Anjo Negro (amostra do livro)

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Sinopse Kenan Russel é novato na escola em plena metade do 3º colegial - um verdadeiro saco, na opinião dele. Mas sua personalidade desaforada e petulância fazem com que não se sinta intimidado pelos olhares que recebe por causa de sua aparência. Já Lucio Corrêa, aluno daquela escola desde o primeiro colegial, é o extremo oposto de Kenan: vive encolhido na esperança que não o notem. O bullying que sofre diariamente ensinou-o qual é seu lugar no mundo.

Kenan vê aí uma boa oportunidade de passar o tempo: quanto mais Lucio se encolhe na cadeira com suas provocações, mais quer incomodá-lo.

Porém, uma pequena atitude de Lucio faz com que Kenan comece a olha-lo de forma diferente...

__________________________________________ ATENÇÃO: Obra proibida para menores de 18 anos por conter palavrões, violência e cenas homoeróticas.


Copyright © 2017 por Lyan K. Levian Todos os direitos deste eBook são reservados Texto, diagramação, capa e revisão por Lyan K. Levian

Esta é uma obra de ficção.

www.lyanklevian.com O presente arquivo é uma amostra do livro“Anjo Negro”, disponível em eBook e impresso.


Dedico este livro aos que acreditam que existe todo um universo alĂŠm das aparĂŞncias e das primeiras impressĂľes. Soltem suas amarras e sejam livres para voar!


“São os pequenos querubins que nos trazem paz de espírito e nos levam a encontrar um sentido no meio dessa merda de vida” ~ Kenan Russel



Segunda-feira

Kenan Russel odiava a escola. Principalmente quando tinha acabado de mudar de cidade e precisava entrar em uma classe nova, no meio do ano, em pleno terceiro colegial. Afinal, o segundo semestre é aquela época em que todos já se conhecem. É quando os grupos de amigos já estão formados, não havendo espaço para mais ninguém nas rodinhas de conversas e fofocas. Naquela manhã ele estava particularmente mal-humorado – mais do que o normal –, mas sabia que se não tivesse a postura certa nesta nova escola poderia ser obrigado a passar por tudo novamente no próximo ano. E ficar mais do que o necessário ali seria, para ele, insuportável. Andando como se o espaço já fosse seu, Kenan adentrou o pátio olhando para todos os pirralhos que teria que suportar durante seis longos meses. Todos ali eram pelo menos três anos mais novos, já que ele havia repetido durante o fundamental. Apesar de sua inteligência acima da média, suas faltas frequentes não deram aos professores outra opção a não ser reprová-lo. — Primeiro dia em um novo inferno… – murmurou ele, já reparando a comoção que causava por ser o estranho do ninho. O que geralmente ocorre quando há novos alunos na área é que eles viram alvo para as piadas sem graça dos veteranos. Quanto mais diferentes fossem, mais motivos para chacotas surgiria.


Mas como o novato era Kenan, as coisas aconteceram de forma diferente. Ao pisar no vasto pátio os alunos não fizeram deboche, mas o encararam como se tivesse um marciano armado adentrando o local. O que realmente chamava a atenção para ele não era o fato de ser um calouro. A verdade era que Kenan agia como ímã para os olhos, não importando aonde fosse. Ele caminhava com uma confiança que não se encontrava nem nos professores dali, e suas roupas eram destoantes dos uniformes pálidos e ajuizados dos alunos. Tanto a calça quanto a camiseta eram pretas e desfiadas. Muitos brincos perfuravam suas orelhas e diversas correntes prateadas com cruzes e caveiras adornavam seu pescoço esguio. De fato, ninguém diria que Kenan era um aluno do terceiro colegial. Alto, de um rosto angelicalmente perigoso que se emoldurava pelos longos cabelos negros presos numa trança folgada. Seus olhos azuis vasculhavam todos os lados, conscientes da inquietação que se espalhava pelos alunos como se ele fosse a chama que adentra um mato seco. Ele ficava extasiado com essa reação em cadeia que causava naqueles que se consideravam corretos demais. Sua passagem causava comoção principalmente nas garotas, que ficavam agitadas, dando risinhos e cochichando entre si. Resolveu brincar um pouco: escolheu uma ao acaso e piscou para ela, dando aquele sorriso – um bem falso, mas ela não percebeu isso. A garota congelou no lugar, e colocou as mãos nas bochechas, escondendo a vermelhidão que se formou. No mesmo instante dois rapazes próximos a ela se levantaram e o encararam feio. Dois machos defendendo aquilo que julgavam ser seu território. “Palhaços previsíveis…”, pensou Kenan, seguindo seu caminho. “Chega a ser chato. Mas não estou a fim de entrar numa briga agora… Nem de conversar com garotas cheirando à frescurite. Tenho a droga de uma classe para encontrar” Ele riu, balançando a cabeça para os lados, e continuou procurando plaquinhas que indicavam os blocos estudantis. Os


