MEMORIAL AO [DES]COLONIZADO | TFG 2018 - CADERNO | Lucas Ferreira Seidle

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àqueles índio e negros que foram mortos, e aos que ainda resistem.





Ninguém ouviu Um soluçar de dor No canto do Brasil Um lamento triste Sempre ecoou Desde que o índio guerreiro Foi pro cativeiro E de lá cantou Negro entoou Um canto de revolta pelos ares No Quilombo dos Palmares Onde se refugiou Fora a luta dos Inconfidentes Pela quebra das correntes Nada adiantou E de guerra em paz De paz em guerra Todo o povo dessa terra Quando pode cantar Canta de dor E ecoa noite e dia É ensurdecedor Ai, mas que agonia O canto do trabalhador Esse canto que devia Ser um canto de alegria Soa apenas Como um soluçar de dor.

O canto das Três Raças

(Mauro Duarte / Paulo Pinheiro, 1976)



A gradeço a possibilidade de rea-

lização deste trabalho, mesmo lamentando pesadamente por aqueles povos que sucumbiram para dar lugar a formação da gente brasileira, sem o marítimo involuntário destes povos, este trabalho, de certo, não existiria.

I am grateful for the possibility

of carrying out this work, even though I regret heavily for those peoples who succumbed to make way for the formation of the Brazilian people, without the invo-

luntary seafarer of these peoples, this work would certainly not exist.

Agradeço ainda a todos que me apoiaram nesta jornada até aqui: os meus pais pelo suporte político, cultural, ético, emocional e financeiro, que foram fundamentais para definir o modo como enchergo o mundo ao meu redor, assim como as correntes de pensamento que emprego nestas páginas; aos amigos que consegui durante estes cinco anos de Arquitetura e Urbanismo, que me apoiaram e permitiram-me participar de suas vidas nos momentos fáceis e difíceis, meus e deles, e sei que, mesmo que o tempo, ou a brevidade da vida, nos afaste, sempre os levarei em uma parte muito especial de minhas memórias; aos professores e pessoas que passaram por mim durante toda a minha vida acadêmica até este ponto e que contribuíram fortemente para a minha formação pessoal enquanto indivíduo e como cidadão.

I also thanks everyone who has supported me on this journey so far: my parents for their political, cultural, ethical, emotional and financial support, which were fundamental in defining the way I see the world around me, as well as the currents of thought I use. on these pages; to the friends I’ve made during these five years of Architecture and Urbanism, who supported me and allowed me to participate in their lives in easy and difficult moments, mine and theirs, and I know that, even if time, or the brevity of life, keep away, I will always carry you in a very special part of my memories; to the professors and people who have passed through me throughout my academic life up to this point and who have strongly contributed to my personal formation as an individual and as a citizen.

Devo também a devida gratidão a minha orientadora, Eneida, por todo auxilio prestado as inquietações que este trabalho exigia e por instiga-las fazendo com que eu fosse cada vez mais além nas investigações para sanar a problemática que proponho aqui. Por fim, agradeço a mim, não como um ato de narcisismo, mas como um reconhecimento do quão difícil e repleto de empecilhos foram os cinco anos que se ressumem nestas páginas e por este caderno ser justamente símbolo físico disto e de tudo aquilo que acredito.

I also owe due gratitude to my supervisor, Eneida, for all the assistan-

ce provided to the concerns that this work required and for instigating them, making me go further and further in the investigations to solve the problem I propose here. Finally, I thank myself, not as an act of narcissism, but as an acknowledgment of how difficult and full of obstacles the five years that are summed up in these pages were and for this notebook being precisely a physical symbol of this and everything I believe in and defend.


A imagem do Monumento às Bandeiras tomado por populares é uma imagem difícil de sair da mente, a força representativa que ela carrega é nítida e inquestionável. Luta dos Guarani de São Paulo. PACIORNIK, Vitor Flynn, 2016. Imagem presente na HQ Xondaro [1].

Antes de apresentar este trabalho preciso deixar claro como o tema vem ao meu encontro. Pode-se dizer, sem dúvida, que aqui está uma confluência de cinco anos enquanto estudante de Arquitetura e Urbanismo, assim como um compilado de posições pessoais que sofreram, em certa medida, influência de fatos ocorridos no Brasil no passo dos últimos seis anos, de manifestações a medidas governamentais dúbias, vários fatores (vivenciados ou

Before presenting this work, I need to make it clear how it arises, how the theme comes to me. It can be said, without a doubt, that here is a confluence of five years as a student of Architecture and Urbanism, as well as a compilation of personal positions that were, to some extent, influenced by events that occurred in Brazil over the last six years, from demonstrations to dubious governmental measures, several fac-

Entretanto, não busco aqui redigir um manifesto ideológico sobre questões triviais à sociedade brasileira, não há aqui pretensões maiores que as de gerar discussões, debates sobre o papel da arquitetura enquanto expressão física da memória e a necessidade de se rever simbolismos datados de um passado que não é inteiramente real.

However, I do not seek here to write an ideological manifesto on trivial issues to Brazilian society, there are no greater pretensions here than to generate discussions, debates about the role of architecture as a physical expression of memory and the need to review symbolisms dated from a past that it’s not entirely real.

não) tiveram importância ímpar no encontro com o tema deste trabalho.

Em linhas gerais, pode-se dizer que este trabalho é movido por um propósito: nele busco exprimir anseios que julgo pertinentes à discussão em sociedade, valendo-me de levantamentos historiográficos, sociológicos, antropolígicos, filosóficos e arquitetônicos para elaborar um projeto que seja em síntese um resumo da leitura que fiz, certamente, podendo não ser a melhor escolha projetual, mas a que considero mais pertinente à ocupação do espaço e à relação com o homem e a cidade.

tors (experienced or not) were of unique importance in the encounter with the theme of this work.

In general terms, it can be said that this work is driven by a purpose: in it I seek to express anxieties that I consider relevant to the discussion in society, making use of historiographical, sociological, anthropological, philosophical and architectural surveys to elaborate a project that is in synthesis a summary of the reading I did, certainly, it may not be the best design choice, but the one I consider most pertinent to the occupation of space and the relationship with man and the city.






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memória, a ideia que se formula de passado, está intrinsicamente ligada à formação de uma identidade seja ela de um indivíduo, seja a do coletivo. O louvor a uma possível glória passada que empregamos, na escala do urbano, na figura dos monumentos nem sempre é real representativo daquilo que se almeja representar, pois há uma intenção iconólatra ao eleger um fato ou uma figura para ser imortalizado no monumento, assim como a intenção de omitir detalhes, que alguns agentes históricos buscam apagar, ou em expressão popular “varrer para debaixo do tapete”, visando uma formulação de realidade que melhor os represente. Sendo assim, há de se dizer que na atualidade a historiografia não segue moldes engessados que fixam seu estudo em virtude de uma corrente única e inquestionável, ao contrário, hoje a pluralidade das óticas históricas é essencial para seu entendimento como algo que não é estático e muda, altera-se com o tempo, num constante processo de aprimoramento do conhecimento sobre o passado. Entretanto, no Brasil o conceito de pluralidade do estudo historiográfico é ainda muito diminuto, principalmente no âmbito da educação básica. Uma visão datada e impositiva é o elemento de base à modulação de uma identidade nacional e de uma memória coletiva, que, muitas vezes, não tem precedentes na realidade, mesmo assim é instrumento de “oficialização” nas definições do que é a gente brasileira. Na escola, todos aprendemos o significado da bandeira brasileira: o retângulo verde simboliza nossas matas e riquezas florestais; o losango amarelo, nosso ouro e riquezas mineirais; o círculo azul estrelado, nosso céu, onde brilha o Cruzeiro do Sul, indicando que nascemos abençoados por Deus; e a faixa branca, na qual lemos “Ordem e Progresso”, simbolizando o que somos: um povo ordeiro e progressista. (...). (...) Aprendemos também que nossa história foi escrita sem derramamento de sangue, (...); que a grandeza do território foi um

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feito da bravura heroica do Bandeirante, (...). Em suma, somos um povo bom, pacífico e ordeiro, convencido de que “não existe pecado ao sul do Equador”. (CHAUI, 2013, p. 147, 148 e 149)

Tal configuração de entendimento unilateral da história brasileira acaba por criar uma memória coletiva sobre um passado seletivo que muitas vezes não cabe no passado real. É justamente sobre a revisão histórica e desta memória coletiva e de elementos por ela produzidos que se aplica as investigações deste trabalho. Partimos, então, da análise de São Paulo, da construção da identidade paulista perante a nacional (numa espécie de identidade paralela), da adoção à figura do bandeirante como símbolo e, principalmente, da diminuição (por vezes exclusão) da participação de outras matrizes fundamentais (índios e negros) na formulação da gente paulista e, por que não, brasileira. Procurar-se-á traçar aqui um paralelo do ontem com o hoje, com a forma com a qual a criação da memoria coletiva enquanto identidade social e cultural de um povo influi na organização deste, nas suas desigualdades, na sua “fisionomia”. Para isso se fará um embate das visões sobre o elemento representativo do passado ideal (monumento) e como as interações com ele variam na medida que se revisa o seu real papel simbólico. Pode-se dizer que o embate resultará na tentativa de se compreender o monumento como algo que tem sua permanência no cotidiano urbano e do próprio cidadão. Não há, portanto, a intenção de se apagar o passado, seja ele doloroso ou não, errôneo ou não, glorificado ou não, há, sim, o intento de assimilação e ressignificação da leitura que se fez no passado/presente para uma abordagem diferente futura, ou seja, procura-se obter como resultado de tamanho conflito um projeto que busque ser na somatória das camadas históricas, de inúmeras interpretações, um ensinamento e um espaço de memória do ontem no hoje para o amanhã.

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emory, the idea that is formulated of the past, is intrinsically linked to the formation of an identity, whether of an individual or of the collective. The praise to a possible past glory that we use, in the urban scale, in the figure of the monuments is not always real representative of what it is intended to represent, because there is an iconolatric intention when choosing a fact or a figure to be immortalized in the monument, as well as the intention to omit details, which some historical agents seek to erase, or in popular expression “sweep under the rug”, aiming at a formulation of reality that best represents them. Therefore, it has to be said that nowadays historiography does not follow fixed patterns that fix its study by virtue of a single and unquestionable current, on the contrary, today the plurality of historical perspectives is essential for its understanding as something that is not static and it changes, changes over time, in a constant process of improving knowledge about the past. However, in Brazil the concept of plurality in the historiographical study is still very small, especially in the context of basic education. A dated and imposing vision is the basic element to the modulation of a national identity and a collective memory, which, many times, has no precedents in reality, even so, it is an instrument of “officialization” in the definitions of what the Brazilian people are. At school, we all learned the meaning of the Brazilian flag: the green rectangle symbolizes our forests and forest wealth; the yellow lozenge, our gold and mineral riches; the blue starry circle, our sky, where the Southern Cross shines, indicating that we were born blessed by God; and the white band, on which we read “Ordem e Progresso”, symbolizing what we are: an orderly and progressive people. (...). (...)

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We also learned that our history was written without bloodshed, (...); that the grandeur of the territory was a feat of Bandeirante’s heroic bravery, (...). In short, we are a good, peaceful and orderly people,


convinced that “there is no sin south of the Equator”. (CHAUI, 2013, p. 147, 148 and 149)

Such a configuration of a unilateral understanding of Brazilian history ends up creating a collective memory about a selective past that often does not fit in the real past. It is precisely on the historical review and this collective memory and elements produced by it that the investigations of this work are applied. We start, then, from the analysis of São Paulo, from the construction of the São Paulo identity before the national one (in a kind of parallel identity), from the adoption of the pioneer figure as a symbol and, mainly, from the decrease (sometimes exclusion) of the participation of other matrices. fundamental (Indians and Blacks) in the formulation of the people of São Paulo and, why not, Brazilians. An attempt will be made here to draw a parallel between yesterday and today, with the way in which the creation of collective memory as a social and cultural identity of a people influences its organization, its inequalities, its “physiognomy”. For this, a clash of views will be made about the representative element of the ideal past (monument) and how the interactions with it vary as its real symbolic role is reviewed. It can be said that the clash will result in the attempt to understand the monument as something that has its permanence in the urban daily life and of the citizen himself. There is, therefore, no intention of erasing the past, be it painful or not, erroneous or not, glorified or not, there is, yes, the intention of assimilation and resignification of the reading that was made in the past/present for a different approach future, that is, it seeks to obtain as a result of such conflict a project that seeks to be, in the sum of the historical layers, of innumerable interpretations, a teaching and a space of memory from yesterday in today to tomorrow.

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or não se tratar aqui de um estudo voltado à pesquisa historiográfica e sim, sobre arquitetura enquanto fundamento projetual, é necessário fazer ponderações do quanto se está disposto a adentrar no passado e a necessidade de fazer uma abordagem de certos aspectos contraditórios da narrativa histórica brasileira, que constrói grandes personagens e figuras míticas, heróicas, para forjar um passado glorioso, ao invés de se ater aos fatos e personagens simplórios e corriqueiros, que representam as camadas marginalizadas da sociedade brasileira até a atualidade, e às narrativas do cotidiano.

1. MARTIUS, Karl Friedrich Von. Como se deve escrever a História do Brasil. Rio de Janeiro: IHGB, 1991.

Há ainda que se levar em consideração o quão recente é nossa história enquanto passagem de tempo, tendo pouco mais de 500 anos, e enquanto disciplina acadêmica, levando em conta que o primeiro órgão de formulação acadêmica da história nacional, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), acaba de fazer 180 anosde fundação, em 2018, e que só em 1845 define por completo as diretrizes básicas de como se deveria contar a História do Brasil1. Portanto parte-se da premissa de um conhecimento básico de nossa história para pontuar situações chaves na linha temporal de modo a fundamentar o esboço da criação da identidade paulista enquanto povo.

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A Formação do Brasil em linhas gerais

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os olhos do presente é difícil ponderar, sequer imaginar, o que foi o primeiro contato do europeu na figura da esquadra de Cabral com os índios na costa de Porto Seguro em 22 de abril de 1500, descrever tamanho choque sem dúvida foi uma das mais complexas tarefas que só Pero Vaz de Caminha soube fazer com a majestade devida em sua Carta a El-Rei D. Manuel. Entretanto, provavelmente, nem Caminha enquanto escrevia seu relato, nem aqueles outros portugueses que foram degredados ou vítimas de naufrágio nos primeiros anos pós-descoberta, nem aqueles índios parados na praia pasmos com o quão colossal aquelas naus e aquele povo pálido lhes pareciam, poderiam dimensionar ou sequer antever a hecatombe que o recém “descoberto” Brasil se tornaria, muito menos o que disso reverberaria no futuro. Difícil imaginar o impacto e o significado da “descoberta de um Novo Mundo”. Novo, porque ausente dos mapas europeus; novo, porque repleto de animais e plantas desconhecidos; novo, porque povoado por homens estranhos, que praticavam poligamia, andavam nus e tinham por costume fazer a guerra e comer uns aos outros. (SCHWARCZ. STARLING, 2015, p.21)

Ou como coloca Eduardo Galeano em um tom mais ácido e referindo-se à chegada primordial dos europeus em terras americanas2:

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2. Aqui Galeano faz menção à chegada de Cristóvão Colombo a América em 1492 e à dualidade que a palavra “descobrimento” tem a depender do ponto de vista. Mesmo sendo uma menção à chegada dos espanhóis às Américas, o texto também é usual para a colonização efetuada na América Portuguesa, mesmo sendo mais branda que a espanhola, a ocupação portuguesa deixou marcas profundas no Brasil até a atualidade. O primeiro encontro entre os povos (mesmo que aqui seja um ótica idealizada pelo artista) o primeiro choque de descoberta e o primeiro passo à hecatombe. Desembarque de Cabral em Porto Seguro, SILVA, Oscar Pereira, 1904. Acervo do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro [2].


