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Mariana Patente de Andrade Projeto entregue à discipina Projeto VII B / PGD II-1, 8º semestre, como parte dos requisitos exigidos para obtenção do grau de Bacharel em Design pela ESPM São Paulo. Produzido sob orientação de Marcos Mello, São Paulo, 2015.


AGRADECIMENTOS E RESUMO

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INTRODUÇÃO E METODOLOGIA

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JEAN-PIERRE JEUNET

06 – 07

LE FABULEUX DESTIN D’AMÉLIE POULAIN 08 – 09 DECUPAGEM LE FABULEUX DESTIN D’AMÉLIE POULAIN 10 – 31 CONCLUSÃO 32 – 33 SOFIA COPPOLA 34 – 35 THE VIRGIN SUICIDES 36 – 37 DECUPAGEM THE VIRGIN SUICIDES 38 – 51 CONCLUSÃO 52 – 53 PEDRO ALMODÓVAR 54 – 55 TODO SOBRE MI MADRE 56 – 57 DECUPAGEM TODO SOBRE MI MADRE 58 – 71 CONCLUSÃO 72 – 73

RELACIONANDO A LINGUAGEM VISUAL E GRÁFICA COM CINEMA E DESIGN 74 – 75 CASOS CORRELATOS 76 – 81 DIÁRIO 82 – 113 O ZINE 114 – 125 ANEXOS 126 – 131


IN TO R

AGRADECIMENTOS Agradeço ao professor Marcos Mello, meu orientador, por acreditar no meu projeto desde o início e pela ajuda fundamental durante todo este processo.

RESUMO Neste projeto, buscou-se o

Á professora Marise de Chirico e ao professor Daniel Trench, pelos conselhos na banca de qualificação e pelas palavras reconfortantes durante períodos difícies.

Este projeto começou com a análise de três filmes de diferentes diretores e perspectivas, o objeto de estudo deste trabalho. Os longas-metragens escolhidos foram: The Virgin Suicides (1999), da diretora norte-americana Sofia Coppola, Todo sobre Mi Madre (1999), do diretor espanhol Pedro Almodóvar, e Le Fabuleux Destin d’Amélie Poulain (2001), do diretor francês Jean-Pierre Jeunet.

Ao designer Rico Lins, ao artista Zansky, Nara da Banca Tatuí, Marcelo e Estelle da Selva Press e todas as outras pessoas com quem tive o prazer de conversar. Obrigada pela a atenção e disposição de compartilhar seus conhecimentos. Às queridas Isabella D’Ercole, Sueli Mazze, Mariana Conte e Julianna Prosdocimi por toda a ajuda e apoio durante o projeto. Às minhas amigas Victória Carvalho, Tami Ayrosa, Taís de Paiva, Mariana Navarro e Stephanie Luna pelo companheirismo, e por compreenderem minha ausência por meses. Finalmente, e principalmente, aos meus pais e irmã pela oportunidade de estudar nesta instituição, pelo suporte, apoio e atenção durante todo o período de graduação, especialmente neste último ano. Muito obrigada.

questionamento das constantes descobertas de um exercício experimental, levando em consideração o objeto de estudo, os processos e resultados.

Após as análises, inúmeras conversas, entrevistas e experimentações – que representaram diferentes etapas de envolvimento com o projeto –, o resultado final tomou a forma de um zine. Toda a trajetória desse trabalho está documentada aqui, em um diário contendo os registros escritos e fotográficos. (palavras-chave: linguagem visual – linguagem gráfica – cinema contemporâneo – design – zine – lambe-lambe – risografia – publicação independente – experimentação – movimento)


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INTRODUÇÃO A ideia que levou à escolha do

METODOLOGIA Para a realização do projeto,

tema surgiu da tentativa de unir duas áreas que me atraem: design e cinema. Se, por um lado, enxergamos a precisão do processo de decupagem de cenas que justificam as minhas escolhas teóricas, por outro, trago a subjetividade e o lado emocional que enfatizam as várias possibilidades que o design pode alcançar.

foram definidos dois métodos que ajudaram a compor e compreender o universo estético. O primeiro, baseado principalmente no livro A Linguagem Cinematográfica (2005), de Marcel Martin, consistiu, inicialmente, em uma pesquisa bibliográfica, o que possibilitou conhecer seus criadores e aprofundar-se em suas linguagens, como roteiros, temas e personagens típicos de seus trabalhos.

O projeto experimental foi o que melhor se encaixou desde o início; a possibilidade de aprendizagem se adequa a cada estágio. Em um primeiro contato, busco mergulhar no universo dos diretores e na realidade observada na tela: quantos e quais elementos conseguimos enxergar, como os entendemos e o que nos inspiram. Em seguida, apresento a documentação do meu diário, relatando minhas experiências após a banca de qualificação. A construção de uma reflexão sobre o meu projeto, agora em uma dimensão mais profunda. Questionamentos, crises, erros e resoluções estão presentes nessa segunda etapa. Encerro com um texto, onde explico e retomo cada um dos pontos analisados para a realização deste projeto.

Com base nessas referências, foi realizado um estudo específico sobre os aspectos narrativos e principalmente estéticos de cada filme por meio da decupagem de cenas. Nessa etapa, analisouse o contexto histórico inserido, a linguagem estética dos diretores e as diferentes formas de abordagem de assuntos em comum. O segundo método, baseado nos dois capítulos sobre Eugene Feldman, do livro A Herança do Olhar: o Design de Aloisio Magalhães (2003), consistiu em diferentes processos de experimentação. Em um primeiro momento, foram reunidas todas as linguagens analisadas nos três filmes e estabelecidos os pontos em comum. Assim, foram separadas as linguagens mais interessantes de cada obra para, então, transformarem-se em experimentos. Em paralelo, ocorreram encontros e visitas com pessoas relacionadas aos temas do projeto. Por fim, foram escolhidas as que se encaixavam melhor com a narrativa do zine e a linguagem gráfica.

FICHA 367 cenas analisadas 229 experimentos 1.094 registros fotográficos 4 registros audiovisuais 6 entrevistas 1 viagem para Curitiba 1 zine 3 lambe-lambes


J E U T N E

Movimento cinematográfico, que possui características como, ângulos baixos de filmagens; sequência e efeitos visuais incomuns, pessoas filmadas em espelhos, ou contra múltiplos espelhos, filmagens através de vidros; cenários noturnos e interiores sombrios

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JEAN-PIERRE JEUNET nasceu em 03 de setembro de 1953, em Roanne, Loire, na França. Foi indicado ao Oscar na categoria de Melhor Roteiro Original por Le Fabuleux Destin d’Amélie Poulain (2001). Aos dezessete anos, comprou sua primeira câmera e ingressou na faculdade Cinémation Studios, onde cursou animação – mais tarde, esse conhecimento seria um grande diferencial em sua carreira.

O diretor e roteirista é autodidata, começou produzindo curtas-metragens por conta própria e alguns videoclipes como La Fille Aux Bas Nylon (1984), de Julien Clerc; Zoolook (1985), de Jean Michel Jarre; Tombé pour la France (1987), de Etienne Daho; Hélène (1987), de Julien Clerc; Souvenez vous de nous (1988), de Claudia Phillips; Cache ta joie (1989), de Claudia Phillips e L’autre joue (1991), de Lio. Também trabalhou em comerciais de diversas marcas, como Freecall, Buggy, Le Gan, Malabar, Peugeot, Steffy, e Barilla. Foi assim, na prática, que aprendeu sobre o universo cinematográfico. Mesmo em seu início já era nítido que Jeunet possuía um estilo estético muito pessoal.

roteiro, mas também na estética. A trama conta a história de um grupo de soldados confinados em um mundo futurista que quando descobrem um contador enlouquecem sem saber o significado daquilo. Desta forma, nos faz pensar porquê sempre temos medo do desconhecido e imaginamos o pior ou pensamos demais naquilo. Ele sugere a participação do espectador em relação à estética, pois o filme acontece em uma atmosfera esverdeada, transmitindo a sensação de algo sujo e sombrio. Mais tarde, Jeunet dirigiu dois curtas sem ajuda do designer, o primeiro em 1984, Pas de repos pour Billy Brakko, um curta com várias colagens – inclusive uma de um gol do jogador de futebol brasileiro, Falcão, na Copa –. Aqui já é possível perceber que esse efeito, que se tornaria uma das marcas registradas do diretor, além da obsessão por detalhes, da demonstração do que a personagem está narrando através da movimentação da câmera e o hábito de ter a personagem falando diretamente com a câmera, ou seja, com o espectador.

Em um set de filmagem de um comercial conheceu o designer e desenhista de histórias em quadrinhos Marc Caro, que veio a se tornar um grande amigo e parceiro – juntos, eles produziram três curtametragens. O primeiro L’évasion (1978) e o segundo Le manège (1980) são bastante parecidos, alguns dos elementos em comuns são as personagens feitas por bonecos de massinha e o suspense, mas em compensação, um é preto e branco e o outro colorido. É perceptível que o cineasta começou a interferir nas cores a partir deste último curta, pois elas aparecem menos saturadas do que realmente são.

No segundo, em 1989, Foutaises, é perceptível a repetição das técnicas usadas no trabalho anterior e também o uso de novos recursos, como a própria personagem se descrevendo ao contar do que gosta e do que não gosta – isso seria utilizado amplamente mais para frente, em seu trabalho mais conhecido – ou a abertura dos créditos serem feitas a partir de materiais que tenham relação com o filme e aqueles que trabalham nele. Um exemplo é o uso de uma orelha de boi em uma bandeja ao lado do nome do profissional que cuida da trilha sonora ou o cutelo ilustrando o nome do diretor e editor.

Já no terceiro, Le Bunker de la dernière rafale (1981), nota-se uma grande evolução não só no

Dois anos depois, Jeunet e Caro retornam com a parceria e se sentem prontos para produzir o


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primeiro longa-metragem juntos. Delicatessen (1991) acontece em um mundo futuro e pósapocalíptico, mas sem ceder ao esteriótipo do futuro cinzento e tecnológico. A humanidade enfrenta a escassez de diversos itens importantes para a sobrevivência humana, como a carne animal. O desenrolar da narrativa leva as personagens que vivem confinadas em um misto de açougue e pensão. No final, cedem ao canibalismo. Diferente de alguns trabalhos anteriores – e até futuros – , o diretor foca mais em incomodar o espectador e nos fazer pensar na mensagem por trás daquilo do que criarmos alguma ligação com as personagens. Este trabalho marca o momento em que Jeunet desabrochou em relação às suas ideias visuais e estéticas. Essas seriam recorrentes e marcantes em seus trabalho anteriores, mas marcam principalmente o pontapé inicial que foi reconhecido por vários prêmios em festivais franceses. A última colaboração da dupla foi a mais intensa. O projeto demorou quase dez anos para ser concluído e cerca de quatro anos para estrear nos cinemas. La cité des enfants perdus (1995) trata-se de um filme com uma fotografia surrealista e expressionista, carregada de jogos de luzes, sombras e cores, que bebe na fonte dos filmes neo-noir 1. Já a narrativa é baseada em antigas cantigas de ninar, que nos faz pensar em diversas questões. Por exemplo: a personagem Miette, que é mais esperta e adulta do que seu parceiro One, um marinheiro infantilizado; os Ciclopes, personagens que fazem referências aos grupos religiosos conservadores; as crianças, que carregam o símbolo de inocência; os seis clones, resultados de um experimento mal sucedido que os levou a ter uma estranha “doença do sono”, carregando uma severa crítica à ciência e à clonagem; e Krank, um cientista obcecado em sonhar, representando algo ou alguém que domina

a ciência, mas não consegue dominar ou enxergar o que está além dela. O longa era tão à frente de sua época que os diretores tiveram que correr atrás de pessoas que conseguissem criar novos softwares para os efeitos especiais que eles procuravam. Para fazer os figurinos, também contou com o estilista Jean Paul Gaultier nos figurinos. E, mais uma vez, foi um grande sucesso, o que acabou chamando a atenção de Hollywood. No final dos anos noventa, casou-se com Liza Sullivan e recebeu um convite para deixar a França e ir dirigir seu próximo filme, Alien: Resurrection (1997), nos Estados Unidos. Dessa vez, saiu completamente de sua área de conforto. Em grande parte, o filme não segue o seu estilo como diretor, entretanto, dirigir um filme em Hollywood era uma ótima oportunidade para sua carreira, e apesar ter sido massacrado pelos críticos posteriormente, o diretor não se arrependeu de seu trabalho, justificando que esperava ter essa experiência profissionalmente. Com o dinheiro recebido pela direção nos Estados Unidos, voltou para França e começou a produzir o seu trabalho mais reconhecido e pessoal, Le Fabuleux Destin d’Amélie Poulain (2001). Ele já havia escrito o filme há muito tempo, e sempre teve o desejo de concretizá-lo. Essa obra tornou-se o maior sucesso do cinema francês contemporâneo, e desta vez o diretor foi aclamado pela crítica e mundialmente elogiado. Depois disso, dirigiu mais três filmes. O primeiro foi Un Long Dimanche De Fiancailles (2004), com a mesma atriz de seu último trabalho, Audrey Tautou. O filme teve um dos maiores orçamentos

do cinema francês, foi indicado ao Oscar nas categorias de Melhor Fotografia e Melhor Direção de Arte. Em seguida dirigiu, Micmacs à Tire Larigot (2009) e o mais recente L’Extravagant Voyage du Jeune et Prodigieux T.S. Spivet (2013). Ao todo, dirigiu sete longas-metragens, a maioria com roteiro de sua autoria – a exceção foi Alien: Resurrection (1997), escrito por Joss Whedon, e Un Long Dimanche De Fiancailles (2004), baseado na obra de Sébastien Japrisot. Além de já ter trabalhado várias vezes com o diretor e cartunista Marc Caro, outro colaborador que Jeunet prefere é o ator Dominique Pinon, que está presente em todos os seus filmes, inclusive em alguns curta-metragens no início da carreira do diretor. Porém, outros atores aparecem com frequência em seus filmes, como Ticky Holgado, personagem em quatro filmes; Jean-Pierre Becker, André Dussollier, Urbain Cancelier, Patrick Paroux e Thierry Gibault, que aparecem em três filmes e Jean-Claude Dreyfus, Michel Robin e Yolande Moreau com aparições em dois filmes. Na edição, também notamos um favoritismo pelo Hervé Schneid, editor de todos os seus filmes. Já na produção, o diretor confia em Claudie Ossard, Frédéric Brillion e Gilles Legrand. Corriqueiramente, colabora com sua musa, Audrey Tautou, atriz de seus filmes mais bem sucedidos – que, depois de Fabuleux Destin d’Amélie Poulain, tornou-se um grande destaque e sucesso na França. O trabalho mais recente dos dois foi no comercial Chanel No. 5 (2009), para a marca Chanel, que, apesar de ser uma peça publicitária, faz referência ao aspecto, estilo e até a história da personagem Amélie. O interesse pelo cinema começou em sua adolescência, quando assistiu C’era una volta

il West (1968), de Sergio Leone. A trama o afetou fortemente e ele ficou tão maravilhado que remontava as cenas constantemente em sua cabeça e não conseguiu falar com ninguém durante três dias. Também na lista de seus filmes favoritos encontram-se A Clockwork Orange (1971), de Stanley Kubrick, e até Cidade de Deus (2002), do diretor brasileiro, Fernando Meirelles. Sua característica mais forte é a atenção aos detalhes, tema inclusive de um de seus filmes. A maneira com a qual a câmera foca em pequenas coisas e o uso de elementos fantasiosos – a personificação de uma ervilha e o coração de Amélie pulsando, como se estivéssemos enxergando através de um raio x, trazendo a referência de desenhos animados e histórias em quadrinhos, tornou-se um marco e diferencial em seus trabalhos. Por conta disso, pelas cores exageradas, em grande maioria tons amarelados, alaranjados e esverdeados, e devido às suas personagens irreverentes e únicas, o que exigiram dos atores interpretações expressivas, notamos um humor infantil até em seus filmes mais sombrios. Jeunet é um diretor perfeccionista, que gosta de trabalhar e supervisionar todas as áreas. É tão dedicado que antes de filmar já possui o storyboard inteiro do filme feito, costume que herdou da formação de animador. Apesar de trabalhar com a mesma equipe de forma recorrente, Jeunet gosta de dar a palavra final em tudo – em Hollywood, essa palavra seria do estúdio, fator que provavelmente o impede de trabalhar mais nessa área. Logo, todos os seus filmes são muito pessoais, conseguindo conciliar sua mente fantasiosa com a realidade.


A M É I L E

JEAN-PIERRE JEUNET possui um estilo

peculiar. Mistura o fantástico e a realidade em diversas proporções e sentidos. Cria universos completamente irreais ou os introduz em pequenos componentes do cotidiano. Além disso, suas personagens normalmente possuem uma inocência que traz sempre um pouco de humor infantil. Le fabuleux destin d’Amélie Poulain gira em torno da protagonista Amélie Poulain, uma jovem tímida filha de um casal frio e distante. Ela vive em seu mundo imaginário e busca prazeres nas pequenas coisas. Sua mãe, a professora Amandine Poulain, que viria a falecer drasticamente quando sua filha ainda era pequena, sempre foi autoritária e neurótica, se irritando facilmente com qualquer coisa. Já seu pai, o médico Raphael Poulain, raramente conversava ou se interessava pela filha, – o único contato físico entre os dois é quando ele realiza na menina um check up médico mensal, mas mesmo essa aproximação esporádica a deixa muito emocionada, o que faz com que o pai pense que sua filha tem algum problema no coração e isole-a completamente do mundo real. Já adulta, Amélie se muda da casa de seu pai e vai morar sozinha. Uma noite, em seu apartamento, ela descobre uma caixa antiga escondida atrás de um azulejo no seu banheiro. A partir desse momento, seu isolamento fica para trás porque ela resolve assumir a missão de devolver a relíquia para seu dono. É uma conquista da personagem, que sai da zona de conforto em que foi criada para começar a dar propósito à sua própria vida. Quando começa a procurar o dono da caixa, Amélie passa a olhar mais para as pessoas ao

seu redor. Aos poucos, um mundo inédito vai se revelando por conta da realidade do contato com o outro. Tudo é mais realista e ela acaba se apaixonando, o que nunca fizera antes. O roteiro é construído a partir do ponto de vista da personagem, mostra a fascinação dela pelas pequenas coisas e prazeres. O diretor procura não deixar dúvidas e mostra desde a temperatura até os minutos que se passam e dos que os personagens gostam ou não. Nas apresentações, é perceptível que o diretor procura seguir a mesma linha e, em vez de descrevêlas contando suas histórias de vida, ele utiliza um recurso muito mais simples, mas com o mesmo impacto na compreensão ao apresentar gostos e pequenos detalhes em suas personalidades. Além disso, Amélie é uma jovem que pouco se prende á realidade ou é racional. Ela não para de pensar e vive imaginando hipóteses absurdas – sua mente é tão criativa que se torna inacredtiável. Tudo que o narrador ou qualquer personagem nos descreve irá aparecer visualmente para o espectador, como um flashback ou até como a própria imaginação da protagonista. Analisando as cores, podemos notar três usos predominantes na trama: o primeiro e mais visível é a vasta, utilização das cores vermelho e verde juntas, elas são cores complementares, e por isso se encontram em oposição no círculo de cores, assim as que se opõem constituem um par de cores que se complementam. Do mesmo modo, como o positivo e o negativo ou o branco e o preto. Isto é, quando as cores complementares trabalham juntas, elas possuem o mesmo peso visual, nenhuma destoa, uniformizando as cenas.


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“Uma cor ao lado de sua complementar parece mais acentuada, brilhante formoso; porém ao mesmo tempo, ambos resultam em mais difícil leitura. Este desagradável fenômeno se poderia corrigir fazendo que uma das cores seja muito mais clara, ou mesclando uma pequena proporção de um no outro.” (FABRIS, 2003, p. 116) Para usufruir de um bom resultado, as cores devem ser utilizadas com muita atenção e cautela, pois, quando repetimos essa técnica por muito tempo, ela acaba perdendo seu sentido original e começa a irritar a nossa visão por não conseguirmos desviar o olhar. Mas na trama é perceptível o cuidado que o diretor teve em construir cada cena. Através de seus cenários e figurinos, visualizamos que raramente são utilizados os tons verdes vibrantes com tons vermelhos vibrantes. O diretor tenta equilibrar as cores vibrantes com as mais pálidas e escuras, mas sempre aproveitando a beleza das cores complementares.

O verde representa momentos mais impessoais, frios e menos acolhedores. Um exemplo é a casa do vizinho de Amélie quando ela ainda é criança. Collignon também tem a casa verde. Em comum, as personagens tem a personalidade mais rancorosa. A vendedora Georgette, que vive reclamando, também aparece sob tons esverdeados. Há uma breve interrupção quando ela começa a se apaixonar por Joseph, mas, assim que os dois brigam, ela volta a usar o verde. O azul está normalmente ligado a Nino e ao amor entre todas as personagens. Praticamente tudo que pertence a Nino é azul: o álbum de foto, sua moto, seu local de trabalho, a sacola plástica que carrega às vezes e até seu travesseiro. Amélie e Nino se encontram pela primeira vez em uma cabine de fotos azul e também falam em orelhões azuis no parque. Georgette está vestindo azul quando Joseph a procura.