olhares ainda o acompanhavam enquanto ele observava um mapa rascunhado a lápis que o levaria até a classe correta – a funcionária que havia desenhado o mapa precisou de todos os documentos dele para acreditar que era de fato o tal aluno transferido. Ao adentrar o corredor indicado ouviu nova chuva de cochichos e, como de costume, ignorou. As pessoas não estavam habituadas a conviver com caras como ele. Um anjo vadio, belo, e angelicalmente… errado. O sinal de início das aulas soou, e ele agradeceu quando os alunos debandaram para suas respectivas classes. Isso facilitava a busca pelo que ele chamou intimamente de “a classe perdida” – na verdade, quem estava perdido era ele. No fim das contas, encontrar o local foi fácil comparado à dificuldade em reunir paciência e saco o suficiente para abrir a porta da sala. Do lado de fora, Kenan encostou o ouvido junto à porta fechada. Era possível ouvir a voz de um professor implorando silêncio aos alunos, que não paravam de tagarelar apesar de o horário letivo já ter começado. Quando entreabriu a porta para espiar, viu que um senhor baixo e grisalho agitava os braços tentando colocar ordem na bagunça, mas era como um maestro apavorado regendo uma orquestra de gralhas mortíferas. Entrou. Ao fechar a porta atrás de si, bateu-a mais do que pretendia. Todos os alunos foram parando de falar gradualmente só para observá-lo. Um a um começaram a encarar a figura nada comum do anjo vestido de preto que havia surgido. — Finalmente me obedeceram – suspirou o professor, acreditando que o silêncio dos alunos era fruto de seu esforço. “Até parece…”, zombou Kenan em pensamento. Todos os alunos o olhavam como se o próprio Lúcifer tivesse surgido das chamas do inferno – e para as garotas era como se ele estivesse de braços abertos e com a fruta da perdição entre os dedos.


— Não acredito! – sussurrou uma delas para a colega ao lado. — Será que este gato é o novo aluno que falaram? — Se for, estamos com sorte, amiga… – segredou a outra em resposta. Mais ao fundo, sentado sozinho em uma das mesas duplas, um garoto de cabelos cor de fogo e com pequenas sardas pontilhadas nas bochechas teve a mesma impressão – a de que o novato era um deleite para os olhos –, mas logo abaixou a cabeça, repreendendo-se com veemência. “O típico garoto problema”, pensou ele, observando Kenan através dos cabelos ruivos. “Por que bem na minha classe?” O novato andou em direção ao professor, que estava ocupado remexendo os livros de história que usaria na aula. Aquele silêncio foi sumindo, dando lugar a cochichos progressivos. Por um lado, Kenan gostava dessa pseudofama que sua aparência causava. Fazia com que os frouxos se mantivessem longe e com que os inimigos se declarassem mais rapidamente – como a dupla de moleques que o haviam encarado há pouco. Mas o lado ruim era ter que aturar o fato de ser o centro das atenções em todos os momentos. Ele não se importava, mas achava enfadonho às vezes. Era cansativo ser Kenan. Sem se dar ao trabalho de dizer uma palavra, ele jogou um envelope na frente do professor, causando-lhe um sobressalto que fez alguns rirem. Quando notou a nova presença, o velho pulou da cadeira, deu um passo para trás e ajustou seu óculos sobre o nariz, olhando para cima como quem admira um arranha-céu. Demorou alguns segundos até que pronunciasse qualquer coisa. — Q-quem é você? – gaguejou, temendo que o estranho lhe apontasse uma arma e fizesse toda a classe refém. Apesar dos belos orbes de safira, o olhar de Kenan não era nada amigável. — Somente alunos e funcionários são permitidos aqui…


