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A DESTERRITORIALIZAÇÃO NA OBRA DE GILLES DELEUZE E FELIX
Deste modo, o debate que realizamos com o conceito de desterritorialização está
GUATTARI
balizado
por
problemas
e
questões
concretas,
pois
que
a
invenção
de
questionalidades sobre o problema que queremos resolver é o primeiro passo “[...] construímos um conceito de que gosto muito, o de desterritorialização. [...] precisamos às vezes inventar uma palavra bárbara para dar conta de uma noção com pretensão nova. A noção com pretensão nova é que não há território sem um vetor de saída do território, e não há saída do território, ou seja, desterritorialização, sem, ao mesmo tempo, um forte empenho para se
para a construção de conceitos e do pensamento. A montante da discussão teórica, aqui privilegiada, está a progressiva difusão das questões ligadas ao que vulgarmente se denomina, em sentido estrito, “o fim dos territórios” (BADIE, 1995) ou, de maneira mais ampla, a extenuação da dimensão espacial na vida social.
reterritorializar em outra parte” (Gilles Deleuze, em entrevista em vídeo). Em concreto, o que nos propomos questionar é a unilateralidade que usualmente INTRODUÇÃO
envolve os discursos sobre a desterritorialização, como se o mundo estivesse,
No marco da nossa Tese reconhecemos ser de intensa relevância a Filosofia de Gilles Deleuze e Félix Guattari, muito especialmente no que se refere ao caráter vibrátil da sua criação conceitual, a construção de conceitos para pensar e experimentar
problemas.
Neste
escrito,
mostramos
como
o
conceito
de
desterritorialização é crucial para pensarmos a criação de “territórios culturais” no contexto das sociedades de controlo. Sendo
a
desterritorialização
um
humanas com base na “teoria das multiplicidades” de Gilles Deleuze e Felix Guattari, a territorialização, a desterritorialização e a reterritorialização são pensadas como processos coexistentes. O problema concreto que se coloca é o seguinte: como se dá a criação e a destruição ou abandono dos territórios humanos, quais os seus componentes, os
conceito
iminentemente
polissémico,
são
frequentes os mal-entendidos na tradução dos sentidos em que a expressão é aplicada. Assim, o nosso primeiro objetivo consiste em esclarecer a conceção de des-reterritorialização nos modos como se apresenta na obra desses autores, cientes do elevado potencial que ela nos reserva para a nossa investigação. A emergência do tema da desterritorialização como plano de desassossegos teóricos nos últimos anos (HAESBAERT, 1994, 1997 e 2001) implica um novo olhar sobre o pensamento criativo de Gilles Deleuze e Felix Guattari, um sobrevoo que realizamos de modo particular em torno de O Anti-Édipo, Mil Platôs e O que é a filosofia?
irreversivelmente, a desterritorializar-se. Para compreender as experiências
seus agenciamentos e as suas intensidades. Mais especificamente: qual a plausibilidade de pensarmos, através dos conceitos e dos pressupostos de Gilles Deleuze e Felix Guattari, a criação de “territórios culturais” como sendo eles mesmos processos de desterritorialização? A MIGRAÇÃO DE CONCEITOS Um dos capitais obstáculos em operar com os conceitos criados por Gilles Deleuze e Felix Guattari, consiste em que, para estes autores, o conceito (produção filosófica)
é
literalmente
“rizomático”
e
múltiplo
(“articulação,
corte
e
superposição”), e, neste sentido, faz sempre referência a outros conceitos (tanto
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no passado quanto no seu presente e no seu devir). Nas palavras de Gilles
guattariano, incluindo aí a possibilidade de, no contexto da “geograficidade” dos
Deleuze e Felix Guattari:
eventos (MACHADO, 1990), reconstruí-lo, recriá-lo, reconduzi-lo por outros caminhos.
“O conceito é o contorno, a configuração, a constelação de um acontecimento por vir. Os conceitos, neste sentido, pertencem de pleno direito à filosofia,
Reconstruir, recriar e reconduzir, pois que em Gilles Deleuze e Felix Guattari os
porque é ela que os cria, e não cessa de criá-los. O conceito é conhecimento,
pressupostos de território, desterritorialização e reterritorialização constituem
mas conhecimento de si, e o que ele conhece é o puro acontecimento, que
uma “caixa de ferramentas” crucial para enriquecer o nosso entendimento sobre
não se confunde com o estado de coisas no qual se encarna. Destacar sempre
as questões filosóficas, as práticas sociais e a construção de um efetiva
um acontecimento das coisas e dos seres é a tarefa da filosofia quando cria
micropolítica dos desejos, dos corpos-sem-órgãos, da Arte, da criação de
conceitos, entidades. Erigir o novo evento das coisas e dos seres, dar-lhes
subjetividades.