O segundo uso predominante está ligado às personagens. Notamos quatro cores presentes na trama: o vermelho, o verde, o azul e o amarelo.

O amarelo simboliza coisas mórbidas e a morte. A casa do pai de Amélie é predominantemente amarela, assim como a de Raymon, que leva uma vida pacata e solitária. Quando Amandine faleceu, sua filha usava amarelo. Quando Amélie assiste na TV a notícia sobre a morte da princesa, o ambiente é amarelo.

A cor vermelha está geralmente ligada à protagonista. As casas das personagens dizem muito. É nítido que cada personagem tem sua cor predominante em casa. Na de Amélie, as paredes são quase todas vermelhas, assim como os objetos de decoração e as louças. A caixa de brinquedo encontrada é vermelha, assim como a mala de Nino, o homem por quem se apaixona. Tudo que é vermelho é importante para a protagonista.

Já o terceiro uso sugere a inspiração do filme: as obras do pintor brasileiro Juarez Machado, referência que o diretor enfatizou em diversas entrevistas. Quando analisamos as pinturas e as cenas do filme, não há como não enxergar tamanha similaridade entre as cores quentes e vibrantes que trabalham junto com os tons terrosos e amarelados, os cenários com os móveis antigos e detalhados, muitos quadros e objetos pela casa e nas paredes e até a luz se assemelha, tornando as cenas do filme grandes pinturas do artista.1

É perceptível, a utilização dos contrastes na trama, como o antigo e o moderno. A história acontece na década de setenta e ruas e cenários possuem elementos antigos que condizem com a época, mas se distanciam das cores, predominantemente vibrantes, como as paredes pintadas de vermelho e os estabelecimento que misturam diversos tons, a exemplo o restaurante. Também sentimos um estranhamento quando observamos os efeitos especiais inseridos naqueles ambientes, pois normalmente esses efeitos são utilizados em filmes com aspectos mais modernos e de ficção. Aqui são usados para ilustrar a imaginação, sugerindo uma visão de mundo fantasioso, nos remetendo aos desenhos animados, assim como a personificação de elementos inanimados.

tenta superar suas barreiras e vencer seus próprios medos através da complexidade da vida cotidiana. A importância dos detalhes é indiscutível neste filme e, para um entendimento mais elevado, devemos nos atentar para algumas cenas que trabalham junto com diversos efeitos visuais e elementos estéticos.

Apesar de o diretor utilizar muitas técnicas, cores, objetos, cenários e figurinos para demonstrar esse mundo particular que Amélie havia criado, o espectador raramente sente-se confuso ou desnorteado, pois em cada cena recebe o devido cuidado de não ultrapassar os limites de compreensão do público. Isto é, dentre tantos movimentos das câmeras e outros elementos, o diretor consegue conectar as personagens e a história de maneira improvável e criativo. Cada mínimo detalhe é descoberto e apresentado, nos atraindo a mergulhar naquele universo para entender suas personagens – muitas vezes mais pelo lado estético do que narrativo, como ocorre com Nino, que tem pouquíssimas falas durante a trama. O desenrolar da história acontece quando ela se depara com seus próprios problemas, limitações e angústias, e precisa decidir se irá enfrentá-los ou se isolar em seu mundo particular. Portanto, Le fabuleux destin d’Amélie Poulain nos proporciona espaço duplo a visão de uma jovem sonhadora que

1 ANEXO Quadros do artista Juarez Machado, página 128


A TRAMA começa com planos abertos, mostrando cenas do cotidiano que acontecem simultaneamente na cidade de Montmartre. É dia 3 de setembro de 1973, como destaca o narrador, contando até os segundos do relógio e quantas vezes uma mosca bate suas asas por minuto – o inseto é o primeiro elemento feito com efeito especial que aparece. O narrador também acompanha a mesa de um restaurante vazia balançando com o vento e até um funeral de um amigo. Em seguida, o narrador apresenta a personagem principal, Amélie Poulain, desde o início de sua vida, isto é, começando pelo espermatozoide chegando ao óvulo, e depois com a barriga da mãe crescendo os nove meses de maneira bem rápida até chegar no dia de seu nascimento.

EM SEGUIDA, aparece o nome dos atores

principais e o nome do filme. As palavras são montadas por uma mão que encaixa letra a letra no painel. A mão mexe levemente em uma letra sempre imediatamente antes da próxima tela surgir, já demonstrando que os pequenos detalhes são importantes. A tipografia é bastante ornamental e tradicional, contrastando com as cores fortes e vibrantes, que nos passam a sensação de modernidade. A utilização de contrastes permanece durante toda a trama, observamos um ambiente vintage 2 da década de setenta com utensílios e decoração retrô 3, enquanto, ao mesmo tempo, o diretor insere diversos efeitos especiais e cores vibrantes fazendo uma alusão a um universo fantasioso.

Além de dizer tudo o que acontece muito detalhadamente, o narrador conta a história em terceira pessoa. Ele enfatiza como as coisas são efêmeras e como a realidade é diferente para cada pessoa, mostrando que em um mesmo dia podem acontecer várias coisas distintas, como o nascimento de um e a morte de outro. Escutamos uma trilha sonora composta por piano, sanfona e violino chamada J’y suis jamais allé, do músico Yann Tiersen. A música transmite uma sensação de calmaria e felicidade, nos remetendo à música clássica francesa.

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Ambiente que nos remete a algo clássico, antigo e de excelente qualidade

Um produto ou peça lançada atualmente com aparência antiga, que faz uma releitura do passado 3


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DEPOIS de mostrar o cotidiano da cidade o diretor

enfatiza o dia a dia da pequena Amélie. Podemos observar uma criança aparentemente normal, ora mais alegre ora mais triste. Mas uma questão é marcante: ela é muito instrospectiva e solitária. Sempre aparece brincando sozinha com coisas banais, como morangos, sugerindo sua inocência e tédio. A cena se tornou icônica e foi imediatamente absorvida pela cultura pop, tendo inclusive virado estampa de camisetas, xícaras e etc. Esta é a primeira cena em que enxergamos o uso exagerado das cores complementares: verde e vermelho, que aparecem bastante no decorrer do filme. A utilização dessas cores juntas fazem com que o nosso olhar não anule um ou outro, ou seja, conseguimos enxergar nitidamente o nome das pessoas juntamente com a cena. A trilha sonora, Comptine d’un autre été - L’après midi, do mesmo músico, é composta praticamente por um piano, transmitindo uma sensação mais melancólica juntamente com o barulho das coisas que Amélie está brincando, como o papel que ela assopra, o dominó que cai lentamente ou a cola sendo puxada da pele.


OS PAIS de Amélie são apresentados em

COMEÇAMOS a conhecer melhor Amélie em

seguida. Os dois aparecem no centro de uma rua – sugerindo que eles são poderosos diante daquele cenário – e a câmera vai se aproximando, através de um zoom in. Primeiramente, o pai, Raphael, ex-médico do exército, é mostrado. A descrição dele aparece juntamente com uma anotação e uma seta que diz “lábios cerrado = coração duro”. Em seguida, aparece a mãe, Amandine, uma professora de Gueugnon. A anotação dela diz “tique nervoso = fraca dos nervos”. Essas setas parecem anotações infantis, sugerindo que seriam de Amélie, como se a garota nos apresentasse os pais sob sua ótica.

seguida. Ao contrário do recurso utilizado para demonstrar os pais, o zoom out sugere que ela é o oposto deles. Na apresentação dos pais, eles estavam parados no centro, de pé, sérios. Já a menina aparece sentada, indefesa e frágil.

Para aprofundar na apresentação, o diretor introduz um recurso vastamente utilizado: começa a descrever as pessoas pelo o que elas gostam ou não gostam, focando nas pequenas coisas. O pai não gosta que desdenhem de suas sandálias e gosta de limpar suas ferramentas para depois guardá-las novamente. Já a mãe não gosta que os dedos fiquem enrugados no banho e gosta de limpar sua bolsa e depois guardar tudo dentro dela de novo. Aí podemos perceber as primeiras características semelhantes entre os pais. Nesta cena, começamos a entender que a câmera e o narrador comandam a história. Raramente a câmera se estabelece parada. Ela nos indica o que devemos observar, como quando a panorâmica horizontal para nas personagens e mostra as reações ao que o narrador está falando. Aqui também percebemos a influência do desenho animado no trabalho do diretor, pois as personagens olham, conversam e mostram o que está acontecendo para o público.

Mostra-se o quanto seus pais são distantes da garota. Quando o pai vai realizar um check-up nela, o coração da menina bate muito forte. Não é nenhuma doença, mas a emoção de ter o pai dando atenção a ela, já que ele nunca abraça ou conversa com a filha. Por conta de seu coração, os pais de Amélie conseguem um atestado comprovando que ela não pode ter aulas na escola, então sua mãe a ensina a ler em casa. Mas quando a menina confunde as letras, como qualquer criança que está aprendendo a ler, sua mãe bate com a régua na mesa e grita com ela, demonstrando um comportamento desequilibrado e sem carinho pela filha. AMÉLIE vive trancada em casa sem amigos,

com um pai frio e uma mãe neurótica, então só lhe restava usar sua imaginação como refúgio, brincando de ser médico, imaginando discos de vinil feitos como crepe ou como seria se a esposa do vizinho acordasse do coma e não precisasse mais dormir.


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NA PRÓXIMA CENA, percebemos o peso daquele

ambiente quando o único amigo de Amélie, um peixe chamado Cachalote, pula do aquário e tenta se suicidar. Toda vez que isso acontece, a menina grita de desespero e acaba irritando a mãe, que mais tarde decide jogar o peixe em um rio. Aqui, percebemos a metáfora que o diretor constrói, como se ela estivesse presa em um aquário, isto é, na casa dos pais, onde um peixe prefere suicidar-se a continuar ali. O plano e a câmera mudam conforme a reação das personagens. Por exemplo: quando Amélie grita e a câmera capta a sensação desnorteante de seu grito em um travelling circular. O mesmo acontece quando a mãe grita e, em um plano detalhe, observamos de perto seu desespero. PARA COMPENSAR a perda de seu peixe, sua mãe

lhe dá uma máquina Instamatic usada, e percebemos o cuidado do diretor ao focar no nome da máquina na mão da menina, evidenciando os detalhes. Ela tira muitas fotos e se sente feliz com o seu novo brinquedo, mas, de repente, dois carros batem na sua frente, então o vizinho, que estava observando-a, resolve fazer uma brincadeira e diz que ela havia causado o acidente por estar tirando fotos. A cena é construída por diversos movimentos de câmeras, começando com um zoom in, e depois utiliza um travelling circular até mostrar o vizinho. IMEDIATAMENTE ela volta para sua casa e fica

petrificada assistindo o noticiário. Começa logo a imaginar que podia ter causado os estragos todos que estavam passando na televisão. Mas, dias depois, percebe que o vizinho estava mentindo e resolve se vingar dele puxando os cabos da antena de televisão de sua casa na hora de um jogo de futebol.

AMANDINE e Amélie vão visitar a igreja de Notre Dame para pedir por um irmãozinho, mas uma tragédia acontece logo em seguida. Uma mulher, tentando se suicidar, cai em cima da mãe de Amélie e a mata na sua frente.

O diretor procura nos passar a mesma sensação da queda da moça que suicidou-se, aproximando a câmera até chegar ao rosto de Amandine, com um efeito desfocado, mostrando algo aterrorizante. APÓS A TRAGÉDIA, ela se sente ainda mais sozinha com um pai que fica cada vez mais antissocial e frio. O tempo passa através de uma câmera fixa, mostrando um pequeno jardim com um urso de pelúcia e algumas flores. Notase, na última cena da sequência, que o brinquedo está quase destruído, indicando a passagem do tempo e uma nova fase. AMÉLIE vive solitária com um pai que não lhe dá atenção, então, quando atinge a maioridade, decide sair de casa.

Agora, trabalha como garçonete no restaurante Cafe des Deux Moulins. A câmera para no estabelecimento como se fosse uma personagem, para depois mostrar Amélie através de zoom in. Neste dia, o narrador diz que sua vida irá mudar para sempre, mostrando um flashback de diversas cenas posteriores, como a cena de uma foto rasgada ou Amélie vestida de Zorro. Só mais tarde o público entenderá essas cenas.


OUTRAS PERSONAGENS começam a aparecer, estas estão sempre no restaurante onde Amélie trabalha. O diretor segue utilizando as técnicas de travelling e panorâmicas para enfatizar que elas estão fazendo as coisas ao mesmo tempo. Também continua ilustrando e descrevendo o que as pessoas gostam ou não gostam.

Suzanne é a proprietária do restaurante. Ela gosta de atletas que choram com a derrota, mas não gosta de ver pais humilhados na frente de seus filhos; Georgette, uma hipocondríaca que trabalha como vendedora na tabacaria não gosta da frase “fruto de teu ventre”; Gina, outra garçonete, gosta de estalar os dedos; Hipólito, cliente frequente e escritor que nunca teve seu trabalho reconhecido, gosta de ver toureiros feridos na televisão; Joseph, amante rejeitado de Gina, está sempre no restaurante para espioná-la e gosta de estourar bolas de plástico bolha; por último, Philomène, aeromoça que pede a ajuda de Amélie para cuidar de seu gato enquanto viajar e gosta de ouvir o barulho da tigela sobre os ladrilhos. O gato gosta de ouvir histórias infantis. Na cena das apresentações, percebemos o uso excessivo de várias técnicas de movimentos de câmeras e ângulos. A história é contada sem intervalos, estabelecendo uma conexão entre as personagens. Além disso, a personificação dos animais tornase mais presente. No começo, o peixe de Amélie foi apresentado como se tivesse vontade própria. Agora, o gato da aeromoça diz para o espectador do que ele gosta. A personificação apoia-se na imaginação das personagens.


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NOS FINS DE SEMANA, Amélie muitas vezes pega um trem para ver o seu pai. Quando chega em casa, pergunta por que ele não usa sua aposentadoria para viajar pelo mundo, passear. Ele se lembra de quando era jovem e sonhava em ir viajar, mas não podia por conta do coração da filha.

Enquanto os dois estão fazendo uma refeição, a câmera mostra um leve zoom in e, pela primeira vez, observamos um diálogo entre as personagens, sugerindo que, pouco a pouco, estamos sendo permitidos a entrar na vida de Amélie. A APRESENTAÇÃO de Amélie adulta é bem

diferete das outras. Ela assume o lugar do narrador ao se descrever para o espectador, mostrando sua importância e diferença diante das outras personagens. Ela diz que gosta de olhar para trás no cinema e ver os rostos das pessoas no escuro e também de observar os detalhes que ninguém mais vê, mas odeia quando nos filmes americanos as personagens não prestam atenção no trânsito. Nota-se que o filme utiliza gostos pessoais de Amélie para transmitir as mensagens. Por exemplo: quando ela vira para assistir a reação das pessoas enquanto assistem ao filme, o recurso é o mesmo de quando o narrador está apresentando as personagens e registrando suas reações ao que ele diz. Além disso, Amélie gosta de observar os detalhes que as pessoas dão pouca importância, assim como o diretor procura nos mostrar o máximo possível de detalhes no filme, até mesmo nas falar do narrador.

O NARRADOR volta e diz que Amélie não tem

namorado e que, em vez de gastar seu tempo em uma relação, ela cultiva pequenos prazeres, estabelecendo ligações com coisas que quase mais ninguém vê, como mostra a cena ao lado. Através de uma panorâmica vertical, observamos que ela sente prazer em mergulhar a mão em sacos de grãos, de furar o crème brûlée com uma colher de chá e de jogar pedras no canal St. Martin, pequenas coisas que tornam seu dia melhor. Volta a trilha sonora melancólica do início do filme, de quando Amélie era criança e estava brincando sozinha, sugerindo que ela ainda é solitária. Começamos a conhecer melhor a personagem, não só pela apresentação do narrador, mas principalmente pelas expressões faciais. Amélie possui uma áurea infantilizada e inocente, apesar de já ser uma mulher. As duas primeiras cenas que mostram Amélie descrevendo seus pequenos prazeres continuam na mesma linha que o diretor vinha utilizando: através dos planos detalhes. Mas na última cena, quando ela está jogando as pedras no rio, observamos um travelling com plano plongée – quando a câmara está posicionada acima do seu objeto filmado –, isto é, o diretor reforça a sua solidão, mostrando um ambiente grande, e ela pequena. O NARRADOR nos apresenta o “homem

de vidro”, um pintor idoso que não sai de sua casa há vinte anos, pois nasceu com uma doença que deixam seus ossos frágeis como cristais. Assim, toda sua casa é acolchoada, para que ele não corra o risco de se machucar.


ATRAVÉS de uma panorâmica vertical em um plano aberto que vai se fechando, começando com a cidade e terminando na janela de Amélie, notamos a imensidão da cidade e o quanto ela continua sozinha todos esses anos. O narrador diz que o tempo não mudou nada e que ela se contenta em se divertir com perguntas tolas sobre o mundo abaixo, como “Quantos casais estarão tendo um orgasmo agora?”. O diretor mostra o narrador falando, como de costume, mas, dessa vez, apresenta uma lista de casais e, por fim, Amélie, supostamente contando os casais, ao que ela conclui: “Quinze!”. Ou seja, ela vive muito mais em sua própria imaginação do que na realidade.

EM UM ZOOM OUT, com a imagem de uma televisão na casa de Amélie, o narrador diz que “Um vento irá mudar sua vida para sempre”, e de repente, o noticiário diz que a princesa inglesa Lady Di havia falecido. Imediatamente a cena muda para um zoom in focando no rosto de Amélie juntamente com um off de barulho de ventania. Observamos que ela fica abalada com a notícia. O suspense toma conta da cena, imaginamos que este acontecimento irá revirar sua vida, mas, na verdade, ainda estava para acontecer o que de fato mudaria a vida de Amélie.

Ouvindo o noticiário e passando perfume, ela deixa cair a tampa. O objeto vai em direção ao chão em câmera lenta. Ouvimos mais um off, desta vez é o barulho da tampa batendo no chão, tornando-se muito maior do que o noticiário. A tampa atinge o azulejo e o impacto faz com que ele se desloque da parede. Amélie se abaixa para pegar a tampa e se depara com o azulejo descolado. Ela retira o azulejo e ouvimos o off de algo sendo aberto e descoberto. Era um “tesouro” escondido: uma caixinha velha com várias bugingangas de alguém que já havia morado naquele lugar. Amélie abre a caixa e instantaneamente fica feliz com o achado, sem se importar mais com o que passa na televcião. Agora não ouvimos mais o noticiários, mas a trilha sonora nostálgica La valse d’Amélie, do músico Yann Tiersen, enquanto o narrador conta que aquilo tinha sido escondido a quarenta anos atrás por um menino. A cena é predominantemente amarela. Através de algumas cenas anteriores, podemos estabelecer a conexão da cor com a cena em que o idoso volta do funeral do amigo e apaga seu nome de um caderno, da cena em que Amélie observa o homem de vidro. Todas essas cenas são predominantemente amarelas, o que sugere algo mórbido e também a própria morte, como a trágica notícia de Lady Di.


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UM TRAVELLING CIRCULAR, juntamente com um zoom in, transmitem o devaneio de Amélie, que não consegue parar de pensar na caixa. Ela chega à conclusão de devolvê-la ao seu dono. NO DIA SEGUINTE, é apresentada Madeleine,

a dona da pensão em que Amélie mora. Logo de cara, a mulher diz “a moça do quinto andar”, sem saber direito seu nome, mostrando que Amélie é realmente introspectiva. Amélie está à procura do dono daquela caixa perdida e pergunta se ela sabe dos moradores anteriores de seu apartamento. Sem dar a resposta, ela manda a moça entrar e começa a contar sua história de vida, falando sobre seu marido que a traía e a roubava para depois fugir para o Panamá, e morrer em algum lugar da América do Sul. Mas, apesar de tudo, é perceptível seu amor e afeto pelo falecido quando fica emocionada com as cartas de amor que ele escrevia enquanto estava no exército, e até chega a perguntar para Amélie se alguém já havia escrito algo tão bonito para ela. Amélie responde que nunca foi a Madeleine de alguém. Quando acaba a história, Madeleine diz para Amélie perguntar para Collignon, o dono da venda, que morou sua vida inteira na pensão, para ajudá-la. O diretor começa a nos dar algumas dicas e enfatiza como o amor é importante na vida das personagens: é melhor ter alguém para amar do que ser solitário.

ANTES de falar com Collignon sobre quem morava antes naquele apartamento, ela desfruta de um dos seus prazeres: enfiar a mão no saco de grãos, mas rapidamente o dono da venda a interrompe, perguntando se ela irá levar o mesmo de sempre “Um figo e três nozes?”. Por esse pedido ser frequente, nota-se a peculiaridade da personagem em pedir sempre os mesmos ingredientes e em quantidades estranhas, reforçando sua autenticidade.