Quando o professor viu que ele indicava com o queixo o envelope que tinha jogado sobre a mesa, moveu-se lentamente para abri-lo, e então leu. A expressão de espanto daquele senhor foi evidente ao notar que se tratava de uma permissão da diretoria para que o novo aluno pudesse assistir às aulas com roupas diferentes do uniforme durante os primeiros dias. A funcionária que havia assinado o documento mais cedo – a mesma que fizera o mapa a lápis – tinha exigido no mínimo roupas menos estranhas, mas Kenan garantiu que não tinha nada diferente daquele preto retalhado em seu guardaroupas. E ao ser proibido de usar brincos e colares ele foi contundente ao dizer que “se as garotas podiam usar, ele também poderia”. De fato, não havia na escola nenhuma regra que impedisse isso, então a funcionária precisou engolir o preconceito. — Aluno novo? C-como assim? – oscilou o professor, relendo pelo menos mais duas vezes o aviso em suas mãos para ter certeza de que seus óculos não estavam lhe pregando peças. Sabia que alguém seria transferido, mas não esperava por aquile tipo. Finalmente, conformou-se — Oh, certo, certo. Kenan Russel, não é? Sente-se, e por favor… Ora, apenas vá, vá! Apontou para o meio da sala como quem enxota um marimbondo. O que o professor queria era distância daquele ser. Kenan notou que o velho se esquivava de seu olhar. Riu com o canto da boca. Esse era um dos momentos em que apreciava ser temido: quando os professores o evitavam. Levantando o rosto, divisou rapidamente a sala de aula notando que todas as mesas eram duplas. Não havia uma sequer onde ele pudesse sentar-se sozinho. Encarou de volta os que o miravam de esguelha e ignorou as moças que suspiravam contidas. Identificou com desânimo que só havia um único espaço vago em toda a classe. “E pra piorar, vou ter que sentar ao lado do palerma ruivo!”, pensou, notando que o garoto estava encolhido e cabisbaixo. O professor começou a aula falando sobre a queda do Império


Romano do Ocidente, o que fez com que os alunos gradualmente recuperassem a habilidade de tagarelar alto demais. Acomodando-se naquele único lugar vazio, Kenan depositou seu caderno na mesa com estrondo. O rapaz ao lado retraiu-se. Kenan notou algumas sardas em seu braço, mas não pôde ver seu rosto porque estava todo coberto pelas mechas alaranjadas. Mas certamente estava nervoso, pois torcia um pequeno lápis entre os dedos pálidos e finos. “É isso aí, otário”, pensou Kenan, desejando que sua aura rabugenta o atingisse e mandasse o recado. “Fique quieto no seu canto e não me encha o saco” O garoto parecia o tipo perfeito para se tornar seu alvo de azucrinações nos momentos de tédio, o que significava: quase o tempo todo. Antes que tivesse a chance de falar da postura de cão abandonado dele, alguns alunos no canto oposto da sala começaram a zoar, sobrepondo-se ao falatório que já superava os limites saudáveis de decibéis: — Olha lá, coitado do ruivinho veado! – debochou um com o cabelo raspado, fingindo lamentar o destino do colega — Cuidado aí, Lucinho! Esse novato tá com jeito de quem quer te socar todo! Entendeu? Socar todo! E riu alucinadamente com a própria piada, sendo acompanhado por outros dois, como se fossem três patetas. Percebiase que o primeiro era uma espécie de líder. Kenan não achou que a provocação fosse verdadeiramente para o ruivo – acreditava que fosse direcionada mais para ele próprio, por ser o novato. Limitou-se apenas a olhar para frente, não achando o trio digno de sua atenção. Embora olhasse para os garranchos da lousa, sua visão periférica já tinha identificado de quem se tratava. Notou que seu companheiro de mesa apertou ainda mais o lápis depois da provocação. — Sei não, Victor – grasnou outro do trio, dirigindo-se ao


