Renan Accioly
Vida Interiorana
Um resgate da cultura sertaneja
Renan Accioly
Vida Interiorana
Um resgate da cultura sertaneja
Vida Interiorana
Um resgate da cultura sertaneja Universidade do Vale do Itajaí – Univali Ceciesa – Comunicação, Turismo e Lazer Curso de Comunicação Social – Habilitação em Jornalismo Disciplina: Projetos Experimentais Trabalho de Conclusão de Curso / 2010 Autor: Renan Accioly Wamser Orientador: Robson Souza dos Santos Diagramação e capa: Diogo Fernandes Honorato Tratamento de imagem: Renan Accioly Fotos da página 13 pertencem ao acervo da Família Melo Imagem do mapa: ht t p : / / w w w. t ra n s p o r te s. g ov. b r / b i t / m a p a s / m a p a s print/estados/bit-pdf/goias.pdf As informações utilizadas nos textos foram obtidas a partir de relatos e entrevistas realizadas com os moradores das fazendas visitadas, bem como da percepção do autor diante de cada fato vivido.
Dedicado à memória de Jones de Araújo e Antônio Accioly
Fazenda Alegrete Fazenda Flecha Dourada Fazenda Palmeira dos Indios Fazenda Ipanema Fazenda Morador
C
Introdução
onsiderado em 2006 o estado mais rico do país pelo IBGE, Goiás tem sua economia baseada na economia, pecuária e indústria. O estado está listado entre os quatro principais produtores de grãos do país, sendo o principal produtor nacional de soja com 41%. Por apresentar uma vegetação cerrana, boa para o cultivo e pecuária, atividades vinculadas à terra são prioritárias. Com uma população estimada de quase 6 milhões de habitantes. Goiás é, assim, o estado mais populoso do CentroOeste brasileiro. Tanto em termos estéticos e sociais quanto em aspectos políticos e econômicos Goiás mantém traços culturais de um Brasil ainda avesso ao das grandes metrópoles. É com a intenção de resgatar uma cultura que se mantém exclusa ao dos grandes centros urbanos que o projeto de Vida Interiorana pretende revelar os costumes, tradições e crenças dos sertanejos residentes nas áreas rurais de Goiás. Através de relatos e imagens o trabalho pretende universalizar as histórias de vida destes moradores e captar de forma única suas visões de mundo.
Fazenda Alegrete Jaraguรก - GO
A
s estradas que levam ao município de Jaraguá, também conhecido como o lar dos faiscadores de ouro, carregam histórias de desbravadores, viajantes e imigrantes em busca de melhores condições de vida. Localizado a 133 quilômetros da capital, o município sempre foi um engodo para quem tem como atividade o trabalho com a terra, bem como a produção agrícola e a pecuária. Atentos a fama que município goiano vinha adquirindo entre moradores do estado vizinho de Minas Gerais, a família de Manoel José de Melo, na época com apenas 10 anos, resolveu abandonar sua cidade natal para arriscar uma vida mais digna no cerrado. 09
Agrupados na carroceria de um pau-de-arara a família Melo partiu de Bom Despacho- MG e atravessou o estado até chegar a Itaberaí , noroeste de Goiás. Por falta de conhecimento foram buscar entre a população o destino de Jaraguá e alguma terra disposta a ser vendida naquela área. Distante 20 quilômetros do centro da cidade conseguiram encontrar um lote de terra inabitado. Cortado por uma cadeia de morros, o vale onde hoje se localiza a Fazenda Alegrete é um paraíso em meio às terras secas que a família estava costumada a viver. Um ribeirão corta a planície, tornando o solo apto para qualquer forma de cultivo, que além de eficiente se destaca pela beleza, que de tão escuro o capim parece negro.
Distante do ribeirão já quase na encosta de um morro a família Melo iniciou a construção da sede. Sem contar com ajuda de pedreiros ou carpinteiros os dois filhos e o pai com as próprias mãos começaram o trabalho para construírem seu lar. Com apenas 12 anos o garoto era responsável pela carpintaria, os irmãos trabalhavam o barro a ser erguida as paredes e o pai já iniciava o cultivo da lavoura de feijão, arroz e milho para terem o que comer. Naquela época cavalos não eram suficiente para o serviço, o que tornava os carros-deboi ferramenta ideal para a extração de árvores, cultivo de grãos e transporte. Gradativamente outros setores da fazenda foram se tornando realidade, tais como o curral, o pasto cercado, a casa do peão e o chiqueiro.
