma vergonha a ser escondida, algo a ser compartilhado apenas nos divãs dos psicólogos, nos grupos de autoajuda ou em alguma reunião religiosa. 24


Numa sociedade que perde os seus valores, mas que gera uma obrigatoriedade de ser feliz, as próprias perguntas mudam e a Igreja não sabe mais como respondê-las. Um casal de jovens hoje já não se pergunta se manter relações sexuais fora do casamento é certo ou é errado, pois esta pergunta lhes parece sem sentido. A dúvida que lhes surge é: quando mantenho relações sexuais, isto que o sinto é o amor que me faz ser feliz? é isto que realiza meu desejo? Por que mesmo mantendo relações sexuais e tendo prazer ainda me sinto triste frequentemente?

A perda do desejo numa sociedade movida a vontades O conceito de desejo, no mundo atual, é uma questão teórica bastante complexa, particularmente devido a suas múltiplas abordagens na psicologia. Uma discussão nestes termos foge aos objetivos deste trabalho. Contudo, algumas considerações devem ser feitas para esclarecer a proposta aqui apresentada. Toda experiência pode ser compreendida como uma vivência concreta à qual a pessoa atribui um significado, isto é, a vivência se integra ao todo da vida da pessoa, contribuindo para indicar o que a pessoa é, o que a realiza, o que a frustra, etc. Todos respiramos durante todo o tempo de nossas vidas, mas isto só se torna experiência quando alguém toma consciência do ato de respirar e tira desta consciência um sentido, por mais simples que seja (se parar de respirar morro, por exemplo) para sua vida. Assim, os seres humanos, em torno da vivência de algumas carências, fazem suas experiências de desejo. A carência sexual, por exemplo, corresponde ao desejo sexual. Porém, a relação entre vivência e experiência não é direta e determinista. A mesma vivência pode originar diversas experiências, dependendo do contexto pessoal e cultural em que a pessoa se encontra. Ainda que correndo o risco do esquematismo, pode-se dizer, para continuar o exemplo, que a vivência da sexualidade pode gerar uma experiência de abertura para o desejo ou uma experiência de afirmação unilateral da vontade. A experiência do desejo sexual leva à compreensão do ser humano como ser carente de outro. Ele se une ao desejo de afeto, à necessidade de companhia, ao desejo de beleza, etc. Desenvolve-se como desejo de amor, integrando várias dimensões da personalidade, dandolhes unidade e, se maduro, capacidade de realização. Todo desejo se apresenta como força integradora e unitiva, aponta para a totalidade e para o outro. Mas a mesma carência sexual pode ser experimentada como “vontade”, no sentido de ser uma afirmação unidirecional do ser para com o objeto que parece satisfazer a carência. Neste caso, a experiência não conduz à unidade e ao encontro com o outro, mas sim para a fragmentação, para uma experiência de poder e violência. A vontade, como experiência de força e auto-afirmação, não se volta para a completude e para a totalidade, mas para a satisfação e para o imediato. O drama da sociedade contemporânea é que o desejo, com sua força de encontro e integração, é substituído pela vontade, tentativa fragmentada e violenta de afirmação do indivíduo. O ser humano se sente livre quando faz a experiência de poder realizar o seu desejo. Mais que com a autonomia, a experiência da liberdade coincide com a realização do desejo. A autonomia – frequentemente confundida com a liberdade – é, na verdade, apenas uma précondição. Dificilmente uma pessoa se sentiria livre sem poder decidir entre várias alternativas 25