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Em 1492, os nativos descobriram que eram índios, descobriram que viviam na América, descobriram que estavam nus, descobriram que deviam obediência a um rei e a uma rainha de outro mundo e a um deus de outro céu, e que esse deus havia inventado a culpa e o vestido e que havia mandado que fosse queimado vivo quem adorasse o Sol e a Lua e a terra e a chuva que molha essa terra. (GALEANO, 2012, p.324)

O Brasil leva algum tempo até demostrar possibilidade de lucro à Coroa Portuguesa (até então preocupada com o comércio de especiarias da Índia). Quando da descoberta do pau-brasil se dá início a primeira empresa comercial em terras brasileiras sobre a exploração da madeira que nomeia sua gente, o pau-brasil, como coloca Eduardo Bueno: O pau-brasil pode não ter dado seu nome ao país. Mas foi com certeza ele que batizou seu povo: eram chamados de “brasileiros” aqueles que traficavam “pau de tinta”. (...) (BUENO, 2012, p.35)

3. Instituição social formada nas primeiras décadas da colônia que consistia no habito dos indígenas brasileiros de “incorporar estranhos” em seu meio e a forte relação de laços parentais que formavam seus agrupamentos, de modo que a relação de trabalho do índio com o “estranho” se dava na base dos favores e não da força. A exploração do pau-brasil é o primeira e mais notória empresa comercial portuguesa no Brasil ao ponto de ser referênciada em mapas. Atlas nautique portugais, partie de l’atlas Miller. HOMEM, Lopo, 1519. Acervo da Biblioteca Nacional da França, Paris [3].

A principio tal exploração não era elemento que por si só justificassem um endurecimento das relações entre brancos e índios, uma vez que era benéfico aos portugueses a fomentação do “cunhadismo”3 para a geração de mão de obra em abundância como coloca Darcy Ribeiro: “(..) a instituição funcionava como uma forma vasta e eficaz de recrutamento de mão de obra para trabalhos pesados de cortar pau de tinta, transportar e carregar navios (...)” (RIBEIRO, 1995, p.63). Podemos ainda atribuir a instituição do cunhadismo a ratificação da presença portuguesa no território brasileiro e na sua eventual manutenção (contra invasão de outros povos europeus) e posterior expansão (as entradas e bandeiras a partir dos sertões paulistas), pois a cada degredado ou náufrago que aqui passaram a viver, um verdadeiro “criadouro” de mamelucos se instalou.

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É mais adiante no tempo, em 1532, quando a introdução do plantio da cana-de-açúcar como medida da Coroa para ratificação da posse das terras brasileiras, por conta do interesse de outros povos europeus (franceses e holandeses principalmente), que se dá os primeiros conflitos e a definição da relação entre colonizador e colonizado, ou seja, as relações vão do cunhadismo ao escravismo. A escravidão indígena só passou a ser contestada com a chegada da primeira incursão da Companhia de Jesus em 1549, mesmo que só tenha sido abolida 1757. A Companhia passou a ser, então, defensora ativa dos povos indígenas – desde que se submetessem ao Jesuítas e a Igreja – dando início as missões que visavam salvar a alma daquela gente, ao mesmo passo que os domesticar àquele ambiente pio que as missões jesuíticas propiciavam. Todavia tal atitude só serviu de combustível à tenção entre colonos e os jesuítas4, principalmente com a crescente necessidade de mão de obra para as lavouras de cana-de-açúcar e a abundância de índios na terra, que acaba por gerar incursões brutais de sertanistas paulistas (bandeirantes) as missões jesuíticas, tirando grande proveito daquela gente domesticada e descaracterizada, trazendo-os a força ou os erradicando da terra. Na fundação do Brasil, dois projetos de colonização se opõem a ferro e fogo. O colonial queria cruamente aliciar os índios como força de trabalho. O religioso queria criar com os índios uma república pia. O genocídio e o etnocídio provocado pela escravização e pela catequese tornaram inevitável a hecatombe. (O POVO, 2000)5

A diminuição do uso da mão de obra indígena se dá com o advento do uso da mão de obra negra ainda no século XVI, na necessidade de se intensificar a produção do açúcar, somando a isso o fato de que o índio era nativo da terra, ou seja, facilmente escapava, isso quando não optava pelo suicídio como saída honrosa ou pereciam ante as doenças trazidas da Europa; já o negro, por sua vez, importado da África,

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4. O conflito com a Companhia de Jesus chega ao ápice em 1759, quando Marques de Pombal (16991782), então secretário de Estado do Reino, expulsa a ordem religiosa de todos os territórios portugueses, colônia ou metrópole, usando como pretexto a crise entre Portugal e Espanha na região dos Sete Povos das Missões, no atual Rio Grande do Sul.

5. Frase citada por Chico Buarque de Holanda em O POVO Brasileiro: Encontros e desencontros. Direção: Isa Grinspum Ferraz. Produção: Instituto Darcy Ribeiro. Rio de Janeiro: Versátil, 2000.


ignorante no idioma e no ambiente era peça mais fácil de se quebrar as necessidades escravocratas. E é nesse processo de substituição da cor de pele que o chicote do feitor estrala (que dura até fins do século XIX) que o Brasil tem a formação do encontro, e ao mesmo tempo desencontro, das três matrizes que formam sua gente.

Os engenhos de áçucar que passaram a povoar a costa nordeste brasileira foi a empresa que por mais tempo dominou a fonte de renda portuguesa no Brasil e foi graças a ela que se deu início vinda em massa de escravos negros para terras brasileiras. A Sugar Mill. KOSTER, Henry, Travels in Brazil, Londres, 1816 [4].

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As bandeiras e a identidade paulista

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s paulistas – aqui me refiro aos sertanistas que adentraram e repovoaram o interior do Brasil – tem papel considerável na formação da identidade brasileira, assim como são peças marcantes em nossa história, mesmo assim não é possível negar o quão controversa essa figura se apresenta e o rastro nefasto que sua trajetória, nos 300 anos de colônia, deixa indelével até dias atuais. Embora o auge das bandeiras tenha coincidido com o alvorecer do século XVII e se prolongado por todo ele, o apresamento de indígenas sempre fez parte da história de São Paulo – na verdade, chegou a constituir sua essência. (BUENO, 2012, p.64)

O Brasil enquanto colônia se divide em dois polos: o norte (hoje região Nordeste), centrado na capitania de Pernambuco, rico por conta do pau-brasil e depois pelo açúcar e sedento por escravos; e o sul (hoje região Sudeste), centrado na vila de São Vicente, pobre e sem importância para a Coroa, tinha como única fonte de renda a exportação de nativos para os engenhos, mas a finalidade em que os paulistas vão almejar ao ocupar a região de São Vicente e, posteriormente, a do Piratininga é a busca por ouro tal qual os espanhóis descobriram em abundancia em suas colônias na outra extremidade do continente6. Enquanto os núcleos açucareiros da costa nordeste cresciam e enriqueciam,

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6. Vale aqui apontar que São Paulo era, e ainda é, ponto central de uma série de caminhos indígenas para se adentrar pelo continente, não é por menos que hoje boa parte das estradas que saem de São Paulo são construídas sobre tais caminhos e, ironicamente, levam o nome de bandeirantes. Aqui temos justamente uma das representações mais falaciosas da imagem do bandeirante, encomendade por Affonso Taunay (quando este era diretor do Museu Paulista), e passou aser um dos modelos de como se representar tais figuras controversas. Domingos Jorge Velho. CALIXTO, Benedito, 1903. Acervo do Museu Paulista da Univercidade de São Paulo, São Paulo [5].


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a população paulista revolvia-se numa economia de pobreza. Não tendo grandes engenhos de açúcar, que eram riqueza do tempo, tão pouco tinham escravaria negra, e raramente um navio descia até o ancoradouro de São Vicente (...). (RIBEIRO, 2015, p.268)

É preciso ainda pontuar que embora a fundação da vila de São Paulo de Piratininga (1554) se dê por intermédio de jesuítas na busca de “almas indígenas a serem salvas”, é somente com os primeiros náufragos e degredados, que, usando em primeiro momento o cunhadismo, como João Ramalho é que a ocupação do planalto paulista se dará de fato. Através do laço parental que a união de tais portugueses com índias gerava e a consequente aliança com tribos, como os Tupiniquim, que os primeiros paulistas tiravam proveito na conquista de outros povos para a escravidão, para isso acirravam as inimizades entre eles e as inevitáveis guerras, que já faziam parte da ritualística indígena, aprendiam a viver como eles, a ser algo próximos do que os índios eram e faziam mamelucos aos montes para garantir seu exercito e sua chance de sucesso nas empreitadas pelo sertão. As guerras entre índios se tornam mais sangrentas e menos ritualísticas com a presença europeia, uma vez que tanto Portugal quantos outras nações, que almejavam um pedaço do Brasil, usavam dos povos indígenas, a importância que estes davam a guerra, para ter seu exercito em terras tropicais. Os paulistas não agiram de forma diferente, deformam o rito sagrado da antropofagia do pós-guerra para o escravagismo dos derrotados. Os paulistas foram assim se constituindo enquanto gente, descaracterizados do português e sem relação direta com o índio, era um meio termo que não pertence a lugar nenhum e a ninguém. Donos de si mesmos e marginais à Coroa viviam nos sertões uma liberdade que nenhum outro colono poderia sequer supor, adaptaram hábitos indígenas com a belicosidade europeia, reviravam o sertão à caça de índios e, posteriormente, na destruição de quilombos e re-

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Embora a representação de João Ramalho não seja fiel à figura original, ela é das representações do começo do século XX com menos floreios na representação do bandeirante. João Ramalho. RODRIGUES, J.W., 1920. Acervo do Museu Paulista da Univercidade de São Paulo, São Paulo [6].


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A imagem capturada por Debret no século XIX é o retrato mais fiel que se pode dar a figura do bandeirante. Soldados contra índios de Mogi das Cruzes. DEBRET, Jean-Baptiste, 1834. Acervo da Biblioteca Pública de Nova York, Nova York [7].

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captura de negros, se apropriaram de caminhos milenares de povos indígenas para explorar o interior do Brasil, mas nem por isso conseguiram fazer a fortuna que almejavam, nem mesmo com o ouro e diamante das Minas Gerais. Seus luxos [dos paulistas] em relação a vida tribal estavam no uso de roupas simples, do sal, do toucinho de porco e numa culinária mais fina; na posse de algum instrumento de metal ou arma de fogo; na candeia de óleo para iluminar, nalguma guloseima, (...) na atitude sempre arrogante(...). Todos andavam descalços ou usando simples chinelas ou alpargatas. Apenas cobriam o corpo que os índios antes deixavam à mostra (...). Não necessitavam mais, porém, uma vez que os inimigos que enfrentavam eram índios tribais arredios, índios missioneiros desvirilizados e negros quilombolas desarmados. (...) (RIBEIRO, 2015, p.268-269)

E é essa gente paulista e as incursões pelo sertão que moldam a figura do bandeirante, do sertanista. Que de fato são figura com certo desejo por aventuras, como Raposo Tavares, “o bandeirante por excelência”, e sua epopeia que vai da tomada da missão jesuítica no Guairá (1627) até a missão do Tape (Rio Grande do Sul), a subida até o forte de Gurupá (Pará), em 1649, e depois a descida até a missão de Itatim (Mato Grosso), beirando os pés dos Andes, e seu retorno a vila de São Paulo (1658) que de tão desfigurado pela jornada se tornara irreconhecível até para seu próprio cachorro (BUENO, 2012, p.68 e 69). Tais figuras tem um apelo heroico nítido e que foi construído ao decorrer de décadas por uma elite intelectual paulista, com figuras como a de Affonso Taunay e Menotti Del Picchia, nos anos 1920 buscando criar um senso de identidade paulista ante a nacional. Em São Paulo o discurso regionalista, centrado na figura do bandeirante, foi

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utilizado como ponte entre o local e o nacional. Na historiografia paulista produzida nesse período as ideias de conquista e civilização aparecem relacionadas com qualidades que as elites desejavam ver no Brasil da época, tais como progresso, modernidade, riqueza e integração territorial. Nesse momento o estudo do movimento das bandeiras também foi utilizado para destacar a singularidade do habitante de São Paulo e seu papel na conquista e, posteriormente, na ocupação do território. (RAIMUNDO, 2004)

A exaltação dos bandeirantes como figuras iconólatras e mitológicas é modulado a partir de uma resposta a construção da história brasileira pela ótica do IHGB, minimizando o período colonial e participação paulista na formação do Brasil. E é nesse cenário que entra a necessidade de São Paulo se firmar – valendo ainda lembrar o momento histórico que os anos 1920 marcam na gente paulista com a Semana de Arte Moderna em 1922 e a Revolução de 19247 – enquanto membro de presença fundamental na formação histórica brasileira.

Capa do catálogo da exposição da Semana de Arte Moderna. CAVALCANTI, Emiliano Di, 1922. Coleção IEB USP, São Paulo [8].

É, então, que se cunha o termo “raça de gigantes” para designá-los e se floreia sua aparência real – mameluco, simplório, quase sempre descalço e “caçador de gente” – para uma versão brasileira da figura dos “Três Mosqueteiros”. Ignoram todas as incursões pelo sertão em busca de índios e para destruir quilombos, das missões jesuítas destruídas e dos mortos que decorreram de tais ações. E passa-se a louvar seus feitos de desbravadores de selvas, conquistadores do território brasileiro e descobridores do ouro das Minas Gerais8.

7. Levando em conta ainda o período histórico brasileiro, República Oligárquica (1894-1930), conhecida pela política do “café-com-leite” que consistia no revezamento do poder, na figura do presidente, entre paulista e mineiros. É na década de 1920 que o sistema cafeeiro paulista vive seu apogeu econômico.

Nos anos 1920, dois devotados historiadores, Afonso Taunay e Alfredo Ellis Jr., começam a forjar o mito bandeirante. Os documentos que acharam e publicaram revelam uma saga de horrores. Ainda assim, Taunay e Ellis Jr. Preferiram fabricar a imagem do ban-

8. Em 1689 é descoberto ouro nas Minas Gerais por nomes como Manuel Borba Gato, o que leva a derradeira ocupação do interior do Brasil, mas não por paulistas e sim por portugueses em busca de fortuna.

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9. Getúlio Dornelles Vargas (1882-1954), foi presidente do Brasil em duas ocasiões de 1930 até 1946 e de 1950 até se suicidar em 1954. 10. Victor Brecheret (18941955), foi um artista plástico ítalo-brasileiro marcado por suas esculturas, assim como pela introdução do pensamento modernista na formulação de esculturas no Brasil.

