Sextante:Celebração

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Sextante: Celebração

“puta festa”


Editori

riais

Editorial

É de suma importância que o jornalista não deixe o leitor em paz. Cabe a ele denunciar os problemas da vida em sociedade, questionar as injustiças e as desigualdades. A ânsia por realizar um trabalho de interesse público faz com que os temas mais recorrentes no jornalismo sejam fome, miséria, falta disso ou daquilo — trabalho indispensável, diga-se. No entanto, o olhar que só mostra as mazelas do mundo oculta a beleza que o homem é capaz de produzir, transformando o mundo e a si mesmo, gerando valores como autoestima, amizade e sabedoria. Hoje o avanço das comunicações nos permite saber que morreram milhares de pessoas em um terremoto do outro lado do mundo, mas temos pouquíssima informação sobre a cerimônia de Santo Daime que ocorre pertinho lá de casa,

ou sobre o grupo de teatro que existe há décadas na nossa cidade. São oportunidades de convívio desperdiçadas por uma sociedade que, bombardeada por toda sorte de notícias ruins, só pode ficar cada vez mais medrosa. A escolha do tema Celebração teve talvez o objetivo egocêntrico de realizar um trabalho “diferente”. Mas é possível que a escolha mostre ainda um desejo de dizer SIM. Sim à vida, ao ser humano. De mostrar que atrás dos muros e grades que erguemos há pessoas que se divertem, que têm esperança e que há muita coisa boa para se conhecer nesse mundão. E bem mais perto do que se imagina. Imbuídos desse espírito decidimos que um dos critérios para realização das matérias seria participar da festa sobre

a qual escreveríamos. Todos nós deveríamos, portanto, celebrar. No entanto, mesmo esse ato primitivo mostrou-se complexo. As celebrações escolhidas foram dos rituais religiosos mais variados (de catolicismo a bruxas), às manifestações culturais de uma roda de samba e uma rave; até formas menos ortodoxas de celebração, como o culto ao sexo e a exaltação de torcidas de futebol enfurecidas. Entre relatos empolgados e olhares desiludidos, acreditamos que esta Sextante prova que, assim como os rituais, o jornalismo é uma construção do homem, e pode tomar a forma que o jornalista quiser. Esperamos ter construído retratos singelos, porém intensos, da vida humana.

Uma alegre subversão “O mestre, assim, não está destinado a aplainar no campo das relações, mas transformá-lo; não a facilitar os caminhos do saber, mas, antes de mais nada, a torná-los não apenas difíceis, mas propriamente instransponíveis; o que a tradição oriental da atividade do mestre mostra muito bem. O mestre não dá coisa alguma a conhecer que não permaneça determinada pelo ‘desconhecido’ interminável que ele representa, desconhecido esse que não se afirma pelo mistério, o prestígio, a erudição, daquele que ensina, mas pela ‘distância infinita’ entre A e B.” Maurice Blanchot A mídia corporativa é um Museu de tragédias. Vivemos grande parte do semestre marcado por duas delas. A morte da menina Isabella. O maior terremoto da história da China nos meses que antecedem a abertura de uma Olimpíada. Algumas dessas tragédias são regis-

tradas a partir de um entendimento meramente jornalístico. Como uma singularidade. Outras, não. Transformamse em matéria-prima para a produção de bens simbólicos. De subjetividades que hegemonizam e constróem uma engenharia de consenso, reacionário. Muitas Isabellas morrem em nosso país todos os dias. O jornalismo visto em seu sentido mais tradicional, ou seja, como uma prática de subversão, muitas vezes é confundido com uma atitude de negatividade. Com uma prática que busca permanentemente o lado sombrio e triste da vida, do cotidiano. Engano. Com o tema celebrações, este exemplar da revista Sextante é visceralmente subversivo. Talvez não exista nada mais subversivo, nos tempos atuais, do que a alegria em suas mais diversas manifes-

tações. Não por acaso não existe uma pedagogia do riso. Não rimos na academia, local onde, com alguma freqüência, alternam-se práticas autoritárias ou de alto grau de cinismo. Esta turma pode até não ter se dado conta, mas está disponibilizando um exemplar que é uma competente demonstração de que jornalismo é subversão até mesmo quando retratamos a alegria. Não estamos vendendo nada. E muito menos ainda subjetividades. Não tivemos como parâmetro o jornalismo da mídia corporativa. Por isso mesmo, o resultado final é muito bom. Wladymir Ungaretti


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Sumário 8 A maior celebração da terra

Trinta anos de luta pela essência do teatro 4 Viva São Jorge 11

14 Sofazão: do jeito que o padre gosta

Uma viagem pelo universo 18

22 Um culto às tradições gaúchas

Uma tradição de fé 24

27 Mestre marginal documenta a cultura brasileira

O palco é de todos 30

34 Um mundo à parte

Corrida maluca 36

38 Diferentes , mas com alguma coisa em comum 44 Vivendo a Amazônia em plena Porto Alegre: é o Santo Daime 50 O gaúcho bom sujeito é… 54 Domingo de

Futebol

De Kapri a Juliane 40

Festa GLS: uma celebração da diversidade 48 Em honra ao amor 52 Leitão no rolete, uma região em festa 56

Expediente

Comissão Editorial: Anna Magagnin, Felipe Prestes, João Coimbra, Júlia Dantas e Suzana Pohia Revisão: Anna Magagnin, Bruna Maia, Cristiana Simon, Felipe Prestes, João Coimbra, Júlia Dantas e Suzana Pohia Projeto Gráfico: Guilherme Machiavelli (http://ornitorrincos.com – gt.macki@ gmail.com) Revisão Gráfica: Joseane Demeneghi Reportagem: Aline Duvoisin, Anna Magagnin, Anne Ledur, Carla Bagatini, Dalva Bavaresco, Daiana Vivan, Denise Waskow, Emanuela Pegoraro, Emily Nunes, Felipe Prestes, Flávio Aguilar, Gustavo Skrotzky, João Coimbra, Júlia Dantas, Leonardo Mazzarolo, Luís Felipe dos Santos, Maria Rita Horn, Paulo Rocha, Suzana Pohia, Wesley Kuhn e Tales Gubes


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30 Anos de luta pela essência do teatro Maria Rita Horn mrita_horn@yahoo.com.br

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uem passou pelo Brique da Redenção naquele primeiro domingo de abril de 2008 em Porto Alegre não conseguiu ignorar o chamado: “Vem meu amor, vamos chegar, que o teatro de rua já vai começar”. A Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz não poderia deixar de festejar seus 30 anos em um de seus palcos preferidos — a rua. Junto a alguns participantes da escola de samba Unidos de Vila Isabel, de Viamão, mais de uma centena de integrantes do Ói Nóis invadiu a Avenida José Bonifácio para realizar a parada de rua Ensaio Geral para o Carnaval do Povo. Os atuadores — como os integrantes do grupo se denominam — desfilam e chamam as pessoas para participar, seja por meio de um aperto de mão, de um aceno, de um olhar profundo, como quem convida o público a fazer parte do espaço

na simulação de uma cirurgia, médicos retiravam as vísceras — verdadeiros pedaços de carne crua — dos pacientes e arremessavamnas ao ar, caíssem onde caíssem

Hoje referência nacional em termos de grupo teatral, a Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz já foi marginalizada no início de sua formação por buscar fazer um teatro diferente daquele oferecido nos espaços burgueses

cênico, a interferir e a construir o espetáculo. As trancinhas arqueadas com arame e o rosto pintado da atriz e estudante de Filosofia Marta Haas, 24 anos, há sete anos no Ói Nóis, chamam a atenção das crianças. Da mesma forma impressionante, o olhar de Marta, que penetra e convida o espectador — seja quem for, adulto, criança, idoso, morador de rua —, confirma o que a atuadora tenta explicar em palavras quando lhe perguntam por que fazer parte da Tribo lhe encanta: “Pela possibilidade do encontro entre seres humanos”. A frase é um exemplo do porquê o grupo tem como principal referência o autor de O Teatro e seu Duplo (Le Théâtre et son Double, Paris, 1938), o francês Antonin Artaud. Para ele, cultura e vida estão do mesmo lado. Da multidão que pára para ver o grupo passar, no meio de uma estranheza ou outra em alguns rostos e comentários como “Que maluquice é essa?”, percebem-se também os sorrisos de portoalegrenses que os reconhecem e dizem “Bah, esse grupo existe faz tempo”. Realmente, 30 anos de utopia, paixão e resistência, como o próprio grupo gosta de frisar, não é pouco. Assim como não foram poucos os obstáculos pelos quais a iniciativa teve de enfrentar. Gesta-

do em 1977 (período final da ditadura militar), com data de nascimento em 31 de março de 1978, o grupo, fundado por Paulo Flores, Júlio Zanotta Vieira e Rafael Baião, tem escrita em sua linha do tempo a constante luta por espaços. Somente em um local próprio o Ói Nóis poderia buscar a construção do Teatro de Vivência, ou Teatro Ritual — o contato direto do ator com o espectador e sua integração com o espaço cênico. A Tribo, marginalizada e incompreendida por alguns anos, hoje é considerada um dos principais grupos de teatro do país. Suas primeiras apresentações, em uma ex-boate que alugaram na Rua Ramiro Barcelos, foram as peças A Divina Proporção e A Felicidade não Esperneia, Patati, Patatá. Já de início, o grupo causou polêmica. Além de o público ficar cercado por arame farpado, um técnico da peça bebia um litro de leite que respingava para todos os lados, em um momento de A Divina… Em A Felicidade…, na simulação de uma cirurgia, médicos retiravam as vísceras — verdadeiros pedaços de carne crua — dos pacientes e arremessavam-nas ao ar, caíssem onde caíssem.


5 Assim como suas influências — o teatro radical norte-americano dos anos 60 era uma delas, representado por grupos libertários como o Living Theater — o Ói Nóis encontrou muita resistência nos seus primeiros anos de trabalho. Nem todos entendiam as intervenções que realizava em outros espetáculos. Em abril de 1979, durante apresentação de Liberdade, Liberdade, dirigida por Carlos Carvalho, Adauto Ferreira, integrante do Ói Nóis, levantou-se da platéia e foi até o palco, onde fez uma crítica do que era apresentado. Uma semana após o ocorrido, o dramaturgo Plínio Marcos, ao saber que havia integrantes do Ói Nóis na apresentação de sua peça Sob o Signo da Discoteca, fez questão de frisar de que em seu espetáculo não haveria bagunça. Eles permaneceram em silêncio durante a apresentação, mas, durante o debate que se seguiu, foram chamados de fascistas e piolhentos pelo autor. Não demorou muito para os insultos virarem pancadaria.

o teatro tem potencial para trazer novas reflexões para mudanças das mentalidades Nóis Aqui Traveiz. “O atuador, para nós, seria o artista consciente. Como a gente acredita que o teatro tem o potencial para levantar várias questões, trazer novas reflexões para mudanças das mentalidades, do pensamento, a gente acredita também em um artista consciente disso”, explica Paulo Flores, 52 anos, único dos fundadores do Ói Nóis que permaneceu no grupo. “O atuador seria uma fusão entre o artista e o ativista político. Político no sentido mais amplo da palavra, como aquele que tem consciência de que é necessária a interferência do indivíduo na organização da sociedade, nos conflitos, em tudo que está aí presente no nosso dia-a-dia”. Paulo reforça que o atuador também seria o artista consciente de todas as fases da criação, desde a adaptação ou criação do roteiro até a encenação.

Por que “tribo”? Por que “atuadores”?

Paulo Flores, único fundador do grupo a permanecer na Tribo até hoje

maria rita horn

No ano de 1981, o Ói Nóis foi para as ruas. Participou de manifestações como o Dia Mundial do Meio Ambiente, em 5 de junho — protesto à construção de usinas nucleares, ao Pólo Petroquímico e à poluição do rio Guaíba (na verdade lago) que abastece Porto Alegre. O grupo passou a ser visto em todas as reuniões de pessoas em torno de causas sociais. A vontade de sair das salas fechadas para o espaço aberto começou a tomar consistência em sua segunda sede, um sobrado antigo na Rua Ramiro Barcelos, 228, que não foi convertido em casa de espetáculos, mas em laboratório de pesquisa. Desse contexto que nasceu a identidade de Tribo de Atuadores Ói

Tribo, segundo Flores, “vem do projeto de uma nova sociedade, baseada no compromisso individual, nas relações

diretas, em algo solidário. A sociedade burguesa prega: liberdade, igualdade, fraternidade. E a gente vive numa sociedade totalmente contrária a isso. A busca de uma sociedade justa e solidária, que é o sonho do Ói Nóis, que movimentou o Ói Nóis lá em 78, quando o grupo foi criado, é o que leva o grupo à frente. Nesse sentido, arte e política sempre estiveram presentes no nosso trabalho”.

A Terreira da Tribo Depois de abandonarem mais um local, no início de 1982, a tribo ficou sem espaço próprio até 1984, quando descobriram o casarão de dois andares na Avenida José do Patrocínio, na Cidade Baixa, o qual ficou conhecido como Terreira da Tribo. Mesmo com a valorização dada pelo grupo ao teatro de rua, eles precisavam de um local. “A gente sempre teve preocupação de ter um espaço. Nunca foi próprio, sempre locado, sofrendo todos os problemas que é alugar um local. Mas sempre a gente manteve, porque, para nós, o local era a base para uma criação independente. Ali, no nosso espaço, nós poderíamos, a princípio,


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Dentro desse novo espaço que nasceram as Oficinas de Teatro Livre, em 1985, gratuitas e abertas a toda a comunidade. A ação se multiplicou e muitas outras oficinas passaram a ser oferecidas, como as de Experimentação e Pesquisa Cênica, de Expressão e Movimento, de Teatro de Rua, entre outras. Com o tempo, a Terreira perdeu o caráter de Centro Cultural para ganhar o de Centro de Experimentação e Pesquisa Cênica.

A busca de uma sociedade justa e solidária é o que leva o grupo à frente A partir da montagem de A História do Homem que Lutou sem Conhecer seu Grande Inimigo (1988), a tribo colocou no papel o projeto Caminho Para um Teatro Popular, que tinha o objetivo de propagar a verdadeira origem do teatro e de realizá-lo como um instrumento de reflexão e conscientização social. Das ruas, o projeto foi para dentro de escolas, fábricas, hospitais, penitenciárias, manicômios e outros lugares onde o teatro não entrava. Desde então, nunca abandonaram o projeto. Prova disso é que, em setembro de 2008, o Ói Nóis estréia o espetáculo de rua O Amargo Santo da Purificação, mesmo título de uma peça do grupo impedida pela censura de ser apresentada em 1980, que tinha como tema a luta armada no Brasil. Agora, a montagem é inspirada na vida do guerrilheiro Carlos Marighella, líder da Ação Libertadora Nacional. “É muito importante esse resgate da memória em um momento do país em que se discute a questão da abertura dos arquivos da ditadura”, explica Paulo Flores. “Achamos extremamente importante que isso se amplie para a população em geral. E o teatro de rua permite isso.”

A busca do Oi Nóis pelas celebrações que deram origem ao teatro A origem do teatro está relacionada com o ditirambo — procissão religiosa oferecida em honra a Dionísio, deus grego da fertilidade. Os devotos cantavam e dançavam, representando episódios vividos pelo deus em sua passagem pela Terra. O culto tinha caráter orgiástico e incluía sacrifícios de animais e embriaguez. Junte-se a isso a influência do poeta, ator, escritor, dramaturgo, roteirista e diretor de teatro Antonin Artaud (1896-1948) e é possível entender a essência do teatro buscada pelo Ói Nóis. O francês Artaud buscava realizar um teatro como duplo da vida, no qual sejam abolidos todos os obstáculos entre o vivido e o representado e onde os atores, tais quais sacerdotes, convidem o público a tomar parte de uma celebração ou de uma cerimônia exorcista. Fonte: Atuadores da Paixão, de Sandra Alencar, Secretaria Municipal da Cultura, Fumproarte, Porto Alegre, 1997 anna magagnin

experimentar esteticamente o teatro que a gente queria”, relata Flores. A Terreira foi palco de espetáculos como Ostal (1987), Antígonav (1990) e Missa para Atores e Públicos sobre a Paixão e o Nascimento do Dr. Fausto de Acordo com o Espírito de Nosso Tempo (1994).


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Com a morte do proprietário do terreno do casarão em 1994, a Tribo teve de viver mais uma vez a luta para manter seu espaço. Mesmo com o apoio da população da cidade, por meio de assinaturas e de priorização via Orçamento Participativo, para a compra do espaço da Terreira, o grupo veio a ser despejado em 1999. No mesmo ano,

mudaram-se para a rua João Inácio, no bairro Navegantes, onde, mesmo com todas as dificuldades que mudar de lugar implica, prepararam-se para a premiada montagem Aos que Virão depois de Nós, Kassandra in Process (2002).

João Alfredo. No local, o grupo poderá seguir todos os seus projetos.

A busca não acabou Trinta anos depois, será que a Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz ainda tem algo a buscar? Paulo Flores jura que sim: “Todos os dias, pois estamos anos-luz de uma sociedade solidária, onde, como [Bertolt] Brecht dizia, ‘o homem não é o lobo do homem’. Isso tá presente no grupo e isso faz novas pessoas entrarem no Ói Nóis, que é aberto a novos participantes, a novas idéias, a novos sentimentos. As pessoas se apaixonam pela idéia do Ói Nóis por isso mesmo”.

Em seus 30 anos, a Tribo não poderia ter recebido melhor presente: a assinatura da prefeitura do termo de cessão de um terreno na Cidade Baixa, esquina das vias Aureliano de Figueiredo Pinto e

anna magagnin

Ainda no casarão da José do Patrocínio e também em 1988, o grupo iniciou outro projeto. O Teatro como Instrumento de Discussão Social tinha como desafio estender às vilas de Porto Alegre as oficinas livres oferecidas na Terreira. O primeiro trabalho da tribo na periferia foi na Vila Maria da Conceição, com a ajuda do governo do Estado. Foi dentro da Descentralização Cultural, projeto da prefeitura, entretanto, que o Ói Nóis conseguiu dar seguimento ao Teatro como Instrumento de Discussão Social. Entre 1994 e 1996, quatro das oito oficinas mantidas pela prefeitura eram coordenadas por atuadores do grupo. Atualmente, a Tribo oferece oficinas gratuitas em oito bairros da Grande Porto Alegre.


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A maior celebração da Terra Carnaval é a festa da transição para o período das luzes, Luís Felipe dos Santos em todas as culturas

AF rodrigues

luisfelipe@gmail.com

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ciclo da vida é lunar. O ciclo da existência é noturno. À noite, no escuro, todos os pudores são relativos. A noite é o período ideal para dar adeus à carne e a todo o conjunto interminável de bloqueios mentais que impedem o homem de aproveitar o corpo no sentido mais puro. A noite usa a máscara do escuro para esconder nossas vergonhas. Diante do reinado da lua, toda a celebração se faz possível. Sendo a vida humana cíclica, as mitologias se encarregam de colocar diante de nós as fases do círculo. O céu, o purgatório, o inferno, o limbo. O nascer, crescer, progredir e morrer. Assim foi na mitologia egípcia, civilização negra do Nilo. Ísis, Osíris, deuses da vida externa; Seth e Néftis, avatares da vida interna. O puritanismo e a cultura do medo impuseram uma dualidade — alguém tem que ser o bem, e deste lado ficou o Sol, que fornece a luz que permite a todos a vigília. Alguém tem que representar o mal, e assim ficou a Lua, senhora da noite, quando todos se recolhem com medo do inesperado.

A noite usa a máscara do escuro para esconder nossas vergonhas. Diante do reinado da lua, toda a celebração se faz possível

Assim surge o carnaval. É inadequado e simplista dizer que se trata tão somente de uma festa da carne, ou do adeus a ela. É mais inadequado ainda ligar a história de tal celebração ao conjunto de datas que fica entre a Páscoa e o Domingo de Ramos. O carnaval não é somente brasileiro, católico, nem cabe em alguma língua. É uma síntese das

maiores festas culturais do mundo — e que acontecem pelo mesmo motivo, em datas relacionadas, com características semelhantes, embora muitos dos povos que inventaram tais celebrações nunca tenham entrado em contato. O ciclo lunar indica um crescente, antes da cheia. O ciclo de todo vegetal indica um florescer antes do fruto. As religiões pagãs sempre indicaram o homem como parte indissolúvel da natureza. Qual a relação? Não havia a compreensão do homem alheio aos fatos naturais, observador, permitindo ao curso da vida seguir sem sua participação. Ele tinha que estar junto dela. O homem tinha de crescer junto da lua, florescer como a árvore, desabrochar como a rosa. O homem não era espectador da natureza e, sim, participante. Desta forma, ele precisava consumir o excedente — e daí as bebidas, as drogas alucinógenas, a comida em excesso. Ele precisava procriar — daí a nudez, o despudor, a liberação do sexo, as danças do acasalamento. Tudo isso ocorria de forma poderosa ao final do inverno, início da primavera, quando o ser humano, assim como a Terra, volta a ser a vida na sua essência. Atentem para o verbo; não ver a vida, sê-la. O inverno. O inverno é a estação de Seth, de Néftis. O inverno é a estação do interno. É o período necessário para


AF rodrigue divulgação pmpa

a renovação dos insumos, das raízes e das árvores, cansadas de fornecer a subsistência durante os longos meses de verão e outono. Quando do inverno, os animais saem menos de suas tocas, por conseqüência a comida rareia. No inverno, tudo se internaliza: a comida é preparada e aproveitada debaixo do teto, diante do fogo. O sexo perde para o frio. A nudez perde para a roupa. O passeio no parque perde para o jogo de cartas.

quando criaram os poderes fiscalizadores do homem — Deus, Estado, enfim. Alguém tinha que organizar tudo e dizer para a nossa consciência que aquilo era imoral. Assim o homem criou a culpa. Assim o homem deturpou a religião e parou de se conhecer. Por que olhando para o interno, aproveitando o seu inverno, o inferno das idéias começava a queimar os pudores. A idade média dizia: homem, pare de se conhecer, comece a temer.

O interno, por sua vez, é a explicação do inferno. Atentem para a diferença nas letras: V, F, T. Não é coincidência. Vamos sair da natureza e vamos para o mental: quando pensamos em nós mesmos, observamos os nossos defeitos e os nossos desejos mais íntimos. Sempre há algum desejo que não pode sair nunca. Sempre há uma vontade que, para ser satisfeita, viraria a vida dos próximos de cabeça para baixo. Sempre há uma fantasia com a mulher do próximo. A vontade de gastar todo o dinheiro do mês em bobagens. O desejo de largar família e filhos para viajar de motocicleta. Para a sociedade, liberar os desejos mais íntimos tornou-se um problema

Todo inverno tem fim. No fim, é preciso florescer, procriar e liberar o que foi guardado. Consumir os estoques, voltar à nudez, sair para as ruas, bater bem forte os tambores para que toda a terra acorde. Então, surge o carnaval. Todo carnavalesco é um sacerdote. É responsável por colocar o bloco na rua, unir milhares de pessoas em prol de uma festa e ao mesmo tempo, de um objetivo. A vida urbana hodierna transformou a festa em outra coisa, muito diferente do despertar da terra, do resgatar da vida. Comercializamos a festa, vendemos as fantasias, leiloamos arquibancadas, compramos os direitos de TV para que todo mundo assista o

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Alguém tinha que organizar tudo e dizer para a nossa consciência que aquilo era imoral. Assim o homem criou a culpa. Assim o homem deturpou a religião e parou de se conhecer


divulgação – governo do maranhão

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carro alegórico passar. O carnaval foi tomado por uma visão errônea que se adquiriu nos últimos séculos, a visão da superficialidade. Não existe mais um consumo exagerado do excedente, o que há é o culto do excedente. Quando a futilidade existe por si só, sem nenhum sentido inicial ou final a não ser mais poder — e por conseqüência, mais futilidade — o Carnaval perde a sua essência. Que não era apenas uma celebração anterior à Páscoa, mas sim a retomada coletiva da vida, da alegria e da compreensão, dos homens entre si e do homem consigo mesmo. A lenda diz que o rei Momo deve ser gordo, porque o sangue dele vai reavivar a terra salgada pela neve. Nos tempos medievais, na véspera da grande festa, as autoridades buscavam na cadeia da cidade o presidiário mais gordo dentre todos os condenados. Tiravam ele da prisão, dando-lhe a chave da cidade por quatro dias, para ele comer toda a co-

A lenda diz que o rei Momo deve ser gordo, porque o sangue dele vai reavivar a terra salgada pela neve

mida que quisesse; fazer todo o sexo que pudesse; realizar todos os desejos que quisesse. Encerrado o quarto dia, o presidiário era morto e seu sangue gordo espalhado pela terra. Os tempos de hoje são bem menos cruéis, é claro. Porém, quando há um rei Momo magro e ninguém sabe por que não deveria ser, algo de estranho acontece. Quando a cidade inteira se cala numa terça-feira de Carnaval, momento em que todos deveriam estar celebrando a volta do sol e vibrando com a pulsação dos tambores reproduzindo corações, algo está errado. Quando a cidade vira as costas para a festa pagã, colocando um sambódromo na periferia para que esta não faça barulho nos lugares mais habitados, algum desconhecimento histórico se evidencia. A vida é cíclica, e as fases se completam. Hoje, a essência do samba está na periferia da cidade de Porto Alegre, e dela não sairá. Hoje, é possível perceber que a cópia descarada dos costumes do hemisfério norte fez com que a própria essência do carnaval fosse invertida:

a celebração deveria ser no final do inverno, início de agosto, mas é em fevereiro, final do inverno na Europa. É lá onde está o Papa, que reza as missas de Páscoa e de Ramos. Mesmo com esse monumental erro histórico, o Brasil tem o maior carnaval do mundo. O que é importante saber nisso tudo é que nenhuma celebração existe sem motivo. A celebração do Carnaval, especialmente, traduz uma volta ao paganismo, à conexão direta do homem como parte essencial e indivisível da natureza, não como superior. O carnaval, celebração noturna do ciclo lunar da vida, deveria ter como principal função devolver o homem, por cinco dias, à sua origem como animal. Sem pudores, sem igrejas, sem futilidades nem moralismos. Em plena era de Aquário, nada é mais fundamental do que conhecer a si mesmo, e celebrar a vida por ela existir. *texto baseado em palestra de Maria Augusta Rodrigues, teórica do carnaval e madrinha de bateria da G.R.E.S Império Serrano, do Rio de Janeiro.