A venda é apresentada como o restaurante onde ela trabalha, isto é, como um personagem. Percebemos também as cores complementares destoando-se do resto, sugerindo que os lugares frequentados por Amélie são retratados através de sua visão distorcida da realidade. Dando continuidade, Collignon diz que era muito jovem e não se recorda, na época tinha cerca de dois anos, o mesmo que a capacidade mental de seu ajudante, Lucien, um rapaz com deficiência. É predominante o uso da panorâmica para mostrar novos personagens. Em vez do corte seco, assim nos é apresentado Lucien. O narrador diz que ele não é nenhum gênio, mas que Amélie gosta dele pelo seu jeito de lidar com cada ingrediente como se fosse único, como se fosse um objeto precioso. É a maneira do homem de demonstrar amor pelo seu trabalho. Collignon zomba do rapaz e depois entrega a Amélie o telefone de sua mãe, que tem boa memória e poderia lembrar de quem morava lá.


COMO DE COSTUME, através de uma

panorâmica vertical, Amélie aparece indo até a casa da mãe de Collignon, mas antes de entrar na casa ela pega algumas pedras, provavelmente para depois desfrutar de mais um de seus pequenos prazeres, o de jogar pedras no rio. Ela começa a conversar com o pai do dono da venda e ele diz logo de cara que o nome de quem ela está procurando é Bredoteau, mas diz para ela não lhe dar ouvidos pois está senil. Em seguida, chega a mãe e diz que ela realmente não deve escutar seu marido porque ele está debilitado – e mostra o estado que ele fez com seus louros para comprovar. Instantaneamente, Amélie cria simpatia pelo pai, que parece ser subestimado o tempo todo. A mãe busca o nome da pessoa em um caderno, pois anota tudo. Quando ela acha o nome, surpreendentemente, era Bredoteau, como o pai havia dito, mas a mãe não nota essa detalhe. É quando percebemos que além de Amélie se dar melhor com pessoas diferentes, como o pai de Collignon e o Lucien, na trama elas são autênticas e as personagens que se sentem melhores ou mais inteligentes, normalmente são corrompidas e amargas. NA CENA em que Amélie pega o trem para

ir para casa de seu pai, ela escuta uma música alta romântica vindo de uma vitrola. Guiada pela curiosidade, resolve investigar de onde vem o som. Encontra um cego ao lado da vitrola com uma caneca na mão. É do perfil de Amélie ajudar os necessitados, como quando ajuda o mendigo a caminho da casa de seu pai. Mas o que ela não sabe é que logo depois de deixar dinheiro para o senhor, ela encontraria o rapaz que mudaria sua vida de novo.

O RAPAZ é Nino Quincampoix, que está procurando pedaços de fotos embaixo de uma cabine azul no metrô. Ela o observa enquanto o narrador nos conta, através de um flashback, que Nino também sempre foi muito solitário e que, na infância, desejava muito ter um irmão. Na escola, sempre foi muito caçoado. Sofria bullying dos colegas e não tinha com quem brincar. Ele era tão solitário quando Amélie, que estudava em casa. ENXERGAMOS pelo plano de conjunto

que Amélie chega à casa de seu pai e nota que ele está limpando um gnomo de jardim. O pai diz que a mãe de Amélie odiava aquele gnomo, mas que ele havia resolvido usá-lo novamente. Eles vão juntos para o jardim colocar o gnomo no lugar dele. Em seguida, ela pergunta como o pai se sentiria se achasse uma relíquia que estava escondida há muito tempo. O pai responde que o gnomo não é uma relíquia. Ela tenta explicar, mas o pai a ignora e diz que precisa envernizar o gnomo. Ela desiste da conversa. Aqui, fica claro o distanciamente dos dois e como o pai vive fora da realidade, não dando atenção para sua filha, apenas para seus próprios interesses. A casa de Raphael é completamente amarela, nos rementendo a algo mórbido. Na cena seguinte, quando os dois estão no jardim, o ambiente é predominantemente verde, o que nos faz sentir que é mais frio, assim como a relação dos dois.


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COM A CÂMERA sempre em movimento, desta vez com o plano detalhe, vemos Amélie trabalhando no restaurante. Em seguida, ela entra rapidamente no banheiro com uma lista telefônica em busca de informações sobre Bredoteau. Enquanto isso, começamos a conhecer melhor as personagens que costumam aparecer no restaurante. Georgette discute com Gina para fechar a porta senão irá pegar um resfriado. Joseph carrega um gravador na tentativa de registrar tudo que Gina faz, como rir de um grupo de rapazes. Enquando isso, Suzanne tenta apaziguar a situação. Amélie sai do banheiro, pergunta para a dona se pode sair mais cedo. Suzanne automaticamente pergunta para Amélie “Qual o nome dele?”, dando a entender que uma pessoa só sai mais cedo para ir a um encontro – novamente, o diretor reforça a importância dos relacionamentos e do amor para o ser humano. AMÉLIE sai à procura e anota em uma caderneta

todos os endereços de pessoas com o nome Bredoteau. Ela vai até a casa de cada um, mas quando chega na última residência de alguém com esse nome, descobre que ele acabou de falecer. Ela volta para casa desiludida. Nestas cenas, diversas técnicas são exploradas para acelerar a busca de Amélie, como, por exemplo, a câmera veloz e pouco nítida, que sugere que ela estaria correndo de uma casa para outra.

QUANDO ela está subindo as escadas, o “homem de vidro” a convida para entrar em sua casa. Observamos que o modo como enxergamos as personagens é como elas se veem, através da câmera subjetiva. Amélie está em cima das escadas e notamos o “homem de vidro” em um plano plongée – ângulo mostrado de cima para baixo –, enquanto Amélie aparece em um plano ao contrário, o contra-plongée – de baixo para cima.

Ela observa a casa toda acolchoada e diz que, em cinco anos que mora lá, ela nunca o viu. Ele se apresenta como Raymond Dufayel e diz que não sai de casa porque há muitos vagabundos por aí. Em seguida, diz que ela está procurando a pessoa errada, pois o nome não é Bredoteau, mas Bredodeau. Ela elogia a pintura que está ao seu lado e Raymond mostra o quadro Luncheon of the Boating Party, do pintor Renoir. Raymond diz que pinta um quadro por ano há vinte anos, mas nunca conseguiu caputurar o olhar da menina com o copo de água. Nesse instante, em um plano conjunto, observamos Amélie com um copo na mão logo atrás, sugerindo que ela e a menina se assemelham, pois não se encaixam nos lugares. No final da conversa, Raymond passa o endereço do verdadeiro Bredodeau para ela.


ELA FINALMENTE encontra o verdadeiro

Bredodeau. O narrador conta que ele gosta de ir todas as terças na feira comprar frango para depois assar e comer enquanto a carcaça ainda está quente. Voltando da feira, ele passa por uma cabine telefônica que começa a tocar. Ele entra para atender ao telefone, mas se deparaa com o “tesouro” dele, deixado por Amélie. Ao ver a caixa, ele se emociona. Enquanto isso, assistimos um flashback explicando tudo que estava na caixa, como uma foto que servia para tapar um buraco na parede, através do qual o menino observava uma moça. Bredodeau entra no bar em que, concidentemente, Amélie está, e começa a falar o quanto ficou emocionado com o que acabou de encontrar. Durante o discurso, percebe que aquilo havia mudado sua vida e que estava na hora de procurar sua filha, com quem não falava há muito tempo, para conhecer seu neto. Ele diz que percebeu que o tempo passa rápido demais. Quando Amélie escuta aquelas palavras, sente extrema felicidade, como nunca sentida antes. A câmera é lenta e gira em torno dela com uma música acolhedora, focando na leveza que ela está sentindo. Na próxima cena, ela encontra o mesmo cego que havia visto no metrô, só que desta vez na calçada procurando ajuda para atravessar a rua. Ela ajuda o senhor a atravessar e começa a descrever tudo que está enxergando, até coisas banais, como uma menina olhando um cachorro, os pirulitos na vitrine da padaria e quanto custa um pernil ou uma costela no açougue. O cego escuta atentamente com uma expressão de felicidade no rosto. Depois, ela o deixa em frente ao metrô.

Esta cena parece ser feita com uma câmera na mão, pois mostra rapidamente tudo que está acontecendo de maneira bagunçada, como se alguém estivesse tentando acompanhar Amélie. Depois, o diretor insere mais um efeito especial: uma névoa alaranjada ao redor do cego, referindose ao impacto causado pela atitude de Amélie. Segundo o pintor francês Delacroix, um dos mais importantes pintores do Romantismo, “Todos sabemos que o laranja e o vermelho dão e representam ideias de alegria, de riqueza”. Sendo assim, a cor laranja que aparece no final da cena pode ser associada à felicidade, sentimento que provavelmente o cego sentiu quando Amélie começa a descrever tudo ao seu redor.


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EM UM PLANO mais aberto, através da visão

de sua janela, vemos nitidamente a alegria de Amélie, cantando de felicidade preparando seu jantar. Mas, quando ela olha pela janela e vê Raymond comendo sozinho, ela se lembra da menina do copo de água. Ela fala para si mesma que a menina era apenas diferente das outras pessoas. Ela olha para o lado direito e diz “Ela não pode se relacionar com outras pessoas” e depois, olhando para o lado esquerdo, diz “Ela sempre foi uma criança solitária”, como se estivesse mostrando os dois lados da moeda. Contaminada pelo sentimento melancólico surgido após pensar na menina com o copo de água, Amélie vai assistir televisão. Ela começa a imaginar como seria seu futuro se estivesse dentro do documentário que estava pasasndo. Ela se imagina como uma moça que faz de tudo para ajudar os outros, mas que não consegue ajudar o próprio pai nem a si mesma, pois continua solitária aos 23 anos. Ela continua fantasiando, pois a barreira criada por ela mesma impede-a de se relacionar com os outros ao seu redor.


NAQUELA NOITE, Amélie decide ajudar seu pai

e resolve roubar o gnomo que ele tanto gostava – mais tarde entenderemos melhor o por quê. Já na volta para sua casa, ela descobre que o metrô estava fechado, e resolve dormir em uma cabine de fotos. No dia seguinte, acorda no metrô e acaba encontrando Nino de novo, agachado resgatando pedaços de fotos no chão Nessa hora, ouvimos um off de um coração batendo fortemente, e depois observamos o efeito de um raio-x mostrando o coração de Amélie pulsando. Os dois se olham, mas Nino sai correndo com um sacola azul, então ela corre atrás dele e escutamos a trilha sonora L’autre valse d’Amélie, uma variação mais romântica da La valse d’Amélie, do mesmo músico francês. Nino não olha para trás e não a vê. Ele se senta em sua moto e sai às pressas, deixando cair uma mala vermelha, que aparece de todos os ângulos com um travelling circular, referindo-se a algo bastante importante. Amélie resgata a mala. Nino normalmente está utilizando algo com a cor azul e Amélie com o vermelho, o que representa a cor de cada um deles. A primeira vez que eles se viram foi em uma cabine azul, quando Nino foi apresentado. Agora, ele carrega uma sacola azul e sai correndo em uma moto azul atrás de um carro azul, que quase bate em um carro vermelho. Nessa hora, ele derruba a mala vermelha. O diretor constrói uma metáfora: o carro vermelho simboliza Amélie e o azul, Nino, sugerindo que eles quase se esbarraram. Nino deixou cair a mala vermelha e não a azul, dando a entender que a mala vermelha aproximaria os dois.


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AMÉLIE se senta em uma escadaria, e quando abre a mala vermelha, descobre uma coleção de fotos rasgadas de pessoas desconhecidas que usavam a cabine do metrô. O álbum nos é mostrado por uma câmera subjetiva – inclusive, vemos a mão de Amélie quando ela passa as páginas. Aqui, o diretor nos remete ao flahsback do início do filme, quando mostra a foto do rapaz com fundo azul rasgada.

No restaurante, Joseph mais uma vez discute com Gina, achando que ela está dando em cima de outro cliente. No balcão um senhor escuta a discussão e começa a falar sobre amor com Suzanne. Ela conta a história de quando namorava um trapezista e por sua causa, perdeu a perna no circo ao cair em cima de um cavalo. Enquanto ouve a história, Amélie tem uma ideia. Ela ajudaria a juntar duas pessoas sozinhas e amargas, Georgette e Joseph. Ela vai até a mesa e diz para Joseph que Georgette estava interessada nele, o convencendo de maneira indireta a procurá-la. Este diálogo também é apresentado pela câmera subjetiva, ela num plano contra-plongée, pois ele está sentado e enxergando de baixo para cima, e Joseph em um plano plongée, pois Amélie está em pé e ela o vê de cima para baixo.

EM UM PLANO GERAL, observamos uma

banca de jornal que está totalmente coberta por cartazes, jornais e revistas com a cara da princesa Diana, que havia falecido há pouco tempo. Mas, Amélie não dá importância para a notícia desde que descobriu outros interesses. A dona da banca até comenta sobre a princesa, mas ela responde sem estender muito a conversa. Ela mostra desinteresse na conversa, mas está concentrada em uma matéria no jonal sobre cartas antigas encontradas na Alemanha. Nesta cena, o diretor reforça o mundo fantasioso que Amélie criou: enquanto todos estão lendo e comentando sobre um acontecimento histórico, ela está mais preocupada em viver dentro de sua própria realidade.


EM UM PLANO AMERICANO na pensão,

ELA sai de casa e deixa um pacote debaixo

Amélie mostra o álbum para Raymond, seu primeiro amigo. Os dois tentam desvendar o mistério de um rapaz aparecer doze vezes no álbum. Eles supõem várias explicações: a pessoa teria medo de envelhecer e teria muitas fotos para se recordar da juventude ou alguém que teme ser esquecido após a morte.

do carpete de Raymond. Ao olhar para o lado, encontra a chave do dono da venda na porta e resolve devolvê-la. Porém, quando chega lá, escuta Collignon debochando de Lucien na frente dos clientes e resolve fazer uma cópia da chave para se vingar mais tarde. Entendemos isso porque há um off do barulho das chaves balançando no bolso de Amélie e, depois, na volta, enxergamos dentro de seu bolso, através de um raio-x, a cópia da chave.

Em seguida, começam a conversar sobre a menina do copo. Amélie diz que ela pode estar pensando em alguém e por isso não está concentrada na festa. O “homem de vidro” responde que então ela estaria imaginando como seria viver com uma pessoa ausente em vez de se relacionar com quem estava presente. Amélie tenta explicar que talvez a menina esteja tentando, mas está preocupada demais arrumando a bagunça da vida dos outros para pensar na sua. Raymond dispara “E quem irá cuidar da bagunça de sua vida?”. Notamos a metáfora da vida da menina do copo com a de Amélie: ela não consegue se relacionar com outras pessoas e falar sobre seus sentimentos, por isso, arurma um jeito de falar sobre outra pessoa como se aquela fosse sua vida. Raymond entende a situação e tenta ajudá-la. ELA adormece olhando o álbum de fotos rasgadas e acorda com a imagem de uma corrida de bicicletas invadida por um cavalo, que havia gravado de um dia para o outro. Mais tarde, enviaria a fita para Raymong, sugerindo que nem todos se encaixam em um modelo pronto.

Nota-se que até nesta cena o diretor consegue usar as cores complementares. Observamos que o vídeo faz um reflexo verde na televisão combinando com o vermelho vibrante da parede.

Enquanto isso, Georgette vai até banca de jornais e a dona acaba comentando sobre Joseph estar interessado dela, dizendo a frase “Uma mulher sem amor murcha como uma flor sem sol”, enfatizando de novo que o amor entre duas pessoas é importante na trama. Com a cópia, Amélie resolve invadir a casa de Collignon e arma algumas armadilhas: ela troca o creme dental pelo creme para pés e inverte as maçanetas. Quando termina, surge um off com barulho de trovão e ela aparece fantasiada de Zorro, como se tivesse fazendo justiça para as pessoas que não podem se defender, mas claro do seu jeito fantasioso de ser, vivendo dentro de sua realidade. Lembramos do flashback do começo, que já havia dos dado um relance desse momento. Nota-se que a casa de Collignon também é predominantemente verde, como a casa do antigo vizinho de Amélie, que a iludiu e de quem ela também havia se vingado. Percebemos a semelhança entre os personagens e que a cor fria simboliza pessoas amargas.


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NAQUELE FINAL DE SEMANA, ela vai visitar

o pai e notamos que, pela primeira vez, ele está usando um casaco vermelho. Ele mostra que está se aproximando de Amélie e até pergunta como ela está e como anda o trabalho. Ela responde, mas logo percebe que ele ainda está desinteressado. Ela resolve então falar coisas absurdas, como dizer que usou crack ou que engravidou. No final, só diz que está bem e o pai, que não ouvia nada, responde: “Que bom”. Em seguida, ela pergunta sobre o gnomo. Ele diz que recebeu uma foto por correio do gnomo em Moscou. Ela sorri e diz que talvez ele queira conhecer o mundo, mas o pai não entende a verdadeira mensagem. NO METRÔ voltando para casa, Amélie vê um bilhete na cabine dizendo que alguém tinha perdido uma mala com um álbum de fotos, e deixado o telefone caso achem. Obviamente, era Nino procurando sua mala. Ela arranca o bilhete rapidamente e guarda com expressão de culpa.

Para mostrar o que estava escrito, o diretor trabalha com um close muito rápido focando em três palavras importantes: “perdeu-se”, “mala” e “fotos”, utilizando a câmera subjetiva.

NO QUARTO de Amélie, escutamos o narrador falando que qualquer garota normal iria ligar e devolver o álbum. Porém, isso se chamaria se confrontar com a realidade, o que é a última coisa que Amélie quer.

Observamos a personificação de mais alguns elementos na trama, como a pintura de um cachorro com um cone, uma galinha com um colar e até um porco segurando uma cúpula de abajur. Os objetos começam a discutir, como se possuíssem vida e estivessem envolvidos na trama, se Amélie está apaixonada. NO RESTAURANTE, Joseph resolve falar com Georgette, a câmera segue a mesma linha, nos mostrando a cena da visão das personagens. Georgette está com o cabelo preso e mais arrumada. Os dois começam a flertar raspando com moeda uma raspadinha. Enquanto isso, através de um plano conjunto, observamos Amélie conversando com Suzanne e sorrindo, feliz por ter ajudado duas pessoas que antes eram tão tristes. LUCIEN, o ajudante da venda, é amigo de Raymond e traz algumas encomendas para ele. O rapaz acha sob o tapete o envelope que Amélie havia deixado. Quando o Lucien vai embora, Raymond abre o envelope e encontra uma fita cassete e logo insere na televisão para assistir. A fita reunia alguns acontecimentos nos quais pessoas obtiveram sucesso por serem únicas. Ela queria mostrar que o diferente também é bom.


FINALMENTE, Amélie resolve ligar para o número

do bilhete no metrô, mas descobre que é de um sex shop e logo desliga. Em seguida, ela passa na casa de Raymond e ele pergunta como a menina do copo anda com aquele rapaz. Ela responde que eles não andam se encontrando, porque possuem interesses distantes. Mas o homem de “homem de vidro” insiste na ideia dela dar uma chance para o rapaz. Então, mais tarde, ela decide ir no endereço do sex shop. Observamos o estabelecimento em um plano plongée aberto, sugerindo que aquele lugar é intimidador, como uma grande barreira a ser quebrada. Amélie entra e conhece uma atendente. Ela diz que achou esse álbum e gostaria de devolvê-lo. A moça responde que Nino irá ficar muito feliz em tê-lo de volta, mas que ele não está, pois trabalha no parque de diversão às quartas. Ela continua a conversa e começa a nos descrever os gostos de Nino, dizendo que ele é um sujeito engraçado – antes, colecionava pegadas no cimento fresco; agora, toda vez que escurta uma risada engraçada, grava-a imediatamente e que, no dia que se conheceram, ele estava vestido de Papai Noel. Desta vez, o diretor não apresenta o que as personagens estão falando usando a tela cheia, mas através de efeitos especiais e flashbacks que aparecem ao fundo, ilustrando cada cena que a atendente descreve. Podemos notar uma luz azulada no sex shop, o que sugere que Nino trabalha ali, já que a cor é associada a ele. Nino mostra-se um sujeito bastante peculiar e diferente das outras personagens, assim como Amélie. Por esse motivo, ela se dispõem a ir até o parque para devolver o álbum pessoalmente.

CHEGANDO NO PARQUE, ela pega uma pedra e coloca-a no bolso – mais tarde, jogará em um rio, provavelmente. Amélie entra no brinquedo do “Trem Fantasma” para conseguir falar com Nino. Ele, quando nota a presença da moça, tenta assustá-la tocando nela. Petrificada de medo, Amélie não fala nada. Mais tarde, descobrimos que ela havia deixado um bilhete juntamente com quatro fotos de uma pessoa, remetendo à cabine de fotos do metrô. No bilhete, ela escreveu: “Às 17h, amanhã, no carrossel em Montmartre, traga cinco francos”.

Nino vai pra casa e não para de pensar no bilhete. O homem que aparece nas fotos começa a conversar com ele, como se fosse sua imaginação. Nesse momento, percebemos que Nino é tão sonhador quanto Amélie – e ele também se questiona do motivo do encontro.