qual lhe parece melhor. Contudo, se a opção que realmente condiz com o desejo do sujeito não está dada, sua autonomia não lhe trará, ou trará só de forma muito incompleta, a sensação de liberdade. Muitas vezes, essa convergência entre realização do desejo e liberdade se perde numa visão reduzida do próprio desejo. Por exemplo, o jovem casal de amantes se sentiria livre estando juntos. Mas, muitas vezes, esse sentimento de liberdade parece não ser vivido. É que eles não querem apenas estar juntos. Querem estar juntos sendo acolhidos integralmente, sem necessidade de medir suas ações, de avaliar continuamente o que agrada e o que desagrada ao outro. Se não experimentam essa acolhida por parte do amado, permanecem juntos ainda tensos, presos a um “dever ser” para agradar ao outro. Estar juntos parece corresponder a seu desejo, mas corresponde apenas parcialmente. Por isso, esse estar juntos não gera a experiência de liberdade. Em sua natureza contraditória, a pessoa nem sempre sabe o que desejar ou é coerente com seu desejo. A dinâmica entre a possibilidade de satisfação imediata de um desejo e a necessidade de postergá-lo para viabilizar sua realização, por exemplo, é básica na própria teoria freudiana. Não podemos ter sempre, imediatamente, aquilo que aparentemente queremos ou desejamos, e temos de aprender, ao longo de nosso desenvolvimento, a conviver com essa impossibilidade, administrando-a da melhor maneira possível. Novamente, nesse caso, a experiência da liberdade está vinculada à forma como compreendemos e administramos nosso desejo. Podemos, ainda, pensar os desejos apenas como versões elaboradas das necessidades básicas para a sobrevivência. Por exemplo, o desejo de uma determinada comida seria a elaboração cultural de nossa necessidade biológica de alimentarmo-nos. Porém, sem eliminar esse primeiro aspecto, podemos pensar no desejo como a manifestação, mais ou menos consciente e elaborada, de nossa incompletitude. Fazemos cotidianamente a experiência de não nos bastarmos, de precisarmos de algo que vem de fora e que nos preencha, nos complete. Nesse caso, o desejo incorpora as necessidades nascidas da biologia, mas não corresponde simplesmente à sua elaboração cultural, revelando, sim, a existência de outro tipo de necessidade, essa específica da própria atividade reflexiva do ser humano. Por essas razões, a compreensão do próprio desejo e, consequentemente, da forma mais adequada de realização da própria liberdade são sempre questões em aberto à reflexão humana. Cada pessoa é chamada a responder a essas questões, não podendo delegar essa função a outros, sob pena de não realizar-se como pessoa humana.

Um caminho de resposta Um fato pouco conhecido no Brasil é que João Paulo II foi um grande inovador no enfrentamento da questão moral. Mesmo se colocando na esteira da tradição tomista, retoma a reflexão fenomenológica da filosofia do século XX. Sua reflexão moral não é um raciocínio dedutivo baseado em princípios teológicos predefinidos, mas sim um mergulho na experiência humana. A experiência do ser humano, tanto em sua condição de pecado quanto em sua condição redimida por Cristo, é que orientam seu percurso intelectual (ver sua Teologia do Corpo). João Paulo II fez um enorme esforço para retirar a moral católica do “principialismo doutrinal” e reconduzi-la a u mergulho na experiência humana e a nosso desejo de verdade, 26


felicidade e beleza. Os valores cristãos, para ele, são totalmente condizentes com a natureza humana e, por isso, toda vez que nos parecem opressivos ou arbitrários é sinal de que não compreendemos bem a nossa própria natureza. Em um belíssimo capítulo sobre a dignidade da pessoa humana, da Constituição Gaudium et spes do Concílio Vaticano II, está escrito que o “mistério do homem só no mistério do Verbo encarnado se esclarece verdadeiramente” (Nº 22). Este é nosso grande problema, somos um mistério, um mistério maravilhoso e fascinante, para nós mesmos. Seres contraditórios, não fazemos o bem que queremos, mas sim o mal que não queremos; buscamos o amor e a solidariedade, mas nos agarramos a nossa individualidade e a nossas prerrogativas; criados para o Infinito, vivemos o drama da finitude de nossa vida material. Por isso precisamos do encontro com Cristo para entender a nós mesmos, para descobrirmos o que é melhor para nós, qual é o caminho certo a seguir. Precisamos nos descobrir amados gratuitamente para sermos livres da pressão do sucesso e do fracasso, do certo e do errado. Só esta liberdade permite que olhemos com realismo para nós mesmos, reconhecendo nossas limitações e nossa permanente necessidade de mudança, mirando nosso desejo e nosso futuro com esperança. Este é o grande sentido da ortodoxia, do conjunto de ensinamentos da Igreja. Eles não existem para “disciplinar” nossa natureza inquieta, mas para ajudar-nos a transformar nossa inquietude numa força a serviço de nossa liberdade e realização. Bento XVI, no discurso que fez aos jovens no Pacaembu, quando esteve no Brasil, explica claramente que os ensinamentos da Igreja existem para que tenhamos vida, uma vida plena, cheia de sentido, e que a graça e a natureza colaboram entre si para nossa realização. Os ensinamentos e as normas morais propostas pela Igreja não devem ser como cangas e arreios que nos tolhem os movimentos, mas como luzes que nos ajudam a descobrir o amor.