sempre
um
novo
acontecimento:
o
espaço,
o
tempo,
a
matéria,
o
pensamento, o possível como acontecimento […]” (DELEUZE e GUATTARI, 1992:46). Poderá alegar-se a existência de um “potencial idealista” nesta formulação do conceito como conhecimento do conhecimento? Gilles Deleuze e Felix Guattari assinalam que não se trata de separar o conteúdo da expressão, a natureza da história, o material do imaterial. Para estes autores, a Filosofia oscilaria entre um “ignorar tudo a respeito do conceito” (a remeter para o âmbito da Ciência) e um “conhecimento de pleno direito”. O conceito filosófico, do qual a Ciência “não tem nenhuma necessidade”, pois que se ocupa do “estado das coisas e das suas condições”, seria uma espécie de “conceito primeiro”. Assim, a grandeza da Filosofia “avalia-se pela natureza dos acontecimentos aos quais os seus conceitos nos convocam, ou que ela nos toma capazes de depurar em conceitos” (DELEUZE e GUATTARI, 1992:47). [Para um maior aprofundamento desta temática, analisar a distinção entre conceitos filosóficos e conceitos científicos na obra O que é a filosofia? (1992)] Como se constata, é intensa a plausibilidade de construir múltiplas pontes entre a finalidade da nossa pesquisa e o conceito de “desterritorialização” deleuzeano-
AS MULTIPLICIDADES E O RIZOMA A Filosofia de Gilles Deleuze e Felix Guattari é denominada pelos próprios autores como uma “teoria das multiplicidades”. Pensadas como sendo a própria realidade, estas multiplicidades comportam um intenso contributo para a superação de distintas
dicotomias,
como
as
que
se
estabelecem
entre
consciente
e
inconsciente, natureza e história, corpo e alma. Embora reconhecendo que as subjetivações, as totalizações e as unificações são “processos que se produzem e aparecem nas multiplicidades”, Gilles Deleuze e Felix Guattari insistem em assinalar que estas “não supõem nenhuma unidade, não entram em nenhuma totalidade e tampouco remetem a um sujeito” (DELEUZE e GUATTARI, 1995a:8). Assim, o seu modelo de realização não é a hierarquia da árvore-raiz, mas a pluralidade do rizoma-canal. Gilles Deleuze e Felix Guattari constroem o seu pensamento através do modelo do rizoma. Pensamento rizomático no qual os conceitos não estão hierarquizados e não partem de um ponto central, de um centro de poder ou de referência, aos quais os outros conceitos devem remeter-se. O rizoma opera através de
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encontros e agenciamentos, de uma cartografia das multiplicidades. O rizoma é a
e procede por dicotomia. Num rizoma, ao contrário, cada traço não remete
cartografia, o mapa das multiplicidades.
necessariamente a um traço linguístico: cadeias semióticas de toda natureza são aí conectadas a modos de codificação diversos, cadeias biológicas,
Enquanto o modelo da árvore-raiz é decalque (aquilo que “retorna sempre ao mesmo”), reprodução ao infinito, o modelo rizoma-canal é mapa “voltado para uma experimentação ancorada no real”, aberto (sempre com múltiplas entradas),
políticas, económicas, etc., colocando em jogo não somente regimes de signos diferentes, mas também estatutos de estados de coisas” (DELEUZE e GUATTARI, 1995a:15).
clástico, reversível, sujeito a modificações permanentes (DELEUZE e GUATTARI, 1995a:22)
O modelo de pensamento árvore-raiz, que organiza instituições e aparelhos de poder como o Estado, a escola, a fábrica e a prisão, remete a centros de poder, a
Esta proposta rizomática do pensamento contrapõe-se, mas não nega, ao pensamento
arborescente.
Justamente
por
isso,
não
entendemos
essa
contraposição como uma oposição onde um termo tenta eliminar o outro, mas
hierarquias, a estruturas e a relações binárias e biunívocas: “a lógica binária e as relações biunívocas dominam ainda a psicanálise [...], o estruturalismo e até mesmo a informática” (DELEUZE e GUATTARI, 1995a:13).
percebemos aí uma relação de tensão e de complementaridade. Mister assinalar ainda que não estamos diante de um novo dualismo ou conjunto de modelos
Apesar de criticarem a árvore-raiz, Gilles Deleuze e Felix Guattari afirmam que
(árvore-raiz x rizoma-canal). Nas palavras de Gilles Deleuze e Felix Guattari:
existe uma relação entre este modelo de pensamento e o modelo do rizomacanal. Dada a interceção de um pelo outro, a natureza de ambos é mutuamente
“Nem outro nem novo dualismo. Problema de escrita: são absolutamente necessárias expressões anexatas para designar algo exatamente. (...) a anexatidão não é de forma alguma uma aproximação; ela é, ao contrário, a passagem exata daquilo que se faz. Invocamos um dualismo para recusar um outro. Servimo-nos de um dualismo de modelos para atingir um processo que se recusa a todo o modelo” (DELEUZE e GUATTARI, 1995a:32).
rizomático,
funciona
por
hierarquização
e
endurecem e se tornam árvore, e que na árvore pode dar-se a constituição de um rizoma. Vejamos um exemplo retirado do pensamento de Gilles Deleuze e Felix Guattari: As sociedades primitivas, aquelas que têm “núcleos de dureza, de arborificação, que tanto antecipam o Estado quanto o conjuram” identificam-se mais com o rizoma, mas comportam arborescências dentro de si. As sociedades
Mas o que é o pensamento arborescente? É aquele que, contrariamente ao pensamento
modificada. Isso significa dizer que no rizoma podem existir segmentos que
centralidade,
estabelecendo um centro de origem (uma genealogia), como nos exemplificam Gilles Deleuze e Felix Guattari: “[…] qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a qualquer outro e deve sê-lo. É muito diferente da árvore ou da raiz que fixam um ponto, uma ordem. A árvore linguística à maneira de Chomsky começa ainda num ponto S
capitalistas, “banhadas num tecido flexível sem o qual os segmentos duros não vingariam”, são mais identificadas com a árvore, mas não prescindem do rizoma (o tecido flexível) para existirem (DELEUZE e GUATTARI, 1996:90). Noutros termos, é aquilo que Gilles Deleuze e Felix Guattari denominam segmentaridade molar e segmentaridade molecular:
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“Toda a sociedade, mas também todo o indivíduo, são pois atravessados pelas
Qual o conceito de território no pensamento de Gilles Deleuze e Felix Guattari?
duas segmentaridades ao mesmo tempo: uma molar e outra molecular. […] Sempre uma pressupõe a outra. Em suma, tudo é político, mas toda política é, ao mesmo tempo, macropolítica e micropolítica” (DELEUZE e GUATTARI, 1996:90, grifos dos autores).
