o lado escuro do desejo

Page 1

O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

O LADO ESCURO DO DESEJO MICHELLE REID Título Original: Dark sede of desire

RESUMO – Durante dez anos, Rebecca voltou as costas ao passado, decidindo aceitar a traição de Jay Lorence e começar uma nova vida. Mas agora, nada podia afastá-la do leito de sua mãe; nem sequer para enfrentar Jay de novo... depois de tudo, ele jamais se incomodou em averiguar o que aconteceu a adolescente que fugiu de Thornley, jurando nunca retornar, nem como sobreviveu a garota cujo amor e confiança ele rejeitou com tanta crueldade...

Capítulo 1 REBECCA seguia olhando a coluna do jornal estendido na frente dela. Via-se pálida e vulnerável, tanto que parecia que se partiria em dois se alguém a tocasse. —O que vai fazer? —perguntou Christina com voz rouca. Ainda era de manhã. O trabalho do dia mal começava. Através da porta fechada de seu pequeno escritório, Rebecca podia ouvir o tradicional barulho de várias máquinas de costura, misturado com a palestra de suas cinco empregadas, discutindo as fofocas cotidianas. —Não sei —respondeu, sem afastar a vista do jornal onde um anúncio emoldurado a ameaçava, saltando para ela com suas letras escuras que diziam: Pode a senhorita Rebecca Shaw, cujo último domicílio conhecido foi na cidade de Thornley, em South Yorkshire, entrar em contato com este número de telefone, o mais rápido possível, já que sua mãe está gravemente doente? 1


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

—Não! Não o farei! Não sei como se atrevem a me sugerir isso. Voltou-se de repente, para contemplar pela janela a cinza paisagem invernal, enquanto os gritos agudos da desesperada e assustada adolescente de dezesseis anos ressonavam em seus ouvidos, apesar dos dez anos que transcorreram desde que os emitiu. Fazia um frio espantoso lá fora, o cruel vento do norte varria a neve, convertendo-a em pó. E uma mulher idosa, lutando por caminhar na rua, carregando sua cesta do supermercado, parecia gelada até os ossos. Rebecca permaneceu, com a mente em branco, imóvel, de repente um menino apareceu na esquina pedalando em sua bicicleta, com a cara meio coberta pelo agasalho impermeável. Sorriu por primeira vez desde que Christina deixou o jornal diante dela. —Rebecca? Ela é sua mãe —afirmou Christina, ansiosa. —E está doente. Possivelmente tenha pedido para ver-te. Não pode ignorar seu chamado. —O fará, Rebecca, ou jamais se perdoará por isso... —Não —murmurou, ausente. —Suponho que não. —Eu me ofereço para telefonar, se quiser —sugeriu Christina. — Averiguarei quão doente está e se... —Não —Rebecca negou com a cabeça e a massa de cabelo castanho escuro se esfregou contra o pescoço de sua jaqueta. Sabia a quem pertencia esse número. Ainda depois de dez longos anos o recordava de cor. Era o número do telefone particular de Thornley Hall. Era o telefone de Jay. Sua mãe havia lhe dito: —Jay não te ama, sua estúpida. Só tomou o que você lhe entregou com tão pouca prudência. Como a maioria dos homens, aproveita-se das circunstâncias e você lhe ofereceu isso durante todo este longo verão. Rebecca se balançou; a terrível dor que a invadiu dez anos atrás, agora a sacudia com igual crueldade. Não acreditou em sua mãe, como era natural. Pois só tinha dezesseis anos e estava loucamente apaixonada, cegamente apaixonada... e também tinha medo. 2


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

Devia enfrentar-se à prova que a rasgou para aceitar a evidência. E, a partir desse instante acreditou em cada palavra dura, fria, vergonhosa. A porta da entrada se fechou e logo se escutou o ruído de uma bicicleta através do estreito corredor; Rebecca se voltou bem a tempo para ver a cara avermelhada do menino, iluminada por um sorriso, emoldurada pelo gonzo da porta aberta. —Olá, mamãe! —saudou-a, excitado. —Raios! Já viram o vento que faz? Quase me derruba da bicicleta! Algo lhe contraiu o coração, o amor inconquistável de uma mãe por seu único filho; sentiu que se esfriava por dentro e um medo, que não experimentou em dez anos, apertou-lhe a essência de sua alma. —Kit —lhe anunciou, em voz baixa, — devo sair por uns dias. Importaria-te muito ficar com a Christina e com o Tom até a minha volta? —Claro que não! —exclamou ele, entrando no quarto e enchendo-o de um sopro de ar fresco. —O tio Tom me levará para pescar se o peço de bom modo —lhe lançou um sorriso confiante a Christina, que encerrava um encanto fatal... um encanto que sua mãe reconheceu com uma dor distinta. Então o menino franziu o cenho ao voltar-se para ela: —Mas, aonde vai? Não vai procurar tecidos, não é verdade? —suspirou: —Pensei que já tinha organizado tudo para esta primavera. Rebecca aproveitou essa sugestão, agradecida de que lhe proporcionasse uma desculpa aceitável. —Sim —enviou a Christina uma mensagem com os olhos. —Sim, é isso. Li que inauguraram uns teares no Yorkshire e Christina acredita que devo investigar. —Está bem —se encolheu de ombros, incorporando essa informação a sua mente. Durante toda sua infância sua mãe tinha viajado, deixando-o com a tia Christina e o tio Tom para procurar tecidos, a preços mais baratos, para fabricar seus próprios desenhos. E seus tios gostava que os visitasse, posto que não tinham filhos, nem pensavam adotar um bebê.

3


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

—Como está de férias —interveio Christina, em tom alegre, — possivelmente poderíamos ir a um McDonald's e ao cinema uma noite, se quiser. —Perfeito, tia Chrissy —de um salto se aproximou da tia postiça e a abraçou. —Quando você vai? —perguntou a sua mãe, fazendo-a sorrir ante sua pressa por livrar-se dela. —Ainda não sei —o sorriso morreu e Rebecca teve que voltar-se para que ele não visse a melancolia que a invadia. —Mas possivelmente o faça imediatamente... depois de uns telefonemas... —Céus, olhe a hora que é! —Exclamou Christina de repente. —As empregadas começarão a gritar se não lhes servimos o chá. Vêem Kit, me ajude —ordenou ao menino; —planejaremos nossas atividades enquanto sua mãe se encarrega das suas... Rebecca o observou afastar-se, comendo-lhe com os olhos. Via o Jay, alto e forte, ao lado de Christina, na forma de seu filho, tão parecido a seu pai que se assombrava de amá-lo com loucura, apesar de que desprezava o homem que o gerou. Sentou-se diante da escrivaninha, inclinando seu rosto pálido como cera, enquanto as lembranças a assaltavam. —Maldição! —Sussurrou, desesperada. —Não podem me deixar em paz? Dez anos antes, Rebecca conheceu o Jay, enquanto tratava de converter-se em uma mulher, deixando atrás à menina selvagem e caprichosa que tinha sido. Só estava com dezesseis anos e já amava tanto a vida que essa ânsia lhe refletia no rosto, quando Jay chegou para procurá-la naquele verão fatal. Ele voltava da universidade pela última vez, a ponto de ter o diploma no bolso, impaciente por obter o posto que lhe atribuiriam, à frente do conglomerado comercial avaliado em milhões de libras esterlinas que seu pai dirigia com mão de ferro, desde o Harrogate. Proprietários de terras desde tempos imemoriais, aos Lorence eram considerados a nata da nata na localidade. Entretanto e apesar das diferenças sociais que os separavam, Jay sempre fez parte da vida de Rebecca. Jay lhe ensinou a montar, introduzindo-a a uma nova e fascinante maneira de tranqüilizar sua natureza inquieta e rebelde, enquanto 4


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

galopava através do formoso campo do Yorkshire, montada em um dos cavalos que lhe emprestava. Brindou-lhe a liberdade de escapar das restrições de uma mãe repressiva e de um pai a quem lhe importava mais o cultivo de suas rosas, que sua filha. Segundo Jay, nasceu no lugar e o tempo errados, devendo pertencer a uma tribo de ciganos, em lugar de filha de uma dona-de-casa amargurada e um jardineiro retraído. Jay sempre aparecia quando Rebecca se metia em problemas. Tirou-a do rio aquela vez em que esteve a ponto de afogar-se e a açoitou com vigor por atrever-se a nadar na correnteza durante os degelos da primavera. Apertou-a contra seu corpo, balançando-a com suavidade quando seu pai morreu de um ataque cardíaco. E também a arrancou, esperneando e gritando, do carro do Joe Tyndell, aquele verão de seus quinze anos em que decidiu que já era hora de que experimentasse o que todas suas amigas da escola sabiam... O que se sentia ao ser beijada por um homem. —Não basta que lhe considerem ingovernável, agora te propõe que te chamem de indecente? —arreganhou-a, meio puxando-a, meio arrastando-a pelo caminho que conduzia à mansão. —Só nos beijávamos, Jay —se irritou, mortificada em segredo de que seu amigo a tivesse descoberto nessa situação embaraçosa. —Uma garota tem que aprender alguma vez! Voltou-se iracundo para ela, já um homem, alto, magro e bonito de morrer. Havia lua cheia nessa noite e brilhava sobre seus cabelos negros, banhando-os de um halo prateado. Mas o que lhe chamou a atenção foi o azul de seus olhos, enquanto a percorriam, condenando-a. —Te olhe! —ordenou-lhe. —É preciso algo mais que um beijo para te desabotoar a blusa. Envergonhada, contemplou a imperfeição e comprovou que ele não exagerava. —Nem sequer usa sutiã! —mofou-se, com desprezo. —Já ninguém o usa —murmurou, à defensiva, fechando-a blusa com tanta urgência que nem sequer se atreveu a lhe sustentar o olhar. 5


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

—Algumas não o usam —a corrigiu e a surpreendeu apanhando-a pela cintura e apertando-a com furor contra seu corpo. —Se queria que lhe dessem umas aulas de amor, Becky, por que não me disse isso? afinal, eu te ensinei quase tudo o que sabe, ou não? Ainda recordava seu próprio despertar ao Jay, enquanto o contemplava nervosa e captava a irritação que o punha tenso. —Não, Jay! —protestou apenas, antes que se sumisse em um redemoinho de sensações quando sua boca morna cobriu a dela. Nada... Nada em sua aventureira vida de quinze anos a preparou para o que aconteceria essa morna noite de lua cheia. Não estava preparada para o beijo, nem para a paixão desconcertante que explodiu entre eles ao sentir suas mãos, cálidas e experientes lhe tocar os seios nus, acariciando-lhe massageando-lhe aproximando-se de uma vida própria que a impactou e a manteve imóvel entre seus braços, saboreando essas novas e excitantes emoções. Então a afastou, retrocedendo para queimar sua carne com um olhar amargo, enquanto ela se balançava, tão perdida em suas sensações que mal podia respirar. —Não se aproxime dos rapazes, Becky! —advertiu-lhe, seco. —Está me ouvindo? Não te aproxime desses malditos rapazes! —logo se foi, com pernadas furiosas e, quando ela correu atrás dele, já tinha desaparecido pelas portas do Hall, passando diante a casa do zelador onde ela e sua mãe viviam. No dia seguinte, retornou à universidade e não voltaram a ver-se em um ano. Mas ao retornar, no verão seguinte, Jay descobriu uma nova Rebecca: a que se converteu em mulher, emergindo de uma larva de cigana para adquirir uma beleza exótica que o deixou abobalhado. Encontrou-a perto do rio, sentada sobre uma colcha, absorta na última novela de sexo e crime que se vendia por milhões nas livrarias. Era um dia lindo, quente e úmido e a superfície do rio dançava com o ar morno. Ela usava um short pequeno que deixavam admirar sua pele, já dourada pelo sol. 6


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

Não tinha idéia de tempo quanto ele permaneceu de pé, sob a sombra de uma das árvores que rodeava o rio. De repente ela voltou a cabeça e viu seu rosto moreno e suas mãos metidas nos bolsos da calça. —Olá —a saudou, quase com cautela. —Olá —replicou, lhe enviando um tímido sorriso. —Ouvi dizer que tinha voltado para casa —um silêncio estranho se estendeu entre ambos, enquanto se observavam. Depois ele se aproximou, ainda precavido, para sentar-se a seu lado e ler a capa do livro que a garota descartou ao vê-lo. —Muito vulgar, não acha? —comentou. —Sim —sorriu, com uma expressão travessa brilhando nas olhos cinzas. Mas algo lhe tirou o fôlego e teve que procurar o que dizer: —A propósito, felicidades —nesse momento recordou que Jay tinha terminado seus estudos universitários. —Acredito que te graduou com honras. —Agora já posso me considerar um homem —comentou com secura quase cínica. Rebecca o contemplou com simpatia. Possivelmente lhe custava trabalho maturar sob as restrições que impunham a sua natureza impetuosa; mas ele, como todos os ricos e privilegiados, devia alcançar a altura que seu ambicioso pai determinava. —Um verão completo em casa... —Suspirou, contente, estirando-se a seu lado, com a cabeça descansando sobre seu braço, enquanto observava a luz do sol filtrar-se por entre os ramos da árvore. —Depois me mandarão para a América por um ano, para que aprenda a administrar uma companhia e não cometa erros na de meu pai. —Suponho que devemos crescer —replicou Rebecca e de repente uma suave melancolia obscureceu seus formosos olhos. —Sim —aceitou Jay, estudando o delicado perfil da jovem. —Embora acredite que você já começou esse processo —com um dedo delineou sua mandíbula. —Te saiu bem durante minha ausência?

7


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

—OH, sim —lhe confessou, com olhos lhes picar. —Tão bem como sou capaz, estando muito ocupada para me levar de outro modo desde que minha mãe me arranjou um emprego... ajudar à senhora Lumley três vezes por semana, em sua casa. —Em sua casa? —Jay se sentou, enquanto sua surpresa se transformava em ira com rapidez. —Não deve trabalhar de faxineira, Rebecca—advertiu. — Diferente de sua mãe, não nasceu para obedecer a ninguém. A nota de desdém para a ocupação de sua mãe a fez endireitar as costas, orgulhosa, pronta para defender a sua família. —Não sou nem melhor nem pior que minha mãe —lhe informou, fria—, e não me envergonha lavar o chão, para ganhar a vida. —Se tiver que lavar o chão, então preferiria que fosse em Thornley, não com a senhora Lumley. —Ah, que amável! —sufocou-se, fincando-se para reunir suas coisas antes de sair dali, ao mesmo tempo que a longa cortina de seu cabelo lhe roçava as bochechas. —Em outras palavras, pareceria-te bem que lavasse seu chão, mas não o de ninguém mais. Isso é o que se espera da filha de uma criada. —Não quis te insultar —a atalhou, detendo-a — me referia a... maldição, Becky! — Grunhiu, enquanto ambos se fulminavam com os olhos. —Olivia deve estar fascinada de ter você a sua mercê. —Não se preocupe com a Olivia. —lhe disse, mas afastou o olhar, pois não podia ocultar que machucava seu orgulho que a mulher a humilhasse. Olivia tinha dois anos mais que Becky e a mesma posição privilegiada dos Lorence. Entretanto, sempre a enciumou a união especial entre Rebecca e Jay e agora se vingava da jovem empregada de sua mãe, lhe encomendando as tarefas mais difíceis. Jay a soltou, mas não tratou de afastar-se de seu lado, perdido em seus próprios pensamentos. —Ainda não usa sutiã —comentou de repente, fazendo que se ruborizasse e lhe cravasse os olhos no seu rosto. 8


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

—Tinha... muito calor —se defendeu, ruborizando-se ainda mais ao ver que ele observava o decote e logo a forma de seus seios que se delineava sob o fino algodão. —Lindos —murmurou, — muito lindos... —e levantou os olhos para lhe sustentar o olhar. —Nunca pude esquecer a beleza de seus seios, Becky —admitiu, rouco, —desde que os vi à luz da lua. —Não, Jay...—queria fugir, mas os tremores que corriam sob a superfície de sua pele não o permitiam. Ele lhe tocou um seio erguido e firme, sopesando-o com delicadeza em sua mão, movendo o polegar para atormentar o mamilo, já endurecido. Sentiu que se estremecia, escutou que tomava fôlego e observou que sua suave boca exalava um suspiro, ao contemplá-lo com olhos apaixonados. —Seios lindos. Linda boca. Tampouco esqueci aquele beijo —murmurou. —E esperei todo um maldito ano para te beijar de novo. A puxou para que caísse sobre seu corpo e ela se entregou, afundando-se no calor de sua boca, na apaixonada carícia de suas mãos, sob a sombra da árvore e o sol sobre sua pele nua. Ali, Jay rompeu a larva para deixar que a cálida e apaixonada mulher surgisse. —Estou apaixonado por você, Becky —sussurrou com urgência, quando a garota iniciou uma débil luta para evitar que prosseguisse. —Acredito que sempre te amei. E ela se afundou na tibieza dessa declaração. Nunca duvidou da honestidade de Jay, jamais pensou que pudesse lhe mentir. Nesse verão foram inseparáveis, roubando momentos de suas ocupações para compartilhá-los, encontrando-se em segredo, alimentando esse novo amor a sós, sem deixar que outros se misturassem. Faziam amor quando podiam... Onde podiam, acoplando-se a tal grau às necessidades do outro, que até um certo sorriso lhes esquentava o sangue das veias. No final do verão Rebecca quase morria de tristeza porque ele devia afastar-se para estudar nos Estados Unidos. —É pelo bem de nós dois —lhe explicou Jay, abraçando-a com força, como se lhe doesse pronunciar essas palavras. —Tenho que provar a meu pai que mereço sua 9


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

confiança, antes de lhe pedir que me compreenda. E é tão jovem... Mas voltarei, prometo-lhe isso, e nos casaremos. Você e eu, meu amor, contra o mundo —lhe sussurrou, comovido. —Seremos invencíveis. Ele se foi por um ano e não voltou mais a vê-lo em dez. Rebecca emergiu dessa tortuosa viagem ao passado com amargura lhe pesando no coração. Abandonou Yorkshire pouco depois que Jay, com um filho no ventre e os insultos do pai milionário marcados com fogo, em sua alma. —Ninguém chantageia meu filho para que se case com uma qualquer, jovenzinha. Diz que é o filho é do Jay, mas ele nega. De fato, duvida de sua habilidade para estabelecer a paternidade dessa criatura, posto que se sabe que está disponível para o primeiro que passe —então lhe estendeu um cheque, com o desprezo pintado na cara; um desprezo menor ao que ela sentia por si mesmo. —Se desfaz desse estorvo. Não custa trabalho nestes dias e te dou dinheiro mais que suficiente para que pague o custo. Não quero escândalos em minha família. Meu filho se casará com Olivia, como sempre o dispus e, ou te desfaz do bebê ou você e sua mãe sairão de minha propriedade... e esqueçam de conseguir outro emprego porque me encarregarei de que ninguém mais as empregue por aqui. Quanto a você —continuou com dureza, enquanto ela permanecia de pé, atordoada pelo desdém com que a cobria, —não quero ver-te por aqui. Desaparece de minha vista e da vida de meu filho. Ele não se mistura com mulheres de sua classe. —Tem que fazer o que o senhor diz, Rebecca —lhe gritou sua mãe, histérica. — Trabalhei em sua casa durante vinte anos. Sou muito velha para encontrar outro emprego... e tampouco o desejo! Vá, vá e se desfaz do bebê e, pelo amor de Deus, não retorne. Já me envergonhou o bastante... Mais que bastante. Não retorne... Rebecca contemplou o jornal, o ponto onde lhe rogava que atuasse de outra maneira e um sorriso amargo lhe torceu a boca. Devia ignorar esse pedido... do mesmo jeito que eles ignoraram suas súplicas há dez anos. 10


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

Com um desprezo que ia aumentando, levantou o telefone e discou o número de Yorkshire.

Capítulo 2

ESCURECIA quando o trem entrou na estação do Harrogate. Esgotada pela longa viagem onde só seus pensamentos a distraíram do tédio, Rebecca ficou de pé, e desceu a mala da prateleira para a bagagem. Ainda não sabia por que tinha ido ou o que sentia a respeito de sua mãe. A ligação a Thornley Hall foi breve e precisa. A desconhecida que atendeu, deu-lhe a informação requerida apenas quando se identificou. Sua mãe estava internada no hospital geral, na unidade de tratamento intensivos. Um ataque cardíaco, explicou-lhe, com aquele sotaque de Yorkshire que não escutou em dez anos. —Chama-a o tempo todo, pobrezinha e... pois... acredito que será melhor que o senhor Jay o explique. Se esperar um momento, chamarei-o e... —Não! —Só ao pensar que falaria com Jay lhe contraía o estômago. — Não precisa incomodar o senhor... Lorence —disse. —A visitarei no hospital à hora do chá —terminou e, depois de desligar, apoiou-se em seu assento tremendo pela violenta reação. Responder ao chamado de sua mãe era uma coisa... um dever; mas falar com o homem que a obrigou a separar-se dela e a perguntar-se se desejava vê-la de novo, doente ou sã, era outra muito diferente. —Se cuide, mamãe —lhe tinha dito Kit, —e me ligue quando chegar. Às vezes os trens se detêm por causa da neve —adicionou, com a sabedoria de um nonagenário, não de um menino de nove anos. 11


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

—Ligarei assim que me hospedar no hotel —lhe prometeu, abraçando-o, antes de pegar um brilhante sorriso à cara e despedir-se dele na estação. O trem se deteve com uma última sacudida. Rebecca recolheu seu casaco de lã e o pôs. Seus dedos tremiam, notou enquanto se abotoava. Tomou fôlego para tranqüilizar-se, acomodou-se as luvas e revisou na mente sua aparência. Sabia que estava bem, considerando a duração da viagem e a razão pela que o empreendia. Mas esses dedos trêmulos falavam por si mesmos e compreendeu que estava mais preocupada com sua mãe do que gostaria de admitir. Abriu a porta do compartimento e seguiu os passageiros. Possivelmente sua fria compostura se relacionava com a barreira que ergueu anos antes para sobreviver... apesar de tudo. Ou talvez tinha que ver com a classe de mulher que era, alta, magra, com movimentos graciosos que faziam que as pessoas a olhassem, e vários homens se voltassem para admirá-la, jamais suspeitariam que exercia um controle de ferro sobre suas emoções. O que quer que fosse, desenquadrou o homem que a esperava na plataforma, espiando o rosto impassível da jovem pois nada, nem os anos que a conheceu, nem a promessa da enorme beleza que amadurecia com cada primavera, nem a distância, prepararam-no para o que via nesse momento. Com os dentes apertados a observou caminhar para ele, aproximando-se com cada passo, enquanto lhe acelerava o coração, reconhecendo que despertava algo dentro dele, muito dentro de seu corpo. Ela ainda não o reconhecia; mantinha as espessas pestanas escuras velando a cinza fumaça de seus olhos, concentrando sua atenção no viajante que lhe fechava o passo. Tudo estava ali, a suave sensualidade com que se movia, as longas pernas, o pescoço de cisne, o oval do rosto, sugerindo uma fragilidade enganosa e o arbusto de cabelo café escuro, penteado com uma elegância desconhecida para a antiga adolescente.

12


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

Sim, pensou o homem com amargura. Mas essa beleza superou com acréscimo suas mais loucas hipóteses e despertava emoções que acreditou mortas fazia muito tempo. Essa era Rebecca, depois de dez anos. A jovem chegou à porta, entregou seu bilhete com uma mão enluvada e perguntou com voz clara onde podia pegar um táxi. —Olá, Rebecca —a saudou então. Perdida em seus pensamentos, Rebecca ficou imóvel ao escutar seu nome, modulado nesse tom rico, profundo, familiar. Algo se estremeceu dentro dela e elevou os olhos para enfrentar os de Jay. Por um momento não pôde mover-se ou falar, mostrando o assombro que a invadia por encontrá-lo ali. Tudo o que lhe ocorreu foi: "OH, Deus, como se parece com o Kit! Como se parece com meu filho!" Os anos de amargura a engasgaram lhe impedindo de respirar. Dez anos, recordou, e ele havia melhorado com o passar do tempo. Seu corpo seguia esbelto e firme, seu cabelo muito negro e brilhante. Conservava a cabeça alta, orgulhosa, com a fria tranqüilidade de sempre. —Olá, Jay —conseguiu responder por fim, adicionando com petulância: —Não esperava que viesse me buscar. —Quando o filho pródigo retorna, Rebecca —replicou, torcendo a boca com humor depreciativo, —costuma-se estirar o tapete vermelho. — E você se considera esse tapete? —inquiriu, molesta por ter se desconcertado. Nesse momento, e possivelmente por sorte, pois os olhos azuis se endureceram de ira, alguém os empurrou para aproximar-se do terminal dos automóveis de aluguel. —Me dê isso —antes que protestasse, Jay lhe tirou a mala da mão. — Meu carro está no estacionamento, a uns passos daqui —girou sobre seus pés e começou a caminhar. Rebecca o observou afastar-se. Não, confirmava sua primeira impressão, não mudou muito nesses anos. Possuía a mesma arrogância, o mesmo ar despótico com que dominava o resto dos mortais. 13


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

Seguiu-o e, quando o alcançou, ele já tinha guardado sua mala e ligado o motor do automóvel. Tentou que sua velha rebeldia a aguilhoasse. Não lhe pediu que a esperasse na estação. Jamais lhe pediu nada... Assim não tinha direito a tratá-la, como uma maltratada peça de bagagem. Ante a porta do veículo se deteve um segundo, para aspirar o ar frio do inverno. Pensou que o tinha esquecido, mas não; recordava esse sabor de doce aroma. Desde menina, no verão ou no inverno, corria ao exterior para respirá-lo, oferecendo-lhe como um presente. —Congelará se fica parada, aí fora. —Sinto muito — observou com desdém, ignorando a nota crítica de sua voz. Era sua primeira visita ao lar depois de dez longos anos. Fugiu por ele, permaneceu no exílio por ele e, se pensava que estragaria uns segundos de prazer, podia ir ao inferno. Meteu-se ao automóvel e aspirou a atmosfera de luxo e comodidade, sorrindo. —Como está minha mãe? —perguntou o que lhe preocupava. —Acreditei que jamais perguntaria —se mofou Jay. —Necessitava que me desse a oportunidade —replicou, percorrendo-o com os olhos. Até de perfil se via fantástico: rico, privilegiado, com um ar inconfundível de sofisticação. —Segue lutando —lhe ordenou, sem rodeios. —Me diga o que aconteceu —fixou os olhos no caminho para que não a obcecasse, lhe subtraindo coragem aos problemas que devia pensar. —Não esteve bem em últimos meses —lhe esclareceu, tomando a estrada principal. — Nos preocupava o grau então lhe sugerimos que não trabalhasse tanto... mas possivelmente recorda como era... —uma breve e travesso sorriso tocou seus lábios. — Insistia em que se sentia bem e se esmerava ao máximo para prová-lo. —Certamente —murmurou, cínica. Os Lorence sempre ocuparam o primeiro lugar no coração de sua mãe, por cima de sua própria filha...

14


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

—Assim se considerava útil! —atalhou-a, impaciente. —Não tinha outra razão para viver, não é verdade? —Acaso te contradisse? —burlou-se, soando aborrecida. —Não —admitiu, —mas o insinuou, embora só Deus sabe se conservas o direito de criticá-la depois de esquecer de sua mãe por dez anos. Certo, aceitou, sem desejar internar-se nesse ponto. Esqueceu-a por necessidade; porque era a única maneira de sobreviver. —Sofreu uma leve parada cardíaca —continuou Jay, depois de um momento de tensão. —Nada grave, mas subia as escadas da mansão e caiu, rompendo o quadril. Além disso, deu-lhe pneumonia... uma complicação comum nestes casos. De qualquer modo, para resumir, chamou-te; esteve-te chamando, agitada por algo, desesperada por ver-te... quer falar contigo, insiste. Por esta razão pusemos o aviso nos jornais... já que não existia outro meio de nos comunicar com você —concluiu, depreciativo. —Quanto... Quanto tempo esteve doente? —Um mês —a sobressaltou com sua resposta. —A condição do coração impediu que lhe curassem o quadril e esse atraso provocou a pneumonia... um círculo vicioso —terminou, pessimista. —Ela sabe que irei visitá-la? —inquiriu rouca, começando a sentir uma dolorosa emoção pelo sofrimento de sua mãe. Devia odiar estar doente! A imobilidade, a sensação de inutilidade... Ela, que sempre foi tão forte e saudável! Jamais pegou uma gripe, conforme recordava Rebecca. —Não —respondeu Jay. —Julguei preferível não alimentar suas esperanças, se por acaso mudasse de opinião no último momento e decidisse não vir. —Não tem que ser sarcástico, Jay —o acautelou Rebecca, cansada. — Sei o que pensa de mim, até sem suas ironias. —E, por seu tom, adivinho que não se importa. —Não —aceitou. —Não me importa muito. Reservei um quarto no Swan... —explicoulhe, para trocar de assunto, —mas preferiria ir ao hospital, se não se incomodar. 15


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

—De maneira nenhuma —murmurou, incômodo, —mas não ficará no Swan. Virá ao Hall comigo. —Jamais! —exalou, horrorizando-se ante essa idéia. Com a Olivia ali? Com seu pai? — Não, Jay —se negou, sem mais. —Prefiro permanecer em um hotel. Fica mais perto do hospital e não desejo te causar inconvenientes. —Sempre foi um inconveniente —se queixou, como se brincasse. —Faz alguns anos que decidi que Rebecca Shaw seria meu castigo nesta reencarnação. Ela sorriu, incapaz de evitá-lo; esse senso de humor especial de Jay sempre a fazia rir com ele. —Mas te dei um descanso de dez anos —replicou, seca. —Quem disse? —desafiou-a e de repente o ar do carro pareceu muito espesso para respirar-se. A nota rouca de sua voz, a maneira em que viram os olhos azuis, confessaram-lhe que falava a sério, muito a sério. Remorsos?, refletiu e sorriu, amarga. Ainda recordava a maneira grosseira em que seu pai a tratou na última mensagem de Jay. —Já chegamos —lhe informou. —Perfeito —assentou, cortante. —Se não se importa, entrarei sozinha —e saiu do carro no instante em que ele estacionou ante a porta do hospital. —A unidade de tratamentos intensivos? —perguntou ao porteiro. —Ah, sim, senhorita —a dirigiu com cortesia. —Tem permissão de subir? —Sim —afirmou, sem a menor idéia de como se conseguia essa permissão. —Minha mãe está ali. Foi para seu destino, enquanto as emoções conflitivas seguiam lutando em seu interior: rancor, amargura, orgulho. E esse terrível nó de angústia que a levou a esse lugar no primeiro trem disponível. Entrou no elevador. As portas se abriram e começou a caminhar por um corredor, pintado de cinza, esmagada por um silêncio sufocante.

16


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

De repente seu coração se deteve. O corredor desembocava a uma ampla sala e o coração lhe contraiu, enjoando-a. Atrás de cada câmara de vidro havia uma cama, com seu pobre ocupante rodeado de tubos e máquinas, cujos assobios indicavam que a vida se preservava com muita dificuldade. Não precisou perguntar onde estava sua mãe porque Rebecca soube que era essa velha frágil e cinza, atrás da parede de vidro, lutando contra a morte. —Aqui estou, para te sustentar —a voz profunda a consolou e uma mão a deteve pela cintura; ao voltar-se, seus olhos opacos se toparam com os de Jay e se apoiou em seus braços.

Capítulo 3 REBECCA despertou sobre um sofá estofado em vinil. Jay, de cócoras ao seu lado, esfregava-lhe as mãos, para esquentar-lhe —Desmaiou —explicava alguém, possivelmente uma enfermeira que lhe aplicava compressas frias na testa. —Acaba de inteirar-se que sua mãe adoeceu e veio assim que pôde. O calor da sala, em contraste com o frio do exterior, deixou-a enjoada. —Não esperava vê-la tão mal —sussurrou Rebecca, atraindo a atenção dos olhos azuis. —Quis lhe advertir isso mas foi muito rápido —lhe disse e logo fez um gesto. —Sua mãe dorme neste momento, senhorita Shaw —interveio uma voz suave. A mão que sustentava a compressa se afastou e Rebecca a substituiu de modo automático com a sua. —Assim tem muito tempo para descansar e recuperar-se antes de vê-la. Irei preparar lhe uma xícara de chá —lhe ofereceu a enfermeira, entrando no campo de visão do jovem. —Leite... açúcar? —perguntou, sorrindo.

