Magna Campos
Magna Campos é membro efetivo da Academia de Letras, Artes e Ciências Brasil – ALACIB, na qual ocupa a cadeira nº 18 cuja patrona é Cora Coralina.
Ensaios de Leitura Crítica (Discurso e Crítica Cultural). Ed. VirtualBooks, 2010. Livros literários: Beto Muleta não, Beto Joia (Literatura Infantil). Ed. da autora. 2003. Cutrica e Futrica & a Festa no Pé de Pitanga (Literatura Infanto-juvenil). Ilustrações de Deia Leal. Ed. Aldrava Letras e Artes, 2010. Participante como contista nas Antologias: Lumens Ed. Aldrava Letras e Artes, 2011. Liberdade (XXXIV Concurso Internacional Literário) Ed. AG, 2012.
nuances discursivo-culturais
Magna Campos Não importa o suporte material do texto, manuscrito, impresso ou digital, o leitor será capaz de buscar significação, orientado por processos sócio-históricos, ideológicos e identitários. Recomendo não só a leitura deste livro que ora apresento, mas também a sua utilização como referência para o exercício diário de leitor e escritor ou de ensino de leitura e de escrita. J. B. Donadon-Leal – Editor
Literatura e Escrita: nuances discursivo-culturais
Publicou:
Leitura e Escrita:
2012
Magna Campos (Magna das Graças Campos) é escritora e professora do Ensino Superior. Nasceu na cidade de Ouro Preto, mas reside em Mariana (MG). Graduada em Letras pela Universidade Federal de Ouro Preto – Instituto de Ciências Humanas e Sociais (2003), Especialista em Língua Portuguesa – PUC-MINAS (2005) e Mestre em Letras: Discurso e Representação, pela Universidade Federal de São João Del-Rei (2009). Atua em disciplinas na área de Leitura e Produção de Textos em vários cursos universitários, dentre eles: Letras, Turismo, Ciências Biológicas, Nutrição, Direito, Gestão Ambiental, Pedagogia, Automação, Recursos Humanos, Segurança, Engenharia de Produção e Engenharia de Minas.
MAGNA CAMPOS
LEITURA E ESCRITA: nuances discursivo-culturais
2ª edição revista e ampliada Aldrava Letras e Artes 2012
Leitura e Escrita: nuances discursivo-culturais
Copyright © Magna das Graças Campos – 2012 Direitos reservados à Aldrava Letras e Artes. Reprodução autorizada desta obra, desde que citada a fonte.
Capa: Deia Leal Pintura da Capa: Vitral, acrílica de Deia Leal Projeto gráfico: Aldrava Letras e Artes
________________________________________________________________ CAMPOS, Magna Leitura e Escrita: nuances discursivo-culturais Mariana: Aldrava Letras e Artes, 2012. 2a Edição. 112 páginas. ISBN: 978-85-89269-54-4
1. Análise do Discurso 2. Estudos literários 3. Literatura aldravista CDD 410.41 ________________________________________________________________ Depósito Legal na Biblioteca Nacional, conforme legislação em vigor. Tiragem: 500 Exemplares
Aldrava Letras e Artes Cx. Postal 36 35420-000, Mariana, MG www.jornalaldrava.com.br
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Sumário Prefácio – 05 Parte I A construção social da subjetividade do leitor: a 1 perspectiva de quatro estudiosos – 11 1.1 1.2 1.3 1.4 1.5
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O sujeito-leitor responsivo: a perspectiva de Mikhail Bakhtin – O sujeito-leitor engajado: o que diz Paulo Freire – O sujeito-leitor como efeito: a visão de Eni Orlandi – O sujeito-leitor clivado: a abordagem de Maria José Coracini – Algumas considerações A produção da escrita na escola: prática social e diálogo – Níveis ou dimensões de leitura O que pode ser considerado um “mau” leitor? (especialmente na universidade) –
13 21 29 37 44 51 67 71
Parte II Leitura e pós-modernidade: um caminho de estu5 79 dos – Aldravias: as linguagens líquidas na produção do 6 texto poético – 89 Diálogo entre pós-modernidade, sujeito e leitura: 7 o processo discursivo e o virtual – 97
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Prefácio
O desafio de compreender a construção social da leitura e da escrita está longe de ser vencido, no entanto, algumas de suas nuances servem de referência para estudos e experiências de ensino em sala de aula. Na base da compreensão dessa construção social estão os reflexos nacionais das revelações sobre o Sujeito, capturados em Paulo Freire, no viés Pedagógico, em Eni Orlandi e Maria José Coracini, no viés acadêmico da Análise do Discurso e em poetas aldravistas no viés da Análise do Discurso aplicada à produção literária atual. Dos paradigmas conceituais, notadamente os de Bakhtin e Foucault, as reflexões deste livro de Magna Campos, estudiosa da linguagem que experimenta as ilações teóricas no cotidiano da sala de aula, encontram aplicabilidade no ensino e na aprendizagem da leitura e da escrita, seja na educação básica, seja na educação superior. Além disso, ela vai beber da Modernidade Líquida de Bauman. Se o diálogo figura na centralidade da construção da linguagem, no presente eterno, a leitura deste livro se dá na serenidade de uma conversa entre uma especialista em Análise do Discurso e outros analistas cujos nomes representam vozes respeitadas no universo discursivo dessa área do conhecimento. 5
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Na primeira parte do livro, deparamo-nos com estudos discursivos, na esteira de Bahktin, Foucault e Derrida, mostrando que os fazeres linguageiros são escolhas sociais, ideológicas e psicológicas. A escolha de Magna Campos, embora seus paradigmas sejam estrangeiros, considera o olhar de estudiosos brasileiros na reflexão sobre a construção social da leitura e da escrita, vislumbrando a viabilidade de aplicação de estudos discursivos nacionais. Paraíso tecnológico, o Brasil é montador de aparelhos – não se dá ao trabalho de inventá-los. Esse paraíso é extensivo às ciências, uma vez que os programas nacionais de pósgraduação stricto sensu são também tecnológicos, isto é, de aplicação de teorias estrangeiras a contextos nacionais. Elaborar os textos composicionais deste livro, tendo por base descobertas nacionais, é ato de coragem. A exploração da ideia de diálogo do Sujeito com seu mundo aproxima, conceitualmente, Paulo Freire dos seus contemporâneos pesquisadores europeus. Orlandi, ancorada em Pêcheux e Foucault, tem no materialismo histórico suporte suficiente para refletir o processamento da leitura e da escrita a partir de construções ideológicas socialmente sustentadas. Coracini desliza a reflexão para a clivagem do sujeito, ideologicamente marcado, no qual condições sóciohistóricas propiciam condições de desconstrução de conceitos consolidados na emergência de novos conceitos. Em tempos de descartáveis, Magna Campos, diferentemente da reciclagem, opta pelo aproveitamento consciente de contribuições relevantes para a construção de novas ações pedagógicas da leitura e da escrita. Em suas aplicações, Magna Campos sai do universo puramente acadêmico, das reflexões teóricas e entra na sala de aula, encontra-se com seu aluno e o desafia à revisão do próprio texto, a construir reflexões sobre o processo de escritura e começar a considerar-se leitor de si e de seu próprio gesto de escrita. Na segunda parte do livro, Magna mostra substratos da pós-modernidade nos sistemas de significação e suas lin6
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guagens submetidos aos imperativos socioculturais contemporâneos, nos quais a velocidade, as incertezas e as transitoriedades que interferem na forma de abordagem e na pedagogia da leitura e da escrita. Eis um campo fértil para digressões, especialmente no campo da produção ou da leitura do texto jornalístico e literário. Magna Campos encontra na aldravia, uma nova forma de poesia criada no final de 2010 por poetas mineiros, e, como resultante de empreendimento pela instauração de sentidos metonímicos, essa nova forma, na visão da autora, representa a liquidez desta época, que não se atém a formas fixas e está sempre pronta para alterar as formas existentes. A aldravia, embora forma, expressa a liberdade com que se movem os fluidos, amoldável ao recipiente, própria à linguagem conceituada nos Prolegômenos de Hjelmslev nos anos quarenta do século XX – formas amorfas. Assim, o pressuposto da Modernidade Líquida de Bauman serve aos propósitos aldravistas, de dar à linguagem literária a sua característica maior: a liberdade na forma, no sentido hjelmsleviano, para se abrir livre nos conteúdos, a partir dessa forma possíveis, segundo a história social e cultural do receptor. Como bem aponta o texto final deste livro, não importa o suporte material do texto, manuscrito, impresso ou digital, o leitor será capaz de buscar significação, orientado por processos sócio-históricos, ideológicos e identitários. Recomendo não só a leitura deste livro que ora apresento, mas também a sua utilização como referência para o exercício diário de leitor e escritor ou de ensino de leitura e de escrita. Mariana, agosto de 2012 J. B. Donadon-Leal Dr. em Semiótica, Professor no Curso de Jornalismo da UFOP Editor da Aldrava Letras e Artes.
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Ao invés de tomar a palavra, gostaria de ser envolvido por ela e levado bem além de todo começo possível. (Michel Foucault)
Recria tua vida, sempre, sempre Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça. (Cora Coralina)
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PARTE I
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1 – A construção social da subjetividade do leitor: a perspectiva de quatro estudiosos1 Todo olhar é um olhar a partir de algum lugar sócio-historicamente marcado, e como tal, atravessado por conotações ideológicas. (RAJAGOPALAN, 2007) Neste texto, procuraremos demonstrar a importância do aspecto social na constituição do sujeito-leitor. Essa reflexão deriva do fato de que a produção de sentidos, operada na/pela leitura, depende da ação de um sujeito, não como um ser individualizado, fechado em si mesmo, mas como ser constituído pelo tecido social.
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Esse texto é baseado no segundo capítulo da minha dissertação intitulada “A leitura numa perspectiva cultural: repensando o sujeito leitor”, defendida na UFSJ, em 2009. 11
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O contexto social é importante na ação da leitura não por determinar, mas por influenciar o que poderíamos entender como uma coprodução de sentidos operada na relação entre o sujeito-leitor e o sujeito-autor mediada pelo texto. Entendemos que esse contexto não se presta somente a ser pano de fundo para o sentido, mas participa de sua constituição, historicizando-o, situando-o. E, no mesmo alinhamento, entendemos que o sujeito-leitor é aquele que produz sua leitura a partir de sua inscrição nessa dinâmica, como sujeito social. Essa postura leva-nos a considerar, além da dinâmica social – que joga na constituição da linguagem e, consequentemente, do sujeito –, os atravessamentos do social pela ideologia e pela historicidade e a impossibilidade de se compreender a linguagem autonomamente, pautando-se na crença de significados anteriores ao discurso (texto) e à história. Na tentativa de pensarmos essas questões que envolvem a leitura e, portanto, o sujeito-leitor, acolhemos as reflexões de Mikhail Bakhtin, Paulo Freire, Eni Orlandi e Maria José Coracini, por estes autores2 apresentarem visões segundo as quais o sentido na linguagem é produzido sóciohistoricamente, e é socialmente instanciado; e ainda, por postularem que o sujeito participa ativamente na construção e produção dos sentidos. Dessa forma, o sujeito-leitor em sua relação com a linguagem e, portanto, com a leitura, não mais é tomado somente pelo conjunto de habilidades individuais, mas antes como um sujeito que produz sua leitura a partir de sua inscrição na esfera social, como um sujeito social. É nessa medida que podemos falar em uma postura crítica diante da questão da leitura, uma vez que a incorpo2
O alinhamento desses quatro autores, neste texto, dá-se em virtude da percepção da linguagem como não circunscrita em si mesma, mas constituída na prática social, e, em alguma medida, constituinte dela. Não fosse essa perspectiva, talvez o diálogo aqui traçado fosse impossível, haja vista os diferentes lugares de fala de cada um desses autores. 12
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ração do universo social, cultural e histórico dos sujeitos (leitor e autor) envolvidos na atividade passa a ser considerada como condição de produção e contexto nos quais os textos são produzidos, e a partir dos quais os textos são lidos. Passemos então ao desdobramento das reflexões dos autores mencionados. 1.1 – O sujeito-leitor responsivo: a perspectiva de Mikhail Bakhtin Mikhail Bakhtin legou um trabalho paradigmático com suas acepções sobre a dialogia da linguagem. Parte dessas considerações ressoa nas postulações dos autores que utilizaremos na continuidade de nossa abordagem neste capítulo. O autor postula que a palavra, se isolada do contexto no qual foi enunciada, não passaria de um sinal, o qual apresentaria um sentido único e fixo. No entanto, essa postura redutora não é a assumida pelo autor, que concebe a língua como viva e dinâmica e tem na “palavra o território comum entre locutor e interlocutor” (BAKHTIN, 2004, p.113) e que seus sentidos seriam determinados pelo contexto enunciativo em que ocorrem. A concepção bakhtiniana de enunciado como unidade da comunicação verbal3, ligado ao uso efetivo da língua e responsável pelo instanciamento dos sujeitos e do contexto sócio-histórico, favorece ao exame da enunciação4 como lugar privilegiado em sua obra. Segundo o autor, 3
A comunicação verbal, inseparável das outras formas de comunicação, implica conflitos, relações de dominação e de resistência, adaptação ou resistência à hierarquia, utilização da língua pela classe dominante para reforçar seu poder etc. (BAKHTIN, 2004, p.14) 4 Enunciação é um ato de pôr em funcionamento a língua, produzindo um enunciado (unidade ou forma de discurso), conforme Bakhtin (2004). 13
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a enunciação, compreendida como uma réplica do diálogo social, é a unidade de base da língua, trate-se de discurso interior (diálogo consigo mesmo) ou exterior. Ela é de natureza social, portanto ideológica. Ela não existe fora de um contexto social, já que cada locutor tem um "horizonte social". Há sempre um interlocutor, ao menos potencial. (BAKHTIN, 2004, p.16) A natureza social da enunciação e a pressuposição do outro figuram como características importantes nas reflexões de Bakhtin, na medida em que, para ele, a visão de linguagem deve ter como base de sua doutrina a enunciação, ou seja, a linguagem em uso em uma dada situação. A leitura, como uma das facetas da linguagem, portanto, não deixa de corresponder a esse postulado, embora reconheçamos que o autor não faça uma explícita relação ao processo de leitura. A pressuposição do outro leva-nos, ainda, ao reconhecimento daquilo que Bakhtin toma por verdadeira substância da língua: a interação, realizada através da enunciação ou das enunciações. É o próprio autor quem chama atenção para o fato de que: Essa orientação da palavra em função do interlocutor tem uma importância muito grande. Na realidade, toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo fato de que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém. (BAKHTIN, 2004, p.113) grifos do autor. E é nesse âmbito da interação que o autor insere o ato de compreender, pois, segundo ele, a compreensão “é uma forma de diálogo” (BAKHTIN, 2004, p.132), portanto, seria dessa ideia de diálogo – instituído entre interlocutores –na qual residiria a característica de atividade5 que tem a com5
De acordo com Bakhtin, qualquer tipo genuíno de compreensão deve ser ativo deve conter o germe de uma resposta (2004, p.131). 14
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preensão. Pois, compreender seria “opor à palavra do locutor uma contrapalavra”, é orientar-se em relação a uma enunciação, fazendo corresponder, “a cada palavra da enunciação que estamos em processo de compreender, [...] uma série de palavras nossas, formando uma réplica” (BAKHTIN, 2004, p.132). Nesta perspectiva, os sentidos dos signos dependeriam das relações entre sujeitos e seriam construídos na compreensão/interpretação dos enunciados, tendo-se por base a enunciação. Por isso, o centro da interlocução, e, por conseguinte, da compreensão, não estaria polarizado num eu ou num tu, como ato solitário, mas sim inserida num movimento dialógico em torno do sentido, numa dinâmica relacional. Assim, a leitura se caracterizaria como uma atividade de interação que pressupõe um diálogo6 vivo entre os interlocutores sócio-historicamente situados, fato que instauraria um espaço recursivo no qual autor e leitor passariam a fazer parte de um processo de relações interligadas por fios dialógicos. Decorre dessas considerações que o sujeito-leitor seria aquele que responderia ativamente ao outro presente na enunciação, no discurso. A pressuposição da atitude responsiva já está inserida na própria criação do(s) enunciado(s), uma vez que o sujeito, quando diz algo, sempre diz de uma dada maneira dirigindo-se a alguém, e o ser desse alguém interfere na maneira de dizer. Podemos acrescentar então, tal qual afirmado por Bakhtin, que desde o início [...] o enunciado se constrói levando em conta as atitudes responsivas, em prol das quais ele, em essência, é criado. O papel dos outros, para quem se constrói o e6
Diálogo que, na proposta de Bakhtin, deve ser tomado no sentido mais amplo do termo, isto é, não apenas como a comunicação em voz alta, de pessoas colocadas face a face, mas toda comunicação verbal, de qualquer tipo que seja (2004, p.123).
