Homem do saco

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PARTE 1


E

ra um dia como qualquer outro, não estava chovendo e nem havia no ar aquele clima pesado. Nada dava a entender que aquele dia mudaria a minha vida. Passo o dia todo em casa, produzindo o que muitos consideram arte. Vivo de fazer ilustrações para revistas e jornais.

Não sou famoso, mas é possível manter uma família com o meu trabalho. Voltando ao dia normal: eu estava ilustrando uma revista e resolvi sair para dar uma caminhada, as vezes preciso arejar a mente.




C

ostumo ir no parque, próximo a minha casa. É só descer a rua que moro, uma caminhada curta. No fim da rua tem uma casa, uma casa não, um barraco na verdade. Neste barraco vive um senhor que todos chamam de homem do saco. Reconheço que nunca tentei conversar com ele ou saber sua história.

Costumava falar para os meus filhos que ele era o verdadeiro homem do saco, mas era só para mantê-los em casa depois de uma certa hora, precisava tentar proteger eles dos males do mundo. Nunca imaginei o que isso poderia causar ao tal homem do saco e muito menos se ele se sentia mal com isso.


N

este dia, ao passar na frente da casa dele, senti um cheiro muito ruim, como se algo tivesse morrido. Pensei que fosse algum animal. Não sei o que me deu na cabeça, mas resolvi entrar para saber o que era. Sabia que o homem do saco não estaria em casa, ele só chega no começo da noite. A porta estava aberta, me chamando para entrar. O cheiro ficava cada vez mais forte na medida em que me aproximava da porta. Ao entrar na casa me deparei com ele morto, caído sobre um caderno.



A

polícia demorou pra chegar, neste meio tempo fiquei do lado de fora da casa, pensando no que havia acontecido. Que motivos ele teria para ter feito isso?

Os policiais não encontraram nenhum documento que o identificasse e a casa supostamente não deveria existir, o terreno não tinha dono. Ele provavelmente foi enterrado como um indigente, ninguém se incomodou em ir reconhecer o corpo.




D

D

Durante dias fiquei com a imagem do homem do saco na cabeça, não conseguia parar de pensar nele, tentava insistentemente entender. Em uma noite sem dormir, fui atÊ a casa dele para tentar encontrar alguma coisa que me levasse a descobrir quem ele era. Encontrei o caderno.



A

pós ler, me senti na obrigação de contar a sua pequena história. Não sei se ele está certo ou se é apenas louco, não cabe a mim julgá-lo. Resolvi fazer este pequeno livro para que as pessoas conheçam o que estava por trás do homem do saco e o que pode estar por trás das pessoas invisíveis da sociedade. Usei das minhas “habilidades” de artista para tentar transmitir os sentimentos dele por meio das ilustrações.

Não sou o verdadeiro artista deste livro, o verdadeiro artista aqui é o homem do saco. Ele é o centro das atenções. Ignoramos ele em vida, temos a obrigação de não ignorá-lo agora. Espero que este livro chegue na família dele, para que saibam o que aconteceu. Não vou me estender mais na introdução, deixo vocês agora com a verdade por trás do homem do saco.



PARTE 2



S

e você está lendo isso é porque estou morto, duvido muito que eu daria isso a alguém estando vivo. Isso não é uma carta de suicídio, é um manifesto contra tudo que passei nesta vida miserável.

Não tem sentido você saber o meu nome, ninguém nunca se interessou por ele. Vivo há cinco anos na mesma rua e sou conhecido como o homem do saco. É só por esse nome que me chamam. Acabei incorporando esse apelido malvado.


N

ão era um catador de papel, ou mendigo, como todo mundo imaginava. Não nasci assim, escolhi ser assim. Antes de ser o homem do saco eu era uma pessoa normal, tinha um emprego medíocre como boa parte da população, acreditava que fazia parte de uma sociedade, de uma família. Um dia tive uma epifania, não um colapso nervoso como falaram na época. Passei a ver a vida como ela é, sem as lentes colocadas pela sociedade, para deturpar a visão.

Passei a ver as pessoas como elas são: egoístas e mesquinhas. Toda essa coisa de relações humanas é uma mentira, uma mentira inventada para fazer a gente acreditar que fazemos parte de algo maior. A verdade é que estamos sozinhos e a vida não faz sentido, ninguém se importa com ninguém, só pensam em si.