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NO ENCONTRO, ela cria um plano para

devolver o álbum sem que tenha que fazer isso pessoalmente. Disfarçada, liga de um orelhão para outro, próximo de Nino. Ele atende e ela diz que ele deve seguir as setas azuis – cor do personagem – pelo chão. Ele é guiado até chegar a um grande binóculo e observamos Amélie colocando a mala de volta em sua moto, através da câmera subjetiva. Ele a vê, mas está longe e, mesmo correndo, não consegue alcançála. Em seguida, ela liga novamente para o mesmo orelhão e ele atende. Ela diz que conhece o homem que sempre aparece no álbum e inventa um história mirabolante sobre ele. Depois, Nino pergunta quem ela é e ela responde: “Página cinquenta e um”. Na tal página, observamos diversas fotos dela com o seguinte recado, “Você quer se encontrar comigo?”. A câmera usa o mesmo recurso do bilhete no metrô, passando de uma palavra a outra rapidamente.

ENQUANTO ISSO, Amélie continua tentando ajudar todos á sua volta. O pai continua recebendo fotos de seu gnomo passeando pelo mundo. Georgette e Joseph trocam olhares no restaurante, e ela chega a dizer “A vida é bela, apesar dos pesares”, aparentando estar muito alegre e nem sequer fala mais de seus problemas de saúde. Enquanto isso, Amélie vai até a venda e vê novamente o dono zombando de Lucien. Ela começa a imaginar um jeito de inverter essa situação, quando aparece um homem preso em um buraco no chão que assopra uma piada para ela zombar do dono da venda – isto acontece em sua imaginação, claro. Ela resolver falar a piada em voz alta e todos riem da cara do dono, que aparece em um zoom in completamente sem graça, enquanto o plano detalhe mostra as risadas dos clientes. Por último, Amélie resolve roubar as cartas de Madeleine para forjar uma carta de despedida romântica de seu amado que faleceu. Ela passa horas tentando criar uma nova carta.


NO METRÔ, Amélie encontra diversos cartazes espalhados dizendo “Onde e quando?”. A foto é de sua barriga com um ponto de interrogação, a mesma que ela tinha usado no álbum de Nino para perguntar se ele gostaria de encontrá-la. Agora, ele faz a mesma coisa e tenta achá-la do modo que ela faria. Quando vê, ela arranca todos os cartazes com uma trilha sonora de suspense ao fundo. UMA HORA DEPOIS, ela entra em uma loja de fantasias, e simultaneamente, nos é apresentado uma personagem importante, o homem de tênis vermelho. Enquanto ela chega fantasiada na estação de trem, ele sai de um carro para entrar na mesma estação. Amélie tira algumas fotos com uma fantasia de Zorro. Ele se aproxima da cabine em câmera lenta e apenas enxergamos seus passos. Ela está tirando a máscara enquanto escutamos um off do barulho das pegadas dele. Quando ela está prestes a sair da cabine, se depara como o homem de tênis vermelho que era, na verdade, o homem do álbum de Nino que tirava diversas fotos, depois rasgava e jogava fora. A descoberta é feita com um off de trovão, já utilizado antes, quando ela também estava fantasiada. Desta vez, o efeito especial foi explorado para lembrar que este homem é o mesmo do álbum: ele utilizou uma foto do álbum sobreposta ao seu rosto na estação.

AS IDEIAS de Amélie estão funcionando: Madeleine

recebeu a carta 40 anos atrasada, mas ficou feliz que o falecido marido tinha escrito para ela encontrá-lo. Nesta cena, percebemos que Amélie se inspirou no que leu na banca de jornal sobre a reportagem do avião que levava correspondências e estava desaparecido há décadas. Quando a senhora está lendo a carta, notamos um off com diversos barulhos distintos ao fundo, dando a entender que as palavras foram recortadas e coladas e que aquilo não era real. Em um primeiro plano, Raphael recebe mais fotos do seu gnomo viajando e descobrimos que Amélie está por trás disso, pois havia pedido para sua amiga aeromoça tirar fotos do gnomo em todos os lugares que visitasse e depois as enviasse para seu pai. NINO junta os pedaços de uma foto que havia

achado no chão e descobrimos o motivo da fantasia. Amélie tirou uma foto fantasiada para depois rasgar e jogar no chão, sabendo que Nino a acharia. Na foto, havia escrito “No Cafe des Deux Moulins, depois das 16h”. Quando ele entende o recado, sai correndo para encontrá-la. Nino está apenas alguns minutos atrasado, mas Amélie já cria várias histórias malucas em sua cabeça tentando entender o motivo dele não ter vindo ao encontro. Ela imagina que ele tenha sofrido um acidente, dentre várias outras simulações que o diretor mostra um a um. Minutos depois, ele entra no restaurante e encontra Amélie. Ele mostra a foto e pergunta se é ela. De tão envergonhada, Amélie não consegue responder e sai andando. No caminho, encontra Gina e dá a ela um bilhete para colocar no bolso do rapaz. Nino não entende muito bem o que está acontecendo e vai embora. Em seguida, observamos o uso de outro efeito especial, que mostra Amélie derretendo de tanta vergonha e frustração.


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NAQUELE DIA, Amélie vai até a casa de Raymond para contar o que aconteceu, como se fosse a menina do copo. O pintor escuta e dispara “Eu acho que é hora dela correr o risco”. Ela tenta explicar que a menina está bolando uma estratégia, mas ele responde que, na verdade, é uma covarde e, por isso, ele não consegue capturar seu olhar. Esta cena acontece em um plano plongée, sugerindo que a menina do copo estava olhando para eles.

Em sua casa, Amélie começa a pensar no que aconteceu e no que Raymond lhe disse. Ela imagina que as pessoas da televisão estão falando com ela. Eles dizem que, se ela quiser continuar sendo uma mulher introvertida, tem todo direito de estragar sua vida e seguir sendo apenas uma sonhadora para sempre. Ou seja, ela também está questionando suas próprias escolhas e compreendendo que não pode passar o resto da vida assim.

NO BILHETE que Gina havia colocado no bolso de Nino estava escrito para eles se encontrarem na cabine às 17h, Mas antes, Amélie arquiteta um encontro entre o homem do tênis vermelho e Nino. Descobrimos que, na verdade, o homem era apenas um técnico de manutenção que conserta as cabines. Quando acaba seu trabalho, ele faz um teste com uma foto, rasga e joga fora. Nesta cena, a câmera começa a girar, sugerindo que Nino está tendo um devaneio. Ele fica chocado ao saber a verdade sobre o homem misterioro – e que ele não passava de um homem normal fazendo seu trabalho. Amélie até tenta se encontrar com Nino, mas no minuto que ela vira para se acalmar, ele desaparece.

Em seguida, ela vai até a casa do pai e coloca de volta o gnomo que havia roubado no mesmo lugar, sugerindo que você pode dar a volta ao mundo e ainda assim voltar para o mesmo lugar, e que o mundo não é tão perigoso quanto achamos.


DESESPERANÇOSA, ela volta para casa

e começa a sonhar como seria a vida ao lado do amado. Para ilustrar, o diretor utiliza o mesmo recurso de quando a atendente do sex shop descreveu Nino. Amélie imagina Nino saindo para comprar fermento para que ela possa fazer sua famosa torta de ameixa. Mas a trilha sonora melancólica, La valse d’Amélie (versão piano), que estávamos escutando, logo é interrompida por um barulho inesperado: a campainha. Nino está batendo na porta. Ela se aproxima e encosta o rosto na porta para tentar ouvir se tem alguém do outro lado. Ele faz o mesmo. Ela não abre a porta, então ele deixa um bilhete escrito “Volto depois” e passa por baixo da porta. Em seguida, ela recebe um telefonema. Escutamos a voz de Raymond dizendo que ela deve ir até o quarto. Lá, Amélie vê sua televisão e velas acesas. Ela liga o aparelho e há uma mensagem do pintor gravada. Ele diz que ela não possui a mesma doença que ele e que pode aguentar os baques da vida. Também afirma que, se ela deixar essa chance passar, seu coração se tornará tão frágil quanto o dele. Movida pelo discurso do pintor, Amélie corre para encontrar Nino. Ele, surpreendentemente, ainda está em sua porta. Os dois não falam nada. O diretor prefere o silêncio, pois esse momento havia sido muito aguardado. Como tudo na vida de Amélie, a cena é muito detalhada e devagar, revelando cada pequeno momento.


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DEPOIS do final feliz dos dois, começamos a observar o de outras personagens, como Hipolito, o escritor que vivia no restaurante. Ele vê uma frase do seu livro escrita em uma parede na rua. Apesar de assutado em um primeiro momento, continua caminhando muito feliz e sente que seu trabalho foi reconhecido. Brododeau está assando um frango e tirando a melhor parte para dar ao seu neto. O pai de Amélie resolveu viajar, depois de finalmente ter entendido a mensagem que a filha quis passar com as fotos do gnomo.

Nesta cena, o diretor tenta nos transmitir a diferença que uma pessoa pode fazer na vida da outra e como as pequenas coisas, muitas vezes, são extremamente importantes. A luz muda sutilmente nas cenas finais da trama, tornando-se mais presente e iluminada, nos transmitindo a sensação de algo novo, mais claro e feliz.

O FILME termina do mesmo jeito que começa: o narrador descreve simultaneamente diversos acontecimentos incluindo vários objetos e pessoas. Ele cita uma máquina de balas funcionando em um parque de diversões, um homem lendo uma revista científica, a temperatura, que registra 24 graus Celsius e, por fim, Amélie e Nino passeando felizes pela cidade na moto.

No final, entendemos que aquela é apenas uma história dentre milhares de outras que existem. . Apesar de Amélie ser singular, ela pertence ao todo, sugerindo que todos nós temos um pouco da personagem em nós mesmos. Nos créditos, o álbum, que é um elemento chave na trama, é usado para mostrar os colaboradores, que aparecem através de imagens rasgadas e coladas – um elemento visual que combina com o restante da trama.


PO U LAIN

CONCLUSÃO Apesar de Le fabuleux destin

d’Amélie Poulain nos fazer absorver muitas informações ao mesmo tempo, em nenhum instante deixamos de notar todos os sentimentos e angústias da protagonista. Isto acontece principalmente pela escolha de movimentos de câmera e planos, mas também pela atuação dos atores, que utilizam expressões caricatas, intensificadas pelos movimentos corporais. A utilização constante do primeiro plano – enquadramento que foca nos rostos das personagens – ajuda bastante a enfatizar as emoções nos diálogos ou nos momentos pensativos solitários da protagonista, dramatizando as cenas. Além disso, a câmera raramente se mantém fixa, mesmo quando o narrador está falando coisas banais do cotidiano. O diretor constantemente procura um plano, ângulo ou movimento de câmera ousado para aquela cena, sugerindo que estamos enxergando pelo olhar peculiar de Amélie. O filme se constrrói a partir do ponto de vista de suas personagens. O diretor tenta reproduzir, através da câmera subjetiva, o que eles enxergam a todo momento. Alguns exemplos: quando Nino observa pelo binóculo no parque, o espectador vê a mesma coisa, também por um binóculo. Quando a câmera mostra o álbum nas mãos de Amélie ou quando vemos o bilhete deixado no metrô, a evidência de algumas palavras sugere que aquele seria o mesmo movimento que os olhos da personagem faziam. Toda a parte visual da trama é de extrema importância para o desenrolar da história, além das referências já citadas, não podemos ignorar a alusão ao trabalho do pintor impressionista Pierre-August Renoir. Seu quadro, Luncheon of

the Boating Party, se relaciona diretamente com a trama e com a personagem, inclusive. Além do pintor brasileiro Juarez Machado, podemos observar algumas semelhanças entre Jeunet e Renoir. O diretor provavelmente se inspirou no pintor para a utilização das cores complementares verde e vermelho. As cenas que mais se assemelham com os quadros do pintor são as cenas que utilizam as variações de verde como fundo, como, por exemplo, na cena em que Amélie está jogando uma pedra no rio ou quando ela está conversando com seu pai no jardim. Nesses dois casos, é perceptível a admiração do diretor pelo trabalho do pintor francês.1 Também é perceptível uma influência do filme Rear Window, de Alfred Hitchcock, no desenrolar da história. Por exemplo, quando a protagonista aparece em um movimento de aproximação da câmera na janela de seu apartamento, vista por uma luneta do apartamento de Raymond. Mas não é a única cena que remete ao filme de Hitchcock. Há outras que utilizam a mesma técnica, com movimentos de câmera bastante parecidos com o do diretor inglês. Le fabuleux destin d’Amélie Poulain é um filme reflexivo, que, apesar de nos apresentar tudo o que acontece, jamais se aproxima do óbvio. A protagonista mostra que, muitas vezes, seus planos complicadíssimos funcionam melhor do que uma conversa sincera – como quando convence o pai a viajar o mundo com as fotos do gnomo. Isso porque ela presta atenção às pessoas ao nosso redor e a pequenos detalhes. São essas informações que determinam o grau de satisfação com que levamos nossas vidas. O filme mostra também que nossos gostos e prazeres comuns, rotineiros, mostram nosso caráter.


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Nota-se um certo tom de crítica do diretor a algumas atitudes do mundo moderno, onde todos estão preocupados consigo mesmo, vivendo em um mundo individualizado, chamado de “realidade”. Amélie Poulain surge literalmente como superheroína, a justiceira fantasiada de Zorro, que surpreendentemente nos faz entender que não é preciso viver em uma fantasia para mudar o mundo, mas sim prestar atenção no próximo, nos detalhes e ajudá-lo sempre que possível. O casal Nino e Amélie, representados pelo azul e vermelho, também são bastante simbólicos. Os dois possuem gostos semelhantes e bizarros, mas que os fazem felizes, enfatizando a importância da autenticidade. Eles também nos remetem à esperança, antes de Nino, a protagonista era mais introspectiva e solitária, mas consegue ultrapassar todos os seus anseios em busca de seu final feliz. O diretor parece conseguir conciliar todas as suas ideias e seu estilo caricato através de sua sensibilidade de criar ambientes que parecem pinturas, por conta de suas cores, cenários, figurinos, luz e planos, que trabalham juntamente com suas personagens. Nessa realidade, amizades improváveis são consolidads, o amor entre duas pessoas é o combustível para uma vida melhor, benfeitorias, mudanças de caráter de personalidades são o ponto central da história. O diretor confirma: o prazer está nas pequenas coisas e na sensação que elas podem causar.

1 ANEXO Quadros do pintor PierreAugust Renoir, página 128


S O FA I

1 Lugar que serviu de inspiração para a diretora quando escreveu o roteiro de Lost in Translation

SOFIA CARMINA COPPOLA, filha do diretor Francis Ford Coppola, nasceu em 14 de maio de 1971, em New York. Foi a primeira diretora norteamericana a ser nomeada ao Oscar na categoria de Melhor Direção por Lost in Translation (2003). Em 1989 graduou-se no St. Helena High School. Depois, estudou no Mills College em Oakland na Califórnia e no California Institute of the Arts.

Atualmente, mora em Paris, na França, com o seu segundo marido, Thomas Mars, cantor da banda francesa Phoenix, e suas duas filhas. O casal se conheceu logo no início da carreira da cineasta, enquanto eles produziam a trilha sonora de The Virgin Suicides. A partir de então, seguem colaborando juntos em quase todos os filmes dela, como Lost in Translation (2003), Marie Antoinette (2006), Somewhere (2010) e The Bling Ring (2013). A diretora, produtora e roteirista nasceu em uma família e círculo de amigos ligados às artes. Cresceu nos estúdios dos filmes de seu pai. Ela é a quarta geração de uma família ligada à sétima arte. Seu bisavô, Agostino, ajudou a criar um sistema que possibilitou os filmes, até então mudos, a ter som. Desde então, a família Coppola não parou de crescer na área cinematográfica. Carmine, seu avô, ganhou um Oscar na categoria de Melhor Trilha Sonora Original por The Godfather: Part II (1974); Sofia é filha de Eleanor Coppola, documentarista e escritora, e de Francis Ford Coppola, que já recebeu cinco prêmios Oscar, sendo eles: Melhor Roteiro Original por Patton (1970), Melhor Roteiro Adaptado por The Godfather (1972) e, por último, Melhor Filme, Melhor Direção e Melhor Roteiro Adaptado por The Godfather: Part II (1974). Seus irmãos são August Floyd Coppola, pai do ator Nicolas Cage, que venceu na categoria Melhor Ator por Leaving Las Vegas (1995); Roman Coppola,

que segue os passos da família como diretor, produtor e roteirista e Gian-Carlo Coppola, pai de Gia Coppola, a mais nova diretora que recebeu ótimas críticas por Palo Alto (2013). O cinema sempre teve um lugar importante em sua vida. Os filmes prediletos dela são The Last Picture Show (1971), de Peter Bogdanovich, Lolita (1962), de Stanley Kubrick, Rumble Fish (1983), de Francis Ford Coppola, Sixteen Candles (1984), de John Hughes. E o longa-metragem que mais a marcou quando adolescente foi Breathless (1960) de Jean-Luc Godard. Sofia dirigiu videoclipes, como This Here Giraffe (1996), de The Flaming Lips; Playground Love (2000), de Air; City Girl (2003), de Kevin Shields; I Just Don’t Know What to Do with Myself (2003), de The White Stripes, recentemente, Chloroform (2013), da banda Phoenix, liderada pelo seu marido. Em Paris, trabalhou com moda e fotografia durante dois anos com o costureiro Karl Lagerfeld e desde então fotografa periodicamente ensaios para revistas de moda, como Vogue, Interview e Allure. O material já foi exposto na galeria Parco, de Tokyo. Criou sua própria linha de roupas, MilkFed, vendida exclusivamente no Japão1. Além disso, também tem participado de várias campanhas publicitárias, foi modelo para a marca Louis Vuitton, ao lado de seu pai, Francis Ford Coppola. Para a mesma marca, criou uma linha de bolsas e sapatos. Trabalhou como fotógrafa para a marca de vestuário Calder. O editorial, inclusive, foi fotografado em seu próprio apartamento, em Nova York. Dirigiu também os comerciais da marca Dior, como o do perfume Miss Dior Cherie (2009); City of Light (2012) e La Vie en Rose (2013), com a atriz Natalie Portman. Outras publicidades dirigidas por


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Copolla: da marca H&M, denominada Marni (2012); da marca Marc Jacobs, para o perfume Daisy (2013), e para a Gap, chamado Mistletoe - Holiday (2014). Para completar, ingressou na televisão com o programa Hi Octane (1994), feito juntamente com sua amiga Zoe Cassavets, no canal Comedy Central e dirigiu e produziu a minissérie de televisão Platinum (2003). Apesar de seu talento inegável, Sofia nem sempre foi aclamada pela crítica. Suas primeiras aparições como atriz fora, em obras de seu pai. São eles The Godfather (1972) e The Godfather: Part II (1974) – no primeiro atua como um bebê masculino e no segundo ainda criança. Mas as críticas severas só aconteceram a partir de sua primeira aparição, quando já era adolescente. Ela teve papeis em Rumble Fish (1983); Peggy Sue Got Married (1986) e The Godfather Part III (1990). No último, atuou como Mary Corleone aos dezenove anos. Na época, houve muita polêmica ao redor da interpretação. Recebeu críticas negativas, sendo chamada de “amadora” e “indevidamente cômica”. O seu primeiro trabalho foi o curta-metragem Bed, Bath, and Beyond em 1996, juntamente com Andrew Durham e Ione Skype; mais tarde, dirigiu um curta de quatorze minutos, Lick the star (1998), que conta a história de um grupo de meninas que ficam deslumbradas com o livro Flowers in the Attic, de W.C Andrews, e desde então, exploram a angústia adolescente, o isolamento e a feminilidade, características que dão origem a suas obsessões. Nota-se nessa época também o começo de alguns vícios estéticos, como o olhar vazio das personagens olhando para a janela, os enquadramentos acompanhados de trilha sonora, o fascínio pelas personagens aéreas e a utilização de banheiras como metáfora de introspecção;

um ano depois, Sofia ingressa de vez no cinema e concretiza sua linguagem como autora em The Virgin Suicides (1999), longa-metragem que também escreveu e dirigiu, liberado através da produtora American Zoetrope, fundada por seu pai. Desde então, não parou de escrever e produzir filmes. Em 2003, veio Lost in Translation, indicado ao Oscar. O filme é baseado em encontros e desencontros da vida, e se passa no universo tecnológico e colorido de Tóquio – mas sempre se mantém a visão estética da diretora, sem mostrar o óbvio da cidade, explorando as belas cores, enquadramentos e fotografias. A história é a respeito de dois americanos que se sentem solitários em um país desconhecido e se conhecem em um hotel. Bob Harris, interpretado por Bill Murray é um ator e viaja para realizar sessões fotográficas publicitárias. Distante, percebe que o relacionamento com sua esposa não está indo bem, não há mais sentimento entre eles. Charlotte, interpretada por Scarlett Johansson, é a esposa de um fotógrafo. Ela também se sente insatisfeita em seu relacionamento e, durante a viagem, o marido só se dedica ao trabalho. Bob e Charlotte cultivam uma relação baseada principalmente na compreensão. Por mais que tenham de intérpretes para falar com os moradores locais, não há como se identificar culturalmente. Portanto, a proximidade cultural entre os dois os aproxima. Em Marie Antoinette, retrata a personagem histórica em um filme de época só que com trilha sonora moderna, usando punk rock e pop, é perceptível que a diretora não pretendia fazer uma reconstituição histórica nem se aprofundar na vida da rainha francesa, mas sim retratar, com belíssima fotografia, os costumes, hábitos e anseios da época. O toque de Copolla aparece no contraste dos ambientes

