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1. INTRODUÇÃO

Para se discutir a respeito da metrópole contemporânea, devese considerá-la como um novo cenário, marcado por um espaço social muito mais diversificado e desterritorializado do que o espaço social de séculos anteriores. Nas últimas décadas do século XX, os processos de industrialização, globalização e urbanização, moldaram a cidade, criando novas formas espaciais urbanas que, por vezes, descaracterizam áreas e justapõem no mesmo território a cidade global e a local. Diversas foram as intervenções e programas urbanísticos de grande impacto que, além de criarem uma paisagem genérica e guiada por interesses econômicos, também instauraram normas e modos de apropriação do espaço que revelam um cotidiano controlado, com usos pouco flexíveis. Tais intervenções urbanas priorizaram a escala global, a cidade capital e suas lógicas neoliberais, somando a isso uma lógica funcionalista que visa a rapidez na locomoção, sendo esta majoritariamente veicular. Como resultado, surgem espaços que não criam identidade nem atendem às demandas locais, ocasionando em uma espacialidade que não expressa a cidade viva, humanizada.

A respeito do espaço urbano contemporâneo, Marc Augé (1994) afirma que a supermodernidade produz figuras de excesso, que para ele seria a superabundância de tempo e de acontecimentos, superabundância de espaço potenciada pela onipresença de eventos trazidos pela comunicação social; individualização de referências resultantes da interpretação que cada indivíduo faz continuamente a partir das informações de que dispõe. Reafirmando as ideias de Auge, Sá (2006) defende que a sociedade atual se caracteriza pela velocidade (tempo), pelo consumo (indivíduo), que se materializa por meio dos nãolugares (espaço). Alteram-se as vivências, que passam a ser mais impessoais, funcionalistas e objetivas. Agora elas são do tipo meio-fim, onde os espaços ‘entre’ não interessam, o que importa é o ‘fim’ onde se pretende chegar. Essa é a nova lógica do indivíduo na sociedade contemporânea, a velocidade de comunicação que acompanhou a velocidade também nos deslocamentos. Hoje o que se objetiva é, basicamente, ir de um ponto ao outro, o mais rapidamente possível e sem obstáculos.

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O não-lugar é um termo conceituado por Augé (1994), e se relaciona diretamente com as figuras de excesso já mencionadas. O não-lugar seria exatamente o oposto ao lugar antropológico, que é identitário, histórico e relacional. O não-lugar inibe relações mais estreitas e vínculos de identidade com o local. O autor exemplifica de modo empírico os não-lugares, citando as zonas de circulação (autoestradas, vias aéreas, viadutos etc.), espaços de consumo (centros comerciais, cadeias de hotéis, etc.) e de comunicação (televisão, telefonia etc.). Para o presente trabalho, pretende-se focar nas zonas de circulação e seus espaços colaterais (CAMPOS, 2008), ou como também são chamados, espaços residuais (TEIXEIRA, 2006).

Nessa lógica, os não-lugares representados pelas grandes zonas de circulação permitem o surgimento desses espaços residuais, que seriam áreas vagas resultantes dos processos de ocupação e dos projetos de infraestrutura desenvolvidos de modo funcionalista, que pouco dialogam entre si e com o contexto em que se inserem. Tais espaços residuais também podem ser considerados como vazios urbanos, um termo ainda mais amplo, discutido e conceituado por diversos teóricos, como Ignasi de Solà-morales (2002), que os denomina Terrain Vague, e os define como locais aparentemente esquecidos, obsoletos, locais externos às atividades da cidade, como o exemplo da Figura 1.