líder de cabelos raspados, propositalmente alto para ser ouvido pela classe. — É capaz de o ruivinho ajoelhar de boca aberta e implorar pra fazer uma boq… — Fiquem quietos, vocês três! – interrompeu o professor, indo até eles porque não tinha voz enérgica o bastante para ser ouvido de perto da lousa. — Estou tentando ensinar alguma coisa, jovem! Kenan manteve os olhos na lousa, mas estava mais interessado na visão periférica. Franziu as sobrancelhas. “Aquele débil mental ia dizer ‘boquete’?” Espiou o garoto ao seu lado, mas esse apenas se encolhia, copiando freneticamente a matéria da lousa com a cabeça apoiada em uma das mãos, como se psicografasse uma carta assassina. Apenas a ponta de sua orelha era visível naquele mar de mechas em chamas, e essa quase se confundia com seus cabelos, de tão vermelha que estava. Kenan balançou a cabeça discretamente. Tinha raiva daquele tipo. Não entendia como podia haver pessoas tão submissas assim. Submissas ao sistema de ensino, às regras da sociedade, aos provocadores… e sabe-se lá a quê mais. “Mesmo com os caras falando aquelas coisas ele fica calado. Deve ter se acostumado. Mas e se eu o importunasse? O que ele faria?” Contendo-se para não rir sozinho com seus pensamentos, Kenan prestou atenção quando o professor, aparentemente já com a memória fraca, lembrou-se de fazer a chamada quase ao final da aula. Quando o nome “Lucio Corrêa” foi pronunciado, seu tímido companheiro levantou a mão e falou “aqui” num tom quase inaudível, mas com uma voz doce. Era como o tilintar de um fino cristal. O professor já estava habituado com o tom baixo, pois olhou diretamente para ele e anotou sua presença. Durante todas as outras aulas daquela manhã Lucio continuou


silencioso – com exceção às respostas de “aqui” que cada matéria exigia –, e não olhou em nenhum momento para os lados, deixando sempre os cabelos ruivos caírem no rosto, isolando-o do mundo como uma pequena cortina que impede que o público entreveja os atores sem suas fantasias. Antes daquele dia ele só precisava evitar olhar para o lado em que Victor e seus dois capangas se sentavam, mas agora havia aquele novo rapaz colado à sua esquerda. Lucio só tinha colocado os olhos em Kenan no momento em que este havia chegado diante da classe com o envelope de permissão. A primeira conclusão a que havia chegado ao ver aquelas roupas desleixadas e os diversos piercings e correntes era a de que deveria manter distância. A segunda conclusão foi a de que o novato se parecia com algo divinamente belo, mas venenoso – o que apenas reforçava a primeira conclusão. Naquele momento Lucio estava remoendo um ódio de si mesmo por ter optado sentar-se sozinho desde o início do ano. Ele cavara sua cova ao transformar aquela cadeira vaga na única em que aquele ser das trevas poderia ter escolhido. “Mas, ao mesmo tempo”, pensou Lucio ao aspirar o ar ao seu redor, “nunca imaginei que um tipo desses pudesse ter um perfume tão bom…” Quando se deu conta deste pensamento Lucio afundou a caneta no papel, quase rasgando-o, tamanha era a raiva que sentiu ao perceber o pensamento clandestino. Era ridículo, doentio. Era errado. As horas passaram muito lentamente, e Kenan estava começando a se entediar. Fez um esforço sobre-humano para não ir pessoalmente calar a boca de uma aluna bajuladora que respondia corretamente a t-o-d-a-s as perguntas que os professores faziam. Fizera uma promessa a si mesmo de que naqueles primeiros dias apenas observaria o terreno, sem causar desordem. Mas com aquela garota as coisas estavam difíceis. A cada elogio que recebia dos