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Viva São Jorge! Denise Waskow denisewaskow@gmail.com Paulo Rocha paulorocha83@gmail.com

Trecho da Oração de São Jorge Eu andarei vestido e armado com as armas de São Jorge para que meus inimigos, tendo pés não me alcancem, tendo mãos não me peguem, tendo olhos não me vejam, e nem em pensamentos eles possam me fazer mal

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ãos unidas em orações silenciosas e olhares voltados para a imagem de São Jorge. Em meio à multidão, cada fiel tem a sua conversa em particular com o Santo Guerreiro, que tanto pode ser um pedido de proteção, saúde, força quanto um agradecimento pelas bênçãos alcançadas. Da festa em comemoração a um dos santos mais populares do catolicismo, participam crianças, jovens, adultos e idosos, das mais variadas classes sociais. E a maior prova da democracia dessa celebração é a presença de fiéis de outras religiões, principalmente do Umbanda.

das sob o manto do santo e recebem a sua proteção. “A Espada-de-São-Jorge é um símbolo de fé criado pelo povo. As folhas são colocadas próximas a portas e janelas para evitar que o mal entre”, explica Manuel. No domingo seguinte, que este ano caiu em 26 de abril, uma grande procissão, seguida de almoço, encerrou a semana de comemorações da 54ª Festa de São Jorge. Cerca de 20 mil pessoas, segundo estimativa da organização do evento, acompanharam a missa celebrada pelo arcebispo metropolitano Dom Dadeus Grings e pelo padre Vanderlei Bock e o trajeto da imagem do santo sobre um caminhão do Corpo de Bombeiros nas ruas próximas à igreja.

Democracia da fé

Denise Waskow

“São Jorge é mais ecumênico que a Igreja Católica”, diz Manuel Feio da Silva, de 52 anos. O militar aposentado é o coordenador da festa em homenagem ao padroeiro da Igreja São Jorge, Bairro Partenon, em Porto Alegre. Na data do santo, 23 de abril, missas a cada duas horas acolhem os devotos, que lotam a igreja. De velas e folhas da planta batizada de Espada-de-São-Jorge em punho, além de santinhos, imagens e objetos como chaves de casa, do carro ou fotos da família, os fiéis aguardam o momento da bênção, em que as peças são coloca-

Objetos são abençoados sob o manto de São Jorge, para trazer proteção aos fiéis

Denise Waskow

O Santo Guerreiro protege fiéis de diversas religiões, idades e classes sociais

A imagem adorada pelos católicos também é venerada por outras religiões. A mais conhecida delas é a Umbanda, que toma Jorge emprestado e chama-o Ogum, nos Estados do Rio de Janeiro, São Paulo e no Rio Grande do Sul. Paralelamente às festividades católicas, muitos umbandistas também fazem o seu ritual para Ogum.


Essa mistura de crenças, pelo menos na festa de São Jorge, é bem-vinda.“A Igreja precisa saber acolher as pessoas. E por isso já está aceitando o sincretismo religioso”, diz Rita Fantinel, advogada de 48 anos, há pelo menos 20 envolvida nas festividades. A mesma opinião é compartilhada pelo frei Kellycio Pereira, 30 anos. “Nada mais justo do que acolhermos e celebrarmos juntos, até porque Deus é um só, independentemente dos nomes que damos”, diz. O frei, natural de Londrina e radicado no Mato Grosso, está em Porto Alegre para concluir os estudos em teologia e comandou as celebrações em homenagem a São Jorge/ Ogum na Vila Maria da Conceição. Uma procissão reunindo cerca de 40 pessoas — católicos e umbandistas — percorreu os becos e principais vias do bairro, que tem quase 8 mil moradores. Cantos afro e católicos se misturam, acompanhados de danças e de uma missa ao final da procissão. Até mesmo o PaiNosso, oração fundamental da religião Católica, foi adaptado para a Umbanda, com o nome de Olorum Nosso. À medida que o cortejo vai avançando, os moradores aparecem nos portões, recebem as Espadas-de-São-Jorge e acompanham a celebração. O Santo Guerreiro, que luta pelos fracos e excluídos, é recebido de braços abertos em uma das muitas comunidades ca-

Jovens da comunidade da Vila Maria da Conceição se oferecem para carregar a imagem de São Jorge pelas ruas e becos da comunidade

A história Um conde, alto membro do exército romano, desafia o então imperador Dioclesiano no início do século IV. Por isso, é condenado às mais diversas torturas, resistindo bravamente, e na medida em que insiste em não abrir mão de suas convicções ganha simpatizantes, entre eles os soldados designados para cumprir a sádica tarefa. Recebe golpes de lanças por todo o corpo e é envenenado, mas sobrevive para o espanto de todos. Por fim, o imperador Dioclesiano desiste e manda degolá-lo em 23 de abril do ano 303. O motivo: o conde romano era cristão e se negou a permanecer calado frente à perseguição a outros seguidores de Jesus Cristo.

A imagem adorada pelos católicos também é venerada por outras religiões. Em alguns lugares do Brasil, a mais conhecida é a Umbanda, que toma Jorge emprestado e chama-o Ogum

Denise Waskow

“Nas festas aqui da igreja, cerca de 75% dos participantes são umbandistas”, diz Manuel. A origem da adoração é incerta, mas uma das teorias é de que os escravos, proibidos de professar religiões africanas, rezavam à imagem do Santo Guerreiro para não levantar suspeitas, mas na verdade oravam a Ogum, Ferreiro dos Orixás e Senhor das Armas.

Denise Waskow

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Santo guerreiro nascido na Capadócia, hoje região da Turquia, Jorge é também patrono de países como Inglaterra, Portugal, Geórgia e Lituânia. Sua influência também está presente no Oriente Médio, já que está enterrado na região de Lida, cidade natal de sua mãe, em Israel. Profissões de risco, como bombeiros, policiais e militares, vêem no conde uma fonte de proteção. Outras religiões também se inspiram na resignação de Jorge.


Denise Waskow

Denise Waskow

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“O que eu peço a ele, São Jorge, eu consigo.” Noé Melo Fernandes, 73 anos, também conhecido como o Gaúcho do Beira-Rio. No dia de São Jorge, foi à igreja pedir um milagre: o time precisava reverter um mau resultado. Naquele dia, o Inter venceu o Paraná por 5 a 1

Conta a lenda que, em um país oriental, uma besta aterrorizava os habitantes, que para acalmá-lo ofereciam-lhe periodicamente jovens mulheres escolhidas por sorteio. Um dia, coube à filha do rei a trágica missão. O monarca, que nada

pôde fazer para evitar este horrível destino da filha, acompanhou-a com lágrimas. Então, um corajoso cavaleiro vindo da Capadócia aparece montado em um cavalo branco e salva a princesa. A misteriosa figura assegura ao povo que tinha vindo em nome de Cristo para vencer o dragão. Para alguns, uma metáfora:

rentes da Capital. “Não tem discriminação. A comunidade é afro, católica e participam todos juntos. Há essa aceitação entre as duas religiões”, ressalta Sueli Farias da Silva, 54 anos, membro atuante da Igreja Católica na comunidade e integrante de um grupo de danças afros. Seja na Vila Maria da Conceição, em uma pequena procissão de moradores, ou em uma festa com quase 20 mil pessoas, que aconteceu ao mesmo tempo, a poucas quadras dali, a certeza dos fiéis é a mesma: sob a proteção de São Jorge, nada de ruim vai lhes atingir.

a fera representaria o mal destruído com as armas da fé, enquanto a donzela seria o país salvo das heresias. A primeira representação pictórica da vitória data do século XIII.

Denise Waskow

A imagem

Após percorrer as ruas em um caminhão de bombeiros, a imagem de São Jorge é levada de volta à Igreja

Até o estacionamento é lugar para receber bênçãos. "Por intercessão de São Jorge, que Deus lhe conceda a saúde, a paz e a proteção. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”


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Sofazão: Do jeito que o padre gosta Duas repórteres vivem uma noite de voyeurismo na casa de swing mais famosa de Porto Alegre

Nessa noite, no entanto, não estávamos lá para desvendar as motivações de

je n

Tínhamos entrado logo após a meianoite no Sofazão, famosa casa de swing na zona norte de Porto Alegre. Logo na entrada, uma foto impressa em um banner tal qual um pôster confirma a popularidade do local e de seu proprietário. A imagem é do ex-padre Roque Rauber em entrevista para o Jô Soares. Impossível não pensar no que teria levado um até então discípulo de Deus a abrir uma casa que oferece acesso fácil ao sexo.

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assava das três horas da manhã. Ao nosso lado, atrás de um biombo que nada escondia, uma mulher transava de quatro com um homem sem camisa que poucos minutos antes lambia seu ânus. Enquanto isso, outro a acariciava no meio das pernas, e um terceiro passava as mãos em seus seios e lhe oferecia o pênis para chupar. Ao redor, um grupo olhava por entre as frestas do biombo de madeira trançada, e dois homens mais próximos se bolinavam. Após alguns minutos de um olhar quase cansado, nos dirigimos à saída, concordando em silêncio que já tínhamos visto o bastante para uma noite de sábado.

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Roque Rauber, o criador do Sofazão, e sim para descobrir o que acontece em uma das festas mais comentadas da cidade, mas onde poucos costumam entrar. Alguns dias antes da visita já havíamos telefonado, pedindo informações. A moça do outro lado da linha alertou que os dias de casais eram sextas-feiras e sábados. No resto da semana, a casa abre para atendimento a homens solteiros: R$ 80,00 tendo direito a três cervejas e mulheres liberadas.

O preço acessível para casais — R$ 20,00 ou R$30,00 com direito a três cervejas de lata — torna ainda mais fácil experimentar os prazeres prometidos pelo swing. A recepção, feita sem formalidades por uma moça totalmente vestida, deixa os freqüentadores à vontade. A proposta da casa é justamente esta: sentir-se à vontade para usar e abusar do corpo. No entanto, mesmo passando muito da meia-noite, ainda imperava o constrangimento entre os presentes, não mais do que 30 pessoas incluindo as garotas da casa e nós.

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Emily Canto Nunes emilynunes@gmail.com Julia Dantas juliadantas@gmail.com

Padre Roque termina seu discurso nos desejando uma noite “com muito sexo para todo mundo”


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guilher me moojen

A proposta da casa é justamente esta: sentir-se à vontade para usar e abusar do corpo

Éramos duas repórteres, um ilustrador e um acompanhante, o que nos permitiu entrar como se fôssemos dois casais. Como é de praxe a quem visita a casa pela primeira vez, seguimos a simpática hostess que iria nos apresentar os espaços oferecidos. Perto da entrada, um banheiro feminino e um masculino, “os únicos com chave”, alertou. Descemos um lance de escadas e chegamos a um grande salão: ao fundo, um palco com chuveiros de espuma e, bem em frente a ele, uma cama de casal simples com lençóis rosa e branco. Nas paredes direita e esquerda é que estão os grandes sofás que dão nome à boate e, à frente deles, algumas mesas de bar fixas no chão. Em um dos cantos próximos ao palco, está o banheiro unissex, que durante nossa estadia só foi usado por homens. No outro canto, as portas que dão acesso a um quarto com duas camas de casal. De tempos em tempos, a hostess nos lembra de que podemos entrar no quarto que bem desejarmos a qualquer momento. Ela mesma abre a porta de um quarto abaixo da escada onde clientes já se divertiam. Apenas entrevemos um

corpo nu de mulher e um homem de pé que pararam o que faziam quando a porta se abriu. Assim que a hostess nos deixa nos dirigimos ao saguão, sentamos e abrimos umas latas de cerveja. Nem dois goles e somos surpreendidos pela voz de Padre Roque Rauber. O público que ocupava os sofazões da casa era formado por casais e alguns homens solteiros. Observando os casais, distribuídos entre os dois lados do saguão, lembramos das reuniões dançantes da adolescência, quando meninas aguardavam de um lado e meninos de outro para ver quem seria o corajoso a inaugurar a pista de dança. A decoração com laços de papel crepom verde, rosa e branco ajudou na comparação que, mesmo ingênua, é pertinente para descrever o cenário, mas não para tudo que aconteceria durante a madrugada. Um senhor já de idade, vestindo um colete vermelho e amarelo e empunhando o microfone no meio do salão, Padre Roque dá as boas vindas a todos e anuncia a última atração da noite, El Cordobês. Ele termina seu discurso nos desejando uma noite “com muito sexo para todo mundo”. A voz e a entonação de Roque

fazem lembrar uma missa, ainda que o discurso seja completamente outro. A essa altura, seis garotas da casa estão jogadas na cama no centro do salão. É nesse momento que adentra o saguão El Cordobês. Em roupas de toureiro e segurando um capote vermelho, ele dança freneticamente, rebola enquanto as meninas gritam. Ele se aproxima e se afasta da cama muitas vezes, até que escolhe uma das garotas e faz movimentos sexuais na frente dela, em cima dela, grudado nela. O dançarino é baixo, extremamente musculoso, um tipo meio atarracado, de pele parda e cabelos bem curtos. Não é bonito, mas também não há nada em específico que se possa apontar como feio. Colete de veludo e camisa já jogados no chão, ele começa uma volta pelo salão e algumas escolhidas do público ganham o mesmo tratamento sensual que as garotas da cama. Movimentos insinuantes, virilha roçando na perna enquanto as meninas na cama aplaudem. Ainda e sempre rebolando ele corre para o meio da pista de dança e arranca as calças. No melhor estilo stripper, as calças são presas à base de velcro e saem do corpo em um puxão. Só de cueca e botas, ele segue provocando as mulheres do salão. Puxa uma das meninas da cama e a joga para o alto. Ela o agarra com


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da mão que rapidamente desaparecem entre suas pernas para, finalmente, sentar em cima do homem de meias. Não precisa de muitos movimentos de quadril para que ele goze e ela, com ar entediado, novamente levante-se e comece a se vestir. Todas as meninas possuem uma bolsinha onde guardam o tubo de lubrificante e, provavelmente, preservativos. Ambos os clientes estavam de camisinha.

as pernas e uma pequena seqüência de acrobacias os coloca no chão, em uma simulação de sexo pouco convincente. Assim que ela volta para seu posto ao lado das outras garotas, El Cordobês faz sua série de movimentos finais, abaixa-se até o chão tirando a cueca, mas esconde a virilha antes de levantar a cabeça e sai do salão exibindo a bunda, mas não o pênis. “Bunda gostosa”, gritam as garotas na cama. Com o fim da apresentação, a música um pouco latina, um pouco dance, que embalou o dançarino dá espaço ao pagode e, principalmente, ao axé. Com a parte de cima liberada, os casais começam a subir para o espaço destinado exclusivamente a eles. Na parte de baixo, estão os homens solteiros e as meninas da casa. Mais alguns goles na cerveja e tragadas nos cigarros, decidimos ir ao banheiro feminino, juntas, por precaução. Na volta, entramos em um dos quartos. Duas camas de casal lado a lado são o suficiente para tomar quase todo o espaço, sobrando apenas uma faixa de menos de um metro para quem quiser se acomodar de pé e assistir. É nessa faixa que ficamos, enquanto na cama mais afastada, um homem completamente nu, exceto por suas meias brancas, recebe um boquete da garota da casa que antes simulava sexo com El Cordobês. Ele geme enquanto faz força com a cabeça da menina contra seu pênis. Na cama ao lado, um homem transa com outra das garotas do Sofazão. Ela

de quatro no colchão, ele de pé apoiando o joelho na beira da cama. Ela usa uma minúscula blusa e minissaia preta e ele, que praticamente só tinha o zíper da calça jeans aberto, de camiseta, moletom e óculos. Os dois casais estão envolvidos em uma atividade tão mecânica que até as pequenas interações de quem está ao redor parecem mais humanas. De um lado, um sujeito se masturba olhando para a moça que está de quatro. Do outro, um casal levemente constrangido segura as mãos. Entram mais dois homens no quarto. Um deles se encosta-se à parede e prontamente abre as calças. O outro, mais próximo à porta, observa. Ele pousa a mão no ombro de uma repórter, abre um sorriso amarelo e faz uma cara de “vamos?” enquanto levanta apenas uma sobrancelha. Não demora muito para se descobrir que os homens no Sofazão sabem encarar um “não” muito melhor do que qualquer sujeito em uma festa “normal”. O diálogo que vai tão direto ao ponto poupa uma incrível quantidade de tempo no jogo da sedução. A cena que corre nas camas não muda muito. Apenas a menina do boquete agora usa as mãos para satisfazer o cliente. Distraída, ela não ouve quando ele diz “vai em cima”. Ele precisa repetir a ordem para que ela imediatamente levante, tire a calcinha, coloque um tanto de lubrificante em dois dedos

Enquanto a garota ajeita a calcinha, comenta alguma coisa sobre seus sapatos. A outra ri um pouco e fala qualquer coisa a respeito de sandálias enquanto segue de quatro, sendo penetrada pelo sujeito de óculos. A primeira menina se retira, o homem começa a vestir o que tinha além das meias brancas. O outro casal interrompe o ato a pedido da menina, que disse ao cliente “assim não vai deslanchar”. Ele pára, pega um pouco de papel toalha pendurado ao lado da cama, limpa o pênis e as mãos. A menina posiciona-se mais ao meio da cama, passa lubrificante. O homem volta ao seu posto. Não surpreende que o mais evoluído dos animais seja o único praticante da prostituição. É preciso muita racionalidade para forjar tamanha ausência de vínculo, permitindo à mulher tamanho desapego ao corpo, e ao homem, reduzi-la a um buraco no meio de uma bunda empinada. Quando saímos do quarto, corremos para as cervejas e esperamos alguns minutos no tranqüilo salão do térreo antes de enfrentar o andar só para casais. Quem restou nos sofás foram homens que ganharam a companhia das garotas da casa. É muito claro o que eles desejam, e é muito claro que a função delas é convencê-los a gastar a maior quantia possível de dinheiro em cerveja, 5 reais a lata, pois pelo sexo eles já pagaram. Assumimos novamente o papel de casais e subimos a escada que dá acesso ao segundo andar. Exploramos o lugar: um salão similar ao de baixo, com sofás


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Seguimos para os dark rooms: o primeiro está vazio, ainda que o corredor que leve a ele esteja cheio de gente, e seja difícil passar incólume pelas inúmeras mãos inquietas do aglomerado. Na segunda, encontramos um colchão no canto do quarto ocupado por um casal do qual pouco conseguimos ver: do homem, a cabeça e o torso. Sobre os ombros dele, os pés de uma mulher que, de pouco em pouco geme “vai, vai, vai”. Sim, o homem ia, conforme as ordens recebidas. O público era formado por uns cinco casais encostados na parede. Ao lado de uma repórter, um casal que se beijava furiosamente inicia as preliminares. O homem pede que a mulher tire o sutiã. Depois, que coloque os peitos para fora. Nosso ilustrador desenha sem parar e comenta o quanto aquele lugar lembrao do filme De olhos bem fechados, de Stanley Kubrick. “Me senti invadindo o lado escuro de cada um, aquele lado habitado por fantasias, que não se divide com ninguém”, ele nos diria mais tarde. Discordamos um pouco, pois em nenhum momento nos sentimos invadindo algo ou alguém. Todos pareciam estar ali justamente para serem vistos, como se fosse um filme pornô ao vivo. A diferença é que não existe uma produção ou uma história mínima que explique o envolvimento daquelas pessoas. Não sabemos se a

mulher atendeu a porta só de camisola para o entregador gostosão, só que há corpos e gemidos. De volta ao salão principal, sentadas ao lado do biombo paramos para olhar o que estaria fazendo o grupo que vimos logo ao chegar. O segundo andar da casa não nos deprimia como as cenas de prostituição do térreo. Alguns querem participar, outros apenas olhar, e todos têm liberdade para dar vazão às suas vontades, como a menina atrás do biombo que segue envolvida com três homens, agora chamando a atenção de ainda mais gente. O voyeurismo é a escolha da maioria dos clientes, embora o swing seja a prática anunciada com orgulho pelo Sofazão há 14 anos. Para nós, nem swingers, nem voyeurs, o sexo explícito não se distan-

ciava muito da cruza entre quaisquer animais. O que é mesmo que diferencia um ser humano do porco além de seu polegar opositor e de seu telecéfalo altamente desenvolvido? Despido de todo e qualquer simbolismo, o sexo pelo sexo para todo mundo ver não nos pareceu muito excitante. É provável, entretanto, que o verdadeiro público alvo da casa veja o sexo de outra maneira, que não somos bem capazes de compreender. Quando o ilustrador e seu amigo reaparecem no salão, — havíamos perdido-os nas dark rooms — vamos embora digerindo um pouco mais da natureza humana que nos foi apresentada de maneira, literalmente, nua e crua.

De um lado, um sujeito masturba-se olhando para a moça de quatro. Do outro, um casal levemente constrangido segura as mãos

guilherme moojen

somente do lado esquerdo e, no lado direito, duas camas de solteiro separadas do saguão por um biombo feito de tiras de madeiras entrelaçadas. Alguns casais ainda estavam no salão principal, uns trocam beijos, outros apenas conversam, mas seria neste segundo andar que veríamos o “muito sexo” que padre Roque nos desejara no início da festa. Atrás do biombo, uma garota começa a chupar o pênis de um homem enquanto outros três saciam seus desejos apenas observando. No fundo da sala, sobre um tipo de palanque, dois casais transam lado a lado ainda vestidos. São as primeiras cenas de sexo explícito entre casais reais que veríamos na casa de swing.


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Uma viagem pelo universo Leonardo Mazzarolo leomaz@gmail.com

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Antigo movimento hippie indiano busca a harmonia com a natureza através da psicodelia e do estado elevado de consciência, potencializados pelo uso do LSD

uando a equipe da Sextante decidiu fazer uma revista sobre Celebrações, pensei imediatamente em falar sobre a cultura psytrance, um movimento regado de raves psicodélicas pelo mundo afora e que nem é tão novidade assim para nós porto-alegrenses. A história que será contada aqui, no entanto, foge um pouco dos padrões de reportagem ditos normais.

to, resolvi acompanhar uma das raves que acontecem nos arredores de Porto Alegre. A diferença é que não fui como um mero espectador. A história que eu conto aqui mostra, especialmente, a experiência que tive tomando LSD. Isso tudo para compartilhar as sensações criadas pelo alucinógeno em um ambiente propício para o alcance de um estado elevado de consciência.

Lá nas origens que remontam a trajetória do psytrance, nos anos 60, estão celebrações que aconteciam em Goa, na Índia, nas quais hippies buscavam uma nova forma de integração e harmonia com a natureza. Era um movimento de contra-cultura, propondo formas alternativas de vida, opondo-se ao materialismo e à distinção de classes. Agregados a isso estavam os efeitos provocados pelo uso de alucinógenos como o LSD (dietilamida do ácido lisérgico), que evocam a psicodelia, caracterizada pelas cores vibrantes de alta intensidade, e a amplitude das sensações.