contemporâneos e rococós: ela insere sua habitual paleta pastel no lugar das cores vibrantes da época. Na narrativa, insere características e costumes atuais, como os hollywoodianos. São metáforas já que, como as adolescentes de hoje, a rainha era obrigada a desempenhar um papel que não era o seu, em uma sociedade na qual a ignorância e superficialidade eram produtos do ambiente. É possível identificar a presença da cultura presente no filme. Mais tarde, dirigiu Somewhere e The Bling Ring, mantendo-se fiel a sua estética e abordando temas como celebridades, angústias, introspecção e personagens femininas. A família Coppola está constantemente colaborando em seus trabalhos. A produtora de seu pai, American Zoetrope, fez parte de todos os seus filmes. Em The Virgin Suicides, o principal produtor é seu pai Francis Coppola. Sua mãe, Eleanor Coppola, dirigiu The Making of Marie Antoinette, e em Somewhere e The Bling Ring, a produção foi feita pelo irmão Roman Coppola. Mas não é uma atividade apenas familiar, a diretora também tem uma equipe de favoritos que trabalham na maioria de seus trabalhos. Quase todos os seus filmes são editados pela mesma montadora, Sarah Flack. Também está frequentemente trabalhando com os diretores de fotografia Harris Savides e Lance Acord. Na trilha sonora, costuma confiar no músico Brian Reitzell ou na banda Phoenix. Já na atuação, a musa da diretora é a famosa atriz Kirsten Dunst, que atuou ainda jovem em The Virgin Suicides e mais tarde em Marie Antoinette. Sofia é sempre autêntica. Apesar de ter o pai como mentor, ela nunca foi uma sombra dele. Pelo contrário, fez questão de cunhar um estilo próprio através das protagonistas, que estão sempre buscando seu lugar e sua essência,

provocando o espectador a fazer o mesmo; enquadramentos que se contrastam e, ao mesmo tempo, se completam; a música que trabalha a favor das cenas; a harmonizaçã das cores suavez, ora mais predominante ora menos. Mas, acima de tudo, Sofia explora o universo feminino. A mulher é seu universo particular e artístico, através do qual ela nos guia usando várias formas de linguagens. Sofia coloca em suas tramas muito do que vive pessoalmente. Todas as suas personagens possuem ligação com o mundo das celebridades e da fama, por exemplo. Em Lost in Translation, Bob é ator e Charlotte é casada com um fotógrafo famoso. Em Somewhere, temos uma visão completa de como seria a vida de uma celebridade, um ator famoso que por algum tempo fica encarregado de cuidar sozinho de sua filha de onze anos. Já em The Bling Ring, a diretora conta uma história, baseada em fatos reais, de uma gangue, formada por adolescentes ricos que moravam em Beverly Hills e furtavam várias casas de celebridades famosas, como Paris Hilton e Miranda Kerr. É uma tarefa difícil se encantar por apenas um filme de Sofia. A cineasta é uma artista completa, que possui uma linha de raciocínio muito pessoal em todos seus trabalhos, sendo eles audiovisuais ou não. Pode-se reconhecer seu estilo desde um comercial de perfume – com personagens buscando sua essência –, passando por fotografias publicitárias – nas quais capta com delicadeza os olhares vagos – e até em bolsas e sapatos – onde abusa dos tons pastel. É assim que Sofia se torna uma marca registrada: ela elaborou um conjunto de ideias e técnicas que não funcionam apenas como apoio, mas como narrativa em si. Sofia é inquestionavelmente autoral.


TH E I G I V R N

SOFIA COPPOLA possui um estilo único. E por meio de histórias interessantes do ponto de vista narrativo e também estético, seu estilo conquistou não apenas os espectadores atentos e veteranos, mas o grande público. Em seus filmes, sugere um final aberto, rompendo com o padrão narrativo de histórias com começo, meio e fim. Sua busca mostra o desejo feminino pelo prazer e liberdade.

O primeiro longa-metragem da diretora, The Virgin Suicides, se passa durante a década de setenta e retrata a vida de uma família americana com cinco filhas adolescentes, Therese, Mary, Bonnie, Lux e Cecília Lisbon. Antes de entrarmos mais a fundo na história, baseada no livro de Jeffrey Eugenides, vale discorrer um pouco sobre a década que o filme está inserido. Os anos setenta foram essenciais para o conhecimento humano, mas principalmente para as mulheres, que, nesta década, fizeram diversas manifestações à procura de mais liberdade de expressão. O movimento hippie, surgido então, pregava uma revolução individual de costumes, cujas palavras de ordem eram “é proibido proibir”, “aqui e agora” e a mais famosa “paz e amor”, mobilizando multidões de jovens em diferentes partes do mundo, mas com maior força nos Estados Unidos. Diante de uma década com aura hedonista, buscando prazeres momentâneos que nunca haviam sido explorados e feitos antes, fica claro o impacto de novos ritmos musicais – pop, punk e rock – no cotidiano, desabrochando a cultura diante daquela sociedade, que preenchia o tempo com informações sobre música, cinema, teatro e literatura. Surgem então bandas e músicos lendários, como Jimmy Hendrix, Janis

Joplin, Bob Dylan, Led Zeppellin e Rolling Stones. Estes ajudavam a formar opiniões sobre uma nova conduta. Nesse período também se popularizou o consumo de drogas. As substâncias deixaram de ser de alcance apenas dos intelectuais e artistas para atrair também adolescentes. A preferência era pelas mais pesadas, como cocaína e heroína. Mais tarde, na mesma década, aparecem as drogas sintéticas. Esta mesma geração legalizou e popularizou o divórcio, descobriu o anticoncepcional e, consequentemente, a liberdade sexual, quebrando o tabu da virgindade feminina. A mulher começou a trabalhar e tornou-se mais independente. Um dos maiores marcos do período são os populares festivais de rock, como o mundialmente conhecido Woodstock, ocorrido em 1969. No filme, o início retrata a realidade americana na época: uma rua calma de uma cidade de interior. Belas casas, com jardins bem cuidados e ruas arborizadas representando o modelo de família americana. Há uma tranquilidade presente no cenário, filmada por um plano geral, dando destaque para ambientação do local. A câmera para diante de uma das casas. Nela reside os Lisbon. A história é narrada por um grupo de amigos adolescentes que não conseguem tirar as cinco irmãs da cabeça, dando um toque de mistério e subjetividade para a trama, – que nunca contada pelo ponto de vista das garotas. As irmãs, quando surgem, tem posições etéreas, como se não se importassem com nada. Compartilhamos da fixação dos jovens pelas meninas, pois elas estão


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sempre tranquilas e misteriosas: sorriem, mas seus olhares não se fixam em nada, como se elas fossem o centro de tudo e não prestassem atenção em mais nada. Separam-se claramente os dois grupos: de garotos conservadores, que beiram o machismo e o estão entediados e as garotas que buscam evoluir, usam a sensualidade, querem se relacionar livremente com os outros. Lux, a mais ativa, é defensora árdua de suas próprias opiniões, é observadora e analisa seus anseios profundamente. Cecília, a primeira a se suicidar, deixa evidente diversas vezes que as coisas não andam como gostaria. A filha mais nova é depressiva, não se encaixa em lugar nenhum. Os pais, parecem não querer enxergar o que está debaixo de seus narizes. Não veem que a menina usa o mesmo vestido todos os dias, que gostava de ficar sozinha, não dividia seu quarto e tinha um recado na porta de seu quarto que dizia “eu preciso de amigos”. Os pais levavam tudo como se fosse normal. O filme nos remete ao universo religioso, muitos crucifixos estão espalhados pela casa e até pendurado no colar da mãe, denunciando ser uma família religiosa ortodoxa. A filha mais nova aparece com a figura religiosa de Virgem Maria em múltiplos lugares, possivelmente sugerindo uma crítica ao perfeccionismo que a mãe almejava para suas filhas, impondo uma imagem santa, sem desejos e pura. A todo momento há uma sensualidade delicada, natural e ingênua permeando suas personalidades. Em contrapartida, os pais, Ronald Lisbon, o professor de matemática da escola,

que finge viver em outra realidade, e a matriarca, Sara Lisbon, uma dona de casa extremamente inflexível e religiosa, tentam criar suas filhas de maneira ditatorial. Sendo assim, infelizmente, não conseguem aceitar o crescimento natural das meninas e, em vez de serem seus protetores, tornam-se seus rivais. Sofia levanta diversas questões traumáticas de um modo nada apelativo, mas reflexivo, com um retrato agridoce de uma juventude sufocada por escolhas que não são suas. Para a década, o adolescente era um personagem novo na composição familiar. Até então, era desconsiderado o que ele pensava e fazia. Seus desejos eram invisíveis e, por isso, eles nem sempre são ouvidos. As irmãs, como já indica o título, acabam se suicidando, mas como todo filme de Sofia Coppola, nunca sabemos as respostas das perguntas. Em Lost in Translation, na cena final, a personagem Charlotte se despede e fala algo no ouvido de Harris que nunca saberemos. Já em Marie Antoinette, não entendemos porque Louis XVI demorou tanto para aproximar-se de sua esposa. A atenção está focada nos pequenos detalhes, na tentativa de compreender as personagens que beiram a introspecção. Os personagens expõe a inércia da vida, a solidão, a diferença que o outro pode ter em nossas vidas. É melancólico, é poético, é sensual, porque a adolescência remete a tudo isso, é uma efervescência de sentimentos prontos para serem descobertos. O cuidado estético das cenas são essenciais para o desenrolar da história nos filmes da diretora norte-americana.


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LOGO NA PRIMEIRA CENA um plano

AS PRÓXIMAS CENAS, contrastam com

americano com câmera fixa. Lux observa o local com cinismo. Ela toma o picolé de maneira tranquila enquanto observa os arredores, mas seu olhar é agressivo e intimidador. Suas ações também escorregam para esse caminho quando ela coloca o picolé todo na boca em uma única mordida. É a metáfora de sua própria identidade e da relação com aquele local.

a figura da personagem Lux, mostrando o estilo de vida americano da época: vizinhos cuidando de seus jardins ou levando seus animais de estimação para passear em um típico dia de sol. Apenas percebemos que alguma coisa de errado está acontecendo quando ouvimos a belíssima trilha sonora do filme, que começa tranquila e termina com um som de sirene. Antes de revelar o que aconteceu, Sofia traz um novo recurso e que viria a ser uma técnica reconhecida em seus trabalhos posteriores. Estamos observando a calmaria da cidade quando de repente, acontece um corte brusco de imagem e trilha sonora impactando o espectador, e sugerindo que as coisas acontecem rápido demais, que não somos capazes de controlar tudo ao nosso redor.


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COM A IMAGEM DA PENTEADEIRA, Sofia faz uma metáfora ao estado de espírito de Cecília, extramente bagunçado e perdido. Na próxima cena, ela teria acabado de tentar o suicídio. A diretora também enfatiza um dos grandes assuntos abordados – o dilema de ser uma menina adolescente – através de alguns símbolos, como adesivos e estampas florais, que evidenciam um perfil infantil, contrastando com o lado mulher, presente nos batons, rímeis e no curvéx. A cena parece ser banal, mas é repleta de significados, por exemplo o crucifixo pendurado no perfume, representando a presença da religião em sua família.

A tentativa de suicídio não poderia ser mais autoral. A utilização da banheira é muito comum nos filmes de Sofia, referindo-se a um santuário reflexivo de suas personagens, como em Marie Antoinette (2006), juntamente com o olhar fixo e perdido, e a cor suave do sangue misturado com a água, formando um rosa delicado. Uma mudança ocorre entre as cenas da vizinhança para as de dentro da casa: é nítido o contraste dos tons quentes com os tons frios, como se fossem diferentes realidades. O que está acontecendo fora da casa é diferente do que está acontecendo dentro.

DO INÍCIO AO FIM, o filme nunca foca na dramatização dos acontecimentos. Não nos mostra Cecília se cortando, o sangue por toda parte, os parentes chorando e etc. A visão é mais superficial. Percebemos isso pelo fato de que nada é resolvido. Não sabemos porquê a garota queria se suicidar. Em alguns relances desvendamos pequenas características da família. Na cena ao lado, por exemplo, Cecília deixa cair de sua mão a figura religiosa de Virgem Maria, filmada como se fosse causadora de seu sofrimento. CECÍLIA sobreviveu e está de repouso no hospital quando é questionada sobre seus motivos para tentar o suicídio. Teoricamente, ela seria muito nova para saber das amarguras da vida. Pela sua resposta, a cena torna-se uma das mais marcantes. Ela questiona o existencialismo e confirma aquilo mostrado em sua penteadeira.


DANDO CONTINUIDADE com um travelling horizontal mostrando as casas, percebemos uma mudança sutil para um ângulo contra-plongée enfatizando as árvores e o céu. Esse ângulo mostra quando a câmera está enquadrada abaixo de seu objeto filmado, sendo visto, portanto, em um ângulo inferior, transmitindo a ideia de que somos inferiores àquela visão. Sendo assim, Sofia já nos adianta que aquele é um lugar desejável e intocável, mostrando a sutileza das folhas que balançam com o vento e o céu, esse é o lugar que as meninas observam e não embaixo, ou seja, vivem sonhando, nas nuvens. USANDO A TÉCNICA DE SOBREPOSIÇÃO,

em que uma imagem surge ou desaparece sobre a outra, recurso bastante explorado nesse longa, o nome do filme aparece por diversos letterings – uma combinação específica de letras feitas à mão para uma única utilização e finalidade –, e desenhos, parecendo anotações em cadernos de meninas, relacionando a diferença, ao mesmo tempo, a semelhança entre elas. O título é acompanhado por uma trilha sonora pop, psicodélica e sombria, da banda de música eletrônica francesa, Air. DEPOIS DO TÍTULO aparecer no céu, uma imagem fantasmagórica de Lux surge sobreposta nas nuvens de um jeito meigo, ao mesmo tempo, sedutor. Ela pisca para o espectador como se soubesse o que está acontecendo, confirmando as imagens anteriores.

OS MENINOS começam a apresentar as

garotas em ordem crescente. Elas têm apenas um ano de diferença entre uma e outra. Mais uma vez, observamos o papel da tipografia, desta vez usada para identificar as meninas. Há destaque para o nome de Lux, cuja tipografia é menos ornamental e mais energética do que das outras. Enquanto isso, escutamos um som de rock, que contrasta com a ambientação, mostrando o impacto das garotas no local.


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EM CONTRAPARTIDA, nesta cena temos a visão de outras pessoas da vizinhança. Descobrimos como uma cidade pequena pode ser nada tranquila, mas fofoqueira e cruel. Todos falavam da tentativa de homicídio de Lux, criticavam a criação dos pais e a relação com as meninas. Interessante como Sofia filma a visão de uma grade, diante daquela família, referindo-se ao afastamento das pessoas. DEPOIS da tentativa de suicídio de Cecília,

o psicólogo da escola consegue convencer os pais para que suas filhas tenham mais contato social, assim a família convida um garoto da escola para jantar. Então começamos a entender um pouco mais as personagens e suas vidas. As meninas estão desesperadas com a presença inédita de um menino em casa. Elas querem agradá-lo. Lux, a mais rebelde, vai além e começa a interagir com ele, fazendo piadas e não ligando para a ética de seus pais, enquanto Cecília parece não ligar tanto. Nota-se que, apesar de Lux ter uma personalidade mais predominante do que as outras irmãs, seus desejos são realizados escondidos dos pais.

O MENINO pede para ir ao banheiro, mas

para no banheiro de Cecília. A imagem da penteadeira vai além, nos revelando mais sobre a personagem. A cena é filmada em um travelling de aproximação. Logo na porta, o espectador percebe que está entrando em um embiente completamente diferente, visto sob o ponto de vista do menino. Na porta, vemos bilhetes típicos de um adolescente, como “fique longe” e “não entre”, mas, o mais intrigante, é a presença de duas imagens da figura religiosa Virgem Maria e até um bilhete escrito “I need friends”, em português, “eu preciso de amigos”. Em um plano panorâmico horizontal, entrando no quarto, nota-se muita coisa jogada e bagunçada, a desordem e o caos abafados por um ambiente infantil, mas, ao mesmo tempo, feminino. No close mais um crucifixo, um símbolo de zodíaco de virgem e o contraste de um ursinho de pelúcia com um armário de absorventes. A trilha sonora tem um tom de suspense delicado, sublinha a descoberta desse novo mundo que o menino começou a enxergar.


DURANTE uma festa, fica claro o contraste das duas filhas mais novas. Enquanto Cecília é mais tímida e depressiva, tentando esconder suas cicatrizes com pulseiras de plástico, Lux fica feliz pela festa e tenta cada vez mais se aproximar dos meninos, sendo mais direta, confiante e intimidadora.

Elas nos levam ao universo que estamos entrando, o da descoberta do desejo, das brincadeiras com pessoas diferentes – como um menino que tem síndrome de down – e o início das aproximações dos meninos com as meninas, um contato social até então desconhecido. Cecília é a mais introspectiva, permanece quieta em um canto, desconfortável com aquela situação e procura não conversar com ninguém.

NA CENA em que Cecília consegue se suicidar, a reação da mãe não podia ser mais protetora. Quando as filhas vão ver o que aconteceu, a mãe as trata como crianças e rapidamente manda elas se virarem, não deixando que vejam o corpo da irmã.

Com um plano mais aberto, a cena torna-se patética, mostrando o pai perdido, sem saber o que fazer com a filha morta em seus braços, reforçando as atitudes da mãe, que está segurando de costas as garotas. A luz é mais dura, com menos graduação do que a diretora costuma utilizar, é importante para notarmos a dramaticidade da cena. A câmera mantém-se fixa por alguns segundos e depois acaba com um fadeout, referindo-se ao fechamento daquele capítulo. A DESORDEM toma conta da casa, roupas jogadas

nas escadas, pratos sujos, o urso de pelúcia que aparece inúmeras vezes entre as garotas, sugerindo que elas ainda são crianças. O quarto da mãe, por sua vez, está intacto, dando a impressão de que, apesar de tudo estar caótico, ela ainda mantém seus ideais. O tamanho do espelho no quarto e como a diretora montou o enquadramento é de extrema importância, pois o espelho reflete o lado do quarto do pai, que é idêntico ao da mãe, como se os dois fossem uma pessoa só, ou como se o pai fosse um reflexo da mãe.


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ATRAVÉS desses símbolos, a diretora busca

traduzir o que estava acontecendo com a família. O uso do plano detalhe, é cada vez mais comum e vastamente utilizado em trabalhos posteriores, como nos exemplos abaixo:

LEGENDA Imagens 1, 4 e 5 Lost in Translation Imagens 2 e 3 The Bling Ring Imagens 6, 7, 8 e 9 Marie Antoinette


OS GAROTOS apaixonados guardavam tudo o que conseguiam das meninas, mas o ponto alto foi quando encontraram um diário de Cecília. Ali entenderam um pouco como ela via o mundo e como ela achava que era ser uma adolescente: algo misterioso e ao mesmo tempo fascinante. Saber seus pensamentos, suas angústias, a busca pelo seu “eu”, que muitas vezes era apontado como uma sonhadora, alguém desligado da realidade.

EM UMA SOBREPOSIÇÃO da página de seu diário de um unicórnio, enxergamos que Cecília escreveu “Claude Monet (1840 – 1926)”, o nome de um dos maiores pintores impressionistas da história da arte, juntamente com sua data de nascimento e morte.

Em seus quadros, Monet costumava pintar figuras femininas vagando em ambientes serenos e esteticamente belos. As figuras eram sempre muito delicadas e femininas. As imagens eram raramente relevadas, mas mantinham traço difuso por conta do estilo do artista. Se olharmos para os quadros, não há como negar que o pintor foi utilizado como uma fonte de inspiração. A semelhança das irmãs com as moças dos quadros são fortes, elas parecem serenas e misteriosas, as cores também se assemelham, com paletas suaves.

Através da imaginação dos garotos, nos mostrada de forma lúdica, sensível e levemente sensual, utilizando de fusões – técnica usada quando uma imagem vai suavemente sumindo e sobre ela aparece gradualmente outra imagem – em um ambiente onírico, novamente com a presença de nuvens e destaque para os detalhes, a dona do diário relata histórias românticas e suas descobertas em letra caligráfica infantil e em páginas decoradas com adesivos de arco-íris. A trilha sonora sugere o estado de alegria das personagens, com uma perspectiva mais otimista do cotidiano.

LEGENDA Quadro 1 Woman with a Parasol, Quadro 2 Cliff Walk at Pourville


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AINDA sobre o diário, os garotos ressaltam que Cecília escrevia diversas páginas sobre a árvore salgueiro, mas não dão muita atenção para isso. Na verdade, a árvore possui um papel central na história, ela é uma metáfora sobre a vida das garotas e até daquela sociedade.

