Mayara Sebinelli Martins TRABALHO FINAL DE GRADUAÇÃO
A construção da imagem urbana através da cultura fílmica A percepção de Barcelona no cinema
ARTE DA CAPA: Illustration 69520422 © Jaka Vukotič Dreamstime.com
A construção da imagem urbana através da cultura fílmica A percepção de Barcelona no cinema
Trabalho Final de Graduação apresentado ao Curso de Arquitetura, Urbanismo e Paisagismo da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) como requisito à obtenção do título de Arquiteta, Urbanista e Paisagista.
Orientadora: Kelly Cristina Magalhães
Ao meu Pai e à Vó Antonia, que sempre me deixaram livre pra buscar meus sonhos e lutaram para que eu alcançasse todos eles. Eu amo vocês. Incondicionalmente.
AGRADECIMENTOS Esse trabalho trouxe aprendizados incomensuráveis e que me mudaram para sempre. Ele se tornou o fim de uma jornada e a motivação de uma nova, ainda cheia de incertezas, mas já repleta de animação e esperança. Nada disso é fruto de uma luta que enfrentei sozinha. Tive - e ainda tenho ao meu lado as melhores pessoas que eu poderia imaginar. Agradeço, primeiramente, à minha Orientadora Profa. Dra. Kelly Cristina Magalhães por aceitar me acompanhar na busca pelas respostas incertas e por compartilhar comigo seu conhecimento infindável e a paixão pela pesquisa. Nunca me esquecerei do carinho. Ao meu pai e irmão por toda paciência, apoio e amor incondicionais. E, também, por segurarem minha mão quando tudo ficava difícil e me tirar boas risadas para deixar tudo mais leve. À minha companheira de vida, Laís Ciampi, que compartilhou comigo todas as dores e alegrias da vida unespiana. Sua presença sempre será lar onde quer que eu vá. Aos meus amigos de curso, em especial a Betun, Jobim, Sust, Carmim e Bia, por todos os bons momentos e aprendizados. Suas presenças me ensinaram mais do que consigo descrever. O mundo é de vocês. Aos meus amigos de Campinas, por sempre serem meu melhor motivo das 3 horas de viagem. E, por fim (mas muitíssimo longe de ser menos importante), a todos da Sequelândia - e agregados - por me acolherem tão bem, me dando uma segunda casa, uma mesa e uma taça de vinho (né, Daniel?) para fazer o TFG sempre que precisei. Em especial ao Danilo por todas as melhores discussões, referências, ideias e noites de filmes (com brigadeiro e pipoca), ao Renato por todo apoio, companhia nas noites viradas, revisões de texto, por acreditar em mim, ser minha fuga nos momentos difíceis e me dar todo o carinho do mundo, ao Daniel, por me obrigar a fazer os cronogramas, cozinhar para mim e me ajudar a esquecer os percalços e ao Funa, por todo o carinho de sempre e por me apresentar a essas pessoas incríveis e tornar tudo isso possível pra mim. Vocês melhoram minha vida todos os dias. Obrigada por tudo.
RESUMO A forma pela qual os seres humanos interagem e constroem o mundo ao seu redor é dada a eles através da cultura. As cidades são construídas primeiramente como ideias e apenas depois materializadas, daí a importância de entender o papel fundamental que a cultura tem sobre a criação da imagem das cidades. Nesse sentido, ressalta-se o cinema como umas das principais ferramentas de construção de pensamentos, ideologias, imaginários e consensos. O presente trabalho tem como objetivo mostrar os meios pelos quais o cinema é usado para a construção do imaginário urbano das cidades, tomando como exemplo o caso de Barcelona, uma cidade que passou de um falido centro industrial a uma das mais importantes Capitais Globais. Para isso, foi realizada uma revisão bibliográfica de livros, artigos e teses que tratam sobre cultura, construção do imaginário urbano e a percepção no cinema que serviu como embasamento para a análise de três filmes que se passam em Barcelona, sendo eles: Vicky Cristina Barcelona (Woody Allen, 2008), O Albergue Espanhol (Cédric Klapisch, 2002) e Tudo sobre minha Mãe (Pedro Almodóvar, 1999). Palavras-chave: imagem da cidade, percepção urbana, cinema, cultura, cultura de massa
ABSTRACT The way humans interact and build the world around them is given to them through culture. Cities are first constructed as ideas and only later materialized, hence the importance of understanding the fundamental role that culture plays in creating cities’ image. In this sense, the cinema stands out as one of the main tools for the construction of thoughts, ideologies, imaginary and consensus. The present paper aims to show the means by which cinema is used to construct the urban imagination of cities, taking as an example Barcelona, a city that went from a failed industrial center to one of the most important Global Capitals. To achieve this, a bibliographical review of books, articles and theses, discussing culture, construction of the urban image and the perception in cinema was done which served as the basis for the analysis of three films that take place in Barcelona: Vicky Cristina Barcelona (Woody Allen, 2008), L’Auberge Espagnole (Cédric Klapisch, 2002) and All About My Mother (Pedro Almodóvar, 1999). Keywords: city image, urban perception, cinema, culture, mass culture
SUMÁRIO
5 introdução
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1. cultura e cidade 11
1.1. cultura
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1.1.1. cultura de massa
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1.2. cidade: paisagem e
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1.2.1. construção da imagem da cidade
imagem
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4. a imagem de barcelona:
5. considerações finais
uma análise fílmica
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4.1. considerações finais das análises
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cidades
imagem da cidade através do cinema
2. o cinema constrói 40
2.1. a percepção no cinema
102 Referências Bibliográficas
3. barcelona: construindo a
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3.1. de cidade industrial
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3.2. o cinema dos anos
a capital global: os jogos olímpicos de 1992
1990/2000 e o cinema espanhol
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introdução
introdução Viver na cidade é uma relação afetivamente complexa. Amamos alguns lugares, odiamos o trânsito, gostamos do anonimato que ela nos dá, mas também nos sentimos sozinhos e perdidos em meio à multidão. Esse ambiente, que é considerado por muitos um ser vivo, desperta em nós as mais diversas reações e sentimentos. Compreender essa relação não é fácil. Afinal, o que é, exatamente, que nos faz amar um lugar e odiar outros? Como é que apreendemos o meio à nossa volta? Como é construída, afinal, a imagem que temos das cidades? Essas questões são complexas, assim como suas respostas. No decorrer deste trabalho, contudo, veremos que essas possuem uma raiz comum: a cultura. A cultura é responsável por construir todos os aspectos de nossas vidas e, portanto, é natural que ela tenha papel fundamental no modo como percebemos a cidades. Foi à luz dessa constatação que esse trabalho foi concebido. Seu objetivo final é buscar entender a forma pela qual o cinema, como meio da cultura de massa, é capaz de construir a imagem da cidade para a população, mudando sua percepção do urbano e criando ou destruindo lugares em suas mentes. Para atingir tal objetivo, o trabalho foi desenvolvido da seguinte forma: primeiramente, foi necessário definir o que é cultura e quais são suas implicações em nosso cotidiano, em nossa construção como seres sociais e como ela molda nossa forma de manipular e compreender o mundo à nossa volta. Em seguida, há uma discussão sobre o que é a paisagem urbana e quais são os recursos físicos, psicológicos e culturais que nos permitem apreendê-las. Para completar o embasamento
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introdução teórico necessário às análises posteriores, tem-se uma exposição sobre as inovações que o cinema traz como arte e quais são os aspectos inerentes a ele que o fazem ser tão psicológica e emocionalmente apelativo, tornando-se a única forma de arte capaz de ser entendida e armazenada pela mente humana como memória. Para corroborar a tese inicial, foi feito um estudo sobre o caso de Barcelona e como a cidade, a fim de sediar os Jogos Olímpicos de 1992, construiu sua imagem como Capital Cultural Global e perpetua as ideias dessa construção através da cultura fílmica, vendendo-as até os dias atuais para todo o mundo e se tornando, assim, uma cidade extremamente relevante no cenário global. Além da contextualização, foram analisados três filmes que têm a cidade como plano de fundo de suas tramas. São eles: Vicky Cristina Barcelona de Woody Allen, O albergue espanhol de Cédric Klapisch e Tudo sobre minha mãe de Pedro Almodóvar. Nessa análise foram verificados quais são os aspectos e recursos que o cinema utiliza para recriar e reforçar constantemente as ideias que Barcelona quer que se tenha sobre ela no senso comum.
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cultura e cidade
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1.1. CULTURA “De tanto construir, disse-me sorrindo, creio ter-me construído a mim mesmo” Eupalinos ou O arquiteto
Nós, seres humanos, somos eternos trabalhos em construção. Construímo-nos a cada dia, hora, minuto e segundo. Somos uma constante mudança. Mudança de opiniões, de hábitos, de crenças. Vivemos sempre no processo de construir aquilo que seremos, o todo, o completo e verdadeiro nós, trabalho que somente acaba com o fim da vida em si. E aí somos, finalmente, uma obra completa e finalizada. Essas constantes mudanças internas refletem naquilo que construímos à nossa volta. Nossas inquietações geram correntes de pensamentos que mudam toda a forma de pensar espaços (em pequenas ou grandes escalas), os materiais que serão utilizados, aquilo que queremos transmitir e sentir com a arquitetura e, também, os espaços urbanos que criamos, que espelham diretamente a inconstância dos seres humanos. Mas o que é que nos constrói e nos molda? Qual é o fator que nos faz ser quem nós realmente somos? A resposta é pequena e aparentemente simples: a cultura. Definir o que é cultura pode parecer, num primeiro momento, uma tarefa relativamente fácil. O conceito está muito claro em nossas mentes, pois somos capazes de compreender seu significado e sabemos empregá-lo em nosso cotidia-
12 cultura e cidade no. Porém, quando damos mais atenção a essa pequena palavra, vemos que, na verdade, não é tão simples assim defini-la. Uma exposição em um museu é obviamente um evento cultural. Um concerto também, assim como uma peça de teatro ou um show. Todos podemos concordar com isso. Mas e quanto a uma gíria, um gesto ou até mesmo nosso gosto pessoal? Eles também são? O que mais pode ser considerado cultura? Apenas as manifestações artísticas institucionalizadas e elitistas podem fazer parte desse conceito? Segundo Santos (1983), “cultura é uma construção histórica, seja como concepção, seja como dimensão do processo social.” Sendo assim, podemos entender que cultura não é algo natural, mas, sim, um “produto coletivo da vida humana” (SANTOS, 1983, p. 45). Percebemos rapidamente por essa definição que cultura é uma produção intrinsecamente humana. Santos (1983) defende, ainda, que cultura é uma parte da dimensão social e estudá-la é analisar as formas que uma sociedade codifica a realidade à sua volta, qual o sentido que essas concepções têm e como elas se relacionam com as forças sociais que movem a sociedade. Chauí (2008) vem reforçar essa ideia de que a cultura é, essencialmente, um produto da capacidade humana de se relacionar com seus iguais quando explica que ela “é a ruptura da adesão imediata à natureza, adesão própria aos animais, e inaugura o mundo humano propriamente dito” (CHAUÍ, 2008, p. 56). Esse rompimento geraria, para Chauí (2008), uma ordem humana (a simbólica) que se trata da “capacidade humana para relacionar-se com o ausente e com o possível por meio da linguagem e do trabalho” (CHAUÍ, 2008, p. 56). Para enten-
cultura e cidade 13 der melhor essa afirmação, é melhor dividi-la em duas partes: a relação por meio da linguagem e pelo meio do trabalho. A questão da linguagem encontra-se bem explicada por White (2009), que diz que o que diferencia o Homem dos outros animais é sua capacidade de simbologizar, ou seja, a competência de “criar, definir e atribuir significados a coisas e acontecimentos, bem como compreender esses significados, que não são sensoriais” (WHITE, 2009, p. 13). Logo, para o autor, cultura é um produto da simbologização e depende diretamente dela, uma ideia que reforça, também, a concepção de Santos (1983), uma vez que a vida coletiva que gera a cultura só é possível pelo poder do homem de simbologizar, que dá origem à linguagem e às convenções que regem e viabilizam essa coletividade. A concepção de simbologização está ligada ao pensamento de Nietzsche (1975), que propõe as leis da linguagem como “as primeiras leis da verdade”. Para ele, o homem só consegue pensar e se relacionar com o mundo e com seus semelhantes pela linguagem, e é sobre ela que toda a sociedade e as relações sociais se estabelecem. Ela surge para poder concluir e fixar a paz entre os homens quando do contrato social - o de Hobbes, no qual o estado natural do Homem seria o de guerra de todos contra todos e que, a fim de obter segurança, seria necessário abrir mão da liberdade individual e entregá-la a um terceiro, que seria o Estado Forte - e, a partir daí, se torna a forma pela qual o Homem se entende e entende o universo em que está inserido. Para Nietzsche (1975), o intelecto humano, portanto, só funciona a partir da transposição de uma excitação nervosa
14 cultura e cidade para um som. Isso acontece através da criação de duas metáforas: a primeira metáfora seria a transformação de uma excitação nervosa em uma imagem, e a segunda metáfora seria a transformação de uma imagem em som. A essa transposição chamamos linguagem. E pode-se retornar aqui ao conceito de Chauí (2008) que trata a cultura como “um movimento de transcendência, que põe a existência como o poder para ultrapassar uma situação dada graças a uma ação dirigida àquilo que está ausente” (CHAUÍ, 2008, p. 56); ou seja, conseguimos transpor situações colocadas a nós através da nossa capacidade de interagir com o que está ausente, e isso é a essência de nossa existência . Conseguimos perceber, assim, o grande peso que a linguagem tem sobre a criação e concepção de cultura. White (2009) se questiona inclusive sobre “como poderia haver qualquer coisa no domínio da organização social humana sem o discurso articulado?” (WHITE, 2009, p. 28). Ele afirma também que a linguística é a área da culturologia mais desenvolvida e não é difícil compreender o motivo: Com o discurso articulado, que é a forma típica de simbologização, o mundo inteiro se tornou classificado, conceitualizado e verbalizado, e as relações entre coisas se estabeleceram com base nessas concepções (WHITE, 2009, p. 26).