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nunciado, é excepcionalmente grande, como já sabemos. Já dissemos que esses outros, para os quais o meu pensamento pela primeira vez se torna um pensamento real (e deste modo também para mim), não são ouvintes passivos, mas participantes ativos da comunicação discursiva. Desde o início o falante aguarda a resposta deles, espera uma ativa compreensão responsiva. É como se todo o enunciado se construísse ao encontro da resposta. (BAKHTIN, 2003, p.301) Essa atitude responsiva é interpretada por Sobral (2005, p.20), que destaca o caráter de “responsibilidade” e de “participatividade” do agente que une responsabilidade – o responder pelos próprios atos – a responsividade, o responder a alguém ou a alguma coisa. Sendo assim, a linguagem estaria sempre em movimento, sempre se fazendo, na medida em que estaria suscetível e dependente à/da atualização responsiva que acontece no diálogo entre interlocutores. A ênfase no aspecto ativo do sujeito e no caráter relacional de sua construção como sujeito – caráter fundado na tríade eu-para-mim, eu-para-o-outro e o outro-para-mim –, bem como na construção negociada do sentido, leva Bakhtin a recusar tanto um sujeito infenso à sua inserção social, posto acima do social, totalmente determinado pelo ambiente sócio-histórico, quanto um sujeito fonte do sentido (Cf. SOBRAL, 2005, p.22). Ainda, podemos entender, na perspectiva de Bakhtin, que o texto não se encerra em si mesmo, mas dialoga com outros textos e leitores. “Por isso não tem sentido dizer que a significação pertence a uma palavra [ou texto] enquanto tal” (BAKHTIN, 2004, p.132). Em face da atitude responsiva ativa do outro perante o enunciador, o enunciado pressupõe sempre, conforme Bakhtin, uma apreciação valorativa. Dessa forma, compreender um texto é adotar uma postura ativa e 16
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responsiva em relação a ele, e assim, assumir posições de concordância ou discordância, adesão ou objeção, como postulado a seguir: O próprio falante [autor] está determinado precisamente a essa compreensão ativamente responsiva: ele não espera uma compreensão passiva, por assim dizer, que apenas duble o seu pensamento em voz alheia, mas uma resposta, uma concordância, uma participação, uma objeção, uma execução, etc. (BAKHTIN, 2003, p.272) A própria definição da palavra resposta, frente aos enunciados que a antecedem, conforme formulada pelo autor, já pressupõe esse posicionamento, pois, resposta, no sentido amplo, refere-se a rejeitar, confirmar, completar, basear-se neles, subentendê-los. No entanto: É impossível alguém definir sua posição sem correlacioná-la com outras posições. Por isso, cada enunciado é pleno de variadas atitudes responsivas a outros enunciados de dada esfera da comunicação discursiva. (BAKHTIN, 2003, p.297) Essas variadas atitudes responsivas são caracterizadas pelo diálogo do discurso (enunciado) com outros discursos (enunciados). O enunciado, dessa forma, não é único e monológico, pois só existe na cadeia da comunicação discursiva7, como já mencionado, sendo delimitado e constituído por outros enunciados. Todo enunciado tem um começo e um fim, mas ele nunca está isolado da cadeia discursiva que compõe a interação verbal. Conforme Bakhtin (2003), cada enunciado não está ligado apenas aos enunciados que o precedem, mas também aos subsequentes da comunicação discursiva. Dessa forma, constitui-se, assim, na esfera do já-dito 7
A expressão comunicação discursiva é usada em Bakhtin (2003) em lugar de comunicação verbal, Bakhtin (2004). 17
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ao mesmo tempo em que orienta para o ainda não dito do discurso resposta. Na leitura de um enunciado, o sujeito-leitor sente o final daquele, como se o autor [locutor] tivesse dito tudo o que queria num momento e em condições determinadas. Tal acabamento, ou conclusibilidade8, é preciso a fim de que seja possível uma reação ao enunciado, para que o outro [neste caso o leitor] possa adotar efetivamente uma atitude responsiva. Mas não se pode esquecer o seu entrelaçamento na cadeia da comunicação discursiva, na interdiscursividade. Assim, os sentidos só podem ser construídos e atualizados se em contato com outros sentidos, já que ocorrem na interação. A compreensão, portanto, apenas se revela na multiplicidade dos sentidos. Por ser fundado no dialogismo, o sentido caminha sempre no caminho da multiplicidade, da diversidade, conforme expõe o autor: O sentido é potencialmente infinito, mas pode atualizar-se somente em contato com outro sentido (do outro), ainda que seja com uma pergunta do discurso interior do sujeito da compreensão. [...] Não pode haver um sentido único (um). Por isso não pode haver o primeiro nem o último sentido, ele está sempre situado entre os sentidos, é um elo na cadeia dos sentidos, a única que pode existir realmente em sua totalidade. (BAKHTIN, 2003, p.382) Além da multiplicidade de sentidos, há outra questão da qual a leitura não pode prescindir. Trata-se de se conside8
A conclusibilidade é uma peculiaridade do enunciado: pode ocorrer precisamente porque o falante disse (ou escreveu) tudo o que quis dizer em dado momento ou sob dadas condições. [...] o primeiro e mais importante critério da conclusibilidade do enunciado é a possibilidade de responder a ele, em termos mais precisos e amplos, de ocupar em relação a ele uma posição responsiva. (BAKHTIN, 2003, p.280) grifos do autor. 18
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rar as condições de produção e o caráter sócio-histórico da linguagem, o qual remete ao ideológico. De acordo com Bakhtin (2004), todo signo é ideológico e, por esse motivo, está indissoluvelmente ligado à situação social. Os sistemas semióticos, verbais ou não verbais, servem para exprimir a ideologia e são, portanto, modelados por ela: A palavra é o signo ideológico por excelência; ela registra as menores variações das relações sociais, mas isso não vale somente para os sistemas ideológicos constituídos, já que a "ideologia do cotidiano", que se exprime na vida corrente, é o cadinho onde se formam e se renovam as ideologias constituídas. Se a língua é determinada pela ideologia, a consciência, portanto o pensamento, a "atividade mental", que são condicionados pela linguagem, são modelados pela ideologia. (BAKHTIN, 2004, p.16) aspas do original A palavra como signo ideológico e social – reflete e refrata uma realidade – e é tida como central para a constituição do homem, por ser ela o material privilegiado da comunicação e o material semiótico da vida interior, da consciência. A palavra penetra em toda e qualquer relação estabelecida entre indivíduos; é a trama que tece as relações sociais: “cada signo ideológico é não apenas um reflexo, uma sombra da realidade, mas também um fragmento material dessa realidade” (BAKHTIN, 2004, p.33). Dessa forma, mesmo a atividade mental é construída no processo da interação verbal e, portanto, não deve ser considerada fora do contexto social no qual o indivíduo está inserido, já que todo pensamento é engendrado por signos ideológicos. Sendo assim, quando se observa o texto do ponto de vista do diálogo interativo entre interlocutores, é possível analisar, para além do signo, a cultura e os valores ideológicos que se encontram camuflados ou não no discurso dos sujeitos da enunciação. É neste sentido que Bakhtin afirma 19
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que os sistemas semióticos servem para exprimir a ideologia e são, portanto, modelados por ela. Pois tudo que é ideológico possui um significado e remete a algo situado fora de si (reflete e refrata a realidade). Decorre dessa consideração, o alargamento da noção do que seja compreender. Compreender, nesse caso, além de não ser um ato solitário do sujeito-leitor, mas um efeito da interação verbal e uma forma de construir sentidos é, também, um modo de relacionar o signo, interior e exterior – subjetividade e objetividade – com a situação em que ele se forma. Tal situação se apresenta como a totalidade dos fatos que constituem a experiência exterior e, concomitantemente, acompanha e esclarece o signo interior. O sujeito, ao se apropriar da linguagem, pondo-a em funcionamento, sofre as coerções da situação social de produção, do contexto e da própria língua. Portanto, não cabe nesta visão, o papel do autor como aquele que domina a linguagem e os sentidos do texto, pois, uma vez que ao selecionar as palavras para sua produção, ao serem enunciadas, tais palavras carregam-se de sentidos saturados por valores socioideológicos. E uma vez que é preciso considerar, na produção do sentido, os outros participantes da enunciação, quais sejam: o falante (autor), o interlocutor (leitor) e o conteúdo (tema), nessas configurações, são de fundamental importância considerar-se o endereçamento do enunciado, pois está inserido no funcionamento da linguagem, o outro a quem o enunciado é orientado – o interlocutor que é levado em conta pelo autor no momento da produção do texto. Já que, A quem se destina o enunciado, como o falante (ou o que escreve) percebe e representa para si os seus destinatários, qual é a força e a influência deles no enunciado – disso dependem tanto a composição quanto, particularmente, o estilo do enunciado. (BAKHTIN, 2003, p.301)
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Em virtude desse postulado, o sujeito-leitor, ao assumir uma atitude responsiva diante do texto, já encontra lá um outro instaurado a quem o texto é orientado. Por considerar o outro como fundamento da concepção de linguagem, Bakhtin menciona que um sentido só é capaz de revelar sua profundidade encontrando-se e contactando com outro, com o sentido do outro. E no diálogo firmado entre eles, a cultura assume importância vital e a compreensão ativa e responsiva não renuncia a si mesma, ao seu lugar no tempo, no espaço, à sua cultura (Cf. BAKHTIN, 2003). Portanto, o sujeito-leitor, em Bakhtin, é um sujeito social, que ao ler entra em diálogo com suas palavras internas e com as palavras do(s) outro(s) – a exterioridade – construídas em uma condição sócio-histórica específica. Esse sujeito constrói sentidos a partir de um processo responsivo ativo, numa relação dialógica, materializada na linguagem, fortemente marcada por seu caráter ideológico, e tal relação se dá por meio da interação verbal. No entanto, não se pode desprezar o encontro com outra(s) cultura(s), constituindo e constitutivo da língua. 1.2 – O sujeito-leitor engajado: o que diz Paulo Freire Paulo Freire é um autor mais conhecido por sua obra sobre pedagogia crítica, mas é também considerado como o primeiro autor, no Brasil, a teorizar a questão da leitura com vistas a uma dimensão cultural. Sua visão de leitura, ancorada numa premissa que poderíamos denominar de sociopolítica, visa à interpretação crítica e leva à consideração do contexto sociocultural – em sua dimensão histórica –, no qual se dá a leitura e no qual está inserido o sujeito-leitor como participante da leitura produzida. Para Freire (1989) o leitor está imerso numa realidade em que não se pode separar tão claramente o que é mundo, o que é sujeito e o que é palavra. A leitura do mundo, para ele, precede a leitura da palavra, a qual se dilui com a história do sujeito. Essa leitura (entendimento) de mundo proporciona21
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ria compreender os componentes de uma sociedade, sua cultura e suas linguagens. Dessa forma, é o entendimento do mundo que daria sentido à palavra escrita (o que a palavra foi capaz de dizer sobre o mundo), pois o mundo está antes (se antecipa) e depois (se alonga) do texto escrito: sua leitura é a condição para o texto e é também a finalidade do texto. Deste modo, Freire argumenta que a leitura não se esgota na decodificação pura da palavra escrita ou da linguagem escrita, mas que se antecipa e se alonga na inteligência do mundo. A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele. Linguagem e realidade se prendem dinamicamente. A compreensão do texto a ser alcançada por sua leitura crítica implica a percepção das relações entre o texto e o contexto. 9 (FREIRE, 1989, p.9) Evidencia-se, nessa proposição, a tentativa de Freire de ir além do contexto imediato do sujeito-leitor e de inseri-lo naquele a partir do qual os textos são produzidos e lidos. Ocorre também a atribuição de um papel ativo ao leitor, que não apenas recebe as informações, ou as palavras do texto, reconhecendo-lhe, simplesmente, o sentido. Conforme propõe o autor, é preciso perceber a relação entre o texto e o contexto a fim de que a compreensão crítica ocorra, o que deixa entrever a imputação de um sujeito participante na produção de sentido e não apenas receptáculo deste. O sujeito-leitor não somente participaria da produção do sentido do texto, mas também atuaria como seu corres9
Todos os livros de Paulo Freire utilizados por nós constituem versões digitalizadas, em formato PDF, disponibilizadas na internet, através da Biblioteca Digital Paulo Freire e pertencentes ao acervo da Biblioteca Central da UFPB. A numeração das páginas segue a correspondência do texto em PDF, uma vez que, na digitalização, a numeração original (do texto impresso) foi suprimida. 22
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ponsável no momento da leitura, uma vez que o sujeitoleitor crítico seria aquele capaz de relacionar ativamente texto e contexto social e, juntamente com o autor, no momento da leitura, construiria o entendimento do texto e, através do texto, o entendimento do mundo. Ou seja, a palavra, o mundo e o entendimento de quem escreve e de quem lê operam o texto, que se vai organizar para dar conta desse diálogo mundo, palavra, sujeito: A leitura verdadeira me compromete de imediato com o texto que a mim se dá e a que me dou e de cuja dimensão fundamental me vou tornando também sujeito. Ao ler não me acho no puro encalço da inteligência do texto como se fosse ela produção apenas de seu autor ou de sua autora. (FREIRE, 1996, p.14) Decorre dessa afirmação o entendimento de que existiria uma leitura que não seria a verdadeira, talvez meramente decifrativa e que poderíamos designar, a partir de Freire (1996, p.46), de mais ingênua, a qual é preciso superar10. A leitura capaz de favorecer à própria constituição do sujeito e ao entendimento do mundo consistiria em uma negociação entre leitor e autor, entre leitor e texto, entre texto e contexto, entre palavra e mundo. Dessa negociação decorreria a leitura crítica11 que, para Freire, é aquela que sabe situar num contexto o que está sendo lido. Importante observar que contexto, na proposta freireana, não se refere apenas à materialidade linguística do tex10
Freire resguarda à educação o papel de formar os leitores críticos. Segundo ele, a educação pode seguir duas práticas: a “bancária”, que levaria o leitor à repetição daquilo que ouve ou lê, sem questionamento algum, e a “transformadora” que possibilitaria o surgimento do leitor crítico, capaz de problematizar e transformar a realidade. 11 Usaremos e manteremos a expressão “leitura crítica”, quando tratarmos das postulações de Freire, como forma de evidenciar a separação entre as duas atitudes diante de leitura, ingênua ou verdadeira, efetuada por ele. O uso da expressão indifere de concordarmos ou não com tal classificação. 23
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to, mas ao contexto maior, uma vez que a leitura de mundo precederia a leitura da palavra. Nas palavras de Freire (1996, p.46), a leitura de mundo “revela a inteligência do mundo que vem cultural e socialmente se constituindo”, respeitando, ainda, “seu caráter histórico”. Assim, a leitura de mundo passa a ser concebida como um convite para se compreender os componentes de uma sociedade – a sua cultura, representada através dos construtos culturais, valores, crenças e modos de comunicação de uma determinada sociedade, suas linguagens. No entanto, não se pode esquecer que a leitura da palavra, conforme propõe o autor, é precedida (se antecipa) e continuada (se alonga) da/na leitura de mundo. É da relação/diálogo crítica(o) entre mundo e palavra, palavra e mundo, mediada/o pelo sujeito, que residiria a capacidade do sujeito-leitor de problema- tização da realidade (sua denúncia) e de transformação da mesma. Pois, de alguma maneira, porém, podemos ir mais longe e dizer que a leitura da palavra não é apenas precedida pela leitura do mundo mas por uma certa forma de “escrevê-lo” ou de “reescrevê-lo”, quer dizer, de transformá-lo através de nossa prática consciente. (FREIRE, 1989, p.13) Se ler criticamente implica a reescritura do mundo e sua transformação, a leitura apresenta um caráter sociopolítico importante, pois, como o sujeito-leitor, deve agir criticamente diante do texto, essa postura estaria relacionada com a forma de o sujeito se situar no mundo. Mas reescrever o mundo é uma possibilidade atribuída apenas aos leitores críticos, haja vista que, para Freire, haveria um outro tipo de leitor, não-crítico, que seria apenas um repetidor daquilo que lê e passível de ser manipulado pelo autor, e decorrentemente, reprodutor das condições sócio-históricas e não seu transformador:
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o leitor crítico é aquele que até certo ponto “reescreve” o que lê, "recria” o assunto da leitura em função dos seus próprios critérios. Já o leitor não-crítico funciona como uma espécie de instrumento do autor, um repetidor paciente e dócil do que lê. Não há nesse caso uma real apreensão do significado do texto mas uma espécie de justaposição, de colagem, de aderência. (FREIRE, 1995, p.86) Decorre desse diálogo crítico a percepção freireana do ato de ler como um ato político que se constrói dentro da experiência existencial do indivíduo como sujeito históricosocial, criado e criador da cultura. Nesse sentido, considerase a inserção desse sujeito na esfera social, histórica e, consequentemente, ideológica. O autor defende, sobretudo, a competência do leitor, enquanto um sujeito das relações sociais que permeiam o seu meio, e não apenas em termos de conteúdos referenciais. Esse meio não agiria como determinante do sujeito, mas o condicionaria, e por conseguinte, condicionaria sua relação com a linguagem. Assim, de acordo com Freire, Como um ser da práxis, o homem, ao responder aos desafios que partem do mundo, cria seu mundo: o mundo históricocultural. O mundo de acontecimentos, de valores, de ideias, de instituições. Mundo da linguagem, dos sinais, dos significados, dos símbolos. [...] Todo este mundo históricocultural, produto da práxis humana, se volta sobre o homem, condicionando-o. Criado por ele, o homem não pode, sem dúvida, fugir dele. Não pode fugir do condicionamento de sua própria produção. (FREIRE, 1979, p.4647) Freire enfatiza que a leitura crítica favorece à tomada de consciência pelo indivíduo, fato que o levaria ao desvelamento das contradições do sistema capitalista, 25
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permitindo uma visão mais clara das relações de dominação e de poder aí presentes. Portanto, a leitura crítica se configuraria como uma forma de ação contra-hegemônica12 uma vez que possibilitaria ao sujeito-leitor, tal qual já expusemos, tornar-se consciente de sua realidade e assim tentar transformá-la: Esta "leitura” mais crítica da "leitura” anterior menos crítica do mundo possibilitava aos grupos populares, às vezes em posição fatalista em face das injustiças, uma compreensão diferente de sua indigência. É neste sentido que a leitura critica da realidade, dando-se num processo de alfabetização ou não e associada sobretudo a certas práticas claramente políticas de mobilização e de organização, pode constituir-se num instrumento para o que Gramsci chamaria de ação contrahegemônica. (FREIRE, 1989, p.14) E ainda, essa conscientização a respeito do funcionamento do sistema onde se está inserido adviria do engajamento e conscientização do sujeito-leitor com vistas à sua emancipação social. É o que o autor enfatiza quando diz que “a conscientização não é propriamente o ponto de partida do engajamento. A conscientização é mais um produto do engajamento. Eu não me conscientizo para lutar. Lutando, me conscientizo” (FREIRE, 1995, p.87). Por isso a 12
A hegemonia é constituída por um bloco de alianças que representa uma base de consentimento para a ordem social definida. O bloco histórico que rege uma hegemonia identifica os problemas de uma sociedade e responde, de acordo com seus interesses, à gama dos conflitos do conjunto social. Entretanto, quando os setores da sociedade não se identificam com os apontamentos da hegemonia estabelecida, eles manifestam sua contrariedade e reivindicam novas atitudes e posicionamentos tanto do poder público, quanto da sociedade civil, instaurando assim, a contra-hegemonia. Tal conceito é baseado nas proposições de Gramsci. (SOUZA, 2005, p.1) 26
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alfabetização formal ou informal é muito importante em sua concepção, pois favoreceria o acesso ao conhecimento e, assim, possibilitaria ao sujeito aprender a ler o mundo com menos ingenuidade, e assim ler os outros textos, também, mais criticamente – ou porque aprendendo a ler os outros textos mais criticamente pudesse ler o mundo com menos ingenuidade. Só assim seria possível escrever ou reescrever o mundo, a fim de transformá-lo. Tal leitura crítica seria o que facultaria ao sujeito o desvelamento dos problemas, fatos e razões de ser do mundo e das relações sociais. Nesse sentido, ela seria também o “ato de conhecer não só o texto que se lê, mas também de conhecer através do texto” (FREIRE, 1995, p.87). A leitura, dessa forma, proporcionaria ao sujeito-leitor produzir conhecimento a partir de suas experiências no mundo do qual faz parte e vive, relacionando-as à palavra lida. Essa produção do conhecimento se vincula a um posicionamento político marcado e definido pela ideologia. Tal conhecimento caracteriza-se principalmente pela profundidade das interpretações, pela atribuição de um caráter dinâmico para a realidade e pela apropriação da realidade como sendo historicamente situada, portanto, passível de ser revisto e refeito, tal qual a própria realidade capaz de ser transformada. Assim, conforme o autor, a leitura não se encerra no sujeito, e sim, torna-o engajado – um atuante político no mundo –, em especial, no contexto mais próximo de si, sem esquecer que ele nunca atua de maneira neutra, desinteressada, sem nenhum vínculo minimamente ideológico (Cf. FREIRE, 1989). A questão da subjetividade e a percepção desta pelo homem, na proposta de Freire, não ocorrem fora do espaço sócio-histórico e cultural que envolve o sujeito, pois este não seria um mero objeto em um espaço construído à sua revelia. Ao sujeito é resguardado um papel de corresponsável, assim, pelas condições do mundo em que vive. De acordo com Calado, a concepção freireana de sujeito é a de um ser que está em constante formação ou transformação graças à sua
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relação com outros sujeitos e com o mundo, como propõe em: [...] entendido como um ser que se faz , em suas relações no mundo, com o mundo e com os outros, [...] graças ao exercício de sua condição de ser curioso/crítico/criativo. Faz parte da condição de quem existe, tornar-se continuamente para ser mais, afinal de contas, afirma Freire, “Não nasci... Vim me tornando”. (CALLADO, 2001, p. 20) grifos do autor. Nessa perspectiva, o sujeito é um ser situado sóciohistoricamente, formando-se continuamente pela sua relação dialógica, como proposto acima, com o outro e com o mundo, pois “ninguém nasce feito: é experimentando-nos no mundo que nós nos fazemos. Vamos nos fazendo aos poucos, na prática social de que tornamos parte” (FREIRE, 2001, p.40). E se a leitura, seja ela do mundo ou da palavra, é uma prática social que faz parte das experiências do sujeito em contínua formação, então a leitura também participaria da constituição deste sujeito. Assim, a leitura está relacionada a engajar o sujeito, a armar o olhar, em uma atividade crítica ou problematizadora que se concretiza através da linguagem como prática social, na qual o sujeito-leitor atua como intervencionista da realidade, não sendo possível se desvencilhar daquilo que Freire (1989) nomeou de “palavramundo”, ou seja, o sujeito está imerso na linguagem como expressão que a todo momento é interpretada, é lida por ele. O entendimento da questão do ser é de fundamental importância em suas considerações em torno da leitura, uma vez que o ser não prescinde do outro, mas precisa dele para a possibilidade da própria existência em um mundo originalmente estabelecido pela tensão do contato entre alteridades. Essa tensão, por sua vez, jamais se move ou não se deve mover na ambição da homogeneidade. O reconhecimento da alteridade, ou seja, de outras vozes, as quais devem ser questionadas pelo sujeito-leitor crítico, em prol de o des28
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velamento ideológico das mesmas, promoveria a emancipação do sujeito e o oportunizaria ser livre. Conforme Callado, ser livre, em Freire, é conquistar e exercitar a faculdade de dizer a sua palavra, de pronunciar o mundo; é a condição do ser humano de responder com solicitude à sua vocação de protagonista de seu destino. Instiga-o a posicionar-se diante de sua ontológica vocação de ser sujeito. (CALLADO, 2001, p.22) grifo do autor. Instaura-se dessa forma a interação dialética do homem com o mundo e, em decorrência, do sujeito com a linguagem, pois uma vez que este sujeito é condicionado pelo mundo, tal qual proposto por Freire (1979), e na medida em que seu pronunciar o mundo o faz livre, então se estabelece aí uma relação dialética entre condicionamentos e liberdade. Resta lembrar que, conforme a visão freiriana, dizer sua palavra – a do sujeito – é uma atividade situada sóciohistórica, cultural, e consequentemente, ideológica. E como é a palavra, na relação dialógica com a alteridade, que também permite a formação do sujeito, essa palavra figura como processo e produto da subjetividade humana. Fato que atrela o sujeito à dinâmica social e, tendo em vista que, em Freire, a noção de leitura e o entendimento de seu processo são baseados nessas considerações, entendemos que, da mesma forma, o sujeito-leitor, nessa perspectiva, também é visto como sujeito constituído socialmente. 1.3 – O sujeito-leitor como efeito: a visão de Eni Orlandi Eni Orlandi trabalha a questão da leitura no âmbito da Análise do Discurso de Linha Francesa e tem em Pêcheux e Foucault importantes referenciais teóricos. Segundo a autora, a Análise do Discurso apresenta como recorte básico o tratamento dos “processos constituintes do fenômeno linguístico e não meramente seu produto” (ORLANDI, 1988, p.17). Por esse motivo, o ponto de partida dessa abordagem 29