O salgueiro se destaca pelo seu simbolismo. É uma árvore frágil, seu tronco racha com o tempo, fazendo sua expectativa de vida girar em torno dos 20 – 25 anos. Assim como as irmãs, morre cedo demais. Também chamada de “chorão”, nome que se dá ao aspecto melancólico que essa árvore tem, suas longas folhas verdes e serrilhadas podem crescer tanto que chegam a tocar o solo, parecendo que a árvore está sendo derramada, como lágrimas. Também é uma árvore muito comum em cemitérios. Além de toda a proximidade da árvore com o estado melancólico de Cecília, a espécie está muito ligada à trama por ser dióica, ou seja, ela possui sexo, isso significa que existem árvores femininas e árvores masculinas. A diretora tenta evidenciar que começa a existir uma diferenciação entre homens e mulheres, o que tem muito a ver com a independência feminina, que estava ocorrendo na época. Como não se bastasse tamanha afinidade com a história, existem lendas que dizem que a árvore salgueiro ajudou a Virgem Maria e o menino Jesus usando seus ramos para escondê-los em uma fuga. Mais uma vez, a relação é com Cecília, que tinha fixação pela figura religiosa da Virgem Maria.

DEPOIS, Cecília volta a aparecer em alucinações do pai e de dois meninos, sugerindo que aquilo ainda não acabou, suas angústias permaneciam presentes. Em uma das aparições, a garota está sentada, justamente na árvore que tanto gostava.


O PLANO DETALHE começa a ficar mais

É INTRODUZIDO um personagem importante, que tira um pouco o peso do falecimento de Cecília.

presente quando as garotas, principalmente Lux, começam a ter contato com garotos na escola. Apesar de alguns planos terem apelo sensual, rapidamente ficamos confusos com a abordagem sutil, mostrando sorrisos delicados e olhares misteriosos.

Trip Fontaine, um garoto que consegue tudo o que quer pela sua aparência, traduz melhor alguns aspectos do movimento hippie. Suas vestimentas, o cabelo e até o modo de falar são característicos. Ele nos é apresentado em conjunto com a música Magic Man, da banda estadunidense Heart: “Cold, late night so long ago, when I was not so strong you know. A pretty man came to me, I never seen eyes so blue. You know, I could not run away it seemed we’d seen each other in a dream. Seemed like he knew me. He looked right through me. “Come on home, girl”, he said with a smile, “you don’t have to love me yet, let’s get high awhile”, but try to understand, he’s a magic man.” 1

1 “Numa noite fria, há tempos atrás, e eu não era lá grande coisa! Um belo homem veio a mim, nunca tinha visto olhos tão azuis. Não podia correr aparentemente. Vimos um ao outro num sonho. Parecia que ele me conhecia. Ele olhou diretamente para mim. “Vamos lá em casa”, ele me disse com um sorriso. “Você ainda não precisa me amar”, vamos só curtir um pouco. Mas tente entender, ele é um homem mágico, mãe.”

Desta vez, a trilha sonora pop/rock, além de ajudar na identificação da personagem, diz exatamente o que irá acontecer posteriormente entre Trip e Lux. Ele conseguia todas as garotas do colégio, exceto Lux, que tentou ignorá-lo por um tempo, mas depois acabou cedendo. A trilha sonora ainda parece mandar um recado para a mãe no final, “mas tente entender”, como se fosse uma resposta para Sara, que tinha uma postura muito resistente ao amadurecimento de suas filhas.


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QUANDO Trip descobre que Lux era a única

PARA MOSTRAR o que irá acontecer com

menina que não conseguiria conquistar, percebemos a diferença de abordagem das famílias e como os meninos são tratados diferentes das meninas. O pai de Trip chega a lhe oferecer uma bebida alcoólica para animá-lo. Já a família de Lux não faz ideia de seus sentimentos e desejos.

Lux e Trip, o roteiro utiliza-se da narração de um vídeo transmitido na escola sobre a formação de um furacão.

Na ambientação, observamos uma casa mais moderna e hippie, com diversos apanhadores de sonhos, estampas, flores, cadeiras e até utensílios de cozinha coloridos, mais condizente com a época, mostrando que estamos diante de uma família mais “liberal”. Na trilha sonora, escutamos uma música melancólica dizendo “Como se pode consertar um coração partido?”, sugerindo o que está sendo transmitido ao espectador. O corte seco interrompe a música e o momento, dando a entender que Trip superou a situação rapidamente.

O furacão, denominado como a maior tempestade da natureza, ocorre quando massas de ar de alta e baixa pressão entram em contato. Nesta cena, Lux e Trip representam estas massas, e durante o vídeo eles percebem que, para este fenômeno acontecer, é necessário que haja uma interação entre as massas, assim como é necessário que Lux ou Trip demonstrem interesse pelo outro. Quando isto acontece, ao mesmo tempo em que ouvimos as massas entrando em contato, formando o furação, assistimos as mãos de Lux e Trip se tocando em um close. A trilha sonora lembra o filme de Stanley Kubrick em 2001: A Space Odyssey, quando escutamos uma mistura de suspense e tensão, começando devagar e depois ampliando a intensidade, conforme a tensão dos dois, como se algo muito importante estivesse por vir, uma descoberta nova ou uma reviravolta na história.


NA PRÓXIMA CENA, enxergamos com mais nitidez o quanto a mãe tem medo de que aconteça alguma relação entre os dois. Sara, como sempre, quer proteger demais suas filhas e senta no meio dos dois jovens, quase de costas para o garoto, não deixando ele olhar diretamente para Lux. Esse enquadramento, composto por um plano americano, revela como a mãe é o centro de tudo. Enquanto o pai, em um plano geral, esta sentado no sofá, meio afastado da família, totalmente desinteressado.

QUANDO as irmãs estão saindo para o seu primeiro baile acompanhadas de garotos, a diretora nos pega de surpresa com um detalhe. Através de um íris in e íris out1, mostra que Lux escreveu em sua calcinha o nome Trip, atitude que já havia tido antigamente com outro menino que gostava, mostrando um ato de rebeldia, como se não tivesse aprendido a lição, pois sua mãe havia apagado o nome das calcinhas da outra vez.

Tecnicamente, essa parte assemelha-se aos filmes de Jean-Pierre Jeunet, como, por exemplo, na imagem ao lado, quando o diretor mostra o coração da personagem Amélie batendo, em Le fabuleux destin d’Amélie Poulain (2001).

A televisão serve como metáfora para nos situar naquele silêncio desagradável, apesar de escutarmos uma música baixa ao fundo, com teor primitivo e selvagem, ilustrando o programa sobre leões que está passando. A música, combinada com aquela situação, cria uma cena cômica. Nesse caso, os leões representam a mãe de Lux, tentando protegê-la como uma leoa de outros animais intrusos, referindo-se a Trip.

Máscara circular que se abre e depois se fecha, fazendo aparecer e desaparecer uma imagem

1


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ATRAVÉS de uma visão panorâmica de

planos fechados e enquadramentos detalhados, percebe-se que as garotas sentem-se mais livres e claramente mais felizes, pela primeira vez parecem estar realmente se divertindo. Este momento é o auge de autenticidade das personagens, sugerindo uma sensação de primeiridade, que irá resultar em uma queda inevitável com a morte simultânea das irmãs. A relação do signo com seu objeto (aquilo a que o signo se refere) dá origem ao ícone o qual, ao se apresentar na primeiridade, “é aquilo que tem frescor, originalidade, sendo espontâneo e livre, enfim, algo de natureza monádica, o ícone parece preencher muitas das condições do signo estético” (SANTAELLA, 2000, p. 177).

LUX acorda meio desnorteada no gramado da escola, e a câmera primeiramente foca no seu rosto olhando para baixo, com uma expressão triste, sugerindo o interior da personagem, mas depois rapidamente, em um ângulo plongée – visto de cima –, juntamente com um plano geral, mostra o quão frágil, pequena e sozinha aquela personagem está, seu exterior. A predominância dos tons azulados, por ser uma cor fria, reforçam a sensação melancólica. Mais tarde, a garota pega um táxi para voltar para casa e Sofia introduz mais um elemento corriqueiro em seus filmes, as janelas que acompanham as personagens, sempre em reflexão, com o olhar vago buscando uma resposta.

Ela acaba ultrapassando os limites das regras da família. A mãe conservadora não a entende e nem quer entender, não vê as filhas como mulheres, e ainda busca a santidade. Os planos e as cores nessas cenas fazem todo o trabalho e dizem muito.


DEPOIS do acontecimento, Sara as isola completamente. O pouco de tempo que as garotas tinham sozinhas foi tirado. Elas não podiam ir sozinhas para a escola nem sair no jardim. Além disso, a mãe faz com que Lux destrua todos seus discos de rock, sugerindo que as canções a influenciava negativamente.

Quando observamos as garotas pressas, percebese que a diretora resgatou um recurso que já havia usado no início do filme: a utilização das cores quentes, principalmente o amarelo com sombras duras. Isso mostra o quão vivo é fora, enquanto dentro é frio, como mostram as cores frias.

AS GAROTAS viviam em uma visão distorcida da mãe, quase mortas, sem contato com a realidade ou com outras pessoas. Sonhavam através de catálogos de moda e de viagem, imaginando como seria viver livremente.

A cena que mostra Lux mexendo em um pequeno aquário ilustra como a própria personagem está se sentindo, presa naquele espaço mínimo, onde já cansou de permanecer na superfície e agora deve atingir o fundo, buscar algo mais profundo e real. Em seguida, repete-se o olhar vazio olhando para janela.


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A CENA que mostra o contato entre os jovens tem a tela dividida ao meio. Eles ligam para elas, que atendem. É quando começa Hello It’s Me, do cantor Todd Rundgren, que diz: “Hello, it’s me, I thought about us for a long time” 1. Rapidamente, a música é interrompida, pois os garotos não têm resposta e desligam.

Minutos depois, é a vez delas ligarem e a canção Alone Again (Naturally), do cantor Gilbert O’Sullivan, diz “To think that only yesterday, I was cheerful, bright and gay, looking forward to well wouldn’t do, the role I was about to play.(…) I truly am indeed alone again, naturally.” 2 A partir de então, a conversa começa a se desenrolar, apoiando-se em músicas marcantes dos anos sessenta. A trilha sonora acaba em So Far Away de Carole King, com o trecho: “But you’re so far away. Doesn’t anybody stay in one place anymore? It would be so fine to see your face at my door, doesn’t help to know you’re so far away.” 3

“Olá, sou eu, estive pensando em nós por um longo tempo.” 1

“Pensar que ontem mesmo, eu estava contente, radiante e alegre, louco pra que chegasse o dia, mas quem não estaria? O papel que eu estava pra fazer. (...) Eu estou mesmo, sozinho outra vez, naturalmente.” 2

“Mas você está tão distante, será que ninguém fica mais em um lugar? Seria ótimo ver seu rosto em minha porta, de nada ajuda saber que você está tão distante.” 3

Em uma tentativa de contato com a realidade, as irmãs conseguem se comunicar por telefone com o grupo de garotos. Em vez de encenar uma conversa típica, as personagens se comunicam através das letras das músicas, que obviamente sugerem o que elas gostariam de falar. Lembrando que a música é um recurso desde o começo do filme: ela fortalece a mensagem e a opinião dos adolescentes. Só as músicas compreendem os jovens.

CHEGANDO AO FINAL, desta vez para mostrar a imaginação dos rapazes, a diretora não caminha pelas sobreposições lúdicas, mas sim por colagens fotográficas. Brincando com o fato delas pedirem catálogos de viagens por correio, as garotas terminam felizes com os meninos narradores. Eles dão a volta ao mundo, vivendo juntos uma vida sem barreiras.

O desfecho acontece com a mãe narrando: “Nenhuma de minhas filhas careceu de amor. Havia muito amor na nossa casa... Nunca entendi o motivo...”. Os Lisbon resolvem mudar-se daquela casa e a trama segue contando sobre a degradação do bairro, que começou principalmente por conta dos fungos nas árvores – desde o início, eram removidas pouco a pouco. No fim, o ambiente é irreconhecível.


S I U E CI D S

CONCLUSÃO Em The Virgin Suicides é

perceptível que o erotismo é um dos temas principais, motivado pela a obsessão de um grupo de adolescentes por cinco irmãs. Do ponto de vista dos rapazes, que conduzem o relato, as mulheres são idealizadas, aparecem como inatingíveis. As irmãs Lisbon quase não falam, elas fazem o papel do visual e não do verbal. Assim, a diretora sugere que, assim como na época, descobria-se a voz feminina, permitia-se que a mulher começasse a falar. Os filmes da diretora norte-americana são contemporâneos e buscam explorar diferentes formas de expressão através de sua estética. Quando separamos “cinema clássico” 1 de “cinema contemporâneo” 2, percebe-se que o conteúdo artístico aumenta, possibilitando novos experimentos, além do que enxergamos. No regime representativo, o trabalho da arte é pensado a partir do modelo da forma ativa que se impõe à matéria inerte para submetê-la aos fins da representação. No regime estético, essa ideia da imposição voluntária de uma forma a uma matéria se vê recusada. O poder da obra se identificará adiante com uma identidade de contrários: identidade entre o ativo e o passivo, pensamento e não pensamento, o intencional e o “não intencional” (RANCIÉRE, 2005a, p. 140). Explorando a fragmentação do filme, notamos que Sofia utiliza algumas técnicas para evidenciar a imaginação. As elipses, por exemplo, são usadas como recurso para transpor a narrativa mais à frente ou retrocedê-la, como quando um narrador está conversando com Trip Fontaine mais velho. As diversas fusões parecemmais com um clipe musical do que um filme, provocando

no espectador uma possível sensação de descontinuidade, assim como quando, no início do filme, não sabemos quem são as personagens e aparece uma imagem de Lux no céu. Portanto, perde-se o sentido e a noção de tempo e realidade. Não sabemos quando é o início ou o fim da história, tampouco os motivos que a levam pelo caminho escolhido. Analisando a fotografia e as câmeras, começamos com a câmera subjetiva, andando junto com a trilha sonora. Nada é mostrado por acaso em cada um de seus planos. Isto acontece em todos os filmes de Sofia. Ela mostra exímio bom gosto pela música pop/rock e alternativa – nesse caso, compostas principalmente pela banda Air. Outro recurso que nos causa estranhamento é o corte seco sem que a cena tenha terminado. O corte seco é bastante utilizado em diversos filmes e por diversos diretores, mas apenas Sofia conseguiu diferenciar algo tão comum, em algo diferente. Normalmente, o corte seco é utilizado apenas para mudar de uma cena para outra, como, por exemplo, mudar da cena em que Lux está pensativa no quarto para a cena em que as irmãs estão ligando para os garotos. Com esse corte seco, percebemos somente que o tempo passou, mas quando Sofia interrompe uma cena inesperadamente, como, por exemplo, na cena em que mostra e vizinhança e, depois, Cecília na banheira, ela constrói um outro sentido para o corte seco, sugerindo que a vida é imprevisível. Em vez de cortar uma cena quando a ação termina, a diretora interrompe esta ação e já parte para a próxima cena e segue sucessivamente, construindo uma metáfora e transmitindo uma sensação de ruptura, novamente trazendo a subjetividade para o espectador.


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Retomando a importância da trilha sonora, vale ressaltar o porquê da escolha dos anos setenta para retratar aquela realidade. A diretora nos mostra a todo momento a semelhança da época com o autoconhecimento que aborda em seus filmes. Em diversas cenas aqui tratadas, percebe-se que os jovens eram facilmente levados pelas letras das músicas. Aqueles novos ritmos transformavam-se em uma força maior, que os empurravam para frente, sugerindo que eles não estavam sozinhos. Nota-se três usos constantes de câmeras: a câmera fixa juntamente com planos fechados, normalmente evidenciando os detalhes, tornando o enquadramento inovador; o travelling com planos mais abertos, mostrando o ambiente, o dia-a-dia e o quão insignificante algo ou alguém pode ser; e o travelling circular, girando em torno de uma personagem em reflexão, transmitindo ao espectador a sensação de solidão e tristeza. Sofia também brinca com os contrastes das câmeras objetivas e subjetivas. Às vezes, mostra para o espectador o que está acontecendo e com o passar do tempo, usando a câmera de maneira subjetiva, seguindo o ponto de vista do narrador e seus movimentos. Os tons pastel não passam desapercebidos em seus filmes. Fica evidente que, em uma época de tons vibrantes, ela desafia o lugar comum – do chocante e do mix de estampas – para colocar seu ponto de vista e sua estética. Normalmente, os tons vibrantes e marcantes e as cores complementares são utilizados para realçar o diálogo e a narrativa de um filme. Almodóvar, por exemplo, utiliza esse recurso. No entanto, neste filme, ela vai contra a regra e não usa as cores para realçar um sentimento ou tampouco

esmaecer, ou seja, não quer transmitir a sensação de algo mórbido, sem cor, mas sim de algo delicado e feminino, focando sempre na narrativa. Nota-se nas roupas das irmãs e também em seus quartos uma predominância da cor branca, essa cor possui diferentes significados em diversas culturas, mas nesse caso, tratando-se de uma família extremamente católica, sugere a delicadeza e a pureza que a mãe desejava em suas filhas. O uso excessivo de tons rosas, amarelos e azuis claros confirmam essa ingenuidade e inocência que a mãe almejava. Observamos, além dos tons pastel, a presença de uma fotografia amarelada, como uma foto antiga, ressaltando a época em que a história está inserida. O longa, é uma primeira exploração que revela gostos e escolhas bem definidos da diretora. Suas protagonistas estão em constante busca de seu próprio ser, de descobrir-se como ser humano e como mulher, querendo romper com a solidão que as cerca. No processo, elas transmitem as sensações de primeiridade e de descoberta, mas sem expor um ponto de vista único ou um final óbvio. Consciência em primeiridade é qualidade de sentimento e, por isso mesmo, é primeira, ou seja, a primeira apreensão das coisas, que para nós aparecem, já é tradução, finíssima película de mediação entre nós e os fenômenos. Qualidade de sentir é o modo mais imediato, mas já imperceptivelmente medializado de nosso estar no mundo. Sentimento é, pois, um quase-signo do mundo: nossa primeira forma rudimentar, vaga, imprecisa e indeterminada de predicação das coisas. (SANTAELLA, Lucia. O que é Semiótica.)

Sofia sugere que não importa o ponto de chegada, mas o meio que percorremos até lá. Isto é, não interessa o que queremos, mas sim como vamos alcançar. O mais intrigante e fascinante é que nós nunca entenderemos o que se passa pela cabeça de suas personagens, pois em momento algum elas deixam evidentes seus pensamentos, não falam o que sentem ou desejam. Resta a nós deduzir através de suas expressões e atitudes, juntamente com o uso da câmera subjetiva, da trilha sonora, do cenário, das cores e vestimentas usadas. Mas nada é absoluto, confirmado. O espectador precisa participar da trama para enxergar um final próprio, pessoal. Seus filmes funcionam como um quadro na parede: temos todos os elementos para desvendá-los, mas cabe a nós utilizarmos sabiamente todas as ferramentas para compreender o que está sendo transmitido.

O cinema clássico tinha por objetivo o entretenimento de massas, com histórias lineares – com início, meio e fim –, ocasionando em um final feliz. Também era comum a apresentação do herói numa situação difícil e a resolução deste problema no final do filme. 1

2 O cinema contemporâneo surgi quando alguns cineastas pertencentes a movimentos como Nouvelle Vague francesa e Neo-realismo italiano, estabelecem uma diferente relação com o espectador, criando diversas técnicas a favor do cinema. Caracteriza-se principalmente pelo uso de temáticas do cotidiano e narrativas não lineares, por exemplo, passa a existir tempos futuros ou passados. .


A LM ODÓ VAR

Um dos mais controversos cineastas do mundo, sempre provocando o espectador, bastante reconhecido pelo seu trabalho no curta Un Chien Andalou (1929) – filme que trabalha com a ordem cronológica das cenas, representando a vanguarda europeia, através do cinema surrealista experimental – e do longa L’Age d’Or (1930), nessas duas obras, trabalhou em parceria com o artista surrealista Salvador Dali e mais tarde também dirigiu Las Hurdes - Tierra sin pan (1933). 1

PEDRO ALMODÓVAR CABALLERO nasceu em 24 de setembro de 1949, em Calzada de Calatrava, La Mancha, Espanha. Foi o primeiro diretor espanhol a ser nomeado na categoria de Melhor Direção no prêmio Oscar por Todo sobre Mi Madre (1999) e Hable con ella (2002), tornando-se o diretor espanhol mais famoso desde Luis Buñuel1 e Carlos Saura – este cineasta é conhecido por retratar a cultura espanhola em suas películas. Também foi indicado duas vezes ao Oscar na categoria melhor filme estrangeiro por Mamá Cumple Cien anões (1979) e Carmen (1983).

