60 anos de "Quarto de Despejo" - Homenagem a Carolina Maria de Jesus (Mallarmargens, 2020)

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60 anos de “ Quarto de Despejo

Homenagem a Carolina Maria de Jesus Ademir Demarchi • Carolina Ferreira Marcelo Ariel • Nuno Rau


mallarmargens revista de poesia e arte contemporânea

ISSN: 2316-3887 www.mallarmargens.com revistamallarmargens@gmail.com textos: Ademir Demarchi, Carolina Ferreira, Marcelo Ariel e Nuno Rau curadoria: Marcelo Ariel edição: Amanda Vital revisão: Nuno Rau capa: Carolina Ferreira




O PREÇO OFUSCA TODAS AS BELEZAS Ademir Demarchi Carolina Maria de Jesus ocupa um lugar singularíssimo em meio às décadas de 1950 e 1960 do Brasil, justamente por representar e expor o extremo oposto da lógica econômica e ideológica que, hegemônica, ditou o desenvolvimentismo do país enlaçado como pacote de presente brilhante por lemas como “50 anos em 5” e pela construção utópica de uma capital como Brasília, por Juscelino Kubitschek, e que continuaria no período da ditadura rebatizado como ideologia do Brasil Grande, cuja maior definição está na ideia ilusionista e nunca cumprida de Delfim Netto de “fazer o bolo crescer para depois distribuí-lo”. A voz de Carolina Maria de Jesus é retumbante porque, ínfima partícula humana no centro do estômago do Leviatã, ela balbucia que passa fome, ela ressoa o ronco do seu estômago contando trocados e catando restos do lixo para alimentar a si e aos três filhos, enquanto o país fazia vultosos investimentos nas áreas de transporte, de produção


de energia e de desenvolvimento de indústrias de base, com o objetivo determinado de proporcionar crescimento e ganhos econômicos para o capitalismo. Se no governo JK a megalomania focou na construção de grandes obras como as usinas hidrelétricas de Três Marias e Furnas, necessárias para gerar energia e dar suporte ao crescimento econômico, principalmente nas indústrias de bens duráveis, como a indústria automobilística em São Paulo e a siderúrgica Usiminas em Minas Gerais, não se pode dizer que o ser humano tenha encontrado o mesmo investimento. Assim, o lugar imposto a Carolina Maria de Jesus e a todos os personagens lançados nas páginas dos cadernos do seu diário é o das bordas, muito bem definido por ela como “Quarto de Despejo”, representado pelas favelas que assimilavam os descartes sociais desse modelo econômico hegemônico. É notável, nesse sentido, no diário de Carolina, um personagem, “o senhor Manoel”, com o qual ela relata um relacionamento amoroso e que é descrito como “o homem mais bem remunerado da favela”, pois “trabalha para o Conde Franscisco Matarazzo”, um dos maiores industriais do país. A esse Manoel nada adiantou trabalhar para o Conde, pois nada de realeza ele


ganhou, passando sua vida na favela, caso típico do capitalismo espoliante brasileiro. Esse lugar do Quarto de Despejo, como muitos outros iguais, nasceu da forte industrialização concentrada no sudeste e também do desenvolvimentismo no centro, com Brasília, que gerou uma corrente migratória de pessoas vindas principalmente do semiárido nordestino, mas também do interior de Minas Gerais, como foi o caso da escritora, fugindo das miseráveis condições de vida nesses lugares. Via de regra, o novo lugar para viver que encontraram foi o dos “quartos de despejo”, descartados pela miséria de origem, incapacitação profissional, problemas de saúde, alcoolismo, criminalidade, subempregos e baixíssimos ganhos no sistema espoliativo, ao mesmo tempo em que o país não priorizava investimentos em habitação e tudo o mais condizentes ou equivalentes à ideologia desenvolvimentista que possibilitassem qualidade de vida. A noção de espacialidade e do lugar que ocupava está muito bem evidenciado no diário da escritora, de forma contundente: “...Eu classifico São Paulo assim: o Palácio é a sala de visita. A Prefeitura é a sala de jantar e a cidade é o jardim. E a favela é o quintal onde jogam os lixos”.