Em relação à segunda forma de se relacionar com o ausente, Chauí (2008) explica que entender cultura como trabalho é “tratá-la como trabalho da inteligência, da sensibilidade, da imaginação, da reflexão, da experiência e do debate, e como trabalho no interior do tempo, é pensá-la como instituição social, portanto, determinada pelas condições materiais e histó-
cultura e cidade 15 ricas de sua realização” (CHAUÍ, 2008, p. 65). Chauí (2008) diz também que “o trabalho, como sabemos, é a ação que produz algo até então inexistente, graças à transformação do existente em algo novo” (CHAUÍ, 2008, p. 65). E completa afirmando que “como trabalho, a cultura opera mudanças em nossas experiências imediatas, abre o tempo com o novo, faz emergir o que ainda não foi feito, pensado e dito” (CHAUÍ, 2008, p. 65). É assim, portanto, que a cultura se relaciona com o ausente através do trabalho. Chauí (2008) desenvolve ainda mais essa definição de cultura como trabalho, afirmando que ela significa Compreender que o resultado cultural (a obra) se oferece aos outros sujeitos sociais, se expõe a eles, como algo a ser recebido por eles para fazer parte de sua inteligência, sensibilidade e imaginação e ser retrabalhada pelos receptores, seja por que a interpretam, seja por que uma obra suscita a criação de outras. A exposição das obras culturais lhes é essencial, existem para serem dadas à sensibilidade, percepção, inteligência, reflexão e imaginação dos outros (CHAUÍ, 2008, p. 65)
1.1.1. CULTURA DE MASSA
Assim como é importante compreender o que é a cultura e como ela nos molda, é igualmente relevante entender e definir o que é a cultura de massa e como ela nos afeta cotidianamente. Segundo Santos (1983), quando se pensa em uma so-
16 cultura e cidade ciedade de classes (que são todas as sociedades capitalistas industrializadas) é necessário entender que nesse tipo de arranjo social as instituições dominantes precisam obter o controle das massas a fim de criar um mercado, fazê-las produzir e se conformar com suas posições. Para que esse controle da população aconteça, foi necessário criar uma forma de homogeneização das diferentes populações que constituem uma mesma sociedade, e assim surgiu a cultura de massa. As ferramentas utilizadas para esse fim fazem parte da chamada Indústria Cultural e são o rádio, a televisão, a imprensa, o cinema (e aqui acrescento, pessoalmente, as produções de séries na atualidade). Santos (1983), inclusive, diz que “esses meios de comunicação são elementos fundamentais da própria organização social, e estão sem dúvida associados ao exercício do poder e à ordenação da vida coletiva” (SANTOS, 1983, p. 69). Chauí (2008) explica como opera a Indústria Cultural e porque ela se torna tão efetiva no controle da população. Em primeiro lugar, ela separa todos os produtos culturais em categorias que sobre determinam “a divisão social acrescentando-lhe a divisão entre elite ‘culta’ e massa ‘inculta’” (CHAUÍ, 2008, p. 59) em vez de garantir a todos os mesmos direitos de acesso à cultura. Em seguida, “cria a ilusão de que todos têm acesso aos mesmos bens culturais, cada um escolhendo livremente o que deseja, como o consumidor num supermercado” (CHAUÍ, 2008, p. 59); porém tudo que chega a cada tipo de público já
cultura e cidade 17 foi pré-selecionado pelas empresas de divulgação cultural, e é assim que um mesmo fato pode se transformar em cinco ou seis manchetes diferentes, dependendo do público que terá acesso a cada um desses veículos. Em terceiro lugar, a forma pela qual a Indústria Cultural consegue vender cultura é através da sedução do consumidor. Para isso, “deve devolver-lhe [ao consumidor], com nova aparência, o que ele já sabe, já viu, já fez. A ‘média’ é o senso-comum cristalizado, que a indústria cultural devolve com cara de coisa nova” (CHAUÍ, 2008, p. 60). E é assim, usando clichês, que se convence os cidadãos da massa a consumir cada vez mais cultura. Para finalizar, essa mesma Indústria “define a cultura como lazer e entretenimento” (CHAUÍ, 2008, p. 60), banalizando, ainda mais, o que ela mesma definiu como cultura de massa (inculta). O entretenimento não é problemático, é natural do ser humano buscá-lo. A questão, como Chauí (2008) explica, é que O entretenimento é uma dimensão da cultura tomada em seu sentido amplo e antropológico, pois é a maneira como a sociedade inventa seus momentos de distração, diversão, lazer e repouso. No entanto, por isso mesmo, o entretenimento se distingue da cultura quando entendida como trabalho criador e expressivo das obras de pensamento e de arte (CHAUÍ, 2008, p. 61)
Assim, o que a Indústria faz é transformar o fruto do trabalho do pensamento (que deve interpretar, criticar, transcender e transformar nossa experiência de mundo, trazer reflexões e gerar novas discussões e produções de artes) em obras repetitivas, vazias, passageiras, cheias de modismos.
18 cultura e cidade Obras vazias que devem ser consumidas e rapidamente descartadas (esquecidas), como qualquer outro produto do mundo capitalista industrializado. A presença da cultura de massa “produz consequências objetivas nas visões de mundo das várias camadas da população, em seus planos de vida, em seus modos de agir” (SANTOS, 1983, p. 70); isso se dá porque os meios de comunicação em que se veiculam as produções de massa são um elemento fundamental da vida social, pelos quais a sociedade se organiza, se informa e constrói sua visão de mundo. É importante ressaltar, porém, que “as mensagens da Indústria cultural, com propósitos de homogeneização e controle das populações, podem ser um projeto dos interesses dominantes da sociedade, mas não são a cultura dessa sociedade” (SANTOS, 1983, p. 71). São apenas propagandas do modo como as camadas dominantes querem que as massas se comportem e vivam. O papel social da arte, inclusive, encontra-se justamente na ação de criticar essa estrutura. Para isso, artistas se utilizam diversas vezes das ferramentas disponibilizadas pela Indústria Cultural para expor à população os mecanismos de manipulação criados pela cultura de massa, a fim de despertar uma consciência crítica nessas pessoas. Em seu clipe musical “This is America”, por exemplo, lançado em 05 de Maio de 2.018, o artista Childish Gambino (pseudônimo de Donald Glover) retrata perspicasmente essa relação entre sociedade e cultura de massa. No vídeo, como é possível observar na figura 01, entre muitos outros apontamentos, ele faz uma crítica contundente
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Figura 01. Imagem do clipe musical This is America de Donald Glover, na qual o cantor dança com um grupo de jovens enquanto distrai o espectador das situações que ocorrem ao fundo. à essa ligação: enquanto o artista e um grupo de adolescentes dança de forma estranha e até mesmo engraçada em primeiro plano, captando nossas atenções, ao fundo ocorre um verdadeiro caos, repleto de conflitos, violência e insegurança. A forma como as cenas são construídas nos mostram o quão absortos somos pelos conteúdos midiáticos, que nos distraem de problemas sérios e que realmente merecem nossa atenção, como a marginalização de pessoas pobres (e negras em sua maioria), o racismo, a desigualdade social. Essa distração faz parte do controle de massas necessário à um sistema baseado em diferenças e classes sociais como o nosso. Para finalizar, será retomada, aqui, a passagem usada para abrir esse capítulo, em que Eupalinos diz “De tanto construir, disse-me sorrindo, creio ter-me construído a mim mesmo”. Essa visão da construção, de construir e também se
20 cultura e cidade construir é a imagem fundamental sobre como a cultura se relaciona com o homem. Nós somos os construtores da cultura e a cultura nos constrói a cada segundo. Nada sobre nós é gratuito; tudo é uma construção cultural, até mesmo a forma como construímos e organizamos as cidades. WHITE (2009) afirma, inclusive, que “homem e cultura são inseparáveis. Por definição, não há cultura sem homem nem homem sem cultura” (WHITE, 2009, p. 23). Assim, é natural entender que a cultura não só pode como, de fato, modifica nosso olhar sobre o mundo e suas formas. É ela que define como iremos entender e interagir com o espaço, com o tempo, com o outro, com a natureza, com o construído, com os sons, as cores, os cheiros. Ela é o trabalho daquilo que nos é mais peculiar: o intelecto. A cultura é nossa essência, e nós a construímos a partir dela mesma, a partir da forma como ela nos construiu. Portanto, é válido afirmar que nossa percepção sobre a cidade e o urbano também é construída pela cultura; inclusive, PICON (2000) afirma que a paisagem surge de uma junção de dois movimentos que seriam a apreensão visual de um determinado meio e a interpretação desse mesmo meio através da cultura. Esse é o ponto chave que irá estruturar esse trabalho e sobre o qual toda a argumentação se repousará.
1.2. CIDADE: PAISAGEM E IMAGEM
cultura e cidade 21 “O olho não é suficiente. É preciso refletir.” Paul Cézanne
Casa. Lar. Morada. É assim que, segundo dados divulgados pelo IBGE (O Estadão, 2017), 76% da população brasileira chama as cidades do país. No mundo, já chegamos a aproximadamente 4 bilhões de pessoas morando em áreas urbanas, o que corresponde a 55% da população mundial (O Globo, 2016). Isso significa que cada vez mais pessoas estão entrando em contato com uma paisagem urbana cotidianamente. Para compreendermos o impacto que isso tem sobre essas pessoas, precisamos começar pela definição do que é uma paisagem. Para Leite (1996), Paisagem é definida por Aurélio Buarque de Holanda Ferreira como “espaço de terreno que se abrange de um lance de vista”. Em um espaço povoado, a paisagem que se pode observar é, então, o produto do trabalho coletivo de uma sociedade sobre seu território e o processo social de sua construção. É a acumulação, no tempo, de práticas, técnicas, valores e símbolos culturalmente transmitidos às futuras gerações. (LEITE, 1996, p. 2)
Podemos entender, então, que uma paisagem urbana é, na verdade, uma construção sociocultural. Ainda segundo Leite (1996), essa construção da paisagem poderia ser entendida como “um processo histórico de representação das relações sociais através do qual práticas e ideologias tornam-se realidades materiais pela transformação de seu significado em ordem efetiva dos objetos sobre o território” (LEITE, 1996, p. 2).
22 cultura e cidade Name complementa esse conceito dizendo que A paisagem é, minimamente, moldada pelo gosto e pelos sentimentos (Roger, 1994: 109-123). E se por um lado é uma marca que expressa uma sociedade a partir de sua materialidade, por outro é também uma matriz, que participa dos esquemas de percepção, concepção e ação, mais precisamente da cultura. É vista por um olhar, mas é também apreendida pela consciência, valorizada pela experiência, julgada pela moral e eventualmente reproduzida mediada por técnicas e estéticas (Berque, 1998: 84-91), tendo contornos e consequências políticos. A paisagem, em si mesma, não existe, é mera abstração, e sua construção se faz [...] a partir da interação complexa destes dois termos. É parte de um processo cultural, contínuo, dinâmico, da relação dos homens e das mulheres, em seus grupos sociais, com o(s) seu (s) mundo (s) conhecido(s) e desconhecido(s), mediado por filiações ou desfiliações identitárias e conflitos de poder. (NAME, 2013, p. 71)
Na geografia há o conceito de lugar, que se relaciona intimamente com o de paisagem adotado por Leite (1996). Um lugar pode ser definido como [...] determinado sítio com características próprias, mas também repositório de experiências individuais e coletivas com significados específicos, e que só ganha inteligibilidade a partir da figura de um ou mais “narradores” que o descrevem a partir de suas próprias experiências imbuídas de determinadas perspectivas, consequência de sua trajetória. (NAME, 2013)
Portanto, criar paisagens é criar lugares. É criar espaços territoriais que contenham significados, guardem histórias individuais e coletivas, ressignifiquem a natureza. Picon (2000) afirma que, na paisagem natural, tudo que o homem construía era envolvido pela natureza, o que conferia
cultura e cidade 23 a essas construções um sentido de extensão do mundo natural. A partir da Revolução Industrial, porém, a cidade deixa de ser parte da paisagem para se tornar ela mesma uma paisagem. E o que esse novo tipo de paisagem tem a nos dizer? Rolnik (1988) faz uma associação muito interessante entre cidade e escrita que pode ajudar nessa questão. Ela comenta que, na história, esses dois fenômenos aconteceram “quase que simultaneamente, impulsionados pela necessidade de memorização, medida e gestão do trabalho coletivo” (ROLNIK, 1988, p. 16). Para ela, O desenho das ruas e das casas, das praças e dos templos, além de conter a experiência daqueles que os construíram, denota o seu mundo. É por isso que as formas e tipologias arquitetônicas, desde quando se definiram enquanto hábitat permanente, podem ser lidas e decifradas, como se lê e decifra um texto. (ROLNIK, 1988, p. 18)
Percebe-se, assim, que a cidade é uma construção no tempo e podemos lê-la. Podemos decifrar toda sua história, todos os processos pelos quais ela passou para chegar até aqui. É possível ver as marcas de todos que já passaram por ela, as marcas dos interesses que a moldaram. Ela é cheia de símbolos e regras que só os nativos compreendem com clareza, assim como uma linguagem. Ela possui uma cultura própria, um jeito de ser único. A cidade também é palco de diversas disputas ideológicas e econômicas que influenciam diretamente no nosso modo de vê-la. Segundo Rolnik (1988), o surgimento da cidade-capital muda completamente a organização das cidades: O primeiro elemento que entra em jogo é a questão da mercantilização do espaço, ou seja, a terra
24 cultura e cidade urbana, que era comunalmente ocupada, passa a ser uma mercadoria - que se compra e vende como um lote de bois, um sapato, uma carroça ou um punhado de ouro. (Rolnik, 1988, p. 43)
Munford (1982) completa esse pensamento, dizendo que a cidade Sendo concebida como uma aglomeração puramente física de edifícios alugáveis, a cidade planejada dentro daquelas linhas [de simples mercadorias] podia propagar-se em qualquer direção, limitada apenas por grandes obstáculos físicos e pela necessidade de rápidos transportes públicos. (MUMFORD, 1982, p. 451 e 457 apud FERRARA, 2000, p. 19)
Essa mercantilização do espaço cria marcas espaciais que afetam diretamente a vida das pessoas. Uma cidade que cede aos interesses do capital torna-se dividida entre regiões de maior ou menor valor, o que consequentemente as faz ser de maior ou menor acesso à grande massa. Essa divisão espacial modifica as relações dos cidadãos com o meio urbano. Uma pessoa humilde que se veja em meio a um local de grande valor irá se sentir desconfortável e isso imprime nele uma visão de cidade totalmente diferente daquela sentida por uma pessoa que tem meios financeiros de pertencer àquele lugar. Ferrara (2000) faz, ainda, uma diferenciação entre a cidade tradicional e aquela que seria a forma urbana que vivenciamos hoje, a cidade virtual. Para ela, a cidade tradicional “marcava-se pelas suas atividades produtivas comerciais ou industriais num tempo/espaço contíguos e determinados por clara relação de causa e consequência” (FERRARA, 2000, p. 20). Portanto, os espaços adquiriam significados de acordo com suas funções econômicas, caráters funcionais, e como
cultura e cidade 25 as pessoas interagiam com eles. Já a cidade virtual é “uma cidade que não é concreta, mas potencialmente real, virtual: não se edifica, mas se constrói por meio das ideias que disseminam eletronicamente, pelas fibras óticas e redes telefônicas” (FERRARA, 2000, p. 20). A percepção dessa cidade é, portanto, instantânea; ocorre na velocidade da internet. A tecnologia é necessária para que um habitante da cidade de hoje possa expandir seus sentidos e apreender o mundo à sua volta. Os espaços físicos não contêm mais os lugares, pois estes são construídos on-line. “A cidade virtual ensina o tempo a misturar-se no espaço e a transformar-se com ele” (FERRARA, 2000, p. 20). Esse novo tipo de cidade muda a forma como a vemos: Mais do que nunca, a cidade é para ser vista, consumida visualmente. A cidade dos espaços utilitários transformou-se na imagem da cidade que ancora a realidade do virtual, dando-lhe uma dimensão concreta e permitindo que o imaginário que se expande ante a tela do computador ou televisor seja socializado. É a imagem da cidade que permite que o local, reduzido virtualmente, seja expandido fisicamente e fixado na retina; é a imagem da cidade que permite realizar a apropriação da cidade local ou globalmente situada. (FERRARA, 2000, p. 22)
Essa nova forma de interação com o espaço faz com que nossa relação com ele mude. Segundo Name (2013), hoje, com tanto acesso à informação, quando se viaja “não se irá conhecer tais lugares e paisagens, mas reconhecê-los, à medida que já foram consumidos como representação nesses guias, revistas, filmes, realities etc” (NAME, 2013, p. 18).