É perceptível a influência desses dois grandes nomes do cinema espanhol em Almodóvar. Nota-se a audácia de Buñuel quando o cineasta nos afeta e nos incomoda, como no filme Volver (2006), tratando sobre assuntos delicados, por exemplo incesto. Observa-se também algumas das características de Saura quando nos atentamos ao poder da figura feminina e às referências espanholas, ambas presentes em todos os seus filmes. Ainda pequeno, sua família mudou-se para Extremadura, onde estudou em um internato religioso. Ali presenciou abusos por parte dos padres e depois veio a relatar essas experiências no filme La mala educación (2004). Foi durante esse tempo, em Cáceres, que ele começou a se interessar pela Sétima Arte e ir constantemente aos cinemas. No final dos anos 1960, decidiu morar em Madri para estudar cinema, mas, apesar de ser a capital da cultura na Espanha, era época de uma severa ditadura por Francisco Franco (1892-1975), que reinou por um longo período da história espanhola, fechando todas as escolas do ramo e proibindo a disseminação da cultura. Militar, político e chefe de Estado, foi responsável por um regime autoritário

que iniciou-se durante a Guerra Civil Espanhola e terminou somente com a sua morte. Para sobreviver, conseguiu um emprego na Companhia Telefônica Nacional como assistente administrativo. Almodóvar é de uma família humilde, e nesta empresa, começou a ter contato com pessoas de diferentes classes sociais, principalmente a nova classe média espanhola, logo no início da era do consumismo. Conheceu de perto seus dramas, angústias e misérias. Tornandose uma grande inspiração para seus futuros filmes. Lá trabalhou por doze anos, até finalmente conseguir comprar sua primeira Super-8. Como não podia aprender na teoria, pois não haviam escolas, ele se juntou ao um grupo de teatro independente chamado Los Gollardos, onde aprendeu como atuar e escrever em muitas noites de aulas. Neste período, também foi membro de um grupo punk-rock, Almodovar e McNamara, assumindo sua homossexualidade e fazendo apresentações transvestido; colaborou com revistas de contracultura como Star, Vibora e Vibraciones; começou a rodar seus primeiros curtas em Super-8, sendo eles Dos putas, o historia de amor que termina en boda (1974); Film político (1974); Blancor (1975); El sueño, o la estrella (1975); Homenaje (1975); La caída de Sódomae (1975); Muerte en la carretera (1976); Sea caritativo (1976); Sexo va, sexo viene (1977) e Salomé (1978). Seu primeiro longa-metragem coincidiu com o começo da democracia na Espanha. Com a morte do ditador Franco, iniciou-se uma revolução artística, chamada Movida Espanhola (Movida Madrileña), que deu início ao florescimento da cultura da liberdade de expressão, impulsionadas por pessoas que não apoiavam a ideologia


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conservadora e acreditavam em uma melhoria no país depois da ditadura. Como o próprio cineasta denominava este período: “É difícil falar de La Movida e explicá-la para os que não viveram esses anos. Não éramos nem uma geração, nem um movimento artístico, nem um grupo com uma ideologia concreta, éramos simplesmente um montão de gente que vivia um dos momentos mais explosivos do país, e de Madri em particular. Esse momento se materializa sob o governo da UCD (Unión de Centro Democrático), não sob o governo do PSOE (Partido Socialista Obrero Español) ainda que os socialistas tentaram capitalizá-lo de todos os modos e o conseguiram entre 84 e 86, quando só o que sobravam eram os restos do naufrágio. Como dizia, houve um momento em que de repente as pessoas perdem o medo, da polícia, dos vizinhos, da própria família, do ridículo e delas mesmas. Constata-se que Franco morreu de verdade há dois anos e isso provoca uma explosão de liberdade enorme em todo o país, ainda que eu me refira sempre à Madri e no pequeno grupo no qual eu me movia” (CERVERA 2002 apud HIDALGO 2009, p.168 e 169). Em 1980, estreou Pepi, Luci, Bom y Otras Chicas del Montón, uma comédia que conta a história de três amigas. Pepi é estuprada por um policial, após ele ter descoberto maconha em sua casa. Bom, líder de um grupo punk, resolve se vingar do estuprador juntamente com sua amiga. E Luci, a masoquista esposa do estuprador. As três, inventam um plano para separar o casal, mas, no final, como de costume, o cineasta acaba surpreendo o espectador. O filme entrou para a história do cinema espanhol apesar de ter contado com um orçamento baixíssimo de o equivalente a apenas oito mil reais.

Para driblar as dificuldades de financiamento para as suas obras, criou em 1985, junto com o seu irmão Agustín Almodóvar, a produtora El Deseo, que atualmente, além de produzir os seus próprios filmes, também se dedica a produzir filmes de outros diretores espanhóis. Suas personagens costumam ser pessoas comuns que se envolvem em temas polêmicos, criando uma relação. Não são pessoas nem boas nem más, mas comuns, que tomam decisões tanto certas quanto erradas, como qualquer um de nós, mas que estabelecem pequenas reviravoltas que, em um plano maior, pode surpreender nossas expectativas. Desde então, já dirigiu vinte e um filmes, todos com roteiros de sua autoria, além de se interessar por várias outras áreas complementares em suas tramas. Já produziu nove longas-metragens, e atuou em cerca de seis produções, sendo as mais famosas, Pepi, Luci, Bom y Otras Chicas del Montón (1980) e Madonna: Truth or Dare (1991).Também compôs duas músicas para seus filmes em La Ley del Deseo (1987) e Laberinto de Pasiones (1982). As obras subsequentes de Almodóvar incluem Laberinto de Pasiones (1982) – na qual aparece transvestido com sua banda; Entre Tinieblas (1983); Que he hecho yo para merecer esto (1984); Matador (1986), filme no qual o diretor começa a apresentar uma maior sensibilidade em relação às cores fortes, que se tornam cada vez mais presentes em seus trabalhos; La Ley del Deseo (1987); Mujeres al Borde de un Ataquede Nervios (1988) – trama de maior bilheteria nos Estados Unidos no ano de 1989 e indicado ao Oscar de Melhor Filme estrangeiro; ¡Átame! (1990); Tacones Lejanos (1991); Kika (1993); La Flor de Mi Secreto (1995); Carne Trémula (1997);

Todo Sobre Mi Madre (1999), pelo qual ganhou o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro; Hable Con Ella (2002), pelo qual recebeu mais um prêmio Oscar, desta vez na categoria de Melhor Roteiro Original e também foi indicado na categoria de Melhor Diretor; La Mala Educación (2004); Volver (2006); Los Abrazos Rotos (2009); La piel que habito (2011) e Los amantes pasajeros (2013). Para a produção, sempre contou com o seu irmão, que na maioria das vezes é seu produtor executivo, ou Esther García, juntamente com os editores José Salcedo, Alfredo Mayo e Affonso Beato. No figurino costuma trabalhar com José María de Cossío, Sonia Grande e Paco Delgado. A trilha sonora fica por conta do compositor espanhol Alberto Iglesias, colaborador em todas as suas películas. Mas não é apenas atrás das câmeras que percebemos a fidelidade com quem trabalha. Almodóvar possui uma vasta lista de atores à sua disposição por anos. Entre os mais famosos estão Antonio Banderas e Penélope Cruz. Ele trabalhou com Banderas sete vezes e com Cruz, cinco. Dando continuidade à lista, também são colaboradores frequentes Carmen Maura, Cecilia Roth, Chus Lampreave, Carmen Machi, Kiti Manver, Fabio MacNamara, Marisa Paredes. Desde a sua infância, o diretor mantém em uma relação íntima com o cinema, não exclusivamente escrevendo roteiros ou dirigindo seus próprios filmes. Descobrir a sétima arte lhe ajudou a crescer, encontrar-se pessoalmente e profissionalmente e até a educá-lo, pois ele teria contato com pessoas de diferentes grupos culturais, como ele mesmo declarou. Entre os seus filmes prediletos os que mais lhe marcaram estão: The Rules of the Game (1939) de Jean

Renoir; Touch of Evil (1958) de Orson Welles; North by Northwest (1959) de Alfred Hitchcock; Husbands and Wives (1992) de Woody Allen e Schindler’s List (1993) de Steven Spielberg. Extremamente autoral, as histórias contadas em seus filmes sempre contém uma base real e são geralmente protagonizadas por mulheres. Dentre os temas mais explorados, pode-se destacar a relação entre mães e filhos; a sexualidade e a homossexualidade; a luta, o drama e a força das mulheres, questões muito próximas de sua realidade. É perceptível a influência da cultura espanhola em seus cenários, figurinos e até roteiro. Nota-se a importância que o diretor coloca na figura materna; a cultura da Tourada, espetáculo tradicional da Espanha no qual se enfrenta e procura dominar um touro bravo, tanto a pé quanto a cavalo, como em Hable con ella; a representação da música Flamenca – na trilha sonora de Volver cantada por Estrella Morente, ou em La piel que habito, por Concha Buika, e também o sofrimento e sensualidade que a dança traz. As vestimentas também trazem características da cultura espanhola. Ele abusa do contraste das cores, dos babados, das rendas e estampas florais. Tornando-se uma das maiores características de linguagem do diretor, que possui um estilo exagerado com referências kitsch e pop art. Em relação às cores, possui um olhar talentoso e brilhante: elas constantemente carregam significados, podendo variar de cena para cena e até denunciar algo que está para acontecer. As cores primárias são as mais utilizadas, principalmente o vermelho e amarelo, cores da Espanha. Almodóvar vive em busca de cutucar e incomodar o espectador e é um dos poucos diretores que consegue aliar drama e comédia com naturalidade.


T OD O O R S B E

PEDRO ALMODÓVAR possui um estilo reconhecido

pelo público e pela crítica. Como foi dito, em seus roteiros há uma constante necessidade de chocar e impactar o espectador. Ele também normalmente aborda temas como homossexualidade, discussões de gênero, as dúvidas femininas, assuntos tabus e experiências pessoais. O mais interessante é que, por mais perturbadoras que essas personagens possam parecer, Almodóvar sempre consegue fazer com que compreendamos suas escolhas e, por suas personalidades carismáticas, raramente julgamo-nas, mesmo quando o trágico desfecho do enredo já seja previsto desde os primeiros momentos da história. As tramas de seus filmes são formadas por contrastes o tempo todo, sua obra alia o drama e a comédia, a sexualidade e a morte, assim como o existencialismo, e especialmente, personagens que enfrentam a mais profunda crise de identidade. Os assuntos abordados são costurados de uma forma harmônica, construindo suas narrativas. Em Tudo sobre mi madre, Manuela trabalha em um hospital como enfermeira e tem um filho chamado Esteban. O garoto, que queria ser escritor e faz constantes anotações em um caderno, não conheceu o pai. No dia de seu aniversário, ele pede para assistir a peça Um Bonde Chamado Desejo. A protagonista é uma atriz que ele admira, Huma. E coincidentemente, era a mesma peça em que Manuela tinha atuado, há muito tempo atrás – ali, nos ensaios, conheceu o pai de seu filho. Quando o espetáculo termina, eles esperam na porta do teatro o autógrafo da atriz principal, mas ela entra apressada em

um táxi. Esteban corra atrás do carro, mas acaba sendo atropelado. A partir de então, o relacionamento de Manuela com as pessoas e sua vida mudam drasticamente. Ela volta a Barcelona, lugar onde vivia quando era mais jovem, à procura do pai do garoto e acaba reencontrando uma velha amiga travesti, Agrado; faz novas amizades, como Rosa, uma jovem freira que descobre estar grávida e inclusive vira amiga da atriz que seu filho gostava, Huma. A história se desenrola sobre inúmeros temas, como a busca do ser humano pela felicidade, a adaptação a novas experiências e situações, o sofrimento de uma mãe que perde o filho muito cedo, mas que aprende a ter forças para superar qualquer situação, o universo feminino que ora é mostrado com extrema delicadeza, ora com dureza e força, o questionamento de nossos sentimentos e preconceitos. O filme revela mulheres solidárias, que vivem em situações difíceis no cotidiano, mas sem se deixar tomar pelo ódio, construídas pelo olhar irreverente de Almodóvar. O tempo todo somos influenciados a realizar conexões muitas vezes absurdas: ele brinca com nossas expectativas e com as margens, pois, quando achamos que sabemos o que vai acontecer, percebemos que nos enganamos, mas, quando nos parece que não há mais como conectar as histórias, ele as conta novamente apresentando uma nova leitura, um novo olhar. São filmes inquietantes, que nos fazem ter múltiplas sensações e descobertas do início ao fim. Além de mexer e misturar vários aspectos narrativos, o diretor busca seguir a mesma linha na parte estética do filme. Ele é um dos poucos que utiliza a cor como um elemento crucial para um


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entendimento superior da trama, e se prestarmos atenção, conseguimos enxergar pequenas pistas do que irá acontecer posteriormente, características das personagens ou até realçar sensações em determinados acontecimentos. Há necessidade, em primeiro lugar, de se tentar sanar um grande inconveniente: as reações que uma mesma cor pode ocasionar e que derivam, às vezes, da utilização que dela se pretende fazer. Se um indivíduo pensa, consciente ou inconscientemente, em uma cor em relação a determinado uso que irá fazer dela é evidente que sua reação não é diante da cor em si, mas da cor em função de algo. (FARINA, 2002, p.103) A mais insólita é que na cultura chinesa o vermelho é a cor dos condenados à morte. Isso faz dela uma cor especificamente humana, já que todos os seres humanos estão condenados à morte. Mas o vermelho é também, na cultura espanhola, a cor da paixão, do sangue, do fogo. (STRAUSS, 2008, p.113) Notamos que elas exercem um grande papel na trama. As cores mais quentes nos remetem a algo predominante, e consequentemente, mais vivo do que as cores frias. A cor vermelha indica muita coisa que está para acontecer, ela é passada de uma personagem para outra, como se fosse um cajado em uma roda: isso quer dizer que quem está usando esta cor merece nossa total atenção e análise. Essas afirmações são desvendadas quando percebemos que todas as cenas principais ocorrem quando alguma personagem está vestindo vermelho, como, por exemplo, na cena da morte de Esteban, Manuela está com um casaco vermelho; depois, ao encontrar sua

velha amiga, Agrado, ela está usando uma jaqueta vermelha; Huma e Rosa, ao se conhecerem, estão ambas usando vermelho; quando Rosa conta que está grávida, ela está usando um casaco vermelho. Além do favoritismo por essa cor, não podemos deixar de observar que várias outras cores, principalmente o azul e o amarelo, que são cores puras e primárias, aparecem como apoio para sustentar a força que o vermelho carrega, juntamente com a carga do estilo kitsch. É algo muito espanhol, mas que não se utiliza na Espanha. Para mim é também uma reação contra o lugar de onde venho. A cultura espanhola é muito barroca, mas a de La Mancha, pelo contrário, é de uma severidade tremenda. A vitalidade das minhas cores é uma forma de lutar contra a austeridade de minhas origens. Minha mãe se vestiu de negro durante quase toda a vida. Desde os três anos foi condenada a fazer luto por diferentes mortes na família. Minhas cores são uma espécie de resposta natural originada no ventre de minha mãe para me rebelar contra a austeridade obrigatória. Com o poder de lutar inerente à natureza humana, minha mãe concebeu um filho que teria força para enfrentar todo esse negrume. (ALMODÓVAR apud STRAUSS, 2008, p. 112 e 113). Nota-se que Almodóvar prefere destacar a estética das cores nesta trama do que elaborar diversos ângulos inovadores ou movimentos de câmeras. A vasta utilização da câmera fixa denuncia que o foco deve estar na narrativa e ao seu redor. Mas não quer dizer que ele optou por uma visão monótona, pelo contrário, há tanta coisa para ser vista e analisada que nem prestamos atenção se a câmera se mantém muito tempo nos mesmos

ângulos. O diretor consegue nos apresentar variações suficientes de movimentos de câmeras e ângulos explorando-as brilhantemente, como a utilização da câmera subjetiva, isto é, quando a câmera assume um determinado ponto de vista e seus movimentos, como quando Esteban está escrevendo com um lápis em seu caderno e o caderno transforma-se na câmera. A estética e a narrativa caminham juntas em seus filmes e a análise individual de algumas cenas são consideráveis para uma compreensão menos superficial.


ALMODÓVAR apresenta na abertura vários

QUEBRANDO um pouco o peso do cenário branco e cinza, na cena em que Manuela liga para uma moça, já observamos alguns pontos de cores, como o verde e o laranja em suas vestimentas.

elementos que insinuam o desenrolar da trama. A tipografia é instável e parece misturar-se com a cena, como um pingo de tinta na água, aparecendo e depois desaparecendo, remetendo a algo efêmero.

Esta é a primeira cena que vai repetir-se na história. Manuela é enfermeira de um hospital e, após o término de uma cirurgia, liga para a coordenação de transplantes para dizer que possui um possível doador. Esta mesma situação mais tarde se repetiria com seu filho, Esteban.

Além disso, nota-se dois contrastes em relação à tipografia: primeiro, a escolha de uma tipografia sem serifa, que normalmente sugere a clareza e organização por ser uma fonte desenvolvida para atrair o leitor e destacar textos curtos, porém importantes, juntamente com a escolha de mexer com a tipografia e parecer ser algo maleável, perdendo o seu sentido original, ocasionando em uma discordância de ideias; o segundo ocorre quando o diretor contrasta a cor vermelha da tipografia com o cenário que possui cores pouco vibrantes, como o branco e o cinza.

NA CENA em que Manuela está em sua cozinha,

as cores e estampas finalmente são inseridas na trama, – aqui começamos a identificar a famosa estética do diretor. As cores foram introduzidas devagar, pois possivelmente seguiram o mesmo pensamento da tipografia, surgindo devagar e depois se espalhando, isto é, começando aos poucos e depois se misturando.

Utilizando diversas técnicas, começando com o travelling vertical, depois explorando o horizontal e até mesmo por sobreposições de imagens – em que uma imagem surge ou desaparece sobre outra –, é apresentado um determinado caminho de vários equipamentos que são essenciais para manter a vida de um paciente. O mais interessante é que primeiramente o diretor mostra esse caminho feito com equipamentos para depois mostrar o homem por trás daquilo.

1 “O cinema almodovariano, como uma testemunha do nosso tempo, foi imbuído dessa parafernália”

O kitsch é o excêntrico na obra de Almodóvar, está presente no figurino de seus personagens, composto por roupas e acessórios de cores, estampas e texturas vivas e extravagantes. No cenário, faz uso contrastante e exagerado de cores, objetos religiosos, estátuas, bibelôs, fotografias de personagens da Disney, altares, bichos de pelúcia, eletrodomésticos e móveis antigos, tudo para compor esse estilo bastante singular que possui. “El cine almodovariano, como testigo ocular de nuestro tiempo, se ha visto imbuido de esta parafernália” 1 (HOLGUÍN, 2006, p. 113).


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É PERCEPTÍVEL o uso abusivo do estilo

kitsch, que é frequente em quase todos os trabalhos do diretor, como é possível ver abaixo:

LEGENDA Imagens 1, 2 e 4 Los Abrazos Rotos Imagens 3 e 9 Mujeres al Borde de un Ataque de Nervios Imagem 7 Los amantes pasajeros Imagens 6 e 8 Volver Imagem 5 La piel que habito


ESTEBAN nos é apresentado, narrando a história em algumas partes. Ele está sentado no sofá assistindo televisão, enquanto a mãe está preparando o jantar na cozinha. Primeiro, assistimos um comercial de bebês felizes dançando e cantando, filmada em cores e com uma trilha sonora infantil. Depois somos levados diretamente para um filme de época em preto e branco, que apresenta uma trilha sonora de suspense. Ou seja, nota-se que o diretor quis focar como o cômico e o sério muitas vezes se misturam e não necessariamente são coisas opostas, reforçando os ideais já citados.

VISUALMENTE, esta cena é muito interessante para a trama, pois através das cores conhecemos melhor como são as personagens. Em um primeiro plano, com uma câmera fixa, percebemos que Esteban está vestindo uma blusa azul e Manuela uma blusa vermelha, uma cor é fria e a outra é quente, evidenciando os opostos. O vermelho vibrante é bastante predominante, é uma cor que chama atenção o tempo todo, possivelmente sugerindo que ela é uma mulher de personalidade forte e agitada, enquanto seu filho, vestindo um tom azul escuro, é uma pessoa mais séria e introspectiva.

O FILME que os dois estavam prestes a assistir chama-se All about Eve, em português “Tudo sobre Eva”, o menino explica para a mãe que o título em espanhol deveria ser o mesmo do original, mas a mãe acha que o título original soa estranho. O garoto imediatamente sorri e abre seu caderno de notas, onde observamos que ele começa uma frase com “Tudo” e depois, através de uma câmera subjetiva, nos é mostrado como se a câmera fosse o caderno, nos sugerindo que a história que estava escrita em seu caderno na verdade é a história que estamos assistindo, coincidindo com o título deste filme, Tudo sobre mi madre.

O diretor acentua essas afirmações quando coloca o filho com uma blusa de manga comprida e a mãe com uma blusa mais aberta, como se Manuela fosse mais acolhedora e Esteban mais isolado e fechado. Ainda no sofá, a mãe faz um brincadeira com o filho e diz para ele comer a comida que ela preparou, caso algum dia ele precise “vender o corpo” para mantê-la. Depois o filho pergunta se algum dia ela seria capaz de se prostituir por ele e ela responde: “Já fui capaz de fazer qualquer coisa para você”. Este é um diálogo marcante, que deixa o espectador curioso para saber o que esta mãe fez em seu passado.


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O FILME que está passando na televisão, All

about Eve, tem a atriz Bette Davis como Margo Channing, e nos mostra o que vem acontecer em uma cena posterior. Margo, uma atriz de teatro, está discutindo com uma amiga sobre seus fãs. Ela diz que não se importa se está chovendo ou frio, que não dará autógrafos de qualquer jeito, pois aquelas pessoas não conhecem de fato o teatro, são apenas “jovens com retardos mentais”.