professores ela o olhava toda dengosa, na tentativa de impressionar. “Que diabos essa menina tá esperando?”, pensou Kenan, ignorando os olhares que ela lhe lançava. “Que eu comemore? Lesada…” Enquanto isso, Lucio apenas acumulava mais daquela pressão, como uma mola que se tensiona até um ponto em que ninguém sabe quando pode estourar. Evitou olhar para Kenan como se estivesse ao lado da própria Medusa. Não queria virar pedra. “Amanhã vou pedir para que alguém troque de lugar comigo”, pensou enquanto uma professora aproveitava os últimos minutos de aula para deixar exercícios na lousa. “Isto está insuportável. Só a presença dele já é o suficiente para fazer meu estômago doer…” Começou a chacoalhar a perna involuntariamente. — Hey, moleque, isso é irritante! – ralhou Kenan, dando um chute no pé de Lucio. Esse apenas respirou fundo e tentou relaxar, consciente de que aquele cacoete aborrecia a qualquer um. — Ora, ora… Quer dizer que é só eu falar e você obedece? Cara… você é um nojo. Toma aqui, copia aquele garrancho da lousa pra mim. Não tô entendendo porcaria nenhuma daquela letra horrível. A última aula estava quase no final, e antes que Lucio tivesse tempo de avaliar se valia a pena mandá-lo à merda, a garota puxasaco se aproximou saltitante, seguida de mais cinco amigas. Elas estavam com os olhos vidrados no novato mais gato que já tinham visto na vida. A mais bonita delas – exatamente a puxa-saco irritante – aproximou-se insinuante. As outras se apressaram para segui-la, cutucando umas às outras com risinhos e cochichos. — Oi, você é Kenan Russel, não é? – perguntou a garota, quase cantando. — Meu nome é Camila, e sou a representante da classe.


Como ele continuou encarando-a com a expressão mais gélida que conseguiu fazer, ela abaixou-se um pouco, deixando as curvas dos seios ainda mais tentadoras e adquirindo a tática da voz dengosa: — Ah, é que… eu ia dizer que você precisa pegar o conteúdo dos meses anteriores. Como é novato, talvez tenha que colocar algumas coisas em dia. Não vai querer ficar para trás, né? – Camila balançou numa das mãos o caderno que pretendia emprestar, como se fosse o item mais precioso que existisse. — Conteúdo atrasado… era tudo o que eu mais queria! – ironizou Kenan, bufando em seguida. — Mas que merda. “A quê mais eu preciso me submeter para terminar de uma vez essa droga? Só falta a porra de um semestre!”, pensou. Desconcertada por não ver nele a reação que sempre causava nos homens, Camila preparou seu olhar mais tentador e piscou de um jeito que ela sabia fisgar todos aqueles que desejasse. Era sua arma final. Infalível. A única coisa que conseguiu foi irritar Kenan de vez. — Sai da frente. Estou tentando enxergar algo que preste – exigiu ele, mesmo sem copiar nada da lousa. E olhando para o caderno que ela oferecia, continuou: — Eu não preciso dessa coisa. O esquisitinho aqui vai copiar todo o atraso pra mim – explicou, apontado para Lucio. Kenan não sabia se ria da expressão de indignação de Camila e suas amigas pela rejeição, ou do evidente baque de Lucio ao perceber que era dele que estava falando. O garoto virou minimamente a cabeça, só para ter certeza de que entendera direito, mas quando Kenan se inclinou para tentar ver seu rosto ele já tinha voltado a se esconder, debruçando-se no próprio caderno. A mudez das garotas e de Lucio foi quebrada pelo sinal do