No entanto, ao mesmo tempo em que os não-lugares permitem esses espaços residuais, também pode-se considerá-los como vazios úteis flexíveis na paisagem contemporânea (TEIXEIRA, 2006; SOLÁ-MORALES, 2002; CONTI et al., 2004). Eles instigam a exploração de novas possibilidades de ocupação, seja através da instalação de equipamentos culturais, educacionais, comerciais, habitacionais, seja como ampliação de espaços públicos de lazer e áreas verdes, como mostra um exemplo de Manhattan na Figura 2. Toda essa discussão relaciona-se diretamente com a área de estudo deste trabalho, uma vez que se trata da regeneração do baixio e entorno não edificado que circunda a Ponte da Passagem, bem como o da passarela de pedestres. Dessa maneira, o presente trabalho reconhece a área como um não-lugar na cidade de Vitória, visto que as intervenções urbanísticas realizadas na região visaram exclusivamente melhorias viárias, objetivando facilitar o fluxo de automóveis, 10

aumentando a velocidade. Isso também reflete a sociedade atual, marcada pela rapidez nas trocas de informações, e contato entre pessoas, mesmo que isto ocorra de maneira indireta. Entretanto, tais intervenções desconsideraram todo o contexto histórico e local da região, não a readequando ao entorno imediato, nem propondo um desenho urbano que permitisse usos por moradores, deixando a área como apenas um local de passagem, e em estado de abandono, um verdadeiro “vazio” urbano, ou como também pode-se chamar, um não-lugar.

Figura 1-Terrain Vague no Marrocos

Fonte: Nico, em Flickr, 2009. Figura 2-Skate park sob a Ponte Brooklyn, em Manhattan

Fonte: Kellan Vincent, em Land8.com, 2009.

1.1 Objetivo

Considerando o não-lugar um desafio urbano da cidade supermoderna, ou pós-moderna, este trabalho tem como objetivo principal o projeto de regeneração urbana no espaço não construído adjacente à Ponte da Passagem, bem como seu baixio. Ou seja, um projeto de melhoria do desenho urbano, para a criação de um espaço livre público, reformulando esse espaço residual, integrando-o à chamada cidade ‘formal’, consolidada e já estruturada. Pretende-se então requalificar tal área, que hoje encontra-se marginalizada e sem vitalidade, de forma a ocupar esse espaço com atividades flexíveis, que atendam a um público variado e em horários distintos, favorecendo um uso mais ativo e dinâmico, e permitindo mais conforto e segurança aos que percorrem o local.

Pretende-se revelar o potencial de ocupação desse espaço residual, readequando-o ao seu entorno imediato e atendendo às demandas locais, sempre valorizando as pessoas e suas relações. Ao mesmo tempo, este trabalho objetiva ser um exemplo para futuros projetos e estudos em relação ao local ou áreas afins. Por fim, o resultado que se pretende é um projeto que considere um espaço público de qualidade, um lugar que possa permitir a interação e apropriação pelos moradores da cidade, estimulando a vivência e trocas sociais. Objetivos específicos:

• Melhorar o desenho urbano local; • Criar espaço livre público de qualidade, priorizando as pessoas; • Propor atividades flexíveis e dinâmicas; • Integrar um espaço residual (não-lugar) à cidade ‘formal’; • Permitir interação e apropriação pelos moradores; • Revelar o potencial de uso e ocupação da área.

1.2 Justificativa

O espaço público contemporâneo é resultante do planejamento Moderno, porém, os ideais modernistas não se encontram aplicados na prática. O que se percebe é uma negação do ideal moderno, que seria caracterizado pela circulação livre de pessoas e também veículos, com ruas abertas e uso espontâneo do espaço público por diferentes grupos sociais, observando e divertindo-se (CALDEIRA, 2000). Dessa maneira, nas metrópoles contemporâneas os espaços públicos que vêm sendo criados assumem como valores predominantes a desigualdade e a segregação. Os espaços apresentam-se cada vez mais impessoais, voltados ao consumo e rápida circulação. Além disso, constantes investimentos em infraestrutura viária e priorização do tráfego de veículos resultaram em espaços residuais urbanos, áreas vazias e descaracterizadas. Essas transformações alteram o sentido tradicional de lugar nas ruas e nos espaços públicos, reduzindo as experiências e trocas sociais, uma vez que negam o espontâneo, a improvisação, os