O CONCEITO DE TERRITÓRIO E OS SEUS COMPONENTES Através de Gilles Deleuze e Felix Guattari é possível “fazer a leitura do social desde o desejo, fazer a passagem do desejo ao político, nos quadros dos modos
Sendo que a obra de Gilles Deleuze e Felix Guattari é fortemente marcada por esse jogo de relações múltiplas, coexistentes e, de certa forma, complementares, pode dizer-se, então, que sendo inexistente qualquer estilo de pensamento binário, de simples oposição entre os termos, não existe oposição entre rizoma e
de subjetivação” (GUATTARI e ROLNIK, 1986:316). Ambos os filósofos franceses se alvitram pensar o desejo como um construtivismo, abjurando o par sujeitoobjeto (aquele que deseja-aquilo que é desejado). O desejo seria maquínico, produtivo, construtivo. Nunca desejamos só uma coisa, desejamos sempre um conjunto de coisas. Por exemplo, uma mulher não deseja apenas um vestido;
árvore. Nas palavras de Gilles Deleuze e Felix Guattari:
deseja uma cor, uma textura, uma festa onde possa usar o vestido, mas deseja “O que conta é que a árvore-raiz e o rizoma-canal não se opõem como dois
também pessoas que olhem para ela. Dessa forma, o desejo vem sempre
modelos: um [a árvore] age como modelo e como decalque transcendente,
agenciado. Nessa conceção, o desejo cria territórios, pois ele produz uma série de
mesmo que engendre as suas próprias fugas; o outro [o rizoma] age como
agenciamentos.
processo imanente que reverte o modelo e esboça um mapa, mesmo que constitua as suas próprias hierarquias, e inclusive ele suscite um canal despótico” (DELEUZE e GUATTARI, 1995a:31).
Como assinalam Felix Guattari e Suely Rolnik: “As máquinas, consideradas em suas evoluções históricas, constituem [...] um
Os autores procuram pensar e criar por rizoma, procurando os encontros, os
phylum comparável ao das espécies vivas. Elas engendram-se umas às outras, selecionam-se, eliminam-se, fazendo aparecer novas linhas de
agenciamentos (maquínicos e de enunciação) e os acontecimentos.
potencialidades. [...] no sentido lato (isto é, não só as máquinas teóricas, Pensar esses agenciamentos, que “comportam componentes heterogéneos”
sociais, estéticas etc.), nunca funcionam isoladamente, mas por agregação ou
(GUATTARI E ROLNIK, 1986:317) é criar um pensamento das multiplicidades e
por agenciamento. O desejo é maquínico porque ele produz, é criativo,
das simultaneidades como condição para a própria História, pois não há História
agencia elementos. Não podemos reduzir essa conceção de desejo ao simples
possível sem esses encontros, sem esses agenciamentos.
maquinismo, como uma herança de algum tipo de racionalismo ou como uma metáfora
Para
reconstruir,
desterritorialização
recriar
e
reconduzir
o
território
e
os
processos
de
de
apologia
ao
mecânico
como
algo
superior
ao
humano”
(GUATTARI e ROLNIK, 1986:320).
e reterritorialização, articulamos os conceitos que nos
permitem pensar estas e outras questões.
Em termos deleuzeanos-guattarianos, podemos considerar como uma primeira abordagem de território aquela comumente denominada de naturalista ou
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biologicista, discutida a partir da territorialidade dos animais. Nas palavras de
Apesar de alguns autores restringirem a perspetiva deleuzeana-guattariana de
Gilles Deleuze e Felix Guattari:
território a um nível simplesmente psicológico (como TOMLINSON, 1998:10), consideramos aqui que a amplitude da perspetiva dos filósofos franceses é ampla
“Já nos animais sabemos da importância [das] atividades que consistem em formar territórios, em abandoná-los ou em sair deles, e mesmo em refazer território sobre algo de uma outra natureza (o etólogo diz que o parceiro ou o amigo de um animal ‘equivale a um lar’, ou que a família é um ‘território móvel’)”. (DELEUZE e GUATTARI,1992:90). Gilles Deleuze, numa entrevista, comentou a importância do território para os animais, afirmando que todo o animal tem “um mundo específico”, desde ambientes muito reduzidos, indispensáveis a sua reprodução, como o “território” dos carrapatos. Este “mundo específico” dos animais não seria extensível ao homem, que “não tem um mundo”, mas “vive a vida de todo o mundo”. Trata-se, portanto, de uma primeira distinção entre as duas territorialidades. Este espaço, que constitui um “pequeno mundo”, exige a definição de um contexto próprio, delimitado, por exemplo, por odores que os animais carregam e difundem, marcando o seu território. Reconhecendo que as diferentes espécies animais mantêm distintas relações como território e fazendo uma distinção relativa entre “animais de território” e “animais de meio”, Gilles Deleuze afirma que “os animais com território são prodigiosos”. Günzel (s/d), desde a perspetiva deleuzeana-guattariana, considera o território em sentido etológico como “o ambiente de um grupo […] que não pode por si mesmo ser objetivamente localizado, mas que é constituído por padrões de interação por meio dos quais o grupo ou o coletivo assegura uma certa estabilidade e localização”. E acrescenta: “exatamente no mesmo sentido, o ambiente de uma única pessoa […] pode ser visto como um ‘território’, no sentido psicológico, a partir do qual a pessoa age ou para o qual se volta” (GÜNZEL, s/d).
e, nesse sentido, engloba todas estas versões de território. O que acontece é uma ampla mudança de escala: iniciando como território etológico (ou animal) passamos ao território psicológico (ou subjetivo) e daí ao território sociológico e ao território geográfico (que inclui a relação sociedade-natureza). Gilles Deleuze e Felix Guattari vão ainda mais longe: para ambos, o território é um conceito fundamental da Filosofia. Como afirma Felix Guattari no livro “Micropolítica: Cartografias do Desejo”: “A noção de território é aqui entendida num sentido muito amplo, que ultrapassa o uso que fazem dele a etologia e a etnologia. Os seres existentes organizam-se segundo territórios que os delimitam e os articulam aos outros existentes e aos fluxos cósmicos. O território pode ser relativo tanto a um espaço vivido, quanto a um sistema percebido no seio da qual um sujeito se sente “em casa”. O território é sinónimo de apropriação, de subjetivação fechada sobre si mesma. Ele é o conjunto de projetos e representações nos quais vai desembocar, pragmaticamente, toda uma série de comportamentos, de investimentos, nos tempos e nos espaços sociais, culturais, estéticos, cognitivos” (GUATTARI e ROLNIK, 1986:323, grifos meus). Analisemos mais densamente esse conceito. O território é um agenciamento. “Todo o agenciamento é, em primeiro lugar, territorial. A primeira regra concreta dos agenciamentos é descobrir a territorialidade que eles envolvem, pois sempre há alguma […] Descobrir os agenciamentos territoriais de alguém,
homem
ou
animal:
‘minha
casa’.