Eram 2h da madrugada, meus amigos e eu estávamos nos dirigindo ao local da rave, em algum canto perdido de Viamão. Passando-se 30 minutos, depois de andarmos por estradas sem iluminação, encontramos uma placa que dizia o nome do sítio que abrigava a festa. Entramos por uma estrada de chão, cercada de árvores, em um caminho que não podíamos ver muito bem com as luzes dos faróis do carro.

Atualmente, já não são os mesmos hippies que dominam a cultura psytrance. Entretanto, os princípios de celebração à vida e à natureza ainda persistem entre os que compartilham desta cena musical. Para descobrir como funcionam os atuais “rituais” deste movimen-

Chegamos ao estacionamento, uma encosta de um morro que guardava uma dezena de carros. Paramos e ali ficamos por um tempo, ouvindo ao fundo um som de batidas rápidas e fortes, sem saber muito bem de onde vinha. Eram 2h45 quando tomei o LSD. O ácido é vendido em um papelzinho quadrado de menos de um centímetro de lado, previamente mergulhado na solução alucinógena. No entanto, fui advertido sobre a dosagem: por ser muito forte,

não se toma um papelzinho inteiro, e sim meio, ou um quarto dele. Tomei meio. Coloca-se embaixo da língua, para que se dissolva e passe à corrente sangüínea, através da saliva. Uma das pessoas que estavam conosco apareceu com um tipo de malabares, conhecido como “swing poi”, dois aparatos com uma espécie de cordão e um peso na ponta, seguido por fitas de cores fortes. Em um movimento muito complicado em forma de 8, André tentou me ensinar, sem sucesso, como fazê-los girar no ar. Faltava coordenação motora.

A sensação era incrível, como se a luz entrasse por todo o corpo, em sintonia com a música Já eram 3h15 e resolvemos entrar realmente na festa. Chegando lá, via-se uma árvore gigante em uma leve encosta. Ao lado, havia o local onde ficavam os DJs que faziam parte do line up (lista dos que tocam) na festa. O cenário era composto por diversos panos de cores variadas reluzindo na luz negra que os iluminava, tornando a tonalidade das cores mais forte do que já era. Por todos os lados havia gente dançando uma música muito pesada, rápida e de melodias


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não muito claras, o chamado psytrance. Acho que se podia contabilizar cerca de 300 pessoas, muitas usando roupas psicodélicas, cabelos com dreads e colares de madeira. Eu ainda não sentia nenhum efeito. Nos infiltramos entre os que ali estavam e começamos a dançar também. A noite estava um pouco fria, o que me fazia usar um casaco fino. Ao fundo não se podia ver com muita nitidez, mas dava para identificar uma casa de madeira e várias árvores cercando a pista na qual estávamos. Eram 4h, o ácido ainda não havia “batido” e eu continuava apreciando a forma como certas pessoas mexiam as mãos enquanto dançavam, girando-as como se pudessem movimentá-las no ar. A partir de então é que as coisas começaram a mudar. De repente, tudo passou a ficar mais engraçado do que o normal, e eu comecei a rir de coisas sem razão. Aos poucos, bem lentamente, os efeitos aumentaram e eu comecei a senti-los mais intensos em minha cabeça. Todas as cores ficaram ainda mais vibrantes,

como se piscassem para mim. Minha camiseta, meus tênis, tudo que tinha cor parecia que havia sido ligado à energia elétrica, como uma luz néon. A sensação de bem-estar aumentou, e às vezes parecia que a cabeça girava sozinha no ar. Mas os efeitos são graduais, e eu os percebo aos poucos, um por um. O corpo continuava a dançar a música que parecia ter mais melodia do que antes. A árvore gigante que cobria o local de dança agora já podia ser vista, com um verde exuberante, como se uma luz nessa coloração fosse ligada logo abaixo dela. A cabeça ficou de repente mais pesada, e eu fechei os olhos por um momento. Um momento que levou horas. Eu imaginava coisas girando muito rápido, como se fosse uma viagem pelo espaço em um filme hollywoodiano ou uma montanha-russa colorida num céu negro. Cada segundo de olho fechado era como uma descida alucinante em um parque de diversões. Eram 5h da madrugada, e os panos coloridos agora se moviam, como se seguis-

Psytrance A palavra psytrance vem de trance psicodélico. O trance pode ser traduzido para transe, que significa estado de alteração da consciência ou de exaltação de alguém que se sente transportado para fora de si e do mundo sensível, em sintonia com algo transcendente. Psicodélico é uma composição das palavras gregas psiké (mente) e deloun (sensorial). Faz referência às manifestações da mente sobre as sensações, produzindo efeitos profundos sobre a experiência consciente.


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sem o ritmo da música. As cores tinham uma intensidade nunca vista antes, e pareciam me envolver, me aquecendo. A minha percepção também me fez crer que as outras pessoas estavam vendo tudo que eu via. A sensação é de que todos tomaram aquele LSD comigo e compartilhavam das mesmas visões. O corpo mexia com a cabeça de acordo com a batida forte do som. A música parecia entrar por todos os poros, me levando a pensar milhões de coisas ao mesmo tempo. Eu me sentia ótimo, livre. Já eram quase 6h e eu não parava de rir de tudo e de todos. Eu fechava os olhos e sentia o movimento em 8 que tentei fazer com o malabares algumas horas antes, e parecia que a cabeça seguia esses movimentos. De uma hora para outra, entendi a forma de dança de alguns que ali estavam. Minhas mãos começaram a se mexer, como se eu não pudesse controlá-las, movimentandoas pelo ar. Os dedos iniciaram a imitar o movimento de um tocador de piano

A música potente, as pessoas, o lugar verde em que estávamos e as cores vibrantes tinham uma harmonia que me fez entender o que celebram estas pessoas no meio do mato nas teclas, como se a energia daquele lugar e daquelas pessoas pudesse entrar pelas pontas dos meus dedos. Comecei a entender o sentido de “novas formas de integração com o ambiente”, de maneira que não pode ser explicado por palavras. Ao fundo, por cima das árvores, o céu anunciava que ia amanhecer, mostrando cada vez mais um horizonte céu extremamente claro, sem nuvens. Aos poucos já se podia ver os primeiros raios de sol nascendo. A sensação era incrível, como se a luz entrasse por todo o corpo, em harmonia com a música. Não tinha vontade de sair dali, tudo era perfeitamente apropriado: as pessoas, o lugar, o verde da grama, a música, o sol.

O tempo agora parecia correr, e eu já nem me lembrei mais de olhar para o relógio. As sensações de estar fora do corpo eram tantas que cheguei a me esquecer que estava ali para escrever uma matéria. O som que chegava aos meus ouvidos era cada vez mais perceptível, como se pudesse ouvir o barulho de um bichinho do mato à distância. Eu me perdia entre as batidas e os ruídos os sons que saíam do equipamento sonoro e os que vinham da natureza, integrando-os na minha cabeça, entre os milhares de pensamentos aleatórios. Ao dar uma volta pela festa, chegamos a um ponto logo abaixo de umas árvores e ali ficamos, ouvindo ao fundo a música. Olhei, então, para o tronco de uma das plantas, que estava cercado por uma trepadeira, e levei um susto enorme. Era como se ela a trepadeira tivesse criado vida e se transformasse em uma variedade de minhocas presas à arvore. A sensação era de medo, mas ainda assim achava a situação muito engraçada.


21 Conhecendo o LSD O LSD (ou LSD 25) é uma substância produzida em laboratório que lembra substâncias presentes em algumas espécies de cogumelos (os chamados cogumelos mágicos). Foi sintetizado pela primeira vez em 1943, pelo químico suíço Albert Hoffman, que morreu recentemente.

Desta hora até às 10h, quando resolvemos ir embora, não lembro direito de tudo que aconteceu. Foram conversas entre amigos nas quais eu me atrapalhava para comunicar o que eu queria, abraços que me faziam sentir extremamente bem e movimentos de dança que eu nem sabia que era capaz de realizar. A sensação de bem-estar, aliás, era a que mais esteve presente. A música potente, as pessoas, o lugar verde em que estávamos e as cores vibrantes tinham uma harmonia que me fez entender o que celebram estas pessoas no meio do mato nas cercanias de Porto Alegre. É muito mais do que ir a uma rave para usar uma droga, e sim utilizar o LSD como potencializador de uma experiência que não pode ser descrita e nem explicada. É a própria celebração à vida, um verdadeiro ritual de harmonia com o universo.

O cientista descobriu os efeitos da droga acidentalmente, enquanto tentava criar um estimulante circulatório e respiratório. Durante o experimento, deixou cair uma gota de LSD no seu dedo (a substância pode ser absorvida pela pele). O químico passou a sentir sensações estranhas: angústia, vertigem, visões sobrenaturais, objetos que se moviam no espaço, sentimento de felicidade e plenitude. A substância foi inicialmente utilizada como recurso psicoterapêutico e para tratar o alcoolismo e disfunções sexuais. Mais tarde, começou a se espalhar pelas noites londrinas e, especialmente, entre o movimento hippie nos Estados Unidos. O uso da droga, no entanto, acabou sendo proibido. Atualmente, o LSD voltou a ser muito utilizado, principalmente com a explosão de festas de música eletrônica e psicodélica, conhecidas como raves.

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As alterações que o LSD tinha provocado em mim não passavam. Olhando para a paisagem que nos cercava, a imagem que chegava ao meu cérebro era distorcida, desfocada. Acho que eram 8h30 quando meu amigo André resolveu pegar os malabares novamente. Resolvi tentar mais uma vez, e foi incrível. Os complicados movimentos que antes não conseguia coordenar, de repente brotaram em mim. Comecei a girar os malabares pelo ar como se já tivesse feito aquilo milhares de vezes. O efeito do ácido em meu corpo ajudava nos movimentos que eram necessários, fazendo parecer que a prática de malabares em raves fosse uma coisa certa a se fazer. A sensação que eu tinha é de que o giro em forma de 8 que as fitas coloridas faziam pelo ar unia-se ao ritmo acelerado da música.


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Um culto às tradições gaúchas Rodeios transformam antigas lidas campeiras em grandes eventos a fim de manter vivos antigos costumes

Aline Duvoisin alineduvoisin@yahoo.com.br

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A motivação sempre foi manter as tradições campeiras, no início por vaidade própria do gaúcho campeiro em querer mostrar suas habilidades

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ra uma tarde chuvosa de sábado, dia 12 de abril. Desloquei-me ao litoral a fim de conhecer o 12º Rodeio Internacional de Capão da Canoa, promovido pelo CTG João Sobrinho. Devido a explicações equivocadas, demorei a chegar ao local e acabei perdida numa estrada de barro que dá acesso a diversas fazendas que separam o litoral da serra gaúcha. Depois de perambular por cerca de uma hora, acabei, por fim, chegando ao meu destino e, confesso, me surpreendi. Não havia somente cavalos, touros e peões. Havia muita gente. Pessoas acampadas; gente que aguardava na fila do banho com toalhas nas costas; pessoas sem as indumentárias tradicionais, que apenas olhavam o que ocorria, sentadas nas arquibancadas dispostas pela equipe organizadora; gente que lanchava nas dezenas de bares localizados ao lado de lojinhas de artesanato, que formavam um “corredor” que acabava no toldo onde se realizavam as atividades artísticas do evento. Não havia somente homens, mas também muitas mulheres e crianças, que não somente olhavam, porém, muitas vezes, participavam também das competições. Além das provas com os animais, havia concurso de declamação, trova, danças, música, truco, atividades que se estenderam ao longo de quatro dias — de 10 a 13 de abril de 2008.

Regulamentação O rodeio de Capão, como grande parte dos eventos desse tipo que ocorrem no Rio Grande do Sul, é regulamentado pelo Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG), criado em 1966. Com o aumento do número de rodeios, o MTG criou o Regulamento Campeiro do Estado, que define regras a serem cumpridas nos eventos de cunho tradicionalistas, tais como tamanho da armada, tamanho da cancha, indumentária correta, encilha correta, seguro para os participantes, prevenções de segurança e saúde. Não existe uma determinação para número e tipo de provas que devem ser realizadas, “mas rodeio sem tiro de laço não é rodeio”, afirma o secretário-geral do MTG, Hélio dos Santos Ferreira. Além disso, todas as pessoas que forem participar competitivamente de um evento devem ser associadas a alguma entidade tradicionalista filiada ao MTG e portar o Cartão Tradicionalista. Não é somente a parte campeira que é regulamentada pelo MTG, mas também a artística. Segundo Pablo Machado, organizador do torneio de truco do 12º Rodeio Internacional de Capão da Canoa, essa é a mais importante do evento, por receber o maior número de premiações e maior investimento. Ferreira salienta, no entanto, que “a maioria dos rodeios é exclusivamente campeira, apenas uma


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minoria, justamente os maiores, é que faz todas as modalidades artísticas e campeiras”.

Surgimento No RS, os rodeios surgiram em 1949, no município de Esmeralda, quando foi solicitada a ajuda de um fazendeiro para a premiação de um torneio de futebol. Ele recusou-se, afirmando que ajudaria se fosse um torneio de quem laçasse melhor. No mesmo ano, o fazendeiro organizou em sua própria fazenda a primeira “brincadeira” — como os rodeios foram denominados na época. Essa atividade serviu mais como uma iniciativa e como um teste. Foi a partir de 1950 que começaram a ser organizados grandes eventos, bem estruturados, baseados na idéia dessa primeira “brincadeira”. Nesse ano, surgiu o rodeio de Vacaria, que se tornou o evento tradicionalista mais famoso do Estado. Atualmente, ocorrem entre trinta e quarenta festividades desse tipo por fim de semana no Rio Grande do Sul, totalizando cerca de 1500 eventos campeiros por ano.

rodeio sem tiro de laço não é rodeio Interesses Ao contrário do que ocorre em outros locais do Brasil, o rodeio gaúcho é uma festividade com poucos interes-

ses econômicos, sendo praticado mais para preservar a cultura do Estado do que por qualquer outro motivo. “A motivação sempre foi manter as tradições campeiras, no início por vaidade própria do gaúcho campeiro em querer mostrar suas habilidades”, destaca Hélio. Com o passar dos anos, os eventos se tornaram uma forma de preservação das tradições, já que a lida do laço no campo vem se tornando cada vez mais rara. A movimentação financeira está mais ligada a serviços prestados paralelamente ao evento, como alimentação e feiras de artesanato, do que aos rodeios em si. A exemplo do Rodeio Internacional de Capão da Canoa, as premiações, no Estado, não visam ao investimento em atividades do mesmo tipo; elas existem para recompensar os participantes, que têm gastos com inscrição e manuseio dos animais que vão competir. Por isso, os prêmios não são de grande importância financeira. Segundo Hélio, “normalmente os rodeios se pagam; de lucro é muito pouco o que sobra para as entidades, estes são usados para a manutenção das mesmas e para a preparação para outros rodeios”. Porém, há bastante patrocinadores, pelo menos é o que se verifica no Rodeio Internacional de Capão da Canoa, que, em 2008, contou com o apoio de treze entidades. Com o intuito de baratear os custos e atrair cada vez mais gente, há uma tendência nacional de unir diversos tipos de eventos num único, como, por exemplo, vincular feiras agropecuárias a eventos festivos ligados ao campo, como rodeios. Essa característica vem acontecendo também aqui no RS, o que pode ser percebido na Expointer, por exemplo. Porém, essa é uma das únicas características que aproxima o rodeio gaúcho dos rodeios realizados em outros locais. “Apenas as gineteadas (uma das provas do rodeio em que o ginete tem que agüentar sem cair em cima do cavalo, enquanto este corcoveia) é que não são totalmente nossas, no início, não tínhamos a cultura de fazer essa modalidade nos rodeios, porém, com a influência do Uruguai e da Argentina, essa prática veio a ser implantada aqui”, explica Hélio.

RS x Brasil Em relação ao restante do Brasil, os rodeios daqui são bem particulares. Além de não serem considerados um tipo de esporte, como determina a Confederação Nacional do Rodeio, aqui eles não são uma prática profissional. Entretanto, nota-se que alguns outros elementos também se aproximam. Por exemplo, no RS a música que predomina nos shows é a gauchesca, mas se ouve também muita música sertaneja, tradicionais de rodeios de outros Estados, como São Paulo, que sofrem grande influência dos rodeios estadunidenses. O Rodeio Internacional de Capão da Canoa, por exemplo, divide seu espaço com músicas dos dois estilos. Enquanto nas provas artísticas e nos shows predominam músicas gauchescas, nos corredores do espaço do rodeio se ouve muita música sertaneja. Segundo Hélio, a manutenção das particularidades se deve a existência de uma federação como o MTG, que regula os eventos a fim de preservar as tradições gauchescas. Além dessa entidade, há também o Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore (IGTF), que não deixa antigos costumes se perderem no tempo. Caso essas instituições não existissem, provavelmente já teríamos sido invadidos por outras culturas, como ocorreu em outros Estados brasileiros, como São Paulo e Mato Grosso, por exemplo.


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Uma tradição de fé

Comunidades rurais da região da serra celebram a fé em festas que reúnem moradores de diversas cidades. Cooperação e confraternização dão o tom dos encontros Dalva Bavaresco dalvabav@yahoo.com.br

A festa é em honra à padroeira da comunidade de Monte Bérico, que dá nome ao lugar, e a São Pelegrino, protetor dos que sofrem de câncer. Cerca de 400 pessoas participam do evento. Guabiju, segundo o último levantamento feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o IBGE, em 2007, possui apenas 1669 habitantes,

distribuídos em seus 148 km². A maior parte da população trabalha no campo e pertence a comunidades definidas com base na proximidade geográfica. Em todo o município, são nove. A maioria possui capela e um salão onde, aos domingos, os moradores se reúnem para rezar um terço, jogar cartas e conversar. É também onde, uma ou duas vezes ao ano, são realizadas as festas. Mais que a tradição de um encontro, o que motiva a presença de muitos nas celebrações é a fé, como no caso de Lúcia Goin, 77 anos. Os últimos três, ela viveu na luta contra o câncer. Inicialmente a doença se manifestou no intestino, já em estágio avançado; depois, no fígado. “Em três anos me operaram seis vezes”, relata. Quando os problemas estavam superados, às custas de penosos tratamentos e muita força de vontade, dalva bavaresco

C

omo o repicar de um sino, os cantos religiosos entoados no interior da pequena igreja de Nossa Senhora do Monte Bérico, município de Guabiju, a cerca de 150 km de Caxias do Sul, anunciam o início de mais uma tradicional festa de capela realizada nas comunidades da área rural da região. Ao sinal, as pessoas que ainda se aglomeravam à entrada da pequena igreja se acomodam nos poucos bancos disponíveis, à espera da missa.

a realização de um exame de rotina trouxe de volta a preocupação com o retorno do câncer. Foram necessários exames mais específicos. Lúcia, à espera do resultado, aproveitou a festa em Monte Bérico para rezar. “Eu pedi a graça de melhorar”, conta ela, com os olhos voltados para o chão, “porque é muito sofrido”. E, para reforçar o pedido, ainda antes de o sol apontar no horizonte, Dona Lúcia partiu a pé em direção ao local da festa, distante uns cinco quilômetros da sua casa. Cada um deles foi percorrido em oração, numa caminhada que durou cerca de duas horas. No dia seguinte, uma boa notícia: o teste realizado para avaliar a suspeita de câncer dera negativo.

Dona Lúcia partiu a pé em direção ao local da festa, distante uns cinco quilômetros da sua casa. Cada um deles foi percorrido em oração, numa caminhada que durou cerca de duas horas A religiosidade é um dos elementos centrais nas festas promovidas pelas comunidades rurais em municípios da serra gaúcha, reflexo do forte catolicismo trazido pelos imigrantes italianos que colonizaram a área. Porém, os mais velhos lamentam o crescente desinteresse de alguns jovens pela religião: “vão pra festa só pra comer”, reclama


25 dona Maria Graciosa Frosi, 80 anos, fazendo referência ao almoço que acontece após a missa. Vanessa Chiomentto, estudante de administração de 22 anos, admite a mudança em curso. Nem sempre participa das missas, mas diz que gosta de fazer uma oração, pedir uma graça. Também lembra que, a exemplo do que acontece em Monte Bérico, nem sempre o tamanho da capela condiz com a quantidade de pessoas dispostas a assistir à celebração. De qualquer maneira, o fato é que os eventos não acontecem apenas por motivos religiosos: são, também, a fonte de renda das comunidades. O dinheiro arrecadado com o almoço, bebidas, rifas e leilões de tortas, resulta num lucro médio que varia de quatro a seis mil reais, em geral, utilizado na construção de novas instalações e na melhoria das existentes.

dalva bavaresco

Davide Rampazzo, agricultor de 67 anos, conta que o lucro da festa em curso iria custear as despesas de uma reforma realizada na cozinha do salão. Ele é um dos “festeiros” da vez, o que quer dizer que é um dos responsáveis pela organização da celebração. Mas o destino que se dará ao dinheiro

lucrado é decidido em conjunto pelos moradores da comunidade. Em caso de impasse, a palavra final cabe àqueles que estiverem em sua direção, responsabilidade definida por sorteio. A cada ano, um grupo se encarrega da função, até que representantes de todas as famílias tenham desempenhado o mesmo papel e o rodízio recomece. O mesmo acontece na distribuição das tarefas da festa, como o trabalho na cozinha e na churrasqueira, além do atendimento ao público no bar.

Os mais velhos lamentam o crescente desinteresse de alguns jovens pela religião: “vão pra festa só pra comer” Para cada evento, além dos “festeiros” locais, também são designados “festeiros de honra” de outras localidades. Geralmente, são três ou quatro casais convidados a colaborar com a realização do encontro incentivando seus amigos a comparecer, numa forma de cooperação entre as comunidades que compõem um mesmo município e aquelas dos arredores, onde a maior parte das pessoas

se conhece. Vanessa revela que fica feliz quando escolhem a ela e ao namorado como festeiros de honra. “É porque eles te dão valor, porque gostam de ti”, explica. No passado, os encontros não aconteciam com tanta freqüência, e, fora uns poucos bailes, eram os únicos momentos em que a população se distraía. As crianças aguardavam o dia com expectativa. "Só se ganhava roupa nova em dia de festa", revela Zélia Capellesso, 52 anos. “Era uma alegria! Era tudo pra nós, né? Porque, pelo amor de Deus, tu nunca saía de casa! E chegar a ir numa festa, com uma roupinha nova, toda bonitinha, era muito especial”, avalia. Dona Lúcia relata que os agricultores da região eram muito pobres. “Não se ia muito em festa porque não se tinha dinheiro, então não se gastava”, explica. Também conta que, enquanto alguns comiam churrasco, outros, como ela, apenas tomavam uma xícara de café com bolacha, mesmo nos dias festivos. Até os sapatos novos comprados para essas ocasiões eram preservados. Para não gastá-los, Zélia lembra que a caminhada até o local do evento era feita com pares velhos. Os novos só eram calçados quando se chegava ao destino. E carne bovina só se comia em dia de festa. Até o início da década de 80, a falta de energia elétrica nas zonas rurais dificultava a conservação. No diaa-dia, em geral, ingeria-se apenas carne de galinha e salames coloniais feitos com porco. Devido à falta de dinheiro e à quantidade necessária para atender à demanda das numerosas famílias, eram poucos os que compravam carne de boi. As festas representavam uma rara exceção à dieta. “Só que o churras-

Igreja da comunidade de Monte Bérico. Ao fundo, o salão onde é realizado o almoço


26 No passado, os encontros não aconteciam com tanta freqüência, e, fora uns poucos bailes, eram os únicos momentos em que a população se distraía. As crianças aguardavam o dia com expectativa. "Só se ganhava roupa nova em dia de festa", revela Zélia Capellesso, 52 anos

dalva bavaresco

Igreja e salão da comunidade de Boa Vista, uma das nove que integram o município de Guabiju."

co não era assim como hoje, nas mesas, era tudo numa sombra, embaixo duma árvore, com o espeto fincado na terra. E todo mundo ao redor, sem talher, sem nada, só uma faquinha”, ressalta Zélia. É que muitos lugares não tinham salão para abrigar as pessoas durante o almoço, apenas as igrejinhas. As instalações foram sendo construídas aos poucos, sempre com o dinheiro dos eventos. Para aumentar o lucro, os integrantes das comunidades, como fazem até hoje, doavam alimentos para compor o cardápio do almoço: batata e ovos para a maionese, alface e tomate para a salada, vinagre feito em casa para temperar. E, para comemorar, muito vinho. Em Monte Bérico, Davide conta que eram servidos dois barris, bebidos por “homem e mulher, parelho”. Durante a tarde, os homens jogavam bocha — jogo tradicional entre os descendentes de italiano — e cartas, principalmente quatrilho, tri sete e bisca. Também havia alguns jogos que distribuíam pequenos prêmios, como o da roleta e o da pesca, comuns em festas juninas. “Era um divertimento até o final do dia”, resume Juraci Dall'Agnol, agricultor de 58 anos.