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é a definição de que a linguagem é transformadora, como ação sobre a natureza e ação concertada sobre o homem. Nessa esfera, Orlandi (1988) considera a linguagem como trabalho e produção, e o modo de produção da linguagem como parte da produção social em geral. Pensar a linguagem como trabalho, ainda que simbólico, implica tomá-la não apenas em sua função referencial, como instrumento de comunicação ou suporte ao pensamento, mas como interação, na qual jogam as implicações psíquicas, sociais e ideológicas de seu uso. Além disso, tomar a palavra como um ato social – tendo em vista que o sujeito, ao se apropriar da linguagem, já encontra aí uma forma instituída socialmente para essa apropriação – requer que se considerem todas as implicações envoltas nessa questão: conflitos, reconhecimentos, relações de poder, constituição de identidades etc. Ainda, de acordo com a autora, para assumir a perspectiva da Análise do Discurso é necessário firmar um compromisso que coloque a capacidade de linguagem na constituição da própria condição da espécie, já que o homem não é isolável nem de seus produtos (cultura), nem da natureza. Daí considerar a linguagem como interação, vista esta na perspectiva em que se define a relação necessária entre homem e a realidade natural e social. (ORLANDI, 1988, p.17) Linguagem e sociedade se constituem mutuamente, uma vez que nem a linguagem é um dado e nem a sociedade é um produto, por isso, Orlandi (1988) entende que o estudo da linguagem não pode estar separado da sociedade que a produz, tampouco pode ser desconsiderado o caráter sóciohistórico dos processos que constituem esta linguagem. Portanto, sendo a leitura uma manifestação de linguagem, tais pressupostos também a constituiriam. Dessa forma, no processo de compreensão dos sentidos se tornaria de fundamental importância, observar não somente os interlo30
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cutores envolvidos, mas também o lugar ocupado por estes13, a situação, o contexto sócio-histórico e ideológico, as condições de produção que constituem o sentido – as quais permitem conceber o funcionamento14, e não a função, do discurso. Nesse âmbito, Orlandi concebe a leitura como um processo discursivo e busca, nessa questão, apreender e entender como se dá o funcionamento discursivo da compreensão, com vistas a entender “a constituição dos processos de significação” (ORLANDI, 1988, p.101). Nesse processo discursivo, atuariam dois sujeitos, autor e leitor, inseridos cada um deles em um momento sóciohistórico determinado, e, por isso, constituídos ideologicamente. Conforme Orlandi, a leitura seria um processo de produção: Não é só quem escreve que significa; quem lê também produz sentidos. E o faz, não como algo que se dá abstratamente, mas em condições determinadas, cuja especificidade está em serem sócio-históricas. (ORLANDI, 1988, p.101) Para a constituição de um texto, o autor, inserido em uma formação discursiva15 e em uma formação ideológica, 13
Para Orlandi, todo falante e todo ouvinte ocupa um lugar na sociedade, e isso faz parte da significação. [...]. O lugar assim compreendido, enquanto espaço de representações sociais, é constitutivo das significações (1998, p.18). 14 A noção de funcionamento é básica para se entender a possibilidade de sistematização dos elementos constitutivos da significação de um discurso. (ORLANDI, 1983, p.181) E é essa noção que remete o discurso à sua exterioridade. 15 A formação discursiva representa o conjunto do que pode e deve ser dito a partir de uma posição em uma conjuntura dada. (ORLANDI, 1988, p.18). E se define pela sua relação com a formação ideológica, que por sua vez, representa o conjunto de atitudes e representações que não são nem individuais nem universais, mas se reportam mais ou menos diretamente às posições de classe em conflito umas com as outras. (HAROCHE, 1975 apud ORLANDI, 1988, p.18). Daí temos 31
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imagina um leitor e escreve para esse leitor imaginário. Decorre desse princípio que a relação que se dá, no momento em que a leitura é realizada, é uma relação entre o leitor virtual (já inscrito no texto no momento da concepção) e o leitor real, estabelecendo, assim, uma relação de confronto entre esses dois leitores: o virtual e o real. Isso possibilita a autora criticar posturas teóricas que entendem que exista, no processo de leitura, uma relação sujeito/objeto e sublinha a relação entre sujeitos – autor, leitor real, leitor virtual. Por isso, ao ler o sujeito não interagiria com o texto, porque nesse caso se estaria assumindo o sentido único para ele, mas sim tal jogo interacional se daria entre sujeitos, como afirmado em: Se se deseja falar de processo de interação da leitura, eis aí um primeiro fundamento para o jogo interacional: a relação básica que instaura o processo de leitura é o jogo entre o leitor virtual e o leitor real. É uma relação de confronto. [...] O leitor não interage com o texto (relação sujeito/objeto), mas com outros sujeitos (leitor virtual, autor, etc.). [...] a relação [...] sempre se dá entre homens, são relações sociais, acrescentaria, históricas ainda que (ou porque) mediadas por objetos (como o texto). Ficar na “objetalidade” do texto, no entanto, é fixar-se na mediação, absolutizandoa, perdendo a historicidade dele, logo, sua significância. (ORLANDI, 1988, p.9) A instauração do autor e do leitor em sua relação como sujeitos é a base para a contextualização da leitura, pois sujeitos e sentidos são elementos do processo de significação. O sujeito-leitor, nessa configuração, produziria sentidos de acordo com as condições de produção na qual o seu encontro que: as palavras mudam de sentido ao passarem de uma formação discursiva para outras, já que muda sua relação com a formação ideológica. 32
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com o texto se dá, e, também, com os outros sujeitos nele configurados. É importante observar que, na leitura, esse sujeito é o outro da produção do texto – da escrita –, ou ainda, podemos entender que o outro na leitura é aquele que produziu o texto. Sendo assim, poderíamos caracterizar a própria leitura como um discurso. Tomar a leitura na perspectiva da Análise do Discurso, conforme explica Orlandi (1988), implica encarar o texto não apenas como produto, mas observar o processo em que ele é produzido, e daí, o de sua significação. Dessa forma, a leitura é o momento crítico da constituição do texto, da sua realidade significante. Momento em que os interlocutores se identificam como interlocutores e ao fazê-lo, desencadeiam o processo de significação do texto: A leitura é o momento crítico da constituição do texto, o momento privilegiado do processo de interação verbal, uma vez que é nele que se desencadeia o processo de significação. No momento em que se realiza o processo da leitura, se configura o espaço da discursividade em que se instaura um modo de significação específico. (ORLANDI, 1988, p.38) Portanto, leitura e sentido, ou melhor, sujeitos e sentidos se constituiriam num mesmo processo, pois “o sujeito ao significar se significa. Desse modo é que podemos dizer que o sujeito e o sentido se constituem ao mesmo tempo” (ORLANDI apud SCHERER, 2003, p.78). Mas considerar as condições de produção da leitura seria reconhecer, fundamentalmente, nos textos, a sua incompletude; característica esta que atingiria todos os discursos – portanto, também, o texto – e se referiria ao fato da multiplicidade de sentidos possíveis a serem construídos durante a produção da leitura (Cf. ORLANDI, 1983, p.181). Embora em sua apresentação empírica o texto mostre-se com um objeto com começo, meio e fim, como discurso, sua incompletude se reinstala. O texto não seria, pois, um objeto fechado em si mesmo e autossuficiente, mas sim, uma forma 33
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de articulação da linguagem; como tal, não pode mais ser tomado como unidade de sentidos pré-existentes, pois o sentido não está inscrito no texto, tampouco, o “sentido do texto não se aloja em cada um dos interlocutores separadamente, mas está no espaço discursivo criado pelos (nos) dois interlocutores” (ORLANDI, 1988, p.22). A relação do sujeito-leitor com o universo simbólico, nessa proposta, não ocorreria apenas por uma via – a verbal –, ele operaria com todas as linguagens que constituem o universo simbólico ao se relacionar com o mundo. E a autora ainda considera que o texto, como exemplar de discurso, “é multidimensional, enquanto espaço simbólico” (ORLANDI, 1996, p.14). Por isso, pensando na materialidade textual, a autora afirma que “o texto não é uma superfície plana, nem tampouco uma chapa linear” (ORLANDI, 1996, p.14); antes, figuraria como um bólido de sentidos que o faz partir em inúmeras direções, em múltiplos planos significantes. No entanto, não se pode perder de vista que os sentidos não nascem ab nihilo. São criados. São construídos em confrontos de relações que são sócio-historicamente fundadas e permeadas pelas relações de poder com seus jogos imaginários. Tudo isso tendo como pano de fundo e ponto de chegada, quase que inevitavelmente, as instituições. Os sentidos, em suma, são produzidos. (ORLANDI, 1988, p.103) Dessa maneira, os sentidos não pertenceriam ao sujeito-autor ou ao sujeito-leitor, muito menos derivariam de sua intenção e consciência, são decorrentes/efeitos da troca de linguagem entre eles, seriam partes de um processo, realizando-se num contexto, mas não se limitando a ele. Haja vista que têm historicidade: têm um passado – podem se sedimentar no interior das formações discursivas, assim há leituras “previstas” – e se projetam num futuro. Assim, a relação de interlocutores na construção/produção de sentidos é pressuposta na noção de efeito, na medida em que os efei34
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tos de sentido seriam produto do processo de significação entre eles – os interlocutores. É, ainda, a partir da noção de incompletude que a autora esclarece que os sentidos são construídos pelas relações que o texto estabelece com outros textos16 – existentes, possíveis ou imaginários –, sendo esse mais um dos motivos pelos quais o sentido lido não se encontraria, obrigatoriamente, no texto lido. Além disso, na leitura jogariam não apenas o que está dito, mas também aquilo que não está dito e que também está significando (Cf. ORLANDI, 1988, p.11). Orlandi propõe também que, uma vez que o contexto seria constitutivo do sentido, não haveria um centro e suas margens. Há só margens. “Dessa forma, todos os sentidos são de direito sentidos possíveis e, em certas condições de produção, há de fato dominância de um sentido sem por isso se perder a relação com os outros possíveis” (ORLANDI, 1988, p.20). Nessa produção de sentidos, a autora propõe duas possibilidades: a paráfrase e a polissemia. A primeira caracterizaria a leitura parafrástica, que se manifesta pela reprodução, ou melhor, pela produção do mesmo sentido sob várias de suas formas; a segunda apontaria para a leitura polissêmica, que se define pela possibilidade de múltiplos sentidos serem produzidos (Cf. ORLANDI, 1988, p.12). No que tange à acepção de sujeito, Orlandi (1988) explicita que é próprio da Análise do Discurso conceber o sujeito como social, constituído pelo discurso e interpelado pela ideologia. Decorreria dessa condição do sujeito a sua ilusão de autonomia, ou seja, o próprio sujeito não percebe o seu assujeitamento ideológico. Nesse sentido, o sujeito-leitor, ao praticar a leitura, se identificaria com o sujeito histórico, interpelado ideologicamente, e consequentemente, inscrito em uma formação discursiva determinada, instituindo-se como efeito-leitor – a posição da qual o leitor está lendo, afetada pelo interdiscurso e pela formação discursiva. Dessa forma, na produção da leitura, o leitor entraria com as condi16
A essa relação, Orlandi (1996) denomina de intertextualidade. 35
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ções que o caracterizam sócio-historicamente, e é daí que terá sua identidade de leitura configurada – pelo seu lugar social – e é em relação a esse lugar que se define sua leitura. “O efeito-leitor é, pois, relativo à posição do sujeito”. (ORLANDI, 1988, p.104) Tal processo de inscrição levaria à falsa impressão de que ele (o sujeito-leitor) é a fonte de seu discurso e de que os sentidos são transparentes. O sujeito-leitor, assim, é constituído por dois efeitos: efeito discursivo de sua identificação, isto é, de sua subjetividade – o sujeito tem a ilusão de ser a origem do que diz – e por aquilo que Orlandi chama de afetação pela ideologia, com sua ilusão de autonomia. Ainda podemos relacionar essa ilusão, que o sujeito tem de ser a fonte do que diz, ao interdiscurso, ou memória discursiva, que é “o conjunto de dizeres já ditos e esquecidos que determinam o que dizemos, sustentando a possibilidade mesma do dizer” (ORLANDI, 2001, p.59)17. No âmbito desses efeitos, a autora propõe que: O sujeito-leitor, constituído por esses efeitos, representa a conjunção de duas historicidades: a historicidade de suas (do leitor) leituras e a história de leituras do texto [...] que atuam dinamicamente na constituição de uma “sua” leitura específica, em um momento dado. (ORLANDI, 1988, p.112) Falar dessas historicidades leva a reconhecer o fato de que o mesmo sujeito-leitor não leria o mesmo texto da mesma maneira e em condições distintas de produção da leitura, e ainda, que o mesmo texto seria lido de maneiras diferentes em diferentes épocas, por diferentes leitores. Esses dois tipos de historicidade, a do leitor e a do texto, entrecruzam-se de várias maneiras no processo de leitura. Com isso, Orlandi caracteriza o sujeito-leitor crítico como aquele capaz de “sa17
Tal noção, a de interdiscurso, traz para a reflexão sobre o sujeitoleitor a consideração do inconsciente.
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ber que o sentido poderia ser outro” (ORLANDI, 1988, p.116). Nessa perspectiva, o texto teria vários pontos de entrada e vários pontos de fuga. Os pontos de entrada diriam respeito a múltiplas posições do sujeito – relacionados com o efeito-leitor – e os pontos de fuga seriam as diferentes perspectivas de produção de sentidos. Decorreria daí a possibilidade de múltiplas leituras, e também, a possibilidade de múltiplas posições do sujeito-leitor. Acrescente-se a isso que “os pontos de entrada são efeitos da relação do sujeito-leitor com a historicidade do texto. Os pontos de fuga são o percurso da historicidade do leitor, em relação ao texto” (ORLANDI, 1988, p.113). Portanto, o sujeito-leitor, em sua relação com o sóciohistórico, produziria sentidos ligados à historicidade, numa relação de confronto com a(s) imagem(ns) de leitor(es) inscrita(s) no ato da formulação do texto. Tais sentidos estariam filiados a certas formações discursivas, das quais resultaria o lugar de onde esse sujeito realiza “sua” leitura, que, por sua vez, remeteriam à ilusão desse sujeito-leitor ser a fonte do sentido produzido e de esse sentido ser transparente. Assim concebido, o sujeito-leitor seria efeito e não origem, por isso não teria controle sobre os sentidos produzidos. 1.4 – O sujeito-leitor clivado: a abordagem de Maria José Coracini Maria José Coracini situa sua proposta teórica de estudo da leitura na interface da Análise do Discurso, de linha francesa, com a teoria da Desconstrução, proposta por Jacques Derrida. A autora apresenta ainda forte influência da Psicanálise, principalmente, das teorias lacanianas. Nesse sentido, ela segue conceitos como discurso, ideologia, formação discursiva, interação, imaginário e desconstrução como pressupostos para seu estudo sobre leitura. Sua postura a leva a apresentar como meta a desestruturação das verdades teleológicas, dentro das quais se inse37
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rem a leitura e o sujeito-leitor, numa perspectiva chamada de discursivo-desconstrutivista, que se dá na convergência do linguístico com o social. A autora considera, assim como Orlandi, o ato de ler como um processo discursivo determinado sóciohistoricamente e marcado pela ideologia, em contraposição ao conceito de leitura como um processo cognitivo ou mecânico, independentemente do sujeito e da situação de enunciação: Há uma outra concepção de leitura que se encontra na interface entre a análise do discurso e a desconstrução que considera o ato de ler como um processo discursivo no qual se inserem os sujeitos produtores de sentido – o autor e o leitor –, ambos sóciohistoricamente determinados e ideologicamente18 constituídos. É o momento histórico-social que determina o comportamento, as atitudes, a linguagem de um e de outro e a própria configuração do sentido. (CORACINI, 2002, p.15) Configuração do sentido essa que seria fortemente constituída pelo imaginário discursivo – o interdiscurso – que habita o sujeito socioideologicamente constituído e que determina o seu dizer. O conjunto formado pelo interdiscurso e pelas condições de produção remeteria à pluralidade de sentidos e a diferentes leituras que não se referem apenas a diferentes leituras realizadas por sujeitos distintos, mas também a diferentes leituras realizadas por um “mesmo” sujeito sempre “outro”, como afirmado em: Quando falamos de diferentes leituras, referimo-nos não apenas à leitura realizada por 18
Por ideologia, Coracini (2002, p.75) compreende o conjunto de ideias que permeiam o olhar que lançamos ao mundo em que vivemos, enquanto membros de determinadas formações discursivas, determinando as formas de comportamento e de uso da linguagem. 38
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cada indivíduo em particular, mas aos diferentes momentos de sua vida: na verdade, o sentido de um texto, por ser produzido por um sujeito em constante mutação, não pode jamais ser o mesmo; aliás, como bem coloca Foucault (1971), tudo é comentário: o dizer é inevitavelmente habitado pelo já-dito e se abre sempre para uma pluralidade de sentidos, que, por não se produzirem jamais nas mesmas circunstâncias, são, ao mesmo tempo, sempre e inevitavelmente novos. (CORACINI, 2002, p. 16) Pluralidade de sentidos vista por Coracini (2002) como disseminação e não como polissemia. Polissemia essa que é rejeitada uma vez que esta se construiria em oposição à monossemia textual, de um sentido-verdade retornável em um dado momento. Antes, a disseminação seria capaz de fazer explodir o horizonte semântico e, dessa forma, não anularia o processo produtivo da cadeia de sentidos. Pois assim o sentido seria um em meio aos outros sentidos possíveis. Nesse âmbito, Coracini cita Derrida (1972) para esclarecer melhor a perspectiva de disseminação do sentido. Vejamos: A atenção dada à polissemia [...] constitui, possivelmente, um progresso relativamente à linearidade de uma escrita ou de uma leitura monossêmica, ansiosa por se amarrar ao sentido tutor, ao significado principal do texto [...]. Entretanto, a polissemia enquanto tal organiza-se no horizonte implícito de uma retomada unitária do sentido [...] de uma dialética teleológica e totalizante que deve permitir a um momento dado, por mais distanciado que ele seja, de voltar a reunir a totalidade de um texto na verdade de seu sentido, constituindo o texto em expressão, em ilustração, e anulando o deslocamento aberto e produtivo da cadeia textual. A disseminação, ao contrá39
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rio, por produzir um número não finito de efeitos semânticos, não se deixa reconduzir a um presente de origem simples [...] nem a uma presença escatológica. Ela marca uma multiplicidade irredutível e geradora. (DERRIDA 1972, apud CORACINI, 2002, p.16) A partir desses pressupostos, Coracini (2002, p.17), com base nas ideias de Wittgenstein (1969) e de Urban (s.d.), define os textos não como receptáculos de sentidos, mas como “conjuntos amorfos de sinais gráficos, incapazes de reter sentido fora do jogo linguístico [...], fora do universo de discurso” [...]. E, uma vez que as condições de sua produção se acham perdidas, apenas uma nova situação de enunciação – a leitura – seria capaz de conferir sentidos a esses sinais gráficos transformando-os, novamente, em sinais linguístico-textuais. No entanto, assumir a visão discursiva, propõe Coracini (2002), é reconhecer não apenas o texto verbal como texto, mas também a pintura, a música, a fotografia e outras possibilidades do universo simbólico, já que em seu entendimento, “a leitura é, em primeira e última instância, interpretar”. (CORACINI, 2005, p.25). O sujeito, na acepção da autora, seria constituído heterogeneamente, via imaginário, atravessado pelo outro (por outros discursos que constituem o interdiscurso19). Seria esse imaginário o responsável pela ilusão de unidade, de homogeneidade e de completude do sujeito. Por isso, não seria possível se falar de autonomia e de consciência do sujeito, já que este se apresenta como superfície homogênea, camuflando a heterogeneidade que o constitui. Essa noção de sujeito, defendida por Coracini (2000), permite vislumbrar a relação de afetação entre as perspectivas psicanalítica e discursiva. Pois, para a autora, 19
Interdiscurso entendido como o lugar do pré-construído, lugar das múltiplas vozes que constituem a memória discursiva fundante da subjetividade. 40
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O sujeito se apresenta esfacelado, cindido, clivado, superfície homogênea e una que camufla a heterogeneidade que o constitui, heterogeneidade essa que determina os conflitos e as contradições que emergem, vez por outra, do inconsciente, através do simbólico a cujo nível pertence a linguagem. E esse sujeito, inserido em sua historicidade e por ela constituído, habitado, portanto, pelo Outro, está fadado a tudo interpretar, a tudo significar. (CORACINI, 2000, p.180) Por sermos sujeitos de linguagem, inseridos na ordem simbólica, seríamos fadados à interpretação e, consequentemente, à alteridade. Assim sendo, o controle dos sentidos é ilusório, pois como sujeitos interpretantes somos constituídos em um contexto histórico-social amplo. E ainda, só se poderia falar de sujeito “quando ele é discursivamente constituído” (CORACINI, 2003a, p.54), ou seja, quando ocorre a sujeição à linguagem, ao dizer do outro, ao olhar do outro. Postular essa alteridade significa considerar o esfacelamento do sujeito e a polifonia de vozes na voz, aparentemente única, de qualquer indivíduo ou de qualquer texto. E é esse sujeito, assujeitado à linguagem, perpassado pelo inconsciente e participante de uma formação discursiva20, quem determina a leitura e não o texto: Não é o texto que determina as leituras [...], mas o sujeito, não na acepção idealista de indivíduo, uno, coerente, porque dotado de razão [...] graças à qual lhe é possível controlar 20
Na acepção da autora, a formação discursiva refere-se ao conjunto de regras anônimas (que se manifestam como regularidades responsáveis pela “ordem do discurso”), que determinam para um dado grupo social, num dado momento e num determinado espaço, os comportamentos, as atitudes e o próprio dizer. (CORACINI, 2005, p.27) Todavia, esse espaço de regularidades não se configura como fechado e imóvel no tempo, mas como instável. 41
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conscientemente a linguagem e o sentido, mas enquanto participante de uma determinada formação discursiva, sujeito clivado, heterogêneo, perpassado pelo inconsciente, no qual se inscreve o discurso. (CORACINI, 2002, p.18) Tal heterogeneidade aponta para a presença do outro no dizer daquele que aparenta um, presença que não se refere somente ao interlocutor com quem se dialoga, ainda que virtualmente, e é marcada pela ideologia: Falar do outro significa postular sua presença-ausência na constituição de todo e qualquer discurso e, consequentemente, [...] a presença da ideologia que o constitui, porque constitutiva de todas as relações sociais. (CORACINI, 2005, p.32) Para Coracini, a leitura, vista como interpretação, não trataria mais, tal como queriam alguns teóricos que menosprezam o caráter sócio-histórico do texto e dos sentidos, de perseguir sua unidade ilusória, e sim de, “amarrotá-lo, recortá-lo, pulverizá-lo, distribui-lo segundo critérios que escapam ao nosso consciente, critérios construídos por nossa subjetividade, que produz incessantemente a si mesma” (CORACINI, 2005, p.250). O sujeito-leitor, atravessado pelo inconsciente, produtor de sentidos e, portanto, de novos textos – que resultariam do trabalho de olhar, de escuta, de leitura da memória discursiva que o constitui, enfim, que remete ao mundo de significações que esse sujeito representa –, não tem mais controle da origem de seu dizer, nem controle dos efeitos de sentido que sua leitura, seu dizer, é capaz de produzir. Dessa forma, o dizer não poderia ser transparente àquele que diz (enunciador), ao qual ele escapa, irrepresentável, em sua dupla determinação pelo inconsciente e pelo interdiscurso. É somente nessa visão de sujeito, constituído por essas ilusões, que, para Coracini (2002), se pode falar do sujeitoleitor como ponto de partida da produção de sentido, ou seja, 42
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por meio do efeito discursivo de seu apagamento. Pois, sendo a linguagem assumida como opacidade e o sujeito-leitor atravessado pelo inconsciente, seria impossível o controle dos sentidos por ele produzidos. Portanto, ler, compreender, interpretar ou produzir “sentido é uma questão de ângulo, de percepção, ou de posição enunciativa”21 (CORACINI, 2005, p. 25). Posição essa que remeteria às possibilidades de interpretação de dada formação discursiva, tendo em vista que nós não lemos o que queremos (de forma independente) a qualquer momento e em qualquer lugar, assim como não podemos dizer ou fazer o que quisermos em qualquer lugar e a qualquer momento: há regras, leis do momento que autorizam a produção de certos sentidos e não de outros. (CORACINI, 2005, p. 27) A partir dessa proposição, a autora entende que é o momento sócio-histórico que apontaria para as leituras possíveis e não do texto. Além da relação com o social, propõe, ainda, que o sujeito-leitor, ao ler um texto, interage com outros sujeitos enquanto imagem (CORACINI, 2002, p.17). Imagem essa que diz respeito não apenas a um leitor (enunciatário, virtual) concebido no momento da escrita, mas também à imagem do autor, que no texto só existe nessa configuração. Portanto, não há apenas um leitor virtual, há também um autor, que poderíamos chamar de virtual, inscritos no texto. Pois o leitor produz não apenas sentidos, mas também imagens que balizam a leitura efetuada.