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Longos 57 anos se passaram desde a chegada dos Melo na região e com a modernidade a figura do homem do campo perdeu espaço à vida urbana . Mas para um homem como Seu Manoel, hoje as 69 anos, não há lugar para ele senão no campo. Sem estudo, sabendo apenas assinar seu nome, o velho de rosto franzino e jovialidade de sertanejo persiste em continuar suas atividades diárias assim como fez todos seus antepassados. As mãos cansadas e repleta de calos agora encontram descanso nas mãos de sua esposa e, ás vezes, algum serviço que exija sua presença. Mesmo com a idade avançada possui físico conservado e a determinação de manter tudo em seu devido lugar. Opta por carregar em seus ombros a herança rural,
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mantendo a tradição de um homem do campo do que se mudar para a cidade e abandonar suas raízes e o local em que se considera feliz. Hoje já no terceiro casamento divide a casa com a esposa Acassi e a filha mais nova do último casamento Ana Gláucia. O restante dos filhos de outros casórios, no total de oito, estão espalhados pelo mundo. Os mais velhos estão em sua maioria casados e a mais nova amargura seu peito por ter fugido de casa com um garoto das redondezas. Para um homem como Manoel não há nada mais doído do que perder sua filha para um estranho. Costuma remeter a educação que recebeu de seu pai para cuidar dos seus filhos. O costume do homem como centro da família e mulher como
companheira e responsável pelas funções da casa permanece no modelo patriarcal em que foi criado. A casa antes de barro sofreu um reforço de cimento, mas ainda preserva a estrutura clássica de casas coloniais. Janelas e porta de madeira, alpendre largo com espaço para rede e cadeiras de balanço são posicionadas em direção ao campo para favorecer a conversa familiar de final de tarde. Uma nascente localizada no morro atrás da casa leva água para todo o terreno de Seu Manuel sendo responsável tanto para a louça que as mulheres lavam quanto para matar a sede dos porcos. Tudo muito simples e extremamente aconchegante.
A hospitalidade da família Melo ainda parece deixar tudo mais sossegado e descomplicado. Comida caseira feita com banha de porco e grãos próprios torna cada garfada um dilúvio de sabor. A modernidade também adquiriu espaço na Fazenda Alegrete. Com uma parabólica instalada em uma TV de 20 polegadas as mulheres grudam na frente da tela para acompanhar a novela das nove. Seu Manoel não aprova muito a idéia, mas cede a vontade feminina. Para quem foi criado em berço católico a televisão apenas serve para assistir missa no dia de domingo ou acompanhar os programas de moda de viola com grandes nomes da música caipira.
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O telejornal permanece ausente em sua casa, para o patriarca da família jornal é algo desnecessário que apenas serve para mostrar as coisas ruins que acontecem, “A gente num precisa ver as desgraça do mundo”. A igreja fica a cargo da TV devido ao crescente número de assaltos a fazendas da região, o que o favorece a ficar em casa. O rádio de fita que fica em uma prateleira acima do sofá revive os tempos em que Tião Carreiro & Pardinho, Tonico & Tinoco e Sérgio Reis revelavam ao público os sentimentos, costumes e atividades de um sertanejo. A prateleira ao lado guarda o chapéu usado por seu pai e ao seu lado o que ele costuma utilizar. Na parede e em
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todos os cantos da casa estão espalhadas fotografias de seus filhos, netos, esposas e pais. Quadros pintados da família, que eram costumes de época, também ficam exibidos pela sala. Nos suportes de madeira acima ficam pendurados antigos objetos como a candeia de óleo de mamona, ferro de passar a brasa e instrumentos para fazer queijo. Por fim, cabeça de um boi, daqueles que puxam os carros-de-boi com chifres enormes fica exibida ao topo de uma porta, como se pra assustar os recém-chegados. Tudo isso se complementa como se o ambiente fosse um altar das lembranças, aquilo que Manuel nunca pode esquecer e que levará para o resto da vida.