O problema é dos adultos Contudo, temos que ter em mente que – em todo este cenário – o grande problema da moral sexual dos jovens reside no sinal que recebem dos adultos. Não é totalmente verdade que o jovem não quer “ouvir os adultos”, porém eles querem muito mais “ver os adultos”, isto é, perceber nos adultos um sinal de que eles, jovens, poderão ser felizes, se realizar, seguindo o caminho existencial trilhado por aqueles adultos. Os jovens, antes de ouvir os conselhos dos adultos, querem ver o testemunho concreto de que eles são felizes. O lema desta juventude poderia ser apresentado como “mostra-me a sua felicidade e eu ouvirei a sua sabedoria”. Mas os cristãos entendem frequentemente o seu testemunho como coerência moral e não como demonstração de felicidade e realização, enquanto o testemunho do mundo laico – se não é um testemunho de felicidade (falsa ou verdadeira) – é pelo menos um testemunho de prazer aparentemente sem culpa. Cristo nos prometeu “o cêntuplo” (cf. Mt 19, 29), que não significa 100 vezes os prazeres instintivos ou os poderes e riquezas do mundo, mas 100 vezes a intensidade da vida, com suas dores, sofrimentos, amores e alegrias. Apesar de todo conformismo e pragmatismo de nossos tempos, esta proposta ainda faz o coração do jovem pulsar mais forte – o problema é encontrar nos adultos um sinal seguro de qual caminho seguir para chegar até lá. 27


Sugestões de leitura 

BORGHESI, M. Depois de ‘68 e ‘89: o mundo após a crise das utopias. Palestra proferida em 02 de outubro de 2008. Homepgae do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.

GIUSSANI, Luigi. O senso religioso. Brasília: Universia, 2009.

JOÃO PAULO II. Teologia do Corpo - O amor humano no plano divino. Campinas: Ecclesia, 2013.

RIBEIRO NETO, F.B. O declínio da cultura dos valores e o cristianismo. O Mensageiro de Santo Antônio, Nº 576, Julho/Agosto de 2014.

SPADARO, A. A Igreja? Um hospital de campanha... [in] Entrevista ao Papa. Civiltà Cattolica, N° 3918, de 19 de setembro de 2013.

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A CULTURA E O MAGISTÉRIO DO PAPA FRANCISCO

Assim como para João Paulo II, também para Francisco a cultura joga um papel fundamental na história humana como fator de construção de um povo. Compreender o modo peculiar com que ele vê a questão da cultura é fundamental para se compreender o modo pelo qual ele vê a inserção da Igreja na questão social. Uma visão inicial deste tema pode vir da análise dos discursos e homilias do Papa durante a Jornada Mundial da Juventude, no Rio de Janeiro. São textos interessantíssimos, mas que infelizmente ficaram um pouco ofuscados pela publicação, logo a seguir, da Evangelii Gaudium.

O discurso na favela de Manguinhos: a cultura e a opção pelos pobres Em seu discurso na favela de Manguinhos, no Rio de Janeiro, Francisco não partiu de análises estruturais, nem terminou com grandes reivindicações aos governos – ainda que a realidade brasileira e latino-americana mereça tanto boas análises estruturais quanto fortes movimentos reivindicatórios. Partiu da xícara de café que se oferece ao amigo que chega, ou da “água no feijão” que aumenta quanto o dinheiro é pouco e são muitas as bocas para sustentar. Terminou com exortações para que tanto os jovens quanto as demais pessoas não desistam de lutar pelo bem comum e pela justiça. Para entender esta posição do Papa precisamos entender, em termos gerais, a compreensão do papel do pobre no processo de transformação da sociedade segundo a visão marxista tradicional e a visão culturalista seguida pelo papa. Para o marxismo, o pobre é o grande agente transformador da sociedade por causa de sua posição nas relações socioeconômicas do capitalismo. Tanto sua consciência quanto seu papel no processo de transformação são determinados pelas relações materiais em que se encontra. A posição culturalista irá considerar que o pobre é o grande agente transformador da sociedade na medida em que se mantém fiel a uma visão de mundo e a uma prática social solidária que nascem de sua história social e cultural, de sua educação, das relações interpessoais que estabelece com os demais. Sua consciência depende da formação cultural (não confundir cultura com erudição) que recebe e da sua fidelidade aos valores que constroem o bem comum. Seu papel no processo de transformação não é o resultado de uma determinação material, mas uma função de sua mentalidade e do quanto está disposto a arriscar sua liberdade na defesa do bem comum. Na América Latina, a Igreja Católica foi fundamental para criar uma cultura solidária e de compromisso com o outro que, no magistério da Igreja, é a base para a superação das injustiças sociais e para a construção do bem comum. Uma cultura centrada no valor da vida, na contribuição da família à sociedade, na educação do ser humano como pessoa. Uma cultura que sem dúvida precisa crescer numa consciência política capaz de enfrentar os problemas da 29


