Como os beatles me deixaram na pior

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A. Oliveira



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Salvador, 2 de janeiro de 2015. Aeroporto Internacional Deputado Luís Eduardo Magalhães. Na Bahia, tudo leva o nome do clã de Toninho Malvadeza. Luís Eduardo era um de seus filhos, vitimado por um enfarto em 1998, e hoje, além do aeroporto, batiza um município do estado. O atual prefeito da capital é neto do patriarca morto em 2007. Mais onipresente que os Magalhães, só Ivete. Por que Schin? Porque sim, droga. Mesmo sendo uma porcaria de cerveja, é Ivetinha que tá no reclame, então vô comprar. E é assim mesmo, ou você toma Schin ou bebe água, pois quase não há espaço pros outros

rótulos

(não

muito

melhores,

diga-se

de

passagem)

nos

estabelecimentos daqui. Bahia. Terra de Ivete e do clone loiro dela (que nem baiana é). De Gil e de Caetano. De Gal e de Bethânia. De Carlinhos Brown e de Luiz Caldas. De Timbalada e de Olodum. De Margareth Menezes e de Daniela Mercury. De Dodô & Osmar e de Chiclete Com Banana. De Dorival Caymmi e de Elomar. De João Gilberto e de Tom Zé. De É o Tchan! e de Harmonia do Samba. De Parangolé e de Psirico. Bahia. Terra do Axé e de todas as ondas musicais de todos os verões por todo o Brasil. O último lugar em que um turista esperaria ouvir Beatles.

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8 da manhã. Ainda faltam três horas pro meu voo. Encontro o terminal mais tranquilo do que imaginava. Ninguém quer voltar pra casa. Eu só queria esquecer. Mas não consigo deixar de olhar pro celular, esperando uma mensagem dela. Em vão. Qual o problema em responder a um simples “Feliz Ano-Novo”? A resposta mais provável é que ela não deseja o mesmo pra você, penso comigo. Perambulando pelos corredores, me deparo com uma melodia familiar, tirada de um cavaquinho ou algo parecido. Sigo até a loja de discos de onde vem o tal som e pergunto ao atendente o que é. Ele explica, colocando na


minha frente um box com quatro CDs, que é Hey Jude em versão chorinho. Hamilton de Holanda. Na verdade, o músico toca bandolim. Faz parte de um projeto, idealizado por Renato Russo, chamado Beatles 'N' Choro. Puta que pariu. De fato, minha vontade era de chorar. Saio desolado e olho na vitrine, junto com o tal tributo, outras caixas daqueles putos de Liverpool. Pelo visto, até em Salvador alguém se interessa pela porra dos Beatles. Beatles em choro. Conseguiram piorar algo que, pra mim, já tem sido bastante penoso, por mais que eu tente evitá-los. Mas Beatles são tão onipresentes quanto Ivete e ACM na Bahia.

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Beatles em choro. A gente gosta mesmo de inventar. O Uakti também fez um álbum de versões, brilhantemente intitulado Beatles. Alberto Marsicano, que foi aluno de Ravi Shankar, assim como George Harrison, gravou Raga Beatles, com releituras pra tabla e cítara. E aquele tributo da Rita Lee? Até o filho admitiu que achou uma merda. Ah, sim, o baiano Gil fez uma versão em português de Sgt. Pepper’s pro álbum Magia Tropical, da banda A Cor do Som. Ouvir Beatles por aqui era mesmo uma questão de tempo. A espera de três horas pro embarque parecia que tinha durado o dobro. Entro no avião com a porra da Hey Jude versão chorinho na cabeça. A volta pra São Paulo prometia ser longa.


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Eu não odeio Beatles. Nunca fui fã, mas sempre ouvi numa boa. Tinha até uma coletânea deles, Past Masters, dupla. Já lera alguma coisa também. A História Ilustrada dos Beatles, de Hervé Bourhis, é uma biografia em quadrinhos. Lembranças de Lennon é a versão em livro daquela entrevista pra Rolling Stone, publicada em 1971, já depois do fim da banda. De verdade, eu nunca odiei Beatles. Mas aí levei um fora. De uma garota que adora Beatles.