Ainda que os políticos e as eleições tivessem representação de importância para Carolina Maria de Jesus, que se refere a eles com regularidade em seus cadernos, a dura realidade vem antes e o encenado exercício da democracia só tem um sentido prático: para uma catadora, “graças às eleições havia muito papel nas ruas”. O confinamento no “Quarto de Despejo” é também contundente quanto ao seu sentido: “Eu quando estou com fome quero matar o Jânio, quero enforcar o Adhemar e queimar o Juscelino. As dificuldades cortam o afeto do povo pelos políticos”. Por isso chega a ser de um cinismo gritante o fato de Carolina Maria de Jesus, após ter conseguido destaque com seu livro, ter sido “alçada à condição de cidadã, com título oficial conferido pela Câmara Municipal de São Paulo”. Assim, a onda intransponível do desenvolvimentismo do país é altamente desmoralizada com o relato de Carolina Maria de Jesus, tal a aguda descrição de fome e necessidade feita por ela ao expor o que era a vida, de tal forma que dar a ela um Título de Cidadã resulta ser ofensivo. Walter Benjamin, em seu ensaio “Experiência e pobreza”, enfatiza que “não se deve imagi-


nar que os homens aspirem a novas experiências. Não, eles aspiram a libertar-se de toda experiência, aspiram a um mundo em que possam ostentar tão pura e tão claramente sua pobreza externa e interna, que algo de decente possa resultar disso”. Ainda que à ideologia do desenvolvimentismo essas palavras sejam altamente cabíveis, paradoxalmente elas também o são à própria Carolina Maria de Jesus que, após sair da condição de catadora para tornar-se escritora, assume um tom moralizante com um livro de provérbios e descamba para a escrita de constrangedores poemas áulicos em que então elogia os que antes dizia ter vontade de matar, enforcar e queimar. Por isso, a obra mais potente da autora é mesmo “Quarto de Despejo” que, ao fazer 60 anos de sua publicação, não deixa de expor o Brasil, tanto pelo que foi quanto pelo que ainda é continuando o mesmo em sua índole espoliativa e autoritária. Tome-se um exemplo do diário, cujo lirismo imediatamente acaba corroído pela realidade e que, dizendo daquela época, diz também desta com o noticiário expondo o retorno retumbante da miséria e a rotina diária de violência e extermínio de negros no país hoje: “Dia 13 de maio


de 1958 - Hoje amanheceu chovendo. É um dia simpático para mim. É o dia da Abolição. Dia que comemoramos a libertação dos escravos. (...) E eu tenho só feijão e sal.” O diário de Carolina Maria de Jesus é surpreendente por numerosos motivos. Tanto pela contundência de dizer que “...Chegou o esquife. Cor roxa. Cor da amargura que envolve os corações dos favelados”, quanto pelo lirismo delicado que se imiscui de forma inesperada em meio às cruezas relatadas: “...A noite está tépida. O céu já está salpicado de estrelas. Eu que sou exótica gostaria de recortar um pedaço do céu para fazer um vestido.” “...O céu é belo, digno de contemplar porque as nuvens vagueiam e formam paisagens deslumbrantes. As brisas suaves perpassam conduzindo os perfumes das flores. E o astro rei sempre pontual para despontar-se e recluir-se. As aves percorrem o espaço demonstrando contentamento. A noite surge as estrelas cintilantes para adornar o céu azul. Há várias coisas belas no mundo que não é possível descrever-se. Só uma coisa nos entristece: os preços, quando vamos fazer compras. Ofusca todas as belezas que existe”.


PUBLICAR UM LIVRO E MATAR UM PORCO É A MESMA COISA Mas também para expor quão paradoxal é publicar um livro, a ponto de se poder sugerir que é o mesmo que matar um porco. Eis que em uma entrevista o jornalista pergunta a Carolina Maria de Jesus: “Foi bom mudar de vida, escapar da miséria e conhecer um mundo diferente daquele da favela?” Ela responde: “Decepção. Pensei que houvesse mais idealismo, menos inveja. Mas aqui há não só muita ambição, mas também o desejo de vencer a qualquer preço. Mesmo que os meios empregados sejam podres. Quando matei um porco, lá na favela do Canindé, alguns vizinhos exigiram um pedaço de carne. Rondavam meu barraco feito bicho que fareja presa. Lá na favela era o porco, aqui é o dinheiro. No fundo é a mesma coisa”.




60 ANOS DE QUARTO DE DESPEJO Carolina Ferreira Falar de Carolina Maria de Jesus é também falar um pouco da minha história e da potência que nós carregamos, acessar o mundo através da poesia e utilizá-la como ferramenta de travessia na jornada da vida, é resistência. Audre Lorde já disse que a poesia não é luxo, falo aqui da “poesia como destilação reveladora da experiência”, poesia essa que faz parte de sua estética e que está presente em seu projeto artístico-literário que parte da experiência de sua trajetória. É preciso tirar todos os papéis que foram postos sobre ela ao longo desses sessenta anos. Carolina era um ser da escrita e a palavra era sua essência, além de singular e criativa no uso da linguagem - precisamos lembrar que, como uma sociedade colonialista, racista e hétero-patriarcal é dado a alguns o privilégio de brincar com a linguagem – e sabemos muito bem de quem estamos falando –, ela possuía uma gramática do cotidiano, como bem disse Conceição Evaristo, ou po-