Atualmente a linhagem dos Melo é uma das poucas famílias vindas de Minas Gerais que ainda residem na região. A maioria se tornou dono de terra que mora na cidade e esporadicamente visita seu pedaço de chão. Mas para o velho isso não é uma preocupação, pois sua filha mais nova vê na terra a vida que pretende levar. Se formou na cidade e não viu a hora de voltar pra fazenda. Aos 20 anos já realiza as funções que eram de seu pai como separar a vaca dos bezerros, buscar gado, montar cavalo, fazer o almoço e cuidar dos animais. O futuro da Fazenda Alegrete e das lembranças de uma vida no campo aparentam perseverar por pelo menos mais uma geração. As raízes sertanejas de Seu Manoel deram frutos.
Fazenda Flecha Dourada Buriti de Goiรกs - GO
uem observa aquele velho Q homem tirando uma pestana após o almoço não acredita
nos desafios de vida que antecederam este momento de serenidade. Natalício de Natal Coutinho, 60 anos, é proprietário da Fazenda Flecha Dourada, localizada próxima ao município de Buriti de Goiás. Região nascida do espírito empreendedor de fazendeiros que doaram lotes para construção de casas à famílias, hoje Buriti, com cerca de 2.850 mil habitantes, é considerada referência na produção de leite no estado de Goiás. Mas, para os pioneiros, dentre eles a família de Natalício, esta realidade demorou a ser alcançada. Quando o avô de Seu Natalício saiu de Goiânia rumo ao interior, a capital ainda não havia se constituído como metrópole.
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Nas margens do extinto córrego Botafogo, hoje uma marginal de concreto, ao invés de carros o que se via eram emas correndo no descampado próximo a sua residência. A capital ainda demoraria a crescer e a família Coutinho não podia esperar. Na década de 1930, a vida difícil levou a família a se mudar para Mossâmedes, município também situado nos contrafortes da Serra Dourada. Foram penosos 145 km desbravados pelas estradas de Goiás usando o carro de boi como ferramenta de transporte e moradia para a esposa e os sete filhos. Na busca de uma condição melhor, os Coutinho não somente lutaram contra as dificuldades de uma mudança e construção de uma nova vida em Mossâmedes, mas com o luto pela morte dos avós de Seu Natalício. Seu pai, na época com 18 anos, teve como obrigação cuidar dos sete irmãos até estarem crescidos. A dificuldade era tanta que a solução foi se mudar para Lajinha, um pequeno município próximo de terras pouco ou quase não habitadas, onde seu irmão possuía alguns alqueires de terra.
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Neste lugar, o matagal ainda dominava e o trabalho de roçar ficou a cargo de seu pai. Este lhe contava que havia tanta onça no local que nas três primeiras noites ficou acordado ouvindo os animais urrarem até o mato ser alastrado. O tempo passou e finalmente a família conquistou um pedaço de terra. Em Lajinha, criaram raízes e viveram por alguns anos até um novo drama assolar os Coutinho. Um dos irmãos de Seu Natalício se afogou no Índio, um córrego que corta toda a região. Às três da tarde do dia anterior o garoto foi dado por perdido e apenas às oito horas do dia seguinte encontraram o corpo. Dado o sofrimento a melhor opção foi se mudar para algum município vizinho. O pai vendeu o terreno porque as lembranças do filho assombravam a rotina dos que lá viviam. Furreca foi o novo destino e lá, finalmente, Seu Natalício encontrou um breve sossego e a esposa com quem passaria o resto de sua vida. Maria das Luzes Sardinha, nascida em Fazenda Nova, foi a mulher com quem se casou e teve três filhos.