21
Todo discurso já traz em si a definição – mais, ou menos, precisa – de lugares ou de posições subjetivas a serem ocupados por este ou aquele indivíduo, segundo as relações políticas e sociais e, portanto, ideológicas admitidas e construídas num dado momento históricosocial, num dado discurso – sempre em formação –, determinantes da(s) verdade(s) a ser(em) assumidas. (CORACINI, 2005, p.30) 43
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Nessa proposta, o sujeito-leitor apresenta-se como clivado, perpassado tanto pelo inconsciente quanto pelo interdiscurso, mas ainda assim, um sujeito efeito, tal qual propõe a análise do discurso. Todavia, o fator que mais proporciona esse efeito, na concepção de Coracini, é o inconsciente habitado pelo outro, formado pela heterogeneidade de vozes. No entanto, como essa clivagem refere-se à memória discursiva do sujeito, ou seja, ao interdiscurso, nela – a presençaausência de outras vozes, que constitui o sujeito –, deixa entrever a ideologia, a qual é constitutiva de toda relação social. Portanto, não se pode menosprezar o papel que a ideologia apresenta nas considerações propostas por Coracini. Esse sujeito-leitor clivado, marcado pelas condições de produção de sua leitura, sócio-histórica, e consequentemente, ideológica, por isso, se configuraria como sujeito social, interagiria com outros sujeitos presentes no texto, na forma de imagens, quer seja do leitor inscrito no momento da formulação do texto, quer seja do autor, inscrito no momento da leitura. Seria a partir desse quadro e inscrito em uma formação discursiva que o sujeito-leitor interpretaria e significaria, enfim, que produziria sentidos em meio a outros; sentidos disseminados. 1.5 – Algumas considerações O sujeito-leitor, visto como um ser constituído e, ao mesmo tempo, constituindo nas/as relações sociais, não pode ser considerado fora de uma historicidade que o engendra e lhe permite ser-se sujeito, e sujeito social. Nesses termos, as reflexões dos autores abordados – Bakhtin, Freire, Orlandi e Coracini – possibilita-nos o diálogo com as questões que envolvem o caráter social da relação entre sujeitoleitor e leitura, vistos como pertencentes ao tecido social, e por isso envoltos em questões que ultrapassam habilidades individuais ou mecânicas relacionadas à produção/construção dos sentidos.
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O redimensionamento das noções de sujeito-leitor, de leitura e de sentido nos estudos apresentados, indica-nos que a constituição dessas noções não está dissociada de suas relações sócio-históricas, marcadas por seu caráter ideológico. Depreendemos dos posicionamentos em questão que tanto sujeitos quanto sentidos estão em constante formação e transformação, dado o contato com a alteridade (o outro que me constitui, a presença-ausência do outro no eu) e com a historicidade representante do interdiscurso, conforme apontam Bakhtin, Orlandi e Coracini, ou com a “inteligência do mundo”, conforme aponta Freire. Posicionamentos que entendemos não serem formulações “individuais” e originais, como se fossem de um Adão bíblico, para usarmos uma expressão de Bakhtin, mas discursos que entendemos ser povoado por outras vozes. No entanto, não visualizamos o embate teórico entre eles, antes sim, uma possibilidade de diálogo – no âmbito da linguagem como historicamente constituída e socialmente instanciada, do discurso, da prática social – e de complementaridade que os alinham numa postura crítica diante do tema leitura. Com suas perscrutações, esses quatro autores propiciaram-nos pensar como se configura a questão do mundo no sujeito-leitor. Assim, no esforço de compreendermos a constituição do sujeito-leitor como sujeito social, trouxemos à baila outros conceitos que julgamos serem necessários, a fim de que pudéssemos entender melhor, não só a constituição, mas também o movimento pelo qual essa noção, a de sujeitoleitor, passou. Nesse ínterim, acabamos por tratar do que os autores compreendem como texto, ideologia, sujeito, compreensão, enunciação, enunciado, formação discursiva, formação ideológica, interação, efeito, engajamento, diálogo, interdiscurso, e tantas outras noções quanto nos pareceram necessárias para dimensionarmos a formatação22 do sujeitoleitor e, consequentemente, de leitura em suas propostas.
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Formatação entendida não como fôrma, mas como configuração. 45
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O contexto mais amplo em que se insere o sujeitoleitor e a leitura é considerado fundamental para as posturas delineadas, ainda que essa noção de contexto sofra variações e ampliações, e passe a ser denominado – como em Orlandi e Coracini – como condições de produção da leitura. Ainda, notamos uma afinidade, mesmo que com as devidas ressalvas, no que tange a consideração da linguagem, e, portanto, a leitura em sua relação não só com o presente e o passado, mas também com o futuro. Pois é a partir daí que Bakhtin pode falar da responsividade como um processo de construção de algo que opera com o já-dito para alcançar o a se dizer; que Freire pode apontar a crítica como tarefa permanente de transformação; que Orlandi pode falar de efeito como o reconhecimento, entre outras coisas, de que os sentidos têm um passado e projetam um futuro; e que Coracini propõe a clivagem sem abdicar da noção de efeito, tal qual apontada por Orlandi. Mas, percebemos, quando se trata do importante papel da linguagem na constituição do sujeito, uma grande diferença quanto à abordagem da ideologia – atrelada a essa linguagem – no que se refere a Bakhtin e a Freire relativamente a Orlandi e a Coracini. Provavelmente, tal diferença diz respeito ao posicionamento encampado pelos dois autores que assumem a ideologia na perspectiva marxista23, promovendo, no entanto, a ampliação desse conceito. Em Bakhtin e, mais claramente, em Freire o princípio da interação entre os sujeitos seria o fundador tanto da linguagem como da consciência, assim, à leitura crítica levaria à prática consciente e possibilitaria uma tomada de posição em prol da transformação da realidade objetiva. Ou seja, do confronto da própria realidade entre sujeito e mundo, é que 23
A partir de certa leitura marxista, a consciência crítica [é vista como] uma forma de engajamento político. Estar preparado para desconfiar da manipulação ideológica que se instaura, ora mais, ora menos, por detrás da materialidade lingüística (Coracini, 2003b, p.276). Postura que podemos depreender em Freire. 46
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haveria o questionamento da ideologia dominante e o desvelamento da realidade; o que daria origem à autonomia do sujeito e, consequentemente, do sujeito-leitor. Assim, partem do entendimento da ideologia como falsa consciência tomada, como esfumaçamento da realidade verdadeira, como escurecimento e não percepção da existência das contradições e da existência de classes sociais – promovida pelas forças dominantes – e, desconstroem e reconstroem parte dessa definição, realocando-a no âmbito da dialética instaurada entre a realidade objetiva e a consciência, expressada como uma tomada de posição determinada, desnaturalizando, dessa forma, algumas questões sociais tomadas como naturais. Nessa perspectiva, assumem o sujeito como condicionado pela realidade sócio-histórica, e, por extensão, o condicionamento da relação do sujeito-leitor com os sentidos, numa relação dialética entre determinismo objetivista e o subjetivismo. A neutralidade dos textos (discursos) inexiste a partir dessa perspectiva. Já na abordagem de leitura efetuada por Orlandi e por Coracini, por partirem da conceituação de ideologia (ligada a uma Formação Discursiva) como a responsável pela interpelação do indivíduo em sujeito, juntamente com papel do interdiscurso24 e do inconsciente25 na constituição do sujeito, observamos que existe uma espécie de determinação sóciohistórica, quando se trata do papel do sujeito-leitor na produção de sentidos. Para as autoras a ideologia não seria um “conteúdo” e sim uma prática, é um funcionamento discursivo. O sujeito não atravessa a linguagem para encontrar a ideologia, na linguagem a ideologia é. E ainda, de acordo com tal posicionamento, o inconsciente está perpassado pela ideologia de forma que essa se realiza através dos sujeitos. Logo, o sujeito não domina o seu próprio dizer, ele se torna um ser assujeitado. Assujeitamento que não tem a ver com a 24
Também referido por Bakhtin. Mais trabalhado por Coracini, em suas reflexões sobre leitura, que por Orlandi. 25
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pressuposição da passividade do sujeito-leitor, antes diz respeito ao fato da interpretação ser orientada. Sendo os sentidos produzidos pelo sujeito e este, por sua vez, perpassado pela ideologia, ou pelo inconsciente, como propõe Orlandi e Coracini, e produzindo sentidos determinados por uma situação discursiva, a leitura – entendendo-se, a produção de sentidos – não poderia ser tomada como uma relação consciente, que dessa forma leva conscientemente à crítica. A crítica, especialmente, na visão de Freire, não resulta da compreensão teórica da determinação do sujeito, mas do confronto da própria realidade entre sujeito e mundo, fato que levaria esse sujeito ao questionamento da ideologia dominante, ao desvelamento da realidade; mas desvelá-la, contudo, é apenas um passo para transformá-la, pois é necessário o engajamento na luta política. Na abordagem discursiva, representada aqui pelas duas autoras, a crítica parece emergir do fato de trazer à tona a constatação de que os sentidos produzidos pelo sujeito são sempre ilusões de domínio destes sobre aqueles, são sempre efeitos de sentidos, sendo o próprio sujeito um efeito discursivo desses atravessamentos. Tal fato aponta-nos um importante movimento do sujeito-leitor: de tornar-se autônomo para aquele que têm a ilusão de sua autonomia. Assim como o sujeito-leitor não é a origem dos sentidos por ele produzidos, não tem o domínio e consciência de como os sentidos se formam nele, de como ele experimenta os sentidos. Chamamos a atenção também para a movimentação no sentido do jogo entre imagens instituídas na produção dos textos e que orientam a leitura. Jogo que se refere a relações intersubjetivas, mediadas pelo texto, e não mais entre sujeito-leitor/texto, ou sujeito/objeto. Referências Bibliográficas BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2004. 48
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Leitura e Escrita: nuances discursivo-culturais
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2 – A produção escrita na escola: prática social e diálogo A escrita apresenta uma função social e, por esse motivo, é necessário se reconhecer o uso significativo dessa prática. Pois não se pode perder de vista que, na realidade, toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo fato de que procede de alguém como pelo fato de que se dirige para alguém. [...] A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros. Se ela se apoia sobre mim numa extremidade, na outra apoia-se sobre meu interlocutor. A palavra é o território comum do locutor e do interlocutor. (BAKHTIN, 2004, p. 113)
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Com base nessa prerrogativa, Geraldi (1995) argumenta que, por mais ingênuo que possa parecer, para produzir um texto (em qualquer modalidade) é preciso que: 1. se tenha o que dizer; 2. se tenha uma razão para dizer o que se tem a dizer; 3. se tenha para quem dizer o que se tem a dizer; 4. se escolham as estratégias para realizar. (como, quando e onde) E acrescentaríamos a estas uma quinta condição de produção: 5. que o locutor se constitua como tal, enquanto sujeito que diz o que diz para quem diz; (qual posição assumida) A condição lugar de onde se escreve refere-se tanto ao lugar físico, como é o caso de uma redação de jornal, de uma sala de aula ou um de escritório, quanto ao lugar social, isto é, o espaço/papel simbólico que ocupamos no momento de produção, como é o caso de escrever no papelespaço social de professor, de especialista em um determinado assunto, de aprendiz, de advogado, de secretária etc.. Cada um de nós ocupa vários lugares sociais ao longo de um único dia: às vezes, comunicamo-nos do lugar profissional em que atuamos, nesta ocasião, muito provavelmente, falamos com a linguagem específica de nossa profissão; outras vezes, falamos ou escrevemos para nossos familiares e usamos a linguagem adequada para essa situação específica, talvez mais informal. Portanto, o lugar social de onde escrevemos é uma das condições que determina o tipo de registro, a variante linguística e os gêneros textuais que usamos para interagir e, assim, comunicarmo-nos quando escrevemos. Outra condição de produção da escrita refere-se a quem escreve, isto é, à pessoa que escreve imersa em seu lugar social do momento: uma jornalista, um romancista, uma filha, um advogado, uma aluna ou uma pessoa que pleiteia um emprego, etc. De acordo com o lugar social ocupado no momento, a pessoa que escreve selecionará os gêneros adequados para comunicar-se. Um advogado, por exemplo, 52
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de seu lugar profissional, poderá escrever uma petição jurídica, uma comunicação interna para um colega do mesmo escritório, um bilhete para sua secretária pedindo que reorganize sua agenda e muitos outros gêneros textuais próprios de sua profissão. Um aluno pode escrever um ensaio, uma resenha, um memorial, um fichamento, um relatório de visita técnica, um artigo de opinião, um poema, um texto para sair no jornal da escola ou para o mural etc.. Conforme o verbete, situação de produção26, apresentado pelo programa Escrevendo o Futuro, do Centro de Estudos e Pesquisa em Educação, Cultura e Educação Comunitária (CENPEC), todos esses gêneros textuais irão utilizar o vocabulário próprio e o modo de dizer específico daqueles que trabalham com a justiça ou com a escola. Assim, a condição quem escreve aborda também a condição como (que gêneros, que vocabulário, que registro – mais formal, menos formal) e quando escrever (em casa, no trabalho, na sala de aula, no blog, no MSN...) e onde escrever (o “caderno” da monografia, o jornal, o receituário médico, o espaço do email no computador, o quadro negro na sala de aula, o caderno de anotações, o diário etc..) Assim a condição "quem escreve" (como se pode deduzir desses exemplos), está associada à outra condição, à razão pela qual se escreve. O motivo pelo qual escrevemos também é condição determinante para a escolha do gênero que iremos usar: se uma dona de casa, por exemplo, quer avisar aos filhos que foi à feira, pode escrever-lhes um bilhete e deixar na geladeira de casa para informar de sua saída. Se o médico quer mudar a agenda, poderá escrever um bilhete para a secretária solicitando-lhe que faça essa alteração. Se um aluno escreve um texto para o jornal da escola, de circulação geral, sabe que seu leitor não será apenas o pro26
Disponível em: http://www.escrevendo.cenpec.org.br/ecf/index.php?option=com_cont ent&view=article&id=239&catid=20:verbetes&Itemid=777. Acesso em: mar. 2009. 53
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fessor e, certamente, tenderá a escrever com mais entusiasmo e, talvez, guiado por motivos bem diferentes daqueles envoltos em uma simples redação escolar. Outra condição simultânea às anteriores trata do para quem se escreve, ou seja, os leitores de um jornal específico, os leitores do mural do curso de engenharia da universidade, os clientes de uma loja, os alunos do curso de música, os empresários de uma associação, os amigos etc.. Uma escritora que escreve livros para crianças usará uma linguagem adequada à faixa etária de seus leitores. Um jornalista que escreve para um público leitor constituído de homens de negócio usará uma linguagem elaborada de acordo com os termos econômicos comuns ou específicos, dependendo do grau de restrição do perfil do leitor desejado; um colunista que escreve para um jornal de esportes usará a linguagem corrente nos meios esportivos e assim por diante. Quando escrevemos, usamos enunciados e discursos, produzimos gêneros textuais (orais ou escritos), engendrados no contexto social que circulam socialmente. Devemos produzir textos/enunciados que queremos dizer para alguém, com finalidades específicas e por razões diversas. Escrevemos para opinar, formar opinião, enviar recados, informar, para analisar conceitos, para defender ou se contrapor a pontos de vista, para orientar como se faz uma comida, para indicar caminhos, mostrar índices ou tendências, para explicar algum conceito, entre inúmeras outras possibilidades. Se tomarmos, portanto, o pressuposto de que a linguagem é uma prática social e que, além disso, propicia a interação entre as pessoas, pela qual os interlocutores “constituem-se como sujeitos ativos de um processo em que os participantes realizam trocas verbais, constroem sentidos e influenciam-se mutuamente”, conforme expõe Miller (2003, p.2), esse processo de interlocução está marcado pelo contexto sócio-histórico e resulta em um determinado “produto” – o texto – que cumpre uma função social e se organiza linguisticamente conforme exigências que lhe são próprias. 54
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No entanto, dizer que o texto final representa um produto, não lhe nega as condições de produção, o seu processo construtivo. Simplesmente, consideramos que o resultado do processo é uma “forma” produto, mais ou menos estabilizada, que será colocada novamente em processo no momento de leitura, pois tanto o sujeito, quanto os sentidos estão em constante processo de formação/produção. O texto escrito supõe um enunciador – o escritor – em uma situação de comunicação que o distancia fisicamente27 de seu interlocutor – o leitor – e, por isso, exige um trabalho de organização textual que faça do texto, ao menos aparentemente, um “todo” coeso e coerente, uma “unidade significativa28” cuja construção vai sendo tecida aos poucos pela inter-relação entre os diferentes níveis linguísticos e discursivos implicados nesse processo. Apesar desse distanciamento físico entre escritor e leitor, o processo de produção do texto escrito exige que seu autor ajuste o seu dizer a um determinado interlocutor, às finalidades, aos objetivos e modos de constituição que caracterizam esse dizer e que se adote uma estratégia de conjunto capaz de realizar adequadamente o jogo entre as diferentes condições de produção textual e a imagem projetada do leitor. A prática de produção de textos escritos, efetivada pela escola, ao considerar essa produção como um momento específico da interlocução entre usuários da língua materna, deve levar em conta um processo de escrita balizado em diferentes tipos de textos, cada qual com sua forma específica de organização e funcionamento (gênero e tipo textuais), que conduza à paulatina conscientização do aluno a respeito 27
Pelo menos no texto convencional, dada às novas condições de produção concomitantes possibilitadas pelas Novas Tecnologias de Informação e de Comunicação. 28 Embora essa unidade seja sempre uma virtualidade, uma vez que os sentidos são produzidos no momento da leitura, conforme propõe as correntes discursivas de estudo da leitura. 55