[...]
O
território
cria
o
agenciamento. O território excede ao mesmo tempo o organismo e o meio, e
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a relação entre ambos; por isso, o agenciamento ultrapassa também o
“Considerar-se-ão as misturas de corpos que definem a feudalidade: o corpo
simples ‘comportamento’ [...]” (DELEUZE e GUATTARI, 1997:218).
da terra e o corpo social, os corpos do suserano (sic), do vassalo e do servo, o corpo do cavaleiro e do cavalo [...] – é tudo um agenciamento maquínico”
Os agenciamentos extrapolam o espaço geográfico, pois, como tudo pode ser
(DELEUZE e GUATTARI, 1995b:30).
agenciado, tudo pode ser desterritorializado e reterritorializado. Como se dá, então, a construção do território?
No que concerne aos agenciamentos coletivos de enunciação, eles remetem aos enunciados, a um “regime de signos, a uma máquina de expressão cujas
Se a criação do território se dá através de agenciamentos, mister reconhecer primeiramente a existência de dois tipos de agenciamento: agenciamentos maquínicos de corpos (ou de desejo) e agenciamentos coletivos de enunciação. Os agenciamentos maquínicos de corpos são as máquinas sociais, as relações entre os corpos humanos, corpos animais, corpos cósmicos. Os agenciamentos maquínicos de corpos dizem respeito a um estado de mistura e a relações entre os corpos numa sociedade. Aqui é importante evocar que, como na não dicotomização geográfica entre Natureza e sociedade, também não é possível ver o corpo social fora do corpo da Natureza, pois que se trata de um só corpo de multiplicidades. O agenciamento maquínico de corpos é essa relação que se constrói entre os corpos: “Um regime alimentar, um regime sexual, regulam, antes de tudo, misturas de corpos obrigatórias, necessárias ou permitidas. Até mesmo a tecnologia erra ao considerar as ferramentas em si mesmas: estas só existem em relação às misturas que tornam possíveis ou que as tornam possíveis” (DELEUZE e GUATTARI, 1995b:31). Um outro exemplo citado pelos filósofos franceses e que nos ajuda a pensar este tipo de agenciamento, é o agenciamento feudal:
variáveis determinam o uso dos elementos da língua” (DELEUZE e GUATTARI, 1995b:32). Não dizem respeito a um sujeito, mas a um regime de signos compartilhados, à linguagem, a um estado de palavras e símbolos, pois a sua produção só pode efetivar-se no próprio socius. Mister reconhecer que não podemos reduzir o estado de corpos aos enunciados coletivos. Gilles Deleuze e Felix Guattari deixam muito claro que ambos os tipos de agenciamento têm uma forma distinta – os agenciamentos maquínicos de corpos (conteúdo), os agenciamentos coletivos de enunciação (expressão). Assim, não podemos afirmar que os agenciamentos coletivos são a expressão dos agenciamentos maquínicos de corpos. A relação de reduzir um ao outro, ou uma relação dicotómica entre “regimes de signos” e “estatuto de estados de coisas”, não existe. Usando o conceito de desterritorialização, Gilles Deleuze e Felix Guattari afirmam: “[...] as formas, tanto de conteúdo quanto de expressão, tanto de expressão quanto
de
conteúdo,
não
são
separáveis
de
um
movimento
de
desterritorialização que as arrebata. Expressão e conteúdo, cada um deles […] desterritorializados, relativamente desterritorializado segundo o estado da sua forma. A esse respeito, não se pode postular um primado da expressão sobre o
conteúdo,
ou
o
inverso.
Os
componentes
semióticos
são
mais
desterritorializados que os componentes materiais, mas o contrário também
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ocorre. Por exemplo, um complexo matemático de signos pode ser mais
cruzam; e do agenciamento coletivo de enunciação, neste caso um sistema
desterritorializado do que um conjunto de partículas; mas as partículas
sintático e semântico, por exemplo.
podem, inversamente, ter efeitos experimentais que desterritorializam o sistema semiótico” (DELEUZE e GUATTARI, 1995b:28).
Como se constata através deste simples exemplo, a obra de Gilles Deleuze e Felix Guattari permite-nos pensar de forma muito vasta, sem nunca perder a riqueza
Assim, o que se afirma é a existência de uma relação entre os dois tipos de
da sua proposta filosófica.
agenciamentos: ambos se percorrem, ambos se intervêm, num movimento recíproco e não hierárquico. Como isso se dá?
Os agenciamentos maquínicos de corpos e os agenciamentos coletivos de enunciação são apenas dois dos quatro componentes do território. Os outros dois
Os agenciamentos coletivos de enunciação fixam atributos aos corpos de forma a
são a desterritorialização e a reterritorialização. Esta quadratura do território é
recortá-los, ressaltá-los, precipitá-los, retardá-los, etc. Para Gilles Deleuze e Felix
capital na obra dos filósofos franceses: os territórios comportam no seu interior
Guattari, não existe a possibilidade de reduzir ou hierarquizar os agenciamentos,
vetores de desterritorialização e vetores de reterritorialização.
mas de procurar como eles se relacionam reciprocamente. [Desenvolver mais este aspeto a partir da obra Mil Platôs, vol. 2, cap. 4 (Postulados da Linguística)].