Agora, também é freqüente a realização de bailes, à tarde. Em Monte Bérico, um grupo animou o final do evento com músicas gauchescas e sertanejas. Mas Vanessa destaca que é a conversa e o encontro com as pessoas queridas o que mais a faz gostar das festas: “às vezes tu reencontra gente que tu não via há tempos, é muito bom”. Para dona Lúcia, “ir pra igreja, rezar, ver o

pessoal do grupo de idosos e conversar com todos” é uma alegria. E arremata com um “Madona!”, expressão que, em italiano, quer dizer “Nossa Senhora”, como se não existissem palavras capazes de traduzir o quanto os encontros a deixam feliz.


Mestre marginal documenta a cultura brasileira

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Elyseu Visconti Cavalleiro, carioca, 70 anos, é um nome de referência do que ficou conhecido como Cinema Marginal. Amigo de Rogério Sganzerla, Júlio Bressane, Neville D`Almeida e outros cineastas importantes, ele conta que era uma espécie de conselheiro por ser o mais velho do grupo. Foi amigo também de Glauber Rocha, apesar das brigas do Cinema Novo com o Marginal. Elyseu esteve em Porto Alegre para uma palestra dentro da Mostra Cinema Marginal: A Imaginação Contra o Poder, que aconteceu na Sala P.F. Gastal da Usina do Gasômetro de 1 a 11 de maio deste ano de 2008. No dia 9, uma sexta-feira, foi exibido Os Monstros de Babaloo (1970), dirigido por ele, filme louquíssimo de espírito anárquico que faz violenta crítica à classe média através de um retrato caricato da mesma. Uma produção pouco conhecida, mas de grande importância, que ficou anos no ostracismo depois de ser censurada pela ditadura militar. Depois do longa, o diretor falou muito e respondeu perguntas, mostrando-se uma pessoa bem informal e um arquivo vivo do cinema brasileiro. Elyseu não chegou a abordar o seu vasto trabalho etnográfico de documentação do folclore brasileiro em curta-metragem, o que ficou para essa entrevista, realizada após a palestra num bar da rua Duque de Caxias. O programador da P.F. Gastal e crítico de cinema, Marcus Mello, e o curador da mostra, Leonardo Bomfim, estavam junto com a gente.

João Coimbra joaocoimbra85@yahoo.com.br

Sextante: Como começou a tua relação com o folclore brasileiro? Elyseu Cavalleiro: Depois da censura de Os Monstros de Babaloo eu não via possibilidade de ficar na metrópole aí fui pro interior do Brasil fazer pesquisa, estudar e o primeiro trabalho que eu fiz foi nas margens do rio São Francisco, que é o Bom Jesus da Lapa. São as peregrinações dos santos de Bom Jesus da Lapa, salvador dos humildes, editado inclusive por um grande cineasta brasileiro que é o Rogério Sganzerla.

Sxt: Depois conheceste o Câmara Cascudo… EC: Após o Ticumbi fui-me embora lá para o Nordeste, para Pernambuco, lá em Apipucos, no Instituto Joaquim Nabuco, com o Gilberto Freyre. Eles me ajudaram muito lá a recolher todas as manifestações de festas populares de Pernambuco, o Caboclinhos Tapirapé e o Maracatu, Estrela da Tarde. E logo após fui fazer lá no Rio Grande do Norte com o Câmara Cascudo o Boi Calemba e o Pastoril, com texto do Cascudo, que

Fiz um documentário lá que é muito interessante — com músicas do Gilberto Gil feitas exatamente para o filme — que trouxe um marco dentro do cinema independente como documentário, foi um pioneirismo. Anos depois eu fiz um trabalho no Espírito Santo que é o Ticumbi. É um documentário de antropologia visual às margens do rio Cricaré, em Conceição da Barra. Foi feito um trabalho com um quilombo que habitava na Bahia e foi estrangulado por uma floresta industrial de eucalipto

e aí eles correram pro Espírito Santo. É uma homenagem a São Benedito, é um Congo… e esse documentário de 20 minutos em tempo real da festa do Ticumbi ganhou vários prêmios. Um em Brasília, um lá na Colômbia e na Grécia também, em Thessaloniki. É um documentário que é o meu carro chefe de vários documentários que eu venho fazendo até hoje.


28 me influenciou muito, me ajudou muito, foi um grande antropólogo, conhecia profundamente as festas populares brasileiras, me deu um grande apoio, foi meu professor. Logo após do RN fui para as Alagoas. Lá eu fiz nos canaviais o Guerreiro de Alagoas, em homenagem ao Glauber Rocha. Hoje eu abandonei os 35 milímetros e venho fazendo em DVD os documentários, porque cinema tá muito caro e eu não tenho subvenção do governo.

Sxt: E como foi o contato com os povos que faziam todas essas celebrações, essas festas populares? EC: É uma experiência importantíssima, imagina você sair do Rio de Janeiro, uma metrópole, e chegar no interior do Brasil e captar todo esse espírito popular, de festas. Principalmente o Cavalo Marinho da cidade de Bayeux [pronuncia-se baiê], na Paraíba. Bayeux também é uma cidade na França. Foi a primeira cidade da entrada dos americanos pra defender os franceses dos nazistas. E aí em todo mundo tem uma cidade de Bayeux. Voltando ao Cavalo Marinho, é uma festividade natalina da missa do Galo. Até hoje recebo cartas do grupo José Raimundo. O Cavalo Marinho da Paraíba narrado pela Susana de Moraes, filha do Vinicius de Moraes, dá bem um espírito da terra. Foi um documentário exibido em vários festivais também. E tem a Feira de Campina Grande, na Paraíba, que ganhou um prêmio em Bucareste, na Romênia, na época do socialismo lá e tal… Todos esses documentários eu que fiz a fotografia e produzi, além de dirigir. E correram do Oiapoque ao Chuí, os filmes foram exibidos nos cinemas, todos tiraram certificado de produto nacional.

Sxt: Várias dessas festas estão ligadas à religião. Como tu vê essa junção de festividade com religiosidade? EC: Tem o lado do sincretismo religioso, mas são festas católicas, tem um espírito Elyseu Visconti na Sala P.F. Gastal

católico desde os Ticumbi que é festa de São Benedito, o Congo, trazido da África, e tem os guerreiros das Alagoas, que é o lado do caboclo. Inclusive tem data marcada pra ser exibido lá na televisão do Vaticano. E os filmes ligados ao negro vão ser exibidos em Angola, Moçambique e nos outros países africanos de língua portuguesa. Tem uma situação que eu presenciei quando estava fazendo o documentário dos guerreiros em Alagoas. Passou um pessoal da Rede Globo e comprou todos os adereços do grupo, vidrilhos, bolas de ajoupas da Tchecoslováquia da década de 30, que mantiveram ali momentos maravilhosos dos guerreiros. E a Globo chegou lá com um carinha que tinha butique em São Paulo e no Rio de Janeiro, que comprou tudo. Eles estavam a míngua, não tinham dinheiro pra sobreviver e tiveram que vender pra decorar as butiques do pessoal da TV Globo. E acabou o grupo. Aí falei com o secretário de Cultura, que ainda deu um dinheiro pra eles vindo da Unesco. É isso que vai estraçalhando, vai acabando com os grupos de manifestação folclórica de tendência popular. Mesmo lá em Parati fiz o Marrapaiá, que é uma dança dos guizos no calcanhar e tive que comprar 30 pares de sapatos, eles

joão coimbra

Não interfiro absolutamente em nada, já é um espetáculo popular, eu sou um operário, vou lá pra documentar vieram de Cunha — uma cidade próxima — de pé no chão. Tive que comprar tênis pra eles e filmei lá o Marrapaiá. Todo esse material tá todo lá em casa, em Teresópolis, no Rio de Janeiro. Mas eu vou voltar aqui no Rio Grande do Sul pra fazer uma apresentação desse material sobre o folclore, que é importante, não só o folclore riograndense, que não tive oportunidade de abraçar, que é belíssimo, é genial, eu conheço bem. Tenho discos maravilhosos aqui do Rio Grande do Sul, escuto muito. No Rio de Janeiro estou fazendo atualmente um trabalho sobre as Folias de Reis do Rio, tá tudo preparado, já filmei. Eu tenho 40 documentários prontos pra exibição.

Sxt: A cada vez que tu vai fazer um documentário como tu faz pra entrar no clima daquele tipo de festa, de celebração? Claro que há todo um trabalho, como é que funciona essa etapa? EC: É a parte de produção. Primeiro tem uma pesquisa com pessoas interioranas, pessoas que sabem as datas das festas. As pessoas que fazem os festejos são


29 pessoas campestres, um corta cana, outro planta batata e tem uma data específica pra eles se encontrarem. Isso tudo tem que coincidir com uma data que eu esteja lá fazendo. Não interfiro absolutamente em nada, já é um espetáculo popular, eu sou um operário ali, vou lá pra documentar esse material todo. Já a Rede Globo vai lá e interfere, muda a coreografia, a música, bota um novo figurino que vem lá da TV Globo do Rio de Janeiro, isso é um absurdo… isso aí é um para-folclore, não é o folclore. Porque há interferência do prefeito, governador… isso tudo é falsificado. A coisa toda é no interior, na terra mesmo. Ir lá, andar no lombo de burro, carroça de boi, até chegar no lugar certo e filmar, porque aquilo vai se acabar, tá se acabando. Uma parte dos trabalhos que eu fiz de documentação já se acabaram, não existe mais.

Passou um pessoal da Rede Globo e comprou todos os adereços do grupo Sxt: Não existe mais por quê? EC: Não existe porque não há incentivo do governo, nem dos prefeitos, nem das sociedades locais que podiam ajudar, porque aquilo faz parte da cultura local, que é importante porra… mas não fazem isso, não ajudam, não fazem o mínimo possível pra dar continuidade a esse trabalho.

Sxt: O que une as diferentes manifestações populares do Brasil do Oiapoque ao Chuí? EC: Tem uma unificação porque o Brasil é de língua portuguesa. Cada região tem um sotaque, tem uma manifestação. Você vai no Piauí tem um sotaque, no Amazonas é outro, e tem toda uma característica própria. Inclusive o próprio Bumba Meu Boi. Eu mapeei toda aquela região do Bumba Meu Boi, que não existe em nenhuma

Filmes de Elyseu Visconti (faltam os mais recentes) Longas: Os monstros do Babaloo (1970); Lobisomem, terror da meianoite (1971). Curtas: Semana da Cultura Brasileira em Praga (1965); Monólogo (1965); Folia do Divino (1968); década de 60 (sem data de finalização): O Moleque e a pipa; Folguedos populares; A feira de Juazeiro; Romaria (1970); Bom Jesus da Lapa, salvador dos humildes (1970); Elyseu Visconti, arte gráfica de industrial (1970); As sertanejas (1971); Giuventu (1972); Índia mística (1972); Budismo no Ceilão (1972); Paquistão (1973); Turquia: Gorema e Capadócia (1973); Ticumbi (1978); Caboclinhos Tapirapé (1978); Maracatu, Estrela da Tarde (1978); Feira de Campina Grande (1979); Boi Calemba (1979); Cavalo Marinho da Paraíba (1979); Guerreiro de Alagoas (1981); Pastoril (1982); Sindicalismo no Brasil (1987).

parte do mundo. Agora aqui em Santa Catarina é terrível, eles serram a pata do boi. Tem até um livro sobre a Farra do Boi em SC. É um perigo porque as pessoas lá são violentas, é feito o jogo da briga de galo. As pessoas podem matar você ali. Mas no Maranhão é uma maravilha, onde nasceu o Bumba Meu Boi. E em Pernambuco o velho Nassau, um holandês, desgraçado, botou o boi na vara, arranjou uma vara enorme e botou em Recife o boi na vara. Mas é um espetáculo popular. Eu saio lá daquele eixo Rio – São Paulo pra viver o lado popular e me divirto um bocado.

Sxt: E em que esse contato com a cultura popular influenciou e influencia na tua vida? EC: É uma importância extraordinária para minha vida, para minha sobrevivência, porque saí do Rio de Janeiro procurado pela polícia do DOPS na época

da ditadura. Tive que ir pro interior do Brasil, não ficar escondido, mas trabalhando, fazendo os contatos, fazendo pesquisa, antropologia visual. O Mário de Andrade já fez isso na década de 30 pela Secretaria de Cultura de São Paulo. Mas agora com toda essa tecnologia é importante aproveitar quando estou vivo, enquanto eu viver vou continuar meu trabalho. Estou fazendo agora um trabalho sobre os Caiçaras lá em Parati. Fiz vários documentários sobre Parati, as festas de Parati, são cinco vídeos pra Unesco, pro inventário de tombamento de Parati. Até cair na cova eu vou continuar filmando.

Sxt: Tem um livro teu que vai sair que é sobre esse lado do folclore… EC: O Andarilho do Folclore. São entrevistas do Câmara Cascudo, Gilberto Freyre, Téo Brandão e outros sociólogos e professores de antropologia. Inclusive uma parte desses meus documentários está lá em Paris com o Levy-Strauss, que também é um grande antropólogo. Ele tá com 90 e poucos anos, tá na beira da cova e ta lá em Paris vendo os documentários pra fazer um texto. É um velhinho maravilhoso, se cuida, é uma pessoa fantástica.

Sxt: Quando sai o livro? EC: Até o final do ano sai O Andarilho do Folclore e depois sai outro livro, o Auto-Cine Retrato, que é uma biografia, como aconteceu todo o cinema marginal — que o pessoal chama de marginal — o cinema de invenção, cinema independente, o olho pelo olho, do Buñuel [1900-1983, cineasta espanhol]. O cinema é uma cachoeira, como falava Humberto Mauro. Não há memória aqui no Brasil, tudo se apaga, é um desleixo total pelo cinema, pelo folclore, e a gente está colocando uma memória viva pros nossos netos, nossos bisnetos, pro Brasil inteiro. É uma semente que nós jogamos aqui agora nesse momento, é uma árvore que se planta.


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O palco é de todos A celebração dos diferentes estilos do Festival de Música de Paraí Emanuela Pegoraro emanuela.pegoraro@gmail.com

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onhecido informalmente pelo público cativo como “Woodstock Paraiense”, e promovido pela Rádio Comunitária Cultura FM 105.9 MHz do município, o Festival de Música de Parai ocorre anualmente na cidade de seis mil habitantes do nordeste gaúcho, a 220 km de Porto Alegre. O local escolhido para a festa é o Parque Municipal Tranquillo Zadinello, uma extensa área verde com estrutura de camping que abriga em média dois mil participantes anuais. A segunda sexta-feira de cada mês de novembro é o dia de abertura do Festival. Uma semana antes é possível encontrar alguns participantes ansiosos, que já aguardam os primeiros acordes de guitarra com suas barracas a postos.

Início inusitado Em fevereiro de 2004, a Rádio Cultura FM decidiu convidar os músicos paraienses para se apresentarem em um

domingo à tarde na Praça da Matriz. Eu era uma colaboradora voluntária da Cultura FM na ocasião. Comparecia ao pequeno estúdio diariamente para organizar a programação musical e preparar um programa sobre dicas de saúde que apresentava semanalmente. Logo no início da tarde de domingo, um ônibus lotado estacionava ao lado da praça, trazendo participantes da cidade vizinha de Serafina Corrêa, uma surpresa aos organizadores do evento. Até o anoitecer daquele dia, 13 grupos se apresentaram à comissão julgadora, que elegeu os três primeiras colocados.

No final do mesmo ano, o Festival assumiu seu formato atual, acontecendo sempre no mês de novembro durante três dias de apresentações, concurso e acampamento. A quarta edição do Festival, no ano de 2006, foi a de maior público: quatro mil pessoas acompanharam as apresentações de 19 bandas. “Um final de semana inteiro de música, fazendo e curtindo música”, comenta Fernanda Pivatto, integrante da banda Baby Liss, de Nova Prata.

“O Festival de Música nasceu com o objetivo de criar um espaço para os músicos de Paraí poderem mostrar seus trabalhos. Porém, como foi expressiva a participação de músicos de outras cidades, percebemos que o espaço poderia ser regional”, comenta Inácio Todeschini, presidente da Associação Amigos da Cultura, mantenedora da Rádio Cultura FM.

O concurso de bandas acontece durante o domingo. Os grupos são avaliados por uma comissão julgadora e ficam divididos em duas categorias: Música Própria e Música Cover. Um dos objetivos do evento é estimular a produção de composições próprias, que ao final, recebem uma premiação maior. “Este é, sem dúvida, um dos pontos altos do

O concurso


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Festival. É o espaço que nós, músicos, profissionais ou por mero hobby, precisamos para mostrar o nosso trabalho”, comenta Renan Scandolara, 19 anos, da banda Did I Ask?!, de Passo Fundo. O troféu do Júri Popular é entregue à banda eleita pelo público. Todos que assistem podem votar, preenchendo as cédulas distribuídas durante as apresentações. A dedicação dos músicos é evidente. “É ruim perder, mas isso nos faz voltarmos ao início do caminho, e consertarmos tudo que erramos. Minha banda fez fiasco em uma edição do festival, mas no outro ganhou dois troféus”, conta Anderson Rodrigues de Rodrigues, 21 anos, integrante da banda Aldebaran, da cidade de Marau. Os participantes pagam uma taxa para acampamento de R$ 10 por barraca, que é utilizada na manutenção da estrutura do parque. Já as bandas se inscrevem por R$ 40,00 (cada categoria), verba que é revertida na premiação em dinheiro. Desde a segunda edição, o Festival de Música de Paraí oferece anualmente R$ 1500 em prêmios.

Trabalho voluntário Inácio Todeschini explica que a Rádio Cultura FM busca seguir à risca o espírito comunitário de se fazer radiodifusão e não visa lucro financeiro com o Festival. “O que dá o estímulo necessário para sua realização é a satisfação de promover um evento em que muitas pessoas se divertem, confraternizam, conhecem novos amigos e que dá a oportunidade de músicos amadores mostrarem o seu trabalho para um público que a cada edição vem crescendo”, comenta.

O que eu mais gosto do Festival é a bagunça, as novas amizades, a integração musical e o aprendizado A emissora, que no ano de 2005 recebeu o apoio da Lei de Incentivo à Cultura do Governo do Estado do Rio Grande do Sul, sempre contou com o apoio de patrocinadores locais e com os amigos voluntários. “A equipe de trabalhadores do Festival de Música de Paraí é formada por estudantes, dentistas, eletricistas, funcionários

públicos, operários, trabalhadores da indústria e do comércio. Pessoas diferentes, mas com objetivos comuns”, afirma Inácio.

Todos os estilos “O que eu mais gosto do Festival é a bagunça, as novas amizades, a integração musical e o aprendizado”, declara Jones Junqueira, 22 anos, vocalista da banda Stereo Drive, de Caxias do Sul. Os grupos musicais são, predominantemente, das cidades vizinhas de Parai. Cidades como Nova Prata, Guaporé, Serafina Corrêa, Passo Fundo e Marau têm um expressivo número de participantes. Os cinco anos do Festival já fizeram com que o evento ultrapassasse as fronteiras regionais. Bandas de cidades como Lagoa Vermelha, Farroupilha, e até mesmo Porto Alegre, também têm presença confirmada todo ano. O público é predominantemente formado por jovens estudantes. A mescla de tribos é umas das características do Festival. Garotas arrastando no chão


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e do blues, já tivemos a participação de vários estilos como música gaúcha, sertaneja, MPB, música folclórica italiana...” Eduardo da Silva, músico da banda Slaughterfleshcult, de Passo Fundo, conta sobre sua experiência: “Nossa banda é uma banda de um estilo bem diferente das outras que se apresentam por lá, pois tocamos death metal, e nem por isso o pessoal olha com discriminação para nós. Pelo contrário, já participamos de dois Festivais seguidos e adoramos esta integração que este Festival proporciona”.

Porra, quantos dias faltam ainda??? =/ Ainda por cima esse ano vai demorar um dia a mais. Ano do caralho as pontas de suas saias hippies dançam abraçadas aos meninos do heavy metal e suas inseparáveis camisetas Iron Maiden. A galera do blues toca gaita de boca ao som de uma guitarra que espalha o cheiro de incenso por todo o palco. Na platéia, algumas famílias vêm aplaudir o dia de músico de seus filhos. Rafael Monteiro expressa sua satisfação com a diversidade de pessoas e estilos diferentes que passam pelo Festival de Música de Paraí, além de destacar o “respeito que há entre os representantes de cada estilo”. O regulamento do Festival não especifica estilo musical. Assim, diversas vezes o evento teve a participação de grupos que representavam minorias, como explica Inácio: “Além do rock

Recordo um momento do terceiro Festival, no ano de 2005, quando concorreu a dupla sertaneja da cidade de Marau chamada Cascão e Paulinho, executando a composição própria “Lua Mana”. A dupla parecia intimidada em subir ao palco e cantar uma música sertaneja, entre a predominância do rock e suas variações. Foi comovente para mim, que realizava trabalho voluntário durante o evento, ver grande parte do público dançando abraçada enquanto cantava o refrão contagiante de “Lua Mana”. A dupla Cascão e Paulinho foi muito aplaudida, um sucesso do terceiro Festival, que recebeu o Prêmio Destaque do júri.

Na rede A presença on-line do Festival de Música de Paraí é forte. Com objetivo de compartilhar as inúmeras fotografias que são feitas durante os três dias do evento, foi criada uma conta comunitária de e-mail, a qual todo participante pode acessar a deixar suas imagens. A organização do evento disponibiliza ainda no e-mail coletivo as os arquivos de áudio das apresentações das bandas, gravados anualmente. A internet é o meio que os participantes também utilizam para comentar e discutir o Festival. Nos meses que


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Entre os músicos da banda e o público, a distância é mínima, todos ficam sobre o mesmo palco emanuela pegoraro

antecedem o evento, o movimento da comunidade do Festival de Música de Paraí do Orkut é grande, e os posts refletem a ansiedade para que o segundo fim-de-semana de novembro chegue logo. Algumas vezes, a espera para o próximo Festival começa cedo. Já no dia 9 de março de 2008, três meses após o encerramento do último evento, o membro Deivid Manfroi, da cidade de Marau, escreveu no mural da comunidade: "Porra, quantos dias faltam ainda??? =/ Ainda por cima esse ano vai demorar um dia a mais. Ano do caralho”.

e o pessoal invade o palco cantando e pulando com a gente! Ficamos junto da bateria e a galera no palco não parava, principalmente quando tocamos System of a Down”, revela. A noite de sábado é o momento mais quente do palco de apresentações. O show de uma banda convidada pela produção do Festival faz o acampamento pulsar. Como descreve Rafael, entre os músicos da banda e o público a distância é mínima, todos ficam

sobre o mesmo palco. No Festival de Música de Paraí, todo espectador tem um pouco de músico, e todo músico acompanha as apresentações de seu público. É o fim de semana em que as estrelas do show são aqueles que o desejarem ser.

O palco é de todos Durante todo o Festival (exceto enquanto se desenvolve o concurso do domingo), o palco fica à disposição dos participantes. Podem se apresentar todos os que desejarem, e a integração entre diferentes bandas é sempre uma atração à parte. Grupos improvisados se formam todo ano, e o resultado é impressionante. Rafael Monteiro, integrante da banda Bohas Hibrida, de Serafina Corrêa, conta sobre a experiência do palco livre: “Sem dúvida é o melhor de tudo. Nos divertimos mais durante os 30 minutos que as bandas têm direito na noite de sábado do que na competição do domingo. Tocamos, pulamos,

emanuela pegoraro


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Um m undo à pa rte Tales Gubes Vaz tales.gubes@gmail.com

Para vive roa nime

troboy. Durante os anos oitenta poucos desenhos fizeram sucesso, destacandose Transformers e Thundercats.