encontros e conflitos cotidianos, estes que criariam pontos de referência na cidade (CARLOS, 2001), parte fundamental das relações interpessoais. Os lugares passam a ser padronizados e não ‘identitários’, impessoais, de passagem, caracterizados pela rápida circulação. Nesse contexto surgem os não-lugares e seus espaços residuais, onde se enquadra o entorno da Ponte da Passagem, configurando-se em um ‘não-lugar’ urbano. Historicamente, o entorno da Ponte da Passagem era visto como saída da cidade de Vitória, e por muito tempo apresentou uma imagem mais industrial, tendo alguns galpões. Porém, hoje essa área encontra-se em uma localização estratégica e privilegiada, próxima à nova centralidade do município, conectando-se a bairros residenciais de relativa densidade, e edifícios institucionais relevantes, além de fazer parte de importante eixo viário. Sua funcionalidade foi levada em consideração em todos os projetos ao longo dos anos, mas pouco se pensou a respeito de seu contexto espacial e histórico, dos aspectos naturais bem como no grande número de pessoas que todos os dias percorrem o local. O que se percebe então é uma área bastante percorrida diariamente, chegando a momentos de pequena desordem, mas que se encontra mal adaptada às pessoas, à escala humana, com escassos espaços de permanência, além de precárias travessias e caminhos para pedestres.

O local hoje, apesar de ser bastante percorrido, ainda é um estigma para a cidade, sendo visto por muitos como local violento e inseguro. Tais preconceitos relacionados às áreas de baixio de pontes e viadutos servem de estímulo para estudos 12

como este, que explorem novas possibilidades e instiguem novos olhares. Além disso, existe um problema social relacionado às pessoas em situação de rua que se abrigam sob a Ponte da Passagem, sendo a maioria usuário de drogas que não tem mais vínculos familiares e se apropriaram da área, utilizando-a como abrigo. Dessa maneira, o espaço encontra-se em estado de abandono (Figura 3) onde não há usos atrativos aos moradores da região, caracterizando-se como um lugar mais de passagem. Reforça-se com isto a necessidade de melhoramento dos percursos de pedestres, além da importância de alterar essa visão estigmatizada do local, que é tido como marginalizado.

Sendo Vitória uma cidade relativamente pequena, e onde há uma carência de espaços públicos de qualidade, o entorno da Ponte da Passagem mostra-se um espaço de grande potencial construtivo, podendo ser melhor aproveitado. Ou seja, o local apresenta potencial para uma ocupação planejada, podendo ser integrado à malha urbana, o que permite a criação de novos espaços voltados ao lazer, práticas esportivas, áreas verdes, espaços de vivências, entre outras possibilidades.

Figura 3-Baixio da Ponte da Passagem

Fonte: Fernando Madeira, em Gazeta online, 2014

Figura 4- Ponte da Passagem

Fonte: Elizabeth Nader, 2013.

Além disso, estando em contato com o Canal da Passagem e parte da área de manguezal que limita a Universidade, como mostra a Figura 4, também deve ser ressaltado o valor dessa área do ponto de vista da paisagem natural, que possui potencial ecológico, e também turístico, onde o contato com a água permitiria maior interação entre pessoas e natureza. Nesse mesmo aspecto, vale a pena ressaltar que sendo Vitória uma ilha, ainda existe a potencialidade do Canal da Passagem como hidrovia, o que futuramente pode transformar o local em nó de transição para outros meios locomotivos, com terminais, o que aumentaria a movimentação de pessoas no local. Portanto, faz-se necessária a regeneração dessa área que, como muitas outras pela cidade, encontra-se tão abandonada e marginalizada, para que ela possa ser o palco de novas situações participativas, oferecendo um novo leque de possibilidades à cidade, especialmente do ponto de vista social, cultural e ecológico. Com isso, pode-se demonstrar, especialmente ao poder público, que se propondo usos claros, dinâmicos, e adequados às demandas locais, mesmo áreas ociosas e degradadas também podem ser objeto de planejamento, podendo assim ser integradas funcional, socialmente e ecologicamente à cidade “formal”.