26 cultura e cidade Desta forma, a cidade virtual não existe sem a cidade real. E a imagem da cidade é construída, primeiramente, no mundo real, e depois projetado, potencializado e espalhado pelo mundo virtual. Por isso, vamos tratar a seguir sobre o processo de construção da imagem da cidade.
1.2.1. CONSTRUÇÃO DA IMAGEM DE CIDADE Lynch (1984) diz que “estamos constantemente entregues ao impulso de organizar nossos entornos, ao impulso de estruturá-lo e identificá-lo” (LYNCH, 1984, p. 111). Vivemos a cidade com todos os nossos sentidos. Vemos suas cores e texturas, sentimos seu cheiro, escutamos seus sons, falamos sobre ela; nos deliciamos e sofremos com todas as experiências que ela nos oferece. Cullen (1983) diz, porém, “atente-se primeiro ao sentido da vista, pois é quase inteiramente através dele que apreendemos o que nos rodeia” (CULLEN, 1983, p. 9); de fato, o mundo é quase que inteiramente visual. Nossa fonte primária de conhecimento e reconhecimento do mundo é através da visão. Certeau (1990) comenta que a vontade de ver a cidade precedeu os meios de satisfazê-la. As pinturas medievais ou renascentistas representavam a cidade vista em perspectiva por um olho que, no entanto, jamais existira até então. Elas inventavam ao mesmo tempo a visão do alto da cidade e o panorama que ela possibilitava
cultura e cidade 27 (CERTAU, 1990, p. 170)
A cidade é esse ambiente misterioso e surpreendente que se desenrola em frente aos nossos olhos e que só se revela àqueles que se entregam, a exploram, a sentem; e a forma pela qual apreendemos uma cidade é através da visão. A cidade tornou-se, mais do que qualquer outra paisagem, um local de visibilidade. Nós a identificamos e interagimos com ela visualmente. Mas por que pela imagem e não pelo cheiro ou textura tátil? Um dos motivos é o fato de a imagem possuir como traço distintivo que é sua iconicidade. Essa característica diz respeito à um modo de produção de conhecimento. Ferrara diz que ela “exige [...] uma complexa operação associativa que labora uma comparação, não apenas entre elementos, objetos, fatos, situações concretamente comparáveis, mas como uma realidade outra, produzida pela mente que compara. (FERRARA, 2000, p. 57). O ícone possui uma forte relação qualitativa com aquilo que referencia. Assim, ele “nos permite o conhecimento pela sua própria maneira de ser, na sua materialidade, sem nada significar fora ou além dele próprio” (FERRARA, 2000, p. 57). Ele possui um sentido tão completo e tão conectado ao seu referencial que faz a imagem tornar-se analógica. Ferrara (2000) discorre ainda que a natureza da visibilidade repousa sobre a aliança entre demonstrar e interpretar. Para ela, “a imagem urbana nasce de uma interpretação da visibilidade e sua importância sobre a cidade” (FERRARA, 2000, p. 25-26). E, como a cidade é um meio em constante mudança,
28 cultura e cidade para se chegar à uma imagem real dela, é necessário ter uma pluralidade de interpretações; uma imagem de cidade verdadeira, analógica e completa só pode surgir a partir da interação de várias pessoas - com diversas histórias de vida e visões de mundo diferentes - com os lugares da cidade, mostrando todos os pontos de vista possíveis. Lynch (1984), inclusive, reafirma isso quando diz que as imagens ambientais são resultado de um processo bilateral entre o observador e seu meio ambiente. O meio ambiente sugere distinções e relações, e o observador - com grande adaptabilidade e à luz de seus próprios objetivos - escolhe, organiza e dá significado ao que vê. (LYNCH, 1984, p. 15).
Pode-se perceber que não se trata apenas de ver, receber um estímulo visual. A construção da imagem da cidade passa, também, por um processo de significação da cena captada, ou seja, a interpretação de um estímulo físico através do repertório cultural que pode ser tanto individual quanto coletivo. Essa cultura, como vimos no capítulo anterior, é construída através de diversos meios, desde a vivência até a Indústria Cultural, que nos mostra o tempo todo imagens de como a cidade deveria ser - uma imagem globalizada, pautada nas ideias de verticalidade e velocidade, do transporte individual “sustentado e patrocinado pelas grandes artérias que são idênticas a outras tantas avenidas globais que misturam todos os espaços de todas as cidades do mundo” (FERRARA, 2000, p. 76). Esse processo de formação da imagem da cidade pode ser resumido em três aspectos que são percebidos simultaneamente pelo indivíduo:
cultura e cidade 29 Num primeiro enfoque, a cidade real, confronta-se com a cidade construída por meio dos seus ícones de gigantismo, em que se confundem a verticalidade e a horizontalidade dos grandes planos. Em seguida, a percepção dessa realidade se dá na simultaneidade do material com o imaterial, de tal modo que a veracidade da imagem é desconsiderada para contemplar uma sensação de imagem tão real quanto a própria metrópole nas suas transformações constantes. Nessas mudanças, a profunda identidade das marcas urbanas locais são misturadas à influência de uma imagem global que cria uma outra dimensão de identidade e apropriação da cidade. (FERRARA, 2000, p. 28)
Essas imagens construídas culturalmente sobre como uma cidade deveria ser, parecer, ter, funcionar são tão reais quanto as próprias imagens da cidade concreta. Aquilo que se diz sobre uma determinada cidade cria uma mudança real de sua percepção. Essa união entre imagem e imaginário de cidade cria nela uma legibilidade; ter legibilidade é muito importante para uma cidade, pois ajuda os cidadãos a se sentirem mais seguros emocionalmente e a se apropriarem dela; essa segurança é o que garante que as pessoas circulem livremente pela malha urbana e possam criar laços afetivos com os lugares. Aqui, chegamos ao ponto crucial para entender como é construída a imagem da cidade de fato. Tudo reside na relação intrínseca entre imagem e imaginário, uma vez que ela é a responsável pela geração de significado, que é “a real percepção da experiência urbana travestida no uso do espaço e seus lugares. O uso é o significado da experiência e sua manifestação consiste na apropriação do espaço construído” (FERRARA, 2000, p. 117).
30 cultura e cidade Imagem, segundo Ferrara (2000), “tem apenas um significado, corresponde a um dado solidamente codificado no modo de ser daquela sintaxe. É um código urbano e impõe uma leitura e fruição que estão claramente inscritos na cidade enquanto espaço construído” (FERRARA, 2000, p. 118). Ferrara (2000) afirma que Percebe-se a imagem à medida que é reconhecida, descrita e identificada. Ao lado dessa percepção visual e como característica que qualifica a cidade, a imagem manifesta, na sua sintaxe, um encadeamento de qualificações e, ao mesmo tempo em que as ordena, vai se tornando mais complexa. (FERRARA, 2000, p. 119) A
imagem urbana pode ser entendida, de acordo com Ferrara (2000), sob nove aspectos diferentes, sendo eles edificada, escultórica, emblemática, renovada, referencial, estática, segura, apelativa e pública. A imagem pode ser considerada edificada pois não dialoga com seu entorno; “surge isolada na autossuficiência do edifício onde a arquitetura fala por si mesma e, nesse isolamento e quase conflito contextual, destaca-se e consagra-se” (FERRARA, 2000, p. 119). Quando entendida como escultórica, a imagem exibe características físicas marcantes, que criam “seu próprio espaço, como um monumento” (FERRARA, 2000, p. 119) e que pode ser retirada de seu contexto original sem perdas de sentido e iconicidade. É emblemática a imagem que traz em si a recuperação de marcas memoráveis da cidade. “Na realidade, a imagem é a reconstrução visual da história documental de uma cidade”
cultura e cidade 31 (FERRARA, 2000, p. 119). A imagem é renovada à medida que sua iconicidade tenta resgatar a aparência urbana, tentando fazê-la parecer sempre nova, saneada e adequada (FERRARA, 2000). Como referencial, a imagem urbana sempre marca toda a geografia da cidade e “é responsável pela orientação e economia dos seus caminhos. Desse modo, a imagem da cidade é pontual e traça o percurso da cidade com marcas descontínuas” (FERRARA, 2000, p. 120) A imagem é também estática, pois traz perspectivas recortadas da realidade que “identificam, à distância, o específico de uma cidade” (FERRARA, 2000, p. 120). A imagem urbana é segura pois sua interpretação não é ambígua. “A imagem organiza a cidade, tornando-a simbólica e representativamente eficiente” (FERRARA, 2000, p. 120). Apelativa, a imagem urbana traz em si uma certa propaganda “que concretiza o modo de reconhecer e avaliar uma cidade” (FERRARA, 2000, p. 120). Por fim, a imagem urbana é pública, dada sua “percepção coletiva que consagra e faz circular valores, marcas, referências e identidades urbanas: aí estão o Cristo Redentor, a Estátua da Liberdade ou o Pelourinho” (FERRARA, 2000, p. 120). O imaginário, por sua vez, “corresponde à necessidade do homem de produzir conhecimento pela multiplicação de significados, atribuir significados a significados” (FERRARA, 2000, p. 118). Assim, é pelo imaginário que os locais da cidade passam a significar mais, pois a eles é integrada uma série de
32 cultura e cidade novas significações que extrapolam a imagem original que se tinha deles. Ferrara (2000) diz que [...] a cidade é um cenário, um pano de fundo, um recorte que sustenta um conjunto de sentimentos e reflexões. Conhece-se a cidade ao elaborar sobre e a partir dela. É essa modalidade de estímulo que dá origem a uma poética urbana identificada com a arte em seus vários movimentos e tendências [...]. (FERRARA, 2000, p. 121)
Pode-se perceber que a unidade imagem/imaginário consegue ter uma série de consequências na forma como o homem interage com o espaço; ela cria lugares, mantém ordens, constrói ideologias, legítima poderes e valores. O homem só pode se apropriar de um espaço que foi previamente qualificado por ele, ou seja, vivido, onde se tenha criado laços afetivos, socializações, memórias; experiências que, assim como a própria cidade, não são homogêneas, são diversas. O próprio ato de criar lugares é, em primeira instância, uma atividade informacional acionada pelo imaginário contido no repertório cultural dos habitantes de um lugar; a apropriação e a criação de lugares é uma manifestação perceptiva entendida como forma de gerar informação acionada pelo reservatório de imagens contido em um repertório cultural ou em um imaginário. (FERRARA, 2000, p. 124)
Um exemplo prático de como o imaginário é aplicado em nosso cotidiano se encontra numa reflexão de Certeau (1984) sobre os pedestres. Ele diz que Se é verdade que existe uma ordem espacial que organiza um conjunto de possibilidades (por exemplo, por um local por onde é permitido circular) e proibições (por exemplo, por um muro que impede
cultura e cidade 33 prosseguir, o caminhante atualiza algumas delas. Deste modo, ele tanto as faz ser como aparecer. Mas também as desloca e inventa outras, pois as idas e vindas, as variações ou as improvisações da caminhada privilegiam, mudam ou deixam de lado elementos espaciais. [...] E se, de um lado, ele torna efetivas algumas somente das possibilidades fixadas pela ordem construída [...], do outro aumenta o número dos possíveis (por exemplo, criando atalhos ou desvios) e dos interditos (por exemplo, ele se proíbe de ir por caminhos considerados lícitos ou obrigatórios). Seleciona portanto. (CERTEAU, 1984, p. 178)
Nesse relato, podemos perceber como o pedestre utiliza seu imaginário de cidade para se apropriar dela: ao julgar um caminho inadequado, muda-o; ao ter um sentimento de insegurança sobre um espaço, o torna proibido para uso. E esse imaginário é coletivo. Não apenas um, mas todos os caminhantes entendem o espaço daquela mesma forma, e é por isso que os pedestres modificam ativamente a paisagem e a imagem urbana. Eles constroem, efetivamente, o imaginário da cidade, criam uma cultura urbana sobre os espaços. Aqui, é importante retomar a citação que abre esse sub-capítulo: “O olho não é suficiente. É preciso refletir.” de Paul Cézanne. A observação é um passo fundamental da compreensão da cidade; é através dela que conseguimos obter uma imagem inicial sobre a qual construiremos um conceito. Porém, apenas quando fazemos uma reflexão cultural daquela imagem, dotando-a de significados, comparando-a e classificando-a de acordo com nosso repertório imaginativo (advindo de diversos meios de comunicação, da educação, do entretenimento etc), é que construímos a verdadeira e completa imagem da cidade. O homem não compreende o mundo apenas
34 cultura e cidade pelos sentidos, ele precisa refletir, culturalmente, sobre aqueles estímulos para poder apreendê-los verdadeiramente. O corpo humano, contudo, não é, fisiologicamente, “feito” - adaptado - para habitar a cidade; passamos a maior parte de nossa evolução vivendo em florestas de forma nômade, caçadora e coletora e, por isso, nossos corpos se desenvolveram para sobreviver à essa realidade. Ellard (2016) diz que “estamos programados para preferir habitar en lugares [que são parecidos com a Savana da África Oriental] que hace setenta mil años habrían aumentado nuestras probabilidades de supervivência” (ELLARD, 2016, p. 39). Ele ainda completa, afirmando que “la exposición a cualquier tipo de imagen natural [...] puede tener impresionantes repercusiones en nuestros cuerpos y mentes” (ELLARD, 2013, p. 39). Picon (2000) complementa esse pensamento, dizendo que a arquitetura que potencialmente não tenha um limite (na qual não se consiga vislumbrar o exterior e a natureza) torna-se causa de ansiedade, pois é sinônimo de aprisionamento, uma máquina esmagadora de pessoas. E hoje, com o crescimento desenfreado de nossos centros urbanos, as cidades perderam a noção de limite; não é mais possível observar o fim da paisagem urbana, o que causa um certo sentimento de desespero em seus habitantes. Por fim, apesar da “não naturalidade” desse tipo de paisagem, o homem, nutrido por necessidade de segurança, socialização e articulação do trabalho, as criou há centenas de anos - a cidade como conhecemos nasceu na Revolução Industrial - e a vem cultivando arduamente todos os dias, através da cultura.
cultura e cidade 35 Esse cultivo se dá com a construção permanente e sem fim de sua imagem que se faz todos os dias nos jornais, revistas, novelas, séries, filmes, programas de rádio etc. E é a forma como filmes e séries constroem e modificam esse imaginário urbano que será analisada no presente trabalho.