Com o terceiro filho, mais um drama apareceu. Cláudio nasceu com dois rins com mal funcionamento e os médicos indicavam 0% de chance de vida para o garoto. Lutando contra os médicos e a falta de recursos para pagar a cirurgia do filho, venderam o maior bem: o seu pedaço de terra. O garoto sem esperanças cresceu e a família Coutinho finalmente encontrou sossego nas terras vizinhas de Buriti de Goiás. O pequeno alqueire de terra não oferecia nenhum suporte aos novos moradores da região. Com três filhos, Maria das Luzes e Natalício Natal não possuíam sequer um cavalo para ajudar nas tarefas diárias da Fazenda Flecha Dourada. Décadas se passaram e o casal conquistou com muito esforço e trabalho algumas melhorias em sua fazenda. Além da expansão do terreno, adquiriu um novo curral, uma
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porção de vacas leiteras e até um resfriador para o leite ser enviado direto a indústria. Dona Maria, atualmente com 58 anos, fica responsável pelas tarefas de casa, como cozinhar, limpar o quintal e cuidar dos animais. Os filhos, longe da roça, mantêm contato com os pais apenas por telefone ou em visitas esporádicas. Marlício e Cláudio moram na capital e possuem empregos na área de serviços, já Rodrigo buscou ares distintos e reside na Inglaterra juntamente com sua esposa. Para Seu Natalício, a terra ainda permanece como fonte de renda e meio de ligação com as raízes de seus antepassados. O dia começa cedo na fazenda e antes do sol sair ele já está no curral com seu peão apartando as vacas e tirando leite, que é o principal sustento da fazenda.
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Lá na sede, Dona Maria prepara o café da manhã. Além do leite dos próprios animais, sobra espaço para doces caseiros e biscoitos de queijo feitos por ela. O trabalho na roça beira até o meio-dia quando o homem sorridente cruza o portão para dentro da casa. Os anos de trabalho parecem não terem consumido o espírito de viver e nem o carinho com que trata sua esposa e qualquer um que visite sua casa. Dona Maria, também sempre alegre, discute com o marido a maioria dos afazeres, como se fiscalizasse que as ações tomadas por seu marido correspondam à necessidade da família. A casa de cimento agora reformada possui piso azulejo, pintura nova, telefone fixo e televisão
via parabólica. O carro de antes, um simpático fusca vinho, foi substituído por uma pick-up que facilita e muito os afazeres no campo. O anoitecer chega e é hora de bater um bom papo no alpendre. A família se reúne junto com as visitas e discute histórias antigas da região, novidades sobre familiares e alguns boates que surgiram. Um conjunto de cadeiras de fio se intercalam entre uma conversa e outra, quando se nota já escureceu e está na hora de entrar. O casal se reúne agora é na frente da televisão para assistir ao noticiário. Consideram importante saber o que acontece no mundo, pois a realidade que vivem é bastante distinta do que ocorre lá fora, ainda mais quando se tem um filho no exterior. 41
Dona Maria também gosta de assistir as novelas da tarde, principalmente as que tratam de temas de época ou vida no campo. Na maioria dos dias o casal sequer se ausenta da fazenda, só quando a necessidade realmente chama. A exceção é quinta-feira à noite quando o compromisso com a fé acontece. Por ausência de uma paróquia próxima a solução encontra foi a novena, que pode ser realizar na casa das pessoas da comunidade. Sem necessitar da presença de um padre, uma pessoa fica responsável por comandar a reunião, que além de cantos ecumênicos e rezas também promove um debate sobre assuntos como política, educação e saúde. As reuniões funcionam também como forma de os vizinhos estabelecerem contato e de-
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gustarem os lanches comunitários oferecidos. A serenidade que se sente ao visitar a Fazenda Flecha Dourada parece camuflar o trabalho de vários anos que Dona Maria e Seu Natalício dedicaram à construção do lugar. O modo de vida simples e acolhedor não mudou e, talvez, esse seja o segredo de uma vida de paz. Mesmo distante dos filhos e ainda usando as mãos como forma de ganhar a vida, o casal se sente feliz com o que conquistaram, mas procuram descanso. A esposa quer mudar para a cidade, Seu Natalício ainda não se rendeu à ideia. Mas, como os filhos não pretendem seguir as raízes sertanejas, o jeito vai ser vender seu cantinho. Assim como fizeram a maioria dos fazendeiros próximos.