A

primeira impressão que se tem é a de estar entrando em uma festa à fantasia. Pessoas de todos os tipos, idades, roupas e estilos, caminham, conversam em grupos e correm. Pais, filhos, namorados e amigos: todos se misturam com personagens de desenhos japoneses ou de famosos jogos de videogame. Não se trata, porém, de nenhuma convenção de loucos. Trata-se de um evento de anime. O termo “anime” significa, para nós ocidentais, animações feitas no Japão, enquanto para os japoneses a palavra designa qualquer animação, não importando sua nacionalidade. No Brasil, os animes chegaram nas décadas de sessenta e setenta, com clássicos como A Princesa e o Cavaleiro, Fantomas e As-

O estouro das animações japonesas no Brasil — iniciado com a transmissão de Cavaleiros do Zodíaco nos anos 90 — tem permitido aos animes ocuparem um espaço cada vez maior na televisão e fez com que reuniões entre aficionados — conhecidos como otakus — começassem se tornar mais freqüentes no Rio Grande do Sul. Atualmente, tem-se pelo menos uma a cada três meses. A estrutura básica desse tipo de evento envolve alugar um colégio ou um campus de faculdade (como aconteceu com o campus central da Rede Metodista do Sul em março deste ano), garantindo um espaço amplo e protegido. Enquanto os corredores e as áreas abertas são utilizados como espaços de convívio, as salas e os ginásios costumam ser reservados para atrações, lojas e concursos. São bastante comuns estandes de editoras e de lojas que vendem acessórios, revistas e DVD’s. Normalmente com pre-

ços mais baixos do que os encontrados fora dos eventos, certos itens mais raros se esgotam rapidamente. Entre os artigos mais procurados estão toucas, orelhas e luvas de bichinhos, em geral coelhos e raposas. Também é fácil encontrar pessoas dispostas a trocar coleções de revistas sobre o tema, negociando com outros visitantes ou mesmo com as bancas de lojistas. A maior parte desses encontros possui uma ou mais salas de exibição de animes e filmes, algumas vezes separados tematicamente. É comum que cada uma destas salas tenha uma programação repleta de capítulos raros de animes consagrados, filmes antigos e produções recentes. Freqüentemente são oferecidos pequenos cursos e oficinas, nos quais se pode aprender a fazer origami (arte tradicional japonesa de dobrar pedaços de papel em formas representativas de animais, objetos, flores, etc.), a desenhar, ou ainda a compreender um pouco da língua japonesa. Estas oficinas ajudam a enxergar a diversidade dos visitantes, admiradores não só dos desenhos ja-


35 poneses, mas também da cultura nipônica. Algumas vezes pode ser difícil escolher o que fazer ao longo do evento, pois os cursos e as programações das salas de exibição não costumam se repetir e não é difícil encontrar dois pontos de interesse ocorrendo ao mesmo tempo. Não obstante, ainda se configura como uma reunião de pessoas com gostos semelhantes, não raro amigos. A resposta costuma ser a mesma quando se pergunta a um freqüentador o que o motiva a ir num evento de anime: a diversão.

Cosplays e o preconceito Pessoas fantasiadas de personagens de animes e de jogos de videogame são o ponto alto desses eventos. São chamadas de cosplayers, palavra formada do inglês costume player, “pessoa que se fantasia”. Os cosplays (a fantasia em si, não a pessoa que utiliza) servem de forma de contato inicial entre desconheci-

dos, pois além muitos gostarem de posar para fotos ao lado de seus personagens favoritos, muitos também se divertem conhecendo outras pessoas que também admiram seus personagens (algumas vezes a ponto de vesti-los). Geralmente o ponto alto de todo evento é um concurso que avalie os cosplays em termos de semelhança e também os cosplayers e sua capacidade de interpretação. Um exemplo desse tipo de concurso é o WCS, World Cosplay Summit, que acontece desde 2003, conta com a participação de pelo menos nove países, entre eles o Brasil, e cuja etapa final acontece no Japão. Tanto os animes quanto os cosplayers costumam ser vistos como infantis. É comum que se faça a associação entre os desenhos animados para crianças e as histórias animadas japonesas. Ocorre, contudo, que muitas das histórias japonesas contadas através de animação não se limitam a contos infantis. Ao contrário: a maioria dos animes são voltados para o público juvenil e adulto,

tales vaz

geralmente sofrendo cortes quando são passados aqui no Brasil, uma adaptação forçada de um público-alvo para outro. A palavra otaku possui significados distintos no Brasil e no Japão. Enquanto aqui ela serve para designar os apreciadores de animações japonesas e da cultura nipônica em geral, lá ela indica um grupo social caracterizado pela alienação e pela obsessão com relação a animes, sendo um adjetivo extremamente pejorativo. É curioso notar que apesar dessa diferença, no Brasil os otakus são normalmente enxergados como crianças alienadas e obsessivas que nada têm para fazer. Essa visão nasce de um preconceito: desenho não pode ser diversão de adulto. Que, como todo preconceito, carece de legitimidade. Uma boa forma de se conhecer este mundo diferente é visitálo em um encontro.


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Corrida maluca Taxista porto-alegrense ganha fama ao celebrar datas comemorativas enquanto trabalha

Gustavo Skrotzky guscspoa@yahoo.com.br Wesley Kuhn wesleykuhn@gmail.com

O

s táxis de Porto Alegre não costumam despertar a atenção. Cerca de 4 mil rodam pela cidade todos os dias, mas, apesar da chamativa cor alaranjada, muitas vezes acabam dispersos na rotina dos habitantes da capital. Tampouco os taxistas costumam atrair olhares intensos. De maneira geral, exercem seu trabalho com profunda discrição. Esse não é o caso de Newton Boa Nova.

de neve, além de alto-falantes no párachoque dianteiro, usados para tocar uma trilha sonora apropriada ao evento. A boa repercussão da iniciativa motivou o taxista a ampliar o número de personagens. Somaram-se ao bom velhinho: o carnavalesco, o coelhinho da páscoa, o palhaço e muitos outros. E Boa Nova cuida de todos os detalhes, desde a decoração do veículo com cartazes temáticos à idealização dos trajes de cada celebração. “Eu tenho uma cliente que faz cortinas. Ela faz as fantasias, e eu não cobro as corridas dela quando ela vai entregar as cortinas aos clientes”, conta.

O taxista temático, como se autodenomina, ganhou fama na cidade há onze anos, quando passou a celebrar datas comemorativas de maneira pouco convencional. Vestido a caráter, Boa Nova lembra as principais festividades do ano enquanto transporta passageiros pelas ruas de Porto Alegre. O Uno Mille Fire 2004 desperta curiosidade por onde passa, atraindo clientes e popularidade ao motorista de 54 anos. “No começo, meus colegas me boicotavam. O pessoal ficava bravo: ‘Olha ali o cara querendo aparecer! De coelhinho, de papai noel, de palhaço…’ Hoje não, hoje meus colegas me dão força, acham legal. Eles dizem que eu me torno um exemplo pra classe, pois seguido estou no rádio ou jornal. Isso é bom para a classe dos taxistas”.

Taxista divulgou em abril corrida em benefício de crianças diabéticas

edu andrade

Tudo começou no natal de 1997. Na ocasião, Newton Boa Nova surpreendeu a todos ao dirigir seu táxi, fantasiado de Papai Noel. “Há 26 anos me visto para meus filhos, parentes e amigos. Depois que comprei o táxi, resolvi ser o Papai Noel de toda a cidade”, relata. A empreitada incluiu também adaptações no carro, que ganhou luzes extras, um simulador

Curiosa, a idéia do taxista causa simpatia e espanto. Não é incomum posturas desconfiadas diante de sua figura excêntrica: “As pessoas entram no táxi e ficam olhando para trás para ver se tem um carro de alguma equipe para

fazer filmagem. Olham para ver se tem câmera escondida dentro do carro”, lembra. No entanto, Boa Nova garante que uma rápida explicação é capaz de desfazer qualquer suspeita. A aceitação entre os passageiros costuma ser bastante elevada, inclusive entre as crianças. “A princípio, elas se assustam, depois ficam ‘legal’: ‘Pô, Papai Noel, posso entregar uma cartinha?’ E elas entregam a cartinha. ‘Oh, não vai esquecer de mim!’”, brinca.

Engajamento social Newton Boa Nova ressalta que a visibilidade de sua iniciativa pode servir a causas filantrópicas. “O táxi é um veículo muito poderoso. Meu táxi está na rua 14 horas por dia e é visto por uma média de 30 mil pessoas”, pondera. Em abril, por exemplo, um Homem-Aranha


37 foi visto pela capital gaúcha conduzindo o Uno Mille 2004 repleto de cartazes promocionais da décima “Corrida para Vencer o Diabetes”. O evento é realizado pelo Instituto da Criança com Diabetes. “Eu pensei como eu podia sustentar minha família e ser útil à comunidade”, revela. Em outubro, o leãozinho, mascote do instituto de Câncer Infantil, também costuma freqüentar o veículo de Boa Nova. O felino aproveita a oportunidade para divulgar a “Corrida pela Vida”, promovida anualmente pela instituição. “Um leãozinho dirigindo um táxi chama a atenção. Então, as pessoas me vêem, e eu digo: ‘Vamos lá, vamos ajudar as crianças a vencer o câncer infantil’”. O motorista admite que, quando participa de eventos beneficentes, a clientela se intensifica, motivada a colaborar com as causas em pauta.

ricardo giusti

A revelada intenção de ajudar, no entanto, não impede que o taxista promova seus serviços. No último carnaval, Boa Nova aderiu à campanha de combate ao uso de bebidas alcoólicas entre

Há 26 anos me visto (de Papai Noel) para meus filhos, parentes e amigos. Depois que comprei o táxi, resolvi ser o Papai Noel de toda a cidade motoristas. “Pra andar na rua coloquei assim: ‘Dê a boa nova nesse carnaval: se beber, não dirija’. Aí, coloquei um cartaz e fui para dentro dos bailes, do sambódromo: ‘se beber todas, eu te levo’”, vangloria-se.

Taxista-celebridade Alheio às razões que motivaram o taxista — que poderiam revelar desde uma personalidade altruísta a uma egocêntrica —, o fato é que Newton Boa Nova se transformou em uma espécie de celebridade local. Em inúmeras ocasiões em que ele incorporou personagens, houve cobertura dos principais veículos de comunicação do estado. Em 2000 e em 2003 respectivamente, o taxista foi citado, inclusive, por Martha Medeiros e Moacyr Scliar em colunas do jornal Zero Hora.

A “cara-de-pau” de Boa Nova permitiulhe ainda conhecer personalidades ilustres. Encontrou-se com Luis Fernando Veríssimo, graças a uma homenagem feita ao pai do escritor, com o ex-governador Germano Rigotto e com a governadora Yeda Crusius. O taxista chegou até mesmo a ser recebido pelo presidente Lula durante visita do petista ao Rio Grande do Sul. “Eu fiquei sabendo que ele gostava de gravata. Então, fiz uma gravata com fotos dele e da Dona Marisa”. A assessoria do presidente gostou do resultado e permitiu que Boa Nova se aproximasse do casal. O auge da fama aconteceu em 2002, quando recebeu a medalha “Amigo da cidade” do então prefeito de Porto Alegre Tarso Genro. Por outro lado, a notoriedade alcançada pelo taxista transformou-o em alvo de críticas. Contudo, ele se defende: “As pessoas dizem: ‘Ah, tu faz isso, se veste de Papai Noel, de Coelhinho para ganhar dinheiro’. Eu não faço isso para ganhar dinheiro; eu faço isso porque eu gosto. Justamente porque hoje, em função da vida estar muito corrida, alguém tem que dizer alguma coisa. Automaticamente, as pessoas se emocionam e me dão umas coisas a mais quando a corrida termina”. Boa Nova fez apelo a foliões durante o carnaval de 2007


Elas estão espalhadas por todo o país, reúnem os mais diversos tipo de pessoas e são um momento especial de confraternizar. As confrarias são mais do que apenas reuniões Daiana Vivan daianavivan@gmail.com

T

erça-feira é dia de jogo. Eles se preparam, pensam na estratégia, pegam a coleção de botões e vão pro clube jogar futebol. Esse grupo de amigos não se reúne somente para a tradicional “pelada” da semana, eles formam a Confraria União pelo Futebol de Mesa. O grupo formou-se no ano de 2005, a partir do gosto em comum dos vizinhos da rua Eça de Queiroz. A Liga de Futebol de Mesa da Eça de Queiroz, como foi chamada inicialmente, manteve-se com encontros regulares no salão de festas do prédio do, hoje, representante comercial e financeiro da confraria, David Ainhoren. Com a popularidade do grupo crescendo e a chegada de novos membros à confraria, uma nova sede foi pleiteada junto ao Grêmio Náutico União, que forneceu uma sala exclusiva para que a confraria continuasse funcionando. Ambas as partes saíram ganhando: a confraria passou a ter um espaço exclusivo e o União viu antigos sócios voltarem a freqüentar o clube.

Uma característica das confrarias é a associação de pessoas, muitas vezes, bastante diferentes

Diferentes, mas com alguma coisa em comum taiane agnoletto

Assim como a União pelo Futebol de Mesa, existem muitos outros grupos de pessoas com afinidades comuns, que se reúnem para formar confrarias. Os motivos são os mais variados possíveis. Com uma simples busca pela Internet é possível encontrar confrarias de enólogos, designers, apreciadores de charutos, gastrônomos, mergulhadores, leitores e escritores. Pessoas, muitas vezes, bastante diferentes. A palavra confraria tem o mesmo significado de irmandade, ou seja, uma associação para fins religiosos. Iniciadas na Europa, as confrarias do Brasil colônia foram muito importantes para a socialização. Participar de uma era a maneira de estar envolvido na vida da comunidade. As pessoas reuniam-se em torno da devoção a um santo, que podia ser o padroeiro da vila ou da cidade. Hoje, apesar de ainda serem parte de um ritual de socialização, as confrarias não são exclusivamente religiosas como eram há séculos atrás. Pensando exatamente na socialização, um grupo de amigos descasados resolveu criar a Confraria para Solteiros e Descasados. Ao contrário do que o nome pode sugerir, a intenção não é formar casais, é conhecer e encontrar amigos. Carlos Vycente Duarte, um dos fundadores da

confraria, diz que o grupo percebeu a importância da amizade depois do final dos casamentos. No princípio, eram apenas três amigos que se encontravam sobre um bueiro em frente à Galeria Malcon, na Rua dos Andradas, e, por esse motivo chamada de Confraria do Bueiro. Pouco tempo depois, o total de descasados já era de 18 e foi então que surgiu a idéia do clube. Os membros começaram a levar amigos e a confraria não parou mais de crescer. Desde 1995, ano em que a Confraria do Bueiro iniciou, até hoje, já Confraria para Solteiros e Descasados, mais de cinco mil pessoas participam de atividades do grupo, que promove passeios, festas dançantes, viagens e jantares. Confraria Reinações, no 11º encontro o livro escolhido foi Diogo e Diana de Tabajara Ruas e Nei Duclós

elanie maritza

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Confraria União pelo Futebol de Mesa, o grupo tem uma sala exclusiva no Grêmio Náutico União

Pensando num espaço para debater textos infanto-juvenis, considerados por muitos um tipo de literatura menor, os amigos Caio Ritter, Elaine Maritza, Christian David, Marô Barbieri e Hermes Bernardi Jr. formaram a Confraria Reinações. O nome surgiu do livro Reinações de Narizinho de Monteiro Lobato, o primeiro a ser discutido pelo grupo. Nas reuniões mensais, os participantes apontam todos os aspectos que acharem relevantes de uma obra escolhida. A confraria, que realizou o décimo segundo encontro no mês de abril, recebe cerca de 20 pessoas por encontro, e pretende fazer este ano, assim como fez no ano passado, uma reunião especial na Feira do Livro de Porto Alegre em outubro. Uma característica das confrarias é a associação de pessoas, muitas vezes, bastante diferentes. Confrarias, como a União pelo Futebol de Mesa, têm entre seus membros médicos, dentistas, aposentados, advogados, funcionários públicos, estudantes com idades variando de 11 a 64 anos. A Confraria para Solteiros e Descasados também reúne membros de profissões variadas: funcionários públicos, profissionais liberais, empresários, administradores. Um pouco diferente dessas, a Reinações agrega pessoas ligadas aos livros, como professores, bibliotecários, escritores e psicólogos. Independentemente das profissões ou idades, as confrarias são espaços de convivência em que as pessoas podem exercitar suas particularidades. O que as reúne num mesmo ambiente é a oportunidade de celebrar suas afinidades.

carlos vycente duarte

taiane agnoletto

Solteiros e descasados no Valle Nevado, Chile

Confraria União pelo Futebol de Mesa http://uniaofutmesa.googlepages.com/ Quem pode participar: sócios do clube Grêmio Náutico União Reuniões: semanalmente às terças-feiras e um encontro mensal na quinta-feira – Quinta da Bolha. Onde: Grêmio Náutico União, Rua Quintino Bocaiúva, 500 – Moinhos de Vento Confraria para Solteiros e Descasados http://www.partnerclube.com.br/ Quem pode participar: solteiros e descasados Reuniões: varia com o tipo de encontro (viagem, luau, jantar) Onde: varia com o tipo de encontro Confraria Reinações http://confrariareinacoes.blogspot.com/ Quem pode participar: qualquer pessoa Reuniões: mensais Onde: Livraria Letras & Cia, Rua Oswaldo Aranha, 444 - Bom Fim


De Kapri a Juliane Duas adolescentes, duas festas de 15 anos, dois mundos opostos

O

s moradores da aldeia indígena localizada na Lomba do Pinheiro, em Porto Alegre, estavam em festa. O Centro de Cultura encontrava-se decorado com bandeirolas e balões, lá fora o churrasco era preparado à moda tradicional: espetos de pau e fogo de chão. A celebração significava a realização do sonho de Audisseia Nascimento Padilha. Ela teria sua tão esperada festa de 15 anos. O desejo da menina de origem Kaingang nasceu cerca de três anos atrás, quando contou para seus pais a vontade de comemorar seus 15 anos. Na época, eles não puderam lhe dar nenhuma certeza, pois os recursos da família eram escassos. Em 2007, eles começaram a planejar e a economizar para o aniversário da filha. No mesmo período, outra família também estava envolvida com a organização de uma festa de 15 anos. Juliane Wallau desde pequena sabia o estilo que queria seu aniversário. O momento começou a ser posto em prática em março do ano passado, quando os preparativos tiveram início. A primeira medida foi entrar em contato com a empresa Margarida Müller, especialista no ramo de eventos sociais. Com o auxílio profissional, Juliane e a mãe Rosemeri foram em busca do que necessitavam. O primeiro passo a ser feito era definir o lugar. A escolha não foi muito difícil, entre os salões imaginados e os disponíveis, a Sogipa foi

patrícia carvalho rosa

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Suzana Pohia sgpohia@gmail.com

a melhor opção. Nos meses seguintes, foi uma maratona atrás de fotógrafo, cinegrafista, decoradora, empresa de som, entre outros.

As dificuldades por ser diferente Kapri no linguajar Kaingang significa árvore branca. É por esse nome que Audisseia é mais conhecida. Todos na família a chamam assim. Quem escolheu a palavra foi sua avó materna. No entanto, a menina ainda não passou pelo batismo indígena. Nos seus 15 anos, nunca rodou na escola. Entretanto, já teve vontade de abandonar os estudos. Mas sempre quando toca no assunto, sua mãe, Iracema, é veemente e lembra que sem a aprendizagem muitas portas se fecharão para a filha. Ela é razão de orgulho para os familiares, ao cursar a 1ª série do ensino médio está indo muito além do que os outros já foram.

No entanto, para realizar o desejo da filha, Iracema propôs um acordo, Audisseia não poderia largar os estudos Um dos motivos para o povo indígena abandonar tão cedo os bancos escolares é o preconceito. E isso Kapri sofre desde pequena. Estudante da Escola Estadu-

al Almirante Bacelar desde o início de sua vida acadêmica até hoje, ela passa por situações constrangedoras. Durante esse tempo, diz ter poucos amigos, para ser mais exata duas colegas. O resto da turma ou não fala com ela, ou diz desaforos. Os professores nada fazem, argumentam que são os próprios alunos que devem resolver o problema. O preconceito não pára por aí. Para matricular o irmão mais novo, a família teve que recorrer ao Ministério Público, pois, o único colégio que conseguiram para o garoto era muito distante do bairro onde moram. Com a ação, a matrícula foi realizada. Porém, nesse meio tempo dois anos foram perdidos. Kapri é uma menina tímida. A mãe diz que ela puxou a paciência do pai, principalmente por agüentar os insultos no colégio, lembra também que a menina é paciente para estudar. Na casa, os pais priorizam as atividades escolares, não exigem que ela ajude nas lidas domésticas. Quando perguntada sobre o que fazer depois de se formar, responde rápido: “Medicina, mas não gosto de sangue. Quero isso porque acho tão bonito os


41 hospitais e gosto do cheiro também”. Sobre a festa, não fala muito. Prefere seguir a conversa sobre o vestibular.

O despertar da adolescência Enquanto arrumava os últimos preparativos da festa, Juliane estava bem ansiosa. Nisso, a mãe ia explicando os detalhes da cerimônia. Na valsa, uma surpresa. A aniversariante incluiu na lista dos pares o namorado. A mãe admite que na época dela isso não era possível, conta também que sua festa foi a primeira oportunidade de usar salto e se maquiar. Com a filha, tudo foi diferente. Desde os 13 anos que Juliane usa maquiagem e sapatos altos. A mãe permitia com moderação, no entanto ter 15 anos trouxe outra regalia. Agora, não há mais horário para voltar das festas nos finais de semana. A menina comemora, principalmente porque esse ano há bastante amigas que celebrarão seus aniversários. Outra característica é a paixão por animais. Atualmente, ela possui dois gatos: a Clara e o Chico. No depoimento de Rosemeri feito na homenagem de aniversário, ela recorda a profissão que a filha queria seguir depois da viagem da família para a Disney: amestradora de baleias. A vontade já passou, para o alívio da mãe.

Fora isso, era necessário planejar o almoço, o vestido, a maquiagem, os doces e a decoração. Parte da carne e do arroz foi arrecadada através de doações, inclusive do governo municipal. A família calcula que gastou mais de mil reais. Quantia de grande significado para aqueles que obtêm a maior parte da renda através da venda de artesanato.

Esse ano chegou a hora de Juliane. A prática com a preparação do aniversário da irmã facilitou o caminho. Rosemeri ressalta a importância de contar com o amparo de uma empresa especializada, pois como possui dois empregos sobra pouco tempo para as decisões. Além de querer uma noite especial para as filhas, a realização da festa possui um motivo especial para Rosemeri. O pai de Juliane faleceu quando ela tinha sete anos. Foi uma reviravolta na vida das três. A mãe se viu sozinha e queria que as meninas mantivessem o padrão em que estavam acostumadas. Poder realizar aquilo que ela e o marido haviam planejado para as filhas é uma grata recompensa.

Na conversa com Iracema, ela contou que na própria tradição indígena há ritos de passagem. A menina ao chegar nessa fase torna-se uma moça, é só depois do casamento que ela vira mulher. “Eu mesma tive um churrasco quando fiz 18 anos, teve jogos e músicas tradicionais”, relata a mãe. No entanto, para realizar o desejo da filha, Iracema propôs um acordo: Audisseia não poderia largar os estudos.

Para a festa, ela já havia economizado. O avô materno também fez questão de colaborar no aniversário das duas netas. Mesmo assim, Rosemeri admite que no fim os gastos foram um pouco maior que o planejado. Entretanto, não reclama: “Têm pessoas que acham que é bobagem gastar com esse tipo de coisa. Mas eu não acho, sempre quis que minhas filhas tivessem essa noite especial. Nem que eu tenha que fazer escolhas como ter um carro de um modelo mais antigo do que não fazer a festa”.

A realização da mãe Ao indagar Rosemeri a respeito de seus 15 anos, ela não hesita: “Foi a noite em que me senti uma rainha. Foi muito especial, por isso sempre quis que minhas filhas sentissem o mesmo”. Em 2003, foi a vez da filha mais velha Marina, que pouco antes não sabia se queria a comemoração.

Semanas antes da data escolhida para a festa de Audisseia, seus pais, Iracema e João Carlos Padilha, ainda tinham dúvidas sobre a comemoração. A definição pelo Centro de Cultura na Lomba do Pinheiro foi motivada pelos familiares que habitam a aldeia. Se o lugar escolhido fosse perto da casa da família, em Viamão, muitos não poderiam comparecer, devido à distância.

patrícia carvalho rosa

O esforço para o sonho


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21 de março, essa é a data que Kapri nasceu. Esse ano, o dia coincidiu com a semana da Páscoa, por isso a comemoração foi adiada para o outro sábado, dia 29. A movimentação na aldeia começou cedo. As mulheres da família estavam na cozinha preparando o almoço, enquanto os homens vigiavam o churrasco. Cheguei à aldeia perto do meio-dia. Kapri estava em casa se arrumando juntamente com seus pais e irmãos menores. Enquanto isso, os jovens se divertiam ao redor do som e as crianças corriam livremente. O tempo ia passando e nada da família aparecer. Entre os presentes, havia um grupo da antropologia da UFRGS que costuma lidar com a questão indígena. Eles, além de convidados, eram responsáveis pelo registro fotográfico e cinematográfico da festa.