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Na noite passada estive no Reino das Sombras… Encontrava-me no Aumont e vi o cinematógrafo de Lumière - trata-se de fotografias em movimento. A impressão extraordinária que o aparelho consegue criar é de tal forma singular e complexa que chego a duvidar da minha capacidade de descrevê-la em todas as suas nuanças… Parece trazer em si um prenúncio vago e sinistro, que faz esmorecer o coração. A gente esquece onde se encontra. Imaginações estranhas invadem a mente e a consciência vai-se desvanecendo. (LEYDA, 1963, p. 407-409 apud LAWSON, 1967, p.21)
Foi assim que Máxim Górqui, escritor e jornalista russo, descreveu sua primeira experiência com o cinema em Junho de 1896, seis meses após a primeira exibição cinematográfica ter acontecido no Grand Café em Paris. Essa descrição ainda é muito próxima àquilo que todas as pessoas sentem quando frequentam o cinema pela primeira vez. Já não assusta as imagens estarem em movimento - como aconteceu durante a primeira exibição na qual os espectadores pensaram que seriam atropelados pelo trem dos Lumière - mas certamente o cinema ainda emociona a todos de uma forma única, que nenhuma outra arte havia conseguido até seu surgimento. Por isso, é de suma importância entender como o cinema age na consciência dos telespectadores para compreendermos seu imenso poder como construtor da imagem cultural das cidades.
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2.1. A PERCEPÇÃO NO CINEMA O grande apelo psicológico do cinema se dá através de dois movimentos simultâneos: como a experiência do cinema afeta fisicamente os espectadores e como ela funciona psicologicamente. Essas ações são codependentes e se reforçam. Quando entramos em uma sala de cinema, nos colocamos voluntariamente no que Hugo Mauerhofer chama de situação cinema, um estado alterado de consciência. O primeiro atributo desse fenômeno é o tédio iminente: a sala escura muda nossa percepção do tempo, que parece estar passando mais lentamente pela falta de ação. Essa mudança acarreta a iminência da sensação de tédio. Um segundo atributo aparece decorrente do confinamento visual. Ao não conseguir perceber com nitidez as formas dos objetos no espaço, dá-se margem para o surgimento da imaginação exacerbada. A iluminação insuficiente torna a forma dos objetos menos definida, dando à imaginação maior liberdade de interpretar o mundo que nos cerca. Quanto menor a capacidade do olho humano de distinguir com clareza a forma real dos objetos, maior o papel desempenhado pela imaginação, que faz um registro extremamente subjetivo do que ainda resta de realidade visível. (MAUERHOFER in XAVIER, 1983, p. 376)
Ao esperar o início do filme na sala escura, nos colocamos também em um estado de passividade voluntária, uma situação muito próxima ao estado de sono. Mauerhofer (1983) diz que “ambos supõem uma fuga da realidade, a escuridão
o cinema constrói cidades 41 como pré-requisito para dormir ou assistir cinema e um estado de passividade voluntário” (MAUERHOFER in XAVIER, 1983, p.377). Esse estado, aliado à imaginação exacerbada, nos deixa muito próximos ao estado de sonhos, e ficamos, consequentemente, mais suscetíveis às sugestões que recebemos dos filmes. A situação cinema – com seus atributos de tédio iminente, imaginação exacerbada e passividade voluntária – leva o inconsciente a comunicar-se com a consciência em maior grau do que normalmente. Todo o nosso arsenal de repressões é ativado. Ao configurar-se a experiência cinematográfica, desempenham papel decisivo nossas frustrações, nossos sentimentos de imperfeita resignação e nossas inviáveis ou malogradas fantasias que se desenvolvem, por assim dizer, na fronteira da situação cinema. (MAUERHOFER in XAVIER, 1983, p. 378)
Todos esses elementos que compões a situação cinema acabam por facilitar e acentuar os efeitos psicológicos e emocionais advindos de questões técnicas relacionadas à arte do cinema, que serão desenvolvidas a seguir. O cinema é uma arte única e trouxe inovações incomparáveis no campo psicológico. Nossa profunda identificação emocional com o cinema começa com o sentimento perceptivo e afetivo de participação criado no espectador, advindo do fenômeno chamado por Metz (1972) de Impressão de Realidade. A fotografia, antes dos filmes, comovia por conta de seu alto grau de iconicidade, que a aproxima da realidade; Metz (1972) diz: “A parte de realidade deve ser procurada do lado da anterioridade temporal: o que a fotografia mostra foi realmente assim, um dia, diante da objetiva”. Já o cinema, com a presença
42 o cinema constrói cidades do movimento acaba superando a sensação de um passado estático, trazendo um ser-aqui vivo, um índice de realidade suplementar: “o espectador percebe sempre o movimento como atual [...], de sorte que a ‘ponderação temporal’ de que fala Roland Barthes - aquela impressão de um ‘outrora’ que irrealiza a apreensão de uma fotografia - deixa de intervir no espetáculo do movimento” (METZ, 1972, p.21). Além disso, o movimento também acarreta um ganho de corporalidade para os objetos, destacando-os de seus fundos ao lhes dar autonomia. Apesar de sua “imaterialidade”, “o movimento, desde que percebido, é em geral percebido como real, diferentemente de muitas outras estruturas visuais [...]” (METZ, 1972, p.20); Eisenstein (1989) explica que o movimento é o primeiro padrão percebido pelo olho humano, a sequência de elementos que aparecem conforme se caminha pelo espaço, e é por isso que sua reprodução dentro do cinema é o maior responsável pela Impressão de Realidade. O cinema, porém, não cativa o público apenas por sua inovação como técnica e verossimilhança com a realidade. Há também fenômenos psicológicos que o diferenciam das outras formas de arte. Balázs (1983) diz que Uma novidade historicamente mais importante e decisiva foi o fato de que o cinema não mostrava outras coisas, e sim as mesmas, só que de forma diferente: no cinema, a distância permanente da obra desaparece gradualmente da consciência do espectador e, com isso, desaparece também aquela distância interior que, até agora, fazia parte da experiência da arte. (BALÁZS in XAVIER (Org.), 1983, p. 84)
A sétima arte tira a distância de contemplação presente
o cinema constrói cidades 43 em outras manifestações artísticas, já que a câmera leva o espectador filme adentro. Os olhos do personagem são os olhos de quem assiste, tudo é visto e contado a partir do interior, exatamente da forma como os próprios protagonistas veem. Com a falta de distanciamento e ângulo de visão próprio, acontece um fenômeno de identificação entre personagens e espectadores. “Nada comparável a este efeito de ‘identificação’ já ocorreu em qualquer outra forma de arte e é aqui que o cinema manifesta sua absoluta novidade artística” (BALÁZS in XAVIER (org.), 1983, p.85). Munsterberg (1983) vai além em sua análise sobre o fenômeno de identificação no cinema. Ele pauta o apelo psicológico do cinema em três pilares: a atenção, a memória e imaginação e as emoções. Para Munsterberg (1983), as cenas devem interagir, emocionar e mobilizar suficientemente o espectador a fim de conduzir seu foco para o principal elemento dentro do filme que é a ação. Porém esses processos e impressões geradas não têm efeito se quem assiste não dá significado a elas. Dentro do movimento de significação, a atenção é a função interna mais importante, pois seleciona tudo aquilo que é mais relevante e organiza o caos de emoções que foi gerado pelas impressões iniciais em experiências; além disso, tudo que atrai nossa atenção fica mais nítido e marcado em nossa consciência. No cotidiano é possível experienciar dois tipos de atenção: a atenção voluntária e a involuntária. A atenção voluntária é aquela em que é definido de antemão em que repousará o
44 o cinema constrói cidades foco da observação, é ativa; por isso, tudo que não satisfaça aos interesses pessoais específicos e ideias próprias daquele que observa é ignorado. Já na atenção involuntária o direcionamento da observação é extrínseco. “O foco da atenção é dado pelas coisas que percebemos. Tudo que é barulhento, brilhante e insólito atrai a atenção involuntária” (MUNSTERBERG in XAVIER, 1983, p.28). É um tipo de atenção que apela aos nossos instintos e emoções de forma mais contundente. No cinema, o espectador é conduzido pelo diretor o tempo todo. Sendo assim, a atenção involuntária está sendo constantemente acionada para ajudar na criação do movimento de identificação daqueles que assistem com o filme e seus personagens. Quando se fala da memória dentro do processo de significação do cinema, vê-se que seu papel é atuar “evocando na mente do espectador coisas que dão um sentido pleno e situam melhor cada cena, cada palavra e cada movimento” (MUNSTERBERG in XAVIER, 1983, p. 36). Ela atua na continuidade do enredo, garantindo que todas as cenas passadas se relacionem às presentes e futuras dentro da mente do espectador. Já a imaginação se relaciona com o futuro, com as expectativas daquilo que está por vir. Munsterberg (1983) explica que o cinema funciona de forma análoga à imaginação: “ele possui a mobilidade das idéias, que não estão subordinadas às exigências concretas dos acontecimentos externos, mas às leis psicológicas da associação de idéias. Dentro da mente, o
o cinema constrói cidades 45 passado e o futuro se entrelaçam com o presente” (MUNSTERBERG in XAVIER, 1983, p. 38). Nas outras formas de arte, principalmente no teatro e na literatura, os detalhes, cenário e contexto acabam sendo descritos com palavras e acabamos necessitando de nossa imaginação para construir imagens completas. Já no cinema, vemos essas imagens prontas e formadas sob a ótica dos personagens; com o fenômeno de identificação, guardamos essas cenas como se fossem nossas próprias memórias, nossa própria visão e esse é o principal motivo pelo qual o cinema é uma arte tão poderosa.
As emoções são importantes para dar significado àquilo que estamos apreendendo opticamente. Todas as impressões que são geradas a partir do que é captado pela atenção só ganham força em nós quando passam pelo processo interno de significação. MUNSTERBERG diz: “Psicologicamente [...] o significado é nosso. Quando aprendemos a língua, aprendemos a anexar aos sons que percebemos nossas próprias associações e reações. O mesmo ocorre com as percepções óticas. O melhor não vem de fora” (MUNSTERBERG in XAVIER, 1983, p. 27)
Segundo Munsterberg (1983), existem dois grupos diferentes de emoções suscitadas em nós pelos filmes: aquelas emoções que foram passadas pelas pessoas dentro do filme afim de nos comunicar os sentimentos dos personagens e aquelas que foram desencadeadas em nós pelo próprio filme. O primeiro grupo é sensivelmente o maior. Imitamos as emoções exibidas aos nossos olhos e isto torna a apreensão da ação do filme mais nítida e mais afetiva. [...] A percepção visual das várias manifestações dessas emoções se funde em nossa mente com a consciência da emoção manifestada;
46 o cinema constrói cidades é como se estivéssemos vendo e observando diretamente a própria emoção. (MUNSTERBERG in XAVIER, 1983, p. 51)
Esse efeito é justamente o que faz do cinema uma arte tão poderosa na criação cultural de imaginários e comportamentos. Ao reproduzirmos os sentimentos dos personagens como se fossem nossos, passamos a nos sentir em relação ao mundo à nossa volta como eles sentem. O cinema é uma das artes mais populares dentro da cultura de massa. Seu alto poder apelativo aos nossos sentidos faz com que fiquemos completamente absortos por tudo que ele nos mostra, e sua capacidade de nos fazer sentir exatamente como uma força externa (o diretor) quer, faz dele uma arma de propaganda muito poderosa. Construir uma cidade é mais que edificar. Construir uma cidade é, também, construir sua imagem. A concepção da imagem de uma cidade depende diretamente do imaginário que se cultiva sobre aquele lugar. E é natural que boa parte daquilo que pensamos sobre determinadas cidades venha do que a sétima arte, como parte fundamental da cultura de massa, sedimentou em nossos conscientes sobre elas. Se vários filmes que se passam em uma certa cidade criam em torno dela uma aura boêmia e sexual, por exemplo, através de experiências e sentimentos que personagens tiveram naquele lugar, é natural que internalizemos a imagem dessa cidade com essas qualidades. E, quando estivermos presentes nessa cidade, vamos ter a sensação de ter vivido ali – ou de que aquele lugar pode nos propiciar – uma série de situações boêmias, sexuais e cheias de liberdade, pois já vi-
o cinema constrói cidades 47 vemos essas experiências indiretamente quando assistimos a esses filmes, guardamos as vivências dos personagens como se fossem nossas por conta do processo de identificação propiciado pelo cinema. É por isso, portanto, que podemos afirmar que o cinema, de fato, constrói cidades: o cinema age de forma única na construção do imaginário popular, uma vez que é a única forma de arte capaz de fazer-nos confundir a dramaturgia com a própria realidade, o que assistimos com o que vivemos. O cinema cria imagens muito fortes e enraizadas em nosso consciente, e por isso se mostra como a maior ferramenta de construção cultural da imagem da cidade.