17


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

—Sim, de ambos, por favor —respondeu Jay por ela. —Necessita uma bebida forte e doce —prescreveu. A enfermeira se afastou em silêncio e Rebecca se perguntou se as pessoas que trabalhavam em um hospital eram a prova de ruídos, como os quartos. Logo recordou, fechando os olhos, a atmosfera lúgubre que a rodeava e seu estômago se contraiu de novo. —Parece tão velha, Jay —murmurou, incerta, —tão... tão... —O que esperava depois de dez anos? —arreganhou-a, seco. Observava-a como se a desprezasse, apertando os lábios. —Está aqui por sua culpa —a acusou. —Porque você a abandonou, sem preocupar-se de que vivesse ou morresse. Assim não espere que tenha piedade de você agora que o destino cobra essa dívida —se levantou e seus olhos azuis a desprezaram pela segunda vez. —Nos únicos momentos em que ela pensava que a vida merecia viver-se, era quando trabalhava para nós. —Como sempre —lhe lançou à defensiva, sentando-se e fechando outra vez os olhos para sufocar a náusea. —Sua casa e sua família sempre estiveram antes de mim, Jay... não trate de negar, porque você, acima do resto das pessoas, conhece a verdade. Calaram-se por acordo-tácito, pois não era o lugar nem o momento de discutir esse assunto. Rebecca ocultou o rosto com uma mão e Jay parou a seu lado. O único que interrompia o horrível silêncio era o som das máquinas para sobreviver. —Tome —indicou uma voz amável, que soava como uma baforada de ar fresco depois da agressão do Jay. —Isto a ajudará a sentir-se melhor —Rebecca levantou o rosto para ver a enfermeira que lhe oferecia uma xícara de chá. Seu estômago se opôs, mas lhe agradeceu com um débil sorriso. —Tome seu tempo para lhe bebê-lo aconselhou— e, quando terminar, sua mãe terá despertado. —Não entrou em coma, não é verdade? —perguntou a jovem, agarrando-se a essa pequena esperança. —Não —a enfermeira a tranqüilizou pondo sua mão sobre seu ombro. — Só dorme. O pior, esperamos, já passou —adicionou em um sussurro: —Seu quadril está melhorando 18


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

de modo satisfatório, não tem febre. Tudo o que necessita agora, para recuperar-se por completo, é vê-la. Mostrava-se muito inquieta... Perguntava sem cessar por você... Um dos ruídos rítmicos emudeceu e a enfermeira elevou a cabeça, deixando de sorrir enquanto seu rosto adotava uma expressão de alerta. —Desculpe-me —lhe rogou e se afastou. Rebecca a viu entrar em uma das câmaras de vidro e inclinar-se sobre um doente. —Deus —murmurou Jay de repente, —eu não poderia trabalhar aqui. Não suportaria a tensão. —Eu tampouco —concordou Rebecca, bebendo um sorvo de chá. Depois perguntou, devagar— Jay... por que não tratou de entrar em contato comigo quando minha mãe esteve mais grave? —Para ser honesto —respondeu depois de um momento e sem olhá-la, — não me ocorreu. Foi sem nos deixar uma mensagem, um endereço, para saber se estava viva ou morta. Assim cheguei à conclusão de que não se importava. O qual era verdade, admitiu Rebecca. Não lhe importou se os outros viviam ou morriam. Mas agora sim, reconhecia-o, posando a vista no muro de vidro atrás do qual dormia sua mãe. —Só quando Lina começou a perguntar por você compreendi que nunca deixou de esperar voltar a ver-te... a pobre tola —lhe lançou outra dessas olhadas amargas. — Dizem que não há nada mais resistente que o amor de uma mãe —concluiu com ironia. —E quão resistente é o amor de um pai? —Indagou, seca, pensando em um menino, a salvo, com seus melhores amigos. —Quão resistente acha que é? Jay pareceu confuso com esse comentário e franziu o cenho. —Seu pai foi um homem calado e introvertido, Rebecca, mas não pode dizer que não te amava. Sorriu ante a equivocada interpretação de suas palavras. Suas pernas, ainda trêmulas, ao fim a sustentavam. —Estou pronta para ver minha mãe —anunciou, em voz baixa. 19


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

Jay titubeou, observando-a de um modo estranho. —Está muito fraca —a acautelou, enquanto se aproximavam, devagar, à câmara de vidro. —E temo que a parada cardíaca lhe imobilizou uma parte da face. Tende a falar sem cessar, assim finge que entende suas palavras em lugar de lhe fazer perguntas, para não agitá-la. Ela assentiu, tragando saliva antes de entrar no recinto. Sua mãe estava deitada sobre uma cama alta, tão frágil e acabada que os olhos da garota se encheram de lágrimas. O arbusto de cabelos castanhos que recordava foi substituída por cachos cinzas, que só acentuavam as marcas da idade. Tinha as bochechas afundadas e a cútis pálida e enrugada. Deixando Jay a um lado, aproximou-se do leito, mas as lágrimas lhe impediram de distinguir as feições da doente com nitidez. —Mamãe? —murmurou com lábios trêmulas, esperando resposta. As pálpebras se moveram e algo se encolheu no interior de Rebecca ao contemplar as íris de um cinza opaco, que um dia foram tão brilhantes como os dela. —Becky?... —sussurrou uma voz sem fôlego e uma mão saltou por debaixo dos lençóis em uma vão tentativa para acariciá-la. —OH, Becky! —as lágrimas rodaram por suas bochechas. —Realmente é você? Rebecca se voltou para o Jay, que estava ao pé da cama, com o rosto imperturbável. —P-pode mover isto? —pediu-lhe, trêmula, puxando o corrimão da cama porque desejava, necessitava, abraçar sua mãe, como teria abraçado Kit se estivesse doente. —Me permita —Jay tirou o marco tubular com presteza. —Jay?... —sua mãe o viu e um sorriso débil acompanhou a corrente de lágrimas. —A encontrou. Encontrou a minha Becky. —Sim, Lina —respondeu com doçura, roçando a mão descarnada. —A encontrei. —Becky... —o olhar úmido se posou na filha de novo, com uma fome que espremeu a jovem. —OH, Jay, que linda é... que delicada... —a mão se dirigiu para Rebecca e Jay se afastou para que ela tomasse seu lugar. Rebecca permitiu que a aproximasse da cama, como se fosse um estranho fenômeno a ponto de desaparecer de maneira tão 20


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

inesperada como chegou. —Ainda tem seu cabelo lindo, sua pele... —os olhos a percorriam, enquanto Rebecca avaliava a horrível força do decaimento de sua mãe. — Não sorri —objetou. —Estava acostumado a sorrir todo o tempo, não importava o que eu... —as palavras se murcharam e morreram em um soluço e as lágrimas correram de novo. —Não chore —lhe suplicou Rebecca, emocionada, a ponto de chorar ela mesma, tocando uma bochecha enrugada. —Não acreditei que viesse —lhe explicou sua mãe. —Não pensei que te veria outra vez. —Pois, aqui estou —lhe assegurou Rebecca, trêmula. —Agora deixa de preocupar-se para que melhore. —Sim —suspirou sua mãe, deixando cair sobre os travesseiros e fechou os olhos. — Becky... —Murmurou, sonolenta, lutando contra o sono que a envolvia, agarrando-se à mão da filha, —não vá. Tenho tanto que te dizer... corrigir erros. .. Não há desculpa... deve respeitar-se a vida... Tinha medo... —Cale-se —a tranqüilizou Rebecca, consciente da intenção do discurso de sua mãe. — Não se preocupe. Já passou tudo. Uma mão pousou sobre o ombro de Rebecca confirmando o que suspeitava... que sua mãe voltava a sumir no sono com rapidez, com muita rapidez para uma mulher que viveu com a força de um titã. —Deixe-a descansar agora, Rebecca —lhe aconselhou Jay. —Só resiste cinco minutos por visita. Retornaremos amanhã. —Jay?... —o sussurro da cama os obrigou a voltar-se. —Sim, aqui estou, Lina —respondeu, com calma. —Cuida de minha Becky até que eu saia daqui. Cuida-a como antes... Algo cruel a sacudiu e se moveu para escapar dessa mão, impulsionada pela antiga amargura. —Posso me cuidar sozinha, mamãe —lhe informou, com voz fria. —Sou uma mulher feita, lembra? 21


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

—Entretanto —interveio Jay com rapidez, lhe lançando um olhar de advertência, — Rebecca ficará no Hall, Lina, assim não se preocupe com ela. —Traga-me ela amanhã —lhe ordenou a doente. —Sim, senhora —sorriu e Rebecca percebeu a expressão de travessura que distendeu a boca de sua mãe. Nem sequer quando era menina lhe sorria dessa maneira. Guardava seu bom humor para o Jay. Como você, recordou-lhe uma vozinha em seu cérebro. No corredor começou a tremer pela reação. Impactou-a ver sua mãe tão doente e vulnerável e o processo de envelhecer nem sequer lhe passou pela cabeça durante a viagem. —Obrigado —murmurou Jay ao reunir-se com ela. —De que? —o olhou de esguelha, rancorosa. —Ela é minha mãe. Suponho que até devo te agradecer que te tenha tomado a moléstia de cuidá-la. —Suponho que sim —repôs, seco. Rebecca se voltou, abrupta, e foi até os elevadores, sufocando a resposta vingativa que preparava. Não queria lhe informar que não tinha cuidado de seu filho nem um instante, durante os últimos dez anos. —Rebecca... —sua mão descansou sobre o ombro da jovem e ela se afastou com violência dele. —Não me toque! —gritou, rouca. E ele retrocedeu, assombrado pelo ódio profundo que descobriu em seus olhos. —Não... Toque-me —repetiu, pensando no que seu filho tinha perdido com uma amargura impossível de esconder. Caminharam ao exterior em silêncio. Já fora, Rebecca aspirou uma baforada de ar frio, tratando de acalmar-se e dominar a guerra de emoções que a sacudia! —Trarei o carro. Você me espere aqui —lhe disse e ela obedeceu igual a um cão obediente, enquanto o frio estremecia seu corpo sem que se desse conta. Jay estacionou frente à jovem e lhe abriu a porta. Rebecca se sentou sem murmurar nenhuma palavra e colocou o cinto em silêncio, antes de partir. 22


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

—Preciso falar por telefone —comentou de repente, recordando a promessa que fez ao Kit. —Pode usar o telefone do Hall —lhe ofereceu Jay. —Chegaremos em vinte minutos. —Não quero ficar no Hall —repetiu, néscia. —Se te nega a que me hospede no Swan, então dormirei em meu quarto, na casa do zelador. —Impossível —replicou, concentrando-se no tráfego. —Mandamos reformar a casa, aproveitando a estadia de sua mãe no hospital. No momento está cheia de andaimes. —Então, me leve ao hotel —insistiu. —Maldita seja! Ficará no Hall! —ordenou, furioso, sobressaltando-a. — Sua mãe assim o espera e se veria muito mal se não lhe recebêssemos; assim deixa de discutir e trata de aceitar meu convite com certa cortesia. —Com a devida humildade, mas bem —se mofou. —A filha da faxineira deve mostrar-se agradecida porque os nobres Lorence a aceitam sob seu teto. —Não me parece engraçado —lhe advertiu— e não insulte a maneira em que lhe tratamos, Rebecca. Não recordo em nenhum momento em que lhe tenhamos feito se sentir inferior a minha família. —Como está seu pai? —perguntou, obrigando-o a voltar-se para vê-la. —Não sabia? —Indagou com genuína surpresa e logo adicionou, seco: — Claro que não, não sabia, posto que se preocupou que ninguém ficasse em contato contigo desde que se foi —fixou os olhos de novo no caminho, endurecendo o tom de voz ao adicionar: — Meu pai morreu faz vários anos. Cedric Lorence... Morto? —Oh... sinto muito —a condolência lhe obstruiu na garganta e Jay deve ter percebido porque apertou a boca. —Então agora é o rei do império Lorence, não é verdade? — acrescentou com um desprezo mortal para tudo o que ele representava. A ironia estabeleceu um silêncio gelado durante o resto do trajeto e, como Rebecca não desejava falar com Jay, concentrou sua atenção na paisagem familiar que se estendia

23


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

ante a janela. Dez anos, refletiu, ao atravessar o pitoresco portão do Thornley, e nada parece ter mudado...exceto eu. Passaram em frente à casa do zelador... Em reforma. Disse-lhe a verdade. Ao ver as janelas também se viu adolescente, meio oculta atrás das cortinas, espiando o Jay. Morria de ciúmes quando o contemplava em seu traje de etiqueta, muito bonito, saindo a algum encontro “no lugar de meu pai". Essas noites o acompanhava Olivia, a princesa loira, mais conveniente que Rebecca, a camponesa despenteada. Casou-se com ela? Não se atreveu a averiguá-lo, mas observou as mãos do Jay sobre o volante. Não usava nenhum maldito anel de casamento. Embora isso não significasse nada. Jay sempre desprezou as jóias, nem sequer usava relógios ostentosos. Contemplou a mansão georgiana que se elevava ante ela. Teria que enfrentar-se a Olivia no papel que sempre ambicionou sobre todas as coisas: a de ama e senhora do Thornley Hall. Recordou aquele último verão em que aprendeu as diferenças entre plebeus e nobres... e não só das mãos do pai de Jay; Olivia também jogou uma parte importante nesse descobrimento. Graças a ela, brigou com o Jay e começou a rebelar-se contra sua dominação, sexual e moral. —Se acha que é correto que se sente perto da piscina para paquerar com a Olivia, enquanto lavo sua roupa suja, então eu também paquerarei com meus amigos —lhe gritou, enfrentando-o no claro do bosque, perto do rio. —Não paquero com a Olivia —negou ele, acalorado. —Vou a sua casa para ver você. — Mentiroso! —acusou-o. —Acha que não me dou conta da maneira em que a toca, sorri-lhe... a deseja? —Ela é a que me toca! —Franziu o cenho. —Não eu. —Então, não o permita. —Te acalme, Becky —suspirou, começando a acariciá-la quando compreendeu que seus argumentos não o levavam a nenhuma parte. —Sabe que adoro o chão que você pisa. 24


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

—Mas não me leva a festa do clube —resmungou. —Não se atreve a lhes dizer que me ama. —Não é tão simples e sabe disso —se moveu, incômodo, e baixou a vista. —Recorda quão conservador é meu pai e também sua mãe... Deus do céu, Rebecca, mal completou dezesseis anos! —grunhiu. —Me linchariam se se inteirassem do que eu fiz. —Provavelmente mereça isso —o atalhou, detestando-o porque compreendia que havia muito de razão no que lhe dizia. Ele tinha completado vinte e três anos e devia evitar seduzir à filha da criada. Elevou o queixo, ainda recordava com quanto orgulho, e lhe indicou: —Pois, te conforme com a Olivia. Finge que é o moço obediente e limpo que todos acreditam... mas não espere que fique em casa roendo as unhas enquanto você se diverte! Há muitos peixes no mar, além de você, Jason Lorence. —Se sair com alguém, mato você, Becky —lhe advertiu e ela se estremeceu de excitação porque a ameaçava a sério. —Lhe juro isso. —Eu também —o desafiou, começando a saborear essa briga. —Há uma festa no bar esta noite. Joe quer me levar. —Aceita e mato os dois —resmungou. —Saia com a Olivia esta noite e vou com o Joe. Ambos o fizeram. Ainda agora, dez anos depois, ignorava qual dos dois ganhou essa batalha amarga. Possivelmente ela porque Jay retornou à mansão justo quando Joe dava o beijo de despedida e sua raiva mereceu ter cumprido a ameaça. Possivelmente ele porque foi a primeira vez que a chamou de uma qualquer. E se deu conta, embora então se negou a aceitá-lo, que Jay a via assim... como a uma excitante e desejável mulher qualquer… e nada mais. Os pneus chiaram ao deter-se e Rebecca piscou, voltando para o presente. Outro carro se estacionava frente a eles. —Maldição! —Murmurou Jay, —Olivia! Esqueci dela.

25


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

Rebecca ficou tensa e então a porta da mansão se abriu. Um raio de luz iluminou as duas cabeças que giraram para observar à figura loira, ainda alta e magra, de Olivia vestida com um traje de seda azul que lhe colava ao corpo como uma segunda pele. Sorriu-lhes, segura de que seu sorriso acharia uma grata acolhida. A esposa perfeita dando as boas-vindas ao lar ao cansado marido.

26


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

Capítulo 4 —Jay, querido, até que enfim chegou! —Olivia se jogou em seus braços como se ali pertencesse e Jay aceitou a íntima tibieza do abraço enquanto Rebecca permanecia no carro, observando a cena com o coração convertido em pedra. Por isso, pensou com amargura, o pai de Jay teria matado o neto que ainda não tinha nascido. Para que essas duas pessoas se unissem nessa casa. Deu um momento de intimidade ao casal e desceu do automóvel. Foi Jay quem se separou, voltando-se para ela para olhá-la com um ar de triunfo. Então Olivia a distinguiu, ainda pendurada pelo braço de Jay, e seus olhos se abriram com surpresa. —Ah! —mofou-se, sem mover-se do lado de Jay. —Eis aqui à encantada Becky Shaw. —Olá, Olivia —a saudou, sem mais. —Foi ver sua mãe, suponho —seus olhos percorreram o rosto impassível da jovem. — Todos estamos muito preocupados com ela, pobrezinha, e Jay se saiu de maravilha, não é verdade, querido? Ele não replicou, escapou de suas mãos e abriu o bagageiro para tirar a mala. —E a senhora Musgrove é uma jóia, assim que a enfermidade de sua mãe não causou muitas moléstias no Hall... —Olivia, faz muito frio para que saia com esse vestido tão fino —replicou Jay, fechando o carro com força. —Sim, faz frio —aceitou, sorrindo com doçura. Rebecca a seguiu, mais devagar, quão mesmo Jay, carregando a mala. 27


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

Uma vez no vestíbulo, adornado com os retratos dos membros da família, Olivia se voltou para repreender o Jay com suavidade. —Esperava-te faz séculos. Tive que dizer à senhora Musgrove que voltasse a esquentar o jantar. Tomara que não tenha estragado o molho... —Jay... —em voz baixa Rebecca requereu sua atenção, observando como ele escapava de novo do abraço possessivo de Olivia para voltar-se para vê-la. —Preciso usar o telefone —lhe recordou. —Certamente —pôs a mala ao pé da escada e se dirigiu ao escritório. — Aqui há um — manteve a porta aberta para que a jovem passasse. O agradeceu ao caminhar frente a ele, consciente de que Olivia avaliava cada um de seus movimentos. O quarto conservava os detalhes que recordava: os elegantes muros, a mesa de carvalho, a imensa chaminé. Fechou a porta ao mesmo tempo que Olivia oferecia uma taça ao Jay. Ergueu o telefone e discou o número que a conectaria com a pessoa mais importante de sua vida. —Olá, mamãe! —Não lhe deu oportunidade de dizer meia palavra e Rebecca sorriu, relaxando-se por primeira vez em muitas horas. —Sabia que seria você! por que demorou tanto em ligar? —perguntou. —Olá, meu amor —sua voz adquiriu sua ternura habitual e o sorriso de seu rosto apagou suas preocupações presentes.

—Estive muito ocupada —lhe confessou com

honestidade. —E mal tive tempo de me aproximar de um telefone. Como se sente? Ainda não sente saudades? Era um jogo: o menino sempre respondia o oposto do que se esperava e ela replicava na mesma forma. —Perfeito, porque eu tampouco sinto saudades —então os dois soltavam uma gargalhada que desmentia essas afirmações. —Acredita nisso? O tio Tom me levará para patinar no gelo amanhã. Diz que é um patinador magnífico e isso eu tenho que ver informou seu desconfiado filho. 28


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

—Pois, não vá quebrar uma perna —lhe advertiu Rebecca. —Não me atrai a idéia de verte saltando pela casa com muletas. Uma porta se abriu a suas costas, mas a jovem não se deu conta porque só prestava atenção ao bate-papo do menino. —Amanhã iremos ao cinema —continuou, excitado. —E jantaremos pizzas... por maioria de votos —adicionou com orgulho, já que era uma noção nova para ele. —Ou, para dizer a verdade, eu o sugeri e a tia Chrissy suspirou de alívio... sabia que detesta os hambúrgueres? —exclamou, sobressaltado. — Nunca antes o confessou. Rebecca riu e o som vibrou no quarto. Pobre Christina, pensou. Todas essas comidas em diferentes restaurantes de hambúrgueres, só para agradar ao Kit. —O que uma mulher não faz para conquistar a seu galã favorito —brincou com seu filho. —É minha culpa que todos me amam? —ali estava de novo, a insegurança escondida atrás do jogo. —Pois, eu te adoro —murmurou, suave, lhe dando o que mais necessitava, a certeza de seu amor maternal. —Sinto como se me faltasse o braço direito sem sua companhia. —Quando retornará? —esperava essa pergunta, mas lhe resultava difícil respondê-la. E seu sorriso se obscureceu ao recordar a sua mãe doente em uma cama de hospital. —Ainda não sei, querido —se desculpou. —Possivelmente em um par de dias; espero que nenhum mais —e desejou em silêncio que nesse tempo sua mãe se recuperasse o suficiente para deixá-la só. —Entretanto, comunicarei-lhe isso assim que esteja segura. —De acordo, porque quero te pegar na estação. O tio Tom disse que o faremos, embora possivelmente a tia Chrissy tenha que trabalhar horas extras para te substituir. —É verdade; esse problema sempre surge quando uma de nós duas se ausenta — reconheceu, compadecendo a pobre Christina. —Cuide-se, meu céu, e te prometo retornar o mais breve possível. —Eu gostaria de estar com você —murmurou. —Quando vai sempre me pergunto o que será de mim se algo acontecer com você.

29


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

—Nada me acontecerá, Kit —afirmou, protegendo-o e tratando de dissipar a dúvida que se filtrava nessa conversa rápida. —Você é minha vida, já sabe, e não permitiria que nada te separasse do meu lado —a súbita visão do pai do menino dançou frente a seus olhos, escura e ameaçadora, e se estremeceu de medo ante essa premonição. Despediram-se e Rebecca desligou. Abaixou os ombros e respirou fundo. Sempre lhe custava trabalho romper o contato com o menino, mas dessa vez resultou duplamente difícil pois adivinhava que essa visita e suas conseqüências provocariam mudanças em suas vidas. —Seu marido? —indagou uma voz fria, depois dela. Voltou-se depressa e viu Jay apoiado contra a porta do escritório, com os braços cruzados e uma expressão insolente, estudando-a. —Não —respondeu, elevando o queixo em sinal de provocação, se por acaso se atrevia a lhe fazer outra pergunta a qual não tinha direito. Ele a avaliou, tratando de perfurar as capas de amparo com as quais ela se escondia. Logo fez um gesto e se separou da porta. —Se assegurava a essa... pessoa que retornará para sua casa em uns dias, acredito que foi um pouco prematuro. —Devo retornar —Rebecca ficou tensa, —tenho muitos compromissos. Vir aqui causou problemas aos outros. Devo retornar —repetiu, firme. —E sua mãe? —Elevou uma sobrancelha, em sinal de desprezo. —Volta a vê-la e a abandona a seu prazer, sem se importar as conseqüências. Não acha que merece um pouco mais de seu precioso tempo, em lugar de apenas uns dias de seu apoio moral? —Não se trata disso —se defendeu, irritada. —Tenho uma vida própria, Jay... responsabilidades

a

cumprir.

Vim

logo

que

li

o

anúncio,

apesar

dessas

responsabilidades, e apreciaria que aceitasse que devo retornar tão rápido como é possível. —E essas... Responsabilidades, não incluem a sua mãe? —o desprezo aumentou. —Me diga, Rebecca, porque me interessa sabê-lo... —mediu-a, antes de enfrentar-se a seus 30


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

olhos, —quem te mantém te dá a aula de luxos que esperava que eu pagasse ou tem mais dinheiro que eu? Certamente te veste com modelos exclusivos —se mofou. — Assim aventuro que te vende caro. Algo violento brilhou nos olhos da jovem e ele observou que apertava os punhos, sufocando a necessidade de esbofeteá-lo. —O que faço com a minha vida e com as pessoas com quem a compartilho, não é da sua conta —replicou, cortante. —Não é da sua conta desde o dia em que me deixou sozinha e não dedicou outro pensamento à estúpida ingênua que usou todo um verão para alívio adequado a seu aborrecimento sexual. —OH, não só adequado, Rebecca —se burlou. —Aposto que faz muito que o descobriu, foi mais do que adequada. —Que Deus me perdoe, Jay! —murmurou, exasperada. —Mas se voltar a me insultar... —O que fará? —desafiou-a, enquanto a jovem procurava palavras para expressar sua fúria. Deu-lhe um puxão selvagem com uma mão, fechando o espaço que os separava. —Me bater? —Sorriu com crueldade. —Te juro que te devolverei cada um de seus golpes —lhe advertiu. —Gritar? Quem virá te resgatar a não ser a querida Olivia? E acredito que lhe encantaria que eu te golpeasse. —Detesto você —lhe espetou, sentindo que a invadia uma ira surda. — Desprezo tudo o que representa. Se Olivia compartilhar seus estreitos pontos de vista, merecem um ao outro. Estar casada com você deve alimentar sua mediocridade de forma constante. Ele ficou quieto e Rebecca se encolheu em seu interior, temendo ter chegado muito longe. —Casada? —afogou-se. —De onde demônios tirou isso de que Olivia e eu nos casamos? —Quer dizer... —Rebecca o contemplou, abobalhada, —que não se casaram? —a incredulidade ressonava em sua voz e Jay riu, com um som duro. —Não preciso me casar com a Olivia para obter o que quero dela —replicou, mordaz. — Pelo mesmo motivo pelo que não me casei com você. 31


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

Seu desprezo pela Olivia e por ela a humilharam ao máximo. —É e foi um maldito egoísta, Jay —murmurou, aproximando-se da mesa, para levantar o telefone. —O que faz? —inquiriu, furioso. —Chamo um automóvel de aluguel —lhe informou. —Me nego a ficar nesta casa um momento mais do que o necessário. —Você não se move daqui —ladrou, lhe arrancando o telefone da mão jogando-o contra a parede. Segurou-a de novo, obrigando-a a olhá-lo, alto, moreno, com o poder de sua atração lhe martelando os sentidos e despertando emoções de distinta natureza. —Tire as mãos de mim —lhe ordenou. —Não suporto que me toque. —Não é uma pena? —mofou-se, aproximando-a de seu corpo ainda mais, de modo que ela percebeu o calor que emanava de sua pele. —Porque chegou a hora da vingança, Rebecca, e tomarei a que me corresponde. Beijou-a com raiva, lhe jogando para trás a cabeça pela violência do beijo, lhe abrindo os lábios para invadi-la, com o único propósito de rebaixá-la. Entretanto, ao aprofundar o beijo com os movimentos de sua língua, ela sentiu que se comovia, reconhecendo imediatamente a antiga tentação que os lançava para buscar-se assim que podiam. Ao final, pálida e trêmula, apoiou-se na borda da mesa, enterrando as unhas na madeira polida, mal respirando pelo asco que ele e ela mesma lhe inspiravam. —Rebecca... —o que descobriu ao olhá-la, tremendo, com os olhos muito abertos e contemplando o vazio, estremeceu-o e essa emoção se refletiu na maneira em que murmurou seu nome. Ela tragou saliva, obrigando-se a sair da nuvem negra em que a sumiu esse beijo. Uma fina capa de suor apareceu em sua

pele lhe provocando náusea. Jay não podia

adivinhá-lo, mas sua urgência sexual desapareceu pelo mau trato que lhe deu dez anos atrás e essa era a primeira vez que um homem a beijava desde aquele tempo.

32


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

—Pelo amor de Deus —murmurou Jay ao contemplar seus olhos cinzas—não me olhe desse modo —inclinou a cabeça, com o corpo tenso de ira. —O que acreditava que eu ia fazer? —Fulminou-a com os olhos. —Te violar? Essa ironia vulgar a forçou a recuperar o sentido comum, endireitou-se e com a palma da mão, tentou-se os lábios inchados. —Devo ir —murmurou, atordoada. —Não posso ficar aqui... —Não! —Fez um gesto, como se tentasse segurá-la de novo, e logo deixou cair a mão direita, enquanto ela, imóvel como um pilar de pedra, desprezava-o, com tanto asco, que seus olhos cinzas se tornaram opacas. — Não —repetiu, tão pálido como a jovem. — Olhe... —voltou-se, abaixando os ombros, —se isto ajuda, peço desculpas por... por esta falta de controle. Não acontecerá de novo —embora não lhe via a cara, apostou que se burlava de si mesmo. —A razão pela qual entrei no escritório —continuou com mais calma, — era para te dizer que a senhora Musgrove tem o jantar pronto. Pensei que quereria te refrescar um pouco antes de comer. Ao terminar de falar saiu da habitação e Rebecca o seguiu, muito cansada para rebelarse. Esse beijo atuou como uma violação de sua alma, abrindo velhas feridas e as deixando ao descoberto e sangrando. Também sua reação os sacudiu a ambos e agora só agradecia que ele ignorasse quanto a tinha estremecido porque no fundo de seu coração, onde encerrou todas as lembranças de Jay, agora surgiam de novo, em cascatas. Jay pegou a mala de sua convidada e subiu as escadas. Em fila, percorreram o caminho que ela pisou quando menina, intimidada pela elegância e a grandeza da mansão. Com a ingenuidade da infância, orgulhava-a que permitisse a sua mãe cuidar desse lugar maravilhoso e a seu pai encarregar-se dos jardins. Mas, até em sua cega admiração por essa casa, nunca se imaginou, nem por um momento, que um dia fora a dona e senhora desse lugar. Acreditou que Jay lhe pertencia; mas jamais a riqueza que o rodeava.

33


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

—Espero que esteja cômoda —murmurou Jay, abrindo uma porta e colocando a mala perto da cama. Rebecca conhecia cada uma das habitações da mansão. Essa era a de Cissy Lorence, a tia de Jay, a ovelha negra da família que fugiu para casar-se com o homem que amava, sem lhe importar o fato de que fosse um camponês. Foram-se a América e ninguém voltou a ouvir falar deles, mas ainda se referiam a esse quarto como o de Cissy. Possivelmente Jay o atribuiu com certa razão, refletiu Rebecca ao entrar no quarto, posto que ela também era uma ovelha negra. —Há um banheiro atrás daquela porta —lhe recordou Jay. —Se estiver pronta em quinze minutos, ajudará muito à senhora Musgrove. O jantar já se atrasou uma hora e possivelmente se estrague. Fechou a porta e Rebecca se sentou na cama, ainda tremendo pela desagradável cena que acabava de passar. Desejou ter a coragem de pedir que lhe subissem um sanduíche porque não suportaria a Olivia posando como uma rainha no jantar. Mas, não tinha direito a lhe negar esse triunfo. —Jay nunca se casará com você —a voz de Olivia zombava dela através dos anos. — Pode provocá-lo com esse corpinho sensual com tanta freqüência como quer, mas quando chegar o momento Jay se casará por dinheiro, classe e qualidade. —Ah... igual a seu pai cruza o touro que obteve o campeonato com uma vaca fértil? — mofou-se, aparentando desinteresse. —Que degradante para a pobre mulher que apanhe ao Jay! Olivia não apreciou a astúcia de sua réplica e ela, jovem e tola, não captou quão cega se mostrou a respeito de Jay. Obrigou-se a ficar de pé, abriu sua mala e selecionou o vestido menos enrugado que encontrou. Apenas essa manhã leu o anúncio do jornal? Levantou a cabeça e observou a colcha de cetim cor lavanda que cobria a cama. Parecia que tinha transcorrido uma vida. Dez anos, pelo menos. 34


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

CapĂ­tulo 5 REBECCA teria desejado banhar-se para apagar o aroma do trem e do hospital, mas nĂŁo tinha tempo. Tirou o vestido e se lavou diante o espelho do banheiro. Ao secar o rosto,

35


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

comprovou que o cansaço lhe escurecia os olhos e que seus lábios ainda pulsavam pelo cruel beijo que receberam de Jay. Não devia ficar ali. Todos seus instintos lhe advertiam que fugisse antes que a paz que construíra com mil trabalhos, desmoronasse-se e desaparecesse. Tirou os grampos do cabelo, o escovou com vigor e decidiu deixá-lo solto, sem vontades de refazer o coque. Em sua casa não se preocupava muito com sua aparência. Vestia-se de maneira informal, com vestidos que ela mesma costurava... Assim aprendeu seu ofício, do modo mais difícil, pela necessidade imperiosa de manter-se. Encontrar Christina pareceu um milagre. Sugeriu-lhe que costurasse para outras pessoas. —Conheço mulheres que matariam por um vestido como esse —lhe indicou, revisando o vestido de algodão que Rebecca tinha com óbvia inveja. Fez-o de um tecido novo que comprou no mercado e o costurou em uma velha máquina que descobriu no porão do pequeno apartamento que alugava. Dali em adiante tudo partiu sobre rodas. Conseguiu uma máquina industrial e seu progresso marcou o número de roupas que confeccionaram, depois de que Christina mostrou seu vestido a suas amigas, que trabalhavam em um imenso edifício de escritórios. Quando ao fim sua confiança cresceu, impulsionada pelas amostras de admiração de seus clientes, arriscou-se a desenhar seus próprios modelos, fazendo os vestidos com tecidos de melhor qualidade. Ao cabo de um ano teve que empregar outra costureira para seguir cumprindo os pedidos, uma garota que treinou com paciência e compreensão pois ela mesma passou pelas tribulações de aprender o ofício de um princípio, sem ajuda. Sua lista de clientes aumentou pelas recomendações que pulverizavam e Christina se mostrou tão entusiasmada ante a idéia de estabelecer um negócio, que sugeriu comprar melhores e mais sofisticadas máquinas de costuras. Deixou seu trabalho de secretária e se converteu na sócia de Rebecca, lhe ajudando a administrar a pequena empresa que 36


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

nascia. Foi no pátio traseiro da fábrica, que Kit jogava com os filhos das costureiras, que confeccionavam os desenhos de sua mãe. Ela nunca titubeou, jamais a preocupou por que ou como tinha triunfado, nem se sua empresa quebraria a qualquer momento, porque cresceu pouco a pouco, a um passo manejável. Agora comprava no atacado, procurando os melhores preços, mantendo seus custos baixos para não assustar aos clientes que se mantinham fiéis ano após ano, e que se voltavam amigas, descartando a relação comercial. Sobre a cama, esperando que o pusesse, estava um de seus desenhos mais exclusivos, que ressaltava sua magra figura. Sorriu ao contemplar-se no espelho, satisfeita com o corte perfeito do modelo, que lhe sentava à perfeição. Certamente, admitiu, não competia com a elegância do precioso vestido de Olivia, mas não estava mal. Assim que se dirigiu para a porta, elevou o queixo e desceu pela escada. Jay a esperava no vestíbulo, magnífico em seu terno negro que acentuava o largo de seus ombros e os poderosos músculos das pernas. Ao aproximar-se desse homem, notou as mudanças do passar dos anos... A maneira em que se adaptava à roupa, com uma elegância que não possuía há dez anos. Além disso adquiriu um refinamento especial, da pessoa nascida para o poder e a riqueza que se revelava na confiança que emanava. Seu brilhante intelecto a estremeceu, pois supunha que administrava as companhias de seu pai com a mesma mão dura com a que Cedric Lorence um dia levasse as rédeas. Elevou os olhos azuis e o coração da jovem começou a pulsar apressado ao estudar esse olhar, antes que a escondesse baixando as pálpebras. —Nasceu elegante —murmurou, como se seguisse o fio dos pensamentos de sua convidada. O comentário a gelou e suas feições ficaram tensas porque ignorava se o expressava para elogiá-la ou insultá-la.