Desde os 13 anos que Juliane usa maquiagem e sapatos de salto. Agora, não há mais horário para voltar das festas nos finais de semana Essa foi a primeira vez que visitei uma aldeia. Ao mesmo tempo em que fiquei surpresa pelo estilo urbano das roupas e músicas, ficou bem nítida uma das principais características do povo indígena,

que é a vida em comunidade e o valor da família. Kapri ficou orgulhosa de ver os familiares ajudando em seu aniversário. O relógio marcava 14h quando a aniversariante chegou. A família veio dividida em dois carros. Apesar da demora, Kapri ainda não estava pronta. Ela usava uma calça jeans com uma blusa roxa, o vestido azul só iria ser usado quando a valsa fosse dançada. Com a presença do núcleo Padilha, a mesa foi posta do lado de fora e a movimentação em volta da comida começou. Os convidados, a maioria com pratos que trouxeram de casa, se serviram de arroz, salada e carne. Aqueles que estavam sem prato, como eu, pegavam pedaços de carne com a mão. Na volta, os cachorros disputavam os restos que eram lançados no chão. Reparei que Kapri pouco se alimentou. Depois foi arrumar o salão do Centro de Cultura. Para isso, foi necessário retirar as crianças do local, pois ela tinha medo de colocar os docinhos e o bolo com eles por lá. Terminado o serviço, se recolheu para uma casa para esperar a hora que entraria no salão. Durante esse tempo, o lugar esteve vigiado para não correr risco das crianças invadirem, mas mesmo assim tiveram umas quantas que pularam as janelas e entraram.

Na estrada de terra ainda havia resquícios da chuva de sexta-feira. Perto das 16h, Kapri, acompanhada do tio, fez o trajeto até o Centro de Cultura. Junto, vinham Iracema e algumas crianças. Ao entrar no ambiente, ela foi recebida com palmas. Mas o primeiro parabéns não foi para a menina, e sim para Almerinda de Melo, sua avó paterna que completou no dia 25 de março 90 anos. Não era uma valsa a música que Kapri dançou com seu pai, lembrava bem mais um sertanejo. Após a dança do pai com a filha, foi cantado o parabéns. Apesar de conhecer a aniversariante somente no dia, fui uma das primeiras a receber o pedaço de bolo. Para atender as crianças, uma fila foi feita. Houve ainda um momento para as fotos e logo após as danças começaram. No entanto, lágrimas escorriam no rosto de Kapri. Não soube o motivo na hora, só vim a entender o porquê do choro quando visitei a casa dos Padilha semanas depois da festa. Kapri ficou feliz com seu aniversário de 15 anos, mas admite que nem tudo foi como ela desejava. A menina queria mais convidados de sua idade e menos crianças presentes, pois, no fim, até a decoração elas arrancaram. E de um jeito acanhado, admite que imaginava que na sua festa de 15 anos conseguiria um namorado.

A sofisticação veste azul

suzana pohia

A beleza da Árvore Branca

A data de nascimento de Juliane é dia 24 de fevereiro, como cai nas férias, a família resolveu realizar a comemoração no dia 12 de abril, pois até lá haveria tempo para terminar a organização. O convite anunciava o início da festa às 20h. Cheguei à Sogipa perto das 21h. Na entrada do salão, já encontrei Rosemeri, que me ofereceu a oportunidade de ir até a sala onde Juliane esperava a hora de começar a festa. A menina estava ansiosa, disse que já fazia cerca de uma hora que aguardava. Além da preocupação com


o penteado, também havia a do atraso do namorado. Com o aviso de que tudo já estava pronto para o começo da festa, me dirigi ao salão. Lá aproveitei para analisar o ambiente. Já sabia que balões e flores estavam descartados da decoração, que era toda em tons de azul e prata, combinando com o vestido azul. Além das mesas, havia uma área reservada para os jovens, formada por puffs e sofás, com ilhas de doces. Esse local seria usado mais adiante, quando a segunda parte dos convidados chegaria.

Foi a noite em que me senti uma rainha. Foi muito especial, por isso sempre quis que minhas filhas sentissem o mesmo Quem conduziu Juliane até o salão foi seu avô materno. Em seguida, um vídeo com depoimentos de familiares foi exibido. A empresa foi até Santo Cristo recolher as entrevistas, pois os avós e alguns tios residem na cidade. As lembranças sobre Juliane emocionaram tanto a família como as amigas. Lágrimas também eram vistas no rosto da aniversariante. O primeiro par da jovem na valsa foi seu avô. Logo após, foi a vez do padrinho, seguido pelo namorado de sua mãe, depois seu melhor amigo e por último seu namorado. A escolha por essa seqüência aconteceu por um critério simples: a ordem em que cada um entrou na sua vida. Ao explicar como seria a valsa, Rosemeri mostra seu pesar com a ausência do pai da menina: “Se o pai dela fosse vivo, não teria essa preocupação, pois somente ele dançaria com ela. Quis que ela dançasse com as pessoas importantes de sua vida, para que ela não se sentisse desamparada nesse momento”. Após a janta, houve um momento para as fotos com os convidados. Juliane logo saiu de cena. Teve que voltar novamente para a sala, agora era a vez

de esperar a segunda parte da festa. A divisão aconteceu por indicação de Margarida Müller, que explicou para elas que essa é uma prática que está se tornando comum. Em um primeiro momento, são esperadas as pessoas mais próximas da família, e o segundo é destinado para os mais jovens, com isso é possível aumentar o número de convidados. Ao falar sobre os convidados, Juliane diz que no fim conseguiu convencer a mãe e chegou aos 300. Mesmo com a redução de custos, Margarida afirma que a quantia mínima para realizar uma festa é de R$ 25 mil. Segundo ela, abaixo desse valor a empresa não se encaixa no perfil dos clientes. Na segunda entrada, Juliane veio sozinha. A família se reuniu no centro do salão para assistir o vídeo com o depoimento das amigas, cantar parabéns e brindar. Após, a aniversariante recebeu uma surpresa: a homenagem ao vivo de suas amigas. O primeiro grupo era formado por oito meninas, que ela se aproximou em um feriado no ano passado. Até então, elas não se conheciam, mas ao passar alguns dias na mesma casa se tornaram grandes amigas. O segundo grupo se atrapalhou na hora de montar o jogral com os cartazes. Essas, eram seis amigas que se conhecem há mais tempo, pois estudam juntas no Colégio Anchieta desde pequenas. A demonstração de carinho emocionou bastante Juliane, que novamente chorou. Pelos cálculos de Rosemeri, a comemoração deveria se estender até às 5h. Quando sai, às 2h30min, fazia pouco tempo que as danças haviam começado e pela empolgação no meio da pista, não iria terminar tão cedo. A festa contou ainda com bartenders e distribuição de algodão doce. A noite especial que Rosemeri desejava para a filha foi realizada. Todos os detalhes da comemoração faziam com que Juliane brilhasse. Mesmo com o nervosismo, era visível a alegria da menina. O que tornou essa noite tão especial foi a beleza e desenvoltura de

suzana pohia

43

Juliane juntamente com o amor de sua família e amigos. Fui embora com a sensação de participar de um conto de fadas moderno, essa é a imagem que guardo do evento.

Celebração das diferenças Ao mesmo tempo em que comemoravam pela passagem de seus 15 anos, Juliane e Kapri representam realidades bem distintas. Por isso, a angústia ao começar escrever essa matéria. Não queria formar nenhum juízo de valor e ao mesmo tempo não queria ser superficial, pois estava tratando de um momento especial na vida delas. Apesar de conhecê-las há pouco tempo, ao entrar em suas vidas, aprendi com a superação do preconceito sofrido por Kapri e vibrei com a conquista do sonho de Juliane e Rosemeri. No fim, percebi que o que importa numa celebração de 15 anos é a união da família, seja com a irmã mais velha ajudando na escolha das fotos e músicas ou com as bandeirolas que o irmão menor fez para a decoração.


Vivendo a Amazônia em plena Porto Alegre: é o Santo Daime 44

Uma sensação forte percorre todo o corpo desde a espinha dorsal. Invade a alma, mexe com o espírito. Ao fechar os olhos, enxergo muitas coisas. Um fluxo contínuo de imagens que parece vir do interior da consciência, como se ela estivesse se expandindo, como se eu tivesse agora um sentido a mais, uma capacidade de sentir e visualizar a energia a minha volta e a minha própria. Ao abrir os olhos, vejo o mundo de outra forma. As pessoas emanam uma energia fortíssima João Coimbra joaocoimbra85@yahoo.com.br

E

m especial a de uma mulher que treme todo o corpo, batendo um pé no chão numa velocidade incrivelmente rápida. O salto de sua bota batendo no chão soa de forma alta e perturbadora. Porém, apesar de todo este êxtase, a minha viagem é consciente, aquilo tudo é real. Ao tomar o terceiro despacho (dose de Daime, a bebida ayahuasca) cantamos mais um pouco e depois começa o bailado, junto com o canto. Continuo sentindo a energia, enxergando a minha própria imaginação e tenho dificuldades de realizar esta etapa. Um irmão me auxilia, me empresta o hinário e ensina os passos da dança. Aos poucos vou conseguindo entrar no clima.

Praticamente todos os daimistas que conheci são pessoas bem mais tranqüilas do que a maioria e também falam baixinho, parecem incapazes de gritar com alguém. Para ir até o local da cerimônia do Santo Daime (que eles chamam de trabalho), encontrei o Gilson Taffarel, 43, presidente do Céu do Cruzeiro do Sul – Centro Eclético da Fluente Luz Universal Francisco Corrente, que me deu carona. Céu é como se denominam a maioria dos centros de Daime. Enfrentando o trânsito das sete e pouco da noite de uma véspera de feriado do Dia do Trabalho (1° de maio), partimos com toda a pressa do mundo. Demoramos pra chegar, pois o

local é distante, fica em Viamão — mas passa ônibus de PoA. Após um bom tempo, adentramos uma rua de terra, a estrada do Cantagalo. De repente ele freia e dobra numa pequena entrada rodeada de muito mato. Até o chão é verde. Chegando no Céu, sou orientado a passar na secretaria. Isso que eu não precisei passar por uma entrevista que normalmente é feita com participantes novos. Na secretaria, é necessário pagar a taxa de 25 reais para participar do trabalho — como eles denominam a cerimônia do Daime. Não havia sido avisado, fico um pouco constrangido, a menina que atende, ao ver meu embaraço, fala que é o preço sugerido, então, eu pago 10 (que é tudo o que


45 elen de oliveira (arquivo)

Padrinho Sebastião e madrinhas Julia, Rita e Cristina. Na foto à direita, mestre Irineu tenho) e digo que pago o resto depois. A taxa é necessária para a feitura do Daime e a manutenção das plantações do cipó jagube ou caapi (banesteriopsis caapi) e do arbusto que dá a folha rainha ou chacrona (psicotrya viridis), que são os dois ingredientes da bebida, sem contar a água. A contribuição é importante inclusive porque aqui no sul os cuidados têm de ser muito especiais, essas plantas originárias da Amazônia não estão acostumadas ao frio. Antes de eu ser atendido na secretaria, porém, um irmão perguntou quantos meses devia. Era março e abril. Ele pagou somente março e retirou a ficha para o trabalho. Depois ouvi (sem querer) uma irmã comentando, preocupada, que estava devendo muito. Ao final da cerimônia ela combinou com o Gilson de ligar pra ele para combinar o abatimento da “dívida”. Com isso, percebe-se que os líderes deste centro do Santo Daime não estão preocupados com a arrecadação de dinheiro. O presidente Gilson, que mora no Céu do Cruzeiro do Sul há seis anos, inclusive, é técnico de laboratório do Hospital de Clínicas. Mais 11 pessoas vivem atualmente na comunidade. Adentro a igreja, que tem o formato da estrela de Salomão (seis pontas). Lá dentro, cerca de 35, 40 pessoas se preparam para o início do trabalho de concentração, realizado nos dias 15 e 30 de cada mês. No meio do altar ressalta a presença de um cruzeiro ou cruz de maravaca, fotos do mestre Raimundo Irineu Serra,

maranhense fundador do Santo Daime em 1930 em Rio Branco AC e do padrinho Sebastião Mota de Melo, a quem foi confiado pelo primeiro o seguimento da doutrina. Todos notam que sou novato ali. As mulheres estão do outro lado do salão desde este momento. Ao iniciar o trabalho, todos nós, um a um, vamos recebendo do assistente uma orientação dos lugares onde devemos sentar. Elas sentam do lado oposto, de frente para os homens ocupando metade do espaço. Uma carrega um bebezinho de poucos meses no colo. Logo rezam-se vários pais nossos e aves-marias em seqüência. Após um tempo inicial de meditação, chega o grande momento. Nota-se que vários estavam ansiosos por ele. Fazia muito frio nesse dia, mas só agora o pessoal começa a esfregar as mãos freneticamente. A primeira dose do Daime é servida por Gilson. Formase uma pequena fila. Uma jarra enche o copo de vidro com o líquido de cor entre o laranja, o caramelo e o vermelho e eu tomo de um gole só. Copiando o que todos fazem depois de beber, faço o sinal da cruz meio desajeitado, pois não sou católico. Gilson olha olho no olho depois de eu tomar, como faz com todos. Então são cantados hinos, com o acompanhamento de dois violões. A coisa até este momento não faz nenhum sentido pra mim. Vários cânticos falam de Nossa Senhora da Conceição, a Rainha da Floresta, que mestre Irineu encontrou um dia no mato e que lhe confiou a…

Revelação Eis que se pára de cantar. Gilson orienta o assistente, que apaga a luz. Nesse momento tudo começa a fazer sentido. Em palavras, não é possível descrever. É como se uma revelação iluminasse meu espírito. Posso acessar conscientemente meu inconsciente. Ouve-se apenas o barulho da natureza (o local fica numa reserva ecológica) e de cães uivando. Depois que as luzes são acesas, passamos a cantar de novo. Porém, agora os hinos fazem sentido. Eles falam sobre o Daime e suas maravilhas. Eles chamam para o Daime. Dizem que o Daime é amor, é cura. Outros falam de Deus e Jesus Cristo. Sinto uma sensação singular de bem-estar espiritual. Vejo as palavras do hinário saindo do papel e vindo em direção a mim. Também visualizo no ar partículas da intensa energia que toma conta de todo o ambiente.

Nesse momento tudo começa a fazer sentido. Em palavras, não é possível descrever Ao final do trabalho de concentração, que durou cerca de quatro horas, todos estão exultantes. Os últimos recados ficam a cargo das mulheres. Vê-se que elas são bastante envolvidas e preocupadas com o Céu do Cruzeiro do Sul. Após, uma irmã pede um último hino. O violão volta a tocar, e mesmo sem a


46 mesma disciplina no bailado e no toque dos maracás (chocalhos), todos voltam a cantar e dançar. Depois, todos se cumprimentam fervorosamente, inclusive a mim. Alguns homens e mulheres se abraçam. O músico Wellington tem 32 anos. Me confidencia que no começo, em 98, participava de muitos trabalhos e não sentia nada. Conta que nessa época vivia uma vida vazia como músico da noite. Passaram-se cinco anos, quando um dia que estava com uma baita ressaca, tinha bebido muito e usado drogas ilícitas, um amigo lhe visitou e disse “é hoje que tu vai ser curado”. As normas do Daime orientam que três dias antes de qualquer tipo de trabalho não se use bebida alcoólica muito menos drogas e não se tenha relações sexuais. Mesmo assim, Wellington sentiu o chamado e foi pro trabalho. Nesse dia, vomitou muito, mas sentiu algo muito forte e bom, que o faz ser até hoje um daimista. Ele conta que o pessoal que tocava com ele também virou praticante. Logo, estavam tocando instrumentos nos trabalhos, sentando nas primeiras cadeiras (que ficam frente ao altar). Todas as cadeiras são de plástico, o lugar é bastante simples. Mas essas da primeira fileira são as únicas que tem almofada. Wellington conta que Gilson segurou as pontas para essa gurizada nova, pois membros mais antigos chiaram com o pessoal “tomando conta”. Até porque eles ainda não eram fardados. O fardamento só fizeram oito meses depois

de começarem a participar ativamente. Trata-se de uma cerimônia especial em que a pessoa resolve que vai realmente ter um compromisso na sua vida com o Santo Daime. A partir disso, ela passa a usar uma farda (espécie de uniforme) para os trabalhos. A maioria dos participantes é fardada. Os fardados pagam por mês uma quantia bem menor do que a de 25 reais por trabalho. Ao se fardar, a pessoa adquire um respeito maior entre os daimistas. A farda é branca ou azul, com uma estrela de Salomão em metal no lado direito do peito. A farda masculina inclui gravata.

A partir daquele momento o mal estar passou e até aquela linguagem que parecia um dialeto ficou clara como nada nunca na minha existência O Santo Daime não está correndo atrás de seguidores, isso é bem claro. Para participar, manifestei que de fato queria muito conhecer, participar de um trabalho, tomar o Daime. A doutrina era até mais fechada. Depois da passagem (como eles chamam a morte) do mestre Irineu (1892-1971), com o padrinho Sebastião Mota (1920-1990) a doutrina se expandiu bastante. Já existe pelo Brasil inteiro e em diversos países do mundo. Mas em muitos locais não é liberado judicialmente como aqui o consumo da ayahuasca, nem para fins religiosos. Em alguns lugares da Europa, a polícia invadiu rituais e prendeu os participantes.

A História do Daime em Porto Alegre Daimista fardada há 18 anos, a psicóloga Clarice Franke, 45, fazia parte do grupo que introduziu o Daime em Porto Alegre. Ela conta que a primeira vez que ouviu falar no Daime era uma coisa muito distante, não tinha a informação que hoje já está difundida sobre a doutrina. Ela explica o contexto em que tomou conhecimento do Daime nos anos 80: “Na época a gente não tinha muita ligação com isso porque os nossos interesses naquele período histórico eram outros. Existia até muito preconceito com isso até pela própria esquerda”. Porém um amigo da Clarice, Flávio Paim, conheceu o “Livro das Mirações”, de Alex Polari de Alverga. O autor, jornalista, foi guerrilheiro contra a ditadura militar e acabou sendo preso. Na prisão, ouviu falar do Daime. Ao ser solto, formou uma equipe para uma reportagem sobre a doutrina da floresta. A recepção foi boa, mas só tinha uma condição: que ele tomasse a bebida. Nessa noite, toda a revelação que ele teve acabou resultando nessa obra. Alex entrou de cabeça na doutrina, fundou um centro em Visconde de Mauá — distrito de Resende RJ — e hoje vive na comunidade que é considerada a “matriz” do Santo Daime, o Céu do Mapiá, no Amazonas. Flávio Paim conheceu o centro de Mauá RJ e, como gaúcho, veio para Porto Alegre na intenção de fundar um centro aqui em 1989. Para isso, chamou o grupo de amigos ao qual Clarice pertencia. Uma pessoa disponibilizou seu sítio, mas no dia marcado nem apareceu. Clarice, então, ofereceu sua casa, que tinha pátio, era num bairro tranqüilo, apesar de não ter contato direto com a natureza. Era um domingo em que se comemorava o dia de São Jorge (23 de abril). “Eu não sabia do que se tratava exatamente, o que a gente iria fazer, só sabia que iria tomar uma bebida que era sagrada. Meus objetivos espirituais eram claros, só não sabia o que iria encontrar. Eram cerca de oito, 10 pessoas, o Flávio posicionou o


47 pessoal para o bailado, serviu o Daime e colocou no gravador uma fita. Era de péssima qualidade, a gente não entendia quase nada, ouvindo umas canções muito estranhas (risadas). Ele fez uma seleção de hinos e colocou os dele também. Enfim, um hinário de 100 hinos, pra um primeiro trabalho de quem não sabia nada. Nosso irmão era muito… (risadas), digamos assim, fanático. Pra gente que não entendia absolutamente nada de nada… Não foi muito fácil, até que todo mundo conseguiu se coordenar

O teu único inimigo pode ser o teu preconceito mais ou menos”. Na reunião que houve antes desse dia, Clarice perguntou se havia algum perigo para a única pessoa do grupo, fora o Flávio Paim, que já havia tomado. A resposta foi marcante: “O teu único inimigo pode ser o teu preconceito”. Para Clarice, foi uma experiência inesquecível tomar o Daime pela primeira vez. “Começou a me dar enjôo, mal estar. Aí eu pensei de certo é isso que falaram que a gente tem que fazer uma certa limpeza, vomitar e tal. Eu cheguei a dar meia volta pra ir em direção ao pátio. Quando eu me virei, lembrei do que o cara tinha dito sobre o preconceito. Então, a impressão que eu tive era como se a minha cabeça abrisse e tivesse conectado com uma coisa do alto, como se fosse uma espiral, como tivesse liberado essa energia. A partir daquele momento o mal estar passou totalmente, eu não tive mais vontade nenhuma de sair, entendi perfeitamente como era o bailado, segui lendo os hinos e entendendo tudo do que se tratava e até aquela linguagem que parecia um dialeto daquele gravador horroroso ficou clara e cristalina como nada nunca na minha existência. Mas ao contrário do que eu temia — que eu fosse sair de mim pra uma outra coisa, sair fora como se diz — eu tava muito dentro de mim, mas de uma forma tão intensa que tudo aquilo tomava

Uma religião diferente O Santo Daime é considerado uma religião, porém, é bem mais aberto que todas as religiões que conheci. Não é dogmático, suas regras valem apenas para o momento em que acontece o trabalho. E servem para que a pessoa que participa do ritual não se desvirtue e consiga ter o melhor aproveitamento espiritual possível. Gilson conta que conheceu a ayahuasca fora do Daime, numa seita que já se extingüiu. Lá as pessoas tomavam ayahuasca e ficavam liberadas para dar uma volta, ir pro mato e tal. Acontece que a huasca é muito poderosa. Segundo Gilson, sem um direcionamento, a pessoa fica perdida, e pode até ter uma experiência negativa. O Daime também não priva as pessoas de participarem de outras seitas. A experiência é individual, ninguém é coagido a se tornar membro ou firmar compromisso com a doutrina. Depois do trabalho que participei, conversando com os daimistas, soube que vários deles participam também de outros tipos de trabalho. Gilson mesmo, falou da existência do Umbandaime, mistura de uma dimensão muito grande, era muito verdadeiro e ao mesmo tempo eu tava descobrindo uma coisa nova. Os hinos realmente traziam revelações. Com a luz do Daime aquilo tudo tinha um outro significado, como se abrisse as portas de uma outra dimensão de entendimento da realidade, do que significa mesmo tudo isso, Deus e a espiritualidade, enfim, a nossa vida espiritual o que é. Na verdade isso que aconteceu, se abriu definitivamente (não que eu tivesse entendido tudo) a porta dessa dimensão, de poder compreender que somos matéria, temos a dimensão emocional, a dimensão mental, mas também temos a dimensão espiritual. Então isso foi uma compreensão derradeira porque não era uma compreensão intelectual, não era um saber, ah sim eu sei que eu tenho um espírito, não, é sentir eu sou o es-

Umbanda com Daime, em que a bebida é tomada para chamar a Pomba-Gira e outras entidades da umbanda. Já a irmã Ana me contou que já participou de um ritual xamânico no interior do estado com índios. Eles colocam mais ingredientes na ayahuasca, além do jagube e da rainha. Ela gosta mais do trabalho realizado no meio da natureza, considera “mais forte”. No próprio terreno do Céu do Cruzeiro do Sul, há uma clareira no mato destinada para este fim. Já o diretor teatral e artista plástico Nelson de Magalhães, 52, conversou comigo logo depois de ter passado dois meses em Berlim, Alemanha, onde existe o Daime, apesar de ser ilegal. Não fardado, mas participante de trabalhos há quase 20 anos, ele ressalta a brasilidade da doutrina. “O Daime dá um status espiritual do Brasil em relação ao mundo”. “Tem até no Japão”, conta, “e sempre cantado em português”. www.santodaime.org. No link “Institucional” tem os endereços e contatos de todos os centros do país ligados a corrente do padrinho Sebastião.

pírito, isso é diferente. E pra mim veio muito de uma vez só, foi meio que um ‘talagaço’. Até tem um dos padrinhos velhos lá do Acre que dizia assim: na verdade a gente toma Daime uma vez na vida que é o dia que compreende, o resto… Então o dia que caiu a ficha, entendeu do que se trata, a porta abriu, foi… a partir dali tu sabe onde é que tu tá pisando então o resto é tudo lucro, aprendizagens que vão se tendo nessa escola”. O início oficial do Santo Daime em Porto Alegre aconteceu pouco depois, em 2 de fevereiro de 1990, já no Céu do Cruzeiro do Sul. Conforme a jornalista Elen de Oliveira, participante desde 91, “o Daime é uma possibilidade concreta de sentir como é ser uno com a criação e ao mesmo tempo dissolver-se no Todo sem intermediários”.