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barcelona: construindo a imagem da cidade atravĂŠs do cinema
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3.1. De cidade Industrial à Capital Global: Os Jogos Olímpicos de 1992
Muitas vezes na história cidades e países precisaram, estrategicamente, construir e reconstruir suas imagens perante o resto do mundo, seja por motivos políticos, econômicos ou militares. A cidade de Barcelona possui uma história modelo quando o assunto é construção da imagem da cidade. Hoje, a cidade é um dos destinos turísticos mais requisitados da Europa, mundialmente reconhecida e está entre as melhores cidades para expansão dos negócios segundo a European Cities Monitor. Mas esse status de cidade global nem sempre foi uma realidade para Barcelona, apesar de sua importância histórica incontestável. A cidade, que durante o período Franquista era basicamente industrial, passou por grandes transformações nos anos 1980 e 1990 transformando-se em uma Capital Cultural Global, um verdadeiro pólo turístico e financeiro, e abandonando a economia industrial. Segundo Balibrea (2017), A transformação de Barcelona no período pós-Franquista é amplamente considerada entre arquitetos, urbanistas e políticos locais ao redor do mundo como um modelo por conta de sua notável habilidade em reconciliar a reestruturação econômica com a regeneração espacial e a ampliação dos direitos dos cidadãos à cidade. (BALIBREA, 2017, p.1, tradução nossa)
A redemocratização espanhola após a ditadura Franquista exerce papel fundamental na trajetória de Barcelona
52 barcelona: construindo a imagem da cidade através do cinema como cidade-sede dos Jogos Olímpicos de 92, que foi o agente principal de toda a reestruturação da cidade. Já havia desde os anos 1960, entre os interesses dos líderes da cidade, o desejo pelo crescimento e desenvolvimento da cidade sob moldes capitalistas, com sua consequente abertura ao mercado financeiro. Esses interesses se uniram à ideia elitista e paternalista dos políticos de cultura “como uma influência civilizadora a ser provida aos cidadãos” (BALIBREA, 2017, p. 46, tradução nossa), tornando a possibilidade de sediar os Jogos em uma oportunidade perfeita para avançar nesse modelo de desenvolvimento da cidade, já que todas as transformações necessárias a essa abertura seriam propiciadas sob uma justificativa maior – a das Olimpíadas. McNeill afirma que As características do desenvolvimento urbano Franquista - o domínio social do capital financeiro, a suscitação de casos famosos de uso da terra derrotados na década de 1970, a prevalência de mudanças de zoneamento de legalidade duvidosa e, ainda, o domínio contínuo de esquemas de construção de estradas - pertenceram até certo ponto ao longo das décadas de 1980 e 1990. (MCNEILL apud BALIBREA, 2017, p.48, tradução nossa)
Além disso, o discurso democrático de acesso aos espaços públicos e participação popular fez com que a população apoiasse a empreitada da cidade em sua tentativa de sediar os Jogos. Para poder concorrer como sede dos jogos, era necessário que Barcelona redefinisse sua imagem perante o mundo e, também, a seus habitantes. Para isso, a cidade recorreu ao uso de várias campanhas publicitárias nos anos 1980 e 1990.
barcelona: construindo a imagem da cidade através do cinema 53 A campanha que marcou grande parte dos anos 1980 foi a Barcelona més que mai (Barcelona mais que nunca) de 1984, que marcava o começo do discurso municipal em torno dos Jogos. Balibrea (2017) afirma que A ruptura com a ditadura exigiu uma temporalidade de novos começos, marcando um ponto de partida e oferecendo um futuro infinitamente amplo e aberto na terra da democracia. O que testemunhamos através do exemplo da campanha més que mai, com a cidade já entrando na disputa de candidatura olímpica, é uma mudança para a temporalidade do evento. (BALIBREA, 2017, p. 108, tradução nossa)
A construção dessa nova Barcelona começa pela busca de sua identidade. A campanha Barcelona més que mai traz como identidade visual um logotipo – o B em estilo-Miró inspirado em um trabalho do pintor catalão Joan Miró para o banco La caixa de 1980. Esse logotipo havia mudado completamente a imagem corporativa do banco, já que trazia, concomitantemente, a ideia de tradição e inovação. Belibrea (2017) descreve o trabalho do artista como: O trabalho de Miró conectou a marca à identidade catalã, apontando para sua mediterraneidade através do uso de cores quentes, bem como para um legado artístico internacional, moderno e de vanguarda, sinalizando assim um povo com sua própria cultura e idioma, mas também capaz de interagir globalmente. (BALIBREA, 2017, p. 109, tradução nossa)
Além disso, o logo de Miró para o banco também sintetizava a aproximação entre arte e capital, princípios que eram exatamente os elementos que o governo queria para Barcelona, a nova Capital Cultural; por isso a associação com a campanha do La Caixa foi tão perspicaz.
54 barcelona: construindo a imagem da cidade através do cinema A preocupação da campanha com a construção de uma imagem forte que resgatasse e fortalecesse a cultura local era começar a vender essa nova Barcelona primeiramente para os barceloneses. Os moradores da cidade precisavam comprar para si todas as mudanças que os Jogos trariam, que passavam também por reformular a forma como os próprios cidadãos agiam com relação à sua cidade, novas formas mais desejáveis de ser barcelonês. Afim de promover uma suposta participação popular nos preparativos para os jogos, a Prefeitura criou uma segunda campanha sob a sombra de Barcelona més que mai, que se chamava Barcelona posa’t guapa (Barcelona fique bonita, em livre tradução). Sua proposta era, através de redução de taxas e subsídios, incentivar os cidadãos e empresas a investirem na manutenção, reforma e todos os tipos de melhorias em suas propriedades, focando principalmente nas fachadas. Além disso a campanha também trazia um discurso de tolerância quanto aos inconvenientes gerados pelas várias obras que estavam acontecendo pela cidade. As prioridades da cidade eram claras: imagem da cidade e parcerias público-privadas. Esses elementos tornaram-se bases de um modelo de governança compartilhada. BALIBREA afirma que “o sucesso desta campanha contribuiu muito para a viabilidade material de alcançar uma marca/imagem da cidade desejável e comercializável” (BALIBREA, 2017, p. 112, tradução nossa). Isso foi fundamental para uma imagem de Barcelona solidamente construída, tendo herança modernista, excelência na arquitetura, design de bom gosto e espaços públicos de qualidade como seus pilares principais.
barcelona: construindo a imagem da cidade através do cinema 55 Os discursos dos governantes nesse período passavam, sempre, pela primeira pessoa do plural que exaltava toda a herança burguesa e modernista catalã como uma identidade para se orgulhar e preservar, além da empolgação compartilhada por todos com relação aos Jogos. Essa identidade não se manifesta mais nas lutas sociais contra a ditadura e o capitalismo especulativo, mas no ambiente construído da cidade (patrimônio arquitetônico, objetos da vida cotidiana) e nas personalidades dos próprios cidadãos (habilidades criativas e performáticas). (BALIBREA, 2017, p. 113, tradução nossa)
O modernismo catalão, com especial destaque para a obra de Gaudí, foi eleito como o cartão postal da Nova Barcelona. Mas não se tratava apenas da valorização da arquitetura modernista pura e simplesmente: a nova Barcelona também desejava que seus habitantes vivessem sob os valores de classe média burguesa que estavam impregnados nesse movimento. A valorização da cultura (aquela da arte burguesa e elitista, como discutido no primeiro capítulo desse trabalho) como “iluminadora” e “civilizadora” era reforçada por essa escolha nada despretensiosa. A proposta inicial da campanha, de cooperação público-privada entre governo e cidadãos/empresas, também não é por acaso. Balibera (2017) diz que ela produz uma forma domesticada e pós-política de envolvimento dos cidadãos com a cidade, pois consegue reescrever a ideologia pequeno-burguesa de propriedade de casa e propriedade privada em uma forma de participação coletiva altruísta. (BALIBERA, 2017, p.115, tradução nossa).
As propagandas do começo da campanha Barcelona
56 barcelona: construindo a imagem da cidade através do cinema posa’t guapa estavam relativamente preocupados em ajudar e resolver problemas estruturais das moradias mais populares, exigências que vinham de encontro com as exigências e lutas dos movimentos sociais do final da ditadura franquista. Porém, ao final dos anos 80, as campanhas foram mudando de tom, e já não se concentravam na resolução de problemas estruturais (das residências e da sociedade como um todo), mas na estética e superficialidade. Além disso, para promover os novos valores culturais de sociabilidade mediterrânea, era necessário lidar com um problema maior: os bairros da Cidade Velha precisariam passar por reformas de reestruturação e recuperação de fachadas para os jogos (já que faziam parte daquilo que tinha de mais tradicional na cidade), o que gerou revolta entre seus moradores (em sua maioria, de baixa renda) já que tais intervenções fariam esses bairros passarem pelo processo de gentrificação. Mas as campanhas publicitárias do governo barcelonês ignoravam esses conflitos, promovendo o discurso da cultura e dos Jogos para manipular a população enquanto contratava empresas para reformar a Cidade Velha. Prostituição, uso de drogas, sexualidade não-normativa e, também, revolução eram o status quo da Cidade Velha e, para Balibera (2017), É essa representação profundamente arraigada que os anúncios municipais buscam combater, ao mesmo tempo em que abrem espaço para um novo estilo de vida urbano e um espaço ressignificado. O último é realizado através da invocação da sociabilidade mediterrânea, o discurso de autenticidade de Barcelona, mais uma materialização local da prática global nas cidades pós-industriais de
barcelona: construindo a imagem da cidade através do cinema 57 transformar valores culturais em capital. (BALIBERA, 2017, p. 120, tradução nossa)
Por sociabilidade mediterrânea, o que as campanhas publicitárias buscavam era a ideia de vida próspera nas ruas, comida exuberante, clima quente e ensolarado, vida à beira-mar, espaços públicos moderadamente arriscados e emocionantes. E parte dessa experiência oferecida por Barcelona a todos que quisessem se aventurar passava pela ideia – criada publicitariamente – de autenticidade que apenas El Raval e os outros espaços da Cidade Velha tinham. Zukin afirma que A autenticidade é quase sempre usada como alavanca do poder cultural para um grupo reivindicar um espaço e tirá-lo de outros sem confronto direto, com a ajuda do Estado e de autoridades eleitas e a persuasão da mídia e da cultura do consumidor. (ZUKIN apud BALIBERA, 2017, p.121, tradução nossa)
O público alvo dessas campanhas também era muito bem definido: jovens profissionais liberais ou culturais, cosmopolitas, solteiros ou sem filhos, a classe criativa. Esse perfil era não só desejado como potencial visitante, mas como morador ideal desses espaços gentrificados – o novo cidadão barcelonês – pois alimentava a atmosfera boêmia que os políticos queriam criar. Os cidadãos antigos (e não desejáveis) eram entendidos nas propagandas como aqueles que não sabiam apreciar verdadeiramente a sociabilidade da Cidade Velha, não viam todo seu potencial. Essa era uma tentativa de silenciar ou amenizar os protestos por parte desses moradores, que estavam tomando as ruas em meados de 1987. Todos esses esforços publicitários renderam frutos
58 barcelona: construindo a imagem da cidade através do cinema quando chegados os Jogos Olímpicos de Barcelona em 1992: a imagem global de Barcelona criada por essas campanhas foi cristalizada durante o período das competições, e seus efeitos foram duradouros, já que a cidade conseguiu transformar essa imagem em uma marca durante a década de 1990. Essa marca era estruturada, em grande parte, sobre as bases do discurso cultural propagado por toda a década anterior que servia não apenas para atrair visitantes, como também para angariar suporte dos moradores locais. Balibera (2017) afirma que [...] na verdade, o advento dos Jogos Olímpicos e, mais amplamente, da economia de serviços como o “destino” pós-industrial de Barcelona, tornou indispensável para o município fabricar sua própria forma de identidade ou patriotismo local (BALIBERA, 2017, p. 148, tradução nossa)
Os Jogos haviam sido fundamentais para que Barcelona se impusesse como uma cidade relevante politicamente dentro da Espanha, e também serviram para criar uma imagem que distinguia Barcelona – e a Catalunha – do restante do país. Balibera (2017) diz que a simbólica “batalha por Barcelona” havia sido ganhado pela Catalunha, uma vez que sua bandeira, folclore, hinos e linguagem haviam sido usados como mote da construção daquilo que era originalmente Barcelonês. Além disso, E de acordo com todas as interpretações descritas, os Jogos de Barcelona conseguiram na transmissão afirmar a distinção da cidade anfitriã e de seus cidadãos - independentemente de como os destinatários decidiram definir o que compunha essa disparidade - e apresentá-la como uma mercadoria desejável. (BALIBERA, 2017, p. 151, tradução nossa)
barcelona: construindo a imagem da cidade através do cinema 59 Barcelona foi pioneira em colocar a cultura como parte dos Jogos Olímpicos, um feito que ia de encontro diretamente com seus interesses de construção de uma nova imagem. Seu comitê propôs a criação das Olimpíadas Culturais, um festival no qual, durantes os 4 anos que separaram os Jogos anteriores dos seus, a cidade promoveu diversos encontros e eventos culturais. “A cultura no contexto Olímpico é definida pelo espetáculo, atração turística e promoção da cidade” (BALIBERA, 2017, p. 152, tradução nossa). A arquitetura de Gaudí era promovida como sinônimo de sofisticação que fazia parte da identidade de Barcelona. Além disso, por conta desses eventos, massivas estruturas foram criadas para fins culturais, como o Centro de Cultura Contemporânea de Barcelona (CCCB), o Museu de Arte Contemporânea (MACBA), o Auditório, o Teatro Nacional, o Museu Nacional de Arte da Catalunha (MNAC) e o Arquivo Aragon Crown. Todos esses empreendimentos foram criados e financiados sob o pretexto dos Jogos, mas sua importância transcendeu o evento, tornando-se estruturas fundamentais para a Marca Barcelona. Além da infraestrutura, o conteúdo desses eventos também era importante para a Marca, o que é explicado por Balibera (2017) Uma vez que Barcelona se torna uma anfitriã Olímpica, foi iniciado um processo importante que deu à cultura um papel novo e fundamental: transmitir uma imagem para um destinatário externo, composto principalmente por uma audiência global que experimentará Barcelona através do filtro da mídia de massa, principalmente, embora não exclusivamente, pela televisão. (BALIBERA, 2017, p. 154, tradução nossa)
A cultura, aqui, muda de foco: no princípio da redemo-
60 barcelona: construindo a imagem da cidade através do cinema cratização, a pauta da cultura era utilizada como forma de produzir cidadãos melhores, portanto todas as estruturas eram construídas para os moradores. Com o passar do tempo, a cultura torna-se parte grandiosa da imagem da cidade e de sua Marca, portanto essas edificações e eventos passam a ser voltados, principalmente, para os visitantes. Após os Jogos, a cidade já havia se tornado polo turístico graças aos seus esforços bem-sucedidos de criação de imagem; Balibera (2017) diz que “cultura se torna identidade, identidade se torna a marca”¹. Ela afirma ainda que Como resultado dos Jogos, Barcelona deveria ser vista como uma cidade moderna, pós-industrial, rica em patrimônios, comparável e totalmente reconhecível, europeia, cosmopolita e mediterrânea. Nesse contexto, as diferenças deveriam ser incluídas na semelhança: entrar no mercado global de cidades com boas chances de sucesso implicava encontrar uma diferença qualitativa para permitir que a Marca se destacasse de seus concorrentes. (BALIBERA, 2017, p. 158, tradução nossa)
A fim de bem-sucedida no mercado de Capitais Globais, Barcelona precisava se destacar, precisava criar a ilusão de que aquilo que se poderia ter lá não seria encontrado em qualquer outra cidade. Para isso, era necessário divulgar sua marca para o mundo. Um meio que o Governo de Barcelona encontrou para tais fins foi através da promoção e patrocínio de filmes que utilizassem a cidade como plano de fundo para suas tramas e que reforçassem as características da Marca de Barcelona internacionalmente. Após um breve contexto cinematográfico, será feita a ¹“culture becomes identity, identity becomes the brand”
barcelona: construindo a imagem da cidade através do cinema 61 análise de 3 filmes de projeção internacional que se passam em Barcelona e que propagam, com seus enredos e fotografia, a Marca da cidade.