37


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

—Acabo de ligar para o hospital —adicionou, surpreendendo-a, —e sua mãe dorme tranqüila, sem sinais de uma reação adversa por sua visita. —Esperava uma? —levantou suas finas sobrancelhas, com os olhos frios e ilegíveis, igual ao mar no inverno. —Não —respondeu, —mas pensei que possivelmente isso te inquietaria. Como resulta óbvio, equivoquei-me. Não, ao contrário, tinha razão. Ia pedir-lhe que lhe permitisse ligar para o hospital, mas jamais o admitiria enquanto esse olhar zombador brilhasse nos olhos de Jay. Quanto ao que se referia a ela, podia catalogá-la como melhor lhe parecesse. Seguro-a pelo braço e a guiou até a sala. Olivia estava sentada em um precioso sofá, com a irritação marcada nas feições. —Até que enfim está aqui —suspirou, impaciente, entrecerrando os olhos ao ver que Jay tocava em Rebecca. —Se tivesse me advertido que íamos jantar tão tarde Jay, não teria vindo. Quase desmaio de fome! —Eu sei e me desculpo por isso —disse, contrito. —Devia ter te ligado para cancelar o encontro mas, para ser sincero, Olivia, esqueci por completo até que vi seu carro estacionado, quando chegamos. —Ah, muito obrigada! —Ironizou ruborizando-se, sem que lhe parecesse aduladora a honestidade de seu anfitrião. —Se estiverem prontos, podemos passar a sala de jantar? —Certamente —replicou Jay, inclinando a cabeça para demonstrar que era consciente de tê-la ofendido. Continuou avançando, sem soltar Rebecca e abriu a porta que comunicava com a sala de jantar, enquanto Olivia se contentava seguindo-os, de péssimo humor. A satisfação de humilhar a sua rival morreu imediatamente ao sentar-se na imensa mesa e escutar, sem poder intervir, o falatório incessante com que Olivia monopolizou a atenção de Jay. Mencionava lugares e pessoas que Rebecca desconhecia, desfrutandose nas intrigas da localidade.

38


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

Apesar de tudo, não se importou que Olivia brilhasse, sempre e quando não tratasse de feri-la com seus sarcasmos. Concentrou-se a beliscar os pratos que a senhora Musgrove colocava ante ela, incapaz de saboreá-los pela tensão que a invadia. —Mais vinho, Rebecca? —sobressaltou-se quando Jay lhe falou. —Não, obrigada —recusou, com cortesia. Aceitou uma taça por educação, mas não estava acostumada à beber álcool. A negativa atraiu a atenção de Olivia e Rebecca esperou, com um sentimento fatalista, que a sutil crucificação de sua compostura começasse. —Pois, foi muito... agradável ver-te de novo, Becky —comentou Olivia. — Ficará muito tempo? —Não, acredito que não —respondeu, de forma vaga, decidida a não dar a Olivia a satisfação de conhecer seus planos, se pudesse evitar. —Mas sem dúvida, voltaremos a nos ver antes de que parta —lhe dedicou um sorriso falso e recebeu outro em resposta. —Sem dúvida —aceitou Olivia, —posto que Jay e eu passamos muito tempo juntos — uma mão de magnólia se estendeu possessiva para cobrir a de Jay. —Possivelmente até poderíamos sair uma noite —sugeriu, entusiasta. — Conseguiria alguém para que fosse seu par, Becky. Sim; mas, a quem?, perguntou-se Rebecca com acidez. Alguém da cidade? Porque isso implicava o tom que usava. —Não vim para me divertir, Olivia —lhe informou, gelada. —Minha mãe está doente e quero acompanhá-la o máximo que puder. —Para logo retornar a sua própria vida, suponho —outra vez a nota de brincadeira se filtrou em sua voz. —Nunca foram muito unidas, não é verdade? —O suficiente para considerar me mudar a Thornley, se minha mãe desejar permanecer aqui —se ouviu responder Rebecca, seguindo um impulso que ao menos lhe deu a satisfação de ver duas bocas abertas pela surpresa. Certamente jamais o faria. Não com o Kit. Jamais com o Kit. —Mas possivelmente consiga convencê-la de que vá viver comigo. 39


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

—E onde seria? —interveio Jay, seco. Contemplou-o, dando-se conta de que não tinha a menor idéia de onde vivia. Não o perguntou e ela não o havia dito, de maneira nenhuma. Assim... —Em Londres —respondeu, sabendo que a cidade era imensa e que alguém se perdia nela. —Sua mãe viveu no Yorkshire toda sua vida —descartou a idéia com tom mordaz. —Só uma louca insensível pensaria arrancar de seu lugar, uma pessoas idosa e muito doente. —Então, o que sugere que faça? —desafiou-o. —Como não sou tola, compreendo que minha mãe não poderá seguir trabalhando de faxineira quando sair do hospital. Devia ter se aposentado faz anos e, como assinalou antes —adicionou molesta, —é minha responsabilidade e de ninguém mais. —Portanto, terá que te mudar para cá, como acaba de indicar —uma estranha nota de triunfo fez que Rebecca franzisse o cenho. Por que essa possibilidade atraía tanto ao Jay? —Meus compromissos possivelmente dificultem essa solução —se defendeu. —Entre eles se encontra um homem? —indagou Olivia, em sinal de intriga. Rebecca sustentou o olhar de Jay por um momento e logo se voltou para ver Olivia. —Sempre há um homem nos compromissos de uma mulher —se burlou e adicionou: — Mas também administro meu negócio e não posso mudar de lugar com tanta facilidade. —Administra seu próprio negócio? —ao fim parecia ter impressionado a Olivia e Jay entrecerrou os olhos, avaliando-a. —Sim — confirmou, —,e não o posso movê-lo de um lado a outro. Desenho e confecciono vestidos para senhoras —admitiu. —Minha clientela requer de minha atenção pessoal e não se deslocará por minha causa. —OH —suspirou Olivia, com uma expressão irônica, —quer dizer que costura nas casas, como a velha senhora Denver fazia na cidade?

40


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

—Não —respondeu Rebecca, ficando de pé. —Produzo sob minha própria marca... Salamandra —adicionou com calma, gozando ao ver que Olivia voltava a ficar com a boca aberta. —Acaso você... você é Salamandra? —sua voz refletia incredulidade. —Exato —confirmou Rebecca, sorrindo com satisfação. Salamandra só era um ramo de seu trabalho, mas compreendia as linhas exclusivas que desenhava para tecidos caros. A Christina lhe ocorreu levar umas amostras às melhores boutiques de Londres, para ver o que acontecia. Isso aconteceu três anos antes. Depois, a etiqueta de Salamandra se converteu em um nome invejado no mundo da moda. Rebecca só confeccionava seis trajes a cada estação e os arrebatavam das mãos, lhe pagando uma pequena fortuna, até antes que saíssem da oficina. —Esse é um Salamandra? —Olivia contemplava seu vestido cor jade com novos olhos e uma expressão quase invejosa. —Não —lhe esclareceu Rebecca. —O desenhei para meu uso pessoal —lançou um olhar a Jay e decidiu aproveitar a oportunidade que lhe oferecia. —Se não se importam, preciso me retirar... foi um dia muito cansativo para mim. —Certamente —também ficou de pé; suas maneiras eram, como a maioria dos detalhes nele, impecáveis. Com um frio "boa noite". Rebecca escapou para o quarto, detendo-se no vestíbulo para relaxar-se, antes de endireitar-se e subir as escadas. Jay a alcançou ali, chamando-a com suavidade por seu nome, enquanto fechava a porta atrás dele. —Ainda a tenho —lhe informou, com voz rouca. A jovem franziu o cenho, perguntando-se a que se referia. —A Salamandra —explicou, sorrindo ao mesmo tempo que ela se ruborizava ao dar-se conta de que Jay tinha descoberto a conexão. —Por que escolheu esse nome, entre todos os imagináveis, Rebecca? —indagou, apoiando-se contra o corrimão e

41


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

contemplando-a zombador. —Acaso foi porque sentiu saudades enquanto construía seu pequeno império? Voltou-se, sufocando o estremecimento gelado que esticou suas feições. —Senti saudades de Salamandra —respondeu, remota. —Foi a única amiga que tive neste lugar. Claro que não a esqueci. Com isso continuou subindo, consciente do olhar agudo que se posava sobre suas costas e de que, por seu tolo desejo de apagar a expressão condescendente da cara de Olivia, revelou mais do que o necessário. Zangou-se consigo mesma. Não visitava sua mãe como o filho pródigo, conforme sugeriu Jay com sarcasmo na estação de trens. E certamente, tampouco para lhes demonstrar que levava uma vida bem-sucedida apesar dos esforços de todos eles por arruiná-la. Arriscar-se sem razão lhe parecia tolo e perigoso. Mas, Salamandra ainda estava ali? Seu inquieto coração se agitou ao entrar no quarto, pronta para deitar-se. Fechou os olhos por um momento para viajar através do tempo e recordar sua galopada selvagem e livre, sobre a égua azeviche de Jay. A crina de Salamandra voava ao vento enquanto ela ria, contente, desafiando o dono do animal a alcançá-la. Jay... seu coração se contraiu de dor... Jay sorrindo, urgindo-a a avançar com seus olhos azuis, açulando à formosa irmã de Salamandra, Salomé. —Por que sempre monta uma égua e não um cavalo? —perguntou-lhe uma vez, curiosa, e descobriu um brilho travesso em seus olhos antes de que lhe respondesse: —Prefiro montar fêmeas, Becky... acreditei que já tinha se dado conta. Moveu-se pelo quarto com torpeza, enquanto essas indesejadas ondas de nostalgia lhe oprimiam as entranhas. Tinha jurado que naquele tempo naquele tempo a amava. Sim... e possivelmente a amou, para depois lhe causar um terrível mal.

42


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

Capítulo 6 REBECCA dormiu mau e despertou cedo, porque os sonhos a perturbavam muito para que quisesse continuar na cama, depois que a luz do sol começou a filtrar-se em seu quarto. Resolveu tomar um longo banho quente, que esperava que relaxasse a tensão de seus músculos antes que as pressões do dia a esmagassem. Jay já tinha ido ao escritório quando desceu a escada. Sabia disso porque não saiu do quarto até que observou que o carro esportivo desaparecia em uma curva do caminho. —Bom dia, senhorita Shaw —o sorriso morno da senhora Musgrove a recebeu na ampla e moderna cozinha. —O senhor Jay se desculpa com você, mas tem que estar em seu escritório durante algumas horas. Entretanto, encarregou ao Jimmy que a levasse ao Harrogate. — Jimmy ainda trabalha aqui? —seus olhos se iluminaram. Jimmy Tiler ocupou o lugar de seu pai depois de sua morte encarregando-se dos jardins e fazendo-se de chofer quando se necessitava. —Sim —sorriu a senhora Musgrove. —Acredito que ficará para sempre —murmurou, seca, —igual à sua mãe, acrescentou com cautela: —Nunca a conheci, senhorita Shaw; o senhor Jay me contratou para substituí-la, mas sei que a apreciam muito aqui, no Hall,

43


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

e lhe asseguro que não pretendo lhe roubar seu trabalho. Sou apenas uma ajuda temporária, até que sua mãe se reponha. Rebecca sorriu para demonstrar à senhora Musgrove que não duvidava de sua sinceridade. Mas lhe bastou olhando uma vez a sua mãe, nessa cama de hospital, para dar-se conta de que seus dias de faxineira tinham terminado. Tomou no café da manhã café e pão torrado e ligou para o Kit, tirando forças de seu bate-papo infantil. Depois falou com a Christina sobre o negócio, assegurando-se de que tudo estivesse em ordem durante sua ausência. —Como foi? —perguntou sua amiga, uma vez que terminaram com o tema do negócio. —Resultou bastante difícil —admitiu com honestidade. —É estranho, mas não posso determinar como me sinto a respeito deste lugar —confessou, franzindo o cenho. —Me pareceu horrível ver minha mãe deitada, frágil e doente. Suponho que todos acreditam que as mães são imortais, que viverão para sempre... terei problemas quando ela se recuperar, Chrissy —murmurou, preocupada. —Necessitará que a cuide e não estou segura de como dirigirei esse assunto, levando em conta o que suscitará. —E Jason Lorence? —Indagou Christina, com precaução. —Já se encontrou com ele? —OH, sim —Rebecca torceu a boca. —Estou em seu escritório, neste momento —riu, — no papel de convidada indesejável com um anfitrião resistente. —Deus santo! —Exclamou Chrissy. —Como se meteu nessa confusão? —É uma longa história —suspirou Rebecca; —uma que terá que esperar até que eu retorne. —Pois, não te inquiete pelo Kit... está muito bem conosco, já sabe —Christina não insistiu. Conhecia Rebecca muito bem para não tratar de esclarecer um segredo quando ela não queria. O Jimmy adorou ver Rebecca e falaram de tudo enquanto a levava ao hospital. Nunca foi um intrometido, mas se precavia de maiores detalhes do que revelava sua natureza

44


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

introvertida e possivelmente sabia mais que ninguém quão apaixonados estiveram Jay e ela. Passou o dia com sua mãe, menos intranqüila ao encontrá-la melhor. Devagar, com um excesso de cautela por ambas as partes, começaram a fincar as bases para uma nova relação. Rebecca não mencionou o Kit e sua mãe não indagou sobre o resultado do ultimato que ela e o pai do Jay impuseram a Rebecca há dez anos, enquanto a jovem, se mostrava incerta sobre o modo em que resolveria o problema do Kit e seus parentes do Yorkshire. Devia contar a sua mãe, mas ainda não se sentia capaz de enfrentar-se a essa situação. Precisava considerar o que faria. Mas de algo estava segura: Jay não se inteiraria de nada. Não podia dar-se esse luxo. Lia para sua mãe à tarde, quando Jay se apresentou no hospital. Não o ouviu chegar e foi sua mãe quem o descobriu primeiro, saudando-o com um sorriso torcido, já que a metade da cara seguia paralisada. — Jay! Que alegria ver você de novo! —Vejo que está muito melhor, Lina — inclinando-se sobre a cama para beijar a velha bochecha, levando com sua vitalidade uma força vibrante ao quarto, que arrepiou os pêlos da nuca de Rebecca. —Pergunto-me quem provocou esta transformação — brincou. —OH, Jay... —murmurou a anciã, com os olhos úmidos. —Obrigada por encontrá-la... — a mão se deslizou por cima das colchas até achar a de Rebecca, para agarrá-la. —Não sabe quanto significa para mim que Becky tenha retornado. —Acredito que entendo sim, Lina —replicou em voz baixa, olhando a jovem com olhos sombrios. —Foi minha culpa —continuou a doente, chorosa. —Eu a mandei embora de casa quando era só uma menina rebelde e difícil de controlar. Mas não tinha direito a abandoná-la como fiz —adicionou, pousando seus olhos na filha. —Não, não o tinha, Becky, e passei todos estes anos me arrependendo de minhas palavras.

45


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

—Não se altere, mamãe —comovida pelo sentimento de culpa que transluzia na voz de sua mãe, mas também temendo que o desespero a obrigasse a dizer algo indevido, sorriu-lhe com ternura: — já não importa. O passado, é passado e esquecido, não acha? —OH, sim —suspirou sua mãe, —preferiria esquecê-lo, se pudesse. O sono a venceu com rapidez, como se essa explosão emotiva a tivesse fatigado e ambos, Jay e Rebecca, contemplaram-na durante alguns minutos antes que ele se voltasse para observar a jovem. —Ela te mandou embora de sua casa? Titubeou antes de replicar, cobrindo seu olhar com suas longas pestanas. —Sim —admitiu, consciente de que já existiam muitas mentiras nessa situação para adicionar mais uma. —Por que? —quis saber, ainda observando esses olhos que se negavam a lhe corresponder. —Descobriu o nosso namoro, Becky? Foi por isso? estremeceu-se ao ouvir que a chamava de Becky e se mordeu o lábio, perguntando-se por que o assombrava tanto essa idéia, se ele a abandonou da mesma maneira com igual facilidade. —Como acabo de dizer a minha mãe...—levantou o queixo, tão fria e remota que semelhava o fundo de um lago... —... o passado, é passado. Prefiro que o esqueçamos. Por um momento lhe sustentou o olhar, enquanto ele pensava, estudando as possibilidades em seu ardiloso cérebro. Ali existia um segredo, mas se ele decidia sufocá-lo, só exercia sua prerrogativa e a garota endureceu seu coração ainda mais contra Jay. Voltou-se para recolher suas coisas, preparando-se para partir. Observou-a em silêncio; cada movimento, cada expressão lhe advertia que a jovem se escondeu atrás do escudo que tinha aprendido a reconhecer sem dificuldade. A antiga Rebecca refletia suas emoções no rosto, deixando livres sua ira, seu deleite, sua cálida paixão. Mas esta nova Rebecca mal permitia entrever algo, mantendo uma compostura inquebrável.

46


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

Exceto quando a beijou. Então a emoção rompeu suas barreiras, impactando-o com a profundidade do asco que lhe demonstrava, lhe provocando uma sensação de vergonha e irritação por não poder dominar os sentimentos que os sacudiam com uma violência devastadora. Retornaram ao Thornley em silêncio. Rebecca tinha muito no que pensar pois esse dia falou com o médico de sua mãe. Embora a doente se recuperava, explicou a Rebecca que jamais voltaria a ser igual a antes. —A pneumonia lhe debilitou o peito —assentou. —Em resumo, senhorita Shaw, a saúde de sua mãe se danificou bastante pela cadeia de acontecimentos. Necessitará que a cuidem; não deve trabalhar, nem viver sozinha. —Esta noite não jantarei com você —lhe disse Jay de repente, sobressaltando-a porque o silêncio se prolongou muito. —Tenho um jantar de negócios que não pude cancelar. —Não se preocupe —respondeu, seca. —Não estou com você como sua convidada, assim não precisa me acompanhar. —Provavelmente preferiria te acompanhar —murmurou, observando-a. Ela afastou a vista, com perfeita compostura. Mas os batimentos do coração que desatou esse comentário, em tom rouco, careciam de compostura. Captou o significado oculto e quis rejeitá-lo de antemão. Mas não pôde, porque Jay começava a afetá-la da mesma maneira que antes, onde mais lhe doía, na cicatriz que guardava seu coração. As redondezas de seus seios se levantaram com um suspiro pesado. Desejou não estar com ele. Queria que essa perigosa situação jamais se apresentasse. —Se você e sua mãe conseguem reconciliar-se, Rebecca —propôs em voz baixa, —não acha que nós também deveríamos tentar? Não, pensou, nunca seria igual. Contemplou-o: um homem em extremo atraente; um homem que levava sua maturidade de corpo e espírito como o manto de poder que herdou de seu pai.

47


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

O outro, o jovem Jay, era insensato e excitante, sempre pronto para aplaudir as travessuras que ela inventava nesse momento; amava sua natureza impulsiva e a anseia de viver que a caracterizasse. Conheceu o emocionante poder de sua sexualidade e se mostrou ansiosa de entregar-se à batalha sensual entre um homem e uma mulher; viu seu corpo musculoso nu, brilhando sob a luz da lua cheia, despertando-a para uma paixão profunda que acreditava impossível, com apenas ficar ali, olhando-a, lhe fazendo amor com os olhos, sem necessidade de tocá-la. Seus sentidos se agitaram, rogando que lhes concedesse a liberdade de expressar-se, de um modo que nem sequer imaginou nesses dez longos anos. Mas os dominou com mão de ferro. Assim como a moldaram na mulher de aparência tranqüila que agora era, o converteram em um homem controlado, mais perigoso que antes porque parecia poder inquietá-la por meio de suas lembranças. —Não acredito, Jay —respondeu, sem modulações. —Diferente de minha mãe e eu, nós dois não temos já nada que nos oferecer. —Realmente acredita nisso? —Suas mãos apertaram por um momento o volante. —Eu não —murmurou, de mau humor. —Maldição, eu não! Ela se surpreendeu pela rudeza de sua voz. Olhou-o durante um segundo e isso bastou para que soubesse ao que se referia. Tinha recebido esse olhar mil vezes... antes. Ainda a desejava! Com o calor e a paixão de há dez anos, sem pensar nas conseqüências ou convenções que quebrava ou aonde podia conduzi-lo essa paixão. —Esquece-o, Jay —lhe ordenou, em um tom morto e, confusa, voltou-se, apertando os lábios de medo e asco. —Já não sou a estúpida e ingênua adolescente de antigamente... eu cresci! —informou-lhe com tristeza. —Com rapidez, graças às lições amargas que me deu.

48


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

O carro se deteve frente à casa e Rebecca desceu, com pernas trêmulas e uma fúria e desprezo que a impulsionaram a quase correr até a casa. Ele a atracou no vestíbulo e a obrigou a voltar-se, raivoso, com uma ira que a perturbou. —Começo a me fartar destes comentários que me lança —lhe cuspiu. — Você me abandonou há dez anos, Rebecca, e me parece que já é tempo de que reconheça esse maldito feito. Contemplou-o, abobalhada pela profundidade em que foi capaz de enterrar a verdade. —Pensa o que quiser —exclamou, tão indignada, que o ar saía de seus pulmões em ofegos. —Mas me solte! Não sou uma boneca de pano para que me sacuda cada vez que tenha vontade. —Não —aceitou. —Você é uma mulher dura e amargurada que, por uma razão torcida que só você conhece, decidiu que o que aconteceu aqui há dez anos foi culpa de todos, exceto tua. —Exato —reconheceu, puxando seu braço sem nenhum resultado. — Dura, amargurada e que não está disponível para ninguém... nem para você nem para que outro homem me use de novo. —E Kit? —inseriu, seco. —Onde deixa o querido Kit? —mofou-se. —Deixo-o no lugar que lhe corresponde —respondeu, gelada, com os olhos atormentados. —A exceção em uma regra inquebrável. Pertenço-lhe de corpo, coração e alma. E não a você, nem a... nem a seus antigos atrativos —afirmou, burlando-se. — Essa relação jamais, jamais se estragará. Puxou outra vez o seu braço e ele a soltou para que se separasse de seu lado, tremendo a tal grau, que mal podia pôr um pé frente ao outro, ao dirigir-se para as escadas. —Entretanto, igual a mim, não precisou casar-se com você para te converter em sua escrava incondicional... —mofou-se Jay a costas da jovem e a profundidade do desprezo a obrigou a voltar-se, sacudida pela crueldade que lhe demonstrava. —E, também igual a mim, suponho, descobriu que podia tomar o que desejava muito sem incomodar-se por cumprir com convencionalismos absurdos, como uma licença de casamento. 49


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

—Correto —concordou, sem lhe esclarecer nada e, não obstante, aceitando a tudo o que ele queria acreditar. —Idêntico a você, de muitas formas... exceto na mais importante —o cobriu com seu desdém. —Kit me ama. Para ele sou a única pessoa no mundo que importa e nem ele, nem eu, necessitamos de provas, escritas ou sociais, de que isso é verdade. Algo se removeu dentro dele e lhe sustentou o olhar por um instante, antes de seguir subindo as escadas. —E este...esta comparação de virtude sabe que abortou? Rebecca ficou imóvel, como se Jay lhe tivesse enterrado uma adaga nas costas. —Ou preferiu ocultar esse suculento detalhe de seu passado? Poucos homens desculpam a destruição de um ser humano, Rebecca. Não concordam com a visão corde-rosa que gostam de manter suas companheiras... —Você deve saber, Jay —se obrigou a continuar subindo, negando-se a olhá-lo, em caso de que seu controle se quebrasse e lhe enterrasse as unhas na cara. —Se supõe que é um homem, depois de tudo. Como parlamento final era impecável e Rebecca ainda conservava a sensibilidade suficiente como para que a invadisse o orgulho de poder calar a seu anfitrião. Terminou de subir com o queixo em alto e os ombros erguidos. Só quando fechou a porta de sua habitação, deixou-se cair sobre a cama, tremendo pela tensão. —Maldito! — murmurou, balançando-se para trás e para frente, presa de uma profunda dor. —Esse maldito cruel e desumano... Nevou essa noite e os flocos cobriram o campo com um lençol branco. Quando chamou o Kit à manhã seguinte, o menino imediatamente quis saber se ela não poderia sair da casa, devido à tormenta. —Dizem que Yorkshire está enterrado sob a neve —lhe informou. —Que há montanhas de neve tão grandes como uma casa! —Exageram —riu Rebecca. —Sim, nevou, e sim há uma capa bastante grossa no chão. Mas as estradas estão transitáveis e os noticiários só provocam pânico —se mordeu o 50


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

lábio, perguntando-se se Kit dizia a verdade. A idéia de permanecer trancada nessa casa não a atraía. Já tinha decidido retornar nessa manhã a Londres, embora isso significasse deixar de ver sua mãe uns dias. Não podia ficar ali mais tempo... começava a machucá-la muito. Essa manhã sua mãe se via muito cansada e inquieta e algo que a preocupava a enchia de ansiedade. Rebecca tratou de tranqüilizá-la lendo, mas não o obteve e a enfermeira de plantão visitava a paciente com mais freqüência que os outros dias. Na hora do almoço, o céu se escureceu e apareceram nuvens carregadas de neve. A urgência de retornar a Londres, antes de ficar presa ali, a fez inclinar-se sobre sua mãe para tratar de lhe explicar por que se ia. —Não! —Gritou Lina Shaw, agarrando-se à mão de sua filha. —Não me deixe, Becky... não me abandone outra vez... por favor, não me deixe! —Se acalme, mamãe —lhe rogou, odiando-se por fazê-la sofrer. —Te prometo que retornarei na próxima semana... —embora tenha que usar uma pá para chegar ao hospital, disse-se, com uma enorme sensação de culpa. Repetiria a visita cada fim de semana até que sua mãe melhorasse o suficiente para sair do hospital; mas nesse momento não suportava a proximidade de Jay nem um segundo mais. —Por favor, trata de compreender, tenho compromissos inadiáveis e outras pessoas não podem me substituir —já tinha contado a sua mãe que seu negócio lhe exigia uma dedicação de tempo completo. —Não quero que vá, Becky... —as lágrimas começaram a lhe encher os olhos de desespero e, sentindo-se impotente, Rebecca se sentou sobre a borda da cama para abraçar sua mãe. —Amo-te muito, mamãe —sussurrou, confessando pela primeira vez e descobrindo, para sua surpresa, que na verdade o sentia. —Não quero te deixar aqui. Mas Jay te visitará e eu retornarei no próximo fim de semana...

51


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

—Não, não o fará —suspirou a doente. —Irá e me esquecerá de novo —começou a soluçar, com gemidos patéticos que espremiam o coração de Rebecca e a faziam abraçá-la com mais força. —Não chore, mamãe —lhe suplicou, emocionada. —Não chore porque não suporto. —Sei que deve me odiar —murmurou, através dos soluços. —Mas tem que me perdoar, Becky! Tem que me perdoar! Não poderei seguir vivendo se não me perdoar! Não poderei! —Perdôo-te —afirmou sua filha, com paixão. —Claro que te perdôo! —Todos estes anos... —continuou a anciã. Os dedos disformes acariciaram o cabelo de Rebecca e se agarraram a jovem, como se a aterrasse soltá-la, —o remorso me carcomeu, Becky, me roendo as vísceras até que já não podia mais. —Cale-se —a tranqüilizou Rebecca, comovida pelo sentimento de culpa e dor de sua mãe. —Já não importa. Nada importa exceto que você fique boa. —OH, mas importa sim —choramingou. —Todos nós lhe traímos. Eu, o senhor Lorence, Jay —a paralisia facial a deixava grotesca nesse momento de agonia. —Cometemos um crime, Becky, um crime imperdoável e você pagou as conseqüências. Um bebê... que Deus nos ajude, concordamos em destruir um bebê indefeso! Senhor! —afogou-se e o pranto sacudiu o frágil corpo. —O filho de Jay... meu neto... o esmagamos em nome de um estúpido orgulho. Não existe uma desculpa para esse pecado. Nada pode... eu... Então esse tortura explodiu dentro de sua mãe e Rebecca a sentiu sacudir-se, aterrada, com os olhos exagerados, enquanto a recostava sobre os travesseiros, desmaiada. —Mamãe! —gritou, fora de si. —Pelo amor de Deus... eu não abortei! Tem um neto, mamãe... um maravilhoso e saudável neto de nove anos! Então, o inferno se desatou a seu redor, começando pelo monitor ao lado da cama que soltou um agudo som de alarme. Voltou-se, procurando com olhos enlouquecidos à enfermeira e ficou gelada, totalmente gelada, enquanto seu olhar descansava sobre a alta figura parada aos pés da cama. Olhou-a consternado, com os olhos opacos pelo impacto e a pele pálida e tensa, como se tivesse envelhecido dez anos nesses breves, mas devastadores instantes. 52


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

As pessoas corriam de qualquer parte, empurrando-o em sua urgência para aproximar-se de Lina, afastando Rebecca da cama, para iniciar a batalha por salvar uma vida. Entretanto, nem as ordens, nem a eficiência dos médicos, romperam o contato visual entre a Rebecca e Jay. Ele ouviu... sabia... era tudo o que ela podia pensar. Uma vez mais chegou em silêncio e escutou cada palavra delatora, que lançou ao vento. Então, alguém tomou Rebecca pelos ombros, murmurando algo para respirá-la e conduzindo-a com cautela fora do cubículo. Piscou, afastou as olhos cinzas de Jay e permitiu que a sentassem em uma cadeira, onde começou a tremer, sacudida pelas emoções. Quando se reuniu com ela, ignorou-o; mas de repente estava sentado a seu lado, lhe capturando a mão entre as dele. Não falaram e Rebecca não tratou de afastá-lo, imóvel de corpo e alma até que, momentos mais tarde, um doutor uniformizado de branco, apareceu ante eles e lhes disse em voz baixa: —Ela está bem, senhorita Shaw. Sua mãe está bem. Um pequeno enguiço do coração, provocada pela excitação, nada mais. A sedamos e possivelmente a manteremos assim durante um par de dias, para não correr riscos. Rebecca elevou os olhos, sem registrar nada. Contemplou o rosto amável do médico, o quarto a suas costas, onde o monitor continuava com seus tranqüilizadores ruídos estáveis, inalteráveis. Fixou-se em suas mãos, embaladas pelas de Jay, em sua mão coberta de pêlos escuros e o punho imaculado da camisa. De repente, com um relâmpago de intuição que a impactou de novo, deu-se conta do que não captou há dez anos, nem sequer há dois dias, durante a longa viagem a cidade, nem sequer hoje, ao escutar sua mãe cuspir a culpa que a curvava. Que não importava. Nada importava. Nem a maneira em que sua mãe a expulsou de sua casa quando mais precisava dela. Nem o abandono cruel de Jay. Nem o modo em que seu pai lançou seu ultimato, nem o pagamento que lhe estendeu em um cheque de despedida... nem sequer a sensação amarga de ser traída. Nada, na última análise, importava porque não fez o que outros lhe ordenaram. Esses dez anos de ódio, de fingir 53


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

que não existia, de ignorar os sentimentos de culpa de sua mãe, sofreram-se em vão. Porque Kit vivia e era um menino são e feliz. Um menino rejeitado no ventre por aqueles que temiam seu poder se vivesse e, se ela não tivesse fugido, se tivesse defendido seus princípios enfrentando-se a todos, lhes esfregando a realidade de sua gravidez, então esses dez anos longos e dolorosos, teriam sido claros porque a verdade e a justiça sempre sufocavam a amargura, a culpa e o egoísmo.