fim das aulas e pelo tumulto de debandada dos alunos. Camila deu meia volta, ofendidíssima, e seguiu até a porta acompanhada das outras. Os três trogloditas, que também iam saindo, gritaram algumas coisas para incomodar Lucio, mas não arriscaram chegar perto para uma zoação mais caprichada. Tiveram receio de se aproximar daquele novo indivíduo. Quando eles saíram, Kenan sentou-se de lado na cadeira, ficando de frente para o flanco esquerdo de Lucio. Alguns dos fios negros que não estavam presos pela trança escorregaram por seu rosto, dando-lhe um ar sexy. Lucio congelou, chegando a sentir a respiração do anjo das trevas em sua orelha. Mas o tal anjo estava irritado. — Você deve ter algum tipo de problema! É meio retardado, tem autismo? Por que não reage quando te provocam? Hey, estou falando com você! – resmungou Kenan, dando um cutucão no ombro dele para verificar se estava vivo, ou se tinha falecido ali mesmo, sentado na cadeira. — Você não faz nada? Não responde quando falam de você? Caramba, nem levanta o queixo para mostrar um pouco de dignidade! O que você tem, moleque? Só abaixa esta merda de cabeça e faz o que os outros mandam. Assim não tem nem graça! – Esperou uma reação, mas Lucio apenas ficou parado, apertando sua caneta com força. — O que tem debaixo dessa franja ridícula, hein? Lucio podia ver, com o canto do olho, uma parte do tronco e da cintura de Kenan, bem delineados pela camiseta preta e justa. Uma das pernas dele, metida num jeans escuro e todo rasgado, encostava na sua. Teve curiosidade para levantar o rosto e conhecer de perto os olhos de alguém com um corpo tão chamativo, mas não teve coragem. A obstinação de Lucio em manter a cabeça abaixada estava começando a fazer Kenan passar da irritação para a intriga. Teria um nariz estranho? Olhos murchos e estrábicos? Dentes careados ou em


posições bizarras? Ou isso tudo junto? Ele quase teve pena, mas achou que importunar o garoto até que ele finalmente revidasse poderia ser um jogo interessante para começar a semana. Aquela aproximação estava insuportável para Lucio. Era de suas anotações antigas que ele precisava, não era? Pois bem, então entregaria as folhas necessárias e sairia de perto daquele ser sombrio. Definitivamente não copiaria para ele à mão. — Aqui… – murmurou Lucio, separando cuidadosamente o conteúdo dos meses anteriores, uma matéria de cada vez. — Fique com elas o tempo que preci… — Você é idiota? – retrucou Kenan, esquecendo-se completamente do plano de virar o rosto do ruivo à força para gargalhar de suas deformidades. — Acha que eu vou ficar copiando esse monte de lixo, página por página? Tire a porra de um xérox! Fechou o caderno em branco com uma pancada na mesa e guardou a caneta no bolso da calça. Já em pé, esbarrou propositalmente nas folhas que Lucio havia empilhado para ele, derrubando-as no chão. Elas se espalharam e saíram totalmente da ordem. — Ops, foi mal – ironizou. — Moleque esquisito… E continuou pisando em várias delas, carimbando a sola de seu tênis nas páginas que antes eram tão limpas e escritas numa caligrafia perfeita. Ele ficou impressionado de como nem isso fez com que Lucio levantasse seu rosto para brigar, ou mesmo para chorar, ou qualquer reação que fosse. Ele apenas manteve-se cabisbaixo. Mas Kenan não notou as mãos do garoto, fechadas em punho sobre os joelhos, levemente trêmulas. Ele não percebeu como a caneta envergava na mão de Lucio, tamanha a força que fazia. Também não percebeu o maxilar que se enrijecia por causa dos dentes cravados. Kenan também não viu as pequenas narinas que se


dilataram para que o ruivo pudesse respirar o mais fundo possível. Kenan apenas conjecturava com base naquilo que Lucio permitia ser observado. — Como um coitado como você conseguiu chegar vivo até o terceiro? Eu pensaria em ficar com pena, mas é difícil. Divirta-se pegando tudo de volta. Espero que tenha colocado números nelas, senão nunca conseguirá colocar todas no lugar outra vez… O novato esfregou o pé um pouco mais numa das páginas para que a sujeira do tênis pegasse melhor. Mas Lucio continuou da mesma forma: nenhum gesto, nenhuma palavra para Kenan. Ele teve vontade de puxar aqueles cabelos avermelhados para trás e rir das lágrimas que acreditava estarem se formando, mas lembrou-se da promessa a si mesmo de não fazer nada do tipo, a promessa de que desta vez terminaria a escola. Kenan saiu da classe dando uma última olhada no garoto-estátua. Era comum que evitassem seu olhar, mas aquele em especial estava deixando-o intrigado. Pessoas introvertidas o incomodavam, mas Lucio tinha algo diferente. Precisava haver um gatilho que o fizesse reagir. Todos tinham. Sozinho na classe, Lucio finalmente voltou os olhos castanhos para a porta. Não havia uma lágrima sequer ali, mas ódio. E isso o consumia. Com um urro contido que não foi ouvido por mais ninguém além de seu coração, chutou a mesa dupla que dividiu com Kenan fazendo-a chocar-se contra a da frente. A caneta em sua mão trincou sem que ele notasse. Por muito pouco não a cravou na jugular do maldito delinquente. Por bem pouco. Lucio arquejava, respirando entre os dentes. “Calma, calma. Você é melhor que isso. Você é melhor que todos eles juntos!”, disse internamente, como uma espécie