11. Vale conferir entrevista de Jô Soares concedida a Fábio Porchat em 18 de abril de 2018. Nela Soares relembra como era a convivência com a OBAN, uma vez que ele fora vizinho da delegacia onde a operação ocorria (rua Tutóia, 921) nos anos 1970. Assim como os depoimentos das vítimas da OBAN concederam a Comissão Nacional da Verdade. No Centenário da Independência que se dá a pedra fundamental da construção do bandeirante como símbolo paulista e artistas com Brizzolara são fundamentais para a construção de tais ícones. Fernão Dias Paes Leme (pág. anterior). BRIZZOLARA, Luigi, 1922. Acervo do Museu Paulista da Univercidade de São Paulo, São Paulo [9]. Antônio Raposo Tavares (ao lado). BRIZZOLARA, Luigi, 1922. Acervo do Museu Paulista da Univercidade de São Paulo, São Paulo [10].

deirante altivo e galhardo, como se os caçadores de homens fossem os “Três Mosqueteiros”. Mas ambos sabiam que muitos dos bandeirantes andavam descalços, mal falavam português e estavam treinados para escravizar e matar. (BUENO, 2012, p.63)

É em 1932, com a Revolução Constitucionalista, que São Paulo passa a usar a imagem do bandeirante como figura ilustrativa da bravura de sua gente, em paralelo seria como um time de futebol que elege uma mascote, o paulista elegeu o bandeirante enquanto seu representante simbólico. A necessidade de uma unidade entre os paulistas para enfrentar as forças de Getúlio Vargas9 é só o estopim do bairrismo que a gente de São Paulo irá gestar dentro de si durante as décadas de 1930 e 1940. Quando em 1954, na comemoração do IV Centenário de São Paulo, a figura do bandeirante herói já é inseparável da identidade de formação do paulista. É parte que lhe dá orgulho e prestigio e, embora já houvessem monumentos erguidos a tais figuras no passo do tempo, para a comemoração do aniversário paulista que se inaugura o mais emblemático monumento aos sertanistas: o Monumento às Bandeiras de Victor Brecheret10 – que falaremos mais adiante. A figura do Bandeirante fica assim marcada no imaginário popular do paulista e passa a fazer parte de sua formação enquanto sociedade, nomeia avenidas, pontes, estatuas, monumentos e, principalmente, estradas; é o patrono da Policia Militar do Estado de São Paulo, está presente em inúmeros brasões de cidades paulistas. É a primeira figura a lhe receber quando se adentra o Museu Paulista da Universidade de São Paulo – imagens talhadas em mármore branco “representando” Antônio Raposo Tavares e Fernão Dias Paes Leme. E é, além de tudo, representante de grupos inglórios como a Operação Bandeirantes (OBAN) responsável por investigações e ações contra “ameaças” subversivas – ações que iam além da prisão, contento também assassinatos e torturas11 – durante a Ditadura Civil Militar (1964-1988).

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A presença massiva e natural do bandeirante dentro da cultura paulista fica nítida durtante o IV Centenário de São Paulo. O bandeirante foi prontamente elencado como símbolo de indentificação do ser paulista e usado aos montes em propagandas, como é possível ver nas imagens ao lado. Propagandas do IV Centenário de São Paulo [coletas nos seguintes veículos: O Estado de São Paulo, Noite Ilustrada, Mundo Ilustado, A Gazeta e Revista Machete] (ao lado). 1954. Acervo da Hermenoteca Mario de Andrade, São Paulo [11].

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Entre domesticados, cativos e nativos

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A história brasileira não celebra um único herói indígena (...). Na história real, (...), nenhum jesuíta jamais chorou a morte do último Tamoio – que eram aliados dos franceses e foram abandonados pelos padres. Haverá alguém para chorar pelo último Ianomâmi? (BUENO, 2012, p.17)

a colônia até os dias atuais a relação com o índio (ou como coloca John Monteiro “negro da terra”) e o negro mudou muito pouco, ainda há em nós brasileiros um débito muito grande a se pagar a estes povos ancestrais.

Família guarani capturada por caçadores de índios. DEBRET, Jean-Baptiste, 1830. Acervo da Biblioteca Pública de Nova York, Nova York [12].

Quando os portugueses chegaram no Brasil e se depararam com os povos Tupiniquim nas praias de Porto Seguro marcaram o fim de grande parte da população indígena brasileira (como demonstra o mapa da página seguinte). Seja por doenças, guerras, assimilação ou escravidão, a população de nativos diminuiu drasticamente no passo dos últimos 500 anos – e ainda continua a diminuir. O número real de indígenas no Brasil antes dos portugueses é impreciso e com uma grande margem de variação como coloca Boris Fausto: “(...). Os cálculos oscilam entre números tão variados como 2 milhões para todo o território e cerca de 5 milhões só para a Amazônia brasileira” (FAUSTO, 2010, p.38). Todavia é gritante o quanto se decaiu a população indígena nacional que em tempos atuais não passa de pouco mais de 890 mil indivíduos (segundo dados do IBGE, censo de 2010), entorno de

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mapas criados com base em dados coletados em: MARTINS, Edilson. Nossos índios, nossos mortos. 5. ed. Rio de Janeiro: Codecri, 1983. Assim como dados do senso de 2011 do IBGE.

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0,4% da população brasileira, sendo que poucas etnias passam dos 20 mil habitantes e pelo menos metade deste número se encontra fora de aldeias. Em cada século e em cada região, tribos indígenas virgens de contato e indenes de contagio foram experimentando, sucessivamente, os impactos das principais compulsões e pestes da civilização, e sofreram perdas em seu montante demográfico que jamais recuperaram. O efeito dizimador das enfermidades desconhecidas, somado ao engajamento compulsório da força de trabalho e ao da deculturação, conduziram a maior parte dos grupos indígenas à completa extinção. (...) (RIBEIRO, 2015, p.108)

A figura do índio no Brasil é execrada por todo período colonial, de escravo (na mão de bandeirantes e senhores de engenho) a mão de obra gratuita a serviço do Senhor (nas mãos da Companhia de Jesus). É na segunda metade do século XIX que, por um breve momento, o índio é figura de certo louvor com livros como Iracema e O Guarani, de José de Alencar 12 , mesmo que moldado em uma imagem europeia e visando a construção de um “tipo brasileiro ideal” que o Romantismo ufanista exigia, mas é só em meados no século XX com incursões como a do Marechal Rondon13 e dos irmãos Villas-Bôas14 que a figura do indígena passa a ter uma importância político-cultural e ser de fato assunto de Estado como preservação cultural do povo brasileiro. Na formação da identidade paulista o índio vem antes de tudo como a cultura básica e é quem dita a forma como o sertanista vai se adaptar à colônia e como ele vai adentrar no interior do Brasil para buscar outros cativos. O índio é ainda o domesticado, tirado de sua tribo, de sua cultura, de suas crenças, de sua gente se tornando mais um “ninguém” junto ao paulista e não vê alternativa a não ser ficar e viver ali com ele, gerar mamelucos que também serão outros “ninguém” nessa somatória da construção de

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12. José de Alencar (18291877), escritor romântico brasileiro. 13. Marechal Cândido Mariano da Silva Rondon (1865-1958), foi importante sertanista brasileiro, fazendo expedições a região do Amazonas e sendo um dos primeiros a pensar em políticas públicas para a preservação dos povos indígenas. 14. Orlando (1914-2002), Cláudio (1916-1998) e Leonardo Villas-Bôas (1918-1961), sertanistas responsáveis por incursões de reconhecimento no Alto Xingu e por serem defensores dos povos indígenas. 15. Notícias sobre conflitos e morte de índios são frequentes em veículos de notícias, sendo que o caso mais recente envolvendo o agrupamento indígena é de 2016. Mesmo não sendo amplamente divulgado nos grandes veículos nacionais de comunicação o caso ganhou um documentário dirigido por Vincent Carelli (MARTÍRIO, 2016) para retratar o que se passou e se passa nas terras deste agrupamento indígena.

A pluraridade étnica que o Brasil possuia foi uma das maiores perdas que o processo colonizador pode trazer. A quantidade de agrupamentos indígenas extirpados da terra é uma dívida que jamais conseguiremos quitar. Cabeças de índios. DEBRET, Jean-Baptiste, 1836. Acervo da Biblioteca Pública de Nova York, Nova York [13].

nossa identidade. O índio é, até dias atuais, um “ninguém”, vive a mercê do agronegócio, das mineradoras, das madeireiras e dos grileiros, é marginalizado pelo Estado e menosprezado pela população, quase que se torna alienígena dentro da terra que também lhe pertence, não é sequer considerado brasileiro pelos seus, é simplesmente “índio”; não tem até hoje direito sobre suas terras, não possuindo nada em definitivo, dependendo de demarcações para poder, levianamente, dizer que tem direito à terras que antes eram suas, e, ainda hoje, são submetidos sistematicamente à torturas e mortes no interior do Brasil, como nos mostra o que talvez seja o caso mais gritante desta realidade na atualidade, o dos Guarani Kaiowá15. O negro na somatória das matrizes brasileiras entra ainda no século XVI, com as primeiras viagens de tumbeiros pelo Atlântico com destino as plantações de açúcar na costa nordeste brasileira. Lá ficam por quase dois séculos, sendo cada vez mais transportados aos montes e morrendo com a mesma velocidade. O jesuíta Antonil, dono de frases tão sintéticas como cruéis, definiu os escravos como “as mãos e os pés de senhores do engenho porque sem eles no Brasil não é possível fazer, conservar e aumentar fazenda, nem ter engenho corrente”. (...) (SCHWARCZ. STARLING, 2015, p.79)

E é sobre o tráfico de negros e a escravidão dos mesmos que a economia brasileira se forma durante todo período colonial e imperial. A importação em massa de gente da África fez aqui um amontoado de seres humanos que não eram considerados nada além de mercadoria, destituídos de sua língua, de sua cultura, de sua religião, de sua terra, de sua humanidade, tiveram que se adaptar ao Brasil, fazer aqui um pedaço da memória que guardaram do passado na África. Como coloca Eduardo Bueno: “Esta é uma nação erguida por seis milhões de braços escravos – e sobre três milhões de cadáveres.” (BUENO, 2012, p.122)

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mapa criado com base em dados coletados em: BUENO, Eduardo. Brasil Uma História: Cinco séculos de um país em construção. Rio de Janeiro: Editora Leya, 2012 .

E de fato o número de negros escravizados durante todo período escravagista no Brasil é impressionante, até porque a taxa de mortalidade era elevada e o custo de importação baixo, uma vez que se comprava negros a troco de cachaça e tabaco brasileiros de segunda na costa africana, o que fazia dos tumbeiros brasileiros imbatíveis no comercio de gente pelo Atlântico (os brasileiros passam a dominar a rota do tráfico no Atlântico a partir do Ciclo da Costa do Marfim, com uma variação de chegada de 5.740 em 1790 até 47.280 em 1829, isso só no porto do Rio de Janeiro)16. É na segunda metade do século XIX que por motivações econômicas, políticas e humanitárias o Reino Unido – então maior e mais poderosa nação da época – opta pelo combate à escravidão, passa a tentar de todas as custas brecar o tráfico negreiro pelo Atlântico. O Brasil resiste o máximo possível17, mesmo havendo movimentos abolicionistas internos contundentes com membros como Castro Alves18 e Rui Barbosa19, mas é só em 1888 em que o Brasil, como última nação ocidental, reconhece o fim da escravi-

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16. FLORENTINO, Manolo. Em costas negras: Uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX). São Paulo: UNESP, 2014.

17. O Brasil cedeu de forma lenta e gradual a pressão do Reino Unido, com o primeiro movimento sendo a Lei Eusébio de Queirós (1850) que proibia o transporte negreiro pelo Atlântico; Lei do Ventre Livre (1871) que determinava que negros nascidos a partir da aprovação da lei estariam livres; Lei dos Sexagenários (1885) que libertava escravos acima de 60 anos; e culminando na Lei Aurea (1888) que extinguia a escravidão no Brasil.


18. Antônio Frederico de Castro Alves (1847-1871), foi importante poeta e ativista pelo abolicionismo escrevendo o icônico Navio Negreiro, numa versão em versos que só as gravuras de Rugendas capitaram. 19. Ruy Barbosa de Oliveira (1849-1923), importante politico que além de ativista pela abolição atuou na Proclamação da República e foi um dos primeiros a pensar que a população negra recém liberta necessitava de auxílio do Estado.

Mercado da rua do Valongo. DEBRET, Jean-Baptiste, 1816. Acervo da Biblioteca Pública de Nova York, Nova York [14]. Nem mesmo o traço suave de Debret pode reduzir a bestialidade do que é representado. O mercado de escravos da rua do Valongo (porto que mais recebeu escravos negros no mundo) no Rio de Janeiro é uma amostra da barbárie que se caracteriza a escravidão.

Mesmo que a representação que Rugendas de ao porão de um tumbeiro seja forte e tenha sido usada a exmo como propaganda abolicionista, ela é só uma fração da realidade vivida por aquele povo. Era uma viagem das mais insalubres, pouco mais de 30% dos negros que ali entravam saiam com vida, o que aumentava ainda mais o lucro de seus exploradores. Negros no fundo do porão (página seguinte). RUGENDAS, Johann Moritz, 1835. Acervo da Biblioteca Nacional da França, Paris [15].

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Escravos libertos a bordo do HMS London [navio inglês que perseguia traficantes de escravos no Oceano Índico] (página anterior). FERREZ, Marc, 1882. Acervo Instituto Moreira Salles, Rio de Janeiro [16].

Carolina de Jesus é um belo exemplo do que restou ao negro neste país, o relento e exclusão territorial e social. A favela que ela tão bem relata é o reduto que o cativo liberto encontra como abrigo, como a parte que lhe cabe no grande latifundio que é o Brasil. Carolina Maria de Jesus e Ruth de Souza na favela do Canindé (abaixo). Autor não identificado, 1961. Coleção Ruth de Souza, São Paulo [17].

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dão em seus domínios, um reconhecimento que veio tarde e a custo de muitas vidas.

20. Aluísio Tancredo Gonçalves de Azevedo (18571913), escritor naturalista que relata a vida da camada mais humilde da população urbana.

21. VILLAÇA, Flávio. Espaço Intra-urbano no Brasil. São Paulo: Nobel, 2016.

22. Carolina Maria de Jesus (1917-1977), uma das primeira e mais importantes escritoras negras no Brasil, catadora de lixo e moradora da favela do Canindé em São Paulo. Seu livro, Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada, é até hoje uma dos melhores e mais bem detalhados relatos do dia a dia em uma favela.