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Festa GLS: Uma Celebração da Diversidade Liberdade sexual, Drag Music e diversão na noite alternativa de Porto Alegre

A

inda quando discutíamos possíveis temas para abordar nessa publicação, minha pauta já estava decidida. A revista tinha que ser sobre celebrações, porque eu, cá com os meus botões, finalmente teria uma desculpa concreta para ir em a festa GLS (Gays, Lésbicas e Simpatizantes). Não que eu estivesse impedida de fazer isso antes, mas, como uma pé-de-pantufa assumida, a minha curiosidade acabava sempre perdendo para uma cama fofa e quentinha. O homossexualismo invadiu minha vida de forma tão avassaladora nos últimos tempos, que, quando percebi, a maioria dos meus melhores amigos ou era gay, ou era bi, ou era simpatizante. Não tenho dúvidas de que essas pessoas são as mais fantásticas que eu já conheci: inteligentes, companheiras, bem resolvidas, bem-sucedidas, felizes e, o melhor de tudo, sabem aproveitar a vida como ninguém. Um amigo passou quatro anos me contando como era a noite GLS e me convidando para ir com ele algum dia. Ele dizia: "Não é só para gay. Tem muito hetero. Tenho certeza que tu vai gostar!". Eu tinha muita curiosidade. Pelo que

Anne Ledur aledur@gmail.com

ele contava, era a coisa mais legal que já inventaram, quase do outro mundo. Só que o tempo foi passando, passando, ele foi para o exterior, e acabou que deixamos sempre para a próxima. Portanto, meu querido amigo, quando o tema da revista surgiu, já era uma questão de honra.

Tem gay pegando gay, tem hetero pegando hetero, tem bi pegando bi, tem casal juntando mais um para dar uma variada e tem quem não pegue ninguém Uma forasteira no terreno desconhecido Quando um “estrangeiro” chega a uma festa gay, começa a reparar quem a freqüenta, que roupa vestem, se estão sozinhos ou acompanhados, se beijam pessoas do mesmo sexo ou de sexos diferentes, o que bebem, se ingerem algum psicotrópico, que música toca, entre outras coisas. A resposta para essa observação panorâmica é que é impossível detectar tudo, justamente porque tem de tudo. Tem gay pegando gay, tem hetero pegando hetero, tem

bi pegando bi, tem casal juntando mais um para dar uma variada e tem quem não pegue ninguém. Em termos de diversidade, essa festa vai muito bem, obrigada. Eu perguntei para Felipe*, 22 anos, homossexual, por que ele achava que esse tipo de festa atraía tanta gente diferente. Ele explicou que, na balada gay, mesmo se você for hetero, você pode se soltar, gritar, dar risadas histéricas, abraçar um amigo sem maldade, etc. “Se tocar ‘baladona’, tu podes descer até o chão que ninguém vai ficar reparando”, disse. As pessoas se sentem à vontade lá. As festas GLS se caracterizam por serem muito animadas, justamente porque todos os indivíduos que as freqüentam sabem que aqueles são lugares onde podem ser como quiserem (ou como realmente são!). Tem gente que transa “escondido” nos cantinhos, tem gente que cheira cocaína no banheiro, tem gente que vai só para beber, tem gente que quer sair acompanhado, mas, principalmente, tem gente que vai lá só para curtir. Paola*, 23 anos, heterossexual, explica por que freqüenta esse tipo de * Nomes fictícios


49 evento: “As festas GLS me procuram. Tive algumas experiências, mesmo fora de Porto Alegre, de ir a festas que nem tinha idéia do que ia rolar e eram gays. Uma vez, ainda na fila, uma amiga mexicana — um pouco xenofóba — não quis entrar porque ‘jamais pagaria para ver dois caras se beijando’. A pessoa que vai em uma festa hetero já tem idéia do que vai encontrar. Na festa gay, o que importa é se divertir. A música é mais estimulante, as pessoas realmente dançam e estão despreocupadas. É uma forma de abstração — para mim, pelo menos. Agora, se tu tá na pilha de pegar alguém, aí, sabe… vai no Dado Bier. E boa sorte pra ti”. Já Felipe* tem outra intenção e afirma que “no fundo, no fundo, o que todos nós procuramos é sexo”.

Na festa gay, o que importa é se divertir. A música é mais estimulante, as pessoas realmente dançam e estão despreocupadas É bem comum que, depois de um certo horário, acabe a “pegação” e o salão se esvazie um pouco. Quem encontrou o que buscava vai para outros lugares (casa, motel, outros bares, imaginem o que quiserem…). Só permanecem na pista aqueles que foram mesmo pela festa. Também tem aqueles que ficam até o fim, esperando amanhecer para pegar o transporte coletivo. Salve os muitos baladeiros que vêm de Gravataí, Cachoeirinha, Alvorada, Guaíba, Canoas e Viamão!

Abra suas asas

20, 24 anos; enquanto no Venezianos, além de ter uma pista de dança e também ser um pub, tem gente um pouco mais velha”. Além da faixa etária, dentro de cada casa, também se percebe uma diferenciação por tribos: tem os bombados, os emos, os descolados, etc. E, como se não bastasse, existem festas para quem quer pagar mais ou menos dinheiro.

Cine Theatro Ypiranga Avenida Cristóvão Colombo, 772 - Floresta |(51) 3286-2408 / (51) 3221-0236 | http://www.cinetheatro. com.br Bar Ocidente Avenida Osvaldo Aranha, 960 - Bom Fim | (51) 3312-1347 / (51) 3388-6990 | http://www.ocidente.com.br

Outro ponto importante e característico de uma festa GLS é a música. Toca Madonna, Britney Spears e, principalmente, “Drag Music” — produções que incorporam estilos como “Soulful House” e “Disco Music”. Na opinião de Naja Sama, as músicas são mais bem escolhidas em locais gays. “As raves, logo que começaram, eram, na sua maioria, freqüentadas pelo público GLS, mas foi crescendo de tal maneira que todos os públicos aderiram. Hoje, em algumas raves, podemos ver mais casais heteros que gays. Acredito que seja um sinal de que as festas GLS são boas para todos”, analisa a promoter.

NEO Avenida Plínio Brasil Milano, 427 Higienópolis | (51) 3331-4788 | http://www.clubneo.com.br Venezianos Pub Café Rua Joaquim Nabuco, 397 - Cidade Baixa | (51) 3221-9275 | http://www. venezianos.com.br Refugiu's Mega Danceteria Rua Marcílio Dias, 290 - Menino Deus | (51) 3231-3158 / (51) 3026-4484 | http://www.refugiusmegadanceteria. com.br

Charlene Voluntaire, personagem criada há 14 anos por Charles Machado, gerente do Cine Theatro Ypiranga, acredita que os eventos têm se destacado porque são de qualidade: oferecem bons DJ´s, atendimento rápido e boas estruturas de bar e segurança. “Se o evento é de qualidade, ele acaba se tornando alternativo, ou seja, para todas as pessoas de mente aberta”, destaca. E essa pode ser a explicação de por que uma comunidade que não é necessariamente homossexual ou bissexual incorporou no seu “schedule” as festas GLS.

Vitraux Rua da Conceição, 492 - Centro | (51) 3221-7799 / (51) 3028-4004 | http:// www.vitraux.com.br Cabarete Indiscretus Rua Ernesto Alves, 169 - Floresta | (51) 3212-2480 Era uma vez Av. Brasil, 132 | (51) 3337-0544

Existem muitos bares conhecidos por promoverem festas GLS. O perfil dos freqüentadores muda de acordo com o estabelecimento. Naja Sama, promoter e produtora de festas, explica: “Na NEO, por exemplo, são pessoas mais jovens, da faixa de 16 a 20 anos; no Ocidente, nas sextas, vejo mais gente da faixa de

andréia cocolichio

Para todos os gostos


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O gaúcho bom sujeito é… Rio Grande do cavaco, do banjo e do violão Felipe Prestes felipenprestes@gmail.com

io Grande do surdo, da caxeta, do ganzá e do pandeiro. A despeito da cegueira de alguns quanto à presença forte da cultura negra no Estado, na terra de Lupicínio Rodrigues um espaço singelo é um dos principais redutos do samba de raiz no Brasil. Quem passa em frente da casa, que fica na rua Caldre Fião perto do estádio Olímpico e lê a placa que diz “Bar do Ricardo” talvez não perceba a importância do lugar. Ao entrar vê-se uma sala pequena, sem grande acabamento, uma churrasqueira para comemorações e, depois de alguns metros, o balcão de lanches e bebidas. Aí as paredes desse pequeno salão, como que em um samba-enredo, narram os grandes momentos da trajetória de dez anos do estabelecimento. Fotos e matérias de jornais registram a passagem de grandes nomes da música brasileira e o clima de fraterna celebração deste bar criado em 1998 por Antônio Ricardo Carvalho Machado — sim, é o Ricardo da placa.

a esposa”, se torne ao longo de apenas uma década um espaço já tradicional e de importância nacional? Isso nem mesmo Ricardo sabe explicar. “Comprei isso aqui para minha esposa e, logo em seguida, fiquei desempregado. Era uma lancheria, era uma coisa pequena. Um dia veio um amigo — um antigo funcionário dos Correios, já falecido — e pediu para fazer uma roda de samba. Aí eu peguei e deixei. Aí se criou o Bar do Ricardo”, explica o proprietário sem resolver o mistério. Mas vamos lá, a trajetória de Ricardo explica um pouco do reconhecimento do reduto. Natural de Candiota, região sul do Estado, estuda em Pelotas, de onde vai para o Rio de Janeiro em 1982. Na Cidade Maravilhosa, tem a oportunidade de conhecer verdadeiros templos sagrados do samba como a quadra da Mangueira e faz amizade com sambistas da estirpe de Zeca Pagodinho e Neguinho da Beija-Flor.

No salão ao lado, a Prometeus, banda da casa, toca música brasileira da melhor qualidade. Tem partido, tem samba-canção, tem um palco acanhado em que já pisaram Almir Guineto, Arlindo Cruz e Zeca Pagodinho.

De volta ao Rio Grande do Sul, se estabelece na Capital, onde passa a viver intensamente o mundo do Carnaval. Na Acadêmicos da Orgia assume funções como diretor de carnaval, chegando a ser presidente da escola. Certamente essa vivência contribuiu para o Bar do Ricardo ser hoje o que é.

Se o samba possui para uns feitiço e para outros, mistério, como explicar que uma lancheria criada como “ocupação para

“Semana passada eu estava aqui chegou o presidente da Vai Vai, o Tobias, que foi um grande intérprete de samba. Um dia eu

saí, quando voltei estava o Vantuir, que hoje é intérprete da Grande Rio. Amigos trazem, às vezes eles vêm fazer show em grandes casas noturnas de Porto Alegre e vêm conhecer, por que o Zeca pede, o Neguinho da Beija-Flor pede, porque são meus amigos”, conta Ricardo. A amizade e a simplicidade por aqui também contribuem para o clima aprazível. Mesmo nas noites mais agitadas não há qualquer desentendimento maior. “Eu consegui ter uma casa noturna que não tem segurança, isso é claro que foi com o tempo. Eu consigo reunir três, quatro mil pessoas e não botar nenhum segurança”. Ricardo observa. A Banda Prometeus (acima) faz as honras da casa

felipe prestes

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Para o proprietário do bar, o clima familiar é comum ao samba de Porto Alegre. “Hoje se tu for na Banda Itinerante, na Banda da Saldanha, que são os lugares do samba em Porto Alegre, são poucos lugares, é uma coisa tranqüila, familiar. Tu vai ver crianças, famílias. Esse é o nosso mundo, de respeito ao próximo”. Ricardo garante: a simplicidade é “a alma do negócio”: “É uma coisa muito singela. O Bar do Ricardo só funciona porque é assim”. Opinião semelhante tem Cláudia Quadros, cantora da casa há um ano e herdeira direta de divas como Elizeth Cardoso e Alcione. “As pessoas sabem que vão chegar aqui e vão ser muito bem tratadas. Não acontece nada de ruim aqui. É a simplicidade, a maneira como o Ricardo tem o cuidado de recepcionar cada pessoa seja de onde venha”. Freqüentadora da casa há anos, Cláudia conta que Ricardo vinha “namorando” sua voz há algum tempo, mas já havia uma cantora na casa. Quando o dono do bar finalmente precisou de seus préstimos, Cláudia estava morando no exterior. O pequeno desencontro foi resolvido com muita música. Hoje, o “namoro” está firme e forte, e a cantora oriunda do gospel — estilo que estudou dos oito aos dezoito anos — mergulhou de vez no mundo do samba.

É quase uma hora da manhã enquanto converso com Ricardo em frente ao estabelecimento, entre cumprimentos do dono com os clientes, que vão chegando em maior número. O público é diverso em termos de renda, como indicam os carros do lado de fora, e de idade. Freqüentam jovens e velhos — e alguns trazem filhos e netos. Não se cobra nada de entrada, o que é, de certa forma, compensado pelo preço da cerveja — quatro reais. Dado notável é que aqui, em plena “européia” Porto Alegre, a maioria descende de africanos.

fica: “Venho aqui por que o clima é gostoso. Venho aqui para curtir um samba de verdade. Até tem outros lugares na cidade, mas o meu clima é aqui no Bar do Ricardo”. Já passa de uma e meia da manhã, o lugar enche aos poucos, mas as pessoas ainda estão sentadas, bebendo sua cervejinha. Empolgado com a presença do nosso fotógrafo, um casal dança solitário no salão. Logo, logo, serão mais um e outro casal, depois, dezenas deles.

Para o proprietário o público é diverso porque há, além do clima familiar, um caráter igualitário no samba. “Eu tenho uma amiga que é juíza, de uma família abastada, então ela passa incógnita aqui e ela diz assim: ‘Ricardo, eu adoro participar do mundo do samba por que ninguém me pergunta que carro eu tenho, o que eu faço na vida’. É pobre, rico, branco, todos são iguais, acaba aquela diferença que temos no dia-a-dia”.

Lá pelas três da manhã a Cláudia vai cantar aqueles clássicos da Marrom acompanhada pela Banda Prometeus. Aí a mulherada enlouquecida vai cantar junto com ela em alto e bom som aqueles versos que maldizem os pobres homens. Até o garçom elas vão obrigar a dançar. Alguns vão regressar para suas casas, muitos vão trilhar longos caminhos pela Região Metropolitana de Porto Alegre. Outros vão ficar e dançar muito mais, ou jogar bastante conversa fora. Casais novos vão se formar.

Quem também adora participar do mundo do samba é o intérprete Gilson, que participa de escolas de samba desde os treze anos de idade, e possui amizade com o dono do bar há mais de dez anos. Ele estava sentado tomando uma gelada quando Ricardo apontou: “Esse é dos bons”.

E a noite vai correr num ritmo cadenciado, até o dia clarear. Herdeira de Elizeth Cardoso, Cláudia Quadros toma uma cervejinha

Gilson explica que os dois se conheceram nas lides do carnaval. “Minha amizade com o Ricardo começou em 95. Ele era diretor da Acadêmicos da Orgia e me convidou para ser o intérprete da Escola. Chamo ele de meu presidente até hoje. Ele foi um dos caras que me apoiou direto”. O intérprete ressalta que no samba em Porto Alegre se dá pouco apoio para quem é daqui, daí a importância de espaços como o Bar do Ricardo. “Eles preferem gente de fora, mas aqui tem muita gente de qualidade, que sabe fazer samba”. Gilson garante que freqüenta o bar do amigo todos os fins-de-semana, e justi-

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Em honra ao amor W

itch” em inglês significa bruxaria, e a Wicca é considerada uma nova bruxaria. Está relacionada com a chamada “antiga religião” praticada na Europa précristã. A bruxaria é uma religião pagã (do latim paganus, habitante dos campos), e a Wicca uma das formas de se praticar esta religião. Outras são as tradições familiares, onde os conhecimentos são transmitidos dentro do clã familiar. Na Wicca, os bruxos podem praticar reunidos em grupos, os Covens, ou de forma solitária. Uma das dificuldades de se dimensionar a quantidade de wiccans brasileiros é que muitos são bruxos solitários e acabam tendo muito pouco ou nenhum contato com os outros bruxos. Ao iniciar na religião, o praticante faz o ritual da dedicação, onde reafirma aos Deuses que será devoto a eles. Após o período mínimo de um ano e um dia, no qual ele se dedicará a aperfeiçoar seus conhecimentos religiosos, ocorre a iniciação. O Praticante recebe um nome pagão e forma-se sacerdote ou sacerdotisa, transição que caracteriza a Wicca como uma religião “O nome pagão é um nome que te identifica de acordo com tua energia, com a tua devoção a determinada divindade”, relata o bruxo Luís Gustavo, ou Lugus Dagda Brigante.

Ritual wicca aberto ao público homenageia a deusa romana Vênus Anna Magagnin acmagagnin@yahoo.com.br

O que diferencia a Wicca das grandes religiões é que a divindade é feminina e masculina. Trata-se de uma religião matrifocal, por cultuar a Deusa, identificada com o planeta e tradicionalmente simbolizada pela lua. Mas, apesar do foco ao sagrado feminino, tanto a Deusa quanto o Deus — senhor da morte e representado pelo sol — são partes da polaridade que permite a manifestação da divindade no Universo. Outra diferença é quanto à figura do Demônio: os bruxos não crêem na existência do Diabo e do Inferno.

anna magagnin

A wicca é uma religião sem grandes dogmas, tendo apenas duas leis principais. De acordo com o site wiccaniano brasileiro “Old Religion” essas leis são a Lei do Retorno (“faze o que quiseres, se a ninguém prejudicares”) e a Lei do Tríplice (“Tudo o que fazemos nos retorna de forma triplicada”).

Essa transmutação de energia e essa solidariedade que une o grupo é muito interessante Bruxos e a sociedade

O wiccano celebra a roda do ano, onde oito Sabbats marcam as mudanças no clima. A cada chegada de estação e no auge destas um Sabbat é realizado. O calendário do Norte difere do calendário do hemisfério Sul, pois as estações são diferentes. No entanto, cada bruxo escolhe o calendário a seguir. Alguns praticantes do Sul justificam a escolha do calendário do Norte pela correspondência com eventos que ocorrem no país. O Sabbat Yule, que celebra o nascimento de Deus, ocorre na chegada do inverno no hemisfério Norte, portanto, muito próximo da celebração cristã do Natal. As mudanças de lua também são celebradas através dos Esbats, que marcam a chegada da Lua cheia. São em número de treze.

Tão difamados em tempos remotos, e noutros não tão antigos assim, os bruxos e bruxas do Brasil voltam a celebrar sua fé. Alguns já estão organizados através de agremiações como o projeto Wicca-RS, que é dirigido pelo grupo “Círculo Wiccano Serpente do fogo”, coordenado por Lugus Dagda Brigante. O projeto visa unir os praticantes gaúchos, um público muito amplo na visão de Lugus quanto à faixa etária. “Digamos que as pessoas mais jovens são as que mais se expõem. Mas existem pessoas mais velhas também, pessoas de seus 30, 40, 50 e até 60 anos que praticam a Wicca e bruxaria, mas elas não se expõem, ficam mais recolhidas”. Um dos eixos dessa estratégia são os rituais públicos. “Já faz cerca de quatro, anos que temos feito rituais públicos,


53 para promover uma divulgação positiva da religião, possibilitar às pessoas verem como é um ritual pagão, que não há nada de macabro, nada de satânico”, afirma Lugus. O bruxo considera boa a aceitação do público gaúcho aos rituais, lembrando que alguns já chegaram a reunir cerca de 100 observadores. Além dos rituais públicos em honra a deuses, o Projeto Wicca-RS realiza anualmente o Dia do Orgulho Pagão, que ocorre entre setembro e outubro. Em sua primeira edição em 2004 reuniu 60 pessoas, em 2005 foram 120 e nos anos de 2006 e 2007 cerca de 150 pessoas.

Um sacerdote esborrifa um líquido, que contem água e essência de rosa, visando tirar todo mal do corpo da pessoa. Todos que receberam a purificação portavam uma rosa e são convidados, mais tarde, a ofertar sua flor à Deusa.

Ritual em honra a Vênus

Logo mais ocorre a invocação dos quadrantes. “Salve os Guardiões das Torres de Observação do Norte, juntem-se a nós neste círculo! Poderes da Terra, vinde! Vigiem esse espaço sagrado. Sejam bem vindos”! As palavras são pronunciadas para os outros três quadrantes: Leste (elemento ar,) sul (elemento fogo) e oeste (elemento água). Os participantes são advertidos de que não podem andar no sentido anti-horário, pois isso quebraria as energias do círculo sagrado.

No dia 17 de maio, no Parque da Redenção em Porto Alegre, 22 pessoas se reuniram para honrar a deusa romana Vênus. “Será um ritual em honra a Deusa para encontrar o amor próprio”, revela Lugus. “Vênus surgiu do mar. Os órgãos sexuais de Urano caíram e deram origem à Deusa. E tem também o planeta Vênus, que é regido pela Deusa, e a cada oito anos o seu círculo eclíptico forma um pentagrama perfeito”, informa a sacerdotisa Flora, idealizadora deste ritual. O ritual começa com a montagem do altar. Uma imagem da Deusa Vênus e símbolos associados a ela, como conchas, maçãs e rosas. Incensos de rosa vermelha e velas da mesma cor também faziam parte do altar. Ainda um pentagrama, símbolo da Wicca. “O pentagrama tem a ver com beleza, perfeição, o homem vitruviano de Da Vinci das medidas perfeitas”, complementa Flora. Nos altares de bruxaria, há sempre instrumentos que simbolizam os deuses. Cálice, punhal e caldeirão também compõem um altar. Velas nas cores preta, representando o feminino, e branca, o masculino. Pedras e ervas, de acordo com praticante e com o motivo do rito. Pronto o altar no ritual público, os participantes passam por uma purificação.

Todos ficam dispostos em forma de círculo e ocorre o aterramento. Os sacerdotes pedem a todos para fechar os olhos e “sentir suas colunas se transformarem em troncos de árvores”. Após esta etapa, os sacerdotes traçam o círculo sagrado. Trata-se de um círculo imaginário de luz, que protege o ritual da entrada de energias indesejadas.

Por ser um ritual em homenagem à Vênus, uma explicação sobre a Deusa romana é feita. Neste ponto ocorre a invocação da Deusa, por parte dos sacerdotes. Os participantes oferecem suas rosas à Vênus. Um cântico, adaptado de uma versão norte-americana, acompanha o ritual: Vênus das águas que correm/ Vênus da montanha/ Vênus dos campos floridos / Vênus das florestas. A Deusa canta em todas as coisas/ Em toda a natureza/ a Deusa canta em todas as coisas/ a canção da beleza. No momento da meditação todos, dispostos em roda, mentalizam Vênus e amor a si mesmos.

Trata-se de uma religião matrifocal, por cultuar a Deusa, identificada com o planeta e tradicionalmente simbolizada pela lua

O momento de maior energia, tanto para quem assistia quanto para quem participava: O cone de Poder. Os participantes caminham de mãos dadas em círculo, no sentido horário, cantando e gritando palavras, como “amor” e “eu me amo”. A velocidade da roda vai aumentando concomitantemente com o tom das palavras ditas. Todos elevam suas mãos e a roda pára. Ocorre, então, o grande rito, a união do Deus e da Deusa, simbolizadas pelo pão e vinho. Neste ritual público foram utilizados suco de uva e maçã. O sacerdote coloca seu dedo no cálice com suco e consuma a união para a obtenção da fertilidade. Para o fim do ritual, é feita a invocação dos quatro quadrantes, agora em sentido anti-horário. Em seguida, os sacerdotes destraçam o círculo sagrado. Todos se abraçam e desejam bençãos de Vênus uns aos outros. Por fim, as pessoas confraternizam com os lanches que trouxeram e conversam sobre suas experiências. Familiares que assistiam a celebração se aproximam. Durante o ritual, muitos curiosos também acompanhavam em silêncio a celebração. Apesar disso alguns participantes estranham o ritual público, como o estudante Tiago Dexheime.”Estou acostumado a fazer ritual em ambiente fechado, porque em ambiente aberto me distrai um pouco”. Iniciado há seis meses, Tiago expressou sua satisfação com o rito ocorrido. “Há uma mudança de ânimo, estava desanimado antes e agora estou mais animado”. A energia das 22 pessoas presentes foi importante para outro bruxo. “Essa transmutação de energia e essa solidariedade que une o grupo é muito interessante”, afirma Jefferson Ricardo, praticante há quatro anos. Unir os diferentes através de suas energias e com as energias da natureza. Para quem não conhecia, eis uma boa idéia do que é a Wicca.