de mantra. Ele se lembrou de como a psicóloga pedira para, nestes momentos, respirar de forma cadenciada e visualizar um cenário tranquilo, ignorando os arredores. Era praticamente isso que ele tinha feito durante a manhã toda, mas naquele momento estava difícil. Olhou para as suas páginas espalhadas no chão, e mirou as marcas da sola do tênis de Kenan em várias delas. “E o filho da puta ainda exigiu que eu tirasse xérox pra ele!” Pegou a caneta trincada e terminou de quebrá-la, atirando as metades na parede do fundo, imaginando que atingia em cheio o rosto daquele maldito anjo do inferno. Por que um desgraçado daqueles tinha que ter uma voz tão hipnotizante, mesmo quando só falava merda? Engoliu o orgulho ácido e abaixou-se para pegar as páginas, uma a uma, e reorganizá-las em seu fichário – sim, ele as tinha numerado; e sim, ele havia chegado inteiro até a metade do terceiro ano, mas agora se perguntava se conseguiria aguentar até o final. Precisou usar toda a sua força de vontade para não rasgar cada uma daquelas folhas, antes tão alvas, agora imundas. Repudiava a si mesmo por não conseguir lidar com esse tipo desgraçado de ser humano, mas sabia que se tentasse algo perderia mais do que somente a paciência. E ele não queria morrer. Ainda não. Na praça, perto dali, Kenan relaxava recostado a uma árvore para fumar seu cigarro. Não queria voltar para casa tão cedo. A praça ficava diante da escola, o que dava a ele vista total do portão de saída. Durante os finais de semana era comum que ela recebesse muitos visitantes, mas naquele dia e horário os únicos que a frequentavam eram alunos e transeuntes cortando caminho até seus destinos.


Soltando preguiçosamente a fumaça dos pulmões, Kenan notou que só agora Lucio deixava a escola. Estranhou, olhando para o relógio. Ele havia ficado mais de uma hora enfurnado na classe. Curioso, observou que o pequeno ruivo andava apressadamente enquanto olhava para os próprios pés. Parecia muito com um cão abandonado se esgueirando para não ser atropelado. “E lá vem o coitado novamente. Será que estava até agora chorando na classe? Pfff, eu deveria ter ficado pra ver…” Enquanto levava o cigarro novamente aos lábios, flagrou uma cena que não esperava. Os três rapazes que perturbaram Lucio durante as aulas apareceram por detrás de alguns arbustos da praça. Kenan não os havia visto antes, mesmo estando ali todo esse tempo. Victor, o líder de cabelos raspados, foi o primeiro a entrar no caminho do garoto. — E aí, bichinha? Fez amizade com aquele novato esquisitão? Não tá com medinho que ele descubra seus podres e queira te dar uma surra? Unindo as sobrancelhas, Kenan apurou os ouvidos. Agachouse atrás da árvore para não ser visto. — Me deixa em paz… – pediu Lucio, num autocontrole forçado. — Quero ir logo pra casa. — Ooohh, coitado do bebezinho! Tem que chegar em casa na hora certinha pra mamãe não ficar bravinha, é? – Victor imitava uma voz sonsa enquanto apertava as bochechas de Lucio, que já começava a sentir aquela revolta lancinante acumulando em seu peito. — Ou talvez tenha alguém esperando pra te foder lá, veadinho? — Sai da minha frente, Victor! – retrucou Lucio, tentando livrar-se dos dedos oleosos que apertavam seu rosto. — Você não sabe porra nenhuma sobre mim!