Capítulo 7 REBECCA elevou o rosto, procurando e encontrando o de Jay, fixo no dela. Levantou o queixo, sustentada por esse orgulho que lutou por conservar. —É meu filho, Rebecca? —perguntou-lhe. Não replicou, não podia. A verdade lhe obstruiu na garganta. Tudo o que acontecia era sua culpa. Nunca devia ter ido dali há dez anos. Jamais devia ter permitido que esses malditos Lorence intimidassem a ela e a sua mãe. E nem sequer devia ter pensado em abandonar a cabeceira da doente quando sabia que não estava pronta para essa separação. As lágrimas lhe nublaram a vista e a culpa lhe passou sobre os ombros. Christina e Tom cuidavam bem de Kit, não lhe aconteceria nada. Era Jay quem a afastava do hospital, aceitou com amargura. Jay e a força de sua atração. —Olhe... —se aproximou, sem tocá-la, —hoje já não podemos ajudá-la. Voltemos para casa antes de que se desate a tormenta... A casa... a frase não lhe inspirava nada agradável. Sua casa ficava várias centenas de quilômetros de distância, em um setor industrial. 54


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

Cruzou o quarto, recolheu seus pertences e contemplou pela última vez a sua mãe, antes de inclinar-se para lhe beijar a bochecha. —Amo-te muito, mamãe —sussurrou, logo se endireitou, com a prova coberta por uma máscara de frieza, para depois seguir Jay até o elevador. Jay tinha razão. Começava a nevar e isso a tranqüilizou. Significava que ele teria que concentrar-se no caminho resbaloso e não a interrogaria. Uma vez dentro da mansão, Rebecca se dirigiu às escadas, esperando escapar a seu quarto antes que Jay entrasse na casa. Mas não teve essa oportunidade. —Não tão rápido —a advertiu e ela, com um suspiro de derrota, voltou-se para olhá-lo. — No escritório —lhe indicou e, sem outras palavras, obedeceu-o. Tirou o casaco e se sentou, se inclinando para frente para esquentá-las mãos no fogo da chaminé. Jay a seguiu, também tirou seu grosso casaco e o jogou sobre uma cadeira. —É meu filho? —repetiu a pergunta que ela não respondeu no hospital. —Segundo a maioria das pessoas, não —soltou uma gargalhada horrível, recordando essas terríveis acusações, os desafios humilhantes a respeito de se podia determinar de quem era o filho que levava no ventre; a raiva, a hostilidade, a desconcertante confusão do que lhe acontecia... Voltou a viver a dor da rejeição, o medo paralizador de não saber aonde ir, como conseguiria manter-se à idade de dezesseis anos, com um bebê e sem ninguém a quem lhe importasse se estava sã ou se morria. —Não foi isso o que te perguntei —a atalhou, com a ira lhe cintilando nos olhos azuis. — Trato de averiguar se você e eu temos um filho do qual não sei nem meia palavra. —Não, não tem um filho do qual não sabe nem meia palavra —riu de novo e outra vez a risada soou falsa. —Embora tenha um filho cuja existência alguma vez conheceu e do qual quis te desfazer em nome do orgulho familiar —se burlou, sarcástica. —De que está falando? —observou-a, sem entender. —Jamais, jamais, induziria a uma mulher a roubar do seu filho o direito a viver... não importa quais fossem as circunstâncias negativas que a rodeassem.

55


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

—Ah, não? —levantou-se, odiando-o, desprezando-o por sua maravilhosa habilidade para mentir... até a si mesmo, a julgar por sua expressão de desconcerto: —Então o imponente cheque que me entregaram em seu nome, para abortar o meu filho, não tinha nada que ver contigo? Jay ficou de pé de um salto e seu rosto se converteu em uma máscara de ira. —Espera um momento... —segurou o braço da jovem para mantê-la imóvel, frente a ele. —Jamais te enviei um cheque —gritou—, nem o escrevi ou autorizei. Portanto, deixa de me converter no assassino de bebês indefesos. —Pois isso é precisamente o que te considero —se mofou. —Me escute, Rebecca... —se ela pensava que a sacudia uma agressão ardente, a raiva de Jay a aplacava. Seus dedos lhe machucavam o braço, enquanto adicionava: —Não permitirei que me fale desse modo! Maldição! Eu adorava o chão que você pisava. Uma vez acreditou nesse apaixonado juramento. Não voltaria a fazê-lo. —Nego-me a discuti-lo —exclamou, escapando de sua mão para aproximar-se da chaminé, tremendo tanto, que teve que abraçar-se para controlar-se. Ele também necessitou um momento para dominar-se e ela escutou que aspirava com força, antes de insistir, em voz baixa e carregada de emoção: —O filho que escondeu em algum canto desta terra esquecida de Deus... é meu, ou não? Não! quis lhe gritar, com toda a força de seus pulmões. Não é teu, nem agora, nem nunca. Mas só continuou contemplando o fogo, com os olhos ardendo como carvões. E, dentro dela, dez anos de amarga desilusão, subiam à superfície de seu ser, mantendo-a trêmula e tensa, como um vulcão a ponto de explodir, fazendo-a desejar gritar, golpear, mutilá-lo, como ele uma vez a mutilou. Tentou lhe mentir, para sentir um gozo indescritível ao lhe negar o direito de chamar o Kit de filho. Por que não devia mentir a respeito da concepção do Kit? Era filho dela e a orgulhava ser sua mãe... Não importava o que sentisse o pai em relação à parte que tomou nessa procriação.

56


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

Girou sobre seus pés, com as olhos chamejantes de ódio e disse, com os dentes apertados: —Sim, é seu filho... embora ele nem sequer saiba quem é seu pai. Sua reação a surpreendeu: em lugar de chamá-la de mentirosa, ou lhe exigir que justificasse essa afirmação lhe oferecendo provas irrefutáveis; em vez de pôr em dúvida sua habilidade de saber quem era o pai de Kit, observou que empalidecia e que seu rosto se contorsionava em uma expressão desumana, como ela jamais viu na cara de outro homem. —Poderia te estrangular, Rebecca... —sussurrou, rouco. —Eu adoraria pôr minhas mãos ao redor de seu belo pescoço e te sufocar. Como se atreve a esconder um filho de minha carne, um filho de meu sangue, durante dez malditos anos, para que eu não o conheça? Alarmada pela violência que o sacudia, retrocedeu e seu salto se chocou contra a grade de bronze da chaminé, quase fazendo-a perder o equilíbrio. Jay esticou uma mão e a pescou pelo ombro para endireitá-la, quase lhe triturando os ossos. —Tem medo, né? —burlou-se, entrecerrando os olhos até convertê-los em uma ranhura de prata. —Me agrada, minha pequena tortura. Porque, Por Deus!, tem razão para me temer. A hostilidade brilhou no olhar de Rebecca, que não baixou os olhos, desafiando-o, enquanto suas recriminações secretas os mantinham rígidos, preparados para machucarse. —É meu filho, Jay —lhe esclareceu, com um direito de posse tão evidente que o estremeceu. —Meu! Ouviu? A única parte que você proporcionou para criá-lo foi uma breve ejaculação, de animal no cio. A bofetada a obrigou a calar-se. —Não volte a degradar sua existência dessa forma de novo —lhe advertiu, cuspindo-a com seu desprezo. A bochecha lhe ardia e seus lábios lhe pulsavam onde seu polegar os golpeou. Jay se separou dela, lhe dando as costas para tratar, com enorme esforço, de controlar a

57


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

violência de seu temperamento, enquanto a dor e a humilhação devolviam a prudência a jovem. —Sinto sinto... —murmurou, com remorso. Embora nada mais fora isso, ele tinha razão. Não devia degradar a existência de seu filho. Voltou-se para olhá-la e logo afastou a vista, cravando-a em seus pés. Colocou as mãos nos bolsos e o silêncio se estendeu entre eles, carregado de uma tempestade de emoções muito complicadas para se entender. —Lhe telefone -ordenou de repente, aproximando-se dela, ameaçador. —O que? —perguntou, abobalhada, abrindo os olhos pelo assombro. —Lhe telefone —repetiu, pegando-a pelo braço para arrastá-la até a escrivaninha. — Chama o nosso filho —gritou. —Suponho que tem o meio de te pôr em contato com ele. E então? —pô-lhe o telefone nas mãos. Faça-o! Quero ouvir sua voz! Tremendo, consciente de que Jay mantinha o controle sobre si por um fio e segura de que a golpearia de novo se não tomasse cuidado, começou a discar e conseguiu comunicar-se com a casa de Christina. Doía-lhe a garganta, que se fechava pelas lágrimas. O som do timbre cessou e escutou a voz de Christina pela linha. —Olá, Chrissy —a saudou e teve que tossir para clarear a garganta. —C-como está Kit? —A ponto de acabar com o pobre do Tom —lhe informou, sem que sua amiga se precavesse da emoção que agonizava a voz de Rebecca. —Foram patinar sobre gelo, hoje, como estava planejado. O pobre do Tom aterrissou sobre suas costas e Kit teve que tirá-lo da pista morto de risada. —Diga que quero falar com ele —nem sequer pôde rir com Christina. —Aconteceu algo, Becky? —perguntou ela, de repente. —Não —lhe assegurou, abrindo os olhos cinzas para conter as lágrimas. —Tudo está bem! Se não levar em conta um desastre geral. Chama o Kit, por favor. Preciso falar com ele.

58


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

—Certo... —brincou Chrissy, sem acreditar em nenhuma palavra. Mas a obedeceu e Rebecca a ouviu gritar o nome do menino. —Então Kit era o amante responsável, né? —mofou-se Jay, percorrendo-a com os olhos. —Maldita! Falava com meu filho duas vezes ao dia usando meu telefone! Maldita! — repetiu, enojado. —Olá, mamãe! —Rebecca piscou ao ouvir a vozinha familiar e a tensão que a invadia começou a repicar em seu cérebro. —A tia Chrissy te contou do tio Tom? —Riu, sem imaginar que sua mãe morria de dor do outro lado da linha. —Lhe juro isso, foi o mais engraçado do mundo. De repente fica a patinar, com muita confiança e me diz: "Fique ali, Kit, enquanto eu...” Já não ouviu mais. Jay lhe arrancou o telefone da mão e ficou quieta, observando a cara do homem enquanto escutava a voz de seu filho pela primeira vez, empalidecendo com cada segundo que passava, com a emoção gravada em suas feições. Então viu, com sobressalto, que Jay elevava a vista para acusá-la; seus olhos se encheram de lágrimas e sua boca tremeu, sufocando uma emoção que rompia sua compostura em mil pedaços. Entregou-lhe o telefone e o contemplou cambalear-se, como um bêbado, para se deixar cair sobre uma cadeira, afundando a cabeça entre suas mãos. —De qualquer modo —concluiu Kit com um entusiasmo ingênuo, —obtive que voltasse a patinar e que não caísse de novo. A próxima vez que formos, levarei uma almofada para amarrar-lhe no traseiro... Ai! —sua gargalhada ressonou na cabeça de Rebecca. Uma parte de sua mente registrou que Tom devia ter dado uma cabeçada ao menino para que não se vangloriasse muito e outra seguia fixa no Jay. —Quando retornará, mamãe? Rebecca saltou, surpreendida por essa pergunta, atordoada a tal grau, que lhe resultava impossível responder com lógica. Girou para estudar a figura contraída de Jay, tentando recuperar-se. Ele se aproximou e ela ficou tensa, esperando que voltasse a lhe arrebatar o telefone para dizer ao Kit quem era e chamar sua mãe de malvada e mentirosa. O medo a espremeu, lhe queimando o espinha dorsal, como um espasmo. Escutou o som 59


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

de vidrou sobre vidro e compreendeu, com uma intensa sensação de alívio, que Jay se servia uma bebida. —Olhe, Kit... —conseguiu ordenar a névoa de sua mente, —aqui nevou muito e não posso saber quando retornarei... —Eu lhe disse isso! —exclamou, encantado. —Não lhe disse isso? —Sim —sorriu, apesar da tensão de seus músculos faciais. —Sim, você me disse isso — e, por alguma razão, as lágrimas a afogaram. —Sinto muita saudade, meu amor... — murmurou. —Lamento este atraso. —Não se preocupe —declarou, com magnanimidade, mas Rebecca adivinhou a desilusão em sua voz. —Suponho que terei que suportar à tia Chrissy e o tio Tom uns dias mais —brincou com as duas pessoas que o escutavam junto a ele. Despediram-se e ela contemplou de novo Jay, encolhido na cadeira, com um copo meio vazio na mão. Mordeu o lábio, incerta, e se sentou frente a ele, sabendo que isso foi só o princípio. —Me diga seu nome... Seu nome completo —exigiu, sem levantar a cabeça. —Kit... Christopher Jason Shaw —respondeu, em voz baixa. —Pois, suponho que é algo, pelo menos —comentou, sacudindo a cabeça. — Quando nasceu? —continuou. —E-em março —gaguejou. —Fará dez anos em vinte de março. Jay assentiu, registrando a informação. Levou-se o copo aos lábios e bebeu, tenso. Rebecca esperava compreendendo que Jay ainda lutava para controlar suas emoções. —Com quem se parece? Lhe encheram os olhos de lágrimas; as perguntas a curvavam e não podia suportar. —Com você —sussurrou. —Se parece com você —inclinou a cabeça, tratando de que o passado não a destroçasse. —Deus do céu —o ouviu suspirar, rouco, —o que te fiz para que afastasse o meu filho do meu lado, há dez anos?

60


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

Ela levantou a cabeça, com os olhos tristes pelo sofrimento que lhe causava essa brincadeira. —Eu te escrevi, Jay —lhe recordou, desesperada. —Me olha como se tivesse cometido um terrível crime... Eu te escrevi dizendo que estava grávida. Lembra? —E de repente Rebecca lhe lançou toda sua amargura, —implorei para que voltasse para casa e me ajudasse. E você, nem sequer se incomodou em me responder. —Uma carta? —Seu rosto mostrou uma terrível confusão. —Eu não recebi tua carta — assentou. —OH... Deixa de se fingir de inocente! —Acusou-o, enojada com esse assunto. —Claro que a recebeu! Você... —Está certa de que a enviou pelo correio? —mofou-se, cínico. —Sim, certamente —recordava o dia com claridade. Chovia e acabava de receber a resposta positiva de seu teste de gravidez. Escreveu-lhe em um papel e um envelope especial, de correio aéreo, lhe suplicando que voltasse, lhe descrevendo seu medo, porque não sabia o que fazer. Logo correu sob a chuva para colocá-la na caixa, ao pé da colina. Então, Olivia a alcançou. "Pelo amor do céu, Becky... o que faz correndo sob a chuva?" Não prestou atenção a seus sarcasmos, pois sua preocupação ocupava todos seus pensamentos. —Tenho que levar esta carta à caixa de correios —lhe respondeu, sem deter-se. O automóvel que Olivia dirigia mantinha a mesma velocidade que ela, com o vidro abaixado para que sua rival pudesse seguir-se mofando dela. —Não seja estúpida —riu, estendendo uma mão pela janela. —Me dê essa carta e eu a colocarei no correio. Afogará-te se ficar fora mas tempo. Como não queria confiar essa carta a ninguém, exceto aos correios, Rebecca titubeou um momento; mas a chuva aumentava, estava muito nervosa e enjoada, assim teve que apertar o estômago para não vomitar. Estendeu-lhe a carta e Olivia sorriu, condescendente, antes de afastar-se, lhe prometendo cumprir com seu encargo. Rebecca ficou no mesmo lugar, as gotas de água caíam de seu cabelo e seu nariz, para 61


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

observar que o automóvel se detinha na curva do caminho. Olivia a saudou com um gesto, saiu do carro e pôs a carta na caixa. Certamente que a carta foi enviada! Uma nova onda de desprezo a sacudiu. O pai de Jay a confirmou quando a mandou chamar na mansão e começou a insultá-la uma semana depois, afirmando que seu filho negava qualquer responsabilidade nessa gravidez e que se tentava chantagear Jay para que se casasse com ela, arrependeria-se... pois nenhum filho seu se casaria com uma pequena prostituta, que tinha fama de entregar-se a qualquer menino da zona que o pedisse. —Claro que a enviei! —repôs, mordaz —Você a recebeu. — Como pode estar segura disso? —desafiou-a. —Eu sei, é tudo —insistiu, néscia, porque não queria misturar um morto nesse assunto. —De acordo... —Conteve sua ira com esforço. —Suponhamos que existiu uma carta, que a enviou, como afirma, e que... aconteceu alguma coisa e que possivelmente não a recebi? —Não —apertou a boca e Jay a olhou como se não acreditasse no que estava acontecendo. —Pensa, Rebecca —a urgiu, com paciência. —Quando, em todos os anos que nos conhecemos, falhei com você? <<Você é meu cavalheiro andante, meu campeão, e eu sua dama em apuros, o eco de sua voz chegou aos ouvidos e as lágrimas lhe umedeceram os olhos ao ver-se como uma adolescente feliz, que descia de um muro de pedra, muito alto para liberar de um salto. —Quando deixará de me assustar, Rebecca?Não sabe quão vital é para minha própria existência!>> Tudo foi um equívoco... tornar-se amantes, a conseqüência desse amor que trouxe mais problemas e desilusões dos que Rebecca tivesse sofrido em sua curta vida.

62


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

Mas ela não devia ter fugido. Sabia com uma certeza que agora aceitava com a maturidade da experiência. E Jay teria enfrentado as suas responsabilidades em lugar de permitir que seu pai o tirasse dessa confusão. —Agora já não importa o que eu te responda —ficou de pé, endurecendo seu coração contra esse homem, —porque já passou o momento de endireitar ofensas — enfatizou, cansava. —Possivelmente temos um filho, Jay, mas realmente não é seu pai. Quanto ao que se refere ao Kit, viveu feliz sem você. E sobreviverá sem te conhecer. —OH, então é isso que pensa, não é? —Ágil, como um gato atrás de sua presa, endireitou-se de um salto. —Então, me permita te esclarecer, sua malvada egoísta, que meu filho conhecerá o seu pai —a agarrou, aproximando-a de seu rosto de modo que não ficou mais remédio que presenciar a força de sua decisão gravada em seus olhos. — Me deve dez anos de sua vida. Dez anos! E os recuperarei, maldita seja, recuperarei-os a todo custo! E meu filho viverá aqui, terei-o vivendo aqui, comigo, em menos de uma semana. E você pode ir ao inferno, pois é o que menos me importa. Se essa ameaça não foi suficiente para lançá-la a um redemoinho de pânico cego, o beijo que ele lhe plantou com crueldade nos lábios, obteve-o. Esmagou seu magro corpo contra ele, rodeando-a com seus braços, igual a duas tenazes, e suas mãos se afundaram no arbusto de seu cabelo, lhe impedindo de mover a cabeça com a violência do beijo. —Não... —gemeu quando ele afastou a boca por um breve momento. — Por favor, não... —Por que não? —desafiou-a. —Estava acostumado a te maravilhar com meus beijos, me entregar neles toda a paixão que possuía —lhe roçou com suavidade os lábios, despertando seus sentidos. —A nossa paixão não pôde morrer de repente; não acredito. Beijou-a de novo, com dureza e fúria, exigindo a resposta que adivinhava que estava ali, escondida entre as cinzas de escuras repressões. E quase imediatamente aquelas brasas começaram a acender-se, a arder enquanto movia a boca para frente e pra trás, para frente e para trás, respirando o fogo, provocando-o, urgindo-o a surgir com a chama da vida, ao mesmo tempo que suas mãos lhe massageavam as têmporas. 63


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

Balançou-se, seu corpo se arqueio apertando-se contra a dureza desse homem e Jay gemeu no fundo de sua garganta, as bochechas lhe arderam e de repente, tremendo, afundou o beijo e a levou, protestando, através do tempo ao momento em que essas carícias se viveram. —Por favor, Jay —lhe rogou, quando lhe passou seus lábios úmidos pela bochecha, até encontrar o lóbulo da orelha, —não volte a fazê-lo. —Pensa que eu gosto disto? —Grunhiu usando suas mãos para lhe inclinar a cabeça e ver o desejo pintado em seus olhos. —Cometeu o pior crime que pode existir ao me esconder o nascimento de meu filho. Mas, que Deus me ajude, Rebecca, ainda te desejo, desejei-te desde que te vi caminhar para mim na estação da ferrovia tão fria e elegante que agitou o fogo em mim porque pressentia o que se ocultava atrás dessa fachada —a fúria de seu quente fôlego lhe queimou a pele, obrigando-a a piscar sob uma onda de prazer. —E isto... —sua voz sombria se enrouqueceu ao aproximar sua boca da dela —... é o único que te salva, Rebecca. Faça com que te deseje e permitirei que conserve o seu filho. De outro modo, arrebatarei-lhe isso. E nunca voltará a vê-lo. A brutalidade dessa ameaça a golpeou e gemeu, sabendo que dizia a verdade e que o cumpriria também. Jay tinha o poder e o dinheiro para lhe tirar Kit, embora não tivesse à justiça de seu lado. E Kit... Poderia atrair o Kit com promessas, deslumbrando-o com o que todos os meninos sonham e poucas vezes conseguem? Conhecia a vulnerabilidade de seu filho, a pior consistia em não ter pai, como seus amigos. —Sempre te odiarei por isso —exclamou, lutando contra as nuvens tormentosas da paixão, enquanto ele assaltava seus lábios. —Então, me odeie —aceitou, seco. —Porque embora vivas cem anos, jamais me desprezará tanto como eu, neste momento. Então a beijou, oprimindo-a com a força punitiva de sua sensualidade que cessou quase logo que começou.

64


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

—Ponha o casaco —lhe disse, enquanto ela o olhava com olhos muito abertos. Ele já vestia o seu, como um homem preparando-se para uma missão que o conduziria ao inferno, mas decidido a não trocar de rumo... —A... aonde? —lambeu-se os lábios quentes e saboreou a doçura que ele deixara com sua língua, tratando de dominar-se, de deixar de tremer. —Aonde vamos? —repetiu, ansiosa, sem compreendê-lo. —A procurar meu filho —respondeu, irredutível. —Impossível, Jay! —Rebecca retornou à terra de repente. —Não podemos chegar a Londres esta noite. Está nevando! Nos deteremos na estrada e... Pelo amor de Deus...! —agarrou-o pelo braço, forçando-o a olhá-la. —Amanhã! —rogou-lhe, com os olhos exagerados mas a voz suave. Jay ainda não pensava com claridade, refletiu. —Então terá deixado de nevar e as máquinas terão limpado os caminhos. Por favor —o urgiu. — Deixemos para amanhã. Olhou-a, escutou cada palavra e logo lhe ordenou, sem modulações: —Ponha seu casaco, Rebecca —intransigente, decidido, provavelmente um pouco louco.

65


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

Capítulo 8 E uma espécie de loucura deve tê-lo impulsionado a dirigir nessa branca e traiçoeira noite. Levou duas horas para chegar à estrada e nenhum dos dois pronunciou uma palavra enquanto Jay se concentrava em lutar contra os elementos. Rebecca, sentada a seu lado, muito temerosa para falar, enquanto os olhos lhe doíam pelo esforço de mantêlos no caminho, com o coração na boca, observava e escutava, sentindo o menor movimento do carro, que significaria que se derrubariam ou, pior, que já não poderiam avançar. Quando chegaram à estrada estava exausta, mas ao menos a neve parecia ter desaparecido e a linha do asfalto se estendia diante deles na distância. Então relaxou, baixou um pouco a guarda e se sumiu em seus confusos pensamentos. A negativa persistente de Jay em relação à carta que segundo ele não tinha recebido, desconcertava-a... porque agora não merecia a pena mentir, a menos que o fizesse por orgulho. Mas não acreditava. No passado, Jay sempre aceitou a responsabilidade de seus erros, grandes e pequenos, sofrendo os castigos que lhe impunha seu pai como homem. Assim que a carta, se a recebeu, devia trazê-lo para sua casa, no primeiro vôo disponível. Resistente ou não, o Jay que ela, conhecia teria voltado para o seu lado. Acaso se mostrou injusta ao não tratar de entrar em contato com ele uma segunda vez? Recordou que se sentiu tentada, quando as dificuldades a curvavam e o futuro se via mais incerto que nunca. Mas o orgulho a impediu. O mesmo orgulho que a separou do pai de Jay, apertando o cheque na mão, decidida a usar cada centavo para construir um lar para o neto que rejeitava. Sempre a intimidou esse aristocrata. Era a única pessoa que podia esmagá-la com sua presença. Como pertencia à velha escola de regras sociais, sempre desaprovou a amizade que Jay e ela sustentavam, insistindo que ele se comprometesse com Olivia. 66


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

Essa garota era aceitável no plano social e econômico e Rebecca não. Tão simples como isso. —Meu filho me ligou hoje. —Parecia indignado pela carta que lhe enviou, lhe fazendo certas reclamações. Nega a responsabilidade que você lhe atribui, certamente. —Mas eu digo a verdade, senhor —sempre o chamou de senhor. Sua mãe o inculcou desde que era uma menina de braços "É o patrão e devemos tratá-lo com respeito". E o respeitou mesmo que ele a pisoteava. —Sabe-se que a metade dos jovens desta área a usaram. Abobalhada pela baixeza dessa acusação ficou imóvel, tentando compreender em meio de seu terror, quem pôde dizer tão horrível mentira. Devagar, com cautela para que Jay não se precavesse de seu movimento, voltou-se para estudá-lo. Tinha a cara pálida e as feições tensas. Mas seu atrativo seguia ali emanando sem cessar. Há dez anos esse rosto estava acostumado a quebrar-se em sorrisos impulsivos, sem razão, só porque estavam juntos. "Sou muito feliz. Eu adoro ter você ao meu lado", não o tinha visto sorrir com freqüência desde que retornou e se acaso sorria, não o fazia com a espontaneidade de antigamente. A vida muda um jovem para convertê-lo em homem, supôs. Agora, refletia ela tampouco sorria muito. Mas antes, com o Jay, jamais cessava de rir, brincar, jogar e amar-se... A dor da lembrança lhe percorreu o corpo, reconhecendo o amor que compartilhavam. Esse Jay que conheceu... ou o de agora... voltaria as costas as suas responsabilidades? Só tinha que vê-lo a cabeceira de sua mãe para saber que não. Foi uma tola ao lhe acreditar ser um despótico aristocrata? Uma cega, estúpida, assustada, tola, que acreditou que Jay a tinha abandonado? Tremeu e se arrumou a gola do casaco ao redor da garganta. De que outra maneira seu pai descobriu que estava grávida se Jay não o disse? Porque ela não o confiou a ninguém, esperando ansiosa a resposta de sua carta ou, acaso, a volta de Jay à mansão, para que a capturasse em seus braços e lhe pedisse que não se preocupasse, que ele estava ali agora e que tudo sairia bem. 67


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

Não; ordenou a sua mente que deixasse de fabricar desculpas para o Jay. Não existia nenhuma. O automóvel se deteve em uma estação de serviço e Jay lhe levou uma xícara de café. Aceitou-a agradecida, pois não tinha comido nem bebido nada desde que saiu do hospital. Teria gostado de ligar para indagar pela saúde de sua mãe. Mas esse telefonema teria que esperar. "O silêncio voltou a invadir o veículo quando reataram a estrada. Cochilou, consciente ainda de Jay, do vaivém do carro, até que um sexto sentido lhe advertiu que estavam nos subúrbios de Londres. —Aonde vamos? —perguntou Jay, sem olhá-la, com os olhos fixos na estrada. O indicou em um tom sem modulações e voltou a guardar silêncio. Ao chegar a sua casa, Rebecca abriu a porta do carro e ficou de pé, suas pernas tinhas cãibras pela imobilidade. —Kit não está aqui —lhe informou, apenas Jay esteve a seu lado. —O deixei com uns amigos. Jay assentiu, possivelmente já o tinha imaginado. A jovem ligou as luzes do vestíbulo e lhe indicou que passasse, para depois fechar a porta. —Apreciaria que me desse algo para beber antes de tratar de dormir, Rebecca —lhe pediu, como se lhe custasse um enorme esforço. —A cozinha está no primeiro andar —lhe explicou. —Estes quartos os dedicamos à oficina de costura. Arqueou as sobrancelhas, mas não disse nada e ela pressentiu que criticava as condições pouco satisfatórias em que Kit se criou. Foram felizes ali, ela e Kit, mas estava muito cansada para lhe esclarecer esse ponto, assim subiu as escadas sem adicionar nenhuma palavra. Já na cozinha, encheu a bule e a colocou sobre o fogão. Ele aproximou outra cadeira à mesa da cozinha e se sentou, esgotado. Esfregou-se a bochecha com uma mão. 68


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

—Ele está muito longe? Adivinhou que durante toda a viagem Jay só pensou no Kit e essa pergunta o confirmava ou teria usado o nome de seu filho. —Não muito longe —colocou as bolsinhas de chá no recipiente, esperando a que fervesse a água. —A dez minutos daqui, quando muito. —Irei buscá-lo amanhã —afirmou cansado. —Não! —Rebecca saltou, sufocada de medo. —Não tem que fazê-lo. Christina o trará pela manhã —lhe assegurou. —Chegarão antes das nove. Assim perderia o tempo indo buscá-lo. Jay assentiu de novo e ela se alegrou ao ver que aceitava seu conselho. Não permitiria que Jay anunciasse sua presença na vida do Kit desse modo. Era muito brutal. —Bem —lhe disse, —tome seu chá —colocou a xícara na frente dele. — Depois trataremos de dormir. —Que horas são? —falava como um ébrio com os olhos perdidos no vazio. —Uma e meia —respondeu, vendo o relógio da cozinha. Sentou-se frente a ele, bebendo pouco a pouco, enquanto o silêncio pulsava entre ambos. —O que nos aconteceu, Becky? —Murmurou de repente, olhando-a com suas olhos vermelhas de sangue. —Que erros cometemos? —Não sei, Jay —as lágrimas encheram seus olhos. —Realmente nunca soube. —Deus —gemeu, apertando a xícara quente. —O problema gira em excursão em minha cabeça até que quase me deixa louco. —Não pense mais nisso —lhe sugeriu, exausta, compreendendo-o porque esse assunto também lhe parecia insolúvel. Tocou-lhe a mão, compadecida. — Descansa e amanhã, com a mente fresca, encontrará uma resposta. Jay voltou a mão e inclinou a cabeça morena para observar seus longos dedos medindo os dela e Rebecca mordeu o lábio, com os olhos arrasados de lágrimas ardentes enquanto uma onda de compaixão a afogava. Não importava o que tivesse acontecido dez anos antes, Jay perdeu a mais satisfatória experiência de sua vida ao rejeitar o seu 69


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

filho. E possivelmente, concluiu, ao igual a sua mãe, Jay viveu com uma culpa extenuante e só sobreviveu enterrando-a, negando-se a admitir que não atuou à altura das circunstâncias. Depois de tudo, não foi o que ela mesma fez? Afastou a todos os que amava de sua mente porque não suportava pensar em que traíram a ela e ao Kit. —Anda —suspirou, lhe soltando a mão, —vamos dormir. Pode usar o Quarto de Kit —lhe ofereceu, torpe. —Não —negou, com firmeza. —Dormiremos na mesma cama durante o resto desta noite. Essa decisão a obrigou a voltar a sentar-se, contemplando-o como se o fosse cortar sua garganta. —Não vou dormir com você! —exclamou, perguntando-se se tinha enlouquecido por completo. —Vai sim, —insistiu, irredutível, —ou não dormirá. Não te darei a oportunidade, de escapar para me roubar o meu filho pela segunda vez. —Mas... como te ocorre algo tão desatinado, Jay? —Olhou-o sobressaltada. —Aonde iria? Esta é minha casa... aqui eu trabalho. Não pensa com lógica —desculpou essa momentânea aberração e ficou de pé, para sair da cozinha. —Usa o quarto de Kit e eu despertarei a tempo para… —Já disse que dormiremos juntos —reiterou, seco. —Deus sabe que... —suspirou. — Necessito de um pouco de ternura esta noite e não entendo por que você não pode me dar de presente a posto que me encheu com a maldita amargura que estou sentindo nesse momento —outra vez seus olhos a brocaram e ela se encolheu pelas acusações que lhe lançava. —Dormir —esclareceu, cortante, —é o único que te exijo, em caso de que sua mente torcida interprete mal os meus motivos. Dorme com a segurança de que estou a seu lado e que não verei meu filho antes da manhã. —Dormirei —concedeu Rebecca com pesadez, muito cansada para lutar contra ele. Depois, sem pensar no que tinha aceito, saiu do quarto. Jay não podia saber, mas também a fazia uma falta desesperada de um pouco de ternura. Uma ternura que não 70


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

sentiu em muitos anos e que considerava um direito que ele a desse... embora fosse de uma maneira oblíqua. —O banheiro é ali —lhe assinalou a porta da esquerda. —Me... trocarei-me, enquanto você se lava. Só demorou uns minutos despir-se e vestir o robe, para esperar que Jay saísse do banheiro. Cruzaram-se na porta, evitando tocar-se. Quando ela voltou para o quarto, ele tinha se metido na cama e tinha os olhos fechados. Recostou-se a seu lado, tratando de não mover-se, pressentindo que estava nu. Ele esticou um braço e a abraçou, moldando sua magra forma a seu corpo musculoso. —Obrigado por ceder —murmurou, cochilando, na nuvem sedosa dos cabelos da Rebecca. —Compreendo que foi uma imposição, mas esta noite preciso de você, Rebecca. Preciso de você Becky... Sumiu-se em um sono profundo e Rebecca permaneceu tensa entre seus braços, durante um momento, sem acreditar no que lhe acontecia, escutando-o respirar, sentindo seu fôlego na base da nuca e logo, devagar, começou a relaxar-se, colada a seu corpo morno, vencida por um cansaço que lhe fechou os olhos até que também dormiu. Despertou pouco a pouco, consciente da deliciosa tibieza que invadia seu corpo, uma tibieza líquida que a fez estirar-se com frouxidão, para depois suspirar. Jay observava esses movimentos reveladores de sua posição, apoiado sobre um cotovelo, enquanto seus olhos percorriam as feições suaves da adormecida. Sorria apenas, gozando com as carícias de sua mão sobre seu ventre, por cima do tecido da seda da camisola. Inclinou-se para lhe roçar a bochecha com os lábios e ela murmurou algo, voltando-se um pouco para buscá-lo. Beijou-lhe o nariz, as sobrancelhas, as pálpebras cremosas e o rubor perfumado das bochechas. —Becky... —murmurou, suave. —Jay... —exalou e se voltou para lhe rodear o pescoço com os braços, apertando-o, arqueando-se com esse flexível movimento, símbolo de um intenso desejo. 71


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

Ele sorriu, com um sorriso doce que concordava com a doçura com que ela despertava e a beijou, lhe entreabrindo os lábios que já o esperavam, prontos para recebê-lo e pouco a pouco, com sensualidade, começou a atraí-la à realidade, lhe tocando o corpo, excitando-a, elevando a camisola ao longo de suas pernas e ainda mais acima, até seus quadris.. Rebecca despertou quando a mão dele deslizou entre suas coxas —Jay! —exclamou, ainda sem saber se sonhava ou não, pois as nuvens do sonho tomavam tempo para dispersar-se. —Cale-se, murmurou— está tudo bem. Deseja-me, Becky, seu corpo me diz isso e Deus sabe que eu... —sussurrou, estremecido, —desejo-te... Beijou-a, cortando seus protestos. E, enquanto lutava contra seu próprio desejo tratando de pensar, ele começou a acariciá-la, com segurança e experiência, lhe roubando o ar dos pulmões enquanto a chama ardente da paixão começava a envolvê-la. OH, não... Gemeu em seu interior ao mesmo tempo que tudo despertava, seu corpo, seu coração e mesma sua alma. Sabia que estava perdida, movendo-se ao ritmo que Jay criou há tantos anos, para que a magia fluísse de novo. —Não quero —murmurou, trêmula, quando ele a cobriu com seu torso e os pêlos escuros rasparam seus sensíveis mamilos. —Claro que quer —afirmou. —Para isto você nasceu, para ser minha desta maneira. Realmente? Nasceu para conhecer as carícias mágicas desse homem? Deitada, imóvel sob essas mãos que a subjugavam com seus movimentos sensuais, acreditou, pois nenhum outro homem a comoveu desse modo. Nenhum outro homem suplantou o Jay. —Matará-me, se continuar —lhe advertiu, desesperada, tratando de lutar por última vez. —Mas que forma linda de morrer, querida —murmurou, peralta. —Perdida nos braços do homem que anseia... como ele te anseia, com desespero fatal. Deus, Rebecca, tem que me tocar; este tortura é tão, tão doce!