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Levar um fora, um pé na bunda ou mesmo um par de chifres é algo pelo qual todos vão passar um dia. Porém, o pé na bunda e o chifre resultam de laços que afrouxaram e não foram reatados com o tempo. Antes, no entanto, rolaram coisas bacanas, que serão guardadas na memória. O fora sequer teve um começo. É um relacionamento natimorto, uma expectativa de romance frustrada. Foda é tentar imaginar o porquê. Ficaria de boa se ela simplesmente dissesse que me achou feio e chato pessoalmente. Na verdade, me sentiria um verdadeiro bosta, ainda que resignado. Mas só houve silêncio. Ela sumiu.

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Guardar luto por alguém que morreu já é naturalmente foda. Talvez você nunca se recupere daquela perda, mas sabe que é algo que não tem volta. Agora imagine ficar de luto por alguém que, provavelmente, está melhor do que você. A criatura está bem viva, por isso você acha que sempre haverá uma nova chance. Mesmo que, no fundo, você saiba que você é que está morto pra ela. E nem por isso ela está vestida de preto. O mais provável é que ela esteja ouvindo o “Álbum Branco” neste exato momento. Dizem que os Beatles podem mudar a vida de uma pessoa. Definitivamente mudaram a minha. Pra pior.


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São Paulo, 3 de janeiro. A porra do Paul McCartney é vegetariano. Eu também. Paul era o mais popular dos Beatles. O mais mala também. Agora, quando lembro que ele também é o mais notório não comedor de carne do mundo, quase tenho vontade de correr até a churrascaria mais próxima e traçar a picanha mais sangrenta. Com bastante alho. Porém, meus princípios ainda estão acima do meu coração partido, e decido almoçar num restaurante vegetariano que me indicaram, ali no bairro da Liberdade.

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Apesar de ser adepto há quase 10 anos, ainda me sinto estranho entre meus “pares”. O tal restaurante é mais uma porra de reduto hipster. Será que todos os hipsters são vegetarianos? Os Beatles são os avôs dos hipsters. Por isso, não foi nenhuma surpresa eu ter chegado lá enquanto tocava alguma coisa do Rubber Soul. Não lembro a música, só sei que era do Rubber Soul. Porque é o álbum favorito dela. A comida não ia cair bem.

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5 de janeiro. De volta à labuta. Retornar ao trabalho nem sempre é uma boa forma de esquecer. Principalmente na hora do almoço. Não fiz marmita, então só me resta seguir até um dos dois restaurantes vegetarianos que há perto do escritório. Ainda não decidi em qual deles vou comer, mas, independentemente da escolha, terei de passar em frente ao Palestra Itália, agora Allianz Parque. Foram lá os dois últimos shows de Paul McCartney em São Paulo. Ela foi no primeiro, debaixo daquela chuva que, se tivesse caído no Cantareira, teria acabado com a crise de água na cidade. Segunda-feira sem carne. Adivinhe quem é o maior apoiador do movimento. Puta merda, por que tenho de ficar


lembrando desse cara? Ele é só um ex-beatle. Como se alguém fosse a um show dele esperando ouvir músicas dos Wings. Ou da carreira-solo. Tem gente que até hoje pensa que Live and Let Die é dos Guns N’ Roses. Decido parar numa barraca de cachorro-quente. Me vê um completo, por favor. Sem salsicha.


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São Paulo é uma cidade bem legal. Por mais que eu relute em admitir. Morar no Centro também tem suas vantagens. Poder ir a pé ao trabalho é uma delas. Estar perto de vários pontos culturais bacanas. São Paulo é um lugar pra se conhecer sozinho. Talvez por isso não seja um destino tão procurado quanto Rio ou Salvador. Poucos querem viajar pra encontrar a si mesmos. Desembarquei na capital baiana pra esquecer. Porque era o lugar mais improvável de se escutar Beatles. Exceto na hora da novela. Nosso principal produto pop. Goste ou não. Se você não assiste, alguém do seu convívio assiste. Nem o mais incondicional fã de Sgt. Pepper’s (eu, muito menos) aguenta ouvir Lucy in the Sky with Diamonds, ainda por cima um cover, todo santo dia, mesmo que sejam apenas os acordes iniciais, quando começa e termina cada bloco do folhetim global. Felizmente, fui poupado dessa tortura durante minha estadia de uma semana na Bahia. Minha tia preferia assistir ao Ratinho. Agora estou de volta a São Paulo. E o cara com quem divido o apartamento é noveleiro de carteirinha. O jeito é me trancar no quarto com o fone de ouvido no volume máximo. Tá certo que colocar Mania de Possuir, Estrela Sensual e Hora de Partir o Coração, do Guilherme Arantes – o rei das trilhas de novela – em 'repeat' no mp3 não melhora muito o meu astral.