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das exigências que caracterizam cada tipo de produção. A reflexão epilinguística29, assim concebida, permite ao aluno apropriar-se dos conhecimentos necessários à realização dessa tarefa. No sentido aqui trabalhado, um texto não é um amontoado de palavras. Mas sim, um fenômeno linguístico30, complexo, que se inscreve numa discursividade constituída pelos contextos social, ideológico e dialógico, um fenômeno perpassado pelos enunciados de um autor e por todos os outros enunciados que o compõe, advindo dos fios do interdiscurso, formando um “tecido”. Ver a língua como uma prática social implica, desse modo, afastar-se da concepção de linguagem como instrumento de comunicação, reducionista, que desconsidera o fato de que o sujeito imprime, muito frequentemente, marcas no texto e deixa a sua contribuição à linguagem tais como: ironias, humor, ambiguidades, visão de mundo, valores e crenças etc. Não se quer dizer com isso, é evidente, que a língua não seja uma forma de comunicação; mas, obviamente, que não se resume a tal. A presença do outro, real ou virtualmente, na perspectiva aqui assumida, é de extrema importância. Ele se inscreve tanto no gesto de produção de sentido na leitura, como também se inscreve na produção, no momento em que está sendo construído o texto. Esse outro é condição necessária para a existência do texto. À medida que o produtor-autor do texto imagina leituras não desejadas pelos leitores virtuais, 29
Entendemos por atividade epilinguística, apoiados em Miller (2003), o exercício da reflexão sobre o texto lido/escrito e da operação sobre ele a fim de explorá-lo em suas diferentes possibilidades de realização, uma atividade que se diferencia da atividade linguística, essencialmente voltada para o próprio gesto de ler e escrever, e da atividade característica do plano metalinguístico que supõe a capacidade de falar sobre a linguagem, descrevê-la e analisá-la como objeto de estudo. 30 No caso dos textos verbais. 56
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projetados, mais clareza e pistas dos efeitos de sentido pretendidos terá de deixar no momento da produção textual. Assim, reconhece-se um sujeito que é ativo em sua produção linguística, que trabalha constantemente a linguagem tanto em textos orais como escritos, isso para ficar somente no âmbito do verbal. Tal trabalho, por outro lado, é, no entender de Gonçalves (2000), resultado da exploração, consciente ou não, dos recursos formais e expressivos que a língua coloca à disposição do falante. Qualquer gesto de linguagem, desde que se objetive o seu uso efetivo, é intersubjetivo e está imerso em uma prática social de linguagem. Dessa forma, o texto ganha valor quando está inserido num real processo de interlocução. Isto é, só faz sentido quando o que escrevo e, todas as suas especificidades de produção, estão direcionadas para o outro. Apenas num quadro efetivo de interação linguística é que o estudante pode tornar-se sujeito do que diz. Pécora afirma que é possível falar apropriadamente em sujeito apenas quando ele é afirmado por um ato único de linguagem: quando as pessoalidades envolvidas nesse ato não se diluem nos limites das condições de produção desse ato [...]. (PÉCORA, 1992, p. 89) Assim, torna-se sujeito se o que diz ganha sentido e especificidade numa situação de uso de língua em um contexto. Na prática escolar, com relação à produção de textos, a instituição deve aproximar a escrita tal como ela ocorre em situações de escrita extraescolar, ou seja, no efetivo uso da linguagem. Caso contrário, corre-se o risco de o estudante ter a sua proficiência linguística prejudicada pela falta de relação entre linguagem da/na escola e fora dela. No dizer de Pécora, o que ocorre é que a escola, na sua trajetória histórica, falseia as condições de escrita e não fornece ao estudante as ferramentas de uma prática interati57
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va da língua. Por outro lado, ao instituir-se uma prática intersubjetiva, através de uma “prática pedagógica que leve em conta a reflexão, será possível resgatar um discurso mais pessoal, mais autêntico de nossos sujeitos”, conforme bem aposta Gonçalves (2000, p.2). Por isso, ao solicitar uma escrita, é imprescindível fornecer ao aluno um interlocutor real ou uma situação de interlocução passível de ser real. Aliás, o processo de escrita exige que o estudante se desvencilhe da sua suposta solidão31, no ato de escrever, e tenha uma imagem do seu interlocutor, conforme já mencionado. O não atendimento a essa condição, torna possível que o texto produzido signifique menos do que pretendia seu autor. Assim, uma prática dialógica de linguagem pode facultar ao educando as ferramentas de que precisa para, ao intuir o interlocutor, usar as qualificações pertinentes para desenvolver uma produção textual eficaz e ao alcance do outro. A escrita nessa acepção significa “encontro, parceria, envolvimento entre sujeitos, para que aconteça a comunhão de ideias, das informações e das intenções pretendidas” (ANTUNES, 2003, p. 45). Numa prática monológica da linguagem, aqui superada, para tudo o que se tem a dizer existe uma expressão apropriada, adequada, à espera de seu usuário. Assim, acredita-se que quando esquecemos algumas palavras, é porque não conhecemos o que desejávamos falar. Não obstante, na prática dialógica da linguagem, a compreensão é obtida através da negociação de sentidos entre locutor e interlocutor, instanciados socialmente e mediados pelo texto. Podemos afirmar, por conseguinte, que na interlocução instanciada é que os sujeitos e a própria linguagem se constituem, visto que os sujeitos não são sempre os mesmos e a própria interlocução molda-os num processo evolutivo constante, e é, em 31
Suposta porque ao escrever, o autor projeta um interlocutor virtual que norteia o processo de criação de seu texto. Escreve-se imaginando o outro para quem o texto é dirigido. 58
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contrapartida, moldada por eles. Isso ocorre porque novas informações vão sendo incorporadas e reajustadas às anteriores e, por meio disso, vão reconstruindo o próprio sujeito. E este sujeito, pelo seu caráter ativo, trabalha a linguagem, realizando negociações de sentidos e agindo nela. Observa-se que nem sempre, na escola, há uma preocupação com as estratégias do dizer tendo em vista um interlocutor específico. Quase todos partem de uma concepção tradicionalista do ato de escrever, concepção esta que vê a linguagem como expressão do pensamento ou apenas como instrumento de comunicação. Consequentemente, apela-se para listas e listas de exercícios de metalinguagem, sugestões de práticas de textos desconectadas da prática social, metodologias de aplicação e de sugestões de correção dos textos ortodoxas e para o emprego de gêneros textuais que pouco ajudam o educando no propósito de produzir bons textos. As cinco condições básicas que elencamos inicialmente podem orientar toda a produção textual com vistas à instauração de uma prática realmente dialógica dentro da sala de aula. Neste âmbito, o processo de construção da identidade de autor , na escola, implica ter o que dizer, para quem dizer, por que dizer, além do domínio das questões formais de como dizer. Para que isso se dê, o acesso aos diversos bens culturais disponíveis na sociedade torna-se importante. A possibilidade de ir ao cinema, ler livros e revistas, escutar músicas variadas, visitar exposições de arte, assistir também a canais educativos na televisão, tudo isso, articulado a práticas escolares que tenham o discurso como princípio, contribui com o processo de construção de uma posição autor, na escola, na medida em que o sujeito se coloca como autor quando ‘consegue formular, no interior do formulável, e se 59
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constituir, com seu enunciado, numa história de formulações’ (Orlandi, 2004, p. 69), atestando, assim, que a autoria é tocada pela história. (ABREU, 2009, p. 4) referência assinalada pelo próprio autor Todavia, o trabalho de produção textual não pode e não deve ser feito como uma atividade pronta e acabada numa primeira tentativa de escritura. A escola deve propiciar ao aluno a possibilidade de desenvolver os textos através de versões. Versões estas que seriam vistas como um processo de escritura, antes do texto final, este já bastante melhorado. O aluno precisa aprender a ir lapidando o que escreve até chegar a um padrão suficiente e passível de avaliação e de atribuição de valores, isto é, de notas. A primeira tentativa é sempre uma primeira versão do texto, a qual deve receber do professor uma avaliação de sua qualidade relativa à composição do gênero textual a que pertencer. A questão gramatical pode e deve ser corrigida, mas nunca tomar para si toda a finalidade da correção. Questões relativas à coesão, coerência, situacionalidade, aceitabilidade, intertextualidade, informatividade, intencionalidade32, bem como expressividade e adequação formal, relativas ao gênero, devem receber do professor uma maior atenção na hora da avaliação textual. O professor deve sempre apontar, para o aluno, quais as reais possibilidades de melhora da qualidade textual. Os comentários vagos do tipo: “seu texto está bom, mas pode melhorar”; “você não soube expressar bem suas ideias”, “seja mais claro”, e uma infinidade de outros que, tais como estes, não são capazes de, por si só, fazer com que o aluno escreva melhor. No que tange aos comentários sobre questões de falta de sentido do texto devem ser feitos com muita cautela, 32
Critérios de textualidade apontados por Maria da Graça Costa Val, no livro Redação e Textualidade. 60
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pois o professor precisa ter clareza quanto ao que significa a tal “unidade” de sentido. Mas para isso é preciso que ele se pergunte: o sentido está no texto, no autor ou no leitor? Se o sentido estivesse no texto, por que ele seria entendido de formas diferentes por diferentes leitores? Por que uma pessoa entenderia o texto e outra não entenderia? É claro que encontramos no texto elementos linguísticos e contextuais que sinalizam um caminho para o leitor, todavia não podemos afirmar que o sentido se encontra predefinido pelo texto. Se considerássemos como verdadeiro a questão de o sentido estar no texto, teríamos que considerar que o leitor seria totalmente passivo diante do texto, e que a ele caberia apenas encontrar, recuperar o sentido lá deixado pelo autor. Se o sentido estivesse no leitor, isso poderia levá-lo a pensar que poderia atribuir qualquer sentido, aquele que bem desejar, ao texto lido de acordo com as conveniências pessoais. Mas isso também não ocorre, uma vez que o leitor produz o sentido ou sentidos para o texto, no momento da leitura, sendo influenciado pelas condições de produção da leitura, formadas pela inscrição do leitor na corrente discursiva. Assim, o leitor não pode, ou pelo menos não deveria, ler o texto como bem quiser. Há certas leituras, certos sentidos que o texto e suas condições de produção autorizam ou desautorizam e outras que as condições de produção da leitura “apagam”, devidos às formações discursivas ou ideológicas a que o texto se liga. Se o sentido estivesse no autor, isso significaria que estaríamos desconsiderando o papel de coprodução do leitor na atividade de leitura. O autor, no momento de produção do texto, tem um sentido e um propósito em mente o que significa pretensões de efeitos de sentido e, por isso, escolhe os mecanismos linguísticos e textuais que ele presume que vão ajudar o leitor a chegar ao sentido tencionado. Contudo, isso não garante que o leitor vá entender exatamente o que o autor pretendia, pois no espaço entre uma leitura e outra, os sentidos podem se reconfigurar. 61
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Como se pode observar, a questão do “sentido do texto” é uma questão ampla e mais complexa que se pode imaginar corriqueiramente, talvez, possa-se pensar em sentidos para o texto e não do texto. A produção de sentidos passa, portanto, pelas três esferas envolvidas: autor, texto, leitor, todos estes perpassados pelos conjuntos de circunstâncias sociais, políticas, históricas e culturais, e que é produzido nessa relação triádica. Dizer que um texto não tem sentido, nos levaria, muito possivelmente, a indagações do tipo: “não tem sentido para quem?” e “em qual situação e em que contexto não tem sentido”. O enunciado abaixo pode nos dar uma ideia do quão ampla é a questão tratada: Ex: Subiu no pé de chuchu para pegar rosas vermelhas. Lá de cima dava para ver toda a cidade e o pé de chuchu estava cheio de morcegos cantarolando. Pode parecer óbvio que o texto seja incoerente e, portanto, sem sentido. No entanto, se o contexto em que ocorresse fosse, por exemplo, como em um gênero literário do estilo faz de conta, contos de fada ou algum outro estilo cuja fantasia seja o material de trabalho com a linguagem e houvesse todo uma contextualização que desse margem a esse trecho e, também, a uma sequência que o autorizasse, tal trecho não seria menos lógico do que “João e o pé de feijão”, ou “As aventuras de Gulliver”. Percebe-se desta forma, que é uma questão de onde, quando, porque e como o enunciado se dá. Pois se em alguns contextos, o trecho pode ser incoerente, em outros, ele pode ser lido normalmente como coerente dentro daquele contexto específico. Na tentativa de levantar mecanismos que possam auxiliar no trabalho de orientação/correção da produção textual em sala de aula, por exemplo, uma proposição que tem
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muito a colaborar, diz respeito às máximas conversacionais propostas por Grice. Segundo Donadon-Leal (2004, p.1), na construção do texto e na avaliação de sua estruturação, a observação ao princípio da cooperação se faz importante. O autor comporta-se preocupado com o conhecimento do leitor e monta seu texto de forma partilhada, prevendo quais as informações que seu leitor já possui, tomando os devidos cuidados para não produzir repetições desnecessárias e demasiadas e encontrando a “dose” certa de informações novas, sem exageros e sem faltas. O domínio das inferências torna-se essencial na produção o texto. Não se trata de um simples jogo de adivinhação, mas do uso da experiência na percepção do que cada grupo de usuários da língua, conforme sua exposição a instituições e situações discursivas, é capaz de compreender e processar. O autor cita ainda as máximas e tece comentários relativos a suas aplicabilidades na correção das produções dos alunos, são elas: Máxima de quantidade: o sujeito produtor do texto deve dosar a quantidade de informações: nem mais, nem menos que o requerido. Máxima da qualidade: o sujeito produtor do texto deve dar uma informação nova, suficientemente fundamentada em uma informação já conhecida. Máxima da relação: o texto produzido deve ser relevante, isto é, socialmente justificado e deve estar em acordo com o gênero textual a que pertencer. Máxima de modalidade: o texto deve estar organizado com o registro linguístico requerido pelo tipo de texto utilizado.
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Ao fazermos referência às condições (nem sempre favoráveis) de produção de textos escritos, oportunizadas no contexto intraescolar, chamamos atenção para a importância das condições de enunciação. Esse ponto é aqui destacado com a finalidade de ressaltar a necessidade de considerar-se o papel da situação mais imediata na concretização (ou não) de interações significativas com o texto, durante o processo de revisão, uma vez que as condições de produção oportunizadas pelo contexto intraescolar e o tipo de interação proposta são determinantes no tipo de interlocução que o aluno estabelece com o próprio texto e/ou com o texto do outro. A respeito da relevância do contexto situacional, Bakhtin (2004, p.112), afirma: “qualquer que seja o aspecto da expressão-enunciação considerado, ele será determinado pelas condições reais da enunciação em questão, isto é, antes de tudo pela situação social mais imediata”. Essa reflexão coloca a necessidade de uma situação que privilegie um “trabalho com a linguagem” e não apenas um “trabalho sobre a linguagem”, pois “se perdermos de vista os elementos da situação estaremos tão pouco aptos a compreender a enunciação, como se perdêssemos suas palavras mais imediatas” (BAKHTIN, 2004, p.128-129). A postura do professor diante do “erro” é também uma concepção importante. Pois o aluno, ao entender, de fato, a necessidade de melhoria na qualidade textual, pode trabalhar de forma mais produtiva a revisão textual. Esse processo de retificação e de retomada é fundamental na construção do texto e constituinte do próprio ato de revisar, de reescrever. Esse movimento, que supõe avanços e recuos, assinala a possibilidade do aprendiz em lidar com o próprio escrito de uma forma mais amigável. Entendida desse modo, a revisão possibilita ao aluno que se constitua como leitor do próprio texto, que construa reflexões sobre o processo de escritura e comece a considerar o seu leitor em seu gesto de escrita, possibilitando assim que o autor não só tenha algo a dizer, mas que concretize, no ato mesmo da escrita, o seu interlocutor, o seu “leitor64
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virtual”, colocando-se, assim, como sujeito da própria interlocução, dimensão fundamental no desenvolvimento das habilidades textuais. Por fim, aproveitamos o pensamento sobre a produção textual de Rojo (2001, p. 173), para quem “a linguagem escrita deve se constituir como discurso(texto) significativo, inserido numa situação de produção significativa, formatado num gênero, ao invés de se enfocar letras, sons, palavras, estruturas gramaticais ou textuais. Assim, é importante lembrar que uma proposta de produção textual é uma atividade que deve possibilitar ao autor percorrer os caminhos singulares das práticas sociais, buscando nelas os fios dialógicos e ideológicos que tecem um texto. E, desse modo, o autor poder se inscrever numa atividade enunciativo-discursiva, ressignificando a escrita e fazendo um uso social da linguagem. Referências Bibliográficas ABREU, Ana Silvia C. Leitura e escrita enquanto práticas discursivas: construindo filiações. Revista Iberoamericana de Educación, n.48/2, p. 1-7, jan. 2009. ANTUNES, Irandé. Aula de português: encontro e interação. São Paulo: Parábola. 2003. BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. 11.ed. São Paulo: Hucitec, 2004. COSTA VAL, Maria da Graça. Redação e textualidade. São Paulo: Martins Fontes, 1994. DONADON-LEAL, José Benedito. Orientações sobre procedimentos de correção de redações da UFOP. Texto mimeo. 2004. GERALDI, João Wanderley. Concepções de linguagem e ensino de português. In: GERALDI, J.W. (org.). O texto na sala de aula: leitura e produção. Cascavel: ASSOESTE, 1990 ______. Portos de passagem. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
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GONÇALVES, Adair Vieira. A produção de texto numa perspectiva dialógica. 2000. Disponível em: http://professores.goianesia.ueg.br/serli/arquivos/A PRODUO DE TEXTO NUMA PERSPECTIVA DIALÓGICA.doc. Acesso em: mar. 2009 KOCH, Ingedore Villaça. A inter-Ação pela linguagem. 5.ed. São Paulo: Contexto, 2000. MILLER, Stella. O trabalho epilinguístico na produção textual escrita. 26ª Reunião Anual da ANPED. Novo Governo. Novas Políticas?. 2003. Disponível em: http://www.anped.org.br/reunioes/26/trabalhos/stelamill er.rtf. Acesso em: mar. 2009. PÉCORA, Alcir. Problemas de redação. 4.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1992. ROJO, Roxane. A teoria dos gêneros em Bakhtin: construindo uma perspectiva enunciativa para o ensino de compreensão e produção de textos na escola. In: BRAIT, Beth. Estudos enunciativos no Brasil: histórias e perspectivas. Campinas, SP: Pontes, 2001, p. 163-185.
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3 – Níveis ou dimensões de leitura A leitura pode ser concebida, conforme o ponto de vista teórico adotado, já exposto neste livro, como sendo: um processo de decodificação; um processo de compreensão; um processo de interpretação33.