72


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

Despertou com a aceitação lânguida de que algo radical tinha mudado sua vida. Recostou-se sobre suas costas e se estirou, sumindo-se entre as colchas com um sorriso satisfeito nos lábios. Ficou quieta e o gesto acidental de sua mão direita tocou uma pele morna e nua, paralisando-a de terror. Voltou a cabeça e viu o Jay dormido a seu lado e então recordou o acontecido, enquanto se ruborizava. —Deus bendito —suspirou, muito sobressaltada para fazer outra coisa que contemplar a seu companheiro. Como se atreveu? Ele parecia relaxado e contente, como o Jay de antes, sem as capas de cinismo lhe escurecendo o rosto. O coração da jovem se comoveu e logo lhe tremeu dentro do peito. E as lágrimas, por isso uma vez, rodaram em silêncio por suas bochechas. Amava-o, aceitou-o dolorosamente. Amou-o e o amaria sempre, de forma total e irrevogável. Essa admissão a fez sentir-se débil e só porque sabia que, não importava o que Jay a obrigasse a sofrer, jamais mataria o que sentia por ele, porque era parte inerente de si mesmo. E possivelmente por tal razão fugiu durante anos. Não porque seu pai a atemorizasse. Não porque sua mãe apoiasse ao Cedric Lorence. Não porque Jay a denunciasse, mas sim porque jamais poderia aceitar sua rejeição e sobreviver. Isso significava que lhe permitiria machucá-la e que sempre o perdoaria? Talvez, aceitou com um amargo sabor na boca. Abriu os olhos azuis, brilhantes, que captaram o que a rodeava imediatamente. —Por que? —perguntou Rebecca. Ele sorriu, sem pretender interpretá-la mal e se apoiou sobre um cotovelo, zombando dela. —Quero recuperar o meu filho —confessou. —A qualquer preço, mas prefiro a rota mais fácil, de for possível. Você é essa rota, Rebecca. Por meio da mãe, recuperarei o meu filho —tocou a comissura da suave boca com um dedo e cravou os olhos nesses lábios trêmulas que o desejavam, sorrindo com seca satisfação. 73


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

—Planejou tudo isso? —indagou, abobalhada por essa astúcia sem piedade. —Em que acha que pensava durante o longo trajeto para cá? —mofou-se. —Em como te ter a minha mercê? —Parecia que dizia a verdade. —Não sou tolo, Rebecca, embora assim me considere. A maneira mais deliciosa de recuperar o meu filho é por meio de você. Tem que estar do meu lado para que me aceite. —Não entendo como me seduzir te ajudará a obter seus fins —franziu o cenho. —Claro que entende! —mofou-se, suave, sorrindo-lhe preguiçoso e explorando seu corpo com uma mão. Imediatamente ela conteve o fôlego e o fogo que a sacudiu a fez arquear-se contra essa mão, e Jay soltou uma gargalhada de triunfo. —Vê? —desafioua. —É minha, Rebecca! Só tenho que te tocar, desta maneira... —voltou a fazer e ela voltou a responder do mesmo modo, indefesa, —para que me obedeça em tudo o que me ocorra, desde que te ame com meu corpo. —Meu Deus! —afogou-se, fechando os olhos para não ver o triunfo que se pintava em seu rosto. Sumia-se, enjoada, na massa cálida, ardorosa, de seu maldito desejo. —Te odeio! —Mas está pronta para me receber —lhe informou com crueldade, montando-a, lhe abrindo as coxas e penetrando-a com rudeza, com um impulso violento que a obrigou a soltar uma exclamação de deleite. —Diga, Rebecca —lhe ordenou, com o rosto sombrio a uns centímetros do de seu amante. Voltou a impulsionar-se com os quadris e ela voltou a gemer, lhe dando as boas-vindas. —Diga. Quero que o diga! —Que diga o que? —choramingou, desesperada. Outro impulso, outro suspiro de prazer vergonhoso. —Já sabe, pequena tortura. Diga, maldição, ou te juro que jogarei contigo desse modo até que morra de frustração. Impulsionou-se de novo e ela se arqueou com força, sob seu corpo. —Desejo-te, Jay! —gritou, lhe acariciando os fortes braços, apertando os ombros musculosos. —Te desejo —repetiu, rouca. —Quanto? Quanto me deseja, Becky? 74


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

—Com todo meu corpo, Jay! —ofegou. —Todo meu corpo te deseja. Esse ato de rendição a encheu de desprezo, abriu os olhos e viu as olhos cinzas vibrando de urgência e de ódio. Leu o triunfo nessa expressão tensa de desejo e, como um animal lhe enterrou as unhas, lhe marcando o peito. Gritou, arqueando-se de dor, tremendo, e seu corpo se inchou dentro da Rebecca excitado, queimando-se no clímax do prazer e a ira, exaltando, porque lhe demonstrava que Jay não era menos vulnerável à paixão que lhe demonstrava. —Gata do inferno! —grunhiu, fulminando-a com os olhos e logo soltou uma gargalhada e os dois Jay, o jovem e o de hoje, sobrepuseram-se para lhe aprisionar os cabelos, formando um nó e lhe puxar a cabeça para trás, contra os travesseiros, de modo que sua boca pudesse lhe beijar a garganta nua e exposta, para baixar por seu pescoço de seda até o ombro. Então, o ritmo de seus corpos ameaçou lançá-los fora do mundo e ele murmurou, enlouquecido: —Meu Deus, como pude viver durante tanto tempo sem isto? Como?, perguntou-se ela, enjoada, triste, enquanto seus sentidos exaltados lhe comunicavam uma intensa melancolia. Ficou deitada, muito fraca para fazer algo mais que observá-lo, lânguido, movendo-se pela pequena habitação sem precaver-se da perturbadora atração que exercia sobre ela. Suas longas pernas, soberbas com as cordas de músculos, subiam como duas colunas firmes e magras até uma cintura sem um grama de gordura desnecessária. A magra forma de seu corpo se expandia no peito de aço, coberto de pêlos frisados e escuros, para terminar em dois ombros poderosos. Há dez anos o corpo de Jay lhe parecia um espetáculo maravilhoso quando estava nu. Agora tinha ganho em maturidade, afinou-se ao converter-se na perfeição da virilidade. Ele se voltou e a surpreendeu estudando-o, cravando seus olhos azuis na figura horizontal, ruborizada pelas marcas de seu amor.

75


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

—É minha, Rebecca —afirmou cortante. —Lembre-se quando Kit retornar para casa. Pode significar para ti a diferença entre conservá-lo ou perdê-lo. —Não me ameace, Jay —lhe pediu em voz baixa, muito preguiçosa para zangar-se. E, de qualquer modo, já o tinha aceito, muito antes, que lhe pertencia... como sempre. Mesmo que ele a desprezasse... —Não mudou muito com os anos, não é verdade? — opinou, travessa. —Ainda é um tipão. Jay sorriu, sem poder evitá-lo e se inclinou sobre a cama. —Tampouco você, minha amarga tortura —murmurou, lhe dando um beijo em seus generosos lábios. —E posso prová-lo com estas marcas —adicionou, afastando-se para que ela olhasse as duas linhas que deixaram suas unhas no torso, até a parede côncava do estômago. Sustentou-lhe o olhar, sem o menor remorso e ele riu, com uma risada tênue, movendo a cabeça morena, antes de lhe passar um dedo pelo pescoço dolorido. —Mas eu também te marquei, minha linda —lhe informou, desfrutando-se, rindo-se de novo. —Costumávamos chamar de sinais de amor, mas eu prefiro as catalogar como minha marca de posse pessoal... te rebele, Rebecca —lhe advertiu, —e te demonstrarei que a impressionante fachada de frieza com a que te disfarçou através dos anos, cai a pedaços assim que eu quiser. Beijou-a de novo, nos lábios e com rapidez, antes de afastar-se de seu lado. —Te levante —sugeriu, —Não desejo que meu filho chegue para encontrar a sua mãe na cama, esperando que seu amante volte a possuí-la. —É um malvado, Jay, um verdadeiro bastardo —murmurou, enquanto se obrigava a mover-se e logo ficou quieta quando ele se voltou, furioso. —Eu não sou, mas meu filho sim —lhe cuspiu. —Um erro que retificarei na primeira oportunidade que tenha. —A que se refere? —inquiriu, alarmada. —Te levante —repetiu, recusando-se a discutir o assunto. —Irei preparar um café.

76


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

E se foi, deixando que Rebecca se perguntasse, mordendo o lábio inferior, quantos planos ideou Jay, durante o trajeto de Yorkshire a Londres, na noite anterior.

Capítulo 9 —JÁ chegaram —Rebecca observou pela janela que o carro de Christina se estacionava atrás do de Jay e que seu filho descia para rodear ao mostro mecânico, lhe descrevendo a uma velocidade diabólica, as qualidades do famoso veículo. Jay saltou da cadeira em que se sentava, tão tenso que o ar vibrava a seu redor. Tinham esperado meia hora; nesse lapso, a apaixonada intimidade da noite anterior desapareceu, deixando em seu lugar um trato seco e formal, que os fez ocultar-se atrás das máscaras frias e remotas. De repente o menino se voltou e descobriu o rosto de Rebecca na janela e seu sorriso se converteu em uma expressão de assombro. —Mamãe! —gritou e o coração dela se deteve, trêmula, ao mesmo tempo que seu estômago lhe contraía ao correr para a porta. —Por favor, Jay —lhe rogou, perguntando-se o que se propunha fazer. — Me deixe lhe explicar isto a sós... —Como o explicará? —desafiou-a. —Sentando-se para lhe dizer que tem a um caipira de pai? —Olhou-a, gelado. —Não. Faremos juntos. —Mas... —a porta principal se abriu e escutou a voz de Christina, perguntando a Kit se estava certo de que sua mãe tinha retornado. Avançou outro passo e pôs a mão sobre o ombro de Jay. —É seu pai, pelo amor de Deus! —exclamou, ansiosa. —Não poderia te humilhar sem humilhar a ele. O som de uns pequenos pés, subindo pelas escadas, enjoou-a, sabendo que era muito tarde. Jay também se voltou parado a seu lado, frente à porta, tenso e rígido, enquanto

77


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

Rebecca se agarrava a seu braço. Então a porta se abriu de par em par e Kit apareceu, sorrindo de prazer. —Mamãe! —Ofegou, sem fôlego. —Quando retornou? Já viu a fantástica Ferrari estacionado frente à casa? De quem acha que...? —Sua voz se desvaneceu e seus olhos se posaram no desconhecido, ao mesmo tempo que seu entusiasmo se convertia em cautela. —OH —murmurou, —sinto muito. Não sabia que estava com alguém. O silêncio reinou no quarto. Nada... nada do que imaginou, aproximava-se da devastadora realidade desse encontro. Jay observou, paralisado, como nascia de novo na figura de seu filho. Nesse momento Christina entrou, atrás do Kit, rompendo esse instante de tensão indescritível e seu agradável rosto espiou dentro do quarto, com curiosidade. Rebecca lhe lançou um olhar de súplica, lhe advertindo, com os olhos cheios de lágrimas, que algo inusitado estava a ponto de ocorrer. Os olhos de sua amiga se cravaram em Jay e, como aconteceria com qualquer um que conhecesse o Kit, a relação entre ambos lhe resultou óbvia imediatamente. Um segundo depois observou o pálido rosto de Rebecca e, com uma sensibilidade que depois esta lhe agradeceria, assentiu e desceu as escadas para deixá-los a sós. —Kit... —por necessidade se dominou, abrindo seus dedos adormecidos e soltando o braço de Jay. Tragou saliva antes de fingir o sorriso com que sempre lhe dava as boasvindas a seu filho. —Vêem aqui —o urgiu, rouca, lhe estendendo uma mão para aproximá-lo. —Quero que você conheça... Kit pegou sua mão, permitindo que o aproximasse de seu corpo e contemplou o rosto tenso e imóvel de Jay. —Jay... —Murmurou, esforçando-se para falar através de uma barreira de lágrimas, ...este é Kit. —Kit —disse com doçura ao menino ...este é um velho amigo meu. Chamase Jason Lorence e é... —não pôde expressá-lo, as palavras lhe obstruíram na garganta e os lábios começaram a tremer enquanto lutava para recuperar a compostura, rogando

78


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

a Jay que tivesse piedade, que a ajudasse, para que não destruísse a vida de seu filho por não encontrar a maneira de lhe explicar o que acontecia. —Olá —saudou Kit, tirando a iniciativa dos adultos e estendendo a mão direita a seu pai, sem precaver-se do que ia estourar contra sua cabeça. Sentiu a tensão da atmosfera, mas não a entendeu, embora a respeitou com o tom grave de sua voz. Jay não se moveu, parecia incapaz de fazê-lo, e Rebecca o olhou desesperada. Tinha a tez cor cinza e a tensão o curvava de tal modo que se sufocava sob um impacto brutal. —Jay... —rogou-lhe, trêmula, e uma compaixão amarga a invadiu ao contemplá-lo. Fez um gesto involuntário, e muito pequeno, encolhimento de ombros lhe indicou que ignorava como estender a ponte que o unisse com seu filho e ele afastou a vista, compreendendo-a, para cravá-la no Kit. O menino se moveu, incômodo sob esse olhar inalterável e a mãozinha titubeou. Kit desejava baixá-la mas não queria cometer uma falta de educação. O tremor da mão chamou a atenção de Jay, que a observou, logo olhou a cara de Kit, para voltar para a mão, antes de que a sua a segurasse, devagar, tremendo... Depois fulminou Rebecca com seus olhos chapeadas. Este é meu filho!, cuspiu-lhe. Meu! E você me pagará por escondê-lo. Ela se estremeceu e baixou o olhar, enquanto a dor e a culpa a sacudiam a tal grau que desejou chorar. Escutou que Jay tomava fôlego, dominando-se, para dizer, rouco: —Olá, filho —e esse possessivo "filho" rasgou o coração de Rebecca, lhe roubando a exclusividade absoluta sobre o menino, incitando-a a quebrar algo, algo, com tal de livrarse da terrível violência que a afogava. —É seu o carro que está lá fora? —Perguntou Kit, curioso, animado pelo sorriso do homem. —É uma Ferrari, não é verdade? Sei porque vi uma foto em um livro. A que velocidade corre? Passa os cem quilômetros por hora? O automóvel de mamãe vai a setenta, mas só na estrada e… O caudal de palavras rápidas colocou uma baforada de ar nos pulmões de Jay, tirando-o do escuro buraco onde se ocultava. 79


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

—É uma Ferrari —corroborou. —Se quiser, te levarei para dar uma volta, mais tarde. —Sério? —Kit abriu os olhos sobressaltado e se soltou de Rebecca, afastando-se, sem saber, da mãe para aproximar-se do pai que não conhecia. — Seria estupendo! Nunca subi em um carro desses! —o assombro e a excitação enchiam sua voz e Rebecca se apertou o peito com as mãos, para estabilizar os violentos batimentos de seu coração. —Mais tarde —repetiu —primeiro nós, sua mãe e eu, temos algo muito importante para te dizer... Rebecca ficou imóvel, com as pontas dos nervos aguilhoando-a, adivinhando o que aconteceria. Jay não os deixaria abandonar esse quarto até que Kit soubesse a verdade. —Rebecca —a chamou em voz baixa, mas com firmeza e ela, com o corpo dolorido pela força de suas emoções, suplicou-lhe pela última vez com os olhos. Estendeu-lhe a mão, lhe negando o que lhe pedia com os olhos, lhe ordenando em silêncio que ficasse a seu lado, que se unisse a ele para que juntos enfrentassem esse momento crucial. A jovem tragou saliva e se aproximou, ficando ainda mais tensa quando Jay lhe passou a mão pela cintura, para sustentá-la. Olhou seu filho, estudando com curiosidade essa cena íntima. —Quero me casar com sua mãe, Kit, mas ela insiste em que primeiro devemos pedir seu consentimento —afirmou com gravidade formal. O mundo de Rebecca girou em seu eixo e o impacto inesperado dessas palavras a ventilou contra o braço de Jay. Ele a sustentou com mais firmeza, como uma advertência, enquanto seus olhos seguiam fixos no rosto, de repente beligerante e zangado de seu filho. —Por que? —perguntou Kit. Sua inocência lhe permitia que essa frase, quase grosseira, saísse de seus lábios. —Porque é a única mulher do mundo com a qual quis me casar —respondeu Jay, quase com travessura. —E —adicionou, enquanto Rebecca esperava, com as pálpebras

80


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

fechadas, tremendo, que caísse a tocha do verdugo, —porque a amo muito e ela me ama. —Ama-o? —a provocação agressiva de Kit a obrigou a abrir os olhos para enfrentar-se a seu filho, com as bochechas coloridas pela ira. —Eu... —não podia responder, incapaz de dizer algo sensato. Jay a desconcertou por completo, desequilibrando-a a tal grau, que não soube se estava zangada ou aliviada pela maneira em que se enfrentava a esse assunto. Outro de seus ardilosos planos ideados durante o trajeto, para casa? Por meio da mãe, recupero o filho, advertiu-lhe, umas horas antes, ao tê-la presa entre seus braços. Deus santo!, pensou, cobrindo-o com um olhar amargo, não tem princípios, maldito! Kit esperava sua resposta, observando-o igual Jay, e o desespero a sacudia, reconhecendo que desse modo Jay a faria pagar pelos que considerava um crime em seu contrário: fingiria que a amava, quão mesmo a seu filho. —Sim —murmurou, derrotada ao fim, sabendo que não ficava outra opção. Jay apostava mais alto do que ela tinha calculado. Queria seu filho, em alma, vida e coração, e só disfarçando seu egoísmo de um amor eterno pela mãe o obteria. De outra forma, Kit sempre duvidaria dele, nunca estaria seguro de por que seu pai os ignorou durante nove largos anos e de repente aparecia em sua vida para reclamá-lo. —Por que? —a pergunta grosseira se dirigia a ela e Rebecca se propôs sufocar seus próprios sentimentos e os motivos de Jay para que o menino entendesse o que acontecia. Afastando-se de Jay, se abaixou diante seu filho e o pegou com doçura pelos ombros. —Lembra, Kit —começou com cautela, —que há alguns anos me perguntou onde eu vivia? A criança assentiu e seus furiosos olhos azuis se fixaram na pálida face de sua mãe. —E eu te contei que... —tragou saliva, tensa, —que vivia muito, muito longe daqui e que...

81


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

—No Yorkshire —interveio o menino. —Disse que viveu no Yorkshire. Esteve lá, não é verdade? Ali o conheceu... —lançou a Jay um olhar ressentido. —Exato, confirmou sua mãe, —ali voltei a encontrar o Jay... —Outra vez? —interrompeu Kit. —Não, Rebecca —a mão de Jay tocou seu ombro, acautelando-a. —Esta não é a... —Outra vez —repetiu com firmeza, ignorando ao Jay; ignorando a carinha cheia de dúvidas de Kit. Jay estava equivocado. Essa era a maneira... a única maneira de tirar a dor de repente, para que o processo de cicatrização pudesse iniciar-se. —Jay e eu nos conhecemos desde que éramos meninos. Crescemos juntos —ele seu fiel campeão, ela sua amante... um sorriso tocou seus lábios, nostálgica. —E suponho que nos apaixonamos quase sem senti-lo... Mas eu era muito jovem então, Kit —continuou, rouca —, e... e tão selvagem que dava muito trabalho me controlar... —não mentia, deu-se conta ao revisar seu passado. Foi uma adolescente quase impossível de educar, uma preocupação constante para sua mãe, Um perigo para ela mesma. —Jay teve que ir muito longe —olhou de novo a seu filho, voltando do passado —... a América, para trabalhar e e-eu deixei Yorkshire em busca de um emprego, p-pára me manter e... e assim nos separamos. —É ele, não é verdade? Kit se afastou de sua mãe, lhe tirando as mãos, e parou a vários passos dela, com a carinha pálida pelo pressentimento. Com um gesto acusou a Rebecca. —É ele, —seu corpo começou a tremer e cravou no Jay toda sua amargura. —Ele é meu pai, não é verdade? Outro passo para retroceder o levou até a cadeira, lhe impedindo a retirada e ficou ali, acusando ao Jay, odiando a Rebecca, enquanto a angústia destroçava o coração de sua mãe. —Mas nem sequer se importa com a gente—gritou o menino furioso, sua dor, embalado durante dez anos, saiu a fervuras nesse tom rancoroso. Permaneceu imóvel,

82


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

contemplando as caras dos adultos, inacessível. —Não se importa com a gente... —uma mãozinha assinalou o Jay —... e você deixa que ele faça com que o ame de novo. —Claro que me importo com vocês, Kit —interveio Jay, emocionado, dando um passo para o menino, só para deter-se quando esses olhos, similares aos seus, detiveram-no com seu ódio. —Eu não te importava —Kit o acusou. —Porque ele não sabia que você existia —exclamou Rebecca e de repente o quarto ficou em silêncio. Um silêncio total para que ela contemplasse sua própria condenação. —Lhe disse —continuou isso, insegura, —lembra querido... disse-te que seu pai e e-eu nos separamos antes que nascesse; assim... não podia saber nada de você, entende? —Podia tentar te encontrar —afirmou o menino, com tristeza. —Se te amava, como diz, podia tratar de nos encontrar. —Eu tentei —inseriu Jay, com o rosto tenso, mas sustentando o olhar cético do menino, —, tentei durante anos de encontrar a sua mãe, mas parecia que se apagou da face da terra. Porque ninguém ouviu falar dela ou a viu desde que nos abandonou. —Nos? —o cérebro de Kit trabalhava a toda velocidade, recolhendo as mudanças de voz, ansioso de conhecer a verdade, a dolorosa verdade que lhe oferecia. —A mim e a sua avó—afirmou Jay. —A mãe de sua mãe. —Também tenho uma avó? —os olhos do Kit se abriram pelo assombro e lançou a sua mãe um olhar de ódio concentrado, que a encolheu em seu interior. Rebecca ficou de pé decidida a tomar as rédeas do assunto antes de que Kit ficasse histérico. De fato, jamais supôs que reagiria com essa hostilidade. Tinha lhe explicado a situação entre seu pai e ela fazia anos, sem pintar ao Jay com cores negras pelo bem do menina. Sabia que seu pai vivia e que seu pai não o conhecia e pareceu aceitar de maneira mais ou menos razoável; mas agora Rebecca se dava conta de que, longe de aceitá-lo, Kit passou meses perguntando-se a respeito desse homem, sopesando os prós e os contra, estudando os porquês dessa ausência contínua em sua vida, chegando a

83


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

conclusões duras, cruéis, que lhe deram a visão para poder lhe gritar as acusações que agora lhe lançava. E através de todos esses anos, agora compreendeu, sentindo-se culpada, seu pobre filho morria pelo amor de seu pai... e ela o tinha ignorado! Se aproximou e pegou com firmeza sua mão, guiando-o até a poltrona para que se sentasse a seu lado. Seus olhos procuraram os de Jay. —Você também sente-se pediu. —Será mais fácil para o Kit se nenhum dos dois o aflige com sua altura. Depois de um hesitação momentâneo, em que parecia que questionaria o direito da mãe de resolver esse problema a seu modo, assentiu e se sentou frente a eles, inclinando-se para frente, com as olhos fixas no rosto ruborizado do menino. —Me escute, Kit —lhe ordenou Rebecca, obrigando-o a obedecer pela firmeza de seu tom de voz. —Sei que isto te causou um enorme impacto, mas tem que me lhe deixar explicar isso antes que nos julgue... E em voz baixa, devagar, Rebecca lhe contou a história, simplificando-a ao máximo, começando pelo anúncio no jornal da enfermidade de sua mãe. —Nem sequer me disse que tinha uma mãe! —exclamou o menino de novo. —Eu sei... —seus dedos jogaram com os de seu filho, nervosos. — Nós brigamos, compreende?, e por isso eu fugi. —Ao mesmo tempo que fugiu dele? —com a cabeça mostrando o Jay e Rebecca viu que torcia a boca com um gesto cínico. —Sim —confirmou. —E, como era muito orgulhosa, Kit, jamais voltei a me pôr em contato com eles. —E teria gostado de encontrá-los? —perguntou, curioso. —OH, sim —suspirou, enquanto algo doloroso lhe contraía por dentro. Quis nesses momentos de solidão em que sentia saudades, de um ou dos dois. Mas não acreditou que queriam saber dela. E então renascia seu orgulho, endurecendo-a contra esses

84


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

instantes de debilidade, forçando-a a continuar sem ajuda de ninguém, para lhe demonstrar que... —Sim, algumas vezes —admitiu, com voz suave. —Está muito grave? —Sim, muito —piscou, voltando para o presente, —mas cada dia se recupera um pouco mais —por meio do telefone se comunicou com o hospital e lhe informaram que sua mãe passou uma noite tranqüila, mas que a manteriam sedada pelo resto do dia para não correr riscos. Kit se removeu no assento, raspando com seus sapatos negros o tapete da habitação. —Ela sabe que eu existo? —resmungou, ficando em guarda. —Sim, eu lhe disse —de acordo à enfermeira, o primeiro que expressou a paciente essa manhã era que tinha um neto. Rebecca lhe sorriu para tranqüilizá-lo. —E quer te conhecer. —Mas antes devemos resolver meu problema, porque desejo me casar com sua mãe e ser seu pai, como devo —interveio Jay, sem alterar-se. Toda a atenção se centrou nele, a de Kit, a da Rebecca, e o quarto pareceu inclinar-se, concentrando-se no rosto tranqüilo do Jay. —Conhece minha avó? —indagou Kit e até o Jay sorriu ao dar-se conta de que seu filho se defendia no tema da avó para evitar discutir o direito de seu pai de intervir em sua vida. —Jay esteve cuidando dela enquanto eu estava ausente —interpôs Rebecca. —Ah sim? —Essa informação pareceu ganhar no Jay o primeiro olhar de respeito de seu filho. —Acha que eu lhe cairei bem? —murmurou, inseguro. —Acredito que te amará assim que te ver —assegurou ao menino, comovido, Se parece tanto a sua mãe, que não poderá evitá-lo. —Não, não me pareço —afirmou Kit e a tibieza momentânea de seus olhos desapareceu de novo. —Me pareço com você —o disse quase acusando-o e voltou a fulminá-lo com o olhar.

85


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

—Não quando sorri —sentenciou Jay. —O sorriso é de sua mãe... igual ao sorriso travesso pelo qual me apaixonei quando ela não era muito maior que você. —Se a amava, por que a abandonou? —inquiriu Kit, negando-se a ceder. —Porque tive que viajar à América, para trabalhar durante um ano —respondeu Jay, com firmeza. —Mas, enquanto estava longe, sua mamãe descobriu que estava grávida, então me escreveu contando isso e me pedindo que retornasse para cuidar de vocês —seus olhos se posaram por um instante no rosto imóvel de Rebecca. —Só que nunca recebi a carta. E, em conseqüência, ao não receber uma resposta de minha parte, sua mamãe pensou que já não me importava, assim se foi. Não a culpo, deve ter se sentido muito só e zangada. E você tampouco deve culpá-la, Kit —lhe pediu seu pai, grave. —Deve ter sido terrível para ela e, entretanto, conseguiu te cuidar, te amar e te educar para te transformar em um menino de que qualquer pai estaria orgulhoso. Assim que o contaria dessa maneira? Rebecca contemplou seus dedos, enquanto jogavam com os de seu filho e aceitou que possivelmente era a única forma... mais clara e limpa que outras. Pelo menos a versão de Jay não sujava a personalidade de ninguém, nem humilhava o Kit. —Mas agora nos encontramos de novo —continuou Jay com solenidade, depois de dar um momento ao menino para que captasse o que lhe dizia, —e eu gostaria de recompensá-los por esses dez anos de solidão. Nos converter em uma família, como teríamos feito se a carta de sua mãe não se perdesse. —E onde viveremos? Ele estava ganhando, notou Rebecca, doída. Devagar, com cautela, ganhava. —Em minha casa, no Yorkshire —lhe informou Jay, ignorando o olhar de silencioso protesto de Rebecca. —Essa mudança significaria muitas adaptações para nós três mas, acredito, que se tratarmos de obtê-lo, seremos muito, muito felizes. Como o menino não rejeitou imediatamente o que lhe propunha, Jay se inclinou para frente para que a atenção de Kit se centrasse nele, de maneira exclusiva.

86


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

—Tenho uma casa enorme, Kit —prosseguiu, —no meio do campo de Yorkshire, com seu próprio bosque, um lago e comprido lance de rio, onde sua mãe e eu... —Pode-se pescar? —perguntou Kit, entusiasmado e Rebecca observou com o coração estremecido, como o corpinho de seu filho se inclinava para frente, a beira do assento para aproximar-se, de modo inconsciente, mais e mais a seu pai. —Sim —sorriu Jay. —Há suficientes peixes para que pesque toda sua vida sem que apanhe o mesmo duas vezes —brincou. —Você gosta de pescar? —OH, sim! —exclamou o menino, com os olhos luminosos. —O tio Tom me leva a... é um professor, sabe —fez uma pausa para lhe explicar: —assim que me leva nas férias, ou nos sábados. —Pois, quando vivermos juntos —não "se vivermos juntos" notou Rebecca e sorriu... realmente ao menino não ficava outro remédio que ceder, embora não se desse conta, — iremos pescar cada vez que quiser, sempre que acabar sua tarefa, —Terei que ir a uma nova escola? —ao fim Jay o tocou sem adverti-lo, algo que desgostava ao Kit, e o menino franziu o cenho. —Sim, certamente —replicou seu pai com calma, —mas será a mesma escola a que estudou sua mãe, pequena e agradável, onde todos os meninos se conhecem. — Você também estudou ali? —Não —uma nuvem obscureceu o rosto de Jay por um momento ao recordar a vida solitária de um menino ao que enviaram a um internato, quando ainda era muito pequeno. O coração de Rebecca se contraiu a seu pesar ao evocar a esse mesmo jovem, com poucos amigos na cidade, afastado do mundo por sua posição social. Um moço que se refugiou na companhia de uma menina selvagem porque não ficava outra opção. —Também tenho cavalos... —continuou, com energia, para logo sorrir, peralta: —Deveria ver sua mãe montar, Kit —seus olhos azuis brilharam de repente e seu velho encanto floresceu para comover ao menino e à mãe. — Monta como uma amazona e não acredito

87


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

que tenha sido mais feliz que quando cavalgava através dos campos no largo e poderoso lombo de Salamandra... —Salamandra? —Repetiu Kit, enquanto as lágrimas manchavam a visão de Rebecca é o nome dos desenhos exclusivos de mamãe. —Sim, não é verdade? —Jay elevou as pálpebras para descobrir que lhe reprovava o que fazia. Odeio-te, lançou-lhe em silêncio. Entretanto, limitou-se a seguir falando com o Kit , ignorando-a. Alguma vez montou a cavalo, Kit? pergunto com calma. A cabeça morena negou e os olhos azuis se cravaram nele. Você gostaria de aprender? A cabeça assentiu e Rebecca ficou de pé, trêmula, incapaz de ficar sentada e seguir escutando, sentindo a fria sombra da derrota que a cobria. —Me desculpem, murmuro rouca, —Tenho que… e saiu do quarto antes de que as lágrimas de dor fizessem explodir o desespero que sentia.