Os negros, embora presentes em algumas incursões paulistas só se tornam figuras marcantes nas terras de São Paulo com o advento do café no Vale do Paraíba em fins do século XVIII. E lá se aglomeram durante todo século XIX até a abolição quando parte da população (a maioria) se voltou para o Rio de Janeiro, então capital do país, e outra parte que continuou em terras paulistas, mesmo sendo substituídos por mão de obra imigrante advinda da Europa (principalmente Itália) e Japão. A população negra é então marginalizada e renegada, em primeiro momento, aos cortiços e áreas urbanas decadentes, como bem ilustra O Cortiço de Aluísio Azevedo20. É ainda no começo do século XX que se darão a ocupação de terrenos periféricos para moradia ilegal, construção de barracos e a contínua segregação da população negra brasileira a áreas degradadas e espaçadas do ambiente urbano por direito, quase como num ambiente paralelo a “cidade formal”, naquilo que Villaça21 chamará de “cidade informal” e, no caso de São Paulo, a “cidade do lado de lá” numa alusão a margem da cidade que cresceu para além da várzea do rio Tamanduateí. Uma ilustração desse cotidiano que a população negra enfrenta no ambiente urbano das favelas é o relato de Carolina Maria de Jesus22 em Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada sobre seu dia a dia na favela do Canindé, que mesmo tendo sido escrito em 1960 ainda é representativo de parte considerável da população negra urbana. Pode-se pensar que a participação negra na formação da gente paulista é miúda se comparada a indígena ou a europeia, mas esta se dá mais tardiamente na história. Por mais que seja inquestionável a presença negra em São Paulo a influência de tal matriz é recente e ainda está acontecendo, principalmente, nas periferias e de forma diferente a que ocorra no restante do país, aqui a influência negra não é em

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sua maioria baseada na cultura ancestral africana, até por conta do quão recente é tal encontro (levando em conta que a escravidão negra maciça em São Paulo se deu a partir de fins do século XVIII e que entre o fim do século XIX e começo do século XX houve uma intensa ação de embranquecimento da população paulista); aqui pode-se dizer que é baseada em movimentos negros internacionais, muitos advindos dos Estados Unidos entre as décadas de 1970 e 1990. Mas, no tocante à formação social do paulista (e também nacional), de sua cultura e população pode-se adotar síntese de Gilberto Freyre: Todo brasileiro, mesmo alvo, de cabelo louro, traz na alma, quando não na alma e no corpo, a sombra, ou pelo menos pinta, do indígena e/ou do negro (FREYRE, 2003, p.307)

Ou a forma menos adocicada de Darcy Ribeiro, numa tradução literal do que é nossa gente: (...). Todos nós, brasileiros, somos carne da carne daqueles pretos e índios suplicados. Todos nós brasileiros somos, por igual, a mão possessa que os suplicou. A doçura mais terna e a crueldade mais atroz aqui se conjugaram para fazer de nós a gente sentida e sofrida que somos e a gente insensível e brutal, que também somos. Descendentes de escravos e de senhores de escravos seremos sempre servos da malignidade destilada e instalada em nós, tanto pelo sentimento da dor intencionalmente produzida para doer mais, quanto pelo exercício da brutalidade sobre homens, sobre mulheres, sobre crianças convertidas em pasto de nossa fúria. A mais terrível de nossas heranças é esta de levar sempre conosco a cicatriz de torturador impressa na alma e pronta a explodir na brutalidade racista e classista. (...) (RIBEIRO, 2015, p.91)

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memória, embora baseada, em acontecimentos factuais, é passível de fabricação, pode ser direcionada e apagada com a mesma tenacidade. É produto da mente e, principalmente, do homem, não podendo, por tanto, ser inerte no tempo e sendo revisada na medida que uma sociedade cria uma nova ótica sobre assuntos pregressos. Há de se fazer um parêntese para a distinção do que é memória e do que é história, pois ambas são, segundo Maurice Halbwachs, distintas, não se podendo misturar em terminologias como “memória histórica”, naquilo que seria um termo infeliz por definição (HALBWACHS, 1990). Uma vez que a memória é mais próxima da lembrança, da tradição dos homens e da concepção das ideias e a história é factual e inerte e voltada aos livros, aos registros. (...). A história, sem dúvida, é a compilação dos fatos que ocuparam o maior espaço na memória dos homens. Mas lida em livros, ensinados e aprendidos nas escolas, os acontecimentos passados são escolhidos, aproximados e classificados conforme as necessidades ou regras que não se impunham aos círculos de homens que deles guar-

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daram por muito tempo a lembrança viva. É porque geralmente a história começa somente no ponto onde acaba a tradição, momento em que se apaga ou se decompõe a memória social. (HALBWACHS, 1990, p.80)

Ou como complementa Nora: Memória, história: longe de serem sinônimos, tomamos consciência que tudo opõe uma à outra. A memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela está em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas (...). A história é a reconstrução sempre problemática e incompleta do que não existe mais. (...). Porque é afetiva e mágica, a memória não se acomoda a detalhes que a confortam; ela se alimenta de lembranças vagas (...). A história, porque operação intelectual e laicizante, demanda análise e discurso crítico. (...). A memória emerge de um grupo que ela une (...). A história, ao contrário, pertence a todos e a ninguém, o que lhe dá uma vocação para o universal. A memória se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na imagem, no objeto. A história só se liga às continuidades temporais, às evoluções e às relações das coisas. (...) (NORA in: KHOURY, 1993, p. 9)

Explicada a distinção de história e memória podemos fazer, então, uma distinção das escalas da memória, do coletivo e do individual, que vão atuar de formas distintas na construção da identidade de uma sociedade. Ampliando as diferenças das escalas da memória é possível identificar certos aspectos que claramente as distinguem, a individual se formula nas experiências vividas unitariamente, no que aquele ser ira lembrar e rememorar, já a coletiva é um apanhado de fatos e experiências que, não necessariamente, foram vividas por todos os indivíduos que a carregam

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em seu consciente. É elemento que se constrói ou desconstrói com facilidade, pois advém daquilo que é palpável e que gera uma identificação do indivíduo ante o coletivo, como coloca Michael Pollak: A priori, a memória parece ser um fenômeno individual, algo relativamente íntimo, próprio da pessoa. Mas Maurice Halbwachs, nos anos 20-30, já havia sublinhado que a memória deve ser entendida também, ou sobretudo, como um fenômeno coletivo e social, ou seja, como um fenômeno construído coletivamente e submetido a flutuações, transformações, mudanças constantes. (POLLAK, 1992, p. 201)

É ainda a memória coletiva que vai eleger acontecimento e personagens que definiram aqueles indivíduos que a constituem, assim como definiram a forma como se representará tais elementos no hoje e a suposição de como eram no ontem. Monumentos, estatuas, pinturas, versos, etc., foram elevados como meio de se preservar a memória coletiva para uma suposta posteridade, naquilo que Nora definirá como “locais de memória”. A construção de nosso acervo artístico, da Antiguidade até o presente, se dá na somatória das representações das diversas formas da memória coletiva, do Mausoléu de Halicarnasso, passando pelo Davi de Michelangelo e o Arco do Triunfo na Champs-Élysées, até o mausoléu de Lenin, são criações que constituíram, ou constituem, parte de uma memória coletiva. Os monumentos, acima de todos, são representação mais pungente, pois inseridos no meio urbano, visíveis por todos a todo momento entram com mais facilidade o imaginário popular. Como documentos, os monumentos são tradições marcadas social e historicamente; testemunham, porém, melhor a época da sua execução do que o período que pretendem evocar. A utilização de materiais, os estilos de execução privilegiados são indícios do “es-

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Monumento à Independência do Brasil. XIMENES, Ettore; MANFREDI, Manfredo, 1922. Fotografia da coleção pessoal de José Carlos Barretta, São Paulo [18]. O monumento encomendado por Affonso Taunay para o Centenário da Independência do Brasil é um claro exemplo de como o monumento expressa a formação da indentindade de um povo, principalmente quando é elemento oficial (como neste caso) e tem como papel formular um ponto do passado que seja comum e significativo a todos, como é o caso do 7 de setembro de 1822.

23. Referente a Guerra da Secção (1861-1865): entre diversas bandeiras que envolveram o conflito, a escravidão negra era um dos pontos centrais, com os Estados Unidos (Norte), liderado por Abraham Lincoln, que defendia a abolição da escravidão e com os Estados Confederados (Sul), liderados por Jefferson Davis, que defendiam a continuidade da sociedade escravagista. Tal conflito foi responsável por uma série de conflitos e estigmas raciais que duram até dias atuais.

pirito do tempo”. (...). (FREIRE, 1997, p. 95)

Chiarelli nos lembra ainda que o monumento é elemento fundamentalmente pedagógico mediante um moralismo oficial: Todo Monumento possui uma função moralista. Ou seja, busca eternizar, através de sucessivas gerações, a relevância de um fato ocorrido na história de determinada comunidade, um herói, ou um conceito ético ou moral aceito consensualmente. (CHIARELLI, 1998, p.10)

A representação física da memória tem, ainda, sim, suas desvantagens, na medida que pode ser facilmente apagada, como ocorreu nos países pertencentes à União Soviética após seu termino em 1991, com estatuas de Lênin e Stalin sendo retiradas aos montes por populares, e de forma similar à que ocorreu nos Estados Unidos em 2017, com a retirada das estatuas de representantes do Estados Confederados23. Ambos os momentos revelam outro ponto que o fato de não existir uma memória coletiva única dentro de um povo, a unanimidade dos pontos de vista é impossível, e eventualmente há o choque das visões do passado e o caso estadunidense, talvez por ser o mais recente, seja onde melhor se possa notar tal embate e a necessidade de se ponderar acima da memória a história, numa espécie de revisão do damntio memoriae romano, só que aqui feito de baixo para cima, partindo do povo e não da figura oficial do Estado. (...). Para se apagar a memória era também necessário que os monumentos fossem destruídos, para se destruir qualquer vestígio ou possibilidade de rememoração. Era o damnatio memoriae (...). (FREIRE, 1997, p. 95)

A memória definisse então como importante elemento de constituição e construção de identidade de uma sociedade, seja na definição de “locais de me-

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mória”, na sua constituição como elemento oficial e formal ou no surgimento espontâneo e setorizado. Ela é elemento básico na constituição de qualquer sociedade, pois dela advém a noção de quem aquela sociedade é e como seus membros devem se relacionar entre si.

Os dois momentos da estátua de Lênin na cidade ucrania de Lutsk é um exemplo de como a memória é suscetível a intervenções que podem apagar o passado. Aqui, mesmo retirando símbolos da ocupação soviética na Ucrânia, resta na memória cultural e social o assombro do passado ainda recente, até porque aqui não se trata de uma tratativa “oficial” de se remover o passado e, sim, de uma ação popular. As ações feitas pelo próprio governo soviético para destroir representações aos czares russos e líderes das demais regiões soviéticas é algo que condiz mais com o caráter “oficial” de se apagar o passado. Estátua de Lênin em dois momentos. Autor desconhecido, 2008 e 2013. Internet [19] [20].

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Construção da memória coletiva paulista:

O Caso do Monumento às Bandeiras

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omo visto anteriormente a memória tem papel fundamental na construção da identidade de um povo, assim como ela se torna passível de ser construída na medida das necessidades de se oficializar certos pontos e ideais. O caso paulista não foge a tal estigma. A formatação de uma memória, que mesmo sendo local – visto que só abrange o território de São Paulo – almeja o status de uma esfera “nacional”, é característico de nações recentes como o Brasil, que só se oficializa enquanto Estado em 1822, onde a construção de uma memória coletiva ainda é possível, maleável e repleta de lacunas a serem preenchidas e onde o objetivo primário é manter uma unidade, uma coesão de sua gente, de sua história e memória naquilo que Pollak denominará de “trabalho de enquadramento da memória”. (...). Em relação à herança do século XIX, que considera a história como sendo em essência uma história nacional, podemos perguntar se a função do historiador não terá consistido, até certo ponto, nesse trabalho de enquadramento visando à formação de uma história nacional. Este fenômeno é mais claramente acentuado em países cuja unificação nacional se deu tardiamente, e onde a ciência histórica tinha uma tarefa de unificação e manutenção da unidade. (...) (POLLAK, 1992, p. 7)

O impacto que a obra de Brecheret causa é, talvez, o mais próximo do significado da palavra monumento. A obra tem uma presença que não se pode negar, muito menos diminuir, uma vez que sozinha naquele cenário de vazios, que seu entorno carrega, ela acaba por ser protagonista dos olhares. Monumento às Bandeiras. BRECHERET, Victor, 1953. Acervo pessoal, São Paulo [21].

O caso paulista, é um dos mais contundente

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dentro do território brasileiro, na necessidade de se criar uma representatividade histórica e heroica para que uma população se encaixe dentro de um cenário histórico plural. O bandeirante que o paulista escolhe como representante é a tradução que a intelectualidade paulista dos anos 1920 escolhe para representar a si e aos seus, e, para tanto, recorre a um rearranjo historiográfico e cívico para ratificar a presença de sua figura histórica na formação do recém-formado Estado brasileiro. São Paulo, como mencionado anteriormente, não se caracterizou como o mais pungente território brasileiro até fins do século XIX, o que, de certa forma, explica o lapso de praticamente 100 anos até que intelectuais como Affonso Taunay, Antonio Celso Ferreira, Monteiro Lobato e Menotti Del Picchia resgatasse tal figura para a historiografia e cultura nacional. Como coloca Abud: “a figura do bandeirante foi resgatada como símbolo, pois ao mesmo tempo em que denunciava as qualidades de arrojo, progresso e riqueza que São Paulo possuía, representava o novo processo de integração territorial que dera sentido à vida nacional” (ABUD, 1985, p. 139) É nesse processo de construção que entra a figura de Victor Brecheret, eleito a dedo por Menotti Del Picchia e Oswald de Andrade para desenhar e construir um monumento que exaltasse a figura do bandeirante e o colocasse em definitivo como marco cívico paulista dentro da história nacional, uma vez que a obra seria um presente aos comemorativos do Centenário de Independência do Brasil em 1922. Não edificada, a obra é deixada em segundo plano, mas a figura do bandeirante se torna cada vez mais expressão do ser paulista. A constituição da representatividade da gente de São Paulo tem em 1932 a fomentação de sua derradeira base. É com a Revolução Constitucionalista de 1932 que o bandeirante passa a ser o definitivo símbolo do paulista, do homem que traz o progresso, que luta por sua terra. É estigmatizado em cartazes e propagandas. São Paulo perde para o governo de Vargas, mas o bandeirantis-

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Memorial descritivo do Monumento às Bandeiras. Ilustrações Brasileiras, set. 1920. Coleção IEB USP, São Paulo [22].

O bandeirante surge então como figura da bravura paulista e como símbolo para o enfrentamento contra poderes nefastos como caracterizavam o governo de Getúlio Vargas, no poder desde a Revolução de 1930. Cartas do MMDC contra o governo Vargas. Autor desconhecido, 1932. Internet [23].

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mo continua cada vez mais pungente e entranhado na cultura paulista, ao ponto de se resgatar em 1934 o Monumento às Bandeiras que Brecheret não havia conseguido erguer nos anos 1920. Todavia, o Estado Novo varguista no intendo de evitar novas insurreições, como a ocorrida em 1932, adotou a politica de vetar quaisquer elementos de exaltação regionalista, tão logo os paulistas resgataram o Monumento às Bandeiras, Getúlio Vargas encomenda, também a Brecheret, um monumento que representasse um elemento nacional, no caso Duque de Caxias24. A obra, que hoje se encontra na Praça Princesa Isabel, tinha como destinação o Largo do Paissandu, mesmo possuindo uma escala colossal, superiores ao monumento dos bandeirantes, que deixava claro o conflito com o seu local de implantação, assim como o recado de superioridade iconólatra das simbologias nacionais perante as regionais.

22. Luís Alves de Lima e Silva (1803-1880), nobre militar brasileiro que tem como mais notória filiação, a liderança do exército brasileiro durante a Guerra do Paraguai (1864-1870), assim como sua condução a vitória.