demos pensar no pretuguês de Lélia Gonzalez, e aí fica claro o porquê Carolina e sua linguagem foram desprezadas e objetificadas. Objetificação essa que não conseguiu apagar a singularidade dessa poeta, romancista, compositora, cantora, pensadora etc. É nosso dever pensar Carolina Maria de Jesus para além do quarto de despejo, é preciso reconhecer a importância dela e de sua obra para a literatura não só do Brasil, mas do mundo, é preciso olhar além da “escritora favelada” e não podemos permitir que tranquem-na no quarto de despejo, porque ela e sua obra são maiores do que esses rótulos. O “Quarto de Despejo – Diário de uma favelada” é só um pedaço do projeto literário de Carolina Maria de Jesus e ela é uma escritora inspiradora, da realização, da poética e do pensamentos crítico. Precisamos refletir, sessenta anos após a publicação do “Quarto de Despejo”, como uma escritora de sua magnitude foi apagada e jogada à margem da literatura brasileira. Lembrando que no dia do lançamento quase 800 exemplares foram vendidos, atingindo a marca de 10 mil livros após a primeira semana e tendo a primeira edição esgotada – ela desbancou a marca de escritores como Alzira Vargas Amaral Peixoto, Carlos Lacerda e Jorge Amado. Esteve em primeiro lugar no


ranking dos mais vendidos da Folha de São Paulo em 21 de agosto 1960. Além disso, teve versões traduzidas publicadas em países como Dinamarca, Holanda, Argentina, França, Alemanha Ocidental, Suécia, Itália, Checoslováquia, Romênia, Inglaterra, Estados Unidos e Japão, União Soviética, Polônia, Hungria e Cuba. Edições circulavam em países como Uruguai, Espanha e Venezuela entre os anos de 1961 e 1965, e foi proibida pelo regime de Salazar em Portugal. Recentemente, vimos Carolina Maria de Jesus voltar à pauta da grande mídia, em um ano em que vivemos uma crise política e sanitária, voltando a ser o número um entre os livros mais vendidos semanalmente de não-ficção, segundo o Publishnews, e entre os dez mais vendidos no mês de março. Foi anunciada a publicação de sua obra, onde serão recuperados os textos de Carolina a partir dos cadernos originais. Como bem disse Rafaella Fernandez, uma pesquisadora que a estuda há 20 anos, em uma matéria publicada recentemente por Fernanda Canofre, “Nos arquivos, a gente vê essa Carolina mais autêntica, percebe que ela não fala só de favela, de sofrimento, de tristeza. Mas os editores fizeram isso”.


Espero que esses sessenta anos de “Quarto de Despejo” sejam o início de uma nova fase, que falemos mais e mais da grandiosidade e da poética de Carolina, que tiremos os papéis racistas e machistas que foram jogados sobre ela, e que, mais uma vez, ela seja fonte inspiradora de realização para a nova geração de escritores e escritoras negres do Brasil e do mundo.



SAMBA-RAP PARA CAROLINA DE JESUS

Nuno Rau

(para Lélia Gonzalez) queria sua língua portunegra lambendo meus olhos, Carolina, só assim eles poderiam tocar as estrelas, meus olhos de animal noturno precisam da treva do seu corpo, a saliva espessa de onde brotam palavras suspensas entre dois continentes, mãe, só assim eu poderia ver sem esses véus de classe [minhas roupas], peso morto, monturo de enigmas que não quero decifrar quando vejo playboys de escafandro inventando novos modos de usar sob uma lua literária que boia entre nós e as estrelas, ìyá, as estrelas deviam nos levar ao paraíso quando


em seu colo eu tentasse dizer “não vá por essa trilha da cidade-fantasma, não se deixe ficar entre espantalhos, seu sangue vai secar no deserto de alvenaria” e seu samba sincopado no chão de nossa Améfrica me lembrasse que o rumor do mundo não esperava que seus pés se soltassem do chão e agora também não consigo arrancar os meus, mãe, quando essa lua nos massacra e seu vago brilho decadente não deixa meus olhos afundarem no vórtice da noite com ou sem estrelas, não importa a quem [acorrentado] no porão deste navio Copacabanindé supõe quantas palavras erram no vão profundo entre as luzes que ardem mesmo quando mortas feito os milhares de ouvidos que não são para o que disse a sua boca, mama quero brincar com você pelas ruas da cidadejardim, ìyá, vamos catar os papéis descartados pela História e juntar fardos pra recortar todas as palavras esquecidas e então espalhar tudo no chão nosso quarto de despejo, embaralhar e escrever um livro


de páginas pretas como sua pele, seus olhos, onde os versos brilhem como constelações e mostrem o caminho até seu ventre, mama, onde novas palavras me esperam pra poder me gestar e me fazer então de vez nascer entre meus irmãos


