Reportagem cancer

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Câncer: um velho conhecido da ciência que ainda mata como se fosse novidade Apesar das dicas de prevenção espalhadas ao redor do mundo há décadas, o câncer continua matando em grande escala, alcançando a marca de 8,2 milhões de mortes em 2012, três vezes o número da população do Uruguai, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Ainda que a ciência não tenha encontrado um método certeiro de tratar o mal, e a população persista em contrariar os cuidados básicos para evitalo, casos de superação permeiam essa realidade que ainda assola a humanidade. Ele era zagueiro. Daqueles de toque refinado e desarme fácil. Marcou Romário, em pleno Maracanã, em uma Copa do Brasil lá na década de 90. Até que em 2010, Marcio Assis foi driblado pelo câncer, um adversário cruel e decisivo que estava pronto para liquidar com o jogo que é sua vida. Frente a frente com a meta, a doença esbarrou na operação de um milagre, executado em conjunto pela família, amigos e a medicina. Chamado de Linfoma Hodgkin pelos especialistas, o câncer que afeta o sistema linfático humano foi diagnosticado no hoje padeiro Márcio, em meados de 2009, quando ele foi submetido à cirurgia para retirada de nódulos no intestino delgado. Acompanhado pelo amigo Marcelo Lopes, 40 anos, no dia da operação, Márcio rumava em direção aos mais longos meses de sua vida dentro da Santa Casa de Misericórdia. “Caminhei pelo corredor que levava para a sala de cirurgia e, quando olhei para trás, fiquei imaginando se algum dia veria novamente aquele cara”, lembra ele. Após vários procedimentos cirúrgicos e processos de recuperação do organismo, que o mantiveram em coma induzido por dois meses, o ex-atleta voltava a ter consciência, depois de ser dado como morto pelos médicos por duas vezes seguidas. Mas os indícios de boas notícias tomaram ares de preocupação, quando uma bactéria novamente o colocou em situação crítica, fazendo-o ter forte observação por tempo indeterminado. Dali em diante, o complexo hospitalar tornou-se sua casa por mais tempo do que era previsto: sete meses. Preso ao leito, o paciente começava outra batalha de sobrevivência, porém psicológica. A saída foi criar um diário de bordo. “Um psicólogo me visitava, me dizia para escrever sobre tudo. Sobre o que eu pensava, sobre meus dias. Foi uma grande ajuda”, relata Márcio, mostrando o caderno onde constam suas anotações e reflexões sobre as dificuldades pelas quais passou. Quando o destino parecia conspirar a seu favor, uma nova notícia abalou as expectativas de todos. Um fungo, que segundo ele, “ninguém sabia onde estava”, atrasou o retorno do paciente para casa, submetendo-o a outros


exames para combatê-lo. Somente após dois meses o problema foi localizado e tratado, deixando-o pronto para, finalmente, regressar para casa.Márcio faz acompanhamento médico a cada seis meses. Toda vez que vai ao hospital, procura se reunir com os médicos e enfermeiros que cuidaram dele. Entre uma boa lembrança e outra, o grupo repõe a energia degustando um pãozinho feito por ele, afinal, não é sempre que se vence a morte no cansaço. Fé para suportar o momento mais difícil Na véspera do natal de 2009, o seu filho menor, Andrey, na época com nove anos, estava ansioso pela volta do pai. “Ele disse que ia me esperar para montar a árvore de natal”, lembra Márcio com emoção. As palavras trouxeram a Marcio o impulso que faltava sair do hospital. De volta ao lar, após conseguir liberação para deixar o complexo no dia 25, novas complicações o forçaram a retornar para a Santa Casa na mesma noite. “Naquele dia eu achei que ia morrer”. Nos momentos que antecederam a saída de casa, o filho desceu as escadas e entrega um presente ao pai. Era uma pulseira, feita de papel, com amarras de fita crepe. Nela, continha uma mensagem escrita à mão, com letra de criança, que faria Márcio brigar pela vontade de viver. “Tenha esperança e fé em Deus. Tudo vai dar certo”. Fé para acalmar o coração de quem fica Grande parte das histórias, cujo personagem principal é o câncer, não têm o mesmo final feliz como o de Márcio. Assim como ele, a fé foi o único medicamento encontrado para dar forças e acalmar o coração de Maria Simone Batista, 48 anos, que perdeu o pai, João Armindo Hinrichsen, há sete anos, vítima de câncer de pulmão. Nos 65 anos em que esteve vivo, fumou por 40. Filho de imigrantes alemães fugidos da II Guerra Mundial, o pai de Simone praticava hábitos comuns e nocivos para a saúde em uma época que tais atitudes eram normais. Quando faleceu em 2008, o câncer de pulmão já era uma das principais causas de morte passíveis de contenção. Ainda assim, o aposentado da empresa Taurus fez parte do grupo de 7,8 milhões de mortos por câncer no mundo naquele ano. No Brasil, em 2011, o número de mortes por consumo de derivados do tabaco era superior a 24 mil, segundo o Instituto Nacional de Câncer (INCA). “Sofremos muito. Mas o sofrimento de ver ele incapacitado pela doença era maior”. Esse era o quadro físico de João Armindo, relatado por Simone, na fase final da doença. Incapaz de se locomover sozinho, menos ainda de realizar movimentos para executar as necessidades básicas, como ir ao banheiro e lavar-se, o aposentado não aguentou as investidas da doença e teve o falecimento decretado em agosto de 2009.