sociedade latino-americana, mas que está sendo cada vez mais ameaçada por uma cultura egoísta e individualista, que fecha o indivíduo em si mesmo, deixando que ele cresça na consciência da necessidade de lutar pela justiça e de se solidarizar com os que sofrem. Mas voltemos à delicada concretude do papa Francisco em seu discurso em Manguinhos. Ele começa falando justamente daquelas relações sociais simples e corriqueiras, nas quais as pessoas vão se encontrando e reconhecendo a importância de umas para as outras, praticando a solidariedade e se reconhecendo como um povo. Não está falando para teóricos e, portanto, sua preocupação é que estas pessoas reconheçam em suas vidas estes laços de solidariedade, para daí recuperar a consciência da própria dignidade, de seus direitos e da necessidade de lutarem, solidários, para a construção do bem comum. Quem ler sempre os pronunciamentos de cunho mais político do papa Francisco verá que a denúncia se centraliza, sobretudo, na cultura individualista e egoísta que domina o mundo globalizado. Não por um moralismo piedoso, mas sim porque esta cultura do ter destrói a solidariedade tradicional do povo, dificultando a construção de um verdadeiro processo de mudança social. E a conclusão final é sempre um convite para que as pessoas assumam o protagonismo de suas vidas, não de forma individualista e egoísta, mas solidária e comprometida sobretudo com os mais pobres e com os que sofrem. O olhar capaz de ver a mudança da sociedade não é o olhar determinado por uma posição de classe social, mas o olhar iluminado pelo amor de Cristo, que vê a necessidade da fraternidade e da dedicação ao próximo.

O tema da cultura nas palavras às autoridade laicas e eclesiais O assunto voltou, contudo, de forma ainda mais explicita, unindo a homilia da missa com os bispos, sacerdotes, seminaristas e religiosos na JMJ ao discurso aos representantes da sociedade brasileira no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Na homilia, o papa refere-se a três chamados: o chamado de Deus que nos escolheu para sermos seus, o chamado a anunciar o Evangelho e o chamado a promover a “cultura do encontro”. No discurso às personalidades do mundo político e social, considerou três aspectos necessários para construir o bem comum: o resgate de sua tradição cultural, a responsabilidade social diante do futuro e o diálogo. Assim, a questão cultural aparece como responsabilidade da Igreja diante da sociedade e como primeiro ponto para o trabalho que todos, cristãos e não cristãos, devem empreender para a construção do bem comum. Mas o que é esta questão cultural? O que significa construir uma nova cultura? Ainda que certos aspectos sejam quase evidentes, vale a pena refletir um pouco sobre o que é um trabalho cultural, para podermos estar mais perto da proposta que o papa nos faz. Para começar, todo trabalho cultural é um trabalho de conversão da mentalidade, do modo pelo qual vemos o mundo. E a coisa mais fundamental que deve mudar é o modo pelo qual vemos a nós mesmos e o mundo. Temos que nos ver não como indivíduos sozinhos, obrigados a usar nossas poucas energias morais para enfrentar o mundo e tentar fazer as coisas do jeito certo – ou então pagar o preço de nossos erros. Pelo contrário, temos que nos ver como acompanhados por Cristo, amparados por Ele, perdoados quando erramos, 30