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Fazenda Palmeira dos Ă?ndios Furreca - GO
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ocalizada na encosta da Serra Dourada, próxima ao município de Novo Goiás, a Fazenda Palmeira dos Índios hoje permanece vazia em relação às épocas em que outros proprietários detinham a terra. Atualmente, a estância raramente recebe visitas dos atuais donos, pois o antigo patrão faleceu e apenas os caseiros da pequena casa ao lado permanecem vivendo no local. Mantendo-se somente com os litros de leites vendidos pelas poucas vacas, o caseiro, sua esposa e os dois filhos são os responsáveis pelas atividades da fazenda. Porém, essa situação deve se alterar em breve. A família, não satisfeita com a forma como vivem, prepara a mudança para saírem de lá. Sem conceder entrevistas ou qualquer tipo de relato, os familiares apenas autorizaram a realização de fotografias na localidade. 48
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Fazenda Ipanema
Goiandira - GO
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uem antes viveu a caatinga considera tarefa fácil enfrentar o cerrado goiano como tarefa diária. O sol abrasante do Ceará era condição permanente às costas de Antônio Ivanildo do Nascimento, 29 anos. Vivendo em Juazeiro do Norte, a vida não era fácil. Responsável pela mulher e pelo filho tinha por necessidade levar o sustento a sua família. A falta de opções levava a maioria dos moradores da região a se render aos grandes donos de terra, que pagam pouco e exigem um trabalho praticamente escravo. A esposa Sandra resume em poucas palavras as dificuldades daquele tempo: “Não tínhamos 50 reais para pagar o aluguel porque Antônio ganhava apenas 10 por dia e ainda tínhamos que comprar o que comer. Carne mesmo a gente só comia uma vez por mês”. Residindo na casa de sua sogra que o auxiliava com a aposentadoria, Antônio não conseguia arranjar tranquilidade para si mesmo nem para sua família. Lutando em um trabalho que não lhe oferecia futuro e levando uma vida sofrida com a sombra permanente da pobreza e da fome, a solução foi buscar em outras terras uma vida mais digna.
A região escolhida foi a das terras vizinhas ao município de Goiandira, onde a esposa Sandra possuía familiares que também fugiram da seca. Os únicos que ficaram pelo nordeste foram dois irmãos que moram na Bahia. Para comprarem a passagem para o interior de Goiás, a família teve que se desfazer de seus únicos pertences, como geladeira, televisão e móveis, chegando ao novo lar apenas com a roupa do corpo. Localizado no sudeste do estado, distante 300 km da capital, Goiandira possui cerca de 4.700 habitantes e tem como base econômica a agropecuária. Povoado que começou a ser formado com a construção da Estrada de Ferro Goyáz em 1900, ainda em atividade, o município tem na plantação de milho sua maior força. Foi nas redondezas desta cidade pacata, formada basicamente por moradores de áreas rurais, que a família Nascimento encontrou sua nova casa. Responsáveis pela Fazenda Ipanema, a família divide a função de caseiro, que se estende desde a criação de animais, cultivo de grãos, manutenção de áreas específicas, retirada de leite, até a inseminação artificial de vacas.
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Esta última atividade é bem comum aos produtores locais, pois com o auxílio da tecnologia e manuais de instrução o próprio fazendeiro é capaz de realizar o enxerto em vacas e obter filhotes de gado específicos. Nascida em Brejo Santo, no interior do Ceará, Sandra Maria Rafaela do Nascimento, hoje com 21 anos, não esconde a felicidade em falar de sua nova casa. Ao total, a família recebe do patrão Wander cerca de um salário e meio por mês, além de algumas compras de supermercado. Assim que recebeu o primeiro salário, Sandra se espantou. “Quando cheguei aqui e recebi o primeiro acerto nem sabia o que fazer com tanto dinheiro”. Muito diferente do
que acontecia no nordeste, marido, esposa e filho conseguem se alimentar da forma que quiserem e ainda sobra orçamento para comprarem televisão nova, aparelho de DVD e até brinquedos para o filho João Guilherme Rafael do Nascimento, de quatro anos. Criado no interior, João Guilherme tem uma rotina totalmente diferente de moradores urbanos, o garoto não fica sequer um minuto em casa e opta por acompanhar o pai nos afazeres diários. Esquece facilmente dos desenhos animados da televisão para criar suas próprias aventuras no quintal da casa. É comum ver Sandra gritar a todo instante atrás do menino. 71
O garoto corre pelo pasto e curral infernizando a vida dos animais o dia todo, sobra até para o cachorro da família, que faz às vezes de cavalo. Enquanto isso, Antônio Ivanildo exerce as funções da fazenda que se fazem necessárias. Um homem bastante sério e de poucas palavras, mas que realiza as atividades da fazenda como poucos. Conserta porteiras, roça pastos, cuida dos animais e ainda da família. A sombra de um passado amargo não permite descanso. A casa em que moram, de propriedade do patrão, é bem simples. Paredes bastante escurecidas pelo tempo e tacos de madeira gastos pelo chão revelam que não foram os primeiros moradores do lugar. A cozinha segue modelos de arquitetura colonial com fogão a lenha e panelas penduradas em pregos por todo local, tais como as janelas de madeira. A velha panela flameja no fogo e quem não é acostumado acha que o feijão queimou. Impressão essa que passa quando Sandra termina de preparar a comida e oferece o almoço para as visitas. Se não for um almoço, apenas um cafezinho é suficiente para botar o papo em dia e trazer os convidados para dentro.