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Saio pra fazer uma caminhada. Sem o Guilherme Arantes na playlist. Como diria um amigo, a região da Santa Cecília é o Bronx paulistano. Apesar de barra pesada, fica perto de tudo. Já comentei que São Paulo é uma cidade com uma vida cultural intensa? É um tremendo clichê, porém a maioria dos habitantes daqui não se dá conta disso. Eu mesmo nunca entrei no MASP. Acho que é assim em todo lugar. Constatei que quem vive em Salvador quase não vai à praia. Tenho evitado ir ao cinema. Meu primeiro e último encontro


com ela foi num cinema. Sem entrar no mérito do filme ser bom ou ruim. Mas que é plágio de Battle Royale, isso é. Lembrei que está rolando uma exposição da Mafalda. Eu poderia reencontrá-la por lá. Se bem que, provavelmente, ela nem me notaria. A não ser que ela acredite em fantasmas. Afinal, estou partindo do princípio de que estou morto pra ela. Na verdade, ela simplesmente fingiria que não me viu. Mas o que eu ia fazer por lá, afinal? Ficar ouvindo a porra da vitrola que toca Beatles o tempo inteiro? Será que é por isso que ela gosta tanto da Mafalda?


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(flashback) São Paulo, 10 de dezembro de 2014. Imagine que não há Paraíso. Que não há Inferno. Agora imagine que não há mais ela em sua vida. Natal é foda pra muita gente. Ateus, vegetarianos, pessoas que perderam alguém ou estão longe daqueles que amam e agora vão passar a data sozinhas. Então é Natal. Logo quem aquela cantora foi “coverizar”. Mas este Natal é diferente. Porque ela tem fé e acho que isso me afetou. Pro bem ou pro mal. Católica, porém não crismada. Seja lá o que significa isso. Só sei que havia uns convites sobrando no escritório pra um espetáculo beneficente dum tal Padre Suarez ou algum nome assim. Um desses sacerdotes cantores. No Theatro São Pedro, pertinho de casa, e nada pra fazer à noite. Por que não? A fé salvou a vida dela uma vez. Talvez salve a de um incrédulo também.

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Um cético na plateia de um popstar religioso. Como diz aquela canção do Depeche Mode, Deus deve ter um senso de humor doentio. Era o show do padre, mas poderia ser uma encenação de Entre Quatro Paredes. Me sentia no inferno de Sartre. Na companhia de Lennon e George. Será que eu fui o inferno dela quando ela me viu? Faz três dias do nosso encontro. Teria sido Yoko Ono o inferno dos Beatles? Não sei por que me veio esse último pensamento. Antes que eu possa formular qualquer resposta, o tal padre/cantor, após desfilar versões não muito animadas de Romaria e Oh Happy Day, anuncia que o próximo tema é sobre o sonho de todas as pessoas vivendo a vida em paz. Eu continuava sendo perseguido, agora pelo fantasma de outro ex-beatle, mas foi engraçado ouvir um padre cantando sobre imaginar um mundo sem religião. Se existe algum deus, sem dúvida ele tem senso de humor. (fim do flashback)


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De acordo com a teoria da psiquiatra suíça Elisabeth Kübler-Ross (1926-2004), o processo de luto é divido em cinco fases: negação, raiva, negociação, depressão e aceitação. Não necessariamente nessa ordem. Acho que já passei por quase todas. Fui a Salvador pra tentar esquecê-la (negação); a onipresença dos Beatles, me obrigando a lembrar dela o tempo todo, realmente me deixou puto com a situação (raiva); pra tentar seguir adiante, me aproximei da “espiritualidade” indo ao show de um padre pop (negociação); após dois meses, deduzo que ela já me apagou da memória (depressão). Será que estou pronto pra aceitação? Porra, ainda gosto dela pra caralho.