fortalecidos quando somos fracos. Foram particularmente tocantes, neste sentido, as palavras que o papa Francisco dirigiu aos jovens na Vigília de Oração da JMJ. Aquele que se descobre amado e acolhido por Cristo não consegue não amar e acolher ao próximo. Assim a mudança no modo como nos vemos leva-nos a ver também o outro de modo diferente, solidário. Passamos a querer o bem do outro, a querer experimentar a comunhão com ele. Daí nasce desejo do encontro e a capacidade do diálogo, tão enfatizados pelo Papa. A conversão da mentalidade implica numa capacidade de “julgar tudo e ficar com o que é bom” (cf. I Tes 5, 21). Daí o interesse por toda a realidade, a vontade de conhecer, de entender o que se passa, de descobrir o rosto bom de Cristo nas coisas e nas relações interpessoais – e a capacidade de julgar e denunciar a desumanidade quando ela se apresenta na realidade. A experiência cristã permanece intimista e tem grande dificuldade de fecundar a realidade se os cristãos não se dedicam a este trabalho de conhecer a realidade e julgá-la buscando encontrar o que é bom. Uma coisa importante é perceber que isso não quer dizer sair por aí condenando àqueles que não professam nossa fé ou comungam com nossos valores. Isso não seria um juízo cristão, pois o discípulo de Cristo está sempre pronto a acolher, a apontar para o bem e buscar o diálogo e o encontro. Mas nada disso adiantará se ficarmos fechados em nossas paróquias e em nossos grupos de estudo, se não “formos para a rua” – como o Papa tanto exorta, se não nos dedicarmos a obras e movimentos que ajudam a criar uma nova realidade no mundo. A tradição cultural rica, solidária e aberta do povo brasileiro, a responsabilidade social dos homens públicos e as relações políticas permeadas pelo diálogo – apontadas pelo papa em seu discurso – são o resultado da ação de pessoas que se lançam no trabalho social, buscando construir o bem comum e realizar uma cultura de encontro e solidariedade, e não uma cultura individualista, do descarte e do pragmatismo.

Na Evangelii Gaudium No pensamento do Papa Francisco, a questão cultural, entendida como conversão de mentalidade a Cristo – não como luta por uma hegemonia social, estará sempre no centro. Nele, a reflexão cultural nasce claramente de um ardor missionário e de uma paixão pela pessoa de Cristo. Na Exortação Apostólica Evangelii Gauium, encontramos toda uma seção referente à questão dos desafios culturais, que começam a ser tocados numa referência à idolatria do dinheiro e que continua na denúncia de uma sociedade individualista e incapaz de reconhecer a dignidade da pessoa humana. Mas, acima de tudo, uma sociedade que não reconhece a Cristo e que por isso sofre com estes problemas. Assim, a evangelização é a primeira e fundamental resposta a todos os problemas culturais, que estão na base dos demais problemas sociais. Mais adiante, a questão da cultura reaparece no texto associada a constituição do povo e na piedade popular. Finalmente, o tema volta com força na reafirmação da importância do diálogo social, base para uma cultura do encontro.

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Uma leitura cultural do caminho do Papa Francisco Para onde o Papa Francisco encaminha a Igreja? Esta é uma pergunta recorrente. O padre Antônio Spadaro, um jesuíta que é hoje um dos maiores conhecedores do pensamento do Papa, faz questão de enfatizar que Francisco não tem um caminho predeterminado, um projeto preestabelecido ao qual submeter a realidade. Pelo contrário, é um homem que age respondendo continuamente à realidade tal qual esta se apresenta. Porém, com base naquilo que fez até aqui, é evidente que seu caminho passa pelo esforço de demonstrar o amor de Deus ao mundo, à pessoa concreta. Diante de uma Igreja insegura quanto a seu próprio caminho, incerta quanto a suas bases doutrinais, o esforço de João Paulo II e Bento XVI foram muito no sentido de explicar e sistematizar a fé católica, retirando-a de um engessamento doutrinal sem com isso perder sua consistência ortodoxa. Francisco parece considerar este caminho já percorrido, e agora sua atenção é em como demonstrar ao mundo essa fé, que tem seu sentido maior no encontro com Cristo e na caridade. A força cultural de sua pregação reside, assim, na força de seu testemunho pessoal, de uma vida intensa porque cheia de amor pelo outro. Francisco não traz uma novidade doutrinal, mas representa a personificação de um modo de ser plenamente humano que nasce do encontro com Cristo. Francisco é o exemplo vivo e evidente do ponto de vista mediático daquele amor descrito por Bento XVI na Deus caritas est.

Sugestões de leitura 

BENTO XVI. Encíclica Deus caritas est. Vaticano, 25 de dezembro de 2005.

FRANCISCO. Discurso na Visita à Comunidade da Varginha em Manguinhos. Rio de Janeiro, 25 de julho de 2013.

FRANCISCO. Discurso no Encontro com a classe dirigente do Brasil no Teatro Municipal. Rio de Janeiro, 27 de julho de 2013.

FRANCISCO. Exortação Apostólica Evangelii Gauium. Vaticano, 24 de Novembro de 2013. Nº 55-75; 115-126; 238-258.132-134.

FRANCISCO. Homilia da Missa com os Bispos da XXVIII JMJ e com os Sacerdotes, os Religiosos e os Seminaristas na Catedral de São Sebastião. Rio de Janeiro, 27 de julho de 2013.

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