Quando a noite chega e os trabalhos em casa e no campo já estão finalizados é hora da família descansar. Sandra procura conforto com sua companheira de final de noite: a televisão. Gosta de acompanhar as histórias das novelas e também o noticiário. O jornal tem sua obrigatoriedade, pois segundo ela é necessário saber o que acontece no mundo, além de poder conhecer visualmente alguns lugares que nunca teria privilégio de visitar pessoalmente. O que não aprecia assistir são notícias sobre violência, tragédias e guerras, pois segundo ela, lembranças do passado vêm à tona. “Tem muita gente ruim que não presta nesse mundo”, afirma. Talvez sentimentos pela lembrança da exploração que sofria em Juazeiro do Norte. Em relação à vida que levava no Ceará, a família toda concorda que a situação de hoje é bem melhor e que pretendem viver aqui por um bom tempo. A esposa ainda acredita que possam voltar à cidade natal e comprar uma casa por lá quando tiverem juntado uma poupança. Diz sentir falta da cidade onde cresceu, de coisas como ir a missa todo dia para rezar a “padim ciço”. O marido não concorda, diz que pra lá não volta de jeito nenhum.
O casal, que não chegou a concluir os estudos do ensino fundamental, revela que para quem não é proprietário de terra o que resta é ser empregado, pois estudo é apenas para os filhos dos patrões. Para eles, continuar vivendo lá como empregados seria desesperador. A família segue sua vida. Rotina nada fácil e cansativa, mas com a esperança de um futuro melhor para o filho, inclusive pelo acesso à educação. Os dias se consomem com um alívio no fim de tarde, finalmente todos podem dormir sem a preocupação do que comer no dia seguinte. Antônio toma sua pinga após finalizar o serviço do dia, o sabor antes amargoso torna-se mais suave. O final de semana chega, é hora de comprar umas latinhas de cerveja, cozinhar e tirar uma pestana depois do almoço. O sossego finalmente chegou à casa da família Nascimento. 76
Fazenda Morador
Novo Brasil - GO
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roprietário das terras que compõem a Fazenda Morador, situada próxima a Novo Brasil, Tio Maciste, como era conhecido nas redondezas, fazia questão de arrastar seus netos e filhos a passarem algum tempo em meio a natureza. Além das datas comemorativas e aniversários, toda a família costumava se reunir nas férias colegiais para fazerem fogueiras, andar a cavalos, se banhar no rio Índio, pescar e estabeler qualquer tipo de relação com o campo. Há alguns anos, o velho se foi e com ele a frequência dos familiares também diminuiu. Esporadicamente Maria Lúcia Gonzaga de Castro e Márcia Gonzaga de Castro, suas filhas, percorrem cerca de 200 quilômetros entre a capital e a fazenda, para saberem como anda a situação da casa e dos animais que por lá ficaram.
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Localizada na região do Mato Grosso Goiano, com cerca de quatro mil habitantes, o município de Novo Brasil tem sua economia baseada na pecuária leiteira e na produção de arroz, milho e feijão. Tendo seu pioneirismo fundamentado nas terras férteis banhadas pelos rios Bucaina e Carapuça, a cidade se emancipou ao desmembra-se de Fazenda Nova. Na encosta de um morro, distante 30 quilômetros da cidade, a casa que surge no declive da estrada é a sede da Fazenda Morador. Ao lado, uma casa de menor porte, de estrutura mais moderna é onde vivem José Carlos Freitas e Ireni Alves da Rocha. A sede costuma permanecer fechada e só abre suas portas quando familiares visitam o lugar. Os dois caseiros são os responsáveis pelas atividades realizadas na fazenda, bem como pelo cuidado com os animais e obtenção de lucro por parte do leite. Cerca de 30 vacas compõem o gado, que chegam a gerar 350 litros de leite diariamente. Em épocas passadas, a produção de leite já alcançou números bem maiores.