É ainda necessário entender a população paulista que se formou entre os anos 1930 e 1940 e o papel que as artes plásticas passaram a ter para essa sociedade, como coloca Peccinini: No período que se segue à II Guerra Mundial, com o fim do Estado Novo, o Brasil retomava um processo de democratização. (...). A preocupação predominante era tornar mais moderna a sociedade, sendo necessária a criação de novas instituições e centros da cultura. O estado, no entanto, pouco investia na produção artística nacional, (...), o que vinculou o patrocínio da modernização cultural de São Paulo à iniciativa privada. Neste contexto, a partir dos anos 1940 a elite paulista passou a promover a fundação de associações e instituições incentivadoras da arte moderna nacional e internacional. (...). (PECCININI, 2011, p.165)

Com o IV Centenário de São Paulo que a obra de Brecheret vai de fato ser edificada, não mais como em suas primeiras projeções, de forma mais simplifi-

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Monumento Duque de Caxias. BRECHERET, Victor, 1960. Cartão Postal da década de 1970, São Paulo [24].


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cada e com locação definida e carregada de simbologias – uma vez se localizaria no fim da avenida Pedro Alvares Cabral e começo da avenida Brasil, nos arredores do parque do Ibirapuera. Antes de construída a obra já existia no imaginário da intelectualidade que a encomendara nos anos 1920, porém, é com a peça edificada em 1954 que a figura iconólatra do bandeirante ganha silhueta cívica dentro do espaço material, do espaço urbano, dentro do imaginário popular. Talvez não pela representação física, mas pela imponência da escala da obra e o espaço que a envolve, livre de qualquer edificação ou arborização, dando-lhe destaque imediato que poucos monumentos paulistas tem a oportunidade de ter – como o caso do Monumento a Ramos de Azevedo, hoje esquecido dentro da Cidade Universitária da USP, mas que outrora tivera seu papel de destaque na avenida Tiradentes, de fronte pra o, então, prédio do Liceu de Artes e Ofícios (hoje Pinacoteca do Estado de São Paulo). A obra de arte em questão transmite algo a que a observa, quer seja a sensação da força das 37 figuras que avançam determinadas a vencer obstáculos, que seja, apenas pela admiração por suas dimensões e riqueza de detalhes. (MOURA, 2011, p. 7)

Brecheret, diferente dos teóricos que formularam a figura do bandeirante e abraçando pensamentos que a corrente modernista pussuía (em que ele se inseria), cria uma peça que, mesmo idealizada com uma corrente de pensamento que gerava uma iconólatra falsa da figura bandeirante, é mais plural na forma, abriga índios, mamelucos, negros e brancos, ambos nus. Há, se bem analisado, um humanismo na forma como Brecheret trata a constituição daquelas figuras, porém, é nítido o papel de cada etnia ali presente. Os brancos guiam em seus cavalos, os mamelucos seguem a pé e os negros e índios trabalham, puxam/empurram a canoa, quase que numa composição hierárquica das etnias que compõem o ser paulista, como quem demonstra o local de cada gente.

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Tanto no cartão postal (acima), quanto no selo (abaixo) é nítida a importância que o Monumento às Bandeiras passou a ter para a cidade, sendo elemento de ostentação cultural para os paulista e símbolo mór de sua gente. Selo do Monumento às Bandeiras. BRECHERET, Victor, 1953. Selo comemorativo do aniversário de São Paulo em 1984, São Paulo [26].

Cartão Postal do Monumento às Bandeiras. BRECHERET, Victor, 1953. Cartão postal de São Paulo de fins da década de 1960, São Paulo [25].

A pluralidade étnica que Brecheret usa em sua obra não deixa de ser irônico, uma vez que a própria formulação da figura do bandeirante renega tal fato. Monumento às Bandeiras (página seguinte). BRECHERET, Victor, 1953. Acervo pessoal, São Paulo [27].

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O índio capturado, escravizado e morto aos montes, talves tenha aqui o mais próximo de uma representação em sua memória, todavia o monumento não é dedicado a ele, não leva seu nome, não o representa de fato. Monumento às Bandeiras. BRECHERET, Victor, 1953. Acervo pessoal, São Paulo [28].

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O negro que aqui aparece puxando a canoa é personagem pouco presente na composição do monumento, e assim como o índio tem aqui o mais próximo de uma representação “oficial”, mesmo não havendo qualquer menção à sua presença no monumento, na memória que se pretende elaborar do passado de glória paulista. Monumento às Bandeiras. BRECHERET, Victor, 1953. Acervo pessoal, São Paulo [29].

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Na escultura do Parque do Ibirapuera, Brecheret conservou a ideia original do grupo anônimo, constituído por indígenas, negros, portugueses, mamelucos e, por ele próprio, um imigrante que viveu e constituiu uma carreira no Brasil. O artista inclui no monumento, uma figura que o representou, como um sujeito que, à semelhança dos mamelucos paulistas também buscou alternativas. (MOURA, 2011, p. 5) O Monumento às Bandeiras é até tempos atuais elemento representativo de São Paulo, entretanto, desde 2013 vem surgindo, de forma periódica, a apropriação do espaço ou do “lugar de memória” para manifestações que questionem seu significado e presença. A representatividade idealizada no começo do século XX não mais se aplica e a própria presença da escultura de Brecheret se torna passível de questionamento, uma vez que já se consolidou no espaço urbano, não sendo mais aquele elemento capitalizador de olhares que instiguem a interação com a população enquanto instrumento de ligação com o passado. Resta então uma série de questionamentos que caberia, em certa medida, à arquitetura elucidar. Qual a necessidade de manutenção de ícones formulados no passado e que já estão em processo de revisão histórica? Que pertinência teria a preservação de tal elemento? Como revisar a simbologia que tal ente carrega consigo? Que reativa é possível extrair da ausência de algo que já é consolidado no meio urbano? As intervenções de protesto tem ocorrido com frequência no Monumento de Brecheret, principalmente depois de 2013. Em grande parte são ações que questionam a memória “oficial” construída ao decorrer do século XX, a imagem ao lado é fruto da manifestação Guarani-Kaiowá contra a PEC 2015 [que trasfere a competência de que órgão poderá demarcar terras indígenas]. Monumento às Bandeiras. BRECHERET, Victor, 1953. Acervo Apu Gomes, São Paulo [30].

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e fosse possível definir a relação entre memória e arquitetura em uma simples nomenclatura “lugar” seria, sem dúvidas, a palavra-chave para compreender esta relação. Diversos autores tratam das questões que o lugar estabelece para com a memória e como a arquitetura entra justamente como construtor desse espaço, o que, imediatamente, faz ligação com o termo cunhado por Nora, “locais da memória”, já explorado anteriormente aqui.

Dos teóricos da arquitetura que abordam a temática do lugar e das relações que se estabelecem com o espaço-tempo, Norberg-Schulz é o que melhor aborda tal temática na linha que se pretende abordar aqui. Partindo da análise do conceito de lugar que Schulz traz, propõem-se aqui, para entendimento definitivo do papel da memória e sua relação com a arquitetura, uma análise de três projetos (The Memorial to the Murdered Jews of Europe de Peter Eisenman; Memorial a las Víctimas de la Violencia en México do Gaeta-Springall Arquitectos; e o National September 11th Memorial & Museum do Davis Brody Bond Aedas Architects and Planners) que além de servirem como guia prático do que se discute em teoria aqui, são influencias diretas ou indiretas do projeto que este trabalho almeja produzir enquanto produto.

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Temos nos três projetos citados diferentes abordagens com o lugar e a memória, seja como lembrança factual de eventos passados, seja na criação do espaço e a atribuição de uma solenidade que a arquitetura vem a edificar. Independentemente, ambos os projetos têm como objetivo fundamental o préstimo a memórias pouco agradáveis e que, com exceção do projeto do Davis Brody Bond Aedas Architects and Planners, não fazem parte da memória “oficial” alimentada pelo Estado, são fragmentos de passado sofridos por uma minoria o que faz deste passado retratado em arquitetura algo muito recente e ainda passível de discussão e entendimento. Há ainda nos três projetos um fio condutor que é a emulação da fenomenologia do sentimento enquanto arquitetura, que apreende em formas concretas aquilo que não é tangível em definição, aplicando significado ao espaço. Como coloca Schulz: “Nosso mundo-da-vida cotidiana consiste em ‘fenômenos’ concretos. (...). Mas também compreende fenômenos menos tangíveis, como os sentimentos. (...)” (NORBERG-SCHULZ in: NESBITT, 2006, p. 444); pode-se, então, dizer que tais projetos tem uma leitura aprofundada, quase que completa, das fenomenologias em que estamos inseridos cotidianamente. O significado que o lugar carrega consigo é por vezes o elemento estruturador de sua arquitetura, vejamos o caso do National September 11th Memorial & Museum, localizado em Nova Iorque, no exato local onde ocorreu em 2001 o ato terrorista que derrubou as torres do complexo World Trade Center. O evento foi um divisor cultural, social e político para os Estados Unidos, marcou uma completa transformação nas relações do país com o restante do mundo, assim como as relações em seu próprio território, foi, indiscutivelmente, o evento que mais o abalou o país desde o ataque a Pearl Harbor25. E é até hoje (quase 20 anos após) algo não superado pelo povo americano. Com a carga solene que o lugar carrega, que a paisagem possui dentro da memória coletiva americana, faz do projeto de Davis Brody um elemento que

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25. Ataque japonês a base naval americana de Pearl Harbor em 1941, conhecido como a primeira vez que os Estados Unidos sofreram um ataque inimigo em seu próprio território, marca a entrada americana na Segunda Guerra Mundial (1939-1945) ao lado dos Aliados (França e Reino Unido). O impacto do ataque de 11 de setembro de 2011 na sociedade americana é tão forte, que é até hoje elemento não superado por sua gente e que ainda reverbera nas mais diversas esferas sociais americanas, principáolemente na política externa. O choque do primeiro avião com o World Trade Center. Internet [31]. O ground zero, o destroço que restou no ataque (página seguinte). Internet [32].


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é essencialmente atrelado ao “fenômeno do lugar” e, diferente dos outros dois projetos de estudo, peça que traduz o sentimento já atrelado àquele espaço em arquitetura, em abstração tridimensional do espaço ou, como coloca Schulz, “abstrações a partir da totalidade intuitiva tridimensional da experiencia cotidiana, que podemos chamar de ‘espaço concreto’” (NORBERG-SCHULZ in: NESBITT, 2006, p. 449). O memorial nova-iorquino tem como cerne de seu partido arquitetônico o vazio que o lugar passou a ter depois do ataque de 2001, o que Davis Brody faz é entender a importância que o vazio tem para a memória coletiva do americano e grifar esse elemento tão marcante do lugar, uma vez que “o ambiente é vivido como portador de um significado” (NORBERG-SCHULZ in: NESBITT, 2006, p. 457) e entender esse significado é tarefa sutil que a figura do arquiteto tem de desbravar na projeção do espaço.

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A presença da ausência, por mais contraditória que soe, é o que se almeja alcançar ao deixar destacado o vazio que as antigas torres do World Trade Center ocupavam, assim como o simbolismo dado as quedas d’água (que passam a ocupar o lugar das torres) emulando o sentimento de perda, de fim, de morte, de tristeza. O que aparece como resposta projetual é o entendimento de Davis Brody ao espaço e a carga simbólica que ele carrega, gerando uma harmonia entre lugar, projeto e identidade (daqueles que viveram ou presenciaram o fatídico evento) que não é fácil conseguir e traduzir em formas. O entendimento da representatividade do vazio já está presente desde os primeiros esboços, assim como a relação com o maciço envoltório. Croquis de estudo para o One World Trade Center . Acervo Libeskind Studio, Nova Iorque [33].

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O contraponto da nova torre do One World Trade Center e o vazio deixado pelas antigas torres é claramente um dos pilares do partido de Libeskind em contraponto ao projeto de Davis Brody. Croquis de estudo para o One World Trade Center Acervo Libeskind Studio, Nova Iorque [34].

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O simbolismo do vazio e o preenchimento dele com as quedas d’àgua é de uma poética forte, uma tratativa do espaço como emulador do sentimento daqueles que perderam parentes e amigos no ataque de 2001. A queda contínua d’água é um claro paralelo a tristeza que nunca acabará, que é fato marcado na memória coletiva. O vazio deixado no National September 11th Memorial & Museum . Acervo Libeskind Studio, Nova Iorque [35].

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O National September 11th Memorial & Museum e o One World Trade Center. Acervo Libeskind Studio, Nova Iorque [36].

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Embora haja o vazio, há também o preenchimento simbólico deste com feixes de luz emanando em direção ao céu, num constante lembrar da presença que havia ali, numa manutenção simbólica daqueles elementos que eram destaque no skyline nova-iorquino. O National September 11th Memorial & Museum . Acervo Libeskind Studio, Nova Iorque [37].

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A intervenção proposta por Eisenman não tem uma relação direta de sua intervenção com o lugar em que ela ocupa no espaço, pois o terreno, mesmo carregando seu simbolismo como remanência da ausência do Muro de Berlim26, não tem relação direta com o Holocausto Judeu27. Eisenman produz uma construção do espaço, sem levar em conta as preexistências do entorno, e criando algo que é representativo de uma identidade, de um passado inglório, de um momento do tempo que não é “memorável”. Pode-se dizer que aqui há uma clara distinção do que é “paisagem” e “assentamento” e da relação antagônica que um elemento tem com o outro; pode-se ainda separar a obra de Eisenman entre o “caráter” e o “espaço”, “(...). Enquanto ‘espaço’ indica a organização tridimensional dos elementos que formam um lugar, o ‘caráter’ denota a ‘atmosfera’ geral que é a propriedade mais abrangente de um lugar” (NORBERG-SCHULZ in: NESBITT, 2006, p. 449). As pretenções do projeto são claras e expressivas, não há possibilidade, à primeira vista, de reinterpretação da intervenção. Os volumes maciços de concreto ordenadamente dispostos numa malha labiríntica dão o tom dos sentimentos que se pretende atrelar àquele ambiente, ao ponto de a intervenção por si só ser o elemento que carrega uma simbologia que supera a do lugar, supera sua estrutura. Todavia, como coloca Schulz, a estrutura de um lugar é passível de sofrer alterações com o tempo, a memória não é inerte, as relações com o espaço são transitórias. O lugar de contemplação da perda, da tristeza, do sofrimento judeu inaugurado em 2005 já em dias atuais é ligeiramente descaracterizado de sua proposta original, não são raras as leituras do lugar como um ponto de intervenção artística e não mais como símbolo da memória, como marca concreta de um passado desagradável, mesmo assim o genius loci do lugar permanece, resiste como significado base de sua fundamentação espacial, de sua lógica de existência.

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A estrutura de um lugar não é fixa e eterna. É normal que os lugares mu-

26. Muro que dividia a cidade de Berlin e a Alemanha em Ocidental (capitalista) e oriental (comunista) durante a Guerra Fria (1947-1991) e que quando derrubado em 1989 deixou inúmeros vazios pela cidade, muitos não foram ocupados até hoje como símbolo da divisão que havia no passado. 27. Genocídio cometido durante a Segunda Guerra Mundial (1939-945) pela Alemanha Nazista, sobre o comando de Adolf Hitler; estipula-se que cerca de 6 milhões de judeus tenham sido exterminados, além de outros agrupamentos étnicos e sociais também perseguidor. O marco do Holocausto advém da mecanização metódica do extermínio, dando pela primeira vez o caráter industrial para a morte.