Capítulo 10 —ELE GANHOU, Chrissy —concluiu Rebecca, afogando-se, ao finalizar seu relato dos três dias desse pesadelo, —em troca de direitos exclusivos de pesca e a oportunidade de montar à cavalo. —Pobre Becky —murmurou Christina com simpatia, depois de escutar a epopéia, bebendo uma xícara de café, enquanto a oficina trabalhava com eficiência, sem nenhuma das proprietárias fiscalizando-o. —Não posso acreditar que isto está acontecendo —suspirou Rebecca. Jay tinha saído... com seu filho, para obter a aprovação de Kit graças à posse de um enorme automóvel esportivo. Deus! estremeceu-se reconhecendo sua própria amargura, sinal de um ciúmes duros, ardentes e destrutivos. —Não posso competir com o que Jay oferece ao Kit e ele sabe.

88


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

—Para ele também foi muito difícil descobrir que tem um filho depois de dez anos —lhe assinalou Christina, conquistada pelo encanto de Jay. —Difícil aceitar que esse filho está vivo, quer dizer —a corrigiu e logo fez um gesto ante essa nova demonstração de amargura, que dessa vez saía de outro poço, de que pertencia a esses meses sombrios, depois que fugiu de Thornley. —Não perdôo o fato de que nunca admitisse sua responsabilidade a respeito do Kit, nem sequer antes de que nascesse. —Não, suponho que te resulta impossível —aceitou sua amiga. —Mas, está segura de que a carta foi enviada, querida? —Indagou, franzindo o cenho. —Me refiro a que essa Olivia me parece uma autêntica bruxa. Possivelmente não enviou a carta... possivelmente... —Colocou-a na caixa de correios —afirmou Rebecca, vendo com tanta claridade como se tivesse sido ontem, a Olivia descer do automóvel no meio da chuva para colocar o envelope azul na caixa. Ainda distinguia sua rápida saudação e o sorriso, antes de voltar para automóvel e se afastar. —A enviou –insistiu. —E Jay é a única pessoa que pôde dar a seu pai a informação com a que me derrotou uma semana depois. —Esse velho tirano —grunhiu Chrissy. —Não posso acreditar que esse tipo de atitude ainda exista. Céus, faz você querer bater em algo, não é verdade? Rebecca ficou de pé com um suspiro, recolheu os potes e os colocou no tanque; logo ficou quieta, contemplando a parte traseira do jardim, enquanto seus pensamentos se voltavam mais e mais sombrios. —Ele quer que vamos viver no Yorkshire com ele —murmurou Rebecca. — Fazer malas e abandonar tudo isto, como se os últimos dez anos de nossas vidas não importassem. —Talvez tem razão —Christina argumentou, com suavidade. — Possivelmente não importem. A vida tem uma maneira brutal de fazer nós enfrentar os nossos erros. Jay deve pagar os dele contemplando a seu próprio filho, que cresceu dez anos sem que o conhecesse. Agora você terá que dar a cara a aquilo de que fugia. A absolvição de seus pecados está no Yorkshire, Rebecca —murmurou, sábia. —Também dos pecados de 89


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

outros, do Jay e de sua mãe. E... —continuou em tom mais positivo, —o negócio seguirá em pé embora viva no Yorkshire em lugar daqui. Você mesma disse que começa a te cansar trabalhar para Salamandra e administrar a oficina... além de viver sobre seu negócio. Os desenhos de Salamandra requerem sua atenção pessoal, enquanto que nos encarregamos da roupa de linha. —Salamandra, Chrissy —lhe recordou Rebecca com ironia, — proporciona-nos lucros suficientes para que os preços da oficina não aumentem muito. —Não o discuto —replicou sua amiga. —Mas não há razão para que não continuemos com a mesma política, exceto você desenhará no Yorkshire, enquanto eu produzo os vestidos mais simples em Londres. Depois de tudo, querida —acrescentou, seca— você e eu sabemos que essas tolas riquinhas poderiam comprar uma roupa muito parecida a um Salamandra com a etiqueta de Becky, por uma décima parte do preço. Pensa, Becky —a urgiu, — resguardada no Yorkshire daria sua atenção completa a Salamandra sem tudo isto que te distrai. Com um gesto indicou a buliçosa oficina cujo ruído prosseguia incessante. —Lá poderia residir o êxito do negócio, se o enfocar de uma maneira positiva, pois teria tempo de criar mais Salamandras —à medida que falava o entusiasmo de Christina aumentava: —Estou segura de que Jay te permitiria converter um quarto de sua mansão em estúdio já que assegura que essa casa é bastante grande para perder-se em um descuido. Além disso, com esta parte daqui desocupada, utilizaríamos o espaço para comprar outras máquinas e contratar novas costureiras, para começar a economizar, como sempre quis. Ao expandir o negócio, já não precisaríamos recusar pedidos como o fazemos, pois já chegamos ao limite de nossa capacidade de produção. —Meu Deus —brincou Rebecca, voltando-se para observar o rosto ansioso de sua amiga. —Já tem tudo arrumado, né? —Christina se ruborizou por esse tom zombador. Então a Rebecca lhe encheram os olhos de lágrimas. —Sinto muito —sussurrou, repensando— não queria te envergonhar. É só que... —levou-se uma mão à cara, com os dedos frios e trêmulas e seus olhos lhe ardendo pelas lágrimas contidas. —OH, Deus, 90


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

Chrissy! —afogou-se, rouca. — Não me preocupa o negócio, mas sim o Jay e como tenta vingar-se de mim. Então o rígido controle com o que dominava suas emoções se rompeu e as lágrimas começaram a brotar a fervuras, sacudindo sua frágil figura, enquanto escondia o rosto entre suas mãos trêmulas. Através de sua terrível tristeza, escutou que a cadeira de Christina raspava o chão enquanto sua amiga ficava de pé e duas mãos tomavam com ternura pelos ombros. Nesse preciso instante, alguém entrou na cozinha e, sem que Rebecca se desse conta, encontrou-se nos braços de Jay. —Kit... —murmurou, tratando de afastar-se dele. —Está lá fora —lhe disse, sem permitir que se movesse, — jogando com um menino cuja mãe trabalha em um de seus maravilhosos desenhos. Tem um pequeno império sob seu domínio, Rebecca —comentou. —Quem teria acreditado da indisciplinada e selvagem cigana que eu estava acostumado a conhecer? —Trabalhei muito para obter o que tenho —replicou, tensa, lutando para não chorar. —E tudo está aqui —ampliou o cerco dos braços de Jay pára tirar um lenço do bolso, empurrando-o para secar os olhos. —Minha casa, meu trabalho, meu próprio respeito, que tanto me custou edificar. —E suponho que pensa que te tirarei o que te satisfaz, não? —concluiu, em um tom baixo. —Quer se vingar. —Quero, Rebecca —repôs, sombrio, —que me retornem o que ninguém devia ter me tirado em primeiro lugar —elevou uma mão para lhe tocar o queixo, obrigando-a a olhar seu belo rosto no que se pintava a sinceridade. —A vingança é para os amargurados e eu não estou amargurado, só... magoado —suspirou. —Zangado porque perdi muito por causa de uma carta que nunca recebi. Ela ficou rígida, impaciente pela negativa contínua de que a carta jamais chegou a suas mãos.

91


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

—Ainda não acredita em mim? —Perguntou-lhe Jay entre dentes apertados, reconhecendo os sintomas da desconfiança da jovem. —Não sei o que posso fazer para lhe provar isso Rebecca —adicionou indignado. —Me põe em uma posição insustentável. Se aparecer a carta, acusará-me de que a recebi. Mas se insistir em que nem sequer a li, não me considerará inocente. —OH, pelo amor de Deus! —suspirou ela, farta da carta, farta do sofrimento que lhes causava o passado. —Sei que a recebeu, seu maldito, porque seu próprio pai me disse isso! Jay a contemplou atônito ante o impacto dessa declaração. —O que? —exalou, sem que ao que parecia pudesse pronunciar uma palavra. —Você ouviu —replicou, cansada, lhe sustentando o olhar com uma expressão irônica. —Não imagino como esperava que seu pai tratasse esse assunto quando o chamou para lhe contar da carta —continuou, amarga, —mas ao menos fica a satisfação de saber que o fez com sua costumeira crueldade. Jay se encolheu... e ela observou que suas cortantes palavras o feriam no mais íntimo. Então se separou de seu lado, cambaleando-se, igual a um homem que perdeu o uso das pernas, para se deixar cair sobre a cadeira da cozinha, como um morto. —Meu pai te deu dinheiro para que se desfizesse de nosso filho —sussurrou, rouco. — Não é verdade? —Sabe que sim, Jay —respondeu, irritada. —Então, por que finge que te surpreende? —Me conte —lhe pediu, sem olhá-la, concentrando-se em um ponto invisível de sua mente. —Me conte de um principio o que aconteceu. Quero saber. —Já conhece quase tudo —se burlou Rebecca, sem querer recordar o que julgava como a parte mais terrível de sua vida. —Lhe escrevi. Você recebeu minha carta. Telefonou a seu pai para que se encarregasse do problema de Rebecca Shaw e ele te obedeceu, ao pé da letra, com uma precisão digna de melhor causa.

92


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

—Quero que me conte tudo, maldita seja! —gritou, fazendo-a piscar ante a amargura que lhe lançava. —Não só essa... sarcástica versão que acaba de me oferecer. Tudo, maldição, tudo... tudo! Estremecida pela profundidade dessa emoção, quase, quase a convenceu de que acabava de receber o maior impacto de sua vida. Depois descartou essa idéia tachandoa de debilidade. Mostrava-se destroçado porque adivinhava que a verdade o golpearia com força na cara, ao fim. E que não resistiria. Em voz baixa, em um tom que se perdia no nó que lhe fechava a garganta, Rebecca fez o que lhe pedia, começando quando seu pai a chamou à casa do zelador para deter-se no ponto em que ela abordou o trem que a levaria a Londres, com o maldito dinheiro em sua carteira, jurando que jamais voltariam a vê-la no Yorkshire. —Agora seguirá negando que recebeu a carta? —desafiou-o, sentindo que sua própria alma se secou, depois de tirar a superfície tantas lembranças amargas. Ele não lhe respondeu e um silêncio opaco, vazio, separou-os. Ficou quieto, contemplando o chão da cozinha, como alguém que acaba de perder a essência da vida. E Rebecca esperou, com os braços cruzados e sua defesa disposta, a que ele terminasse o que nunca devia ter iniciado. —Não, suponho que não —suspirou ao fim. —Não depois disto —voltou a cabeça, para não olhar a jovem, enquanto seus dedos tremiam um pouco ao apertá-los em cada lado de seu nariz. Lá fora, atrás da janela da cozinha, Rebecca escutava a voz brincalhona do Kit, em meio das risadas dos outros meninos. E, a seus pés, sentia as vibrações dos motores elétricos enquanto que em seu interior se expandia um imenso vazio. Pareceu-lhe que o tempo se detinha nesse pequeno quarto. Elevou a cabeça de repente e viu a mesma expressão que Jay tinha quando escutou que seu filho estava vivo. —Disseram-me que tinha fugido para abortar o filho do Joe Tyndell —lhe confessou, em um sussurro. 93


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

O horror obscureceu as olhos cinzas de Rebecca. —Mas eu te disse a verdade —exclamou. —Nessa carta que nega com tanto empenho ter recebido. Negou com a cabeça, apertando seus suaves lábios para não pronunciar outra palavra sobre esse tema. Não se rebaixaria a defender a verdade e, o que era mais importante, a defender o que Jay sabia que era a verdade. E, se o convenceram com essa facilidade de que se refugiou nos braços de Joe Tyndell quando apenas ele acabava de partir, então não tinha nada que dizer. —Então, o que quer fazer agora? —perguntou Jay. Contemplou-o, abobalhada pela surpresa. O que ele perguntava? Ela pensava que ele já tinha tudo decidido e que não lhe importava sua opinião, exceto ao fim o obrigou a aceitar a história da maldita carta. —Me diga você —falou. —Você tem todas as respostas. —Sim —suspirou e uma estranha expressão lhe torceu a boca, em uma expressão depreciativa. —Tenho todas as respostas —outra vez o silêncio, estendia-se entre eles enquanto Jay continuava sentado, sem sugerir nada. Nada. —Olhe —suspirou, farta da situação, farta até a medula dos ossos. — Farei um trato com você, Jay —o olhou com frieza. —É óbvio que, uma vez que te estabeleceu como o pai de Kit, não posso te rejeitar sem ferir meu filho. Portanto -«tomou fôlego e o soltou de novo, —aceito me casar com você... Aceito a proposta que me lançou com tanta arrogância esta manhã. Até fingirei, pelo bem de meu filho e possivelmente também por orgulho —adicionou, cínica, —que estou loucamente apaixonada por você, se assim o quiser. Mas —continuou, contemplando seu belo perfil com uns olhos tão geladas como o dia invernal que se estendia fora da janela —... só se não reviver o passado de novo porque nossa única esperança de formar um ambiente bom e saudável para que Kit cresça, depende de que nós dois possamos esquecer esse maldito passado e todo o sofrimento que nos causou.

94


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

Jay lhe respondeu imediatamente e pareceu lutar por não perder-se nos caminhos escuros da mente. Logo sorriu, um sorriso triste, e ficou de pé antes de replicar: —Suponho que não posso te exigir outra coisa nestas circunstâncias —sua rigidez se voltou mais evidente ao contemplar a jovem. —Sempre foi justa, não é verdade, Becky? Leal e fiel a aqueles que amava —seu cinismo pareceu penetrar seu interior. —Não nos deve nada, segundo você, né? —Devo ao Kit —respondeu. —E se ele o desejar, pode te recuperar. Jay baixou a cabeça e a moveu, como se lhe custasse trabalho compreender esse problema. Depois sorriu de novo e o primeiro tremor de apreensão a sacudiu quando ele fechou o espaço que os separava. —Ah —murmurou com suavidade, empurrando-a contra o tanque da cozinha para impedir que escapasse. —Mas a pequena Becky também me deseja? Pergunto-me isso freqüentemente —se deteve, curioso. —E, se me desejar... —um dedo se posou na comissura trêmula da boca da jovem —... então devo me perguntar por que? Porquê!, depois de tudo o que lhe fiz. —Jay? —suspirou, mas nesse instante ele a beijou. A carícia a invadiu como lava incandescente e a paixão a enjoou apesar da falta de provocação sexual. Não lhe tocou o corpo, só seus lábios mornos se moviam sobre os dela, lhe acendendo os sentidos, enviando fogo através das veias, até que se separaram, ansiando por respirar e Jay a contemplou, notando-se nas mãos apertadas e nos seios que pulsavam com o movimento de seu agitado coração. —Sim... —murmurou, triunfante. —Você me deseja. —Não —a negação saiu de lábios quentes e trêmulos e ele sorriu, desprezando essa mentira. —Sim... —afirmou. —Isto se chama atração sexual, Rebecca —lhe informou, enunciando as palavras como uma promessa, —este delicioso encontro dos sentidos que te mantém prisioneira entre meus braços... e com isso teremos que nos conformar no momento.

95


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

Então, antes que pudesse lhe perguntar a que se referia, beijou-a de novo. O mundo girou sem bússola, cedeu a suas emoções, sem a satisfação de uma leve defesa e se rendeu a seu desejo, como um junco sob o vento. Sentia cada matiz desse homem, como se um milhão de agulhas a picassem despertando sua consciência por meio de seu cálida e sensível pele. Amoldou-se a ela, coxa contra coxa, quadril contra quadril, peito contra latentes seios. E suas bocas se fundiram em uma batalha apaixonada, enquanto o fôlego se mesclava com uma cálida explosão de desejo frenético. De repente, empurrou-a, mantendo-a a distancia para desfrutar dos destroços que causou na compostura da garota. —O que aconteceu há dez anos, Becky, não conseguiu mudar nada disto, não é verdade? —desafiou-a. —Ainda me deseja tanto que treme apenas se te toco e eu ainda te desejo embora a paixão me crucifique. Buscou-lhe a boca de novo e ela lhe permitiu beijá-la, exaltada pela violência desse beijo, concedendo tudo, que era o que ele queria para provar que o desejo os dominava, apesar do passado. Concentrando-se no outro, não escutaram as pisadas pela escada, nem sequer que a porta se abria. Foi Kit que exclamou: "OH" para separá-los e que contemplaram a seu sobressaltado público. Mas Jay impediu que ela se afastasse de seu lado, oprimindo-a com intimidade contra seu corpo, enquanto se voltava para observar a mortificação de seu filho. —Alguma vez tinha visto alguém beijando a sua mãe? —brincou com o menino. —Não —murmurou Kit, ruborizando-se até a raiz dos cabelos. —Então, te acostume, filho —lhe aconselhou Jay, contemplando Rebecca para lhe lançar uma provocação sombria, —porque de agora em diante sua mãe e eu nos beijaremos com freqüência. Assentando seus direitos de todas as maneiras possíveis, pensou Rebecca cansada e, ao fim, Jay lhe deu uma pausa de sua brutal dominação, para dirigir-se ao pequeno

96


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

escritório da oficina e enviar suas ordens aos empregados que trabalhavam em suas empresas, por via telefônica. Kit ficou para ver televisão na sala. Dava trabalho decifrar seu humor porque mantinha ocultas suas emoções enquanto tratava de entender os acontecimentos que descontrolavam sua vida inteira. Rebecca suspirou, voltando o rosto de volta a janela para contemplar a luz mortiça da tarde, enquanto seus dedos se entretinham em descascar batatas para o jantar que se supunha estava preparando. Em que confusão se metia permitindo que Jay a dobrasse a seu desejo?, perguntou-se. Mas, realmente a dobrava? Ou só lhe concedia o que já era dele? Kit, disse-se com firmeza, observando a batata que tinha na mão, o faz pelo bem de Kit. Mas uma vozinha interior riu e dessa vez não pôde ignorá-la. Amou o Jay de uma maneira tão total aos dezesseis anos, como um ser humano pode amar a outro. Nem sua juventude ou a falta de experiência o impediram, porque esse amor amadureceu durante anos depois de conhecer o Jay e compartilhar sua vida. O que aconteceu quando ele se foi, partiu seu coração, porque seu abandono a deixou sem nada... sem nada a que agarrar-se e, como um animal ferido, meteu-se em sua toca para lamber as feridas, sobrevivendo por instinto, lutando com as únicas armas que ficavam, sua dor e a ira que lhe permitiam seguir fugindo, seguir escondendo-se, até que ao fim decidiu vingar-se cortando toda comunicação com o Jay. Essa foi sua vingança, ao fim o admitia para si, lhe negar a oportunidade de ver o dano que lhe tinha feito. E cada vez que olhava seu filho, como um bebê de braços, como um peralta e inteligente menino, como um moço com a graça e o orgulho que seu pai possuía em maior grau, sabia que também olhava o Jay nos olhos e lhe cuspia: "Está vendo? Ele é meu. Ama-me. Esta parte de você, jamais me tirará". Agora Jay lhe roubava essa segurança, exigindo a posse de seu filho, desse filho que ela criou e alimentou, cobriu de lágrimas e protegeu com seu próprio sofrimento. E, como recompensa, estava disposto a prendê-la em seus braços e nutri-la com essas terríveis 97


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

emoções amorosas e passionais que a mantiveram fiel a sua lembrança ao longo de dez anos intermináveis. Tremeu, pressentindo que os dez anos seguintes não seriam menos difíceis de suportar... porque nem sequer poderia pretender que Jay a amasse. Assim deixaria que possuísse seu corpo, que exercesse sua magia sobre ela, e que aceitasse que se entregava pela única razão de que só assim satisfazia sua fome por esse homem. Ama-o, recordou-lhe a vozinha intrusa. Ama-o, não é suficiente para você? Entretanto, esse amor tinha perdido seu próprio respeito e a obrigava a sentir-se como a prostituta com quem a comparou o pai de Jay, vivendo com um macho pelo prazer que lhe proporcionava na cama, amando-o, mas de uma forma degradante. Não era amor... mas bem o lado sombrio da paixão, que se reduzia a um lado escuro do desejo. —O que tem para beber? —murmurou uma voz a suas costas e ao voltar-se encontrou o Kit, parado ao lado da porta, com expressão mal-humorada. —Suco de laranja ou limonada —respondeu em tom rápido, sentindo que se atavam suas já confusas emoções. Se Kit se mostrava resistente com ela, que tipo de relação sustentariam no futuro? aproximou-se da geladeira e abriu a porta, esperando que ele se decidisse. —Laranja, por favor —se aproximou enquanto lhe servia o suco em um copo. —Sente-se bem, Kit? —perguntou-lhe em voz baixa, olhando-o com ternura. —Suponho que sim —se encolheu de ombros e afastou a vista. —Se tiver objeções em relação aos planos de seu pai ou os meus, deve me dizer isso, lhe estendeu o copo e observou como contemplava o líquido, sem prová-lo. —Nenhum de nós dois quer fazer algo que te desagrade —lhe acariciou o cabelo, para penteá-lo e murmurou: —Te amo muito, meu amor. —Mais que a ele? —lançou-lhe um olhar, avaliando-a. Então era isso! Aliviada de que só o invadissem o ciúme, tirou-lhe o copo da mão e ficou de joelhos para abraçá-lo.

98


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

—Amo você mais que a qualquer outra pessoa no mundo, Kit —lhe confessou com doçura. —E essa é a verdade. —Algo me dói por dentro quando te vejo com ele —a garganta fechou e Rebecca ao ouvir essa admissão o abraçou com mais força. Um súbito movimento perto da porta a fez elevar seus olhos para enfrentar-se ao Jay, imóvel, escutando. —Ele diz que me quer, mas só quer você, não é verdade? Eu não conto para nada. —OH, não, querido! —horrorizada de que pensasse essas loucuras, Rebecca o afastou um pouco, ignorando o Jay para sustentar o olhar do menino. —Seu pai te ama. Certamente que te ama! —insistiu com certeza. —Não quero que nos separe —soluçou o menino, tremendo. —M-me cai bem —admitiu, —mas te amo mais que a ele. E... o que acontecerá se eu não gostar de viver no Yorkshire? O que acontecerá se quiser voltar aqui? Que possivelmente não te deixe voltar com-comigo e então, o que farei? —OH, Kit... —Rebecca o abraçou, protegendo-o com a força de seu corpo, pensando que o pobre Kit se equivocava e que, se alguém desejaria voltar, seria ela. —Não quero te compartilhar com ele, mamãe —suspirou Kit, escondendo seu rosto no pescoço de Rebecca. —Todos aprenderemos a compartilhar, Kit —lhe explicou, solene, ao contemplar a confiança refletida no rosto de seu filho. —Eu também te compartilharei com ele. E seu pai aceitará que compartilhemos nosso carinho entre você e eu. O amor é assim — murmurou contra seu pescoço úmido e morno. —Formar uma família significa amar e compartilhar tudo, mas não que cada um obtenha menos amor, pois o amor se aumenta como uma enorme borbulha para que outros caibam em seu interior. —E se eu não aprender a amá-lo? Jay fez uma expressão de dor e Rebecca descobriu que o compadecia, que ao fim o compadecia com sinceridade. —Surpreenderia-me muito se não o fizesse —sorriu, contemplando-se no Kit aos dez anos, com suas olhos cinzas adorando o Jay, seu herói. — Entretanto, ninguém espera 99


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

que o ame de repente, Kit —prosseguiu com seriedade. —Tem que aprender a conhecer seu pai, igual a ele aprenderá a te conhecer. E acredito que os dois devem dar-se um pouco de tempo, certo? Kit assentiu, com certa reserva em seus olhos azuis porque começava a arrepender-se de sua confissão. —Enquanto ele souber que também é minha —murmurou, possessivo, — não haverá problema. O dirá, não é verdade? —Sim —olhou a porta mas Jay já não estava ali. Desapareceu em silêncio, como chegou e ela escutou que a porta do quarto se fechava com suavidade. — O direi —lhe prometeu, sabendo que não teria necessidade de explicar nada ao Jay. Ele escutou cada uma das palavras que pronunciassem.

Capítulo 11

100


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

—Casaram-se! —Lina Shaw se reclinou contra a pilha de travesseiros e seu rosto descolorido brilhou com uma nova luz de modo que Rebecca pensou que o casamento quase valera a pena. —OH, isto é o melhor que podia acontecemos a todos. Seus olhos cinzas os percorreram, o Jay parado com um ar de campeão ao lado de Rebecca, com o braço com um gesto possessivo na cintura, e o Kit, sentado a seu lado, suportando as carícias da avó e seus sorrisos chorosos porque sabia que estava doente e devia consenti-la. —Isto concerta os erros, não é verdade? —suspirou, contente. —Põe o passado aonde pertence, no passado. OH, não podem imaginar o muito que significa para mim apagar o passado! —Possivelmente sim, Lina, posto que sentimos o mesmo —Jay concordou em nome dele e Rebecca, sorrindo com uma nota de cinismo na voz. Rebecca já não acreditava em sua afirmação, apesar de que insistiu no ponto. "Não falaremos do passado e aceitarei o que você proponha", disse-lhe. Mas na realidade o passado se mantinha entre ambos, colorindo cada palavra cautelosa que pronunciavam e que poderia causar uma explosão, observando, esperando... não sabia o que, reconheceu com um suspiro, conservando com muita dificuldade a trégua que existia, até mesmo uma fria calma... antes de que se desatasse a tormenta. Casaram-se essa mesma manhã, justo antes de empreender a viagem de volta... outro de seus planos inamovíveis. —Voltaremos para casa como uma frente unida —insistiu Jay quando ela protestou pela aterradora velocidade com que sucediam os acontecimentos. —Já conhece a vida de uma cidade pequena, Rebecca. Sempre surgem intrigas maliciosas e loucos exageros. Se os enfrentamos a um fait accompli, terão que engolir o fato e o pó que levantem voltará para seu lugar com maior rapidez. —Suponho que eu serei a causadora dessas intrigas —murmurou, azeda. —Nós dois os provocaremos, posto que assim que vejam o Kit, saberão que é meu filho. Trato de protegê-lo —lhe esclareceu sério. —Não quero que o escândalo chegue a seus 101


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

vulneráveis ouvidos. Assim nos casaremos imediatamente para que o digiram durante várias semanas antes que permita que o menino vague pelo cidade. Pretendo tirar um mês e meio de férias para conhecê-lo, Rebecca —lhe informou, decidido. —Depois de escutar a conversa que tiveram, considero que é a única maneira de solidificar nossa relação. Kit pode ter aulas particulares no Hall até o fim do trimestre e começar a ir à escola depois de Páscoa. Desse modo, estarei ao seu lado para impedir que as línguas ferinas o escandalizem e nos conheceremos pouco a pouco. —E Olivia? —lançou-lhe com petulância, recordando quanto tinha gozado lhe dizendo que Olivia fazia parte de sua vida íntima. —O aceitará junto com o resto —replicou, frio. —Depois de tudo, não pode me exigir nada. —Nem sequer como amante? —perguntou molesta por esse tom depreciativo. —Ou tenta reservá-la para depois, quando voltar a se cansar de mim? —Não considero que te ser fiel implique um grande sacrifício, Rebecca —respondeu em voz baixa e depois de estudar seu rosto cínico por um momento, encerrou seu corpo entre seus braços para adicionar, irônico: —sempre que seguir me entretendo pelas noites, como vem fazendo com tanta paixão. Fechou esse tema lhe fazendo amor até que lhe pediu piedade. —Deveriam viajar em lua-de-mel… Rebecca piscou ao dar-se conta do giro que tomaram seus pensamentos. —Todos os recém casados devem ter umas semanas de solidão para conhecer-se como se deve —os arreganhava sua mãe. Rebecca se permitiu um sorrisinho porque não havia maneira de que ela e Jay se conhecessem melhor na intimidade do que já o faziam. Durante a semana que passaram em Londres, organizando um casamento simples e obtendo uma licença especial, Jay se assegurou de que se conhecessem na frenética escuridão da noite, quando a devorava com seu corpo, amontoando prazer sensual sobre prazer sensual para que sentisse e pensasse como ele e assim a possuísse até em sua essência. 102


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

—A teremos —replicou Jay e uma vez mais a jovem teve que concentrar-se na conversa, enquanto a mão que lhe rodeava a cintura subiam até que seus dedos ficassem justo abaixo de seu coração. Imediatamente os batimentos de seu coração aumentaram e o contato morno dos dedos enviou uma sensação ardente em sua pele. —Tirarei seis semanas de descanso para os dedicar ao Kit e a Rebecca... e essa será uma lua-de-mel suficiente para todos —com astúcia se assegurou de que Kit se considerasse parte dessa experiência. — Possivelmente, no final de minhas férias, você queira retornar para casa para que se una à diversão —sorriu, comovendo o resistente coração de Rebecca pela generosidade com que incluía a sua mãe. O rosto da doente se escureceu, devido aos pensamentos que a atormentavam. —Não acredito, Jay —murmurou, desolada. —Não acredito que seu pai o aprovaria e não considero que esteja bem lhes impor minha presença depois do que eu... —Kit —interrompeu Rebecca imediatamente, antes de que a língua de sua mãe dissesse algo que todos lamentariam. O menino olhou a seu redor, interrogando-a. —Por que não vai ao primeiro andar no elevador e vê se a máquina de sucos funciona? Contente de que lhe proporcionassem uma desculpa para escapar, o menino ficou de pé de um salto. —Eu o acompanharei —interpôs Jay, pressentindo que mãe e filha ainda tinham muito que conversar antes que sua relação se assentasse para converter-se em algo que valesse a pena. Tomou a mão de seu filho que aceitou o gesto com acanhamento, e o levou para fora do quarto. A doente se ruborizou, consciente de que sua filha esteve a ponto de lhe lançar uma reprimenda, mas não se atrevia a envergonhá-la. —Sinto muito —murmurou, logo que ficaram a sós. —Foi uma tolice de minha parte, mas... Rebecca suspirou um pouco enquanto ocupava o lugar de Kit na cama. Imediatamente sua mãe se agarrou a suas mãos. —É que... ainda não suporto me enfrentar à parte de culpa que me toca em tudo isto... Em especial depois de vê-lo, Becky —se afogou. —Pensar que eu queria que você... 103


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

—Chega! —Disse Rebecca com firmeza, temerosa de que sua mãe se agitasse e se provocasse outro enfarte. —Não vou escutar, entende? Todos nós devemos enfrentar as nossas culpas, mamãe —continuou, com menos dureza, —mas Jay e eu decidimos que este foi um novo princípio e só o arruinará se persistir em repetir, até não poder mais, por algo que nunca aconteceu. —Mas, por que não aconteceu? —perguntou Lina, curiosa. —Por que não fez o que todos pensamos que faria? Matar o filho de Jay?, refletiu. Suas sobrancelhas escuras se arquearam com um leve desprezo. —Nem sequer pensei em fazer isso—lhe confessou recordando como todos lhe gritaram, ameaçando-a, lhe lançando suas opiniões até que acreditou que não adiantaria os gritos se não a escutavam. Entretanto, ninguém a escutou. Nem o pai de Jay, nem sua própria mãe. —Disse-me que era o filho de Joe Tyndell. —Quem lhe disse isso? —indagou Rebecca, esfriando-se por dentro ao imaginar-se que Jay pôde inventar algo tão cruel para fazer sofrer a sua mãe. —O pai de Jay, quando me chamou em seu escritório. Assegurou-me que você mentia, que não era o filho de Jay. Afirmou que toda a cidade saberia que tratava de responsabilizar o seu filho com uma paternidade que não lhe pertencia, que essa criatura era de outro homem. Disse que você e o menino deviam ir-se ou que me jogaria na rua também e que ele se encarregaria de que ninguém me desse trabalho em outro lugar. Seus ombros começaram a sacudir-se com o peso de sua culpa e a necessidade de tirála à luz; um fato que Rebecca aceitou, derrotada. "Tinha tanto medo, que não pensei no quão assustada e só que você se sentiria —continuou Lina. —Depois que você se foi, comecei a refletir com mais claridade, mas já era muito tarde, não é verdade? —Com os olhos procurou os da Rebecca. —Mas o pior de tudo foi que eu sabia, Becky que se esperava um filho, devia ser de Jay, —sussurrou, atormentada. —Possivelmente não me levei como uma boa mãe, querida, mas pensava com lógica. Via que você e Jay se 104


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

amavam. Via-o em sua cara cada vez que te contemplava com adoração e você não o deixava nem um instante a sós durante esse verão, em que parecia que nem sequer ansiava a lua porque Jay já tinha lhe dado isso. Suspirou sumindo-se nos travesseiros; seu rosto, não tão alterado como antes, mas ainda, estava pálido e tenso. —E, igual a você, acredito —prosseguiu com ingenuidade, —compreendia que o amor de Jay te traria muitas vantagens. Assim, embora desaprovasse suas relações íntimas, calei-me e não te censurei, imaginando que um dia viveria na mansão, como a esposa de Jay, senhora da casa que eu cuidei durante anos. Um longo suspiro a sacudiu, enchendo-a de vergonha. —Se alguém teve maus pensamentos, fui eu, Rebecca, não você. Você te concretizou a amar com o coração, enquanto eu esperava e observava, me sentindo agradada com o curso dos acontecimentos. Sabia que o pai de Jay mentia —murmurou com rancor. — Sabia que não havia modo de que sua interpretação fosse verdade. Mas quando se tratou de arriscar-se, protegi meu pescoço e te pus no pelourinho. E isso Becky, considero-o como meu maior pecado. O trajeto de volta à mansão esteve salpicado de perguntas, pois Kit se mostrava ansioso por conhecer o que o rodeava. Mas, enquanto Rebecca se esmerava por responder com alegria, seus pensamentos a conduziam a reviver o quadro que sua mãe lhe pintou desses dez anos repletos de sentimentos de culpa. Nada disso valia a pena. Se só... estremeceu-se, proibindo-se cair em uma série de "se só" que não a conduziria a nenhuma parte e não serviria a nenhum propósito. —Sente-se bem? —murmurou Jay, voltando-se para vê-la. Assentiu e ele lhe tomou uma mão para colocá-la sobre sua forte coxa, mantendo-a ali, coberta com a indiferença da sua. —Perdoará-se, querida —afirmou baixinho, adivinhando o que preocupava a sua esposa. —Como a todos nós, a sua mãe levará tempo em perdoar-se pelo que fez, mas no final o obterá... e esquecerá. 105


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

Algo na luz opaca de seus olhos revelou a Rebecca que falava tanto de si, como de sua mãe. —E temos o Kit —continuou, mais otimista, —a melhor panacéia que existe —apertou a mão da jovem e trocou de velocidade para que o automóvel quase se detivesse. —Ei, Kit! —Exclamou para chamar a atenção de seu filho. —Olhe à esquerda e verá sua nova casa. —Raios! —Rebecca escutou a exclamação afogada de seu filho, com a qual expressava sua admiração. —Vamos viver... ali! "Ali" continha umas quantas surpresas para a mãe e o filho... uma delas era uma seção de quartos recém decorados para o Kit que Jay lhe atribuiu perto da ala do apartamento que eles ocupariam e, se a grandeza e o tamanho de seu novo lar emudeceu de assombro ao menino, quando seu pai lhe mostrou o quarto e a sala dos jogos, ficou com a boca aberta, como se não acreditasse no que via. —Como se arrumou para obter isso? —murmurou Rebecca, comovida ao máximo por essa inspirada generosidade de Jay enquanto, ao igual a Kit, admirava a cômoda salinha, com os móveis práticos e resistentes que tinham em Londres... distribuídos para que Kit os empregasse em seu uso pessoal. Ali estava também a cama individual, esperando-o no quarto, coberta com a colcha do Batman. —A mudança se efetuou de caminhão esta manhã —lhe explicou Jay. — Eu... —olhou seus pés, sentindo-se torpe por um momento, —recordei quando fiz nove anos e tive que dormir em uma cama estranha em um lugar desconhecido. Não quis que Kit conhecesse o vazio que te invade nesses instantes de solidão. O coração de Rebecca se encolheu ao recordar como Jay lhe descrevia o período triste e aterrador de sua vida quando o enviaram a um internato sem um só objeto familiar que pudesse olhar para recuperar um pouco de confiança. —Obrigada —lhe tocou o braço e seus olhos se encontraram, provocando uma onda da compreensão que um dia compartilharam.