— Sei o suficiente, seu merdinha. E os três riram, dando tapinhas ardidos na cabeça de Lucio, que retraiu os ombros e levantou os braços para tentar se proteger. Kenan apenas observava. Já tinha feito esse tipo de agressão diversas vezes com colegas que considerava lerdos, mas hoje em dia achava os tapinhas na cabeça algo infantil demais – o negócio era importunar no verbo. Por algum motivo, achou que olhar a situação de fora era degradante. Será que ele já tinha sido tão idiota quanto aqueles três? Ignorou a lembrança do pisoteamento das páginas, acreditando que aquilo não poderia ser considerado exatamente uma agressão. Seu olhar se estreitou por trás do arbusto e ele ficou ali, em dúvida se deveria intervir. Enquanto ele não se decidia, o pequeno se defendia dos tapas como podia e acumulava mais da raiva que já tinha transbordado dentro dele há muito tempo. No momento em que Lucio julgou oportuno, cuspiu no rosto de Victor e o empurrou com força, fazendo-o cair com o desequilíbrio. A surpresa do trio foi tão grande que ele teve uma brecha para sair correndo. Nunca tinha reagido aos insultos de Victor. Nunca. Mas naquele dia, com a chegada de Kenan e todos aqueles calafrios e estranhas sensações que repudiava em si mesmo, seu limite havia explodido. Victor ainda limpava o cuspe do rosto quando Lucio se aproximou do ponto de ônibus. Para sua salvação, naquele exato instante havia um que recebia um passageiro. Lucio entrou ofegante, sem se importar com o destino – só o que queria era se livrar dos três naquele momento, e agradeceu por nenhum deles saber onde morava. Se tivesse demorado cinco segundos, teria sido pego. Ignorando as ameaças de morte que ouviu pela janela fechada, respirou fundo. Desejou inutilmente que sua saliva pudesse ser ácida para corroer o rosto de Victor. Ainda eufórico, se acomodou num banco e, enquanto o ônibus fazia uma curva, notou com desagradável surpresa que atrás


de uma árvore, bem ao longe, estava Kenan. Um gelo percorreu sua espinha, e ele não sabia ao certo o porquê. De onde estava, Kenan conseguiu ouvir os três praguejando: “Você está ferrado, veado cretino!”, e “Amanhã você é um cara morto!”. Dando uma última tragada em seu cigarro, ele não pôde deixar de concordar: Lucio de fato estava ferrado. Mas o baixinho tinha acabado de lhe surpreender. Concluiu que Lucio não era indiferente, no fim das contas. Só era meio lento para tomar atitudes. Ou aquela apatia do garoto era apenas com ele? Não sabia o que pensar. Kenan ficou a tarde toda rondando os arredores até que o sol se escondesse no horizonte. Para ele, esse era o momento certo de voltar para casa, pois seus pais já teriam saído, cada um para seus afazeres. A melancólica e dedicada mãe administrava uma casa noturna de drinques enquanto o pai alcoólatra torrava, em botecos e esquinas imundas, o pouco que ela ganhava. Diante de uma porta velha de ferro corroído Kenan tirou um pequeno molho de chaves do bolso, destrancando-a com um estalo. — Lar, azedo lar – ciciou sozinho ao entrar na sala com cheiro de mofo, urina de gato e vômito de bêbado. A angústia pela labuta da mãe e o ódio pelas atitudes do pai o impediam de ficar ali durante o dia. Na maioria das vezes em que voltava para casa mais cedo, aconteciam discussões que só pioravam a vida daquela mulher guerreira a quem ele tanto devia. Na cidade onde morou anteriormente, Kenan aproveitava-se da hospedagem de colegas. Mas ali ainda não tinha ninguém louco o suficiente para aturá-lo por uma tarde inteira.

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Você acabou de ler o primeiro capítulo do livro “Anjo Negro”


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