PROCESSOS DE DESTERRITORIALIZAÇÃO E RETERRITORIALIZAÇÃO: a criação e o abandono/afastamento de territórios
A criação de um território dá-se através do mútuo movimento dos tipos de agenciamentos. Uma aula é um território porque para a construir é inevitável um agenciamento coletivo de enunciação e agenciamento maquínico de corpos; a mão cria um território na ferramenta; a boca cria um território no seio. O conceito de território de Gilles Deleuze e Felix Guattari alcança essa amplitude porque ele diz respeito a uma articulação entre pensamento e desejo, desejo entendido aqui como uma força criadora, produtiva. Deleuze e Guattari vão, assim, articular desejo e pensamento. Articulando pensamento e desejo, podemos territorializar-nos em qualquer coisa, com a condição de sermos capazes de promover o mútuo movimento dos tipos de agenciamentos. Vejamos um exemplo de territorialização do pensamento: o território pode ser construído num livro, a partir do agenciamento maquínico das técnicas, dos corpos da natureza, do corpo do autor e das multiplicidades que o
No que reporta aos movimentos dinâmicos entre território e desterritorialização, Felix Guattari e Suely Rolnik afirmam: “O território pode se desterritorializar, isto é, abrir-se, engajar-se em linhas de fuga e até sair do seu curso e destruir-se. A espécie humana está mergulhada num imenso movimento de desterritorialização, no sentido de que os seus territórios “originais” se desfazem ininterruptamente com a divisão social do trabalho, com a ação dos deuses universais que ultrapassam os quadros da tribo e da etnia, com os sistemas maquínicos que a levam a atravessar cada vez mais rapidamente as estratificações materiais e mentais” (GUATTARI e ROLNIK, 1986:323). De modo simplificado, mas não redutor, podemos dizer em termos deleuzeanosguattarianos que a desterritorialização é o movimento pelo qual se abandona o território, “é a operação da linha de fuga” e que a reterritorialização é o
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movimento de construção do território. No primeiro movimento os agenciamentos
não o sucede, mas trabalha simultaneamente sobre um outro estrato ou sobre
desterritorializam-se e, no segundo, os agenciamentos reterritorializam-se como
um outro plano” (DELEUZE e GUATTARI, 1996:41).
novos agenciamentos maquínicos de corpos e novos agenciamentos coletivos de No terceiro teorema, Gilles Deleuze e Felix Guattari relacionam as intensidades
enunciação.
dentro do processo de des-reterritorialização e alvitram a distinção de dois tipos Gilles
Deleuze
e
reterritorialização
Felix são
Guattari
afirmam
processos
que
indissociáveis:
a
desterritorialização todo
o
movimento
e
a
de desterritorialização: a desterritorialização relativa e absoluta:
de
desterritorialização implica um movimento de reterritorialização. Movimento concomitante de desterritorialização e reterritorialização que está expressado no “primeiro teorema” da desterritorialização ou “proposição maquínica”:
“Pode-se
mesmo
concluir
[...]
que
o
menos
desterritorializado
se
reterritorializa sobre o mais desterritorializado. Surge aqui um segundo sistema de reterritorializações, vertical, de baixo para cima. [...] Regra geral, as desterritorializações relativas (transcodificação) se reterritorializam sobre
“Jamais nos desterritorializamos sozinhos, mas no mínimo com dois termos:
uma desterritorialização absoluta” (DELEUZE e GUATTARI, 1996:41, grifos dos
mão-objeto de uso, boca-seio, rosto-paisagem. E cada um dos dois termos se
autores).
reterritorializa sobre o outro. De forma que não se deve confundir a reterritorialização com o retorno a uma territorialidade primitiva ou mais antiga: ela implica necessariamente um conjunto de artifícios pelos quais um elemento, ele mesmo desterritorializado, serve de territorialidade nova ao outro que também perdeu a sua. Daí todo um sistema de reterritorializações horizontais e complementares, entre a mão e a ferramenta, a boca e o seio ” (DELEUZE e GUATTARI, 1996:41).
A desterritorialização relativa reporta ao socius. Esta desterritorialização assinala o abandono de territórios criados nas sociedades e a sua concomitante reterritorialização. Por seu lado, a desterritorialização absoluta remete ao pensamento. No entanto, como mostraremos mais adiante, os dois processos estão intimamente relacionados, sendo que um perpassa o outro. Além disso, devemos assinalar uma vez mais que, para os dois movimentos, existem ainda movimentos de reterritorialização relativa e movimentos de reterritorialização
Outra distintiva útil da desterritorialização aparece no segundo teorema, ao
absoluta.
questionar-se a relação estabelecida entre desterritorialização e velocidade: Sendo a desterritorialização relativa quem adquire maior vinculação com os “De dois elementos ou movimentos de desterritorialização, o mais rápido não
desassossegos da nossa pesquisa, a abordagem que se faz da desterritorialização
é forçosamente o mais intenso ou o mais desterritorializado. A intensidade da
absoluta é sucinta.
desterritorialização não deve ser confundida com a velocidade de movimento ou de desenvolvimento. De forma que o mais rápido conecta a sua intensidade com a intensidade do mais lento, a qual, enquanto intensidade,
Iniciemos por esclarecer o que Gilles Deleuze e Felix Guattari entendem por “absoluto”:
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“O absoluto nada exprime de transcendente ou indiferenciado, nem mesmo
1992:113). Ou seja: “para que o pensamento exista, é necessário um solo, um
exprime
meio.
(relativa).
uma
quantidade
Exprime
que
apenas
um
ultrapassaria tipo
de
qualquer
movimento
quantidade que
se
dada
distingue
qualitativamente do movimento relativo” (DELEUZE e GUATTARI, 1997:225-
Esse
solo,
esse
meio,
é
a
própria
terra.