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A professora-doutora Eni Puccinelli Orlandi, autora de livros e textos na área da leitura, propõe, no livro “Discurso e Leitura”, uma classificação diferente da aqui apresentada. Segundo ela, as dimensões da leitura ou níveis seriam: o da inteligibilidade (que se aproxima com o que aqui é chamado de decodificação); o da interpretabilidade (semelhante ao da compreensão) e o da compreensibilidade (semelhante ao da interpretação). No entanto, a inversão proposta neste texto entre as definições nomeadas por “compreensão e interpretação”, segundo e terceiro níveis respectivamente, em relação aos apresentados pela professora, está baseada na análise do livro intitulado “Interpretação”, de sua autoria, e, vale dizer, posterior ao livro “Discurso e Leitura”, no qual a pesquisadora deixa entender a interpretação como sendo algo mais complexo e mais amplo que a compreensão. 67
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Cada uma dessas concepções traz em seu bojo uma postura determinada para o sujeito-leitor. Tomada como uma forma de decodificação, a leitura nada mais é que uma apreensão de um código, seja ele verbal ou não verbal, no qual quem lê percebe literalmente o texto, sem um trabalho de contextualização maior. Se vista como uma forma de compreensão, o horizonte do leitor se amplia, podendo agora usar o contexto imediato e circunstancial ao texto como uma forma de participação no sentido do texto. E, por último, se percebida como uma forma de interpretação, a leitura rasga os limites do próprio texto e adentra o discurso, solicitando ao leitor que emita a sua leitura, que produza sentidos possíveis para o texto. Melhor seria, portanto, conceber a leitura como uma prática social de produção de sentidos possíveis para o texto. Sentidos esses que, em virtude das condições em que se dá o encontro do sujeito-leitor com o outro, numa mediação estabelecida pelo texto, estão perpassados também pelos aspectos políticos, sócio-históricos, culturais e ideológicos que constituem não somente o texto, mas também o sujeitoleitor e o sujeito-autor aí envolvidos. Em virtude de todos esses fatores que jogam na produção de sentidos, percebe-se que não se pode circunscrever a leitura a uma única interpretação, mas ao horizonte da pluralidade de sentidos possíveis, desde que essa pluralidade encontre ancoragem em elementos plausíveis elaborados pelo sujeito-leitor e confirmados pelo texto/cotexto/contexto34. Sendo assim, a leitura de um texto pode se dar em níveis diferenciados, constituindo pelo menos três níveis que irão se distinguir um do outro pelo grau de abstração e de profundidade. Desse modo, pode-se imaginar que o texto admita três planos distintos de leitura:
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Contexto entendido como o conjunto de circunstâncias sociais, políticas, históricas e culturais a que um texto se refere. 68
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1) uma dimensão superficial, onde afloram os significados mais concretos e diversificados; 2) uma dimensão intermediária, onde se definem as relações entre texto e contexto; 3) uma dimensão profunda, na qual relacionamos o que lemos ao que conhecemos e nos posicionamos diante do texto, concordando ou discordando com o que diz, (des)construindo-o para reconstruí-lo com nossa leitura crítica. Afinal, como propõe Orlandi, a Análise do Discurso propõe uma nova maneira de ler que relaciona o dizer ao não dizer que também significa nos textos, dando-lhes contornos sócio-históricos, culturais, políticos e intertextuais, além dos linguísticos apenas. Isso não quer dizer que precisamos ser analistas do discurso para chegar ao nível da interpretação, na leitura, significa antes que assumamos uma postura mais crítica na negociação de sentidos com os textos que nos colocamos a ler. Muitas vezes, usamos os três níveis ao produzir uma dada leitura, outras vezes, dependendo das condições de produção de nossa leitura, não conseguimos avançar rumo à etapa mais elaborada, a da interpretabilidade, que demanda maior poder de estabelecer-se relações e de indagação por parte do sujeito-leitor. Referência Bibliográfica ORLANDI, Eni P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas, SP: Pontes, 2001.
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4 – O que pode ser considerado um “mau” leitor? (especialmente na universidade) Para se sair [...] e romper o círculo vicioso, talvez se devesse passar a algo que alguém, também ironicamente, poderia chamar de círculo virtuoso. (SANT’ANNA, 2006)
Muitas pessoas acreditam que leitura se aprende durante a fase de alfabetização. Isso demonstra um entendimento muito vago do que seja efetivamente leitura. Pois ler não se refere apenas à capacidade de decodificar uma língua, seja ela a língua portuguesa ou qualquer outra. A decodificação é apenas a mais básica entre todas as dimensões ou todos os níveis de leitura. Mas ler é, também, saber relacionar texto ao seu contexto tanto linguístico imediato, chamado dentro da Análise do Discurso de co-texto, quanto ao contexto situacional em que o texto, leitor e a leitura estão inseridos, este sim, chamado verdadeiramente de contexto. Essa segunda dimensão ou nível de leitura constitui a compreensão do texto. Para compreender um texto é preciso mais do que se pautar somente naquilo que está explícito no texto, é preciso ouvir também os silêncios que o constituem, seus implícitos, suas entrelinhas. O leitor que, além de decodificar consegue também compreender um texto, já é um leitor mais preparado que aquele que apenas reproduz o que está na superfície textual. Todavia, esse ainda é um leitor que precisa evoluir bastante
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para alcançar o nível de leitura desejável ao leitor proficiente, diríamos. Mais do que decodificar e compreender um texto, é preciso compreender que a leitura envolve condições de produção, ou seja, ela não está dissociada de seu entorno: cultural, social, político, histórico e linguístico. Essa reflexão deriva do fato de que a produção de sentidos, operada na/pela leitura, depende da ação de um sujeito, não como um ser individualizado, fechado em si mesmo, mas como ser constituído pelo tecido social. O contexto social é importante na ação da leitura não por determinar, mas por influenciar o que poderíamos entender como uma coprodução de sentidos operada na relação entre o sujeito-leitor e o sujeito-autor mediada pelo texto. Entendemos que esse contexto não se presta somente a ser pano de fundo para o sentido, mas participa de sua constituição, historicizando-o, situando-o. E, no mesmo alinhamento, entendemos que o sujeito-leitor é aquele que produz sua leitura a partir de sua inscrição nessa dinâmica, como sujeito social. Essa postura nos leva a considerar, além da dinâmica social – que joga na constituição da linguagem e, consequentemente, do sujeito –, os atravessamentos do social pela ideologia e pela historicidade e a impossibilidade de se compreender a linguagem autonomamente, pautando-se na crença de significados anteriores ao discurso (texto) e à história, conforme propõe Orlandi (1988). Um texto não surge do nada, descolado da época, dos modos de dizer-fazer de uma determinada cultura. Os conteúdos (discursos) tratados nos textos dialogam aberta ou implicitamente com outros textos que formam aquilo que é chamado de outras vozes constitutivas da textualidade. Pois como diria Mikhail Bakhtin, no famoso livro, Estética da Criação Verbal, nenhum sujeito/enunciado – entenda-se por extensão, texto – é um Adão bíblico. Isto é, nenhum texto lida com palavras “virgens”, dotadas de sentidos sempre os mesmos e sempre iguais, independemente do tempo e do 72
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espaço em que ocorram. Portanto, o texto pode ser considerado um elo em uma cadeia de discursos. Alcançar esse nível desejável de leitura, o nível mais profundo, o da interpretabilidade – interpretação – demanda um trabalho atento do leitor não só pensando na palavra dita do texto e nos seus não ditos, mas também no seu entorno sociocultural, histórico e linguístico. É preciso relacionar o texto a outros textos já lidos ou ouvidos, relacioná-lo a suas condições de produção, para, a partir de então, conseguir emitir criticamente um ponto de vista sobre os temas e conceitos nele apresentados. Todavia, aquele que se poderia considerar como “mau” leitor não consegue, muitas vezes, sequer extrapolar o nível da decodificação, repetindo mecani-camente as palavras do texto, sem lhes perceber as ironias, às insinuações, as ambiguidades propositais, os jogos de significado e de sentidos propostos pelo texto. Outras vezes, não atenta para as relações estabelecidas pelas partes que o compõem, suas interdependências. Outros, ainda que compreendam o texto, não se propõem, na verdade, a estabelecerem nenhum diálogo com a temática arrolada pelo autor que não aquele intermediado ou, por que não dizer, ofuscado por outra coisa que não seja seus próprios desejos interiores ou pelo conhecimento do senso comum. Parecem desconsiderar todo o conhecimento científico da área que estão estudando ou de outras áreas que tenham conhecimento, para esvaziarem suas falas com enunciados e opiniões reproduzidos incansavelmente na mídia ou por pessoas não conhecedoras daquela área de ciência. Não se trata aqui de diminuir os valores dos conhecimentos populares, trata-se, antes, da necessidade de travar-se um diálogo, muitas vezes tenso, entre o senso comum e o conhecimento científico, buscando ampliar as leituras de mundo dos leitores, acrescentando-se novas perspectivas menos ingênua, mais problematizadoras e mais produtivas intelecto e socialmente. 73
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Se o leitor não se torna sujeito daquilo que lê, ou seja, não se apropria do texto, de sua relação com o outro sujeitoautor, para indagar-lhe, para estabelecer um diálogo por meio dessa textualidade ou para ser indagado por meio dele, dificilmente conseguirá aproveitar satisfatoriamente qualquer material lido, seja de cunho científico ou não. Cada uma dos níveis de leitura mencionados traz em seu bojo uma postura determinada para o sujeito-leitor. Tomada como uma forma de decodificação, a leitura nada mais é do que uma apreensão de um código seja ele verbal ou não verbal, no qual quem lê percebe literalmente o texto, sem um trabalho de contextualização maior. Se vista como uma forma de compreensão, o horizonte do leitor se amplia, podendo agora usar o contexto como uma forma de participação no sentido do texto, contudo ainda limitada. E, por último, se percebida como uma forma de interpretação, a leitura rasga os limites do próprio texto e adentra o discurso, solicitando do leitor que dialogue, que relacione, que perceba o texto não como um começo e um fim, mas como um entremeio que tem um já-dito e um há se dizer. Não se pode perder de vista, também, que não se lê da mesma forma qualquer tipo de texto. É preciso estabelecer-se uma “espécie” de pacto ou de protocolo de leitura adequado a cada gênero textual, ou seja, a cada formato. Muitos textos são lidos para aprender, muitos outros para divertir-se, outros para orientar e assim sucessivamente, dependendo do objetivo da leitura. Se na leitura feita por lazer, o fluxo pode ser contínuo, comumente dispensada até de marcações no canto do texto; na leitura para aprender, nem sempre se consegue ler continuamente: é preciso ler “parando”, tentando relacionar os argumentos, as ideias centrais e secundárias, as sucessões temporais. É necessário ir preenchendo os “vazios”, processando os pressupostos, os subentendidos, os acarretamentos e as inferências, nos quais o autor conta com o conhecimento do leitor para a complementação. Não raro é preciso fazer anotações no meio ou no canto do texto, marcando similari74
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dades ou distanciamentos de outros autores que tratam da mesma temática, a fim de ir construindo-se o entendimento textual. Ler para aprender é ir fazendo anotações; identificando os pontos-chave, os argumentos e os contraargumentos desenvolvidos, a forma como o autor apresenta esses argumentos; anotando as palavras e as expressões que não compreendeu; tentando perceber naquilo que se sabe sobre as condições de produção do texto – quem, quando, onde, porque ou para quê – o que podem “dizer” sobre a temática e o ponto de vista desenvolvido; percebendo a “hierarquia” dos enunciados dentro do texto; qual a relação entre o escrito e o não escrito, entre o verbal e o não verbal, no caso do texto apresentar imagens, por exemplo; é estabelecer a relação do assunto com a área tratada. Ainda, carece de o aluno-leitor perguntar-se – o que sei sobre isso? O que já estudei sobre isso? – para ter condições de analisar, avaliar, julgar por parâmetros plausíveis, científicos e objetivos o material lido. Saindo assim do terrível “achismo” que, infelizmente, atravanca o aprendizado de muitos alunos. Ler um texto para aprender, assim como escrever um texto evidenciando o aprendizado, é um trabalho, não obstante, demorado e que demanda não apenas concentração, mas estabelecimento de correlações variadas. Leitura e escrita não são dons, são competências advindas de um grande e profícuo trabalho, de muito treino. Além disso, ler se aprende lendo e escrever se aprende escrevendo. São competências interligadas, mas não condicionadas uma a outra. Cabe, então, sermos atentos aos sentidos produzidos na variedade de textos para que o sujeito apreenda o processo mais do que acumular produtos. Não é uma questão de quantidade, mas de relação de sentidos na formação (qualitativa) de arquivos. (...) O que importa é fazer o sujeito perceber que há relações de 75
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sentidos que transitam. Há sentidos que se enredam, que formam filiações. (ORLANDI, 2001, p.71) Decorre dessa visão da leitura como uma produção de sentidos, engendrada em vários fatores que extrapolam a mera decodificação das palavras, que, a “ancoragem” que o leitor apresenta para servir-lhe ao estabelecimento de um diálogo produtivo e não meramente reprodutivo, é de suma importância para a qualidade da leitura realizada. Por isso, é preciso diversificar os gêneros textuais lidos, as fontes lidas e as referências culturais. Pois a leitura é o fio condutor dos trabalhos em todas as disciplinas dentro de um curso, criando possibilidades de diálogos entre as diversas áreas curriculares e entre o conhecimento científico e as práticas socioculturais. Além disso, não se pode considerar o texto, no âmbito da palavra escrita apenas, já que contemporaneamente a noção de texto estende-se a toda ocorrência linguística ou não linguística na qual seja possível a produção de sentidos. Assim, podemos ler um artigo de jornal, uma charge, uma placa de trânsito – seja ela simbólica ou linguística – uma fotografia, uma pintura, uma conversa, um filme etc.. Sendo assim, muda-se o “protocolo” de leitura, no caso de texto não linguístico, mas não muda a necessidade de estabelecerem-se relações que extrapolem a superficialidade do texto e a sua compreensão. Referências Bibliográficas BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Fontes, 2003. ORLANDI, Eni P. Discurso e leitura. São Paulo: Cortez Editora, 1988. ______. Discurso e texto: formulação e circulação dos sentidos. Campinas: Pontes, 2001. SANT’ANNA, Affonso Romano de. A cegueira e o saber. Rio de Janeiro: Rocco, 2006.
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5 – Leitura e pós-modernidade: um caminho de estudos35 Na era da pós-modernidade, também chamada de modernidade líquida, a velocidade e a mobilidade tornam-se os novos mecanismos de poder-fazer, isso porque, com o surgimento do espaço digital, o fluxo de signos apresenta-se muito mais fluido, emergindo e submergindo a um toque dos dedos nas telas ou nas teclas dos computadores, netbooks, notebooks, tablets, celulares etc.. Os sistemas de significação e suas linguagens estão submetidos aos imperativos socioculturais de nosso tempo, nos quais a velocidade, as incertezas e as transitoriedades atravessam-lhes intensa e repetidamente; bem como atravessam os sujeitos, uma vez que somos, pelo entendimento dos estudos discursivos, essencialmente constituídos pela/na força produtora da(s) linguagem(ns), nas práticas sociais. Assim, a linguagem é o meio entre o sujeito e o mundo, a perspectiva pela qual o sujeito olha, constrói e intervém sobre o mundo. Constituir-se na/pela linguagem é “penetrar a discursividade e deixar-se penetrar por ela, constituir-se do, pelo e no outro, pela cultura do outro, pelo ‘estranhamento familiar’ e pelo ‘propriamente impróprio’” (CORACINI, 2006, p.196). Situado no entremeio, no in between, entre a modernidade e a pós-modernidade (HALL, 2000), ou entre a modernidade sólida e a modernidade líquida (BAUMAN, 2001) – já que quando surge uma nova era ou uma nova faceta de 35
Texto originalmente publicado, em uma versão mais enxuta, na Revista Presença Pedagógica, n. 106, da Editora Dimensão. 79
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uma era, esta ainda convive por longo tempo com a anterior, ainda que essa convivência seja permeada de tensão – nesse entremeio, o sujeito-leitor produz sentidos diferentes a cada momento, mergulhado nos fios do interdiscurso e da pluralidade de vozes, para (e diante) de antigas e de novas textualidades. Sujeito esse que também é significado por elas, pois de certa maneira as novas textualidades, sejam digitais ou analógicas, propõem continuamente subjetividades cada vez mais moventes para seus interlocutores. A leitura está submetida a modos e efeitos de leitura de cada época e segmento social. Por isso, o contexto social é importante na ação da leitura não por determinar, mas por influenciar o que poderíamos entender como uma coprodução de sentidos operada na relação entre o sujeito-leitor e o sujeito-autor mediada pelo texto. Entendemos que esse contexto não se presta somente a ser pano de fundo para o sentido, mas participa de sua constituição, historicizando-o, situando-o. E, no mesmo alinhamento, entendemos que o sujeito-leitor é aquele que produz sua leitura a partir de sua inscrição nessa dinâmica, como sujeito social. Pois não é só quem escreve que produz sentidos, quem lê também produz sentidos e em condições de produção específicas. E, ao professor, como um dos sujeitos sociais, se lhe apresenta um novo desafio: como sujeito imerso e inscrito nesse entremeio, é preciso desenvolver, ou melhor, aprender a ler “de uma maneira nova” e aprender cada vez com mais velocidade, saltando de um texto a outro, formando combinações hipertextuais cada vez mais “moventes”, mais “fluídas”. Em uma era em que, graças ao aumento vertiginoso de textos/informações disponíveis, trama-se ainda mais, a intertextualidade, o que, por sua vez, faz expandir consideravelmente o co-texto com o qual lemos. Dessa forma, o estudo da leitura precisa, portanto, estar afinado com esse contexto sociocultural mais amplo, considerando os sujeitos – autor/leitor – e o texto resultantes da tensão entre a modernidade e pós-modernidade, uma configuração perpassada pelas Tecnologias de Informação e 80
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de Comunicação (TICs). E é esta leitura da textualidade digital, mediada pelo espaço virtual, que será pensada exploratoriamente aqui. Para esse estudo, a leitura precisa ser considerada em um duplo processo de constituição. Pode ser considerada como um processo discursivo – sócio, histórico, cultural e ideologicamente constituído – assim sendo, um processo essencialmente interpretativo, um momento crítico da relação entre autor/leitor/texto mediados pelas condições de produção da leitura. Nessa perspectiva, o texto não figura constitutivamente como uma unidade linear de sentidos organizados pelo autor para a leitura, pois na acepção aqui encampada, ainda que o texto apresente um sistema de endereçamento, ao ler, o leitor toma caminhos múltiplos, não controláveis inteiramente pelo autor. Além disso, o leitor atua efetivamente como um coautor, na medida em que toda leitura, por si, configura um novo texto, um novo gesto de interpretação e de reconstrução da textualidade. A leitura, vista como interpretação, não trataria mais, tal como queriam alguns teóricos que menosprezam o caráter sócio-histórico do texto e dos sentidos, de perseguir sua unidade ilusória, e sim de “amarrotá-lo, recortá-lo, pulverizá-lo, distribuí-lo segundo critérios que escapam ao nosso consciente” (CORACINI, 2005, p.250). Portanto, ler, compreender, interpretar ou produzir sentidos “é uma questão de ângulo, de percepção, ou de posição enunciativa” (idem, p. 25). Interpretar, na perspectiva discursiva, não é apreender um sentido existente a priori, mas produzir sentidos. Sentidos que não estão livres de limitações e influências. Sentidos que podem ser plurais, mas não qualquer um, já que estão perpassados, como nos diz Orlandi (1996), tanto pela memória institucionalizada quanto pela memória constitutiva, esta última formada pelo interdiscurso, pelo dizível, pelo repetível. E, já que é o espaço virtual que agencia boa parte das novas textualidades, a leitura também pode ser considerada 81