3.2. O cinema nos anos 1990/2000 e o cinema espanhol O cinema durante os anos 1990 foi marcado por um avanço tecnológico grandioso e um renascimento cinematográfico incomparáveis. Cousins (2013) diz que “A década de 1990 e o início do novo milênio foram o período mais interessante do cinema internacional, com seus centros de inovação em constante movimento” (COUSINS, 2013, p. 437). Ele diz, ainda, que essa afirmação se deve ao fato de que nessa época todos os continentes terem passado por um “momento da autoconfiança cinematográfica” (COUSINS, 2013, p. 438). Nesse período, importantes desenvolvimentos quanto à qualidade de imagem e som estavam acontecendo na indústria cinematográfica. O som digital estava em franca ascensão, o que foi apenas um passo para a digitalização também da imagem em meados dos anos 1990 e início dos anos 2000. As edições eletrônicas e o avanço das Imagens Geradas por Computador (CGI) trouxeram todo um novo mundo de possibilidades para o cinema, principalmente para os filmes de ficção científica, já que tudo que se imaginasse poderia ser transformado em imagens extremamente foto realísticas através da computação gráfica. Mas, mais que revoluções tecnológicas, a década de 90
62 barcelona: construindo a imagem da cidade através do cinema também foi um marco na história do cinema, como já dito anteriormente, pelo renascimento cinematográfico internacional: Diretores iranianos fizeram filmes incrivelmente originais; os australianos e neozelandeses tiveram um período áureo; a Europa Oriental e do Norte produziram grandes novos trabalhos e, com o Dogma, um importantes novo movimento estético; na Europa Ocidental, filmes em língua francesa pelo menos exploraram novas ideias filosóficas; Coreia do Sul, Tailândia e Vietnã fizeram os filmes mais distintivos na última parte da década; cineastas africanos, em particular os do norte da África, continuaram a inovar; as Américas do Sul e Central vieram para o primeiro plano [...]; e a crescente pós-modernização do cinema americano começou a ser repensada à luz das possibilidades abertas pela produção digital. (COUSINS, 2013, p. 438)
O cinema Europeu, em particular, busca arduamente, nesse período, se desvencilhar do imperialismo norte americano; para isso, tentaram encontrar um equilíbrio entre estabelecer uma unidade cinematográfica europeia que os fortalecessem e respeitar as peculiaridades e tradições culturais de cada país. “Em parte como consequência da Guerra Fria, esses países tinham antigos mercados domésticos para produções populares e cabia a apenas alguns diretores produzir os filmes de maior apelo” (KEMP, 2011, p. 474). Por conta desse contexto, surge o movimento Dogma 95 dos diretores dinamarqueses Lars Von Trier e Thomas Vinterberg que era uma verdadeira ode contra os excessos cinematográficos (tão característicos do cinema americano). Entre os 10 comprometimentos que os diretores deveriam fazer no chamado Voto de Castidade do manifesto, estavam: a não construção de cenários (deveriam ser usadas locações reais e nenhum objeto que já não existisse nesses lugares poderia ser
barcelona: construindo a imagem da cidade através do cinema 63 trazido de fora); nenhum som que não fossem os da própria filmagem poderiam ser utilizados, ou seja, não poderiam ser acrescentadas músicas posteriormente (trilha sonora); toda a iluminação deveria ser natural; não poderia ser feito uso de flashbacks ou outros cortes temporais, ações superficiais eram proibidas (como assassinatos, armas, etc) e o nome do diretor não poderia aparecer nos créditos. Essas regras “tinham como objetivo libertar os artistas os artistas da necessidade de competir com Hollywood” (KEMP, 2011, p. 476). Já o cinema espanhol dos anos 1990/2000 tem sua história intimamente ligadas ao processo de redemocratização da Espanha pós-franquista. Com a vitória dos Socialistas (PSOE) nas eleições, um partido que sempre tratou abertamente o cinema como um bem cultural e parte do patrimônio cultural espanhol, a cineasta Pilar Miró foi escolhida para o cargo de Diretora Geral de Cinematografia. As medias tomadas por ela, conhecidas como “Lei Miró” buscavam proteger a indústria cinematográfica nacional espanhola conta a concorrência estrangeira. Porém, para alcançar esse objetivo, Pilar preferiu privilegiar, com maiores subsídios estatais, produções que apresentassem qualidade distintiva, caráter experimental ou de novos diretores. [...] tratava-se de produzir menos filmes, mas de maior qualidade, a fim de aumentar sua competitividade frente ao mercado nacional e internacional, os quais se pretendia influenciar pela participação em festivais de prestígio ou pela organização de eventos promocionais nas principais capitais do mundo. (GUBERN et al, 2005, p. 402, tradução nossa)
Seus decretos, porém, causaram uma diminuição drás-
64 barcelona: construindo a imagem da cidade através do cinema tica na produção cinematográfica espanhola, gerando uma certa crise no cinema espanhol que, por falta de incentivos mais abrangentes, produziu uma quantidade bastante limitada de filmes relevantes (com exceção de diretores como Pedro Almodóvar) e também não conseguia atingir uma identidade para a cinematografia espanhola. A mudança de paradigma para o cinema espanhol veio com Pedro Almodóvar, que fez a seguinte declaração: Meus filmes representam [...] a nova mentalidade que aparece na Espanha depois que Franco morre - especialmente depois de 1977. [...] Todo mundo já ouviu falar que agora tudo é diferente na Espanha [...], mas não é tão fácil encontrar essa mudança no cinema espanhol. […] Nos meus filmes, eles vêem como a Espanha mudou […] porque agora é possível fazer […] um filme como Lei do Desejo. (ALMODÓVAR apud NOWELL-SMITH, 1996, p. 600, tradução nossa)
Seu filme La Ley del deseo, de 1986 ganhou grande destaque mundial após ser aclamado pela crítica no Festival de
Figura 02. Cena do filme La Ley del Deseo (1987) de Pedro Almodóvar, um filme repleto de uma sexualidade escandalosa para a época.
barcelona: construindo a imagem da cidade através do cinema 65 Berlim e foi usado pelo governo para promover a Indústria Cultural Espanhola internacionalmente (apesar das crises internas). O filme, que continha várias cenas homoeróticas e uma temática bastante sexual, substituiu a españolada (gênero que marcou o cinema franquista) e se tornou o estereótipo cultural do que era a nova Espanha redemocratizada: sexualidade mutável e escandalosa. “Assim, ele subverteu o centro, redefinindo-o como marginal, e ironicamente essa inversão ajudou a desmarginalizar o cinema espanhol no mercado mundial” (NOWELL-SMITH, 1996, p. 601, tradução nossa). Todo esse contexto é de suma importância para o entendimento das análises que se seguirão. Nelas, analisaremos o retrato de Barcelona no cinema sob a perspectiva de três diretores de origens distintas – Pedro Almodóvar (espanhol), Woody Allen (norte americano) e Cédric Klapisch (francês). Poderemos, assim, analisar três percepções diferentes sobre a cidade: a da espanhola com Almodóvar, a da Europa com Klapisch e a do restante do mundo com Allen. Poderemos ver também em que aspectos elas se distanciam e em quais se aproximam.
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a imagem de barcelona no cinema: uma anĂĄlise fĂlmica
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a imagem de barcelona no cinema: uma análise fílmica 69 O presente trabalho foi estruturado de forma a dar subsídios teóricos para a análise de como a cultura nos ajuda a criar uma imagem forte e coesa de cidade, mudando a forma de nos portarmos e utilizarmos os espaços urbanos, como enxergamos aquele espaço, nossas expectativas e desejos, enfim, condicionando nossa forma de interagir com a cidade. A cidade de Barcelona aparece como plano de fundo em diversas produções cinematográficas. A cidade se utiliza amplamente dessa ferramenta para consolidar sua imagem perante o mundo, renovando-a constantemente e fomentando o turismo na cidade, como mostram os estudos de Marzal (2016) e Campo, Brea e Muñiz (2011). A fim de averiguar essa relação entre cinema e a imagem de Barcelona, serão analisados, conforme dito anteriormente, três filmes que se passam na cidade: Tudo Sobre Minha Mãe (Pedro Almodóvar, 1999), O Albergue Espanhol (Cèdric Klapisch, 2002) e Vicky Cristina Barcelona (Woody Allen, 2008). Para isso, será utilizado um roteiro de análise composto por duas partes: a primeira será uma ficha técnica, com dados gerais sobre o filme, e a segunda será uma ficha com questões relacionadas ao enredo e outros elementos relativos à cidade de Barcelona. Por fim, serão discutidos os resultados das análises dos roteiros, demonstrando como se dá a relação descrita acima entre o cinema e imagem da cidade em Barcelona.
ROTEIRO DE ANÁLISE: TUDO SOBRE MINHA MÃE
Figuras 3 e 5. Plaça Del Duc Medinaceli e Palau de la Musica (Almodóvar, 1999)
Figura 4. Cena de Manuela em frente ao teatro esperando Huma com o filho (Almodóvar, 1999)
FICHA TÉCNICA Título: Todo sobre mi madre (Tudo sobre minha mãe) Ano: 1999 Diretor: Pedro Almodóvar Orçamento: N/A Principais Premiações: Oscar (Melhor filme em língua estrangeira), Globo de Ouro (melhor diretor), Palma de Ouro (melhor diretor), BAFTA (melhor filme de língua não inglesa e Prêmio David Lean de direção) Recebeu Financiamento da Cidade de Barcelona? N/A Sinopse: Manuela (Cecilia Roth) é uma mãe solteira que criou seu filho, Esteban (Eloy Azorín), até a idade adulta por conta própria e passou a depender emocionalmente dele. Uma noite, Manuela e Esteban assistem a uma produção de Um Bonde chamado Desejo; depois do espetáculo, Esteban é atingido e morto por um motorista que passa enquanto corre para
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a rua para conseguir um autógrafo de Huma Rojo (Marisa Paredes), que interpretou Blanche. Emocionalmente devastada, Manuela se muda para Barcelona na esperança de encontrar seu ex-marido (e o pai de Esteban), que agora trabalha como uma imitadora. Manuela se familiariza com a velha amiga La Agrado (Antonia San Juan), uma travesti e é apresentada à irmã Rosa (Penélope Cruz), uma freira de bom coração que precisa lidar com sua mãe consideravelmente cínica (Rosa María Sardà). Enquanto procura trabalho, Manuela se familiariza com Huma Rojo. Huma, por outro lado, tem seus próprios problemas, a maioria envolvendo sua namorada viciada em drogas, Nina (Candela Peña)¹
Figura 6. Hospital del Mar (Almodóvar, 1999) ¹ Tradução a adaptação feitas a partir da sinopse do site < https://www.rottentomatoes.com/m/all_ about_my_mother>. Acesso em 20 de Set. 2019
72 a imagem de barcelona no cinema: uma análise fílmica
Figura 7. La Sagrada Familia (Almodóvar, 1999)
FICHA ANALÍTICA Locais de Barcelona mostrados no filme: La Sagrada Família; Palau de la Música; Hospital del Mar; Plaça del Duc de Medinaceli, Montjuïc. Como as relações entre os personagens se dão no enredo do filme? A primeira pessoa com quem Manuela tem contato em Barcelona é sua amiga de longa data, La Agrado. Esse reencontro se dá em um local afastado da cidade, um ponto de concentração de prostituição. Apesar do iminente perigo que o local transmite, Manuela não se sente acuada, nem mesmo quando salva sua amiga (que até o momento não havia identificado) batendo com uma pedra na cabeça do homem que a agredia por sexo. Figuras 8 e 10. Ponto de prostituição afastado da cidade no qual se dá o encontro entre Manuela e Agrado e Manuela e Rosa no Hospital, quando a personagem de Penélope cruz pede à protagonista que a ajude com sua gravidez (Almodóvar, 1999)
a imagem de barcelona no cinema: uma análise fílmica 73
Figura 9. Manuela e Agrado após o ataque (Almodóvar, 1999) O segundo encontro relevante de Manuela na cidade é com Rosa, uma freira que ajuda ela e a amiga a encontrarem empregos e para que deixem a prostituição (apesar de apenas Agrado ser, de fato, prostituta). Rosa ajuda muito Manuela de três formas: num primeiro momento, tentando lhe conseguir um emprego na casa de sua família; num segundo momento, sendo cuidada pela protagonista quando descobre estar grávida do ex-marido de Manuela, Lola, o que ajuda a personagem principal a entrar em contato com a dor da perda do filho, Esteban, por estar cuidando novamente de outro ser humano; e, finalmente, quando dá a luz a seu filho, a quem também chama de Esteban, e pede para que Manuela cuide do bebê caso ela não consiga (Rosa havia contraído HIV de Lola, sua gestação havia sido bastante complicada e ela se encontrava já bem debilitada no momento do parto).