Em linhas gerais, pode-se resumir o Holocausto em “indústria da morte”, dada a engenharia metículosa por trás das mortas de judeus, gays, maçons, ciganos e outros, nos campos de concentração nazista. Eisenman tenta aqui traduzir essa insdustrialização da morte com o impacto que lhe é devido. Judeus em campo de concentração durante o holocausto. Internet [38]. The Memorial to the Murdered Jews of Europe (página seguinte). Internet [39].


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A disposição dos volumes na malha criada por Eisenman é a tradução da interpretação que ele, como judeu, faz do Holocausto, a sobriedade da materialidade (concreto) é a forma como encontra para exprimir a morte de mais de 6 mlhões de pessoas: algo frio, duro, maciço, incolor, pesado e impossível de ignorar. The Memorial to the Murdered Jews of Europe. Internet [40].

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Não há um caminho delimitado, a trama é quase labírintica e tem a intenção de confundir, desnortear quem se atrever à adentrar entre aqueles blocos. Há ainda uma intenção de emular as sensações que os judeus sentiram durante a opressão do governo nazista, principalmente após serem presos e conduzidos à morte. The Memorial to the Murdered Jews of Europe. Internet [41].

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A volumetria dos blocos não é regular, adapta-se ao relevo e conforme se chega as extremidades se esvai até chegar no vazio. O único ponto dentro da malha que isto ocorre é próximo a entrada do arquivo, que é o elemento burocrático de preservação da memória factual, da história documental daquele passado inglório. The Memorial to the Murdered Jews of Europe. Internet [42].

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dem, às vezes muito rapidamente. Isso não significa, porém, que o genius loci necessariamente mude ou se extravie. (...) ter lugar pressupõe que os lugares conservem suas identidades durante determinado período de tempo. (...). Na verdade, proteger e conservar o genius loci implica concretizar sua essência em contexto histórico sempre novos. (...). (NORBERG-SCHULZ in: NESBITT, 2006, p. 454)

Sobre a perda da essência do lugar podemos alinhar à interpretação de Solà-Morales, que atrela a esse fenômeno a museificação do lugar e da arquitetura, onde tudo passa a ser elemento de apropriação do turismo em massa que corrompe o significado do lugar para algo próximo do transitório e efêmero. Jean-Louis Déotte identificou recentemente num livro um fenómeno característico da modernidade: a museificação. Um espectro percorre já não só a Europa, mas o mundo inteiro provocando um fenómeno estético generalizado de desaparecimento dos objectos que, aparentemente reais, se inscrevem neste recinto imaginário de que dispõe a cultura moderna. (...). A arquitectura tão-pouco escapa a este processo. A museificação da arquitectura, também no sentido de Déotte, nos monumentos (faróis da memória) ou nas ruínas (testemunhos de uma genérica passagem do tempo), estão sujeitas ao mesmo processo de exposição que fatalmente produzirá o seu desaparecimento enquanto objectos ligados a situações e significados concretos. Deixarão de ser objectos comuns para entrar, gloriosamente, num universo em que, graças à suspensão de qualquer particularidade, será possível a sua inclusão no empirismo dos valores transhistóricos. (SOLÀ-MORALES, 2016, s/p.)

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O turismo em massa, a banalização de elemento da memória, e da memória em si, atrelado a um uso inconsequente das redes sociais leveram o artista Shapira a criar montagens com fotografias feitas no Memorial em poses que distoavam com o que aquele espaça busca emanar. O resultado é passivel de discussão, mas deixa claro a seu argumento. Edição de fotos contestando a interação popular com elementos de memória (página anterior). Acervo Shaka Shapira, Berlim [43][44]. Edição de fotos contestando a interação popular com elementos de memória. Acervo Shaka Shapira, Berlim [45] [46].

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O memorial mexicano de Gaeta-Springall se aproxima a condição em que a intervenção de Eisenman enfrenta em primeiro plano, todavia o espaço onde o projeto de Gaeta-Springall se insere não tem qualquer carga previa, é elemento inteiramente construído para remeter ao objeto de representação. Localizado dentro de um parque na Cidade do México, o projeto encontra como principal entrave a representação de uma identidade vivenciada por grande parte da população mexicana urbana, a violência. O México hoje é um dos países com maior número de mortes por violência decorrida de confrontos entre narcotraficantes e/ou policiais, fruto de uma desigualdade histórica que sua população é submetida; a violência vivenciada por aquela gente é algo que há tempos o governo vem tentando, desafortunadamente, combater. O lugar da memória entra como símbolo deste combate e como préstimo àquelas vidas perdidas rotineiramente nos confrontos espalhados pelo país. Gaeta-Springall, trabalham aqui o lugar enfatizado os vazios e o peso do fardo de conviver com a morte (aqui na figura das placas de aço), fazem um arranjo que busca trazer o indivíduo a se identificar com aquele lugar, a criar uma empatia pelo espaço ora cheio, ora vazio. (...) os objetos de identificação são propriedades concretas do ambiente e que as pessoas geralmente desenvolvem relações com elas (...). (...). Por isso é importante não só que nossa ambiência possua uma estrutura espacial que facilite a orientação, mas também que esta seja constituída de objetos concretos de identificação. A identidade humana pressupões identidade do lugar. (NORBERG-SCHULZ in: NESBITT, 2006, p. 457)

Como os próprios arquitetos colocam, a identificação com o lugar, com a violência pode ser lida da seguinte maneira:

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Os níveis de violência urbana no México são assustadores, na América Latina como um todo há um número alto de mortes por conta do narcotráfico, mas no México a situação é desesperadora, algo próximo ao ocorrido em Medellin, na Colômbia, durante o domínio de Pablo Escobar ou, para situar, como se o Brasil inteiro estivesse passando os infortunios que o Rio de Janeiro se encontra. A calamida é tamanha que a população recorrentemente organiza manifestações cobrando ao Estado providências. Corpo de vítima do narcotráfico no México. Internet [47]. Manifestação mexicana pelo fim da violência (página seguinte). Internet [48].


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(...). La violencia está sugerida en la propuesta en dos dimensiones: lo inmaterial y lo construido. Por un lado, lo inmaterial se desarrolla en los vacíos creados entre los muros metálicos y los árboles. Estos vacíos evocan la no presencia y la ausencia de las víctimas. Por otro lado, la superficie oxidada o reflejante de los muros nos contiene y nos pierde, nos suma y nos multiplica. (...). (GAETA-SPRINGALL, 2012)

Em suma, o lugar é parte importante da construção ou realce da memória, pode ser e/ou é, em certos casos (principalmente quando não faz parte da memória “oficial”), revisto. O lugar surge ainda como expressão concretizada da arquitetura, uma vez que apreendido a vocação do lugar é consequência direta transmutar a poética do espaço em projeto, em construção arquitetônica.

Aqui o vazio também é destacado, o espaço entre as placas, entre as árvores é simbolismo da ausência. Assim como o aço vem marcar a perda, deixa explícito que não tem volta aos mortos na guerra urbana vivida no México. Memorial a las Víctimas de la Violencia en México. Acervo Gaeta-Springall Architects, Cidade do México [49].

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As placas de aço são dispostas sem ordenamento lógico, deixam ao transeunte a formulação do caminho. Memorial a las Víctimas de la Violencia en México. Acervo Gaeta-Springall Architects, Cidade do México [50].

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A intervenção com o aço é implicita, inerente a quem estiver disposto. E é com cada intervenção, cada mensagem de perda ou desenho deixado ali faz com que o simbolismo do lugar aumente, reconfigure-se e se torne cada vez mais um emblema da memória coletiva dos que resistiram sobre os que sucumbiram diante da violência. Memorial a las Víctimas de la Violencia en México. Acervo Gaeta-Springall Architects, Cidade do México [51].

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Os arredores do Monumento: A leitura do lugar de projeto

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ntendido o papel da memória e do lugar, da construção da identidade e da simbologia do Monumento às Bandeiras para a formulação da gente paulista, chega o momento de ratificar o local de intervenção e somar as últimas motivações que o elegeram como o derradeiro lugar de projeto de ressignificação da memória coletiva construída e o devido préstimo histórico e simbólico à agentes diminuídos durante a formulação do passado paulista. Como já dito o Monumento às Bandeiras se encontra no final na avenida Pedro Alvares Cabral e começo da avenida Brasil, mais especificamente na praça Armando de Sales Oliveira, é lugar simbólico enquanto ícone da invenção do passado. Entretanto a simbologia que o lugar carrega consigo vai além do explicito na nomenclatura das vias que o envolvem, vai além do planejado por aqueles que encomendaram a construção do monumento e vai além daquela iconolatria fabricada. A começar há de se entender o quão solene é aquele pedaço de terra da capital paulista, o seu passado e como a edificação daquele espaço aos moldes do que é hoje é uma síntese (irônica) do que é a real figura do bandeirante e das relações político-sociais que a sociedade paulista – porque não brasileira – trava com os indígenas e negros neste país. Para isso tracemos um breve histórico da região do Ibirapuera. Desde 1916 a área já aparece nos

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Imagem área da área de intervenção. Google Earth [52].


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28. Há de se lembrar aqui que a região que hoje é um dos metros quadrados mais caros do Brasil, até principio do século XX era erma, praticamente interiorana para a pequena mancha urbana da cidade de São Paulo. 29. José Pires do Rio (18801950), foi engenheiro civil e prefeito de São Paulo entre 1926 e 1930. 30. De autoria Frederick Law Olmsted (1822-1903), o Central Park é um dos projetos de paisagismo urbano mais emblemáticos do mundo e um dos catões postais da cidade de Nova Iorque. 31. Francisco Prestes Maia (1896-1965), foi engenheiro civil e arquiteto, além de ser prefeito de São Paulo em duas ocasiões, entre 19381945 e 1961-1965. Deixou como maior legado o Plano de Avenidas que construiu as grandes avenidas de São Paulo sobre o leito dos inúmeros rio e córregos de da cidade, além de ter sido ele o elaborador do primeiro plano de linhas de metrô da cidade. Os mapas que se seguem são fundamentais para entendimento da formação morfológica de São Paulo, assim como a constituição do perímetro do Ibirapuera. Mesmo presente em mapas a região demora até ser efetivamente ocupada pelo poder público, possíblitando a apropriação por outros agrupamentos. Mapa da Cidade de São Paulo [1916] (página anterior). Acervo Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento, São Paulo [53].

mapas municipais com os limites próximos aos atuais, com poucas discrepâncias, uma vez que os loteamentos dos bairros que o circundam ainda não haviam se iniciado. Nos mapas dos 1930/40 o limite do que seria o parque já está claramente delimitado, mas é só nos mapas dos anos 1950 com a efetiva inauguração do parque como elemento comemorativo do IV Centenário de São Paulo que aquela área é enfim ratificada na memória e no traçado urbano paulistano como aquilo que Lynch definiria como “marcos”, um ponto de referência cultural e espacial, um ponto representativo de São Paulo. A área do Ibirapuera sofre algumas pequenas alterações no passo do tempo, mas não são significativas na conjuntura total do espaço. A região em si é mais antiga que a representada nos mapas de 1916, é conhecida desde que os primeiros europeus chegaram ao Piratininga. Ali, no Ybyrapûera, que do tupi-guarani significa “árvore velha”, habitava até princípio do século XX um pequeno aldeamento indígena28, que em 1906 é transferido, tendo as terras que antes pertenciam ao governo do estado, conferidas ao poder municipal. O poder público do município não chega a dar importância para a área até meados dos anos 1920, quando os primeiros esboços da ocupação do Parque do Ibirapuera passam a ser feitos por encomenda do prefeito Pires do Rio29 e nos moldes do Central Park30 nova-iorquino. O projeto é arquivado até os anos 1930/40, mesmo já houvesse sido implantado o viveiro municipal (atual Manequinho Lopes) na área, o que não impede a ocupação da área por populares, dando-se assim a ocupação da área do Ibirapuera com uma das primeiras favelas da cidade, que em seu auge em fins dos anos 1940 contava 186 barracos e 204 famílias, como relata Edilson Veiga para o jornal O Estado de São Paulo. Devido ao crescente interesse de construção do parque, o prefeito Prestes Maia31, ainda nos anos 1930, faz o planejamento de retirada dos moradores da favela, todavia é só com o início da construção do

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Mapa da Cidade de São Paulo [1924]. Acervo Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento, São Paulo [54].

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Mapa da Cidade de São Paulo [1930]. Acervo Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento, São Paulo [55].

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parque, em 1951, que se dá a definitiva expulsão da ocupação que acaba por se transferir para a região do Canindé, se tornando uma das favelas mais conhecidas e emblemáticas de São Paulo – graças a nomes como Maria Carolina de Jesus, com seu Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada, que transcreve com maestria a vida dentro de uma favela paulistana. Assim se caracteriza a formação daquela porção de terra, num constante ato de expulsão de pessoas que ali viviam originalmente para edificar símbolos de uma “elite” e representações de um poder “oficial”. Usando da fala de Lynch: “(...). A cidade é potencialmente o símbolo poderoso de uma sociedade complexa. (...)” (LYNCH, 2011, p. 15), pode-se dizer que essa porção do tecido urbano apreende este caráter de símbolo, de representante de uma camada social.

Mapa da Cidade de São Paulo [1943]. Acervo Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento, São Paulo [56].

Das transformações sofridas com o tempo, uma se sobressai a vista: a remoção do quarto lago existente na margem oposta a avenida Pedro Alvares Cabral em 1968, para abrigar o Palácio 9 de Julho (sede da ALESP) de Adolfo Rúbio Moraes e Fábio Kok de Sá Moreira. A transformação é notável na medida que ela altera a percepção do espaço, adiciona um volume maciço e considerável na paisagem, não por seu gabarito (em relação ao entorno carrega devida proporção espacial), mas pela área horizontal que ocupa (quase que a totalidade do espaço que outrora pertencia ao lago. Além disso tem o seu estadiamento que segrega ainda mais o espaço, priva o parque de uma continuidade para além de seu perímetro atual e diminui ainda mais a presença de áreas verdes que são tão escassas em São Paulo. Além de outras relações que o transeunte poderia ter com a relação entre os lagos das duas margens da avenida Pedro Alvares Cabral. O “lago” é, portanto, um elemento que clama por uma análise com um pouco mais de profundidade e instiga as intenções projetuais. A pertinência de sua existência, assim como a de permitir a perpetuação de uma área considerável de solo para estacionamento em uma época onde se discute a dependência do automóvel são diretrizes que já se mostram claras na análise.

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Uma das primeiras favelas paulistanas no que hoje é uma das regiões mais nobres de São Paulo, o contraste é explicito. Praticamente uma anedota do destino. Favela do Ibirapuera. Acervo Sebastião Assis Pereira, São Paulo [57].

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Substituição do lago por um estacionamento é um claro lembrete da febre automobilística dos anos 1950/60, além de um claro descaso ambiental e para com o próprio paísagismo do parque, é algo que em dias atuais difcilmente seria concebível. Mapa VASP-Cruzeiro do Sul [1954] (página anterior a esquerda). Acervo Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento, São Paulo [59]. Imagens áreas VASP-Cruzeiro do Sul [1954] (página anterior a direita). Acervo Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento, São Paulo [60].

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Palácio 9 de Julho(abaixo). Acervo pessoal, São Paulo [58].