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Domingo de futebol Um dia de cão sem quinze minutos de intervalo Flávio Aguilar flavioaguilar@gmail.com

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Tentando entrar

ma Kombi caindo aos pedaços cortou o silêncio do meio-dia com um ruído escandaloso de motor e a alegria de seus ocupantes — que gritavam a plenos pulmões: “atirei o pau no Inter, e mandei tomar no cu, macacada filha da puta, chupa a rola e dá o cu!” Ao passarem por mim e minha namorada, os festivos torcedores agitaram ainda mais as bandeiras que se estendiam para fora do veículo, do qual emergiram também cabeças, braços, xingamentos diversos e gratuitos. A festa, então, se dispersou ao longo da rua, entre o cheiro de churrasco e um surpreendente veranico de maio.

flávio agui

Alegre. A linha Florida não faz jus ao nome. Talvez por isso tenha ganho o simplório apelido de “Pinga”. São incontáveis paradas, em quarenta minutos de ônibus lotado, até chegar ao centro da cidade, após percorrer a Av. Farrapos por inteiro. Desci antes do fim da linha, para deixar minha namorada no trabalho. Por causa dessa gentileza, resmunguei por quase uma hora na 24 de Outubro esperando um ônibus que me levasse ao Centro. Enfim, peguei o ônibus que, claro, também estava cuspindo gente pelas janelas. A cidade já respirava Grêmio x Flamengo.

O primeiro jogo do Grêmio em Porto Alegre, pelo Campeonato Brasileiro de 2008, tinha alguns ingredientes especiais para atiçar o ânimo da torcida: um imprevisto período de férias do time — eliminado de forma prematura e dolorosa do Campeonato Gaúcho e da Copa do Brasil — somado à vitória sobre o São Paulo, fora de casa, na primeira rodada, e à eliminação dos rivais colorados, também da Copa do Brasil, no meio da semana. Esses fatores reunidos prometiam levar até quarenta mil pessoas ao Estádio Olímpico naquela tarde, às 16h. O bom tempo ajudou, mesmo que depois viesse a castigar os torcedores.

Passei em casa com pressa, no tempo de me vestir com a camisa tricolor e comer pouco. Às 15h20min eu saí rumo ao estádio, e também ao meu terceiro ônibus lotado em três horas. O calor infernal não ajudava em nada, mas provavelmente não foi culpado por eu ter pego o ônibus errado e passado longe do Olímpico. Demorei a perceber a presepada, e isso me trouxe maiores e vergonhosos custos com o táxi que me levou ao destino, finalmente. O caminho até o estádio foi longo e exaustivo — mas estava, imaginam os sabidos, longe do fim.

Passei um aperto dos diabos já no ônibus que me levou de Guaíba a Porto

No entorno do estádio as pessoas bebiam com avidez, os cambistas quase iam aos

lar

socos por azarados sem ingresso, carros tocavam o hino do tricolor misturado a cânticos da Geral do Grêmio —a torcida que, de tão mal-falada, virou moda. Uma das filas do portão 13 ultrapassava a entrada do pátio principal e se estendia pela Avenida Carlos Barbosa, longa demais para um jogo que começaria em cinco minutos. Tentei a outra fila, mas, após longa caminhada sem achar o seu final, desisti e voltei conformado para a primeira opção. O ritmo, mais rápido que eu imaginava, me deixou em pouco tempo perto das roletas. Mas, de repente, o movimento se estagnou para a impaciência geral. Eu, que já vinha de outras desventuras, não me abstive da bagunça. Gritávamos todos aos policiais que interrompiam o fluxo da torcida elogiosos discursos às respectivas mães, irmãs e esposas. O rumor era de que a capacidade máxima fora atingida, não cabia mais uma só alma nas arquibancadas, não se sabia o que seria feito, provavelmente não se faria nada. Mas a pressão sobre eles era imensa. A fila foi se transformando em uma massa esbravejante que oprimia policiais e funcionários do clube às roletas. Corriam cinco minutos de jogo quando a primeira opção da polícia foi posta em ação: atropelar o povo com trotes de


55 cavalo e palavras de ordem. Depois da situação “tranqüilizada”, aos dez minutos do primeiro tempo, liberaram de novo as roletas, sem revista individual.

Tentando sair Nós, torcedores retardatários, que há pouco havíamos sido atropelados por cascos de brigadianos, agora atropelávamos outros torcedores em busca de um lugar ao sol. Fora da figura de linguagem, a busca não era muito complicada. Um sol acachapante batia em cheio sobre todo o imenso anel da arquibancada. Do outro lado do campo, o setor das sociais tinha melhor sorte e desfrutava de uma sombra invejável. No anel superior, as cadeiras tinham metade de sua capacidade ocupada. A torcida quase não cantava — o pouco vinha da Geral, abafada pelo silêncio cansado de 80% do estádio. Após achar um lugar cômodo onde ficar — leia-se, onde foi possível plantar os dois pés no chão ao mesmo tempo — não consegui me mexer até o intervalo. Àquela altura, eu já estava mais preocupado com beber uma cerveja que com o próprio jogo. Segui a fila indiana que cortava a massa sentada no concreto, arquibancadas acima. Com o Estatuto do Torcedor, em maio de 2003, ficou definido que os torcedores teriam direito a lugares numerados em todas as partes do estádio, para melhor assegurarem sua comodidade. De fato, por toda a arquibancada do Olímpico estão pintados números no mesmo concreto que há mais de cinqüenta anos acomoda a torcida. Claro que ninguém ao menos nota esse enfeite. Todos se esparramam como podem e defendem seu espaço com irritação. Finalmente entendi a disposição de tédio e carrancas nas dependências do estádio, o hesitante ímpeto da torcida e, principalmente, o consumo desesperado de álcool do lado de fora. Aquele era o primeiro jogo sem venda de bebidas

alcoólicas. Perdia-se a renda do clube, aumentava-se a dos bares do entorno e, principalmente, dos vendedores ambulantes, que deviam estar agradecendo aos céus pela medida. Logo que entrei no estádio já havia presenciado uma discussão caudalosa entre dois homens. Como a maioria das discussões em jogos de futebol, o motivo era fútil e a bebedeira alta. Pedi uma coca-cola e me ajeitei no último degrau da arquibancada. Ao meu lado, um homem esperava o segundo tempo começar na companhia de seu filho. Em sua mão, uma cerveja sem álcool, das que estavam sendo vendidas no bar. Enquanto o menino, animado como sempre se é nessa idade ao ver o time do coração jogar, se mexia com impaciência tentando avistar os jogadores emergirem do túnel dos vestiários, o pai bicava seu copo com cara de nojo e resignação, enquanto olhava nervoso para o relógio. Estaria ansioso para o começo do segundo tempo ou louco para que aquele jogo acabasse de vez? O jogo recomeçou mais movimentado. Trechos do hino riograndense soaram vindos da Geral e conseguiram finalmente contagiar o estádio num só canto. Foi o primeiro momento, e um dos únicos, em que arquibancadas, sociais

e cadeiras cantaram juntas e, vejam só, a música não era para o Grêmio. O barulho foi aumentando, levantando mesmo os que pareciam grudados ao cansaço e ao calor do chão. Não à toa, as brigas acontecem mais quando as coisas dentro de campo estão enrascadas. O segundo tempo foi mais agitado, mas acabou, com o 0 x 0 final, decepcionante. A maioria das pessoas bravateou um pouco e partiu tranqüila. Alguns até bateram palmas para a atuação do time. O dia virava noite, e todos despertavam aos poucos do torpor do jogo, lembrando daquelas preocupações chatas que não cabem em duas páginas de revista, nem numa edição inteira. Porém, acabada a partida, não se acaba sua cerimônia; e isso inclui chegar em casa, o que se torna novamente complicado. O quarto ônibus lotado do dia foi o pior, e isto não era nenhuma novidade. Era apenas resultado de um desses engarrafamentos tão burros e corriqueiros quanto o planejamento que é feito para evitá-los — acontece? Desci na Av. Borges de Medeiros. Meia dúzia de torcedores que estavam no ônibus ainda tiveram visão, vontade e pernas para correr atrás de um colorado que passava distraído. Parei pra ver o modo como o alcançaram uma quadra depois e o derrubaram no chão, para chutá-lo até cansarem, enquanto os transeuntes olhavam e reprovavam silenciosamente. Cansei eu antes, e me pus a caminhar para casa. O Centro ficava aos poucos calmo. Todos ficavam.

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Leitão no Rolete, uma Região em Festa Em várias cidades do interior do estado, o nome de suas principais festas se relaciona com a produtividade local. É assim que Pinhal celebra o suíno de uma forma apetitosa

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á diversas localidades em que os símbolos de suas festas remetem ao cultivo agropecuário, o destaque em determinado ramo de atuação, a colonização, ou até mesmo a características naturais. Isso acaba reunindo várias pessoas e localidades, mas entre muitas dessas festas que já tive a oportunidade de participar, existe uma em que o fato de “reunir várias pessoas e localidades” ganha força ao se perceber a cooperação dos moradores na realização de um evento que, além da confraternização, tem o objetivo de difundir um hábito. A Festa do Leitão no Rolete no município de Pinhal.

O Local Antes que surja a dúvida, não se trata da praia, cujo nome oficial é Balneário Pinhal. O Pinhal que estou falando tem 2.362 habitantes e se localiza na região do Alto-Médio Uruguai no noroeste do estado, a 430 quilômetros de Porto Alegre. A microrregião em que está localizada conta com duas cidades de maior porte, Palmeira das Missões e Frederico Westphalen, as demais não ultrapassam dez mil

habitantes e têm como tradição uma política de boa vizinhança, que ficou evidente nessa 6ª Festa do Leitão no Rolete, realizada no dia três de maio desse ano. Irio Barcarolo, presidente da ACISPI (Associação Comercial Industrial Agropecuária e Prestadora de Serviço), entidade que está à frente do evento, conta que cada município tem suas atividades, e que, geralmente, há uma troca de visitas entre as cidades, representada pela presença de seus moradores nas festas das localidades vizinhas. “Quando nós começamos com a primeira Festa do Leitão no Rolete era uma novidade que aqui na nossa região basicamente não tinha ninguém que fazia. E aí, quando nós fizemos a primeira, todo mundo veio meio desconfiado, na segunda eles já vieram e viram que era realmente boa, espetacular a comida”. Para Nilso Bagatini, que além de suinocultor também participa da organização da festa representando a Sociedade Imaculada Conceição, ligada à Igreja Católica, o momento é uma forma

Carla Bagatini carlabagatini@yahoo.com.br

de integração. “Aqui está uma festa com uma região toda vindo pra cá, e o nome do suíno é muito bem divulgado. Nós estamos integrando não só o povo do nosso município, mas também o povo da nossa região, e nós estamos se trocando favores”. Além dos vizinhos, a 6ª Festa do Leitão no Rolete trouxe de volta para a cidade uma caravana do município catarinense de Caibi. São ex-moradores de Pinhal que há cerca de trinta anos saíram da cidade. De volta à terra natal, a visita foi motivo, também, para a confraternização em forma de futebol. “São pessoas que jogavam futebol na minha época, hoje eu não jogo futebol, mas são pessoas que jogavam na nossa época, junto com nós. E hoje eles vêm com a equipe de veteranos de lá e os veteranos daqui vão fazer uma equipe e vão fazer um jogo de futebol. E depois então, confratenizar na noite e posteriormente a gente vai retribuir essa visita num evento deles lá”, explica Seu Irio. A preocupação com a divulgação da carne suína é um dos motivos que incentivaram a criação da festa, pois a produtividade do município está baseada no tripé Milho, Leite e Suíno, uma


57 característica que remonta à sua origem. No início do século passado, o que hoje é Pinhal era habitado apenas por descendentes indígenas. Por volta de 1935, chegaram os primeiros imigrantes, quase todos descendentes de italianos, vindos da Serra Gaúcha. Junto com eles, chegou a atividade suinícula, porém muito diferente do que é hoje. “Os agricultores criavam o suíno comum, o suíno solto, ou em instalações rudimentares, e esses suínos eram comercializados, mas em uma escala bastante pequena”, explica Nilso. Com o passar do tempo e o surgimento de novas raças, esses criadores perderam lugar no mercado. Em meados da década de 1970, a localidade de Pinhal, na época pertencente à Palmeira das Missões, presenciou uma nova fase suinocultora. Alguns criadores chegavam a possuir cem cabeças, marca considerada alta para a época, embora a maioria beirasse uma média de quarenta cabeças. Salvo poucas exceções, essa produção local decaiu novamente, ressurgindo apenas na segunda metade da década de 1990. Daí as empresas começaram a fazer o que chamamos hoje de Integração. Elas mesmas começaram a criar matrizes, para a produção dos leitões, e repassá-los com mais ou menos 65 dias de vida para os agricultores que fazem a terminação desses animais. O que livrou o agricultor da aquisição de matrizes, como são chamadas as porcas reprodutoras; de reprodutores e equipamentos para a produção de rações. Mesmo assim, a necessidade de investimentos iniciais contou com investimentos bancários e auxilio do município na preparação do terreno. Isso permitiu, ao pequeno produtor, compor uma realidade em que “quem termina menos é em torno de 500 animais por lote”, como afirma Nilso, que se inseriu na atividade por volta do ano 2000.

dos para outras empresas integradoras, ou a própria empresa atua com o fornecimento de leitões, ração, assistência técnica e medicamentos para os produtores integrados. Estes entram com as instalações e a engorda dos suínos. Os animais atingem uma média de 115 quilogramas , quando são encaminhados para o abate. Cada suíno rende de R$ 10 a R$ 12 para o produtor. Segundo Cleomar Antônio De Bona, técnico da Emater de Pinhal, dessa forma o produtor tem a chance de competir em uma cadeia mais especializada, sem ter que concorrer com uma produção mais primitiva e com menor valor comercial. Uma nova fase está sendo implantada pelas integradoras por exigência dos frigoríficos, a Creche. De acordo com Daniel Luis Ebert, técnico responsável pela granja que fornece os leitões para a festa, corresponde ao período entre 21 e 60 dias de vida dos leitões, quando necessitam de um cuidado maior até se tornarem aptos a encararem a terminação e, posteriormente, o abate. Clóvis Tres, sócio da granja, afirma que o fato de ela ser a única em Pinhal com o ciclo completo, produção dos leitões e terminação, é um dos fatores que justificam o fornecimento para a festa, mas lembra que a parceria, por assim dizer, se deu de forma natural, “pela facilidade de acesso”. Clóvis aponta as modificações genéticas que separaram a carne da gordura nas novas raças, Penarlan e Agroceres, principalmente, ajudaram

Esse sistema foi, então, organizado em etapas. A primeira delas fica a cargo das Unidades Produtoras de Leitão, as UPLs. Os animais produzidos são comercializa-

carla bagatini

A Integração

a aumentar o consumo, ainda muito baixo em relação a países europeus e asiáticos. Isso pode ter uma explicação na postura dos frigoríficos:“O foco deles não é vender a carne in natura ou resfriada, mas vender embutidos. Por isso que o consumo no Brasil é muito baixo, porque são produtos com alto valor agregado”. A mudança dessa postura pode ser vista de forma gradual e festas como a do Leitão no Rolete passam a ser expressivas. “O consumo de carne suína no Brasil está crescendo, talvez um pouquinho disso sejam essas festas que estão acontecendo”. A criação conta com uma tecnologia que além de diminuir a poluição, contabiliza créditos de carbono para o Protocolo de Kyoto (documento internacional que visa à diminuição da emissão dos gases tóxicos na atmosfera). O uso de biodigestores fermenta os dejetos e converte o gás resultante em energia elétrica e motriz para abastecer a granja. O que não é aproveitado como energia é queimado. Os biodigestores consistem em containeres de lona inflados pelo próprio gás gerado pela fermentação do esterco, que se fosse lançado diretamente no solo, seria poluente e nocivo às plantas. Um subproduto resultante da decomposição, chamado de fértil-irrigação, tem sido o responsável pela adubação das pastagens para o gado leiteiro, motivo pelo qual o município assume destaque também nessa área.


58 Organização A Festa do Leitão no Rolete de Pinhal comemora a emancipação política do município ocorrida em 29 de abril de 1988. Um ano antes já começam os preparativos, logo após a avaliação da que acabou de ocorrer. Reuniões são realizadas entre a entidade organizadora, a ACIASPI, e suas parceiras: a Escola Estadual Ângelo Beltramin, o CTG Chaleira Preta e a Sociedade Imaculada Conceição, da Igreja Católica. Os recursos são oriundos do município e obtidos, também, por meio de patrocínio de empresas parceiras e relacionadas com a suinocultura, como granjas, bancos, laticínios, frigoríficos e diversas outras com visibilidade na região. Sessenta por cento da renda é destinada para a ACIASPI e convertida em cursos e oficinas de capacitação, voltados para atender a demandas do município, o restante é dividido entre as demais entidades. Há também os cursos relacionados com produção e cultivo, e palestras oferecidas aos associados e à comunidade em geral, como as de cunho motivacionais. “Porque não adianta treinar a pessoa, dar o curso, se ela não se sente à vontade ali (no meio rural), ela tem que se sentir motivada, se não é dinheiro jogado fora, e não adianta muitas vezes você largar um emprego aqui e ir para uma grande cidade e lá se deparar com a marginalidade e uma série de problemas que nós não temos aqui, felizmente”,completa Irio. Paulo Barcarolo, Patrão do CTG Chaleira Preta, relata um episódio que resultou na escolha dos assadores da festa desse ano. Alguns moradores foram para a cidade de Taquaruçu do Sul jogar bocha, “como bons italianos”, e perceberam que o leitão no rolete que era preparado tinha um tempero diferente do que já haviam provado nas cinco edições anteriores da festa. Era o motivo que faltava para fortalecer o convite aos anfitriões para

assar o leitão em Pinhal. Convite aceito, uma equipe da Associação de Criadores de Taquaruçu do Sul foi para Pinhal, um dia antes da festa, para preparar, temperar e montar a sua “máquina de assar porco no rolete”, como é chamada, segundo o assador Rogério Volpatto, a estrutura de ferro montada sobre uma espécie de churrasqueira, feita na hora, com tijolos empilhados sobre o chão. Ao mesmo tempo, a equipe recebe os leitões que, após saírem da granja, foram levados a um frigorífico em Frederico Westphalen , abatidos e inspecionados. O tempero começa a ser preparado em caixas d’água específicas para esse uso que recebem uma mistura de água, sal, vinho branco e temperos verdes. Os leitões ficam, então, imersos de um dia para o outro, por cerca de 20 horas. Para aderir melhor o condimento, os assadores têm o costume de esfregá-lo sobre a carne. No dia seguinte, os leitões vão para o rolete e passam cerca de sete horas girando e deixando a gordura pingar sobre a lenha que queima, enquanto a carne vai assumindo uma coloração dourada. Os assadores contam que já participaram de várias festas desse tipo, e que sempre foram elogiados. Embora esse seja o prato principal, a degustação dos derivados da carne, servida antes do jantar, chama a atenção dos convidados. Não se cogita chegar só para a janta e perder a mesa composta por queijo, presunto, lingüiça, copa e salame produzidos por um frigorífico parceiro da festa, e os produtos não industrializados feitos pelos próprios moradores que decidem integrar a organização. Quando cheguei à cidade, na quinta feira, dia 1º de maio, na Linha Alto Paraíso, estavam sendo preparados torresmo, queijo de porco e morcela suína, atividade que adentrou a sexta-feira até a metade da tarde. Paralelo a isso as mesas eram montadas no ginásio de esporte municipal, que na sexta e no sábado foi decorado por voluntários. Marivone Sartoretto, extensionista da Emater, conta que a idéia para confeccionar os arranjos das

mesas partiu de um curso de reciclagem de garrafas PET realizado no município. Foram feitas, então, caixinhas vazadas e preenchidas com um folder da festa e pinhões, semente símbolo do município. Em cima de cada uma delas, um leitão feito em biscuit por voluntários do Programa Infância Melhor. A florista Elisiane da Costa conta que foi levar os arranjos de flores e decidiu ficar ajudando. Há pouco tempo no município, fala sobre suas observações a respeito da cooperação: “ainda por cima estamos comemorando o aniversário do município, de emancipação política, porque eu acho fantástico um município novo como Pinhal ter a organização que tem e ter pessoas à frente de cada entidade que puxam, e muitos que ‘pegam junto’, e todo mundo se une”. Na manhã de sábado chegaram os responsáveis pelo bufê, uma empresa de Palmeira das Missões. A contratação foi feita de forma semelhante a dos assadores. Seu Irio participou de um jantar em uma cidade vizinha, gostou da comida e fechou contrato com a empresa. Ele complementa “As pessoas do município se envolvem, claro! As pessoas que sempre ajudaram estão aqui ajudando, e nós vamos jantar no final se sobrar comida, senão ficaremos contentes também”. Dona Iracema Pelissari sempre trabalhou na festa e, segundo ela, essa foi a primeira que ela pode aproveitar de verdade, principalmente o baile, seu momento preferido. Uma das cozinheiras, Dona Erci Lima, conta que a empresa também sugeriu alguns pratos. Francisco de Oliveira Lima, o Chico, proprietário da empresa revelou o cardápio: polenta frita, massa spaghetti com molho, batata doce caramelizada, mandioca cozida, rabulho (uma espécie de farofa mais úmida e com mais ingredientes), saladas, cuca, pão e frutas, que segundo Chico, ajudam na digestão da carne, principalmente as cítricas como abacaxi, e laranja. E o leitão, é claro! Mas esse estava sendo preparado pelos assadores ao lado de fora do ginásio.


carla bagatini

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A Festa Às 19h30min, o ginásio de esportes já estava quase cheio, e a degustação gerava filas nas três mesas que haviam sido montadas. Os produtos ficaram disponíveis até o fim da festa, inclusive durante o baile. Entre as mesas da degustação, havia outras três que logo começaram a ser montadas com o bufê. Ao lado de cada uma delas, uma mesinha pequena, vazia. Às 20h30min, como previsto e divulgado, chegavam “lá de fora” as principais atrações da festa. Diretamente do rolete para as mesinhas, até então vazias, três leitões anunciavam que a janta iria, em breve, começar. Um! Ouviu-se das caixas de som, e as pessoas da mesa um levantaram e se dirigiram ao bufê. Como há muita gente, em torno de 840 pessoas, é feito um sorteio de mesas que determina a ordem em que cada uma vai se servir. Eu, na mesa cinco, continuei comendo copa e torresmo até que: cinco! Era a nossa vez. A comida lembrou o tempo em que minha nona (avó em italiano) preparava suas comidas caseiras que me punham em euforia cada vez que nos programávamos para visitá-la. O tempero que Seu Rogério me havia confessado podia ser sentido na carne e no “courinho”. Como os leitões são assados inteiros, o couro, após tanto tempo no rolete, fica dourado e crocante e acaba sendo uma das

atrações. O difícil é cortá-lo. Vinho para regar? Sim, mas entre as opções havia também refrigerante, água e cerveja. Dois! Sete! O bufê sempre cheio sinalizava que as repetições deveriam esperar. Logo mais as mesas foram retiradas e iniciou o show com o humorista Kiko Lemos, que fez o público rir e cantar velhas músicas conhecidas, o que aproximava as pessoas do show, enquanto realizam sua digestão, com o auxílio das frutas, como fez questão de ressaltar o chefe de cozinha, Seu Chico. Ele também se arriscou a tecer um comentário em relação aos anfitriões: “As cidades menores são mais acolhedoras, tratam a gente como amigos, como se fossem conhecidos já”. Todos com quem conversei, dos mais variados lugares, diziam estar gostando da festa. Elisandra de Mello Hauch, caixa de um posto de gasolina na cidade vizinha de Jaboticaba, confessou ser sua primeira ida a festa e prometeu voltar. Ricardo Bertinato também estava pela primeira vez, a convite da namorada, moradora de Pinhal, e disse que a curiosidade havia lhe levado à festa. Morador do município de Seberi, ele comentou que, em breve, a sua cidade vai realizar a Primeira Festa do Leitão no rolete. “Esse evento só tem a fomentar e divulgar a carne de porco, e o pessoal se sente valorizado”.

Kiko Lemos se despediu do público e as bandinhas começaram a tocar. Músicas gauchescas e sertanejas revelavam o gosto musical dos participantes que logo lotaram a pista de dança. Dona Iracema pôde aproveitar o baile e as músicas sertanejas que tanto gosta, sobrou comida para os organizadores e a noite fria ficou do lado de fora do ginásio. Ao final da festa, Seu Nilso relembrou o papel a que se propõe o evento, o de alavancar o consumo da carne suína e o crescimento do município. “A sociedade é uma coisa dinâmica, se nós ficarmos presos na nossa sociedade sem participar, sem se envolver, não tem como, os nossos filhos não ficam aqui. Então nós precisamos fazer com que a sociedade tenha integração, fazer com que o pessoal se sinta bem, e se sentindo bem eles tem que primeiro ter uma condição financeira pra participar. Caso contrário nós vamos engrossar cada vez mais a fileira da grande Porto Alegre, grande Caxias do Sul com mão de obra barata e explorada lá pelas indústrias. Mas para isso é necessário ter uma renda mensal, ou no máximo bimensal, caso contrário fica inviável trabalhar e permanecer no minifúndio”.



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