74 a imagem de barcelona no cinema: uma análise fílmica
Figura 11. Manuela atuando na peça Um Bonde chamado Desejo para ajudar Huma (Almodóvar, 1999) Uma terceira personagem importante com quem Manuela entra em contato na cidade é Huma, uma artista a quem a protagonista admira muito e que tem um papel importante na perda de seu filho. Manuela e Esteban haviam assistido à uma peça de Huma (Um bonde chamado desejo) em Madrid no dia do aniversário do filho. Como presente ele pede à mãe que esperem pela atriz pois ele gostaria de um autógrafo, e é justamente tentando consegui-lo que o garoto sofre um acidente fatal. Encontrar Huma em Barcelona a aproximar-se dela ajuda Manuela a ficar em paz com o acontecido naquela fatídica noite. Além disso, Huma é quem dá à protagonista seu primeiro emprego na cidade e também uma oportunidade de atuar em sua peça em uma noite (para substituir Nina, a namorada viciada de Huma que tem um papel importante na peça, porém não consegue atuar por estar sob o efeito de heroína). Esse momento é importante para Manuela pois ela era atriz quando jovem e seu filho desperta essa antiga paixão nela logo antes de seu acidente, dizendo que
a imagem de barcelona no cinema: uma análise fílmica 75 escreveria papéis para ela caso ela atuasse. Por fim, o último contato importante de Manuela em Barcelona é com Lola, seu ex-marido que agora se designa como travesti. Esse encontro acontece no cemitério de Montjuic durante o enterro de Rosa, que falece durante o parto de seu filho. O encontro é bastante significativo por vários fatores. Primeiro por acontecer em um cemitério, local que Manuela considera ideal para tal encontro, já que diz que Lola não é um ser humano e, sim, uma epidemia. Lola já está muito debilitada por sua doença e diz já estar no fim de sua vida. Já Manuela encontra-se no fim da sua jornada de luto e autoconhecimento que havia ido buscar em Barcelona, e esse momento é sua redenção final perante toda a dor que carregava (não apenas pela perda do filho, mas também por ter tido que fugir do ex-marido quando descobriu que estava grávida e nunca ter encontrado paz pelos abusos que sofreu em seu relacionamento com Lola, os quais ficam claros ao longo da trama).
Figura 12. Lola esperando Manuela para conhecer Estebán, seu filho com Rosa (Almodóvar, 1999)
76 a imagem de barcelona no cinema: uma análise fílmica
O que a cidade oferece ao protagonista? Barcelona oferece à protagonista uma oportunidade de mudanças profundas de vida. Ela vai à cidade buscando se resolver com suas dores, seu passado, sua perda e encontra isso ao fim de sua jornada, porém de uma forma completamente diferente da qual ela havia imaginado inicialmente. Ela vai inicialmente para buscar conforto no encontro com o ex-marido e lhe contando que eles haviam tido um filho que faleceu, porém sua dor é curada de outras formas, através do contato com outras mulheres que a ajudam e às quais ela também ajuda.
Figura 13. Local de uso de drogas nas ruas de Barcelona (Almodóvar, 1999) Como os elementos levantados acima corroboram a imagem da cidade criada pela Marca de Barcelona? A jornada da personagem principal na cidade é apenas passageira: ela vai à Barcelona com um propósito de mudança pessoal, de redenção. E a cidade oferece a ela todas as oportunidades ideais para que isso aconteça. Sempre que vai apresentar a cidade, Almodóvar dá preferência às arquiteturas modernistas catalãs que se tornaram uma das marcas da cidade. Seus planos são verdadeiros momentos de contemplação de toda a
a imagem de barcelona no cinema: uma análise fílmica 77 arquitetura da cidade (apesar de não serem de grande relevância para a trama na maioria das vezes). Percebe-se que é apenas a apresentação da cidade como um local de belas obras e espaços públicos de qualidade. A primeira imagem da cidade, inclusive, é da Sagrada Família em um plano lindíssimo, e à qual Manuela apenas contempla em silêncio. Além disso, o diretor nos leva também aos locais “menos privilegiados” da cidade, como o ponto de prostituição afastado da cidade ou às ruas da Cidade Velha onde usuários de drogas encontram-se para fazer uso de tais substâncias. Porém esses locais não parecem assustar as personagens, sendo encarados, inclusive, com certa naturalidade por parte delas. Esses pontos encaixam-se com a ideia de espaços públicos moderadamente arriscados e emocionantes que também fizeram parte da construção da imagem de Barcelona. Locais que oferecem certas aventuras à quem tiver coragem de desbravá-los. Por fim, podemos ver como a cidade é aberta à diversidade e liberdade sexual quando Manuela conta que, após dois anos trabalhando em Paris, seu ex-marido foi à Barcelona abrir um bar e que quando ela foi para lá encontrá-lo, descobriu que ele agora identificava-se como travesti, tendo inclusive colocado silicone nos seios. A protagonista descreve sua experiência durante essa época como algo que era bastante liberal, já que Lola tinha relações sexuais com várias outras pessoas mesmo estando casada com Manuela. Além disso, na época em que abriram o bar, o casal era exatamente o estereótipo almejado pela cidade: jovens, sem filhos, com trabalhos liberais, boêmios. Aqui vemos também a sexualidade escandalosa típica de Almodóvar que fez parte da construção da imagem de uma nova Espanha redemocratizada (e que também, de certa forma, faz parte da Marca de Barcelona com suas infinidades de oportunidades sexuais).
ROTEIRO DE ANÁLISE: O ALBERGUE ESPANHOL
Figuras 14 e 16. Via Laietana e Universi- FICHA TÉCNICA dade de Barcelona (Klapisch, 2002) Título: L'auberge Espagnole (O Albergue Espanhol) Ano: 2002 Diretor: Cédric Klapisch Orçamento: EUR$ 5.300.000,00 (estimado)² Principais Premiações: European Film Awards (melhor diretor europeu) Recebeu Financiamento da Cidade de Barcelona? N/A Sinopse: Xavier (Romain Duris) é um estudante de economia francês que está se aproximando da conclusão de seu curso e está procurando emprego. O pai de Xavier providencia para que ele encontre um membro bem posicionado do Ministério das FinanFigura 15. Xavier chegando a Barcelona (Klapisch, 2002)
a imagem de barcelona no cinema: uma análise fílmica 79
ças, que faz uma oferta - ele pode lhe dar um bom emprego, mas apenas sob a condição de que ele aprenda a falar espanhol. Determinado a não deixar passar a oportunidade, Xavier se matricula em um programa de pós-graduação em Barcelona, apesar das dúvidas de sua namorada, Martine (Audrey Tautou). Após sua chegada, Xavier se muda para uma casa grande compartilhada por um grande grupo de estudantes de toda a Europa. Xavier descobre que suas ideias e atitudes são desafiadas de maneira positiva pelas diversas personalidades de seus colegas de casa e que sua lealdade a Martine é testada por sua atração por Anne-Sophie (Judith Godrèche), uma mulher doce, mas solitária da França que esteve longe do marido por muito tempo.³
² Fonte: < https://www.imdb.com/title/tt0283900/>. Acesso em 20 de Set. de 2019 ³ Tradução e adaptação feitas a partir da sinopse do site <https://www.rottentomatoes.com/m/lauberge_espagnole>. Acesso em 20 de Set. de 2019
80 a imagem de barcelona no cinema: uma análise fílmica
Figura 17 e 18. Parc Güell e La Sagrada Familia (Kaplisch, 2002)
a imagem de barcelona no cinema: uma análise fílmica 81
Figura 19. Bairro Gótico (Kaplisch, 2002) FICHA ANALÍTICA Locais de Barcelona mostrados no filme: Via Laietana; Plaça Reial; Parc Güell; the beach at Barceloneta; the Ramblas; University of Barcelona; La Sagrada Familia; La Paloma; Bar Iposa. Como as relações entre os personagens se dão no enredo do filme? O personagem chega à cidade sem conhecer ninguém. As primeiras pessoas com quem Xavier tem contato são Jean-Michel e Anne-Sophie, um casal francês. O marido já mora em Barcelona há um tempo – ao contrário da esposa que é recém-chegada da França. Nesse encontro, Jean-Michel apresenta a cidade de Barcelona bastante entusiasmada, ressaltando o quanto a cidade é cheia de programas boêmios para os jovens, como ela possui restaurantes ótimos, uma vida noturna agitada entre várias outras características que são consideradas altamente atrativas ao público jovem. Esse encontro é importante, pois é o casal que irá acolher Xavier em sua casa nos primeiros dias do jovem na cidade.
82 a imagem de barcelona no cinema: uma análise fílmica O segundo encontro de Xavier é com seus colegas de classe, especialmente com Isabelle, uma jovem que desenvolverá uma amizade próxima com o protagonista e também irá morar com ele mais à frente. O terceiro contato importante que o protagonista faz é com seus colegas de casa, quando Xavier se muda para o que ele chama de “albergue espanhol”. O personagem encontra ali uma enorme diversidade de culturas e aprende constantemente com eles. O que a cidade oferece ao protagonista? Primeiramente o personagem encontra na cidade de Barcelona uma oportunidade única de aprender sobre diversidades culturais, a respeitá-las e como várias culturas podem se concentrar no mesmo indivíduo sem que isso seja contraditório ou excludente, mas, sim, complementar. Essa temática da diversidade cultural aparece em diversos momentos: quando o professor da universidade diz que não deixará de dar as aulas em catalão, quando Xavier está conversando com seus amigos da
Figura 20. Momento em que os personagens estão discutindo sobre a diversidade cultural da cidade (Kaplisch, 2002)
a imagem de barcelona no cinema: uma análise fílmica 83 universidade sobre suas origens e, também, dentro da própria casa do protagonista com o encontro de diversas culturas e como elas convivem (há moradores da Inglaterra, Itália, Alemanha, outras partes da Espanha, França, etc). Além disso, Xavier encontra um cidade fervilhante, pronta para lhe ensinar sua cultura, sua língua, para lhe propiciar aventuras que ele jamais pensaria em viver em Paris, como a noite em que os amigos saem para dançar e depois vagam embriagados pela cidade, apreciando o momento que estão passando juntos, cantando, conhecendo pessoas novas. Barcelona também se mostra, desde o começo, ansiosa para oferecer novas experiencias sexuais. Xavier encontra na figura de sua amiga lésbica Isabelle uma figura muito importante, que lhe ensinará como dar prazer ao corpo feminino e incentivará as aventuras do amigo. Esses ensinamentos entram em prática com Anne-Sophie, a esposa do médico francês que o abriga no começo de sua jornada na cidade.
Figura 21. Momento em que Isabelle dá ensinamentos sexuais a Xavier (Kaplisch, 2002)
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A cidade dá a Xavier uma oportunidade de descontruir suas verdades e aprender uma nova forma de viver, bastante diferente da que ele vivia na França. Além disso, a experiência única que o protagonista vive na cidade o inspira a começar a escrever sobre tudo o que está aprendendo lá, um sonho de criança que havia ficado adormecido. Como os elementos levantados acima corroboram a imagem da cidade criada pela Marca de Barcelona? Todos os elementos levantados anteriormente, assim como em Vicky Cristina Barcelona, também corroboram a ideia de Barcelona que se criou para a Marca. A cidade se impõe como algo completamente diferente da simples experiência espanhola, já que se trata de uma cidade catalã. Porém reforça o tempo todo o respeito às diversidades culturais e como todas podem facilmente conviver dentro dessa Capital Global que é Barcelona, como Barcelona é uma cidade para todos. Ela novamente se mostra como um lugar onde a ideia capitalista neoliberal de experiências que te melhoram e tornam mais apto à ser “bem sucedido”, experiências essas que apenas poderiam ser vividas em Barcelona com suas características únicas de Capital Cultural Global, apreço à arte e um lugar onde as mais diversas aventuras tomam forma. Um verdadeiro estímulo para a criatividade. Mais uma vez a imagem de Barcelona é colocada como uma cidade extremamente liberal sexualmente e onde a sedução é parte natural da cultura do local. Além disso, boemia, jovens solteiros, estudantes. O filme traz novamente o perfil que a cidade tentou criar como turista e cidadão perfeito para Barcelona, assim como em Vicky Cristina Barcelona. Considerações Pessoais: É interessante ver como Paris é retratada no começo do filme. O diretor a coloca como uma cidade monótona e absurdamente burocrática. Xavier não experimenta grandes emoções em sua cidade natal, apenas vive sem se questionar sobre o que está acontecendo. Ele apenas se entrega à burocracia e à frigidez da cidade francesa.
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Figura 22. Momento em que Xavier Visita o Ministério da Econonomia, Finanças e Industria em Paris. O protagonista precisa passar por duas portarias e uma secretária para conseguir chegar à sua reunião (Klapisch, 2002) Tudo isso muda completamente quando, a partir de suas experiências em Barcelona, ele descobre um novo modo de viver, livre, caloroso, emocionante. Um modo de viver que não respeita burocracia, que não liga para convenções sociais. Assim, quando volta para Paris, ele já não mais consegue viver da mesma forma de antes, já não consegue seguir os planos que havia traçado inicialmente. Ele deixa o trabalho extremamente burocrático para o qual havia se preparado e vai buscar seu sonho de ser escritor, justamente escrevendo sobre suas experiências no albergue espanhol.
ROTEIRO DE ANÁLISE: VICKY CRISTINA BARCELONA
Figura 23 e 25. La Sagrada Familia e Casa Milá (Allen, 2002)
FICHA TÉCNICA Título: Vicky Cristina Barcelona Ano: 2008 Diretor: Woody Allen Orçamento: $15.500.000,00 (esti4 mado) Principais Premiações: Oscar (melhor atriz coadjuvante), BAFTA (Melhor Filme – Comédia ou Musical) Recebeu Financiamento da Cidade de Barcelona? Sim, aproximadamente $1.500.000,00 5 Sinopse: Vicky (Rebeca Hall) e Cristina (Scarlett Johansson), são duas jovens americanas que vão passar um verão na Espanha e conhecem Juan Antonio (Javier Bardem) um
Figura 24. Cristina e Juan Antonio fotografando por Barcelona (Allen, 2002)
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artista flamejante e sua linda, porém insana, ex-mulher Maria Elena (Penélope Cruz). Vicky é heterossexual e está prestes a se casar. Cristina é um espírito livre e sexualmente aventureiro. Quando todos se tornam 6 amorosamente envolvidos, surgem resultados cômicos e angustiantes.