1.3 Metodologia

Os métodos que foram utilizados para a realização deste trabalho são diversificados, e dividem-se em dois grandes grupos. O primeiro grupo é formado pela revisão bibliográfica e levantamento histórico, onde foram feitas pesquisas em livros, artigos científicos, anais de encontros acadêmicos, revistas científicas, dissertações de mestrado, teses de doutorado, além de buscas pela internet em sites de credibilidade. Também foram levantados documentos e arquivos, como bases digitais ou mapas, e foram levantados dados históricos e demográficos na Prefeitura do Município de Vitória. O segundo grupo baseia-se em um levantamento da área, caracterizando sua estrutura física e aspectos urbanísticos, onde foi levantado o mobiliário, conformação do espaço e sua inserção na malha urbana, vegetação, pavimentações e acessos, identificação dos principais usos e percursos, além de equipamentos importantes no entorno. Para isso, realizaramse visitas ao local com pesquisa por observação em horários e dias variados, com anotações, fotografias sequenciadas, mapas que ilustram empiricamente fluxos e atividades realizados no local e desenhos a mão para registro de informações. Também foram realizadas entrevistas semiestruturadas para conhecimento das demandas, anseios e percepções de frequentadores e 13

moradores da região; foi feito contato com o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), para melhor conhecimento e entendimento das pessoas em situação de rua que estariam sob o baixio da Ponte atualmente; outras informações a respeito do local foram levantadas por meio de dados e mapas, que tiveram como fonte a Prefeitura Municipal de Vitória.

1.4 Estrutura

Este trabalho encontra-se estruturado em cinco capítulos, sendo este primeiro a Introdução, na qual apresenta-se o objetivo específico do trabalho, a justificativa, reforçando a importância de estudos como este. Em seguida apresenta-se a metodologia e os métodos a serem empregados para a obtenção de informações em relação ao local e às pessoas que dele fazem parte, percorrendo-o ou se apropriando deste. O Segundo capítulo tem como grande tema a Supermodernidade, também considerada por outros autores como pós-modernidade, e seus conceitos. Inicia-se com um breve histórico da cidade moderna e suas intervenções urbanas, ressaltando as influências e legados para a cidade contemporânea. A partir dessa contextualização, busca-se definir o que seriam os lugares e não-lugares no espaço urbano atual, principais autores que abordam o tema, exemplos e suas implicações nas relações sociais. Também se conceitua o termo “vazio urbano”, relacionando-o aos espaços residuais e aos não-lugares, procurando estabelecer uma clara relação entre esses conceitos, para melhor entendimento desses espaços. E concluindo o capítulo, pretende-se discutir a respeito do espaço público hoje, e 14

quais seriam os novos paradigmas que norteiam o planejamento urbano atual. Também serão apresentados novos olhares em relação aos espaços residuais, mais especificamente os baixios de pontes e viadutos, demonstrando por meio de exemplos de ocupações e apropriações, espontâneas e planejadas, e novas soluções em estudos de caso que mostrem como esses espaços podem ser aproveitados e reintegrados à cidade “formal”. Por fim, deve-se conceituar o termo ‘regeneração’ urbana, para entender melhor como este conceito se enquadra no presente estudo, explanando de maneira breve a respeito de outros termos muito utilizados para designar outros tipos de intervenções urbanas. No terceiro capítulo tem-se a elaboração do projeto, focando na área de estudo, sua história, evolução urbana, contexto geográfico, pessoas que percorrem o local, ou que deste fazem uso, apropriando-se, enfim, do levantamento de dados sobre a área, para a elaboração do diagnóstico, que por sua vez permitirá a elaboração das diretrizes para o projeto. Concluindo este capítulo, serão apresentados desenhos de planta, perspectivas e mapas com o partido do projeto e novas propostas para o local. Por fim, têm-se as considerações finais do trabalho, com reflexões e conclusões sobre o tema, onde se pretende discutir a respeito da transformação que se propõe para a área, suas possíveis mudanças socioambientais, e contribuição do presente trabalho para a sociedade.

“O mundo da Supermodernidade não tem as dimensões exatas daquele no qual pensamos viver, pois vivemos num mundo que ainda não aprendemos a olhar. Temos que reaprender a pensar o espaço” (AUGÉ, 1994, p. 38)

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