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O trabalho começa cedo, quando ainda de madrugada Zé Carlo, como é chamado pelos mais íntimos, monta seu cavalo e sai em busca das vacas espalhadas pelo pasto. Os bezerros separados das mães ficam em outro pasto e também são levados ao curral. No momento em que se tira o leite o bezerro fica amarrado à pata da mãe enquanto o vaqueiro com as mãos pressiona as tetas do animal e retira o leite. Apesar da facilidade que a ordenhadeira pode trazer para o trabalho do peão, são poucos os que se arriscam a utilizá-la. Muitos dizem que o uso desta reduz consideravelmente a quantidade de leite. 86
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Atualmente com 39 anos, José Carlos se considera bastante satisfeito com a vida que possui. Peão de muitas outras fazendas, o homem sempre preferiu a vida no campo e quando teve que se mudar para a cidade diz não ter se adaptado. “Até tentei morar na cidade, mas não dá. Minha vida é aqui no mato mesmo. É onde me sinto bem”. Nascido em Araguarina, no Tocantins, o homem, sempre de muito bom humor, lembra que não foram poucos os lugares em que marcou residência. A vida nômade que levou foi a única solução para quem não é dono de terra, mas gosta de trabalhar no campo. Mesmo não criando residência fixa e estabelecendo família, José conseguiu uma parceira com quem já vive há cinco anos na Fazenda Morador.
Ireni não é apenas uma mulher do campo, mas uma figura a parte no que diz respeito ao bom humor e hospitalidade. Nem mesmo as dificuldades que passou na vida parecem ter tirado o ânimo desta mulher à beira dos 55 anos. Dois dos três filhos que teve morreram devido a problemas graves de coração, sendo que um deles veio a falecer quando tinha 20 anos. Assim como seu marido José, migrar de fazenda em fazenda trabalhando como caseira foi a opção que escolheu para seguir a vida. Nascida em Fazenda Nova, município vizinho a Novo Brasil, a vida como caseira trouxe a ela muitas amizades e também algumas desavenças. Na residência anterior a que vive, o maltrato dos seus patrões resultou em sua saída. “Comecei a ser judiada por ter votado em um candidato diferente deles na eleição. Aceito tudo, menos humilhação”.
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Quando o casal ficou sabendo da necessidade de caseiros na fazenda do Velho�������������������������������������� Maciste foram até o local e Ireni se espantou pela casa ser cimentada e não aparentar ter animais domésticos. Para ela não há nada mais importante do que seus animais e não estaria disposta a largar seus cachorros e galinhas por nada. Mas, logo a solução ficou resolvida, para o velho Maciste não haveria problema algum em terem animais já que ele mesmo possuía alguns. Desde aquele dia, cinco anos se passarem e o convívio entre o casal e patrões não mudou. “Nos damos muito bem aqui na fazenda. Nunca sequer tivemos uma discussão em todo esse tempo”, afirma Ireni. Este tempo de estadia talvez se estenda mais alguns anos ou acabe de uma hora para outra. Mas, o que importa para�������������������������������������� o casal são os valores preservados e o respeito que adquirem por aqueles que fornecem uma moradia pacata em troca de um serviço digno. 95
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m lombo de cavalos e a bordo de carros de boi centenas de famílias migraram para regiões inabitadas do cerrado goiano em busca de melhores condições de vida e um pedaço de terra digno para viver. Tendo como alicerce apenas o trabalho braçal e a terra, essas famílias construíram não somente sua casa e seu sustento como também uma cultura carregada de simbolismos, tradições e crenças ímpares. Neste livro, através do fotodocumentarismo, procura-se universalizar as histórias de vida destes sertanejos e promover o resgate cultural de um grupo social esquecido pelo tempo.