Figura 26. Tibadabo (Allen, 2002) Fonte: <https://www.imdb.com/title/tt0497465/ >. Acesso em 20 de Set. de 2019 Fonte: < http://news.bbc.co.uk/2/hi/entertainment/6922536.stm>. Acesso em 20 de Set. de 2019 6 Tradução e adaptação feitas a partir da sinopse do site < https://www.rottentomatoes.com/m/vicky_ cristina_barcelona/>. Acesso em 20 de Set. de 2019 4 5
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Figura 27. Parc Güell (Allen, 2008)
FICHA ANALÍTICA Locais de Barcelona mostrados no filme: La Sagrada Família; Parc Güell; Casa Milà (La Pedrera); Tibadabo; Miró Museum; Las Ramblas; El Gòtic; Els 4 Gats; Santa María del Mar; Olympic Port Como as relações entre os personagens se dão no enredo do filme? Vicky e Cristina já se conhecem no começo do filme, portanto a relação delas não começa na cidade. A primeira pessoa com quem as duas fazem contato na cidade é com uma parente distante de Vicky, a Judy. Esse encontro é repleto de uma hospitalidade gentil e atenciosa. O segundo encontro importante das amigas é com Juan Antonio, um artista barcelonês. Cristina fica intrigada com Juan em uma galeria de arte em que ambas estão por conta de uma exposição, mas o primeiro contato entre os três se dá no restaurante 2 gatos (4 Gats), famoso por ter sido frequentado por personalidades como Picasso e Gaudí. Esse encontro é bastante interessante, pois Juan propõe às amigas uma viagem a Ovideo no avião de um conhecido que ele mesmo pilotará, e oferece às garotas passeios, boa comida e bebida e, com alguma sorte, sexo, uma proposta carregada de aventura e descoberta.
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Figura 28. Encontro de Vicky e Cristina com Juan Antonio no Els 4 Gats (Allen, 2008) Um terceiro encontro importante é o de Cristina com Maria Elena, a ex-mulher de Juan Antonio. Cristina a conhece quando Juan precisa ir buscá-la no hospital após uma tentativa de suicídio por parte da personagem de Penélope Cruz. Num primeiro momento há uma certa tensão entre as duas personagens, principalmente por parte de Maria Elena. Mas, mesmo com um certo distanciamento inicial, a ex-mulher do artista se aproxima de Cristina, pois sua curiosidade é maior e, em pouco tempo, as duas estão bastante próximas. O que a cidade oferece ao protagonista? Além de boemia e relações sexuais sem comprometimento, a cidade oferece às garotas todo um ambiente que transpira a arte e conhecimento. Vicky de fato vai à cidade incialmente para estudar a cultura catalã para seu mestrado. A cidade oferece também, no papel de Juan, aventuras e oportunidades inusitadas às garotas, algo que é apreciado com maior entusiasmo por Cristina. Além disso, Maria Elena e Juan trazem à Cristina inspiração e incentivo para que ela possa se encontrar e desenvolver sua arte com a fotografia.
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Figuras 29 e 30. Maria Elena leva Cristina para fotografar pela cidade e acaba posando para ela, inspirando e incentivando a protagonista a desenvolver sua arte e depois na sala de revelação observando os avanços do trabalho da protagonista na arte da fotografia (Allen, 2008)
a imagem de barcelona no cinema: uma análise fílmica 91 Vicky ganha com suas experiências na cidade uma oportunidade de repensar e reavaliar suas verdades pessoais e de se libertar daquilo que já não faz sentido, principalmente em relação às suas escolhas de vida, como o noivado com a “pessoa segura” (oportunidade que, ao final do filme, a protagonista não aproveita, já que decide casar-se com seu noivo). Nesse sentido, a cidade dá às garotas um lugar propício ao autoconhecimento e ao aprimoramento pessoal através de todo seu capital cultural. Como os elementos levantados acima corroboram a imagem da cidade criada pela Marca de Barcelona? O filme é uma verdadeira Ode à cidade de Barcelona e uma exaltação da sociabilidade mediterrânea que caracteriza a Marca da cidade. Todos os aspectos mencionados acima corroboram imensamente a imagem que se criou para Barcelona. Os personagens são jovens, solteiros e sem filhos, com profissões liberais (estudante, fotógrafa, artistas), ou seja, são exatamente o tipo de turista e cidadão que as propagandas dos anos 1980 buscavam criar. Além disso, a cidade oferece o tempo todo às duas turistas tudo aquilo que a Marca de Barcelona promete: arquiteturas de excelência, vida próspera nas ruas, comida exuberante, clima quente e ensolarado, vida à beira-mar, espaços públicos de qualidade e também alguns moderadamente arriscados e emocionantes (que, além de fisicamente se apresentar como o bairro de El Gòtic e suas prostituas (mostrados na Figura 28), também se traduze como características de Maria Elena, que é um pouco ameaçadora para Cristina num primeiro momento, porém torna-se fundamental na caminhada de aprimoramento de sua arte).
Figura 31. Prostitutas nas ruas do bairro El Gòtic acenando para Cristina e Juan Antonio quando ele a leva para fotografar a cidade por ângulos interessantes e diferentes. (Allen, 2008)
92 a imagem de barcelona no cinema: uma análise fílmica A cidade apresenta-se exatamente como um lugar que traz oportunidades que não seriam oferecidas às personagens em nenhuma outra cidade (em nenhuma das outras Capitais Globais, nem mesmo em Nova York, de onde as protagonistas vêm). Considerações Pessoais: Além dos aspectos já mencionados, vale ressaltar a primazia com a qual Woody Allen retrata a cidade tecnicamente. Seus enquadramentos são absolutamente valorizadores para Barcelona, enquanto NY, por exemplo, não ganha o mesmo tratamento no filme.
Figuras 32. Noivo de Vicky em Nova York (Allen, 2008)
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4.1. Considerações Finais das Análises Ao fazermos as análises das fichas desenvolvidas, podemos perceber que todos os filmes possuem diversas características que os aproximam e algumas que os distanciam. Porém, de modo geral, todos eles reforçam e se utilizam abundantemente de todas os traços da Marca de Barcelona como embasamento paras seus enredos. Um ponto compartilhado entre todos é o fato de a cidade ser vista como um lugar onde os personagens vão apenas por um período afim de alcançar determinados objetivos, seja se educar ou tentar se encontrar dentro de seus anseios e perspectivas de vida. De modo geral a cidade proporcionada uma drástica mudança de vida nos personagens principais, transformações que os ajudam a seguir suas vidas de uma forma melhor. Outra característica comum aos três filmes que é bastante explorada é a sexualidade aflorada e liberal que a cidade proporciona e transpira. Todos os personagens tiveram, em algum momento, experiências sexuais na cidade que não teriam tido em outro lugar (traição nos casos de Xavier e Vicky, um relacionamento poli amoroso no caso de Cristina ou o casamento aberto com uma travesti no caso de Manuela). Os três diretores exploram espaços muito conhecidos da cidade e exaltam sua história, arquitetura e espaços públicos. Em maior ou menor grau, exploram também o espírito boêmio da cidade, a juventude e a diversidade, traços chave na caracterização de Barcelona criada através dos anos. A cidade é sempre colocada como um lugar liberal, à frente de seu
94 a imagem de barcelona no cinema: uma análise fílmica tempo, onde as pessoas não temem ser diferentes, um lugar em que todos os modos de vida são aceitos e explorados livremente. Isso faz parte também da construção dos espaços públicos moderadamente perigosos, que são mostrados como lugares fascinantes, com uma beleza peculiar que só é explorada aos olhos daqueles que sabem ver além das aparências. A arquitetura, em especial, vem para dar o tom da cidade, como lugar de cultura, de arte, de bom gosto, de intelectualismo. Essas características foram cruciais na construção da imagem de Barcelona como Capital Cultural Global e são reforçadas o tempo todo nos filmes analisados, tanto com o enredo quanto com imagens. Quanto às diferenças entre os filmes, podemos apontar os enfoques principalmente. As diferenças claras de enredo mostram também as diferenças entre as visões que cada diretor representa. Woody Allen, um diretor estadunidense, mostra a cidade de maneira mais entusiasmada e bastante romântica. É o diretor que mais valoriza a arquitetura, os pontos turísticos, a cultura, quase como uma adoração à essas características, tudo é constantemente exaltado. Conhecer esses aspectos e lugares, aliás, é o maior estímulo que leva as amigas à cidade, tendo em vista que o mestrado de Vicky é, justamente, sobre a cultura catalã. Podemos perceber que seu modo de tratar a cidade se aproxima muito de uma utopia. Vicky Cristina Barcelona é o filme que mais se apropria de todas as características que compõe a Marca de Barcelona. Já Cédric Klapisch, um diretor francês, traz uma perspectiva um pouco diferente da cidade. Ele, assim como Woody Allen, também mostra os pontos turísticos, mas a forma como
a imagem de barcelona no cinema: uma análise fílmica 95 o faz é um pouco menos romântica. O principal aspecto utilizado pelo diretor é como a cidade é capaz de abrigar uma imensa gama de culturas diferentes, que propiciam vivências inovadoras a seus visitantes. Além disso, o espírito boêmio e jovem da cidade também é bastante ressaltado no enredo. Percebemos que a visão que o restante da Europa (aqui representada pelo francês) é de que Barcelona é, antes de mais nada, um local de extrema liberdade e diversidade. O principal é o capital cultural da cidade, o que inclui a diversidade de pessoas que se encontram ali. Por último, temos a visão de Pedro Almodóvar, um espanhol. O diretor já passa uma visão incomparavelmente menos romântica da cidade que os outros dois. Almodóvar traz abertamente os lugares marginalizados da cidade para a tela (apesar de não os colocar como perigosos). O foco dele não é exaltar as peculiaridades de Barcelona, mas as usar como ferramentas de cura da protagonista. Vemos, claro, a diversidade sexual, as belas arquiteturas, o espírito cultural da cidade (Huma é uma atriz e o teatro tem um papel bastante central na trama e na vida de Manuela), mas tudo serva à um propósito maior que é a cura e redenção da personagem principal. Conclui-se portanto que, apesar das diferenças de visão, todos os filmes analisados usam e reproduzem as características da Marca de Barcelona, reforçando ainda mais, através da cultura fílmica, a imagem construída pela cidade desde os anos 1980 por conta dos Jogos Olímpicos de Barcelona de 1992 e que se aprimorou e perpetuou durante os anos 1990 e continua até os dias atuais, vendendo a cidade como Capital Cultural Global.
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consideraçþes finais
98 considerações finais Construir o espaço, e em especial a cidade, é, antes de mais nada, uma ação cultural. Como discutido nos dois primeiros capítulos do presente trabalho, a paisagem urbana é uma construção sociocultural, dada pelo trabalho sobre o território baseado em ideologias e conceitos impostos aos cidadãos através da cultura. No caso de uma sociedade de classes como a nossa, é importante afirmar que a cultura de massa, ferramenta essencial no controle social, tem papel fundamental nessa formação das ideias que serão refletidas no espaço. A construção do espaço físico começa, portanto, nas ideias que se têm sobre ele, que devem refletir os interesses da ordem vigente. Assim, aquilo que a Indústria Cultural impõe à exaustão à população é apenas um reflexo daquilo que se quer transformar em realidade. Os meios para tal manipulação são infinitos. A regularidade com que determinados fatos são noticiados no jornal, por exemplo, mudam completamente a percepção dos cidadãos com relação ao mundo à sua volta. Se muitos crimes são anunciados pela mídia num curto período de tempo, tem-se a impressão de que a criminalidade aumentou (o que pode facilmente não ser a realidade, mas é como a ação é refletida). A concepção de cidade virtual trazida por Lucrécia D’Aléssio Ferrara ganha especial importância nesse contexto. Os lugares são construídos pelas ideias disseminadas pelos meios de comunicação e a cidade tradicional se torna apenas uma âncora física que dá uma dimensão concreta àquilo que já foi edificado ideologicamente.
considerações finais 99 O cinema, como ferramenta da cultura de massa, tem um papel especial na construção da imagem da cidade por conta de suas características únicas como arte. O movimento das imagens simula algo que é natural para o ser humano: o movimento dos olhos. Essa imitação tem grande apelo psicológico, pois traz o que Metz chama de Impressão de Realidade. Além disso, a sétima arte é também emocionalmente apelativa: não há distanciamento entre nós e o personagem; vemos o mundo através dos olhos dele e, por isso, suas crenças tornam-se nossas também. Por todas essas características, o cinema é a única arte capaz de se internalizar nos seres humanos de tal forma que se confunde com suas próprias memórias. Isso faz com que seja uma poderosa forma de manipulação da realidade e construção de ideais, que pode ser utilizada para moldar, obviamente, a opinião pública sobre determinados espaços, construir imagens de cidades e vendê-las ao mundo. Barcelona é um exemplo bem-sucedido disso. A cidade durante o processo de redemocratização pós ditatura franquista conseguiu se desfazer da imagem de centro industrial falido, colocando-se como um local de valorização da cultura catalã, da arquitetura, da arte. Vendeu-se mundialmente como sede ideal para os Jogos Olímpicos de 1992. Manipulou e remodelou, através da propaganda, sua população para que a opinião pública geral fosse favorável a tal ato. Ganhou milhões em investimento para que reformas de todos os tipos ocorressem, ressaltando estrategicamente aquilo que havia sido construído como ideia na mídia. O sucesso dessa construção de imagem foi selado com
100 considerações finais os Jogos em si, quando turistas e a mídia mundial observaram que a cidade havia se tornado, de fato, tudo aquilo que havia se proposto a ser. A partir desse momento, Barcelona passa a ser uma Marca, a marca de uma cidade que agora é um dos pontos turísticos mais visitados do mundo, sede dos maiores eventos culturais mundiais e centro de negócios altamente relevante no cenário Europeu e global. Essa Marca de Barcelona como Capital Culturas Global precisa ser reforçada e ainda mais vendida no período Pós Jogos. Uma das formas que a cidade encontra para tal finalidade é através do financiamento – direto ou indireto – de filmes que tenham Barcelona como plano de fundo. A cidade possui, inclusive, uma comissão destinada exclusivamente à promoção, facilitação e incentivo de produções cinematográficas em Barcelona (a Barcelona Film Comission). A construção dos espaços é uma ação constante, principalmente por serem uma realização histórico-cultural. Consequentemente, a formação da imagem de uma cidade está acontecendo o tempo todo. As análises feitas dos filmes Vicky Cristina Barcelona, o Albergue Espanhol e Tudo sobre minha mãe mostram como as características da Marca Barcelona são utilizadas pelos enredos dessas produções para promover a cidade e construir continuamente sua imagem perante o mundo. O poder de sedução e manipulação do cinema tem consequências reais para Barcelona, pois incentiva o turismo da cidade e a mantém relevante política e economicamente nos cenários europeu e mundial. Conclui-se, portanto, que o cinema pode construir cidades, a partir do momento que elas surgem primeiro como
considerações finais 101 ideias e depois como ação concreta: a materialização do espaço só é possível após sua concepção ideológica, que só acontece por meio da cultura e seus veículos de comunicação. O cinema, por todas suas peculiaridades, torna-se uma ferramenta muito incisiva na criação de verdades, imagens e imaginários ligados ao espaço urbano, e o caso de Barcelona, como discutido nesse trabalho, corrobora integralmente essa tese.
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