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Outros pontos que valem nota na leitura do lugar é a relação dos vazios que ainda persistem na malha urbana do local, mesmo com a presença de edificações notáveis no espaço, assim como o fato de a área se enquadrar na categoria de tecido urbano consolidado, o que garante uma uniformidade tipológica daquele tecido que é fator considerável em uma cidade como São Paulo, em que se verticaliza mais e mais a cada dia, ainda mais em uma região de alto valor imobiliário como a do Ibirapuera, Jardins, Moema, etc. Além disso se considera no lugar dois pontos que serão parte fundamental do partido, os caminhos, tanto de veículos quando de pedestres. Isso atrelado a análise da grande incidência de tráfego de veículos na região, principalmente nas avenidas e ruas envoltórias ao projeto que vem a funcionar como barreiras urbanas que deverão ser transpostas e encaradas, uma vez que há uma importância explicita nestas vias que não é possível ignorar; além disso, é preciso fazer um entrelace de como transformar tais dificuldades em projeto. Levantado os dados do lugar define-se o perímetro de intervenção do memorial entre as ruas Artur Etzel, Manuel da Nóbrega e Abílio Soares; as avenidas Brasil, Pedro Alvares Cabral, Brigadeiro Luís Antônio, Sargento Mario Kozel Filho; e a praça Arnaldo de Sales Oliveira como elemento central de interveção, numa conjuntura total de 101.800m².

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O vazio de elementos construídos é um marco raro em São Paulo e um elemento significativo para a área e que deve ser preservado e explorado enquanto projeto. Cheios e vazios do espaço de intervenção (página seguinte).

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Um programa e o conceito da forma

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ntes de definir uma forma, de apresentar um projeto em sua totalidade dedicado a memória em revisão, em ressignificação, é preciso estipular um programa. Chega-se então a dúvida de que programa elaborar? De que elementos é constituído o programa de um memorial? Dos inúmeros elementos que se pode estipular para um programa define-se uma abordagem pragmática de sua composição, deixa-se para a forma a construção da plástica que é pertinente ao projeto arquitetônico, não se busca aqui reinventar elementos programáticos.

Partindo de um princípio funcionalista e objetivo elenca-se o projeto em três núcleos: adaptação, que consiste na apropriação do terreno onde se encontra o estacionamento da ALESP (Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo) e a sua devolução ao perímetro do parque, sem que para isso se abra mão do estacionamento, uma vez que ele serve tanto a ALESP quanto ao parque32; ressignificação, em síntese, se constitui no espaço do memorial mediante a uma intervenção no perímetro imediato ao Monumento às Bandeiras, além disso há o acoplamento de uma área expositiva diretamente ligada ao espaço memorial (porém no plano do intangível); por fim a memória que é definida pelo arquivo histórico de elementos ligados aos povos negros e indígenas no Brasil e uma biblioteca em anexo para consulta pública deste material documentado, este espaço possui ainda uma

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32. Durante os dias úteis o estacionamento serve exclusivamente a ALESP e aos finais de semana serve aos fre-quentadores do parque.

O programa se constituí basicamente em três núcleos que se subdividem nos elementos macro programáticos explanados no texto. Cada núcleo é representativo de uma temática que se almeja expressar na conjuntura do Memorial. A progrmática.


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ligação simbólica-administrativa com o Museu Afro-Brasil (dentro do parque), funcionando como uma curadoria e administração tanto do museu, quanto do núcleo de ressignificação. Cada um destes núcleos espaçados entre si é ligado por um desenho paisagístico que delimita os espaços e caminhos e tem como pretensão uma emulação da forma já constituída do Niemeyer para o parque, mas, sem impedir a criação pertinente a uma nova arquitetura. Cabe ainda dizer que dentro deste pragmatismo do programa não se busca definir pormenores projetuais, busca-se sim delimitar os macros elementos programáticos (as funções), sendo implícito a presença dos elementos menores (como banheiro, áreas técnicas, etc) que garantem o funcionamento do todo. E cabe a forma definir como tais elementos se comportarão e se inserirão no espaço.

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O entendimento dos elementos que compõem o espaço é primordial para elaborar os primeiros esboços de projeto e é justamente o que foço aqui, mesmo que seja de uma forma mais generalista. Croqui: entendimento da área. Acervo pessoal, São Paulo.

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A forma surge em primeiro plano da leitura do lugar, das barreiras empíricas ali, como o fato do Monumento às Bandeiras se caracterizar como uma ilha urbana, cercado por vias de alto fluxo e, mesmo assim, ser um considerável ponto de travessia d pedestres que se deslocam do Jardim Paulista, a norte, para acessar o parque, ao sul. Surge assim o primeiro conflito: como transpor e integrar esta ilha urbana? De pronto surgem 3 possiblidades: ignorar e manter a travessia tal qual está atualmente, centrando a intervenção naquele perímetro; transpor por via aérea, ge-rando um choque agressivo para com o Monumento e um alienígena naquele espaço; e a transposição através do subsolo, obrigando a uma expansão do perímetro de proje-to.

Croqui: entendimento da travessia. Acervo pessoal, São Paulo.

Refletido os impactos a terceira alternativa mostrou-se a mais acertada, a mais maleável à plástica, e é assim que surge o primeiro de diversos itens que com-põem o partido arquitetônico. Elabora-se, então, um eixo conector das duas margens da avenida Pedro Alvares Cabral, com uma saída para a praça Armando de Sales Oli-veira (onde se encontra o Monumento às Bandeiras). Estipulado o eixo de ligação, resta o questionamento: Como ocupar projetualmente e possibilitar a ocupação efetiva deste espaço pelos usuários do parque?

O entendimento dos fluxos e da ilha urbana gerada e a necessidade de transposição é elemento primário do partido, é o ponto que estabelece as relações que se darão ao decorrer das demais implantações. Croqui: os fluxos. Acervo pessoal, São Paulo.

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Faz-se aqui um adendo para se explanar sobre a intervenção, falar sobre o Memorial em si. A busca de como ressignificar aquele espaço sem que para isso seja necessário qualquer intervenção direta a obra de Brecheret é o maior questionamento que se apresenta aqui e pode-se afirmar que é o questionamento básico deste trabalho. Tentando elucidar tal conflito, propõe-se uma intervenção que altere a visão sobre a obra, sem que para isso seja necessário demoli-la. Usando de alegorias, sim-bologias e simplificações da forma para alterar a percepção da obra, e do próprio es-paço em que ela se insere. Cria-se assim experimentações de como ocupar o espaço e se relacionar com o Monumento: cobri-lo e apagá-lo da vista urbana gerando um volume novo e com no-vas relações espaciais; em mesma proporção, tendo resulto muito similar ao item an-terior, embora o impacto fosse menor ao campo visual; em meio nível, possibilitando que ele seja visto, só que com uma ótica alterada da atual, uma vez que ele não mais surge em sua completude na paisagem; a baixo nível, torando a intervenção insignifi-cante já que as relações são quase imperceptíveis dentro do espaço; e a extinção do Monumento que resultaria numa relação próxima as duas primeiras possibilidades, só que aqui com um impacto inverso por não ser a relação com o cheio em excesso, mas com o vazio, a ausência. Num primeiro momento das alternativas pensadas opto pela terceira das alternativas elencadas. A ocupação daquela área envoltória (desértica de construções) diminuindo o pro-tagonismo do Monumento agregando a ele uma novo ótica espacial, para isso, gera-se obje-tos que contrabalancem com ele o espaço delimitando, então, o objetivo que se traça para o projeto embrionário do espaço memorial de ressignificação e com isso pretende-se criar um paralelismo na forma e na simbologia como elementos complementares,tendo como norte referencial o projeto do memorial de Eisenman.

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O entendimento prévio é de gerar uma intervenção próxima a que Eisenman faz em Berlim, mas diferente por não se tratar de vítimas que foram mortas num processo organizado e meticuloso, os índios e negros que pereceram no Brasil foram vítimas de um sistema nefasto pela exploração completa do homem pelo homem que mesmo havendo semelhanças ainda carrega consideráveis diferenças em relação ao vivenciado pelo judeus na Europa do século XX. Croqui: o primeiro vislumbre da intervenção. Acervo pessoal, São Paulo.


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Na busca de como ocupar aquele perímetro, encontra-se na obra preexistente o contraponto a ins-piração da forma. É das figuras humanas talhadas por Brecheret que surge o objeto de intervenção. Pri-meiro como um bloco sólido e maciço de granito, onde tal conjunto de blocos é disposto e espaçado pro-porcionalmente pôr todo perímetro de intervenção, tal como Eisenman usa em seu projeto, há aqui uma intenção de demostrar o peso de tantas vidas perdidas, não só pela mão do bandeirante, mas por todo período em que a escravidão, sela de negros, seja de índios, perdurou no Brasil. Todavia, a composição se mostra pesada e faz mais do que simplesmente contrapor o Monumento, ela toma o protagonismo do próprio espaço, mesmo podendo fazer paralelismos com a temática de projeto (há um inversão da figura do Monumento que de representação de figuras históricas opressoras, passa a ser uma figura oprimida ante as fileiras de blocos densas de granito que o rodeiam). O problema de tal forma é que não permite uma maleabilidade plástica e diálogo com o restante do projeto.

É na apreensão das formas de Brecheret que busco a inspiração para a minha intervenção, “bebendo diretamente da fonte” que surge a intenção de emular as etapas sofridas pelos colonizados na América e na África. Croqui: estudos de entendimento das formas de Brecheret e as formas da intervenção. Acervo pessoal, São Paulo.

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Croqui: as peças de intervenção, os momentos da colonização. Acervo pessoal, São Paulo.

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É na simplificação da forma, num refino que a resposta plástica surge. Na escolha de cortar em chapas de aço corten as figuras humanas, em proporção similar as do Monumento, que a arquitetura ganha mais um elemento de formação.

Na disposição dos elementos não há um racionalismo nítido, é parte da intenção de partido, as mortes ocorridas no processo de formação do Brasil, as vidas que foram retiradas pelos bandeirantes não seguiram um pragmatismo, uma racionalidade. Foram fruto de momentos. A crueldade que se deseja emular aqui, além das mortes, é a da retirada de pessoas de sua terra, cultura, de sua gente, numa alusão direta ao que representa o colonialismo em seu cerne. Croqui: estudo do espaço ocupado. Acervo pessoal, São Paulo. Colagem: implantação do Memorial junto ao Monumento às Bandeiras (página seguinte). Acervo pessoal, São Paulo.

As chapas são simbologias explicitas de momentos da colonização sofrida por índios e negros, busca-se aqui uma tradução literal do encontro e desencontro. Cada peça é contida de duas partes, uma com a figura humana, e que representa os povos colonizados, e a que as envolve, representando sua terra. Permite-se aqui um certo lirismo da composição da forma. Cada chapa é disposta em seis formas diferentes, do intacto com seu miolo ainda presente e sem qualquer rasgo em sua forma até a que resta somente o entorno vazio, amassado, envergado como quem força a saída de seu miolo. Espacialmente cada placa se dispõe no espaço de forma não racional, mesmo havendo uma malha, de 2m x 5,10m, não há uma ocupação total do espaço, além do fato de que as aberturas nas chapas permitem a fluidez visual, que o concreto não permitiria, e novas interações óticas para com o Monumento às Bandeiras por esse implantação “labirintica” que permite ao transeunte percusrsos diversos e um inteção direta com as peças.

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Numa tentativa de simplificar ainda mais a intervenção, sem que para isso se abra mão do simbolismo devido, há um abandono de todas as alternativas prévias e, ao mesmo tempo, um reaproveitamento. Parte-se do entorno, da forma como a avenida Brasil tem seu traçado com uma projeção que surge diretamente do Monumento às Bandeiras e o quão simbólico é a avenida que leva o nome do país “nascer” das imagens que representam figuras tão contestáveis. Do traçado faz-se um paralelo com um muro de concreto espeço, cerca de 2,50m de espessura, que guarda o traçado dentro da praça Armando de Sales Oliveira, começando a partir do Monumento, e em primeiro momento a intervenção se resumiria a estes dois muros representando a construção da identidade paulista/brasileira, dois muros pesados, compridos e que conflitam com a obra de Brecheret. Entretanto um refino se mostra necessário para melhor definir o que de fato é aquela intervenção. Quebra-se parte do muro (partindo da extremidade em que chega ao Monumento) propositalmente para que pareça uma demolição interrompida, que suas ferragens fiquem aparentes e usa-se da alegoria de que a construção da gente paulista/brasileira advém da destruição de outros povos. Com esse ponto a percepção espacial já difere da proposta anterior, há aqui uma maior permeabilidade do olhar, uma outra relação com o existente. Mas é na tentativa de se refinar ainda mais as peças que se encontra a derradeira intervenção. Derradeira pois é a que possibilita melhor relação com o projeto, pois gera uma unidade no todo, e uma sutil, e nem por isso menos impactante, simbologia que mais condiz com o abordado até aqui, da construção de uma identidade perante a destruição de outras. Do muro parcialmente destruído subtrai-se pequenos fragmentos semelhantes a códigos de barras que se configuram em pilastras de 2,50x0,40x8,45m espaçadas entre si e que estão encontram “destruídas” conforme se chega aoMonumeto.

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Traçando a reta a partir da avenida Brasl é que surge o derradeiro partido da inrtevenção, fazendo um paralelo com as ideias prévias. Diagramas da composição da forma. Acervo pessoal, São Paulo.


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Um adendo se faz necessário para explicar o elemento mais escultórico do projeto. Atualmente há na baia entre o Monumento e a avenida Brasil um mastro destinado a bandeira do Brasil e que marca o início da avenida. Durante a execução do projeto e o agregar de terrenos a serem intervindos pareceu pertinente discutir a permanência do mastro tal qual está e como e dialoga com a intervenção proposta. Optando por manter a representação do mastro e mesmo assim não descartando a possibilidade de mais um tem de intervenção, propõem-se uma peça escultórica inspirada no trabalho de Nathalie Joiris que fosse uma síntese de tudo que se propõe em projeto. Partindo da figura de um corpo empalado em uma haste que vem a portar uma bandeira, referindo ao bandeirante, que está em relativo destaque no espaço. Indo de encontro a uma simplificação da forma e opção do materiais se transforma aqui corpo em uma placa de concreto destroçada em seu centro, por onde transpassa uma chapa de aço corten e que funciona como o mastro que vem a empunhar a bandeira do Brasil. Além desse ponto de contraste dos materiais e volumes, liga-se o bloco com a chapa por quatro cordas finas, numa tentativa de simular que aquela chapa esguia e frágil sustenta aquele bloco denso de concreto. Além disso, a peça se implanta em um envoltório de britas de diversas gramaturas (assim como as pilastras do memorial) que permitem cer-ta permeabilidade do solo, mas não permite vida vegetal brote ali e ainda dá uma sensação mais densa a aquela intervenção. Assim o novo mastro passa a fazer parte do complexo de intervenção e não a ser um elemento alienígena dialogando diretamente com os outros elementos projetados. Diagramas da composição da forma. Acervo pessoal, São Paulo.