A
terra
é
a
grande
desterritorializada, pois a terra “pertence ao Cosmo”” (DELEUZE e GUATTARI, 1997:225), por onde os fluxos e as intensidades vão transitar e fixar-se.
226). Evocando os pressupostos do primeiro teorema da desterritorialização, onde se Neste sentido, o termo absoluto é um atributo que vai diferenciar a natureza
dá a reterritorialização da terra? Dá-se de dois modos: na construção de
deste tipo de desterritorialização; não assinala um domínio ou uma subordinação
territórios sociais (referentes ao processo de desterritorialização relativa) e no
da desterritorialização relativa em relação à desterritorialização absoluta, ao
plano de imanência de um pensamento. Gilles Deleuze e Felix Guattari afirmam:
contrário, pois como já dissemos e retomaremos adiante, os dois movimentos se “a desterritorialização é absoluta quando a terra entra no puro plano de
perpassam.
imanência A desterritorialização absoluta refere-se ao pensamento, à criação. Para Gilles Deleuze
e
Felix
Guattari,
o
pensamento
faz-se
no
processo
pensamento só é possível na criação e que para se criar algo novo é necessário romper com o território existente, criando outro. Dessa forma, os agenciamentos maquínicos de corpos e os agenciamentos coletivos de enunciação não apenas agem como elementos constitutivos do território, como também vão operar uma desterritorialização. Novos agenciamentos, encontros funções e arranjos são Porém,
a
desterritorialização
em
reterritorialização:
“a
desterritorialização sentido
amplo,
é
desterritorialização
do
pensamento,
sempre
tal
acompanhada
absoluta
não
como por
existe
um
pensamento-Ser,
de
um
pensamento-Natureza com
de
desterritorialização; ou seja, pensar é desterritorializar. Significa isto que o
necessários.
de
movimentos diagramáticos infinitos” (DELEUZE E GUATTARI, 1992:117).
a
uma sem
reterritorialização” (DELEUZE e GUATTARI, 1992:131). Pretendendo pensar os encontros, os agenciamentos que se dão entre os fluxos e as intensidades de desejo do socius e como eles se inscrevem na própria terra, Gilles Deleuze e Felix Guattari afirmam: “pensar não é nem um fio estendido entre o sujeito e o objeto, nem uma revolução de um em torno do outro. Pensar faz-se antes na relação entre o território e a terra” (DELEUZE e GUATTARI,
A DESTERRITORIALIZAÇÃO RELATIVA OU DESTERRITORIALIZAÇÃO DO SOCIUS Como enunciámos acima, destacamos a desterritorialização relativa pela crucial importância dos vínculos que ela permite estabelecer com a nossa pesquisa. Para esclarecermos com maior amplitude o que se entende por desterritorialização relativa, assumimos como base para este debate O Anti-Édipo, obra na qual Gilles Deleuze e Felix Guattari desenvolvem uma geo-história da desterritorialização, das sociedades tradicionais à sociedade capitalista. Os filósofos franceses enfatizam esse processo de desterritorialização porque é assim que eles entendem a criação do Estado e as dinâmicas do capitalismo, os quais operam por desterritorialização e sobrecodificação. Mester assinalar que para ambos os filósofos, o que distingue as sociedades capitalistas (criadas pelos processos de desterritorialização) das sociedades pré-capitalistas (efetivamente territoriais) é que a sua relação com a terra é radicalmente distinta. Gilles Deleuze e Felix Guattari afirmam:
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“[...] a terra [...] é a superfície na qual todo o processo da produção se
contexto da globalização, Gilles Deleuze e Felix Guattari sustêm que as
inscreve, onde os objetos, os meios e as forças de trabalho se registam e os
sociedades capitalistas modernas possuem uma segmentaridade dura, sendo a
agentes e produtos se distribuem. Ela aparece aqui como quase-causa da
organização social sobrecodificada por um aparelho despótico e transcendente do
produção e objeto do desejo [...]” (DELEUZE e GUATTARI, s/d: 144).
poder, máquina despótica que desterritorializa e disciplinariza os corpos (como na “sociedade disciplinar” (FOUCAULT, 1984)).
Sobrevoando a elaboração do seu pensamento, podemos dizer que Gilles Deleuze e Felix Guattari começam por se reportar à “unidade primitiva, selvagem, do
As territorialidades pré-capitalistas criam outras relações com a terra. Os
desejo e da produção”, que é a Terra. Esta constitui-se não apenas no “objeto
agenciamentos maquínicos de corpos e os agenciamentos coletivos de enunciação
múltiplo e dividido do trabalho, mas também [n]a entidade única indivisível, o
estão fixados na terra. Não há exterioridade, dicotomia entre os corpos sociais,
corpo pleno que se rebate sobre as forças produtivas e se apropria delas como se
técnicos, políticos, artísticos e os corpos da natureza. O que ocorre? Gilles
fosse o seu pressuposto natural ou divino” (DELEUZE e GUATTARI, s/d:144). Esta
Deleuze e Felix Guattari afirmam:
“máquina territorial”, afirmam, é “a primeira forma de socius, a máquina de inscrição primitiva, ‘megamáquina’ que cobre um campo social” (DELEUZE e GUATTARI, s/d:144), sendo que o seu funcionamento “consiste em declinar a aliança e a filiação, declinar as linhagens sobre o corpo da terra, antes que aí apareça um Estado” (DELEUZE e GUATTARI, s/d:150).
“A máquina primitiva subdivide a população, mas fá-lo numa terra indivisível onde se inscrevem as relações conectivas, disjuntivas e conjuntivas de cada segmento
com
os
outros
(por
exemplo,
a
coexistência
ou
a
complementaridade do chefe do segmento com o protetor da terra)” (DELEUZE e GUATTARI, s/d:150).
Gilles Deleuze e Felix Guattari qualificam as territorialidades pré-capitalistas como dotadas de alguma flexibilidade, e isto porque não existe um aparelho de poder transcendente que delimita de forma rígida e despótica a organização social.