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como um processo virtual, o que implica considerarem-se a sintaxe das linguagens digitalizadas e as maneiras de se nela penetrar como importantes para a produção de sentidos. Um processo virtual mediado pela própria virtualidade proporcionada pelas TICs, num (ciber)espaço que significa e tem materialidade. O sinal digital, cuja expressão mais visível encontrase na internet, fluidifica espaços e bits e os transmite em questões de milésimos de segundo, tornando-se o exemplo máximo da inexorabilidade do espaço e da presencialidade do agora em nossas vidas, na pós-modernidade. Sinal este que não fica mais restrito ao espaço físico da casa ou do trabalho, mas que nos acompanha nos celulares, nos tablets, nos netbooks e notebooks etc.. E nós figuramos como sujeitos intercambiantes estabelecendo conexões sucessivas na tentativa de implodir o espaço e de liberarmo-nos do tempo, já que tudo é tão fugaz, transitório, múltiplo, fragmentado e de confins fluidos. A ideia da imobilidade e da incomunicabilidade atormenta-nos. Mas os meios – tome-se como exemplo as novas TICs – não são fontes de inovações em si, mas mediações entre novas práticas de comunicação – acrescentamos, e de informação – e transformações sociais (MARTÍN-BARBERO, 2001). Esse conceito de mediação nos ajuda a pensar que tecnologia e cultura não estão postas como instâncias isoladas e estáticas que se refletem, mas como dinâmicas que se influenciam mutuamente. E ainda, pressupõe a cultura como algo que se transforma constantemente nos e através dos meios. Isso porque “a mediação primeira não vem das mídias, mas dos signos, linguagem e pensamento, que elas veiculam” (SANTAELLA, [1992] 2000, apud SANTAELLA, 2003, p.116-117) e complementamos que elas produzem. Nessa perspectiva de mutualidade entre cultura e TICs, está subtendida, não se pode negar, a relação intercambiante entre sujeito-linguagem (pois ao se dizer o sujeito se diz), entre sujeito-mundo (ao representar ele se representa) e entre sujeito-sentido (ao significar ele se significa/ ao 82
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ler o sujeito se lê), envoltos e movimentando-se no limite da ambivalência pós-moderna, que funde o velho e o novo, imbricando-os e interpenetrando-se de tal maneira que faz surgir um híbrido que não é um ou outro, mas um e outro ao mesmo tempo, imiscuído numa linguagem líquida e movente. Pois como salienta Santaella, Embora cada tipo de formação cultural tenha traços específicos que diferenciam uma formação cultural nova ela não leva a anterior ao desaparecimento. Pelo contrário, elas de mesclam, interpenetram-se. [...]. A internet depende da escrita [...]. Assim, todas as formas de cultura, desde a cultura oral até a cibercultura hoje coexistem, convivem e sincronizam-se na constituição de uma trama cultural hipercomplexa e híbrida. (SANTAELLA, 2007, p.128) Mas, É certo que, em cada período histórico, a cultura fica sob o domínio da técnica ou da tecnologia de comunicação [e de informação] mais recentes. Apesar da coexistência e das misturas entre todas as formações culturais, as mídias mais recentes acabam por sobressair em relação às demais. (SANTAELLA, 2007, p.130)
Veja-se o caso dos jornais impressos, que vêm incorporando alterações no layout, na linguagem, no tamanho das matérias, na “sintaxe” de composição dos textos, inserindo infográficos e mais imagens, por influência do jornal on-line da terceira geração, vazado pela instantaneidade e pela mo83
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bilidade. Ao passo que o jornal on-line obviamente se formou com muitas características advindas do jornal impresso. Nesse imbricamento, os dois formatos de jornal passam a ser híbridos de um e outro ao mesmo tempo. Ou ainda o caso do imbricamento entre o privado e o público possibilitado pelo Facebook, por exemplo, no qual ainda que o sujeito “esteja público”, faz dele um uso particular, um “seu particular”, o que o retira da esfera do ou isso ou aquilo (ou público ou privado), dicotomizados, e leva àquela do isso e aquilo, hibridizados (público e privado). Tentar compreender essa dinâmica significa, especialmente, para o professor que atua na educação básica, já que além de lidar com seu próprio aprendizado, precisa mediar/ensinar, apontar caminhos, para alunos imersos no nas teias das TICs, pensar que diante da tela – espaço virtual – o sujeito-leitor (aluno) diz e se diz, representa e é representado, produz sentidos e é significado, transformado, ele mesmo, em um elemento constitutivo deste espaço. O espaço da simultaneidade! Além disso, dentre os imperativos socioculturais, mencionados no início, é possível visualizar, apoiando-nos em Bauman (1999), a tecnologia digital, proporcionadora dos softwares que criam o espaço virtual, como mais uma fonte de consumo. Isso porque a conexão através da internet intensificou a possibilidade de consumir e deslocou sua ênfase dos bens materiais para o consumo de informação. Grande quantidade de informação é consumida instantaneamente e a custos baixos, independentemente do local onde é gerada ou recebida. Então, podemos depreender, a partir dessa consideração, que adentrar o universo digital, é consumir além de bens materiais representados pelos artefatos técnicos, hardware, como por exemplo, dispositivos digitais (computadores, notebooks, netbooks, tablets, celulares etc..) e meios de conexão à rede de internet; também os bens simbólicos representados por livros, jornais e revistas digitais, softwares, websites, bancos de dados, enciclopédias on-line,
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serviços de compras, twitter, orkut, facebook e muitos outros, tudo isso enredados no formato de “informação”. Parece-nos assim que, se tomarmos a tecnologia no sentido de mediadora, podemos chegar à noção de que o consumo das novas TICs – seja ele em forma material ou simbólica – ou de seu discurso, é uma espécie de produção da inclusão digital, e, por conseguinte, de produção do sujeito-leitor-tecnológico. Isso porque, conforme propõe Santaella (2003), a relação da cultura contemporânea, mediada pelas novas TICs, com a linguagem, agencia a constituição de novas posições para o sujeito, isto é, novos lugares na rede da comunicação, e acrescentamos, da interação social. Essas novas formas de subjetivação na era digital reclamam por novos olhares. Talvez esse sujeito-leitor-tecnológico pudesse ser considerado como uma interface do sujeito-leitor tradicional, já que as linguagens digitalizadas deixam entrever um sujeito permeado pela alteridade discursiva e pelo saber mover-se nas conexões hipertextuais. Neste caso, o professor teria um papel fundamental: aquele de orientar o consumo de informações úteis à formação de um leitor capaz de usálas para melhorar e ampliar a qualidade da leitura produzida, e de servir aos propósitos de uma leitura menos superficial. De mediar a formação das intertextualidades, capazes de ancorar os processos de leitura, cuidando para que os alunos usem produtivamente a ligação entre os links, auxiliando-os, na medida do possível, a não se perderem, o que é muito fácil, no emaranhado de fios da rede. Já que, nem ao professor, é dado visualizar a rede de cima, mas somente imiscuído nas rotas internas dos links, da hipertextualidade, pois se trata de um ambiente movediço. Nesse espaço virtual, o sujeito-leitor-tecnológico guiado tanto pelo processo discursivo quanto pelo virtual, depara-se com um fluxo de textos (informação) inimaginável até há algum tempo, como pode ser ilustrado por uma pequena observação das atualizações da entrada de notícias nos portais de informação on-line. Escolhemos um desses 85
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portais para tentar materializar essa proposição e realizamos uma pequena amostragem feita em data e hora aleatórias, mas que servem perfeitamente ao propósito ilustrativo pressuposto. Veja-se abaixo: No portal do G1, pertencente à Globo.com, especialmente na parte dedicada ao jornalismo “escrito”, no box hipertextual denominado “notícias”, que tomamos como exemplo, notamos que o intervalo de entrada de um novo texto de notícia é muito pequeno, a julgar pelos 60 minutos que tomamos como referência para observar as atualizações nesse portal. Contabilizamos, no dia 29 de outubro de 2011, no intervalo entre as 14 e 15h, a entrada de 36 notícias de temáticas diversas, o que nos dá uma média de 1,7 minutos de intervalo para cada nova entrada, uma verdadeira celebração à efemeridade do presente. Entendemos que essa velocidade reporta à ideia de conexão em tempo real, ou seja, o fluxo de informação contínuo e quase instantâneo, no qual o tempo que importa é o agora, ou melhor, fragmentos de agora que transitam no ciberespaço, independente do local em que o fato noticiado ocorre, se local ou global, já que a internet traz a possibilidade de a informação viajar através do mundo em frações de segundo. Assim, encontramos nesse fato um exemplo da liquefação, de que nos fala Bauman (2001), das relações entre tempo e espaço, proporcionada pelas novas TICs. O movimento perpétuo, a liquidez fugidia que não se permite fixar, pausar. E se há liquidez, é porque há movimento, de todos os tipos. Como afirma o próprio autor, o lugar, na modernidade líquida, perdeu sua fixidez de antes, sua estabilidade, buscando rochas, as âncoras encontram areias movediças. Abrese ao sujeito-leitor-tecnológico a encenação da transterritorialidade e traz a possibilidade de jogar com ela até o limite da dissolução. Dissolução essa que também é pensada por Kerckhove ao propor que o hipertexto digital não implica simplesmente
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‘um texto que está ligado a outros textos’, ele realmente circunda todo o mundo da comunicação eletrônica em um processo de armazenamento permanente de informação. Ao mesmo tempo, o hipertexto introduz as mentes dos usuários às telas, interconectando-os e os acelerando em redes. Qualquer um que esteja on-line é, de fato, parte de um hipertexto mundial. (KERCKHOVE, 2003, p.9) grifo nosso
Isso significa que ao lermos no espaço virtual, somos também uma espécie de link, que se coaduna à sintaxe digital do hipertexto, entendido como sendo um conjunto de singularidades textuais – verbal ou não verbal – que se interconectam por meio de links. Processo de “linkagem” pessoal que tem se insinuado à percepção prática nas redes sociais, como no twitter, orkut e no facebook. Em alguns casos, inclusive, é dado a saber aos demais participantes on-line que “fulano está on-line”, acabou de se “linkar”. Além disso, muitos desses sistemas hipertextuais não são apenas sistemas de circulação de informação, são sistemas colaborativos de produção que vinculam os sujeitos a seus dizeres; configurando assim, com já dito, novas condições de produção tanto do texto e da leitura, quanto do próprio leitor. No entanto, não podemos enxergar o consumo de informação – já que estamos tomando a leitura não apenas como um processo virtual, mas também como um processo discursivo – uma atividade pacífica e passiva por parte de um sujeito higienizado de todo seu entorno sócio-histórico e cultural. Por isso, tentamos mostrar a importância do mediador-professor para ajudar a “constituir” sujeito-leitortecnológico, de fato. Isso quer dizer, que entendemos que esse sujeito estará no/em constante fluxo de informação, não apenas a recebendo e absorvendo-a, mas lendo-a, reelaborando-a singularmente, interpretando-a, em uma negociação 87
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constante de efeitos de sentidos, os quais, por sua vez, são circunscritos pela exterioridade, pelas outras vozes que compõem o interdiscurso. Assim, pelo consumo das textualidades digitais surge o leitor-tecnológico, e, pela contrapalavra-ativa, constitui-se, de fato, o sujeito-leitor-tecnológico. Referências bibliográficas BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. ______. Globalização: as consequências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999. CORACINI, Maria José. Nossa língua: materna ou madrasta? Linguagem, Discurso e Identidade. SANTOS, Alcides Cardoso dos Santos (org.). Estados da Crítica. Cotia, SP: Ateliê Editorial; Curitiba, PR: Editora da Universidade Federal do Paraná, 2006. p. 183-200. CORACINI, Maria José. Concepções de leitura na (pós)modernidade. In: CARVALHO, Regina Célia; LIMA, Paschoal (Orgs.). Leitura: múltiplos olhares. Campinas: Mercado das Letras, 2005. p.15-44. ORLANDI, Eni Pulcinelli. Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. Petrópolis: Vozes, 1996. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2000. KERCKHOVE, Derrick de. Texto, contexto e hipertexto: três condições da linguagem, três condições da mente. Revista Famecos, Porto Alegre, n.22, p. 7-12, 2003. MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: UFRJ, 2001. SANTAELLA, Lucia. Linguagens líquidas na era da mobilidade. São Paulo: Paulus, 2007. ______.Culturas e artes do pós-humano: da cultura das mídias à cibercultura. São Paulo: Paulus, 2003.
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6 – Aldravias: as linguagens líquidas na produção do texto poético36 A modernidade líquida, termo cunhado pelo sociólogo Zygmunt Bauman para nomear a era atual, denominada por alguns de pós-modernidade e por outros de hipermodernidade, é a fase em que tudo aquilo que era sólido e estático se derreteu ou está se derretendo, não para formar novos sólidos – já que não se prende ao tempo e não se fixa espaço – mas para fluir liquefeito pelas novas vias que se lhe apresentam ou que vão sendo configuradas numa sociedade que se transmuda a todo instante. A metáfora da liquidez advém da observação de que os líquidos, diferentemente dos sólidos, não mantêm sua forma com facilidade. Os fluidos, por assim dizer, não fixam o espaço nem prendem o tempo. Enquanto os sólidos têm dimensões espaciais claras, mas neutralizam o impacto e, portanto, diminuem a significação do tempo (resistem efetivamente a seu fluxo ou o tornam irrelevante), os fluidos não se atêm muito a qualquer forma e estão constantemente prontos (e propensos) a mudá-la; assim, para eles, o que conta é o 36
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tempo, mais do que o espaço que lhes toca ocupar; espaço que, afinal, preenchem apenas “por um momento”. (BAUMAN, 2001, p.8) grifos do autor É essa extraordinária mobilidade dos fluidos que os associa à ideia de leveza. Pois, é possível associar leveza à mobilidade e à inconstância. Dessa forma, descrições de líquidos são fotos instantâneas, que precisam ser datadas. Os fluidos se movem facilmente. Eles "fluem", "escorrem", "esvaem-se", "respingam", "transbordam", "vazam", "inundam", "borrifam", "pingam"; são "filtrados", "destilados"; diferentemente dos sólidos, não são facilmente contidos contornam certos obstáculos, dissolvem outros e invadem ou inundam seu caminho. Do encontro com sólidos emergem intactos, enquanto os sólidos que encontraram, se permanecem sólidos, são alterados - ficam molhados ou encharcados. (BAUMAN, 2001, p.8) grifos do autor Sendo assim, a metáfora do líquido é escolhida por Bauman para designar a nossa era, uma vez que capta a natureza da presente fase, nova de muitas maneiras na história da modernidade. Uma fase em que tudo é fugaz, transitório, múltiplo, heterogêneo e fragmentado. O sinal digital que fluidifica espaços e bits e os transmite em questões de segundo passa a ser o exemplo máximo da inexorabilidade do espaço e da presencialidade do agora em nossas vidas. Nessas configurações, no século XXI, a produção artística e suas linguagens também estão submetidas a esses imperativos socioculturais, nos quais a incerteza e a transitoriedade atravessam-na. Na liquefação, desvanece a distinção entre o novo e o conhecido, e o gesto de criar e o de 90
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destruir passam a fazer parte de uma mesma moeda, já que a ideia de imobilidade aterroriza por decretá-la candidata ao esquecimento e ao abandono. A ideia da liquidez faz fundir o tradicional e o não tradicional e daí surgir um híbrido que não é um ou outro, mas um e outro ao mesmo tempo, imiscuído numa linguagem líquida e movente. A discussão entre o valor estético de uma obra agora se mescla à função desta obra, sem diminuir-lhe ou agregar-lhe valor. Simplesmente, configuram uma nova sintaxe, que por ser híbrida, carece de novas categorias de análise que se pautem naquilo que une e não naquilo que separa. A singularidade está no hibridismo e não na separação entre a vanguarda e a contemporaneidade. Há uma tendência das produções artísticas de centrarem-se nos acontecimentos passageiros, por isso efêmero. E o poema líquido-moderno não contraria essa tendência que é fruto de seu engajamento em seu tempo, ou melhor, nas fragmentações de tempo de nossa era. Mas o que seria esse poema líquido-moderno? Talvez, a indefinição seja a melhor das respostas, uma vez que o líquido não permite mais do que conformações momentâneas, antes que assuma nova forma. Mas se poderia tentar designá-la como um poema que consiga envolver as características da liquidez não apenas em sua condição de produção, como também em sua linguagem. Que o seu dizer-fazer seja sua própria definição. Tem-se assim, em nosso ponto de vista, um exemplo máximo dessa sintaxe líquido-moderna naquele que figura no novo estilo poético intitulado, por seus proponentes, de Aldravia. A Aldravia conceituada no Jornal Aldrava, onde foi primeiramente publicado, como se tratando de um poema sintético, capaz de inverter ideias correntes de que o poema está num beco sem saída. O poema é constituído numa linométrica de até seis palavras-verso. Esse limite de seis palavras se dá de forma 91
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aleatória, porém preocupada com a produção de um poema que condense significação com um mínimo de palavras [...] (DONADON-LEAL, 2010, n. 88, p. 3) Já nessa conceituação, podem-se pinçar algumas influências da modernidade líquida na caracterização poética. Apresentam-se a ideia da condensação da linguagem e das ideias, pois numa sociedade movente, é preciso ser e tornar-se leve, desfazer-se de tudo que atravanque a mobilidade; é preciso “dinamitar” o espaço para ganhar “tempo”, que é sempre escorregadio, que é sempre não mais que um instante. Também, têm-se a aleatoriedade das palavras e de sua organização, pois as palavras que já se dizia há muito que “desmanchavam-se no ar”, agora “escorrem”, “esvaemse”, “transbordam” e “inundam” com grande facilidade o texto em que se apresentam. No encontro de um possível obstáculo “o poema estaria num beco sem saída”, dissolve o poema tradicional e o reconfigura com uma roupagem mais atual. Outra característica da aldravia, que proporia como característica líquido-moderna deste tipo de poema, referese ao fato de, aparentemente, afastar-se da representação como “fotografia”, que fixa e congela a cena no momento e no espaço, para aproximar-se do vídeo digital, capaz de captar e de em milésimos de segundos transformar em movimento, em fluidez. Observe-se essa tendência nas Aldravias a seguir: se sol lá noite aqui
salto de cova nascimento do artista Andreia D. Leal
Andreia D.. Leal
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sigo cigano em busca da poesia JS Ferreira
Nos poemas acima, as minúsculas e a ausência de pontuação podem “confundir” nossos sentidos, pois não encontramos as habituais marcações de onde inicia – faltam as iniciais maiúsculas, que já nos convencionamos a encontrar no início de um texto – e faltam os pontos finais – que sinalizaria o seu término. Sinalizando mais para o fluxo e para o entremeio discursivo, do que o início e o fim, propriamente dito. Além disso, a condensação de significados em poucas palavras evoca à produção de sentidos em caleidoscópio e não na linearidade, pois alude ao movimento e não a estaticidade de uma cena. Diria que condensam linguagens do tempo, fluidificando imagens, fotos, em fluxos contínuos. Fluxos de signos. Condensação propositadamente aludida em: aldravia meu verso universo em poesia Gabriel Bicalho
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É deixada ao leitor a provocação e não a mensagem. Por isso, um poema metonímico e não metafórico. A abertura final é parte de sua concepção. Aliás, a metonímia também seria uma ideia bastante apropriada para a era líquido-moderna, uma vez que a fragmentação se apossou das pessoas, do tempo e dos espaços. Pois como propõe o próprio Bauman, no livro Identidade, ter uma identidade fixa hoje, nesse mundo fluído, seria de certo modo uma decisão suicida. Estamos na era da construção múltipla de eus. E novamente, ilustro essa fragmentação com outra aldravia:
minhas porções diárias metonímias de mim J.B. Donadon-Leal
A novidade aqui não está, apoiando-me em Santaella (2007, p.97), no fato da identidade ser múltipla, pois a identidade humana é, por natureza, múltipla. A novidade está, isso sim, em tornar essa verdade evidente e na possibilidade de encenar e de jogar com ela até o limite máximo da transmutação. É a nudez do poema como “supersigno” da linguagem que me parece buscar-se na modernidade líquida. Nesse contexto, a aldravia parece despir-se diante dos olhos do leitor, para recompor-se em sua mente. Para daí, novamente desmanchar-se, fluir num movimento incessante. Essa liquidez apresenta como essência o movimento, contínuo e incessante. O movimento perpétuo, a liquidez fugidia que não se permite fixar, pausar. Se há liquidez é 94
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porque há movimento, de todos os tipos, pois, como afirma o próprio Bauman, o lugar, na modernidade líquida, perdeu sua fixidez de antes, “buscando rochas, as âncoras encontram areias movediças” (BAUMAN, 2001, p.70). Esses poucos exemplos servem para apontar, ainda que modestamente, o quanto a linguagem é versátil e o quanto as condições socioculturais e históricas fazem parte da instauração de cada “novo” discurso, seja ele poético ou não. E assim, mostram-nos o quanto a leitura e a escrita estão imersos em seu tempo e são engendrados e engendrantes por/de ele. Referências Bibliográficas BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. São Paulo: Editora Zahar, 2001. ______. Identidade. São Paulo: Editora Zahar, 2005. SANTAELLA, Lúcia. Linguagens líquidas na era da mobilidade. São Paulo: Paulus, 2007. DONADON-LEAL, J. B. Aldravia – nova forma, nova poesia. Jornal Aldrava. Mariana, ano XI, n. 88, p.3, dez./2010. Aldravias. Jornal Aldrava. Mariana, ano XI, n. 88, dez./2010.