ALGUNS AFORISMOS/ NOTAÇÕES PARA E SOBRE CAROLINA MARIA DE JESUS SEGUIDOS DE UM VATICÍNIO PROFÉTICO ESCRITO POR ELA Marcelo Ariel A derrisão pode ser o lugar onde se instaura o nascimento de uma força interior. Não há dúvida de que QUARTO DE DESPEJO no Brasil foi tratado como um objeto derrisório, sendo inclusive categorizado como pré ou semiliterário, apesar disso Carolina jamais caiu na armadilha da autoderrisão e permaneceu de pé por dentro e por fora. Hoje sabemos que o livro foi editado com cortes. Aguardamos que, nestes 60 anos da primeira edição, venha a lume uma edição crítico-genética, caso isto seja possível, poderemos chamar tal gesto de reparação.



Nossas raízes são onde nossa vontade de viver e mudar a vida se realizam. O subtítulo DIÁRIO DE UMA FAVELADA não é fiel ao que podemos chamar de uma ontologia radical que é nítida no livro e em outros escritos de Carolina. Encaramos este subtítulo, validado por um recorrente recorte sociológico, como um esquadrinhamento imensamente redutor tanto no aspecto da linguagem, quanto no campo de uma sociologia da literatura e /ou literatura comparada. QUARTO DE DESPEJO é o resultado de um desenraizamento que encontra dentro de si uma recusa do não lugar. Os verdadeiros termos de comparação só são acessíveis por meios do espírito e revelam as profundas correspondências entre interioridades fortes. QUARTO DE DESPEJO possui paralelos e vasos comunicantes com obras densas e líricas como, por exemplo, O LIVRO DE MEMÓRIAS de Teixeira de Pascoaes, CEMITÉRIO DOS VIVOS de Lima Barreto, DIÁRIO DE UM LADRÃO de Jean Genet, FOME de Knut Hamsun e outras. O documental no livro não ofusca seu lirismo e poeticidade, trechos como “Eu que sou exótica gostaria de recortar um pedaço do céu para fazer um vestido”, entre tantos outros, atestam isso. Já é hora de fazermos uma leitura do livro por seus mecanis-


mos internos e não apenas pelo fenômeno circunstancial que é nele ficcionalizado com um altíssimo grau de consciência literária, e esta consciência, que em alguns momentos exerce uma forma terrível e difícil de lucidez que evocamos neste momento, através de uma leitura dessa obra que necessita ser atenta, livre da ferida colonial que a engendrou e que ela transcende. Carolina escreveu nos anos 50: “A democracia está perdendo seus adeptos. No nosso país, tudo está enfraquecendo. O dinheiro é fraco. A democracia é fraca e os políticos fraquíssimos. E tudo o que está fraco morre um dia.” E como se respondesse a si mesma, ela também escreveu: “Ah, comigo o mundo vai modificar-se. Não gosto do mundo como ele é.” E sessenta anos depois, podemos dizer que após a leitura de “QUARTO DE DESPEJO”, o mundo não é mais o mesmo. Muito obrigado, Dona Carolina!



Ademir Demarchi é editor da revista de poesia BABEL e do selo Sereia Ca(n)tadora. Publicou os livros de poemas Os mortos na sala de jantar (Realejo, 2007), Pirão de sereia (Realejo, 2012), O amor é lindo (Patuá, 2016); o livro de crônicas Siri na lata (Realejo, 2015); o livro de ensaios Espantalhos (Editora Nave, 2018), entre outros. Carolina Ferreira é poeta e pesquisadora independente da vida e da obra de Carolina Maria de Jesus. Atualmente compartilha conteúdo em seu Instagram pessoal (@carowl28) e é uma das selecionadas da Flup 2020. Marcelo Ariel é poeta e ensaísta, autor de OU O SILÊNCIO CONTÍNUO - POESIA REUNIDA 20072019 (KOTTER EDITORIAL), entre outros. Nuno Rau é poeta, letrista e professor de História da Arte. Publicou o livro Mecânica Aplicada (2017, poemas) e é coeditor da revista de poesia e arte contemporânea mallarmargens.com.


“Eu que sou exótica gostaria de recortar um pedaço do céu para fazer um vestido.” — Carolina Maria de Jesus


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