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Aqui surge o elemento que garantirá o efetivo uso do eixo de ligação das duas extremidades da avenida Pedro Alvares Cabral. A ocupação de um espaço expositivo é atrelada ao Memorial, mais um elemento carregado de significados, pois aqui se destina o uso a exposições das culturas negras e indígenas, assim como exposições que denunciem situações passadas por estes povos no Brasil atual. Há aqui um espaço de acolhimento e propagação da arte indígena e negra – lembrando que não há a intenção de retirar do Museus Afro-Brasil o protagonismo de exposições relacionadas a cultura afro-brasileira. O elemento central do espaço é a praça que surge da confluência de fluxos e com a variação de pé-direito busca expressar a sensação do vazio, não se preenche o espaço. A lógica surge em permitir que ele seja exatamente esse elemento livre de qualquer presença material além dele. Nem mesmo a luz é algo que tem alcance direto, vem de forma reflexiva através das paredes e do piso brancos do espaço. O branco do ambiente vem ainda como instrumento que amplia o espaço, gera a sensação de infinidade. Pode-se resumir que aqui há o conflito direto com o que se apresenta na superfícieç o vazio deste

Croqui: estudo da organização espacial da ala de exposições. Acervo pessoal, São Paulo.

Croqui: o comportamento da luz. Acervo pessoal, São Paulo.

O norte para a elaboração deste pátio são, justamente, os eixos de ligação. Essa grande área vem como resposta ao encontro das rotas que o projeto estabelece. Todavia as intenções do uso já está presente no discurso de formação do partido, no entendimento do contraponto entre tangível e intangível. Croqui: estudo da forma da ala de exposições. Acervo pessoal, São Paulo.

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espaço é o contraponto do cheio que existe no térreo do Memorial. Há aqui o protagonismo do vazio, do silencio, do nada.

Croqui: estudo da forma da ala de exposições. Acervo pessoal, São Paulo.

Croqui: estudo de ventilação natural. Acervo pessoal, São Paulo.

Buscando adaptar esse item do programa a nova interpretação, abandona-se a escada de acesso ao eixo de ligação que passa por debaixo da avenida Pedro Alvares Cabral, substituindo-a por duas rampas que emulam uma continuidade da avenida Brasil levando simbolicamente para o interior no espaço memorial que está no subsolo e que continua com seu caráter de um ambiente reflexivo, embora aqui se abra mão da cor branca e opte-se por manter o concreto que o molda nu, bruto e em suas paredes se cunham nomes de povos que sucumbiram no processo colonizador brasileiro. Há ainda de se mostrar que o eixo de ligação se prolonga para dentro do lago do parque, com um caminho sutil que leva o transeunte a submergir do subsolo a nível d’água e vagarosamente subir até o nível da via, numa composição orgânica do espaço e do caminhar. Por fim, a nova disposição programática demanda um rearranjo retirando a área expositiva deste nódulo que se forma abaixo da praça Armando de Sales Oliveira e a deslocando para a quadra onde está a ALESP, embora ainda permaneça enterrada e seja ainda um elemento que faz parte do eixo de ligação, não é mais o ponto central do percurso criado. Antes com forma irregular, agora o pavilhão expositivo faz referência ao pavilhões que Niemeyer cria para o Ibirapuera (embora também se faça leve menção ao MAM de Reidy) com uma planta retangular, sem pilares e envoltas por pórticos de 25,00m enfileirados e com espaçamentos diversos (aqui mais um elemento da unidade de linguagem, pois os pilares dos pórticos fazem referência a peça criada para o memorial, assim como emula sua dispersão espacial). Além disso, o pavilhão tem sua cobertura destinada a circulação e estar, sendo ajardinada e, consequentemente, permitindo uma “continuidade” da área verde envoltória.

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Numa primeira interpretação de projeto há um entendimento incompleto da importância do eixo de ligação, aqui ele surge como elemento que conecta espaços já presentes no subsolo. O acesso se dá somente pelo Monumento. Nesta primeira visita ao projeto há ainda uma intenção de criar um ambiente de reflexão, no que seria o volume sobre o lago, algo que trasporto para o pátio na segunda leitura que faço. Croqui: primeira concepção de projeto. Acervo pessoal, São Paulo.

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O arquivo/biblioteca passa por duas leituras de implantação; a primeira consiste na composição volumétrica que se assemelhasse ao Palácio 9 de Julho, numa tratativa de gerar uma relação direta entre os dois edifícios. Com uma volumetria cúbica e completamente vedada em concreto, pretendia-se, aqui, uma expressão de um elemento pesado e maciço – opressor em certa medida –, o edifício em si ia até o subsolo, sendo ele o elemento de ligação do eixo da avenida Pedro Alvares Cabral. Além disso havia a pretensão de se valer da reconstituição do lago para gerar uma queda d’água que teria papel similar ao que é empregado no memorial nova-iorquino ao 11 de setembro. Havia, portanto, a intenção de emular sensações e ter um diálogo com a preexistência do Palácio 9 de Julho, mesmo que o resultado não tenha sido aquele almejado.

Croqui: estudos da forma inicial do arquivo/biblioteca. Acervo pessoal, São Paulo.

O edifício seria um elemento que marcaria sua presença no espaço, seja pela volumetria avantajada, seja pelas fachadas de concreto maciço, o que geraria um contraponto demasiado agressivo ao Memorial e ao vazio do espaço que o cerca e que se pretende ressaltar. Um conflito demasiado grande que este projeto não se dispos a tratar, uma vez que foge das diretrizes projetuais de ressaltar os vazios dos arredores e a relação do lago que se pretende reimplantar com o lago existente no parque.

A intenção de se dialogar pela forma é algo que abandono de pronto, as contradições ao partido se mostram altas e a forma não chega a agradar-me por completo, além disso há a questão da exequibilidade prática do projeto que se mostra pouco usual. Croqui: estudos da forma inicial do arquivo/biblioteca. Acervo pessoal, São Paulo.

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A segunda volumetria surge da decomposição daquela apresentada anteriormente. Primeiro há a movimentação do edifício para a borda da quadra; em seguida se busca alternativas a presença maciça do volume, das três possibilidades encontradas: no nível da rua, mantendo relação próxima a encontrada anteriormente; a meio nível, já descartada em experimentação anterior; e subsolo. A possibilidade de enterrar o volume se mostra a mais interessante projetualmente, coincide com as pretensões arquitetônicas. O edifício é, então, enterrado, separa-se superficialmente (pois ainda resta uma ligação no subsolo) a área da biblioteca e do arquivo, ao centro passa-se a ter um eixo de circulação que permite o caminho até a entrada da ALESP ser percorrido sem entraves. Em seguida, gira-se os volumes deixando uma amostra de suas volumetrias em nível, tal movimento vem para gerar a ligação espacial com a ALESP, pois é pela abertura gerada entre os volumes cria-se um enquadramento da volumetria da ALESP, resaltando a forma da preexistência conforme o transeunte caminha por entre os volumes do arquivo/biblioteca. Vale ainda ressaltar outro fator que leva ao deslocamento da volumetria do arquivo/biblioteca para a extremidade da quadra. Por necessitar de espaço de carga e descarga periódico, ficaria impossível a concepção anterior do projeto ter tal espaço, uma vez transportado para a rua Manoel da Nobrega fica inerente o acesso para a área de carga e descarga, assim como sua melhor apreensão dentro da forma da arquitetura, atrelando ao estacionamento para restringir ao máximo o acesso.

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Há aqui uma preocupação da adequação ao terreno, ao conforto térmico e luminoso, visto que é um ambiente que demandará cuidado, pois abrigará doumentações e objetos que demandam maiores cuidados, além tentar com a plástica criar elementos que confabulem para o funcionamento esperado do projeto. Croqui: desconstrução do volume do arquivo/biblioteca (ao lado). Acervo pessoal, São Paulo. Croqui: corte de estudo do comportamento da ventilação. Acervo pessoal, São Paulo.


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Croqui: implantação do arquivo/biblioteca dentro do projeto. Acervo pessoal, São Paulo.

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Croqui: estudos da forma atual do projeto. Acervo pessoal, São Paulo. Colagem: implantação do arquivo/biblioteca próximo ao Palácio 9 de Julho (página seguinte). Acervo pessoal, São Paulo.

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Por fim chegamos ao entendimento da área destinada ao estacionamento. O local para o automóvel não foi elemento condicionado previamente no projeto, este entrave é fruto das inquietações que surgem durante a leitura do espaço, pois uma área de aproximadamente 23.480 m² destinada exclusivamente ao estacionamento em uma área que poderia ser devoluta ao parque é, no mínimo, questionável. A importância dada ao automóvel é elemento de debate tanto na arquitetura, quanto no urbanismo da atualidade e, portanto, é um elemento que trago para o projeto. Mesmo após optar por ocupar a área onde hoje há o estacionamento da ALESP, com suas 720 vagas, há um segundo entrave que se apresenta: o fato de que é pertinente a existência do estacionamento, que tem seu uso por parte dos funcionários da ALESP e aos fins de semana pelo próprio parque. Assim, é entendido que a demanda por vagas devem ser consideradas, todavia não é possível abrir mão da ocupação daquele terreno devoluto, então apresento novamente três opções: a permanência inalterada e, consequentemente, sem intervenção; o meio nível, descartado pela topografia que não comportava tal alternativa, visto que o terreno decai entre a rua Padre Manoel da Nóbrega e a ALESP; e o enterro completo. Novamente o enterro do volume se mostrou a mais pertinente projetualmente, já que permitia a continuidade do vazio que se pretender apropriar-se.

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Baseando-se em uma circulação fluida que

O estacionamento surge com a intenção de criar algo fluído, a espiral é o partido primário. Tenta-se de todas as formas adequar forma e conteúdo, mas não se consegue resultado que seja exequível enquanto desenho, tendo muitos pormenores que acabam com a conjuntura do projeto. Croqui: estudos de implantação do estacionamento (página ao lado). Acervo pessoal, São Paulo. Croqui: estudos da forma do estacionamento. Acervo pessoal, São Paulo.


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surge os primeiros esboços da organização espacial do estacionamento, buscando uma circulação sempre espiralada e que possibilitasse o acumulo no máximo de vagas possível no menor número de pavimentos. A forma que vem como resultado não é agradável, não desperta o interesse que se almeja, não se consegue um desenho que a comporte, é de proporções pouco usuais e que inviabilizariam considerável área de projeto. Abandona-se tal resolução da forma, passando à busca de uma que se adeque melhor ao espaço, aqui não há a intenção de ocupar o espaço com o maior número de vagas ou o menor de pavimento. Adotando uma forma retângular e ampliando a área de desenho chega-se numa forma mais agradavel e que comporta as intenções de projeto, estipula-se que serão 460 vagas divididas em três pavimentos intercalados, com quatro núcleos de acesso que surgem em nível como marquises esguias de concreto, que além de cobertura para os acessos do estacionamento são abrigos usuais a quaisquer transeuntes que utilizem o espaço, são elementos arquitetônicos que não se chocam com as preexistências e nem são suficientemente maciços para obstruir o vazio. Embora já aparentasse estar resolvida a questão do estacionamento, durante a investigação de outros modelos elenca-se um que consegue comportar 585 vagas em uma área menor e com três pavimentos, gerando um melhor aproveitamento do espaço, além de permitir ligações a área de carga e descarga do arquivo e do pavilhão. O local destinado ao estacionamento se mantém, mas o acesso se dá pela rua Padre Manoel da Nobrega e a saída pela avenida Sargento Mário Kozel Filho, onde os pontos de acesso funcionam como estrutura e caixa d’água que abastece todo o conjunto. Mantem-se a marquise, diminuindo o número de núcleos para três dispos-tos em sua continuidade e a marquise é mais um ponto de referência a Niemeyer, na medida de cria-se aqui um espaço que pode ser apropriado pelos usuários do espaço, tal qual a peça que se referência.

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Em um dos momentos é na forma mais ortodoxa que me apego para gerar um produto simples e prático. Croqui: composição espacial do estacionamento. Acervo pessoal, São Paulo.


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Enfim se chega a forma dos elementos da arquitetura que se propõe aqui, as formas que aqui se expressam são uma resposta direta das discussões elaboradas neste trabalho, assim como um compilado de referências, conceitos e anseios projetuais. Além dos três núcleos definidos anteriormente, busca-se na plástica trabalhar o conceito do tangível e do intangível, assim como o valor expressivo do cheio e do vazio na conceituação do espaço. Para tanto, dá-se a liberdade de se trabalhar a plástica de forma que vá além do meramente normativo, por mais que haja a presença burocrática das normas, há aqui uma conceituação da arquitetura enquanto resposta a teoria levantada até aqui, além de resposta a indagações que levanto durante a elaborações deste trabalho e respostas a ideologias próprias que anteveem a existência deste caderno. Mesmo se tratando de uma leitura acadêmica, de um esboço projetual, pode-se dizer que aqui estão impressas as diretrizes de uma arquitetura que obtive como resposta as inquietações que me sujeitei. Sei que ainda há muitas lacunas a serem preenchidas e respostas a serem obtidas, muitas inquietações ainda podem surgir, mas aqui está um o entendimento, ou melhor, o esboço de conceitos arquitetônicos. E para melhor análise do que se propõe aqui vide os desenhos que se seguem (os desenhos se encontram nas folhas em anexo), assim como os diagramas e colagens que possibilitam uma melhor apreensão dos espaços projetados e das relações que pretendo aqui.

Diagrama: implantação de todo o complxo memorial. Acervo pessoal, São Paulo.

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Diagrama: os componentes do subsolo. Acervo pessoal, São Paulo.

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190


191


Colagem: a intervenção, o memorial. Acervo pessoal, São Paulo.

192


193


Colagem: acesso pelo parque. Acervo pessoal, São Paulo.

194


195


196


Colagem: o memorial. Acervo pessoal, São Paulo.

197


198


Colagem: ponto nodal do eixo de ligação do memorial. Acervo pessoal, São Paulo.

199


Colagen: um dos acessos do eixo de ligação e do pavilhão. Acervo pessoal, São Paulo.

200


201


Colagem: ponto nodal do eixo de ligação do pavilhão. Acervo pessoal, São Paulo.

202


203


Colagem: ponto nodal do eixo de ligação do pavilhão. Acervo pessoal, São Paulo.

204


205


Colagem: o pavilhão. Acervo pessoal, São Paulo.

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207


Colagem: o pavilhão. Acervo pessoal, São Paulo.

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209


Colagem: o pavilhão. Acervo pessoal, São Paulo.

210


211


Colagem: ponto nodal do eixo de ligação do pavilhão. Acervo pessoal, São Paulo.

212


213


Colagem: ponto nodal do eixo de ligação do pavilhão. Acervo pessoal, São Paulo.

214


215


Colagem: ponto nodal do eixo de ligação do pavilhão com a ALESP. Acervo pessoal, São Paulo.

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218


Colagem: ponto nodal do eixo de ligação do pavilhão. Acervo pessoal, São Paulo.

219


Colagem: ponto nodal do eixo de ligação da biblioteca/acervo/restaurante/estacionamento. Acervo pessoal, São Paulo.

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221


222


Colagem: a praça da biblioteca/acervo e do restaurante. Acervo pessoal, São Paulo.

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224


Colagem: acesso da biblioteca. Acervo pessoal, São Paulo.

225


Colagem: a biblioteca. Acervo pessoal, São Paulo.

226


227


Colagem: a biblioteca. Acervo pessoal, São Paulo.

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229


Colagem: acesso pela rua Padre Manoel da Nóbrega. Acervo pessoal, São Paulo.

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231


Colagem: a marquise. Acervo pessoal, São Paulo.

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