Enquanto desliza a parte afiada da faca pela superfície das batatas, a fim de descascá-las para o almoço, a filha relembra que esse era um hábito comum do pai. “Ele que me ensinou a fazer isso. Antes, era ele quem tirava as cascas das batatas. Minha mãe não sabia fazer isso direito”, relembra, quando de repente, o choro se mistura com as palavras, e uma espécie de lamento sai de seus lábios pedindo algo em nome do falecido pai. “Eu sei que era a hora dele ir. Deus escreve certo por linhas tortas, nem tudo é como queríamos que fosse. Sei que ele está em um lugar bem melhor do que aqui”. Simone conclui a frase ao mesmo tempo em que a panela de lentilha começa a chiar. A comida está pronta exatamente às 12h30, horário que João Armindo acostumou todos a almoçar. Fé para ajudar a medicina Acostumada a lidar com a doença do lado de fora, a médica Ana Cristina Rocha, 49 anos, luta há 4 contra o câncer de mama. Nem todo o conhecimento medicinal agregado por Ana na longa carreira como nefrologista foi suficiente para evitar o surgimento do malefício. Apesar de possuir um dos melhores prognósticos, quando diagnosticado e tratado oportunamente, o INCA registrou mais de 13 mil mortes em 2011, causados por complicações na mama feminina. Já sem um pedaço do seio direito, depois da retirada de uma parte do tumor, e com diversas sessões de quimioterapia anotadas na agenda, “Aninha”, como é conhecida pelos amigos por conta de seus 1,54m, busca no irreal uma ajuda divina para lidar com o problema que já está em estágio avançado. “Passei a frequentar a casa espírtia e estudar mais o porquê disso acontecer comigo. Tenho fé no Pai para conseguir me curar”. O crucifixo pendurado junto ao peito, no entanto, mostra que Ana não tem motivos para deixar de acreditar em tudo que possa salvá-la. “Mesmo que isso seja um símbolo católico, ainda é Jesus Cristo. E ele é o mentor de muitas religiões. Uso porque me sinto segura, protegida”, explica enquanto mostra os detalhes da peça adquirida em Roma, na última viagem de férias antes da descoberta do tumor.


Ser feliz é o primeiro passo para prevenir o câncer, diz especialista “Sim. Câncer se previne.” Quem afirma é a coordenadora do Centro de prevenção de Câncer do Hospital Santa Rita da Santa Casa de Misericórdia, Alice Zelmanowicz. A instituição é referência no tratamento da doença no Brasil. Casos como o de Márcio, João Armindo e Ana começam com pequenas modificações genéticas, que organismo não consegue reparar. Quando essas alterações permanecem, temos a doença estabelecida. A porta de entrada para o tratamento pelo Sistema Único de Saúde (SUS) é a consulta em um posto de saúde. O atendimento consiste na realização de exames, diagnóstico e encaminhamento a uma unidade de maior complexidade, onde o tratamento terá início. Para que não se chegue nesse estágio, existem duas formas de agir. “Campanhas de combate ao tabagismo e educação alimentar nas escolas são exemplos de ações preventivas”, explica a médica enquanto mostra um quadro ilustrado de bons hábitos, pendurado atrás de sua mesa no escritório. Outra ação é a retirada dos fatores de risco do cotidiano. Programas contra o fumo, a obesidade e campanhas contra um estilo de vida sedentário melhoram a qualidade de vida e afastam possíveis doenças. “Até mesmo com histórico familiar de adoecimento é possível reduzir os riscos de um câncer hereditário,” conta ela, deixando claro que não há uma forma mágica de combater o mal. Entretanto, Alice, com a experiência proporcionada pelo contato diário com pacientes de diferentes idades, cores e situações sociais, conta o principal segredo. “Pessoas felizes adoecem menos e quando adoecem se recuperam melhor”. Além da fé, que move montanhas e opera milagres, ela indica que é preciso ter sempre a mente tranquila para trabalhar em busca da cura. “Qual o primeiro passo para evitar qualquer mal, doutora?”. Seja feliz”.


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