Como enunciámos acima, tratam-se, pois, de duas relações muito distintas com a terra: enquanto nas comunidades tradicionais a terra-divindade era quase um “início e um fim” em si mesma, formando um corpus com o Homem, nas
“Os segmentos sociais têm neste caso uma certa flexibilidade, de acordo com
sociedades estatais a terra transforma-se gradativamente num simples mediador
as tarefas e as situações, entre os dois polos extremos de fusão e cisão; uma
das relações sociais, onde muitas vezes o “fim” último caberá ao Estado.
comunicabilidade entre heterogéneos, de modo que o ajustamento de um segmento a outro se pode fazer de múltiplas maneiras; uma construção local que impede que se possa determinar de antemão um domínio de base (econômico, político, jurídico, artístico)” (DELEUZE e GUATTARI, 1996:84-85). Atribuindo uma certa flexibilidade às sociedades pré-capitalistas, flexibilidade que adquire um sentido totalmente novo e diferente daquele que comparece no
Significa isto que o Estado e o capital irão impor um intenso processo de desterritorialização
das
sociedades
pré-capitalistas.
No
que
reporta
aos
movimentos do capitalismo, Gilles Deleuze e Felix Guattari afirmam: “[...] no Capital, Marx mostra o encontro de dois elementos ‘principais’: de um lado, o trabalhador desterritorializado, transformado em trabalhador livre e nu, tendo para vender a sua força de trabalho; do outro, o dinheiro
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descodificado, transformado em capital e capaz de a comprar Estes dois
ao controlo político, jurídico, administrativo e militar, articulado através de um
fluxos,
de
território. Ainda que este entendimento possa causar ambiguidades na noção de
descodificação e de desterritorialização com origens muito diferentes. Para o
territorialidade, essa caráter ambíguo esfuma-se se entendemos que, para Gilles
trabalhador livre: desterritorialização do solo por privatização; descodificação
Deleuze e Felix Guattari:
de
produtores
e
de
dinheiro,
implicam
vários
processos
dos instrumentos de produção por apropriação; privação dos meios de consumo por dissolução da família e da corporação; por fim, descodificação do trabalhador em proveito do próprio trabalho ou da máquina. Para o capital: desterritorialização da riqueza por abstração monetária; descodificação dos fluxos de produção pelo capital mercantil; descodificação dos Estados pelo capital financeiro e pelas dívidas públicas; descodificação dos meios de produção pela formação do capital industrial […]” (DELEUZE e GUATTARI, s/d:233-234).
“Quando a divisão se refere à própria terra devida a uma organização administrativa, fundiária e residencial, não podemos ver nisso uma promoção da territorialidade mas, pelo contrário, o efeito do primeiro grande movimento de desterritorialização nas comunidades primitivas. A unidade imanente da terra como motor imóvel é substituída por uma unidade transcendente de natureza muito diferente que é a unidade do Estado: o corpo pleno já não é o da terra, mas o do Déspota […] que se ocupa tanto da fertilidade do solo como da chuva do céu e da apropriação geral das forças produtivas”
O surgimento do Estado, para os filósofos franceses, é responsável pelo primeiro
(DELEUZE e GUATTARI, s/d:150).
grande movimento de desterritorialização, na medida em que ele imprime a divisão da terra através da organização administrativa, fundiária e residencial. Desterritorializa os agenciamentos maquínicos de corpos e os agenciamentos coletivos de enunciação e procede a uma sobrecodificação. Ou seja: operando por novos agenciamentos, tanto maquínicos como de enunciação, o Estado fixa o Homem à terra, mas fá-lo de forma despótica, organizando os corpos e os enunciados de outras maneiras. Gilles Deleuze e Felix Guattari afirmam: “Longe de ver no Estado o princípio duma territorialização que inscreve as pessoas segundo a sua residência, devemos ver no princípio de residência o efeito dum movimento de desterritorialização que divide a terra como um objeto e submete os homens à nova inscrição imperial, ao novo corpo pleno, ao novo socius” (DELEUZE e GUATTARI, s/d:200).
Na perspetiva de ambos, o Estado constitui-se pela desterritorialização das comunidades pré-capitalistas, através de uma dupla intervenção: por um lado, aniquilando os seus agenciamentos, os seus territórios; por outro, comutando o princípio da imanência (a terra como corpo pleno onde as sociedades précapitalistas se vão territorializar) pelo princípio da transcendência, onde o Déspota Divino assume a totalidade dos princípios de organização do socius. A territorialidade do Estado faz-se neste processo de desterritorialização (no interior do primeiro teorema). O Estado reterritorializa-se no processo de sobrecodificação, entendendo-se aqui a noção de código em sentido amplo: “ela pode dizer respeito tanto aos sistemas semióticos quanto aos fluxos sociais e aos fluxos materiais. O termo ‘sobrecodificação’ corresponde a uma codificação de segundo grau” (GUATTARI e ROLNIK 1986:317-318).
Perspetiva assaz interessante, pois que algumas correntes teóricas sempre operaram com a ideia de Estado territorial, onde a génese do Estado está ligada
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Desse
modo,
o
os
periurbano, ele possui uma determinada dinâmica na sua territorialidade. Na
pré-capitalistas,
periferia ele pode construir uma série de territórios e passar por cada um deles
configurando novos agenciamentos maquínicos de corpos e novos agenciamentos
no decorrer do dia, como o operário da fábrica. É manifesto que os seus
coletivos de enunciação.