Q

uando eu tinha uma vida normal, acreditava que as pessoas a minha volta se importavam de verdade comigo, mas era tudo mentira, uma ilusão. Bastou eu surtar pra ver um a um indo embora, se afastando, indo para o mais longe possível. E não, não foi uma desilusão amorosa que me fez surtar. Nunca vi sentido em relações amorosas, sendo com homens ou mulheres. É tudo tão passageiro, um dia você é a pessoa mais importante na vida de alguém e no outro é um completo desconhecido. Viver assim, para mim, não faz sentido.

Depois que percebi o quão rasas são as relações humanas, decidi me afastar de tudo e de todos, encontrei na rua e na solidão uma forma de encontrar sentido na vida.



M

orei um tempo na rua, antes de encontrar essa casa. Viver na rua, só confirmou o que eu já sabia. Eu e os outros moradores de rua éramos invisíveis, as pessoas simplesmente passavam por nós sem nos ver, nem sequer desviavam o olhar. Parecíamos janelas, feitos de vidro. As pessoas viam através de nós, não estávamos realmente ali para elas. Vi muita coisa horrível, vi a verdadeira face da humanidade. Vi a pobreza, vi a fome, vi o desespero, vi o mundo como ele é. Dizem que vemos a face de Deus no olhar de cada criança. Mais uma mentira, eu vi a fome no olhar delas.

As pessoas precisam de algo ou alguém superior lhes dizendo o que devem fazer, que o que eles estão fazendo está certo ou errado. Seja lá o que for essa coisa superior, o amor, Deus ou sei lá quem. Elas simplesmente não conseguem viver sem um objetivo, um propósito. Muitos encontram em outras pessoas o motivo da sua existência, o que, para mim, é errado. O outro não liga tanto assim pra você.


A

todo momento vejo pessoas indo de um lado para o outro e não consigo deixar de pensar que tudo isso não faz sentindo. Sabe, a vida como conhecemos não faz sentido, como chegamos a tudo que temos hoje? Como saímos de uma caverna e decidimos criar a roda, depois carros, ônibus, tubos, computadores, depois ruas e depois e depois. Simplesmente não faz sentido, todo dia somos transportados como gado para ir trabalhar e ganhar dinheiro para poder comprar a passagem do transporte de gado do dia seguinte.



V

im morar na rua porque queria ficar sozinho, mas não consegui. Ainda tem pessoas a minha volta, ouço vozes. Vozes e mais vozes que nunca param. Não interessa contar como descobri esta casa, para isso teria que falar o que eu fazia antes e não quero tocar nesse assunto. Encontrei nesta casa mais solidão. A casa não tinha luz, água e nem telefone. Não queria deixar marcas da minha existência e passagem por este mundo. No escuro da noite solitária, a única coisa que eu ouço é a voz de dentro da minha cabeça, ela não se cala. Em casa tenho um relógio pequeno, daqueles que fazem tic tac. Posso desligar esse som, mas não faço isso, é a minha maneira de calar a minha voz interior.

Foco no tic tac do relógio e consigo finalmente a solidão que tanto queria, é só focar no tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tactic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac t ic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac tic tac.


FIM


T

odo dia saio cedo de casa, com uma sacola preta para colocar as latinhas e papelões que cato pela cidade. Volto à noite com ela cheia, isso criou uma chance para os pais contarem histórias sobre mim, para manter as crianças dentro de casa. Elas correm de mim, jogam pedras na minha casa, me xingam e não me deixam em paz. A verdade é que eu não ligo, chego bêbado de mais pra entender o que elas falam. Daqui uns dois meses as crianças nem vão se lembrar quem eu sou e, daqui uns 20 anos, metade delas vão estar mortas e a outra vai ter fracassado na vida. Essa é a realidade, elas não sabem disso, não sabem que a vida vai espremê-las e transformá-las em suco.

Não lembro qual autor disse “ache o que você ama e deixe isso te matar”. Mas encontrei o que amo na solidão e estou deixando ela me matar. O tic tac não é o suficiente, não aguento mais as vozes na minha cabeça e este mundo sem sentido. Provavelmente vão demorar dias para encontrar o meu corpo, quiçá semanas. Escolhi a forma mais lenta de suicídio, cortar os pulsos, para assim poder descrever a morte. O primeiro sentimento é a dor, você sente a sua vida saindo do seu corpo junto com os litros de sangue que jorram do pulso. Sinto... sinto paz, uma paz que nunca senti antes. Não quero escrever mais para poder aproveitar este momento único, este momento final. Vou focar no relógio para poder aproveitar a paz e o silêncio, tic tac tic tac tic tac.... tac tic.... tic tac tic tac.... tic.... tic......... tic ....... tac


Ilustração/Design Luiz Prendin Criação da História João Depine / Rafael Bedide Correção/Texto Rafael Bedide / João Depine




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