106


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

—Ouça... mamãe! —Kit rompeu esse momento de intensidade, fazendo que sua mãe piscasse e se obrigasse a fixar sua atenção no menino. —Até me trouxeram nosso velho televisor! —Sorriu e olhou com acanhamento a seu pai. —Estes móveis não combinam com a casa, não é verdade? —declarou com perspicácia. Jay sorriu, cruzou o quarto e acariciou a cabeça de seu filho. —Nunca julgue pelas aparências —lhe aconselhou. —O interior é o que conta. Kit franziu o cenho, sem compreender esse sábio comentário, mas Rebecca sim captou seu significado e soube que Jay não se referia aos móveis. —O caso é, Kit —continuou Jay em um tom mais natural, —que pensei que isto te ajudaria a te sentir em seu lar e a te adaptar a sua nova casa. E, assim que, ao resto das habitações se refere, estes são seus quartos particulares, pode entrar e sair quando quiser e acomodá-los como te agradar, sem preocupar-se em não pôr os pés sobre os móveis ou quebrar alguma peça antiga irreparável... Outra experiência do passado, reconheceu Rebecca e uma vez mais seu coração se comoveu ao evocar o Jay de quinze anos, que crescia muito às pressas para ter a graça e a coordenação corporal que agora possuía. Em muitas ocasiões chegou a procurá-la, chutando as pedras do caminho, com as mãos metidas nos bolsos da calça, porque acabava de receber outro repreensão por ter atirado uma porcelana ou qualquer tesouro dessa natureza ou simplesmente porque seu pai o pegou com os sapatos cheios de lodo dentro da casa. Esse menino teria dado algo para ter um lugar similar ao que agora entregava ao Kit para recostar-se O de subir sobre uma poltrona, sem que ninguém lhe reprovasse sua sujeira ou sua falta de boas maneiras. —Vêem —retornou ao lado de Rebecca, segurou-a pelo braço e a tirou do quarto do Kit, —também preparei uma surpresa para você, que espero que seja igual de agradável. Curiosa, Rebecca lhe permitiu que a guiasse até as escadas que subiam em espiral até outra seção da casa. Passaram frente a várias portas e então ele se deteve para abrir uma e fazer-se a um lado, para que ela pudesse entrar. Rebecca o fez com certo temor,

107


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

perguntando-se o que aconteceria e logo ficou imóvel, tão desconcertada como Kit ao encontrar-se frente ao estúdio que só se atreveu a sonhar que um dia teria. —O que te parece? —perguntou Jay, depois de deixá-la explorar a oficina de trabalho que tinha decorado para o uso pessoal de sua esposa. Tudo estava ali, desempacotado com cuidado e preparado para que o utilizasse. A enorme mesa para cortar, os cilindros de tecidos finos colocados nas prateleiras que ocupavam uma parede, as máquinas de costura, o guarda-roupa cheio de vestidos e o arquivo antigo, de madeira, que guardava seus desenhos. —Parece-me que te tomaste muitas moléstias —disse, em um sussurro. —Quero que seja feliz aqui, Rebecca —lhe indicou, como se a resposta pouco entusiasta da jovem o tivesse desiludido. Ela não respondeu porque não esperava encontrar a felicidade no Thornley. A felicidade surgia do amor e a confiança e ela não se permitia sentir essas emoções. Nessa noite a amou com uma nova urgência, assentando a posse desse corpo de mulher, embora jamais possuísse sua alma. E, como se pressentisse que resistia a entregar-se ele levou-a a beira da loucura com sua paixão, e só se deteve quando, muito dentro dela, ancorado em meio de seu corpo pelo poder de suas coxas, olhou-a e lhe disse: —Algum dia te farei dizer essas três palavras especiais de novo, Rebecca —sua ameaça também brilhou na iracunda paixão que lhe queimava as olhos ao contemplá-la. —Sairão de seus lábios em um momento igual a este, quando seus sentidos dominem sua fria e dura amargura, e então saberei que é toda minha outra vez. —Amo-te, Jay —se burlou Rebecca, imitando a voz apaixonada de seus anos de adolescente e logo o observou, desafiando-o. —É isso o que queria ouvir? —perguntou, sabendo que não era sincera ao pronunciar esse voto. —Maldita! —afogou-se e a penetrou com violência, ao mesmo tempo que essa agressão se duplicava nos movimentos de sua companheira.

108


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

Assim se fixou o patrão de sua futura relação. Jay lhe anunciou sua intenção de obrigá-la a apaixonar-se por ele de novo e ela o desafiou a que cumprisse essa promessa com o tom zombador de sua voz. Umas duas semanas mais tarde, quando retornavam do hospital, Rebecca descobriu um expressão no rosto de Jay e se perguntou que planos malucos fazia para chamar sua atenção. Cada vez que essa expressão aparecia em seu rosto, no geral precedia a uma dessas declarações para reconquistá-la, tirá-la de equilíbrio ou confundi-la. E a melancolia era mais intensa esse dia, deu-se conta incômoda, ao sair com ele do escritório onde passou a manhã trabalhando, para acompanhá-la ao hospital. A expressão se adaptava ao jogo com que dirigia a todos, efetuando pequenas variações, segundo o caso. Com sua mãe se mostrava encantador e brincalhão; com o Kit, brincalhão ou disciplinado. Sua mãe tinha saído da sala de tratamento intensivo para passar a um quarto com três camas, ocupadas por mulheres de idade similar a dela e, com o encanto especial de Jay, logo tinha às idosas fascinadas, o qual obrigava a sorrir para sua mãe e esquecer seus sentimentos de culpa. Kit, por outra parte, mostrava-se cada dia mais relaxado e contente com sua nova vida. A mansão o intimidou no princípio, induzindo-o a deslizar-se pelas habitações como se fosse um intruso, falando em sussurros em lugar de rir, saltando se alguém lhe dirigia a palavra. Mas agora caminhava com arrogância, imitando a seu pai, pelos salões elegantes; não lançava nenhuma olhar à armadura que vigiava seus passos e se burlava das pinturas de seus ancestrais que decoravam a escada. Ainda não tinha muita confiança no Jay, mas só porque começava a admirá-lo como um herói. Kit imediatamente registrava algo que Jay dissesse e lhe prestava uma grave e concentrada atenção. E, não importa o que fizesse, montar a Salamandra ou recostar-se em um sofá depois do almoço, o menino o observava com uma fascinação ingênua. Jay dava aulas ao Kit de gramática e aritmética, ensinou-lhe a montar um potro negro que lhe comprou e lhe explicou as regras do xadrez. E Kit ensinou o Jay a voltar a sentir 109


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

o prazer de chutar uma bala de futebol, no prado perto do lago, e como jogar escondeesconde. E com ela? Pois, com ela praticava o amor sexual e… o amor sexual. Posto que era a única maneira em que conseguia obter uma resposta "adequada" dela, ali concentrava todos seus esforços. Na cama ou fora dela, usava sua atração sexual para pô-la nervosa, esperando despertar suas emoções de um modo ou outro. Jogava com todos eles, afinando seus instrumentos para que se dobrassem a sua vontade; e o que obtinha com isso, Rebecca não podia dizê-lo. Na verdade, parecia feliz, contente com o tipo de vida que tinha adotado. —Acredito que darei uma festa este fim de semana —murmurou Jay de repente, mantendo os olhos fixos no caminho. —Para que se levante o pano de fundo como se deve. Então era nisso que pensava. —Lançará-nos ao estrelato, não é verdade, Jay? —mofou-se, seca. Até esse momento não se aceitaram visitantes na mansão, pondo como pretexto as reparações, para evitar que algum intruso os incomodasse. Agora, conforme parecia, justo quando ela começava a relaxar um pouco, o agradável amparo que lhe proporcionava seu lar, ia terminar. —Não, realmente não —respondeu Jay. —Mas acredito que é melhor que não nos escondamos, como se tivéssemos algo de que nos envergonhar. Convidarei a alguns amigos íntimos para... digamos, tomar um coquetel no domingo pela tarde —decidiu. — Pessoas que tenham filhos da idade do Kit, para que ele também conheça os meninos da localidade. —Acreditei que queria passar estas semanas protegendo-o contra essa possibilidade. —Mudei de idéia. Considero mais construtivo introduzi-lo pouco a pouco nesta sociedade. Desse modo, quando começar a ir à escola, já terá amigos... amigos que, no melhor dos casos, o protegerão contra os meninos mais... Sinceros. Joe Tyndell tem um

110


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

filho um ano ou dois menos que Kit. Poderíamos convidá-lo, suponho... —sugeriu, pensativo. —Joe Tyndell? —Rebecca ficou tensa e uma gelada suspeita lhe percorreu as costas ao contemplar seu perfil. O que tramava agora?, refletiu, nervosa. Joe Tyndell nunca foi amigo de Jay! Sempre brigaram, desde que ela recordava. —Desde quando Joe Tyndell é um visitante bem acolhido em sua casa? —indagou, à defensiva. —Em nossa casa —a corrigiu. —Sua casa —insistiu, teimosa. —Eu me sinto igual em um hotel de luxo. Um lugar onde os milionários permitem que atendam seus decadentes corpos —a frase estava cheia de desprezo. Jay lhe sorriu com esse encanto sempre presente em suas expressões zombadores. —Então você não gostou de fazer amor no luxo decadente de minha jacuzzi, né? — murmurou com ternura e o sorriso se ampliou quando as bochechas da jovem se ruborizaram. —Ontem à noite foi uma noite digna de se lembrar, minha doce tortura —se mofou, enquanto ela fervia com sua própria vergonha. —Ao sair da banheira, supus que se sentia total e completamente consentida, meu amor... —Oh, cale-se —lhe ordenou, desejando que Kit estivesse com eles para preservá-la das brincadeiras desse homem. Mas nesse dia ele ficou em casa para ajudar o velho Jimmy nos estábulos... um lugar que lhe custava um trabalho inaudito tirar seu filho. —Voltando para a idéia de organizar uma festa —retrocedeu com rapidez, —o que aconteceria se eu não quiser conhecer ninguém ainda? —Então, minha vida —replicou, preguiçoso, —só ficaria a possibilidade de te convencer, não é verdade? O sangue de Rebecca ardeu ante a insinuação que ele fazia e voltou a cabeça para que seu marido não visse o efeito que provocava em suas olhos cinzas. —Sexo... —murmurou, só para observá-la remover-se inquieta em seu assento e rir, antes de concentrar sua atenção na estrada.

111


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

Desde a primeira vez que fizeram amor na cama da Rebecca, em Londres, há mais de três semanas, não podia saciar-se dele e Jay sabia, -explorando essa debilidade ao máximo, gozando desse privilégio que controlava o seu desejo e empregando-o para descontrolá-la. A fazia arder com um olhar. Se estava falando, calava-a com apenas lhe percorrer o corpo com os olhos. Se em outros aspectos de sua vida cotidiana atuava como a serena senhora Lorence, no plano sensual Rebecca se convertia em vampiro, desesperada-se por sorver os prazeres que ele oferecia a seu corpo, sem a menor esperança de dominar-se. E se a envergonhava seu desenfreio, consolava-se um pouco ao pensar que ela o afetava do mesmo modo... e que tivesse podido subjugá-lo. Mas nem sequer o tentava e isso, acreditava de pé juntos, irritava-o ao máximo e o induzia a reduzi-la a uma massa de luxúria palpitante. —Esta noite faremos amor na sauna —decidiu, provocando-a de novo, como sempre, picando-a, aguilhoando-a, antes que tivesse oportunidade de voltar a levantar suas defesas. —Nossos corpos se cobrirão de suor, esquentarão-se —descreveu, saboreando-se, —e logo... nos uniremos, nos deslizando... deve ser uma experiência deliciosa... —Quer deixar de ser tão... vulgar? —cortou-o, engolindo em seco, enquanto seus sentidos despertavam ante esse conjuro. —Essa não é uma vulgaridade —replicou, lhe lançando um olhar ofensivo—mas sim um de meus planos mais interessantes.

112


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

Capítulo 12 Jay tinha razão. Resultou... muito interessante. Sempre foi um amante imaginativo e excitante, que com seus ensinos precoces, despertou em Rebecca uma sede incontrolável por alcançar a perfeição. Mas essa noite ultrapassou a todas as demais; arqueou seu corpo sobre o dele, gozando com suas peles resvaliças, enquanto Jay a sustentava e lhe beijava os seios. O vapor, o calor, o aroma doce e perturbador do suor limpo os rodeava e seus ofegos se acompanhavam do vaio luxurioso da água sobre os corpos ardentes, levantando nuvens de vapor que os envolviam, para que tudo culminasse em um lento e profundo, clímax sensual... melhor que qualquer um dos que até esse momento tinham compartilhado. E depois, quando carregou seu corpo exausto entre seus braços para levá-la à ducha, apoiou-se contra seu peito e ele a embalou, beijando-a sob a água, sem que esse beijo se colorisse de sexualidade pela primeira vez desde que eram amantes. E Jay a olhou com fixidez, permanecendo sob a cascata morna, forçando-a a dar-se conta do que negava apesar de que voltaram a unir suas vidas. —Amo você, Rebecca —suas palavras confirmaram o que confessavam seus olhos. — Sempre te amei e sempre te amarei. Sei que prefere, não acreditar. Mas meu amor sempre estará aqui, te esperando. Amo você e não há nada que você ou eu possamos fazer para sufocar esse sentimento. E, por mais estranho que lhe parecesse, acreditou nele. Entretanto, que tipo de homem era aquele que, amando-a dessa maneira, abandonou-a quando mais o necessitava? Jay esperou, observando-a lutar com suas confusas emoções que se refletiam em seu rosto. A intensidade de seu olhar lhe rogava que lhe correspondesse, mas Rebecca só baixou as pálpebras, incapaz de comprometer-se de novo, apesar de que o amava. Não se atrevia. Porque se Jay a traísse pela segunda ocasião, sabia que não sobreviveria à dor desse engano. 113


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

Diminuiria seu amor se não o confessasse?, inquiriu uma vozinha impaciente dentro de seu cérebro. Não, respondeu-se, vazia. Mas ao menos, dessa vez, conservaria seu orgulho. O silêncio entre ambos se estendeu, voltando-se longo e pesado. O único movimento na habitação provinha do vaio da ducha que enviava uma cascata de água sobre os ombros de Jay, salpicando os seios, o rosto inchado de Rebecca onde recebeu os beijos de Jay, os mamilos escuros, tensos, eretos, chamando-o, chamando-o sempre... Como se soubesse, ele os segurou entre suas mãos, sopesando-os, igual a que fez anos atrás quando se amaram pela primeira vez. E as lágrimas encheram os olhos da jovem ansiando, indefesa, o que um dia foi, enquanto as lembranças lhe esmagavam o coração. Jay inclinou a cabeça e a lambeu e ela se ergueu de novo, com as olhos fixos, imóveis, ao ver que uma luz parecia sair de Jay. —Amo você —repetiu ele. —Só Deus sabe como resistirei se não obter que se apaixone por mim. Mas não posso negar: eu te amo —e sua boca cobriu a dela, morna, tremendo sob o poder de suas próprias emoções. Depois a soltou, voltou-se, desviando a cabeça e, sem outra palavra, deixou-a sozinha, tremendo sob a ducha. Esperava que ele se trancasse em seu canto depois dessa admissão, mas ele não o fez. Nem sequer quando ela entrou no quarto, meia hora mais tarde, com expressão precavida para aproximar-se da cama. Estava recostado, contemplando o teto e no momento em que a viu sorriu e lhe estendeu uma mão, convidando-a a reunir-se com ele na cama. Essa noite Rebecca chorou como nunca até que já não ficaram lágrimas, enquanto ele a abraçava com força, sem lhe dizer nada, lhe acariciando a cabeça até que dormiu, exausta, sumindo-se em um sonho profundo e sem imagens. No dia seguinte, Jay tirou o assunto da festa, dando a Rebecca a lista das pessoas que desejava convidar. Ao ver o nome de Olivia, desconcertou-se e o desconforto que sentia pela frieza com que respondeu à declaração de seu amor, desapareceu sob uma onda de ciúmes amargos. Então Olivia seguia sendo uma parte agradável de sua vida?

114


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

—Você é quem devia chamar por telefone para convidar estas pessoas —afirmou, com petulância. —Afinal, são seus amigos, não meus. —Mas você é minha esposa —replicou, arrogante. —Telefona enquanto eu dou ao Kit sua aula de aritmética —lhe ordenou e saiu do quarto, deixando-a a sós. Durante o resto do dia, e da semana, ela evitou o Jay como se tivesse uma enfermidade contagiosa. Tendo cumprido com seu encargo, trancou-se na oficina que Jay lhe preparou e ficou a trabalhar nos desenhos para a seguinte temporada, desenhando com um empenho tenaz, até que quase lhe caíam os olhos pelo esforço realizado e os dedos doíam de tanto costurar e cortar tecidos. Depois visitava sua mãe e encontrava tempo para caminhar com o Kit, aumentando seu ressentimento ao notar como os dois progrediam sob o cuidado inegável do Jay. Mas as noites pertenciam a seu marido e ele sempre estava ali, sorrindo-lhe, desafiandoa a que escapasse, pondo em prática novas táticas, com um olhar brincalhão. Fechar a porta de seu quarto significava uma noite de amor em que Jay submeteria os sentidos de Rebecca, com uma espécie de ternura dolorosa que rasgava seu vulnerável coração. Apaixonava-a, só assim devia descrever-se, apaixonava-a com o doce, muito doce sabor de seu amor apaixonado. Os convidados começaram a chegar às três; o primeiro automóvel passou frente à casa do zelador e se estacionou perto da entrada da mansão. —Joe Tyndell será o primeiro a chegar —murmurou Jay, observando junto à Rebecca da janela do escritório e reconhecendo o carro azul escuro. — Isto resultará muito interessante —adicionou, com um toque de humor seco. — Vêem —lhe pediu antes que lhe perguntasse o que significava esse comentário crítico. Puxou-a pela mão e a pôs sobre o ângulo de seu braço. —Já é hora de que mostremos um frente unida. Kit? — chamou o seu filho, que se concentrava em mostrar-se tão tranqüilo como seu pai, quando possivelmente estava mais inquieto que Rebecca pelo teste a que se enfrentariam.

115


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

Pelo menos sabia que estava muito elegante, consolou-se Rebecca, enquanto os três caminhavam para o vestíbulo para receber seus convidados. Ela mesma confeccionou o vestido que usava, durante as horas que evitou o Jay, em sua oficina, com uma seda de fina textura, pescoço alto, manga longa e um corte que moldava sua figura até as redondas curvas do joelho. Jay lhe jogou um olhar e brilhou de orgulho, admirando-a com essa cálida sensualidade que lhe dizia que gozaria muito despindo-a, depois. E ela mordeu o interior de seu lábio para impedir de responder a esse chamado. Ao chegar ao vestíbulo, Kit permaneceu ao lado de seu pai, contemplando o Joe Tyndell, a sua esposa e ao menino que os acompanhava. —Jay! —Joe se aproximou para saudar o anfitrião, com um gesto tão aberto e cordial que Rebecca se permitiu um sorrisinho, aceitando que, longe de ser inimigos jurados, os dois pareciam ter se convertido em bons amigos... o qual só a confundiu mais, posto que Jay esteve convencido de que ela fugiu por culpa do Joe. —Pois —Joe se voltou para a Rebecca, —eis aqui a nossa linda Becky, de volta a casa, ao lugar que lhe pertence —o velho olhar travesso, que estava acostumado a comovê-la, brilhou em seus olhos e seu coração se contraiu ao recordar a atração letal desse homem. —Olá, Joe —saudou com certa reserva, ainda duvidando dos motivos que Jay tinha ao convidar o Joe nessa tarde e evocando os rumores destrutivos que provocaram há dez anos; ambos, Jay e sua mãe, mencionaram-nos, o qual significava que as intrigas se pulularam naquele tempo. Mas Joe sorria sem segundas intenções ao pegar sua mão e levar-lhe em sinal de brincadeira, aos lábios. Então Rebecca descobriu que se relaxava e correspondeu com um cálido sorriso. Sempre foi um homem bonito e nesse sentido não tinha mudado, notou Rebecca. Conservava o cabelo loiro e as feições bronzeadas pelo sol de quem trabalha ao ar livre. 116


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

Como rival de Jay em seus anos de juventude, foi o único, segundo o ponto de vista de Rebecca, que realmente o pôs em perigo de ser desbancado. —Então no fim a apanhou —murmurou, peralta, cobrindo o Jay com um olhar picasse. —E tento mantê-la nesse estado —lhe advertiu Jay. —Assim não paquere com minha mulher, Tyndall. —Que é isso de que meu marido paquera com alguém? —interpôs uma voz aguda. Jay riu e abraçou a uma loira pequena, lhe beijando as bochechas. —Só lhe dou um conselho são, querida Lyndsey... —Lyndsey? —Rebecca abriu muito os olhos para contemplar à senhora que, até esse momento, permanecia oculta atrás de seu corpulento marido. A mulher se desembaraçou dos braços de Jay e se voltou para sorrir a Rebecca. —A própria —confirmou— mas, se não se importar, Becky, preferiria que não te envolvesse com meu homem nesta ocasião... embora sempre gostou dele. Rebecca se ruborizou até a raiz dos cabelos, pois essa censura a cortava justo quando acabava de convencer-se de que se preocupava sem razão e ao desconcertar-se, retrocedeu um passo, para refugiar-se na curva protetora do braço de Jay. De repente, sua amiga dos anos de escola, pareceu retratar-se. — Maldição, Becky, não falei a sério! —exclamou. —Assim fala a linguaruda de minha mulher —se mofou Joe, ganhando um olhar gelado da aludida, antes que Lyndsey se adiantasse para pegar as duas mãos de Rebecca. —Não o disse em sentido literal, tola —a arreganhou, contrita. —Deus do céu... Joe e Jay arrumaram esse assunto faz anos. Ah, sim? pensou Rebecca, piscando para limpar a mente. —Antes que me casasse com este tolo, lhe asseguro —insistiu isso Lyndsey. —Ou jamais teria caminhado com ele uma rua; muito menos ao longo da nave central da igreja na manhã de nosso casamento —cobriu o seu marido com seu desdém, antes de fixar seus formosos olhos verdes em Rebecca, lhe suplicando que a desculpasse. —Era uma brincadeira! Isso é tudo —lhe explicou. —Uma brincadeira! 117


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

—De todos os modos tome cuidado, Rebecca —interveio Joe, seco, — suas brincadeiras são piores que seus sarcasmos. —OH, cale-se! —Ordenou-lhe sua esposa. —Deus, sinto-me muito mal! —Gemeu, dirigindo-se a Rebecca. —Embora jamais pensei que você soubesse algo disto, pois... —Rebecca, apresento nosso filho, Joe —a interrompeu de novo seu marido, em um tom que ruborizou a pobre mulher. —Ele, graças ao céu, herdou as qualidades de seu pai e não se parece o mínimo à desbocada de sua mãe. —Sim, pareço-me —protestou uma voz infantil, lançando ao Joe um olhar igual ao de Lyndsey, momentos antes, de modo que Rebecca não pôde evitar de sorrir. —Sou igual a minha mãe... sempre me diz isso. —Esqueci de mencionar que minha família obteve o certificado de loucura da cidade? — brincou Joe, cochichando no ouvido de Rebecca. Ela se voltou, mas este sorria com os olhos, sem o menor sinal de agressão em suas olhos. —Kit —com destreza apresentou o menino ao grupo, lhe pondo as mãos com firmeza sobre os ombros, —estas pessoas são o senhor e a senhora Tyndell e este é seu filho — os apresentou, para terminar com orgulho. —Nosso filho Kit. —Deus bendito —exclamou Lyndsey, estudando o Kit. —Este menino é idêntico ao Jay, Joe... e só poderia ser seu filho. —Obrigado —sorriu Jay e se inclinou para murmurar. —Aqui é onde você entra, moço. Depois de contemplar o seu pai durante uns segundos, Kit avançou. —Você gostaria de tomar um refresco de laranja? —perguntou. —De laranja? claro —o outro menino se encolheu de ombros e os dois se afastaram, arrastando os pés, incômodos. Rebecca os observou com o medo natural da mãe que deixa que seu filhote entre em território desconhecido. Esse temor se refletia na maneira em que seus brancos dentes mordiam seu lábio inferior. —Não se preocupe, Becky... —tranqüilizou-a Lyndsey. —Possivelmente nos considerem loucos na cidade, mas não malvados. Lhes dê cinco minutos e ficarão a destroçar sua casa, acabando com tudo. 118


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

—Sim acho que tem razão... —cravou seus olhos inquietos no Lyndsey, que a observava com gravidade, até que ao fim sorriu um pouco. —Não era minha intenção te incomodar. De fato, ansiava voltar a falar com você, depois de todos estes anos e... —Vamos, Lyndsey —um suave puxão retornou à pequena esposa do Joe a seu lugar, ao lado de seu marido, —outros convidados estão chegando e nos convertemos nas estrelas deste espetáculo, monopolizando a atenção. Assim vamos, querida, e inclina a cabeça com cortesia, como lhe ensinaram a fazer em ocasiões como esta... —Estou inclinando a cabeça, estou fazendo —informou Lyndsey ao Joe, indignada, caminhando para a bandeja de coquetéis, prontos para serem saboreados. —Nos veremos mais tarde, Becky —lhe gritou por cima do ombro—e então conversaremos... —Assim se comportava na escola —comentou Rebecca, confusa, enquanto os observava afastar-se, ainda discutindo, embora sem separar-se nem um centímetro. —Então, não se sentiu ofendida? —perguntou Jay, em tom baixo. —Não. —olhou-o e voltou a sorrir. —Bem, possivelmente um pouquinho, no princípio —e logo adicionou, com estupidez. —Jay... a respeito do Joe e de mim. —Depois, querida —a atalhou, fixando sua atenção no seguinte grupo de pessoas que chegava. E suas explicações tiveram que esperar ou, como se disse minutos mais tarde, possivelmente se interromperam antes que ficasse em ridículo, tratando de defender algo que nunca aconteceu. Portanto, elevou o queixo, com uma sombra de provocação em suas olhos cinzas que a ajudou a sair do passo durante a hora seguinte, enquanto os convidados de Jay chegavam e os apresentava com atitude formal. O fato de que Olivia não tivesse perturbada com sua presença na reunião, punha os nervos de Rebecca

de ponta,

enquanto que, pendurada pelo braço de seu marido, misturava-se com seus hóspedes, criando o que ele propôs do início de seu casamento: uma frente unida.