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7 – Diálogo entre pós-modernidade, sujeito e leitura: o processo discursivo e o virtual37 É na própria linguagem que devemos buscar as respostas para uma boa parte dos enigmas em torno da conduta humana. (RAJAGOPALAN, 2007)
Tratar da questão da leitura é sempre, e em qualquer tempo, um grande desafio devido às várias correntes de estudo que investigam o assunto e a diversidade de posições teóricas advindas desse “embate” entre as correntes. Todavia, aventuramo-nos neste desafio e tencionaremos apresentar neste ensaio algumas considerações que julgamos serem bastante pertinentes ao traçar um possível diálogo entre as questões envolvidas na pós-modernidade – que, consequen37
Texto originalmente publicado no vol. 6, da Hipertextus Revista Digital (ISSN 1981-6081), em 2011. A revista é uma publicação da Universidade Federal de Pernambuco - Departamento de Letras - Núcleo de Estudos de Hipertexto e Tecnologia Educacional 97
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temente, afetam o sujeito-leitor, as identidades e a leitura produzida neste contexto pós-moderno. Ressaltamos que diante às várias concepções de pós-modernidade, adotamos, neste trabalho, a que está relacionada ao processo de globalização, às novas tecnologias de comunicação e de informação, e à dissolução das categorias de tempo e espaço. Paul Virilio (1998) apud Mota (2001, p. 194) narra a história moderna, organizada a partir da invenção de cinco motores: 1) o motor a vapor – que possibilitou a criação da primeira máquina que serviu à Revolução Industrial; 2) o motor a explosão – que propiciou o surgimento do avião; 3) o motor elétrico – que deu origem à turbina e possibilitou a visão noturna das cidades; 4) o foguete – que permitiu ao homem escapar da atração terrestre e obter a visão da Terra a partir da Lua; 5) o motor da inferência lógica – que permitiu o aparecimento do software e da realidade virtual. É, pois, justamente com o maior desenvolvimento do software que notamos a passagem do moderno para o pósmoderno, visto que o conhecimento passou a ser liberado das limitações físicas do espaço. Atualmente o espaço torna-se irrelevante e o tempo aniquila-se, dissolve-se. No universo da informática e da internet as viagens acontecem à velocidade da luz e os espaços são atravessados sem tempo. A velocidade e a mobilidade tornam-se o novo mecanismo do poder. As pessoas que agem com maior rapidez, que mais se aproximam do momentâneo do movimento, são as pessoas que agora mandam. Surge o espaço virtual. As fronteiras espaciais perdem o caráter de demarcar e restringir, abre-se o espaço para o global estimulado pelo intercâmbio de informações e de capital econômico que não mais precisam estar atrelados aos espaços de produção. E por solicitação do espaço e do tempo vivido o sujeito pós-moderno acaba por assumir diferentes identidades. Diferentemente de duas outras formas de sujeito modernos, citados por Hall (2000): o cartesiano – racional, cons98
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ciente, homogêneo – e o cognoscente (cognitivo) – capaz de se autocontrolar e controlar o outro (objetos, natureza, seres humanos), de controlar, pelo conhecimento, a própria aprendizagem (e o ensino), capaz, em última instância, de controlar os sentidos de seu dizer, na busca da (im)possível verdade única, objetiva e desinteressada, portanto, política e ideologicamente descomprometida – o sujeito pósmoderno apresenta-se como um sujeito fragmentado, inefável, múltiplo, atravessado pelo inconsciente e pela historicidade. A identidade, conforme dá a entender Fairclough (2001), tem a ver com a origem social, gênero, classe, atitudes, crenças de um falante, e é expressa a partir das formas linguísticas e dos significados que esse falante seleciona, passando-se à maneira como o produtor de um texto [ou leitor] retextualiza a fala de um locutor, atribuindo a si mesmo uma identidade e outra a esse seu locutor. Por isso, não estaríamos lidando com uma única identidade, mas formas de identificações moventes. Nessa perspectiva, Hall (2000, p. 12) salienta que a identidade pós-moderna é aquela em que o sujeito “está se fragmentando, composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não resolvidas”. Complementando Hall, a novidade nessa nova fase não está, apoiando-nos em Santaella (2007, p.97), no fato da identidade ser múltipla, pois a identidade humana é, por natureza, múltipla. A novidade está, isso sim, em tornar essa verdade evidente e na possibilidade de encenar e de jogar com ela até o limite máximo da transmutação. Frente a esse cenário de fragmentação do sujeito pósmoderno, como ficaria a leitura, nossa proposta de diálogo? Situado no entremeio (no in between), no espaço da ambivalência, entre a modernidade e a pós-modernidade, o sujeito-leitor produz sentidos a cada momento diferentes, mergulhado nos fios do interdiscurso e da pluralidade de
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vozes, diante de antigos ou de novos textos e novos suportes textuais. Mas, antes de prosseguirmos, precisamos levantar algumas questões sobre leitura que favorecerão nosso diálogo. Na perspectiva da modernidade, a leitura foi conceituada como decodificação (descoberta do sentido) ou como leitura como interação (construção do sentido, na vertente da compreensão). Para Coracini (2005, p. 20), no primeiro caso, o leitor era um mero espectador em busca do sentido que se encontra de forma imanente, no texto ou na obra em apreciação. As palavras assim como as cores, as formas, os sinais, os gestos, os signos carregariam um significado inevitável e independente de qualquer condição. A função do leitor seria a de resgatar esse significado. Um olhar linear sobre o que é lido. No segundo caso, leva-se em conta a existência dos sujeitos – autor e leitor – neste caso, a leitura constitui um processo cognitivo que coloca o (sujeito-) leitor frente ao autor ou à obra, seja ela de que natureza for. Autor que deixaria marcas, pistas de sua autoria, de suas intenções, determinantes do sentido possível e com o qual o leitor interagiria para construir esse sentido. Neste caso, o autor(idade) é responsável pelo sentido e vê-se legítima e juridicamente reconhecido como tal. E ele, conscientemente, imprime marcas de suas intenções no texto. Esse sujeitoautor seria, portanto, o centro de onde partem e para onde convergem os sentidos. Existiria, mesmo nesta acepção, certa linearidade da leitura. Na perspectiva da pós-modernidade, a leitura figura na resultante da tensão entre a modernidade e a pósmodernidade e pode ser conceituada como um processo discursivo – sócio, histórico, cultural e ideologicamente constituído –, portanto, interpretativo, e, num segundo momento, como processo virtual, em virtude das novas tecnologias que medeiam a própria leitura. Essa concepção 100
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requer o reconhecimento de que o sujeito-leitor, o sujeitoautor e os sentidos são historicamente determinados, configurando um trabalho de interpretação que relaciona o texto a outros textos, ao discurso e ao interdiscurso que coabitam em nós e em nossa historicidade sociocultural. Requer também, de acordo com Cazarin (2006, p. 1), que se reconheça que ler é sempre um gesto de interpretação que se constitui no momento crítico de uma relação autor/leitor/texto. O leitor, ou melhor, o sujeito-leitor, não reconhece sentidos, não preenche lacunas, e sim, interpelado pela posição-sujeito (sujeito-leitor ou sujeito-autor) que o afeta, instaura seu próprio trabalho discursivo, (des)construindo o texto lido e atribuindo sentidos que não necessariamente são aqueles esperados pelo autor. Assim, o “sujeito-leitor” produz e é “produto de sentidos ideologicamente cristalizados” (MARIANI, 2002, p. 107). Nessa visão, o sentido é socialmente construído e emerge das práticas sociais. Além disso, o sujeito-leitor age sobre o significado, construindo-o e se construindo através dele, através de sua interação com a linguagem e por meio da linguagem, com os outros indivíduos e com o mundo. Ler é, então, enxergar o que o texto diz e o que ele não diz, é saber que ele só se constitui significativamente na relação com os vários sentidos produzidos pelos múltiplos sujeitos-leitores e coautores dos discursos. Para Coracini (2001, p.143), ler pressupõe um sujeito que produz sentido, envolvendo-se, dizendo-se, significando-se, identificando-se, abrindo espaço para a heterogeneidade e para a subjetividade que vez por outra rompe a barreira porosa e opacificante das palavras e se deixa representar, de modo imprevisível, pela linguagem. E ainda, tendo em vista a perspectiva de Rajagopalan (2002) apud Ferreira (2006, p.21), segundo a qual, o jogo identitário se expressa na linguagem, tomando em conta que linguagem é meio entre sujeito e mundo, é a lente pela 101
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qual o sujeito olha, constrói e intervém sobre o mundo. Dessa forma, é pelo/no movimento entre sujeito, linguagem e mundo que se pode postular identidade como construto, nunca acabada e fixada, mas sempre em transformação. Transformação contínua que atinge também a leitura, pois não se trata mais de respeitar a unidade do texto ou da obra – essa que, aliás, não passa de uma falácia – e não se trata de respeitar as ideias principais contidas no texto ou as intenções do autor, que só fazem sentido no esquema racional, reduzindo tudo à possibilidade de controle [...] trata-se de amarrotá-lo [o texto], recortá-lo, pulverizá-lo, (des)contruí-lo. (CORACINI, 2005, p. 24). Sujeito-leitor que tem a ilusória sensação de controlar a origem de seu dizer e de controlar os efeitos de sentido que seu dizer-fazer é capaz de produzir. Tratar a leitura na perspectiva da pós-modernidade implica adotarmos um conceito amplo de leitura que esteja afinado com o seu tempo, com o sujeito e as formas de identificação deste. Que reconheça outras formas de textos que não apenas o verbal e, portanto, várias possibilidades de leitura. Que trabalhe com uma concepção de linguagem, como meio de interação e como heterogênea, que significa considerar o esfacelamento do sujeito e a polifonia de vozes na voz, aparentemente única, de qualquer indivíduo ou de qualquer texto. O que nos remete sempre à noção de intertexto e de interdiscurso como constitutivos da textualidade. Portanto, nessa perspectiva, a leitura não seria uma atividade simplesmente linear e racional. Talvez, essa nova perspectiva responda à pergunta suscitada por Silviano Santiago, no livro O cosmopolitismo do pobre, no item Intensidades discursivas, no qual ele trata da seguinte questão: _ O que não se presta mais como concepção de leitura para a pós-modernidade? E responde: a leitura apenas como decodificação! E, novamente se pergunta e lança-nos, seus leitores, a mesma questão: _ O que significaria ler nos dias de hoje?
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Mas adotamos na conceituação de leitura na perspectiva da pós-modernidade não apenas o processo discursivo, como também a leitura figurando como processo virtual. Resta-nos dissertar a esse respeito. Uma das marcas mais típicas da pós-modernidade é a grande inovação e presença das tecnologias de informação e de comunicação (TICs) na nossa vida. Uma nova escrita surge daí e, aparentemente, novas maneiras de se nela penetrar. Uma leitura, diz-se, alinear, não hierarquizada, arborecente, em cascata, leitura de verdadeiros hipertextos. No universo multimídia, diz-se que o leitor é um coautor do texto, pois este escolhe por onde navegar, o que “implodiria” a noção de autoria, entendida como se referindo a um único responsável pelo que está escrito. Teoricamente, não há um rumo certo, uma linearidade ou hierarquia, mas sim diversas virtualidades que o sujeito-leitor, aqui chamado de navegador, poderá construir pela seleção sequencial de links. Diríamos, com base em Mota (2001), que essa é uma forma de ler bastante antiga (alinear e não hierarquizada), como a leitura da própria Bíblia, por exemplo – com sua organização em capítulos e versículos, que possibilita o trânsito livre entre as diversas unidades do texto, perpassados, muitas vezes, randomicamente. Além disso, essa hipótese de inovação se assenta sobre uma concepção muito restrita de leitura – tomada como decodificação ou como compreensão – já mencionadas. A leitura como prática discursiva, enxerga esse esfacelamento do texto e nela o sujeito-leitor atua efetivamente como um coautor do texto, na medida em que toda leitura configura um novo texto, pois toda leitura é um novo gesto de interpretação e de reconstrução da textualidade. Para Coracini (2005, p. 36), as noções de incompletude do texto, heterogeneidade e de autor enquanto instância meramente jurídica, responsável apenas pela organização singular do texto, não constituem prerrogativas do hi103
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pertexto, pois já se fazem presentes na perspectiva discursiva-desconstrutivista. É preciso, entretanto, observar que não se trata, nos dois casos, da mesma concepção de incompletude e de heterogeneidade: no caso da análise do discurso, a incompletude e a heterogeneidade são constitutivas de todo e qualquer texto, o que equivale a dizer que nenhum texto é uno [...] o texto escrito esconde [...] o interdiscurso, rastros de outros dizeres e que, vez por outra, emergem no intradiscurso. As novas TICs ajudam, portanto, a configurar também um novo ambiente no qual os sujeitos-leitores encontram os textos em circulação, bem como novos formatos textuais e que, por seu turno, podem ser acessados de maneiras diferenciadas das anteriores, diferentes dos textos em circulação no papel, por exemplo. No entanto, talvez pela incipiência dessas novas configurações, que figuram nas novas condições de produção da leitura, muitas questões têm sido levantadas como sendo novidades exclusivas da textualidade digital, pregando, muitas vezes, a ruptura entre o digital e o impresso, e, incorrendo, até mesmo em alguns casos, em uma certa confusão conceitual quando nomeiam toda essa textualidade como hipertexto. Ainda, talvez tão perigoso quanto essa confusão, em nosso entendimento, seja a tendência de alguns estudos isolar tal textualidade das demais e de seu entorno sócio-histórico e cultural, descontextualizando-a ou descontextualizando o leitor que se ocupa dessa manifestação de linguagem, mediada pelas novas TICs. A fim de delimitar o escopo em que aqui trataremos a textualidade digital, delimitamos que, além de ser aquela presente na tela do computador, trataremos especificamente do hipertexto na internet, tendo em vista a sua maior inserção na vida das pessoas na atualidade e sua figuração como uma importante materialidade significante trazida pelo ambiente on-line. Será a partir dessa delimitação que poderemos pensar a circulação dos sentidos na pós104
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modernidade e as prováveis consequências sobre a leitura e, consequentemente, sobre o sujeito-leitor. Vemos, ainda, no hipertexto e em suas peculiaridades uma nova possibilidade de pensar a relação autor-leitor-texto. Quando falamos em textualidade digital é comum a associação com o termo hipertexto, todavia, alertamos que nem todo texto presente em ambiente eletrônico é um hipertexto. Um documento escrito no word, por exemplo, sem a adição de qualquer hiperlink que o vincule a uma rede conectiva com outros textos, mesmo que figure na World Wide Web (www ou web), não configuraria um hipertexto. Tal texto não ofereceria percursos “previstos” de leitura, sinalizada pela adição de hiperlinks, e, uma vez que fosse aberto na tela do computador, a única maneira de retornar a um caminho na web seria através da seta de retorno. Decorre daí que os hiperlinks, que são elementos que ajudam a caracterizar os hipertextos, precisam apresentar uma função textual e não apenas de navegação para dessa forma caracterizar o hipertexto digital. Sendo assim, podemos depreender que nem todo texto digital é um hipertexto. No que se refere à questão da ruptura entre impresso e digital, não negamos que as diferenças existam, ou mesmo sugerimos que todos os estudos centrados na explicitação dessas diferenças sejam desprovidos de valor. Antes, cremos que é normalmente pela via do contraste que se pode melhor perceber onde estão as convergências e as divergências de um determinado objeto. Afinal, é pela diferença que se pode conhecer e estabelecer um significado. Contudo, acreditamos que o estudo do digital pode ir mais além e não deve se centrar naquilo que o aproxima ou o afasta do impresso, mas nas maneiras como faz serem integradas ou agenciadas mutuamente às modalidades – oral e escrita, visual e verbal e etc. –, as tecnologias e os usos da linguagem. Estendemos a essa questão o argumento usado por Santaella, quando comenta a respeito do pensamento de
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Kerckhove (1997), referindo-se à ruptura da era impressa com a digital: [que embora o autor(a)] tenha razão quando afirma que, quando uma nova tecnologia de comunicação é introduzida, lança uma guerra não declarada à cultura existente, pelo menos até agora, nenhuma era cultural desapareceu com o surgimento de outra. (SANTAELLA, 2003, p. 78) Santaella (2003, p.77) cita seis eras culturais: oral, escrita, impressa, de massa, das mídias e digital, mas acrescenta que a era cultural anterior, sofre reajustamentos no papel social que desempenha, mas continua presente. Não se trata, portanto, da passagem de um estado de coisas a outro, mas muito mais de complexificação, do imbricamento de uma cultura na outra, uma “multiplexidade”, para usarmos a expressão de Poster (1995: 21), de diferentes princípios em um mesmo espaço social. (SANTAELLA, 2003, p. 78) Tendo por base que a escrita não fez sucumbir a oralidade nos processos informativos e comunicativos, mas tornou essas relações mais complexas, possibilitando, por meio da escrita, um maior distanciamento espaço-temporal entre indivíduos e os fatos; e depois, que a impressa não fez desaparecer o escrito à mão, mas possibilitou maior disseminação da escrita na sociedade e com ela a divulgação mais rápida de muitos textos e, consequentemente, da leitura. Assim, também, pensamos que o hipertexto não promove uma ruptura do impresso com o digital, uma vez que enxergamos esse relacionamento em termos de complexificação, tal qual postula Santaella. No entanto, concordamos que o hipertexto, assim como os textos “tradicionais”, está sujeito às limitações e possibilidades inerentes ao meio no qual são configurados. Sem perder de vista, contudo, que o espaço (ciberespaço) significa, tem materialidade e não é indiferente em seus distintos modos de significar. 106
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De acordo com Braga (2005), tomando como orientação os estudos realizados por Burbules e Callister (2000), o hipertexto é uma continuidade do texto impresso, uma vez que recupera e expande formas de relações inter e intra-textuais já explorada nos textos impressos. As expansões ou os links de um hipertexto lembram, de certo modo, as notas que os autores incluem nos textos, ou as referências explicitamente feitas a outros estudos. (BRAGA, 2005, p. 759) Todavia, segundo a autora, há uma diferença fundamental: na tela, essas ligações vão além de expansões e passam a ser centrais na estruturação do texto (Cf. BRAGA, 2004, p. 146). Nesse ínterim, elegemos a consideração de Xavier a respeito do que ele toma como hipertexto, no âmbito do trabalho de pesquisa realizado por ele, como aquela que melhor se aplica a nossa discussão. Xavier denomina hipertextos, os dispositivos “textuais” digitais multimodais e semiolinguísticos (dotados de elementos verbais, imagéticos e sonoros) que estejam on-line, isto é, os que estejam indexados à internet, reticuladamente interligados entre si. (XAVIER, 2002, p. 26) aspas e parênteses do autor Portanto, é essa perspectiva de hipertexto, indexado à internet, no qual convergem em sua superfície várias manifestações semióticas que melhor atende aos estudos da leitura como processo virtual. Ainda que alguns estudiosos apresentem a distinção entre hipertexto e hipermídia – este último se referindo aos conglomerados de informação multimídia [ou seja, mistura de áudio, de vídeo, de dados] de acesso não sequencial, navegáveis através de palavraschave semialeatórias – como é o caso, por exemplo, de Santaella (2003) para quem o primeiro seria fundamentalmente composto por segmentos verbais e o segundo referir-seia a textos hipermodais. 107
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De acordo com Xavier, é no hipertexto, vinculado à internet, que a tecnologia de informação se materializa digitalmente: “é ele que aglutina os dados compostos em formato de textos, imagens e sons produzidos pelos cidadãos pós-modernos em um mesmo espaço de leitura e interpretação, a tela do computador” (XAVIER, 2002, p. 36). Para o pesquisador, o funcionamento do hipertexto materializou a agenda da pós-modernidade. Tal consideração é feita por Xavier em concordância com o pensamento dos teóricos do hipertexto citados por ele – Landow (1992), Bolter (1991), Tuman (1992) e outros – a respeito de haver uma conexão entre hipertexto e a crítica pós-moderna. Segundo esses autores, conforme propõe Xavier (2002, p.36), “é necessário abandonar o sistema conceitual baseado nas ideias de centro, margem, linearidade, para dar lugar a multilinearidade, aos nós, às ligações e às redes”, condições e possibilidades apresentadas pela pós-modernidade. E nesse âmbito, o hipertexto seria a materialização dessa reinvindicação. No caso do hipertexto, trabalha-se com textos que remetem a um mesmo autor ou a diferentes autores; sua incompletude é visível, isto é, o texto aqui é forma que aponta para alguns sentidos possíveis, autorizados pelos excertos, que, evidentemente, assumem significados diferentes conforme a combinação feita através do acionamento de um ícone ou uma tecla, por exemplo. Trata-se, portanto, de textos ou de fragmentos textuais que se somam, cada qual constituindo uma unidade em si. Aqui é o meio que permite, por opções sucessivas, combinar textos de modo a construir sempre textos diferentes. Entretanto, a função do sujeito-leitor como aquele que constrói sentidos permanece. O que muda, no caso do texto/papel e do texto/tela, é, muito possivelmente, a relação do sujeito com o texto, seja na atividade de produção, seja na atividade de leitura. Considerações Finais Portanto, no diálogo entre pós-modernidade, sujeito e leitura verificamos que há muitos pontos de encontros e 108
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que todos, por serem constituídos pela linguagem, apresentam as mesmas afetações e intercâmbios. Se, como depreendemos a partir das propostas de Coracini (2001; 2005), ler é saber que o sentido é em meio a outros, precisamos considerar que, na pós-modernidade, os caminhos para esses outros também circulam em outras conjunturas da significação, na textualidade digital. Além disso, o sujeito-leitor, ao ler, produz sentidos possíveis para uma textualidade, seja ela impressa ou digital, sendo orientado pelos processos não só sócio-históricos e ideológicos, mas também pelos processos identitários. Tal sujeitoleitor é posicionado pelas injunções discursivas que o envolvem e inscrevem-no historicamente na digitalidade crescente contemporânea. Todavia, sabemos que a realidade do acesso às TICs ainda é restrita a uma parcela da população, enquanto boa parte ainda figura à margem do letramento tecnológico. Em um tempo em que, segundo Bauman (2001), são as inovações nos softwares que processam a modernidade líquida, fase correspondente à pós-modernidade para outros autores, ainda encontramos, por exemplo, muitas escolas que não apresentam hardwares básicos – como bibliotecas e computadores – em suas instalações. Fato que configura um cenário, no mínimo, desafiador para a inscrição dos sujeitos na digitalidade apontada, pois, para muitos, seria a escola a mediadora desse processo.
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Livro impresso em setembro de 2012, por encomenda da Aldrava Letras e Artes, nas Oficinas da Grรกfica e Editora O Lutador.
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