territórios serão outros, mas as dinâmicas de passagem por vários territórios é
agenciamentos
Estado
constrói
territoriais
novos
constitutivos
agenciamentos, das
sociedades
sobrecodifica
similar. Existe o seu território de morador, onde ele conhece os códigos Expostos e analisados dois modelos de organização social distintos, onde os processos de desterritorialização e reterritorialização encerram naturezas e agenciamentos diferentes, é agora o momento de nos determos em exemplos mais concretos da desterritorialização
e reterritorialização nas sociedades
capitalistas. Conforme
territoriais e as relações de poder da sua “comunidade”. Existe o território do trabalho, que é mais difícil de delimitar que o do operário fabril. Num dia ele é pedreiro, no outro porteiro, segurança, etc. Na época das colheitas ele desterritorializa-se, abre os agenciamentos e vai reterritorializar-se no trabalho do campo. Quando este termina, ele vivencia novamente os agenciamentos da
enunciámos
acima,
os
filósofos
franceses
afirmam
que
a
desterritorialização relativa diz respeito ao socius. Isto significa dizer que a vida é um constante movimento de desterritorialização e reterritorialização; ou seja, que estamos sempre em trânsito de um território para outro, abandonando uns, criando outros. A escala espacial e a temporalidade é que são diferentes. Na quotidianidade, a dinâmica mais comum é transitarmos entre territórios. Uma des-reterritorialização onde se abandona, mas não se destrói o território abandonado, e que pode ser exemplificada através de um operário de uma
vida urbana. Com
base
nestes
dois
exemplos,
mester
promover
o
encontro
entre
desterritorialização absoluta e desterritorialização relativa. Enunciámos acima que ambas se perpassam e que o pensamento necessita de um meio – a própria terra. Gilles Deleuze e Felix Guattari afirmam: “resta que a desterritorialização absoluta só pode ser pensada segundo certas relações, por determinar, com as desterritorializações relativas, não somente cósmicas, mas geográficas, históricas e psicossociais” (DELEUZE e GUATTARI, 1992:117).
fábrica, pois que no curso do dia ele atravessa basicamente dois territórios – o território familiar e o território do trabalho, sendo que em cada um destes
Para que o pensamento possa existir é necessário um encontro. O maior exemplo
territórios existem agenciamentos maquínicos de corpos e agenciamentos
citado pelos filósofos franceses é o da Filosofia:
coletivos de enunciação muito distintos. “Para que a filosofia nascesse, foi preciso um encontro entre o meio grego e o Outro exemplo é o dos “rogas” que habitam nas periferias urbanas: este
plano de imanência do pensamento. Foi preciso a conjunção de dois
trabalhador
e
movimentos de desterritorialização muito diferentes, o relativo e o absoluto, o
reterritorialização. Enquanto a época das colheitas não chega, ele habita a
está
em
constante
processo
de
desterritorialização
primeiro operando já na imanência. Foi preciso que a desterritorialização
periferia urbana e está imerso num imenso conjunto de agenciamentos
absoluta do plano de pensamento se ajustasse ou se conectasse diretamente
maquínicos de corpos e coletivos de enunciação, totalmente diferentes dos
com
agenciamentos que teria enquanto assalariado rural. Na qualidade de morador
GUATTARI, 1992:122).
a
desterritorialização
relativa
da
sociedade
grega”
(DELEUZE
e
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Este tipo de pensamento opera na procura de identificar os encontros.
dizia Nietzsche, não é uma origem, mas um meio, um ambiente, uma atmosfera ambiente: o filósofo deixa de ser cometa [...] Ela a arranca das
O que foi preciso encontrar-se, conectar-se, romper-se, para que o pensamento existisse, para que o socius se constituísse?
estruturas, para traçar as linhas de fuga que passam pelo mundo grego, através do Mediterrâneo. Enfim, ela arranca a história de si mesma para
Por onde alvoraram os fluxos de desejos, as intensidades criativas, as linhas de morte?
descobrir os devires, que não são a história mesmo quando nela recaem [...]” (DELEUZE e GUATTARI, 1992:125). Se a História foi predominantemente “escrita do ponto de vista dos sedentários, e
Onde se reterritorializaram esses elementos?
em nome de um aparelho unitário de Estado, [...] inclusive quando se falava sobre nómadas” (DELEUZE e GUATTARI, 1995a:35), nós não descuramos as
Quais são e onde estão os territórios criados e os territórios destruídos?
dinâmicas des-reterritorializadoras do mundo contemporâneo como temática SÍNTESE
capital da nossa pesquisa
Gilles Deleuze e Felix Guattari afirmam que a Filosofia “é uma geo-filosofia
Assim, paralelamente ao desassossego com as demarcações, os enraizamentos e
exatamente como a história é uma geo-história, do ponto de vista de Braudel”
hierarquias dos territórios, regiões e lugares, no marco da nossa pesquisa são
(DELEUZE e GUATTARI, 1992:125). Essas assertivas resultam de um pensamento
instituídos as forças do movimento: uma espécie de sobrevoo dos espaços
produzido a partir dos encontros, dos agenciamentos (maquínicos de corpos e
nómades, dos espaços da mobilidade, dos rizomas, mesclados por entidades
coletivos de enunciação), da criação do plano de imanência do pensamento, o
híbridas como os territórios-rede, as redes regionais, os lugares móveis de
qual também é povoado por conceitos.
conexão e/ou de passagem. Sem cair no extremo de um “fim dos territórios” ou
Desse modo, os filósofos franceses auxiliam-nos a construir tanto uma “Geografia do socius”, que nos interessa mais diretamente, quanto uma “Geografia do pensamento”,
sem
descuidar
que
ambas
se
perpassam,
como
nas
desterritorializações absoluta e relativa. Gilles Deleuze e Felix Guattari afirmam: “A geografia não se contenta em fornecer uma matéria e lugares variáveis
de um exagerado fascínio pela mobilidade, mas afirmando a multiplicidade das des-reterritorializações contemporâneas, chamando a nós uma parcela da “Nomadologia” que Gilles Deleuze e Felix Guattari, na riqueza das suas metáforas-conceitos, advogam para a História. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
para a forma histórica. Ela não é somente humana e física, mas mental, como
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a paisagem. Ela arranca a história do culto da necessidade, para fazer valer a
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