119


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

Reconheceu algumas pessoas, às que tratou há dez anos, a outras não. E descobriu, ao formar parte dos grupos que conversavam, por que Jay os convidou. Todos eram pessoas agradáveis, ansiosas de lhe dar as boas-vindas em seu círculo seleto, embora só fosse por consideração ao Jay. A chegada de Olivia escureceu a festa. E, pela primeira vez, Rebecca se perguntou o que induziu a seu marido a convidá-la quando resultava óbvio que todos os presentes se sentiam incômodos como ela pela presença dessa mulher. Os convidados se lançavam olhadas significativas e mais de um ficou tenso. Olivia usava um delicioso vestido de seda, de desenho exclusivo, que combinava com o tom de sua pele. Deteve-se uns instantes na porta do salão esperando que notassem sua presença e só quando todos os olhos se pousaram em sua deslumbrante figura, Rebecca se deu conta de quanto lhe exigiu Jay ao lhe pedir que fosse à mansão para saudar sua esposa. Chegava como a perdedora e não havia nenhuma pessoa nesse quarto que não fosse consciente disso. Entretanto, levantou o rosto, conservou a calma e no final permitiu que seu olhar se posasse em Rebecca e Jay, lhes oferecendo um sorriso, além de seus melhores desejos, sem que sua voz soasse amarga. —Assim se faz —a felicitou Jay com ironia, enquanto se afastava do casal, cravando as olhos nas curvas ondulantes de sua convidada. — Isso significa que não se importa um pouquinho. —Não seja sarcástico —sussurrou Rebecca, irritada. —Lhe custou trabalho vir a sua casa e não posso dizer que para mim foi fácil aceitar que sua ex-amante e eu estivéssemos sob o mesmo teto. —Minha ex o que? —mofou-se e logo riu ao ver a expressão sobressaltada de Rebecca, antes de lhe plantar um beijo no rosto. Saiu da sala para ver como estavam os meninos, trancados na sala posterior, onde se tinham retirado os móveis e colocado uma série de jogos para mantê-los entretidos. Ela o contemplou como tola, sabendo que tinha recebido uma boa reprimenda sem que Jay murmurasse uma só palavra de recriminação. 120


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

Entretanto, ainda enquanto fervia a raiva em silêncio, querendo correr atrás dele e lhe pedir uma explicação, seus olhos o comiam, admirando a graça felina com que se movia, a intensa sensualidade de seu longo corpo, coberto pelo manto de uma sofisticação urbana, que enganava aos incautos. Jay era um homem possessivo, primitivo e autoritário. Uma ave de rapina. —Cuidado... não demonstre seus sentimentos —lhe aconselhou uma voz a seu lado e Rebecca girou para topar-se com Lyndsey que lhe sorria. —Esconda- os —lhe pediu, com fingida solenidade. —Aqui há uma ou duas pessoas que adorariam te cravar uma adaga pelas costas —então, seus formosos olhos se tornaram sérios, escurecendo-se. —Perdoa minha sinceridade, Becky, mas nossa querida Olivia te causará problemas. Sempre se intrometeu em tudo o que concerne ao Jay. Considera-o sua propriedade exclusiva desde que eu recordo, e não entendo por que mudará de opinião pelo simples fato de que agora se casou. As emoções se ataram em seu interior e Rebecca ficou quieta durante um segundo, tratando de conter-se, mas incapaz de sufocar a ira cálida que a invadia. O ciúme a curvaram, quão mesmo uma fúria profunda para o homem com quem se casou por aceitar a Olivia, convidando-a para o seu lar nesse dia. Resultava evidente que Jay gozava tendo as suas mulheres a seus pés, pensou zangada, e tomou a decisão firme de não voltar a permitir-lhe isso. —Ouça... O que é isso de que você é Salamandra? —o tom admirativo do Lyndsey a trouxe de novo ao presente e colou um sorriso amável na cara. —Incrível que a insignificante Becky Shaw tivesse êxito na vida, não te parece? —burlouse de si. —Eu o qualificaria de desconcertante —replicou Lyndsey com sinceridade. —Na escola, odiava até trespassar uma agulha. Assim, como conseguiu amassar uma fortuna com seus vestidos? —Por necessidade —suspirou e seus olhos se escureceram por um momento ao recordar esses anos quando qualquer trabalho de costura significava um pouco de 121


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

dinheiro extra. —Simples necessidade. Devia me manter e o único que podia fazer em casa, enquanto cuidava do Kit, era costurar. E não esqueça que, odiasse-o ou não, minha mãe me obrigava a ajudá-la a remendar nossa roupa e as desta casa —seus olhos percorreram o elegante salão, evocando as vezes que se sentou ali durante horas, reparando com uma paciência infinita as pesadas cortinas de damasco ou colando emplastros muito pequenos, com pontos invisíveis, sobre uma toalha de linho e renda. Possivelmente se comportava como uma garota ousada e meio selvagem, mas também cumpria com suas obrigações e assim aprendeu a sentir-se orgulhosa de seus trabalhos manuais. —O vestido que usa é um Salamandra? —perguntou Lyndsey observando Rebecca com inveja. —Quer ver a etiqueta? —riu e logo confessou: —Não, fiz-o esta semana. Repeti um velho modelo que volta cada ano por suas linhas clássicas e simples. —Possivelmente o modelo não seja de última moda, mas converte sua figura em algo espetacular —afirmou Lyndsey. —Obrigada —Rebecca voltou a rir, com tanta naturalidade que várias pessoas a olharam, entre elas Jay e Olivia, ambos os entrecerrando os olhos para avaliá-la. — Poderia te fazer um, se quiser —lhe ofereceu. —A mim? —os olhos verdes se abriram, sobressaltados. —Não posso me dar o luxo de comprar um Salamandra! —afogou-se. —Não —sua inveja se transluzia, —os modelos exclusivos não são para mim; acabariam com o salário de meu marido. O qual é uma desgraça, em minha opinião, pois tenho dificuldades para encontrar algo que eu goste por culpa de minha estatura —se queixou. —Tudo fica muito comprido, muito largo, Ou... —Ou muito, curto —terminou Rebecca com simpatia e uma compreensão que adquiriu através de anos ao trabalhar para mulheres cuja estatura e figura saíam das talhas normais. —Mas, é sério, Lyndsey —já sua mente de desenhista estudava o corpo de sua amiga, cobrindo-o com tecidos leves, suaves, as moldando para que se adaptassem à

122


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

figura feminina, —tenho uma linda seda em minha oficina, no primeiro andar, que ficaria sensacional em você. —Não posso pagar, Rebecca! —repetiu Lyndsey, suspirando. —O que importa a marca? —os olhos cinzas descartaram esse detalhe com desprezo. — É só um pedaço de seda, que custa trezentas e vinte libras esterlinas. Eu te costurarei o vestido pelo preço do tecido e, se quiser, depois compra a etiqueta de Salamandra e a põe. —Não estaremos cometendo um crime? —perguntou Lyndsey, com os olhos como pratos. —Eu sou a Salamandra —replicou Rebecca, arqueando as sobrancelhas, —e faço o que me dá vontade com minhas etiquetas! Ambas compartilharam uma gargalhada amistosa e uma vez mais os convidados se voltaram para contemplar a essas duas jovens, gozando de sua companhia. Jay sorriu, satisfeito, e logo se voltou, bem a tempo para pescar Olivia fulminando Rebecca com os olhos. —O que prefere —continuou Rebecca, tentando-a, divertida, —algo suave e sofisticado que te faria ver-te como uma duquesa, ou algo colado, muito, muito sensual, que deixaria o Joe babando? —OH —refletiu Lyndsey, —deixemos o Joe babando —decidiu imediatamente. —É algo que sempre quis ver. —Então... —lançou um olhar conspirador ao redor da sala e logo se voltou para Lyndsey. Esse gesto devolveu a sua amiga aos anos em que tal expressão significava uma travessura que as meteria em problemas, —escapemos daqui e corramos a revisar os desenhos em meu estúdio... retornaremos antes que se dêem conta. Dez minutos mais tarde, desciam pela escada, rindo-se entre elas. O desenho que Rebecca inventou para a pequena loira resultou tão asquerosamente sensual que Lyndsey se ruborizou.

123


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

—Não só babará —exclamou, encantada. —Também lhe sairá o coração pela boca, pobrezinho. —O que tramam? —perguntou uma voz profunda —elas se sobressaltaram, com a culpa gravada em suas caras, ao descobrir o Joe as observando, ao pé da escada. —O que acha? —indagou sua esposa, com inocência. —O que fazem todas as mulheres quando desaparecem uns minutos? Conspiram para ver-se mais bonitas e poder conquistar a vocês, pedantes presunçosos. —Mas bons, maridos subjugados —brincou Joe e logo pescou a sua esposa pelo braço para adicionar, seco: —Está cometendo o mesmo erro de novo, querida. Monopoliza à estrela. —Já sei, já sei... em frente e caminha, em frente e caminha —suspirou, olhando a Rebecca com uma expressão que significava, "já vê quem manda em minha casa". Rebecca riu um pouco enquanto o casal se afastava, sentindo-se mais contente na mansão do que tinha estado desde que se mudou ao Thornley. Ela e Lyndsey foram amigas íntimas na escola. E resultava agradável descobrir que os anos não tinham alterado essa compatibilidade de caracteres. A fazia sentir-se bem em seu interior e agradeceu ao Jay que organizasse a festa. De repente compreendeu que o fez só com essa meta e não com a intenção de ver como ela e Joe reagiam ao encontrar-se frente a frente. Tal aceitação lhe aliviou o coração e ainda sorria quando se dirigiu ao arco ornado que separava o fronte da parte traseira da casa, com o propósito de ir ver os meninos. Mas logo que entrou na penumbra do vestíbulo quando o som de umas vozes que provinham da biblioteca do Jay, deteve-a. Mudou de direção e se parou junto à porta entreaberta. O que escutou a gelou. —Quando essa tola descobriu que não enviei sua maldita carta? A voz de Olivia possuía uma nota zombadora.

124


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

Capítulo 13 —ISSO não importa, não é verdade? —respondeu a voz de Jay, fria e calma. —O fato é que você mentiu e influiu para que meu pai conspirasse em nosso contrário. —Eu menti? —mofou-se Olivia com desprezo. —Ele queria acreditar no que lhe contasse, Jay. Estava ansioso por encontrar uma desculpa para tirá-la de sua vida. Deus! —riu. — Quando lhe mostrei essa carta, aterrou-o. Quase me afoga com sua gratidão quando a cataloguei de mulher da rua e lhe expliquei que não existia a menor possibilidade de que esse bebê que levava no ventre fosse teu. Sentindo que se enjoava, Rebecca se apoiou com pesadez contra a parede. —Arruinou a vida de Rebecca, arruinou minha vida e quase arruína a do Joe Tyndell para te sair com a tua. E, entretanto, o que obteve? Dez anos de frustração —Jay respondeu a sua própria pergunta, com dureza. —Dez anos nos que tratou de me induzir a me colocar em sua cama, quando o único que tinha que fazer era indagar por que nem sequer te tocava e eu te teria respondido com uma verdade que nos teria economizado muitos dores de cabeça. —Alguma vez me desejou, Jay —lhe lançou Olivia, com amargura. — Enquanto te deitava com essa camponesa na palha, sentia saudade de um pouco de classe durante 125


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

esse quente verão... por essa razão sempre rondava minha casa, nadava em minha piscina, admirava meu corpo. —Realmente é uma criatura patética, Olivia —disse Jay, sem modulações. —Não ia a sua casa por você —se burlou. —Ia por Rebecca. E se isso significava ter que suportar sua natureza egoísta e sua aborrecida companhia, estava disposto a pagar o preço... para evitar que destroçasse, a minha namorada com sua língua viperina. —Mentira! <<Ia lá, porque você estava ali, ele lhe disse uma vez e Rebecca tragou saliva. Jay dizia a verdade>>. —Lembre-se, Jay! —Insistiu Olivia. —Nascemos um para o outro. Deus! —gemeu. —Não te dá conta de que seu pai se remove em seu túmulo porque te atreveu a trazê-la a esta casa? —Não —sentenciou Jay. —Meu pai odiava à pessoa em que converteu a Rebecca. Sei que era inflexível e de idéias muito conservadoras. Mas Rebecca cresceu em sua propriedade. Estava acostumado a vê-la aqui. Agradava-lhe, a seu modo especial. Não... —Rebecca se apoiou, débil, contra a parede, enquanto o coração lhe espremia o peito, imaginando o rosto tenso do Jay, —foi a maneira em que você o induziu a acreditar que ela me traía o que o obrigou a atuar dessa forma. —Lhe dando dinheiro para que se desfizesse do bebê? —mofou-se Olivia. —Isso não aparece como um ato de bondade em meus livros de contos de fadas, mas sim, um conto de horror. —Não de um bebê qualquer, Olivia —lhe esclareceu Jay, com uma voz tão fria e calma que a da Olivia soava aguda por comparação. —O bebê do Joe Tyndall, como você sugeriu, que fazia passar por meu. Isso foi o que não pôde perdoar. E, embora não concorde com os métodos que usou para me proteger, entendo-os. Enquanto que seu comportamento não tem desculpa. Seus atos só se explicam se pertencerem a uma bruxa obsessiva e malvada.

126


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

Um breve silêncio seguiu a humilhante opinião que Jay tinha do caráter de sua convidada. —Meu Deus... —suspirou ela. —Absolve a todos de sua culpa exceto a mim, né? Terei que carregar com os pecados da comunidade porque é a única maneira de que sua família viva tranqüila depois do que lhe fizeram... quando, realmente, Jay, foi uma mera casualidade que esse bebê te pertencesse. Não importa o que Rebecca ou Joe Tyndell lhe digam, traíam-lhe cada vez que lhes dava as costas. Rebecca se separou da parede, com os olhos abertos por uma fúria cega que lhe retorcia as vísceras. Impulsionou-a a decisão de entrar ali e... —Não —uma mão a deteve e ela se voltou para encontrar-se com o Joe, a seu lado, com o rosto tenso de ira. —Deixe-os terminar —lhe pediu em voz baixa. —Jay sabe o que faz. Deixe-os terminar. —Então ouviu que seu marido ria, com um som tão rude e cortante que a encolheu e Joe abraçou seu corpo trêmulo, sustentando-a com suas mãos enquanto Jay murmurava, seco: —Eu gostaria que repetisse o que acaba de dizer em frente do Joe e sua esposa. Lyndsey é mais forte que Rebecca... arrancaria-te a língua e depois contemplaria impassível como te sangra até morrer. Joe riu, uma suave gargalhada que lhe nasceu no profundo do peito, mas Rebecca adivinhou que apreciava o sarcástico ponto de vista que Jay tinha de sua mulher. —Por que não aceita, Olivia —continuou, sem alterar-se—, que seu sujo jogo foi descoberto e que já é hora de que se retire, com certa dignidade? Adverti-lhe isso quando te convidei, que não estava disposto a suportar este tipo de discussões — terminou. —Se... —murmurou, irritada, —queria me humilhar sem pôr em perigo a seu mulherzinha. É um malvado, Jay —o insultou, rouca. —Organizou esta reunião para me pôr em evidencia ante todos. Ninguém me estima e já não pertenço a este grupo. —Você buscou isso —se mofou Jay sem um grama de compaixão humana. 127


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

—Ninguém veio em minha ajuda —ao fim Olivia parecia tensa e derrotada. —Você buscou isso—repetiu isso. —E ao fim conseguiu o desprezo de todos. —Só porque ela descobriu, de alguma forma, que não enviei essa maldita carta —riu Olivia, um tanto desenquadrada. —Que ironia! Quando levei a carta de Rebecca à caixa, realmente me comportava com amabilidade para lhe fazer um favor; um pouco freqüente em mim. Mas ao ler o endereço no envelope, decidi que não devia me incomodar em cumprir com meu encargo. Céus —se burlou, —diverti-me muito ao lê-la! Rebecca se cambaleou de novo, a náusea a fez empalidecer, e Joe a sustentou, enquanto ela recordava de novo a cena, como Olivia descia de seu carro no meio da chuva, procurando o momento preciso em que o envelope azul devia entrar pela boca da caixa e perder-se em seu fundo. Então o viu. Olivia agitou uma mão sobre sua cabeça, chamando a atenção de Rebecca, enquanto que com a outra escondia a carta no bolso de seu casaco. —Venha —lhe pediu Joe, —acredito que já ouviu muito. Assentiu, incapaz de lutar contra outra vontade e permitiu que Joe a conduzisse até o circo, onde se deteve, colocando suas mãos sobre os ombros da jovem. —Quanto você escutou? —perguntou ela. —Quase tudo —fez um gesto e perguntou a sua vez: —O que sabia? —Quase tudo —repetiu, pensando, "exceto a parte mais importante". A parte que lhe demonstrava que Jay jamais recebeu a carta. Estremeceu-se e Joe a apertou com suas mãos. —Os vi entrar na biblioteca, pouco antes que você e Lyndsey descessem —lhe explicou a razão pela que estava nesse lugar. —E pensei que algo como isto aconteceria ao verte ir em busca dos meninos, assim deixei ao Lyndsey com os Crowther e retornei para te evitar este desgosto... muito tarde —sorriu, seco. —Desde que chegou Olivia, tratou que encurralá-lo, a sós —continuou, sem rodeios. —Todos o adivinharam... incluindo o Jay. Mas nem todos sabiam as razões pelas que queria falar com ele em privado —posou seus olhos sombrios na jovem. —Se comportou com certo desespero desde que você 128


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

voltou a entrar em cena. O fato de que Jay te mantivera afastada, aqui no Hall, só piorou seu humor. As pessoas o notaram e se preocuparam, porque sempre foi evidente que Jay a obcecava. Quando ele se casou com você, ela ficou sem ninguém. .. sozinha, entende? Rebecca assentiu, compreendendo o que sua rival sentia. —Mas o que eu não entendia era quão doentia era essa obsessão, Becky... até que ouvi esta discussão —Joe voltou a cara por um instante, apertando a mandíbula com fúria e asco. —Pensei que esse incidente de dez anos me causou muitos problemas, mas não tem comparação com o que fez contigo. Ficará bem? —indagou. —Devo entrar na biblioteca e trazer o Jay? —Não —ainda não estava preparada para enfrentar o Jay. —Devo voltar com os convidados —murmurou, distraída, afastando-se de seu lado. — Parece que te causei muita dor sem saber, Joe. Sinto muito e espero que me perdoe. —Nunca te culpei, Becky —protestou. —Só me indignou o modo em que as pessoas uniram nossos nomes com tanta irresponsabilidade quando desapareceu. Agora entendo a razão... —suspirou. —Ela deve ter divulgado essas intrigas aos quatro ventos. Como te disse, suspeitei que era Olivia mas... pois... —encolheu-se de ombros, muito molesto para prosseguir. —Essa mulher se parece a um câncer. Enoja-me pensar que um dia a considerei uma amiga! Às seis horas, os convidados começaram a despedir-se, oferecendo corresponder com outra reunião e felicitando ao Jay e a Rebecca por seu filho. Rebecca não viu Olivia partir, mas observou que Jay entrava na sala uns minutos depois que ela. Quando os últimos atrasados se foram, Jay lhe passou o braço pelos ombros e a jovem contemplou o Kit, ruborizado e feliz pelo êxito obtido essa tarde. Descobriu que três meninos com os que jogou, estavam na mesma classe que ele e recebeu convites para ir a suas casas. Ao olhá-lo, Rebecca quis chorar por tudo o que seu filho tinha perdido durante os dez últimos anos. 129


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

Apenas ficaram a sós, Rebecca se desculpou e deixou que Jay gozasse com o batepapo excitado do menino. Passou meia hora antes que seu marido a procurasse em seu quarto e a encontrasse frente à janela, com o olhar perdido na noite. —Esfriará —comentou abraçando-se porque sentia frio. —É —aceitou, Jay ausente; logo, adicionou rouco: —Becky, amor... —Como descobriu sobre a carta? —perguntou-lhe ela, atalhando-o. Ele colocou as mãos nos bolsos da calça, fazendo um gesto pela forma em que ela atacava o ponto. —Confundia-me que essa carta tivesse chegado às mãos de meu pai em lugar das minhas. No princípio supus que, em sua ansiedade, equivocou-te ao escrever o endereço, logo descartei a idéia como um escapamento à maldita verdade... que meu pai, meu próprio pai —repetiu com dor, —quis matar minha carne e meu sangue — aspirou enquanto uma amarga desilusão se pintava em sua cara. Depois de vários momentos, continuou: —Quando me contou do encontro que teve com meu pai, mil detalhes me torturaram a mente... a fúria que ele mostrava quando voltei da América, por exemplo... —Retornou antes de tempo? —indagou, surpreendida. —Retornei antes que passassem dois meses —grunhiu, movendo-se inquieto. —O que esperava que fizesse se não tinha ouvido nenhuma maldita palavra de você e estava ficando louco sentindo saudades, me preocupando com sua felicidade? Era tão jovem e impulsiva! —gemeu. —Tudo podia ter acontecido. Chamei à casa e pedi que me comunicassem com sua mãe para averiguar se algo andava mau, mas nunca se aproximou do telefone. E meu pai não me brindou a menor ajuda. "Becky?" perguntou, como se se tratasse de uma desconhecida e não soubesse de quem falava. "Conseguiu outro trabalho e se foi... pergunte a sua mãe". E assim me trouxeram de um lado, a outro até que me desesperei e adivinhei que algo terrível acontecia. Tomei o primeiro avião disponível e disse a meu pai que te amava e queria me casar com você. Então quase sofre um ataque de fúria. Insultou-te com uns qualificativos imencionáveis até que o 130


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

golpeei... Pela primeira vez em minha vida golpeei a alguém e saí do quarto, para correr até a casa do zelador e me enfrentar a sua mãe... que ficou a tremer como uma folha e me deu uma série de respostas embrulhadas que não entendia. Fugi dali como um louco, sem saber se tinha ido embora com outro... pois não se incomodou em me escrever... —Mas ao fim lhe disseram que me escapei pára-abortar o bebê do Joe, e você, certamente, acreditou —assumiu, triste. —Não, maldição, não o fiz! —gritou, lançando a Rebecca um olhar amargo. —Não sou um tolo, Rebecca, embora a maior parte de minha vida me comportei como tal no que te diz respeito —suspirou. —Ainda conservava a prudência suficiente para saber somar e calculei que, se estava grávida, tinha que ser de meu filho. E, Deus é minha testemunha, nunca me senti tão mal em minha maldita vida como então, sabendo que teria que sobreviver sozinha, assustada, considerada um lixo, a julgar pela atitude tenaz com que sua mãe se negava a te mencionar. Passei meses tratando de te localizar. Preocupavame com você, certo de que não faria nada por machucar nosso filho. Entretanto — admitiu, cansado, —quando as semanas se converteram em meses e os meses em anos, comecei a acreditar. Para preservar a razão —lhe explicou, —acreditei, - ou teria ficado louco, por não poder viver com minha culpa. —OH, Jay! —sussurrou. —Sinto muito —se sentou sobre a cama porque suas pernas já não a sustentavam. Julgou-o capaz de rejeitá-la a ela e ao Kit e ele viveu um inferno tratando de encontrá-la. —Sente muito? —grunhiu, avaliando-a como se se tornasse louca. —E como demônios acha que eu me sinto desde que soube do Kit? Atormenta-me imaginar as dificuldades pelas que passou nos últimos dez anos. Kit me descreveu pedaços de sua infância e, por suas palavras inocentes, deduzo o que sofreu. E, quando me disse da maldita carta... — calou-se, tragou saliva e tentou conter as emoções amargas que buliam em seu interior. —Escrevi-a uma semana depois que se foi, Jay. Foi primeira e única carta que te enviei. —E meu pai te deu minha resposta —concluiu, seco. Rebecca baixou os olhos pois a dor desse encontro ainda a feria. —Sua mãe me contou o que meu pai lhe ordenou. Parecia 131


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

alegrar-se de tirar seus segredos à luz. Viveu com a terrível culpa de ter te traído. Deus sabe —suspirou trágico, —que eu gostaria de pensar que meu próprio pai também sentiu remorsos, mas nunca estarei seguro disso. A consciência devia incomodá-lo, porque me pediu perdão quando comecei a trabalhar em sua companhia. Fiz-o porque já nada me importava. Sentia que você tinha me traído —sussurrou. —Uma traição que... —Nunca! —a emoção a obrigou a ficar de pé e a abraçar o Jay, sentindo-o tremer pela dor do passado. —E de repente aparece —murmurou de repente, com voz tênue, — caminha para mim como em um sonho... via-te tão linda —um suspiro lhe estremeceu o peito. —E ali estava Olivia nessa mesma noite, em minha mesa, me recordando com suas mentiras os rumores a respeito de você e do Joe. Como a odeio! —cuspiu—Ela provocou as brigas que tive com o Joe. —Golpeou-o? —indagou, surpreendida. —Várias vezes —uma expressão travessa lhe tocou a boca. —E recebi uns bons golpes em troca —admitiu. —Quando nós dois caímos ao chão, acalmei-me o suficiente para escutá-lo e Joe estava muito esgotado para mentir. Às vezes se sabe quando alguém diz a verdade —adicionou, reflexivo. —É... Como um sexto sentido que ilumina as palavras. —Sim —Rebecca o entendia porque quando Jay lhe repetiu que não tinha recebido a carta, em lugar de confiar nele se forçou a não fazê-lo. Porque teria sido arriscar muito. —Joe me explicou suas suspeitas. Acreditava que Olivia murmurava que tinha te incomodado e te amaldiçoou por desaparecer sem limpar seu nome dessa infâmia... amaldiçoou-me por te embaraçar e ameaçou enforcar a Olivia porque lhe destroçava a vida e Lyndsey se negava ao lhe dirigir a palavra. —Muito interessante —brincou Becky, apoiando sua bochecha sobre o peito de Jay, — mas nenhum detalhe indicava que Olivia tivesse roubado minha carta. —Não, não é verdade? —Aceitou, sorrindo um pouco. —Olivia propagou rumores entre meus amigos para envenenar nossa relação. Sugeriu que Kit era o resultado da aventura de uma noite, —fechou os olhos, furioso. —Joe me chamou para me advertir do que 132


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

acontecia e decidi chegar ao fundo deste assunto, de uma vez por todas. Visitei sua mãe e, ao me repetir a história, adicionou que Olivia tinha ido ao Hall, pedindo para ver meu pai, um dia antes que ele chamasse você. Isso semeou a suspeita em minha mente —fez um gesto. —Depois recordei que Olivia foi a única pessoa que teve essa carta nas mãos, assim deve tê-la dado ao meu pai. O resto o deduzi durante as longas horas que passei me torturando no escritório. —E um dia decidiu organizar esta festa. —adicionou Rebecca. —O dia em que me dava conta de que te amava, sem remédio —retificou, apaixonado. —Merecia ouvir essas palavras, meu amor, devia-lhe isso depois de dez anos, como a chave do perdão para meus pecados, não os teus. —OH, Jay! —suspirou, odiando os detalhes sórdidos de seu passado e escondeu a cara em seu peito, de novo, necessitando de consolo de sua sólida presença. —Mas não organizei esta reunião para te abrir os olhos, Becky —prosseguiu, sério. —O fiz para me assegurar de que Olivia e todos meus amigos soubessem em quem deposito minha confiança. Consegui insinuando algo aqui e lá para que Olivia se precavesse de que sabia o que fez e também sugeri que já não a considerava amiga de minha família, para que cada um decidisse a quem preferiam seguir freqüentando. Escolheram-nos — anunciou com um toque de arrogância. —E, em conseqüência, Olivia foi rejeitada por meus convidados, não por mim. Supunha-se que então se retiraria derrotada —apertou a boca ao recordar a desagradável cena da biblioteca. —Mas preferiu ficar para me confrontar, esperando que suas mentiras voltassem a ter êxito. Rebecca se estremeceu e Jay a abraçou com mais força. —Assusta-me pensar que outras pessoas influam em nossos atos ou em nossas crenças com uma premeditação malvada —murmurou ela. —Entretanto, deve te amar muito para chegar a esses extremos com o fim de nos separar. —Isso não é amor —negou Jay. —A Olivia a obcecava me possuir e essa idéia a respirou meu pai, reforçando a inveja que sentia pelo que você e eu compartilhávamos.

133


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

Não sinta pena dela, Rebecca, não a merece. Nem tampouco meu pai —adicionou, deprimido. —Pelo menos devia me confessar seus erros antes de morrer... —Ou possivelmente, como explicou a Olivia, realmente acreditou as mentiras que ela inventou —sugeriu, preferindo desculpar o pai de Jay, em lugar de odiá-lo, como fez durante tantos anos. —É muito mais generosa que eu ao tratar de te enganar com essa teoria —a admirou. —Se posso perdoar a minha mãe e sua parte de culpa, Jay —replicou Rebecca em voz baixa, —então também devo perdoar o seu pai. Depois de tudo —levantou a cara e um brilho travesso lhe iluminou os olhos, —deu-me cinco mil libras esterlinas para que me fosse. Quase valeu a pena esta confusão com tal de conseguir essa quantidade de dinheiro. —Diabinha mercenária —Jay arreganhou, começando a sorrir também e lhe levantando o queixo com a mão. —É uma bela pessoa, Rebecca Lorence. Linda, por dentro e por fora, e te seguirei amando pelo resto de meus dias... e depois. Então a beijou, pela primeira vez em dez largos anos, suas bocas se uniam com sinceridade, e Rebecca sentiu que o coração lhe inchava com a certeza do amor que suprimiu com rudeza e que agora liberava. —Sabe o que mais? —disse Jay de repente, lhe roçando com seus lábios quentes a bochecha, para logo lhe beijar o lóbulo da orelha. —Tenho esta... esta urgência incontrolável de passear pelo rio. —Agora? —Rebecca elevou a cabeça para contemplá-lo e imediatamente leu a intenção que estava escrita na chama ardente de seus olhos. —Deve estar brincando! — Protestou, embora já sentia o comichão de seu próprio desejo despertando para responder ao desse homem. —Nós congelaremos lá fora. —Põe em dúvida minha habilidade para te fazer entrar em calor? —brincou. O comichão se converteu em fogo quando ele lhe acariciou com sensualidade as costas, baixando as mãos até seu traseiro. —Acaso deixou de existir a Rebecca que desprezava o convencional e amava o diferente? —desafiou-a. 134


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

—Ainda segue aqui —sussurrou. Então, todas as lágrimas de dor e sofrimento pelo que viveram no passado encheram seus olhos e lhe rodeou o pescoço com seus braços. — OH, Jay! —afogou-se, comovida. —Sim, eu... —Não —a atalhou, cobrindo sua boca com um dedo. —Não o diga. Não agora. Lá, ao lado do rio. Onde me disse isso pela primeira vez. Diga-me isso lá, Becky —a urgiu, com paixão. —Quero ouvir dizer isso lá.

135


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

Capítulo 14 A lua deixou um rastro preguiçoso sobre o céu infestado de estrelas. O rio se voltou prata sob essa luz sem cor. Rebecca sentiu o chão duro e gelado, ao esticar, com um movimento sensual, seus braços por cima da cabeça e tratar de alcançar a lua. Jay estava parado, tão nu como ela, a uns passos de distância; o frio lhe mordia a pele sem que se desse conta disso. Observava-a, imóvel, e Rebecca voltou a consciência sob a luz de seus olhos famintos. A suas costas havia uma pilha de roupa que Jay amontoou depressa, a dele e a dela, antes que Rebecca escapasse de seus braços para parar-se no centro do claro, brindando esse espetáculo fascinante a ele. Seu cabelo flutuava, escuro e brilhante, escorregando por suas costas, seus seios, de mamilos morenos, que cintilavam como pérolas redondas à luz da lua, seu corpo magro se arqueava, e seu lindo rosto se adoçou com a expressão de luxúria. —E então? —murmurou, relaxando-se em uma pose de provocadora tentação, lhe lançando uma provocação com seus olhos cinzas, lhe exigindo que a satisfizesse com a sedução de suas pestanas negras. —O que está esperando? O peito de seu marido se elevou e baixou com um suspiro estremecido e apertou a mandíbula para controlar a tensão de seu corpo. 136


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

—Já sabe —respondeu, sem tentar diminuir a distância que os separava. —Já sabe o que espero, sua bruxa. Rebecca sorriu, provocando-o com a doce curva de seus lábios, de seu corpo sob de luz de prata. —Não! —negou-se e se voltou, balançando-se sobre os pés como se se preparasse para fugir. Jay a apanhou pelo cabelo, obrigando-a a lhe ver o rosto, rindo. A ira o aguilhoou e seu corpo se estrelou contra o dela, já endurecido pela paixão, já ansioso de enterrar-se no luxo morno da carne de sua mulher. Ela soltou uma gargalhada, recrudescendo a ira de seu companheiro e sua risada reverberou na escura abóbada da noite. E ali, à luz chapeada do claro que lhes pertencia, conduziu-a por uma viagem através dos anos, quando ir a esse lugar significava tudo para suas almas, loucas de amor. Uniu-se a ela, apertando-a contra si com as mãos, que apertavam suas coxas, enquanto Rebecca se pendurava no seu pescoço, jogando a cabeça para trás, com os lábios entreabertos e os olhos perdidos no delicioso delírio que era Jay. —Eu te amo —entoou uma e outra vez. — Te amo, te amo, te amo... —Eu sei —lhe lançou, rude, —sempre soube. Jamais duvidei, sua tola adorável... linda bruxa. —Sempre? —murmurou mais tarde, quando se apoiaram na casca do árvore, beijandose apenas, acariciando-se, tocando-se com suavidade, com a ternura que sempre devia seguir à fúria do amor. —Sempre —assentiu Jay com confiança. —Até enquanto me odiava, eu interpretava esse sentimento como uma espécie de amor, porque experimentava o mesmo. Feria-me, machucava-me muito, porque tinha medo de deixar que minhas verdadeiras emoções saíssem a flutuação de novo. Mas era amor, Rebecca —afirmou, sem titubear. —Amor eterno... como podia ser de outra maneira se sempre o sentimos?

137


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

—Me perdoe por não ter acreditado sobre a carta —suspirou ela, estirando-se para lhe morder o lóbulo da orelha. —Não esperava que o fizesse —se estremeceu com sua carícia e depois de um instante, absolveu-a de toda culpa. —Estava segura dos fatos e compreendi, desde que me explicou a parte que teve meu pai nesta tragédia, que eu devia merecer seu amor e não você o meu. —Mas, tantos anos perdidos, Jay... —ficou frente a ele, melancólica. —Esqueça. —Desapareceram e chorar pelo que perdemos pode estragar o que virá; assim esquece, Rebecca, tira-os de sua mente. Ao final triunfamos e isso é o único que importa. —Sim —exalou e depois franziu o cenho. —Você está congelando —lhe disse, preocupada, lhe esfregando a pele que tremia de frio, para lhe sorrir e olhá-lo com seus olhos cinzas, transbordando de amor. —Vamos para casa, Jay. Quero que Kit compartilhe este amor maravilhoso que recuperamos. Jay assentiu com sua cabeça morena e a contemplou, com intensidade. —Não imagina o bem que soa isso, querida, porque até que enfim considera minha casa seu lar. Ao entrar na mansão, pouco tempo depois, com os braços entrelaçados em um gesto possessivo, encontraram-se com o Kit que descia pela escada, para dirigir-se à cozinha. Deteve-se quando os viu e franziu o cenho. —O que aconteceu com vocês dois? —perguntou, Curioso. —Parecem... diferentes. —Estamos apaixonados —respondeu Jay, com simplicidade. —OH, isso é tudo? —Inquiriu Kit depreciativo e continuou seu caminho para a cozinha, lhes dizendo por cima do ombro. —Acreditei, por suas expressões de bobos, que tinham ganho na loteria. —Esse é o prêmio que ganhamos por compartilhar tudo com ele —se resignou Rebecca, desinflada.

138


O Lado Escuro do Desejo

Michelle Reid

—Não importa, querida —a tranqüilizou Jay. —Compartilha-o comigo... Eu sempre fui seu mais fiel admirador, não se lembra? Ela riu, ficou nas pontas dos pés e o beijou. —Mmm —se saboreou, tocando seus lábios mornos, —acho que terei que me conformar com você... Sim... Acredito que não tenho outro remédio...

FIM

139


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.