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8 de fevereiro. Da varanda do apartamento eu vejo pessoas transitando pelo Elevado Costa e Silva. Também conhecido como Minhocão. A obra de mobilidade urbana mais horrível de São Paulo. Aos domingos a via é fechada pros carros, transformando-se em área de lazer pros moradores da região. E de outros lugares também. Pessoas passeando com seus cães. Pessoas correndo. Pessoas pedalando. Pessoas levando tombo de skate. Pessoas lendo. Pessoas fazendo piquenique. Pessoas bebendo. Pessoas fumando narguilé. Pessoas praticando voyeurismo, olhando pras janelas dos prédios que são cortados pelo viaduto, na expectativa de um flagrante qualquer. Pessoas pulando o pré-carnaval. Pessoas vivendo. Ou esquecendo da vida. Aceitação talvez seja encontrar a paz mesmo quando não há motivo sequer pra continuar a viver. Não há paz, entretanto, quando a vizinha na varanda ao lado desembesta a cantar o refrão de Let It Go, e você jura que está ouvindo aquilo com a melodia de Let It Be. E ainda são dez e meia da manhã.


Epílogo

Quase 9 da noite. Estou na fila pro show do Anathema na Clash Club. A banda mais ilustre de Liverpool, se alguém não sabe. Chega um torpedo no meu celular. “Oi, só hoje vi sua mensagem. Sim, minha gatinha voltou. Bom AnoNovo pra você também”. Fico feliz, de verdade, pela gatinha. Vou entrando na casa, tenho um show pra conferir.

Trecho da resenha do show publicada no blog Sexo, Cinema e Rock and Roll (www.sexocinemaerockandroll.wordpress.com)

(...) Com um repertório previsível e que nem sempre funcionava tão bem quanto em estúdio, a recepção da audiência era apenas morna. Quase ninguém agitava, mas não dava para saber se era por falta de empolgação ou de espaço, já que na pista todos estavam literalmente espremidos. (...) Na segunda parte do show, a resposta do público foi um pouco melhor. Após Distant Satellites, era a vez das músicas retiradas dos trabalhos mais “antigos” (leia-se do Alternative 4 até A Natural Disaster). Inegavelmente, Deep e One Last Goodbye, faixas do álbum Judgement, foram o ápice da apresentação, bem como A Natural Disaster, do disco homônimo, que contou com uma bela atuação de Lee Douglas. Na medida do possível, Danny e Vincent se esforçavam em ser simpáticos com os brasileiros (contavam piadas, soltavam algumas frases em português, faziam ode à caipirinha, etc). Em um desses momentos “engraçadinhos”, o vocalista anuncia que canção a seguir seria mais “pesada”, daí Danny começa a puxar Shine On You Crazy Diamond (Pink Floyd); enquanto isso, os demais confabulavam, provavelmente sobre qual dancinha Lee Douglas faria no palco, já que todos sabiam que o próximo e derradeiro número seria a unânime Fragile Dreams, do não tão unânime Alternative 4.

(...) As luzes logo se acenderam e os equipamentos começaram a ser desmontados e retirados rapidamente. Os alto-falantes rolavam Twist And Shout (Beatles), e Danny agitava com a plateia ao som dos conterrâneos mais famosos, enquanto Vincent cumprimentava parte dos fãs. Mais um momento descontraído, porém um final um tanto melancólico para um show tecnicamente bom, apesar das limitações da casa, mas extremamente burocrático. Diogo Azzevedo


Durante a transcrição desta história do papel para o computador, os seguintes álbuns rodaram no CD player e no HD: Anathema – Distant Satellites Depeche Mode – The Singles (81-85) Dreamless – All this Sorrow, All these Knives Guilherme Arantes – Despertar Hammock – Departure Songs Kiko Zambianchi – Quadro Vivo Mark Lanegan – No Bells on Sunday Martin Gore – Counterfeit e.p. Ritchie – Vôo de Coração Sinead O'Connor – The Lion and the Cobra

(e um pouco de Beatles também)


Esta obra está registrada na Biblioteca Nacional. Permitida a reprodução para fins não comerciais, desde que citado o autor.

Contato: eachsecond@ymail.com



Eu não odeio Beatles. Nunca fui fã, mas sempre ouvi numa boa. Mas aí levei um fora. De uma garota que adora Beatles.


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