NA CENA ANTERIOR, enquanto eles estavam conversando no sofá, Esteban disse que adoraria ver sua mãe atuando nas histórias que ele escreve. Ela responde que até possui experiência, pois havia atuado em um grupo de atores amadores. Ela mostra uma foto da época para o filho.

Ao ver a foto nas mãos do menino, percebemos que está rasgada ao meio, faltando um pedaço. Esteban mais tarde percebe o pedaço faltando da foto tinha a figura do seu pai, uma pessoa que também estava faltando em sua vida. Depois, em um ângulo mais aberto, o diretor revela mais um pouco da casa e do estilo kitsch explorado através das cores das paredes, dos sofá, os quadros coloridos pendurados e das estampas chamativas nos tapetes, almofadas e outros tecidos espalhados pela sala.


É ANIVERSÁRIO de Esteban e então a mãe

NO SEMINÁRIO, observamos todos os pontos

lhe dá um presente, um livro que ele gosta muito. O menino pede para ela ler, como fazia quando era pequeno, quando a mãe lê, não entende muito bem e acha o livro sério demais, enquanto Esteban acha “um prefácio maravilhoso”, reforçando os opostos. A pequena parte que a mãe lê dizia: “Comecei a escrever quando tinha oito anos, e então não sabia que iria ficar preso para sempre a um nobre porém implacável mestre. Quando Deus te dá um dom, também te dá um chicote e o chicote é para a autoflagelação...”.

de vista possíveis, começando com uma panorâmica horizontal e finalizando com cortes secos. Vemos do ponto de vista do menino, das pessoas que estão avaliando, dos atores e até do que está sendo gravado, – trata-se de uma encenação que conta a história de uma mulher que perdeu o marido e os médicos gostariam de doar os órgãos para outros pacientes.

Depois da leitura, o filho diz que gostaria muito de ver um dos seminários dos quais a mãe participa para ajudar nas doações de órgãos em seu trabalho como enfermeira, pois ele está escrevendo uma peça sobre ela para um concurso. Neste diálogo, o diretor insinua de novo que o filme que estamos assistindo tem a ver com a história que Esteban escrevia em seu caderno sobre sua mãe. A vasta utilização do vermelho vibrante fica nítida, o quarto do menino possui algumas cortinas que refletem a cor vermelha para os rostos das personagens, dando ênfase na carga sentimental da cena, na qual a mãe e o filho estão mais conectados.


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COMEÇANDO com um plano aberto e depois

A TRILHA SONORA continua com um travelling

um plano americano em companhia de uma trilha sonora melancólica, observamos uma cena bastante significativa: aparece um grande pôster de Huma – mais tarde introduzida na história –, com uma expressão apreensiva em uma parede atrás de Manuela, que novamente está vestida com a cor vermelha. Manuela está esperando seu filho para assistirem uma peça juntos. Ele a observa do outro lado da rua e escreve em seu caderno. Quando sai da lanchonete e vai ao seu encontro, atravessa a rua distraído e quase é atropelado, – com um corte seco, o diretor foca na mãe, e inevitavelmente, no pôster de Huma, referindo-se ao que iria acontecer mais tarde. Também fica evidente o uso predominante do vermelho e do amarelo, duas cores quentes que remetem à tensão da cena.

de afastamento, focando apenas nos olhos de Huma no pôster, destacando a grandeza do papel de Huma na vida de Manuela. Também escutamos o off da peça que eles estavam assistindo dentro do teatro. A primeira frase dita é “Por que está me olhando assim?” e através de uma sobreposição do pôster com a peça, Almodóvar acentua que a realidade ali vivida mistura-se com a peça.


MAIS TARDE, observamos uma fala importante. A personagem interpretada por Huma diz: “Eu sempre confiei na bondade de desconhecidos”, quando um homem a salva de um incidente ocorrido. Em uma cena posterior, observamos uma referência a esta mesma fala, depois dita pela própria Huma.

NESTA CENA entendemos o porquê de Manuela

ter se sentido abalada. Trata-se de uma peça chamada Um Bonde Chamado Desejo, da qual, anos antes, ela havia participado fazendo o papel de Estela. Foi no grupo de teatro que ela conheceu o pai de Esteban.

Percebemos uma atmosfera predominantemente azul no cenário da peça, ajudando a enfatizar a sensação melancólica que traz lembranças à Manuela.

O filho pede para a mãe esperar com ele do lado de fora do teatro para conseguir o autógrafo de Huma. Aqui lembramos da cena do filme que os dois estavam assistindo juntos no sofá, na qual uma menina também saiu em busca de um autógrafo de uma atriz.

Uma personagem da peça chamada Estela está fugindo com o seu bebê, e nesta hora, Esteban olha para a mãe e percebe que ela fica bastante emocionada. Também se nota que Manuela tirou seu casaco e está com uma blusa de gola preta, isto é, ter tirado o casaco vermelho nos sugere que naquele momento a mãe se sente mais vulnerável.

O diretor trabalha com uma luz mais dura, com menos cores do que o habitual para acentuar a dramaticidade da cena e também para focar o tempo todo na mãe, que veste seu casaco vermelho mostrando sua força diante do menino, que está quase apagado com uma jaqueta marrom escura.


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EM BUSCA do autógrafo, Esteban corre

VISIVELMENTE abatida, ela assina os papéis

atrás do taxi em que Huma entrou apressada, mas ele acaba sendo atropelado. Observamos a cena de sua morte através de uma câmera subjetiva, ou seja, estamos vendo exatamente o que Esteban estaria vendo.

para a doação, permitindo doar o coração de seu filho para outra pessoa. O coração é transportado por uma mala refrigeradora azul e levado em um avião para outra cidade, até chegar ao paciente que irá receber a doação.

Primeiramente, a câmera se mantém em um ângulo que parece estar deitada no chão, fazendo o papel de Esteban, depois enxergamos os passos de Manuela aproximando-se e até movendo a câmera como se tivesse movendo a cabeça de seu filho.

Esta parte nos remete à primeira cena, que se passa em uma sala se cirurgia, pois as duas retratam recursos para salvar vidas – primeiro através de diversos aparelhos e, agora, com um refrigerador portátil que mantém um coração vivo. Almodóvar reforça que somos todos iguais. No final, não importa se o coração é de um menino de 16 anos ou de um travesti, pois, no final das contas, o órgão irá salvar uma vida. São órgãos iguais que não definem quem somos como pessoas. O diretor está provocando o espectador, ele quer que nos questionemos a respeito de nossos preconceitos com aqueles considerados diferentes pela sociedade.

BRILHANTEMENTE, Almodóvar repete duas cenas com diferentes pontos de vista, para nos contar sobre a morte de Esteban.

O primeiro de uma enfermeira que liga para a coordenação de órgãos dizendo que possui um possível doador, repetindo uma das primeiras cenas de Manuela. Na segunda, a cena que se repete é a do seminário, na qual Manuela interpretava uma mãe que perdeu o marido. Agora, os dois médicos contam que seu filho havia falecido e precisavam saber se ela concordava em doar seus órgãos, assim como no seminário. Nota-se que Manuela tirou seu casaco vermelho, possivelmente por não estar forte e segura como antes, mas sim triste e apagada.


NA CENA seguinte, vemos Manuela voltando

MANUELA chega em Barcelona e pede para

para Barcelona, de onde, anos atrás, havia fugido grávida. Ela busca o pai de seu filho para contar o que aconteceu. Conseguimos analisar as cores e percebemos que ela não possui mais o destaque e o peso do vermelho do começo, fazendo uma referência a como ela está mais melancólica e frágil, usando cores mais sóbrias, como o azul escuro.

o taxista entrar em uma rua que é ponto de encontro de prostitutas. Devagar, observa todas as pessoas que estão ali até achar Agrado, travesti que estava brigando com um cliente. Agrado é um velho amigo de Manuela. Em um plano fechado, não há como esconder a felicidade das duas ao se encontrarem.

UTILIZANDO a câmera subjetiva, como

se nós estivéssemos entrando em um túnel, Almodóvar apresenta uma belíssima imagem aérea de Barcelona e alguns pontos turísticos, referindo-se ao famoso ditado “Há sempre uma esperança no final do túnel”.

Desta vez, o foco está na nova personagem, Agrado, que veste uma jaqueta vermelha, enquanto Manuela usa uma camisa azul claro, provavelmente sugerindo que Agrado irá ajudar a amiga e passar a sua força e alegria para ela.


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AGRADO leva a amiga para sua casa, onde

encontramos mais elementos kitsch, como a toalha de mesa com estampa de frutas, as paredes roxas em contraste com os azulejos, as cortinas vermelhas, um abajur de cada cor, a estante verde e laranja, os adesivos, as panelas penduradas e diversas outras estampas e texturas que reforçam a identidade do diretor. Nesta cena, Manuela pergunta sobre uma amiga chamada Lola e Agrado diz que Lola roubou tudo o que ela tinha de valor e fugiu. Manuela diz que voltou para resolver um assunto pendente com Lola e, logo após o diálogo, surge uma foto de Manuela abraçando um travesti. Almodóvar insinua que Lola era, na verdade, o pai do filho de Manuela. A partir de então, começamos a compreender melhor porquê ela nunca disse nada a Esteban sobre o pai.

MAIS TARDE, Agrado leva Manuela para procurar emprego na cidade e conhecer uma freira chamada Rosa, que sempre ajudava pessoas com necessidade. As três estão conversando e começam a falar de Lola. A freira diz que a conheceu e consequentemente a ajudou a se desintoxicar das drogas, mas não sabe seu paradeiro, pois ela fugiu. Depois, Agrado diz que Manuela é ótima cozinheira e Rosa oferece uma vaga de trabalho na casa de sua pai. Porém, a mulher é conservadora e não aceita Manuela por achar que ela é prostituta.

Interessante observarmos que agora a freira está usando um casaco vermelho. Ela se mostra confiante e forte conversando sobre a vaga, enquanto a mãe aparece com uma camisa azul, um tom menos acolhedor do que o de Rosa. Esta parte nos lembra da cena em que Manuela estava vestindo vermelho e seu filho azul, evidenciando os contrastes de personalidades entre mãe e filha ou mãe e filho. Com um plano aberto, nota-se pela decoração da casa que a família de Rosa é de uma classe superior a das outras personagens. Não identificamos o estilo kitsch. É um lugar bastante espaçoso, com diversas colunas com detalhes manuais e a decoração é mais tradicional e limpa do que a das personagens de classes inferiores.


MANUELA espera a freira em uma cafeteria

e descobre por um panfleto que a peça Um Bonde Chamado Desejo está com exibição em Barcelona. Rosa despede-se de sua mãe e vai encontrar Manuela, mas começa a sentir-se enjoada no caminho. A freira pergunta se poderia ir descansar na casa de Manuela. Nesta cena, percebemos o quanto Rosa não se identifica com sua família, provavelmente ela pensa que a mãe não a compreende, preferindo ir para a casa de uma pessoa quase desconhecida do que conversar com a sua própria mãe sobre não estar se sentindo bem. Na nova casa de Manuela, a freira olha para um caderno que está em cima da mesa – o caderno de Esteban – e através de uma sobreposição de imagens entre o caderno e as lâmpadas do teatro da próxima cena, o diretor repete a cena do pôster de Huma e depois mostra Manuela comprando um ingresso. Esta cena nos faz lembrar do dia da morte de Esteban, quando ele estava saindo para encontrar sua mãe e quase foi atropelado. Naquele dia, ele disse que estava distraído pois tinha tido uma ideia. Agora, nessa cena, o diretor faz uma nova referência usando a palavra ideia sobre as lâmpadas juntamente a uma imagem de seu caderno. Depois, através de um travelling vertical, chega ao mesmo pôster da primeira cena.

ELA assiste a peça, mas desta vez está vestindo uma blusa vermelha, não por acaso, a partir desse momento ela se torna mais forte. É então que Manuela conhece Huma em seu camarim, uma personagem que viria a acrescentar mais sentido à sua vida.

Huma é a atriz principal da peça Um Bonde Chamado Desejo. É a atriz a quem Esteban admirava e foi buscando um autógrafo dela que ele morreu. Manuela diz que viu Nina – personagem que interpreta Estela na peça e também amante de Huma – saindo de seu camarim. Huma fica bastante preocupada e pede a ajuda de Manuela para encontrá-la. O diálogo acaba com a frase “Sempre confiei na bondade de desconhecidos”, tirada da peça de teatro – mais uma vez, Almodóvar acentua que a realidade e a peça de teatro se misturam. Prestando atenção nas cores, logo na cena em que elas se conhecem, no camarim, o diretor usa cores complementares. O vermelho e o verde não se anulam, ou seja, chamam a atenção proporcionalmente. Isto quer dizer que a blusa vermelha de Manuela e o cabelo vermelho de Huma diante de um fundo verde dão o mesmo peso para as duas personagens, como se uma estivesse se apoiando na outra.


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EM UM PLANO AMERICANO, as duas saem à

procura de Nina. Enquanto Manuela dirige o carro, Huma acaba contando o significado do seu nome artístico. Ela começou a fumar para imitar a atriz Bette Davis – a mesma do filme preto e branco do início, All About Eve - e que, aos 18 anos, já estava viciada na droga. Umo quer dizer fumo, por isso, ela passou a ser chamada de Huma. Mais tarde, escutamos uma história parecida quando Agrado conta o porquê de seu nome. DEPOIS de encontrar a moça perdida, Manuela volta para descansar e dormir em sua casa, quando Rosa toca a companhia. A freira entra e percebe-se que ela tira o casaco vermelho e o segura no colo, perto de sua barriga, ela diz que esta grávida e que o pai é Lola.

No cenário, é visível a graduação de tons amarelados e avermelhados, que juntamente com a luz mais dura, denunciam a importância da cena. Rosa segura o casaco na barriga, como se a força agora estivesse no bebe e não mais nela. Aqui, encontra-se outra metáfora que o diretor constrói na narrativa: a vida de Manuela estava se repetindo com aquela jovem freira, carregando um filho do mesmo pai que também não sabia de sua gravidez.

MANUELA acompanha a freira para fazer alguns exames no hospital e diz para ela fingir que são irmãs, pois os médicos perguntam demais. Enquanto isso, Manuela resolve contar para Rosa sobre Lola, mas ela narra a história como se tivesse acontecido com uma amiga.

Ela e Lola eram casados, quando Lola partiu para Barcelona para conseguir um emprego melhor. Mas, depois de dois anos, quando Manuela foi encontrar seu marido, ele tinha virado travesti. Ela acabou aceitando, pois, apesar de o físico ter mudado, o marido continuava a mesma pessoa, ainda era muito ciumento e machista, não deixava Manuela usar roupas curtas, enquanto Lola andava do jeito que quisesse. Almodóvar busca acentuar algumas ironias na narrativa, como essa: um marido machista que virou travesti. E, cada vez mais, compreendemos que nada é o que parece. A blusa vermelha volta para Manuela, que começa a tomar conta da freira como se fosse sua filha, ajudando-a com os médicos e exames, representando a força de Rosa, que tenta se apoiar na amiga.


APÓS ter ajudado Huma naquela noite,

DEPOIS de um exame, Manuela descobre que

Manuela vira sua assitente pessoal. Em um dia em que Nina, que interpretava Estela, estava incapacitada de atuar por estar drogada, Manuela se oferece para substituí-la, afinal já tinha atuado antes nesta mesma peça e sabia as falas. A atriz principal aceita a ajuda de Manuela, que no final se sai bem no papel.

a freira é soropositivo. Rosa havia se relacionado com Lola, que era usuária de heroína há mais de 15 anos. Rosa sente-se perdida e desamparada, sem saber como contar a notícia para seus pais, e por conta disso, Manuela acaba deixando ela morar em sua casa.

Nota-se que o diretor quis relembrar como era aquela época na vida de Manuela, que anos depois estava ali se repetindo, destacando que nada é definitivo.

Nina convence Huma que Manuela estava interessada no papel de Estela desde o início e que por isso havia atuado tão bem na noite passada. O casal ameaça demitir Manuela. Ela, então, conta toda a história sobre seu filho e o motivo de ter ido atrás da atriz. No dia seguinte, Huma vai até a casa de Manuela para pedir desculpas e oferece o emprego de volta. Manuela diz que não pode aceitar, pois precisa cuidar de Rosa, que está muito doente, mas afirma que conhece alguém que pode se interessar. Ela então apresenta Huma a Agrado. Através de um plano de conjunto, temos as principais personagens da trama juntas, conversando sobre diversos assuntos. É perceptível a diferença física entre elas. Huma, por exemplo, está vestindo uma roupa de marca, bastante elegante, enquanto Agrado, logo ao lado, usa um vestido estampado ao estilo kitsch e tem um penteado infantil de maria-chiquinha, – podemos entender que os apostos podem conviver juntos. É belíssimo o modo como Almodóvar monta essa cena: apesar de todas estarem vestindo roupas diferentes, as cores de suas vestimentas se assemelham, formando uma paleta de cores juntamente com o cenário, sugerindo que, apesar delas parecerem ser diferentes, cada uma possui um pouco da outra em si.


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MAIS TARDE, Huma e Nina brigam e não conseguem comparecer ao espetáculo. Agrado, agora como assistente de Huma, tenta entreter os espectadores com a história de sua vida.

Começa contando que se chama Agrado porque a vida inteira só pretendia tornar a vida dos outros mais agradável, nos remetendo ao significado do nome de Huma, que, pelas suas próprias palavras, “só teve fumo a vida inteira”. Novamente, o diretor nos leva a pensar sobre pessoas que, em uma primeira impressão parecem ser completamente diferentes, mas, no fundo, podem compartilhar dos mesmos pensamentos. Dando continuidade, ela conta que era caminhoneiro e depois virou travesti. Identificamos outro contraste, o caminhoneiro versus o travesti, como o machista versus o travesti ou até mesmo a freira versus a grávida soropositivo. Mais uma vez, nada parece ser o que realmente é. CHEGOU O DIA do nascimento do filho da freira,

mas ela acaba não resistindo e morre por conta da doença, deixando seu filho praticamente aos cuidados de Manuela, já que a avô não se preocupava em cuidar do menino. Antes de morrer, Rosa disse que iria batizar o filho de Esteban. Esse seria o terceiro Esteban na vida de Manuela. Rosa a fez prometer que, se algo acontecesse com ela, nada deveria ser escondido do menino, como Manuela havia feito com seu próprio filho. Mais tarde, é introduzida a cena de uma nova peça que Huma está ensaiando, na qual ela interpreta uma mãe que acaba de perder seu filho, misturando o teatro com a história de Manuela mais uma vez.

MANUELA decide fugir com o menino, já que a avó só se preocupava com ela mesma. Em uma imagem de trem indo e voltando, nota-se que o tempo passou e Manuela estava de volta a Barcelona, pois iria participar de um congresso de Aids que queria estudar o caso de Esteban – ele, milagrosamente, não havia desenvolvido o vírus.

Com o caso de Esteban, o diretor conclui que nada é definitivo e que a vida é imprevisível. No final, Manuela conta que a avó do menino hoje é uma pessoa completamente diferente e está muito ansiosa para ver o neto. E Nina, antigo caso de amor de Huma, antes uma garota descompensada e drogada, agora casou-se e vive no interior com seu marido e um filho.


CONCLUSÃO Todo sobre Mi Madre é um filme

MI R MAD E

típico do diretor, que, através de seus ângulos, cores, fotografia, cenários e narrativa, aborda inúmeras questões complexas por muito tempo consideradas tabus pela sociedade, como AIDS, transexualidade, prostituição, morte e gravidez indesejada, de um jeito único e humano. O longa abre com a primeira cena de All About Eve e desenrola seu roteiro como metalinguagem, séries de fatores que consistem em uma linguagem que descreve sobre si mesma, cujo foco é o próprio código empregado, ou seja, utiliza o mesmo conjunto de signos para transmitir uma mesma mensagem, como a imagem de um homem pintando um quadro dentro de um quadro ou o filme que estamos assistindo falando dele próprio, da mesma forma quando Todo sobre mi madre refere-se a si mesmo algumas vezes, como por exemplo na cena que Esteban conta que está escrevendo sobre sua mãe. Do início até o final, a metalinguagem revela-se marcante. O diretor cria uma história que além de se relacionar com o filme de Bette Davis, isto é, a linguagem repetindo a própria linguagem, mistura-se com vários acontecimentos posteriores, como na peça Um Bonde Chamado Desejo, que além de ser um local importante para o desenrolar da trama, exercendo um papel central, também encena a história da protagonista, através da personagem Estela, que na verdade era Manuela mais nova fugindo grávida. Os exemplo são diversos, a dramaturgia e a vida real muitas vezes são mostradas como a mesma coisa, como quando Agrado conta para os espectadores sobre a sua vida como se estivesse contando para um amigo, mas, neste caso – nos é apresentada como monólogo. Outro exemplo é quando

Manuela participa de uma encenação no hospital, representando uma mulher cujo marido morreu e que precisa decidir se vai doar seus órgãos, pois, posteriormente, seu filho morre e ela precsa tomar a decisão. Os médicos que estão com ela são os mesmos da encenação. Portanto, existe uma previsibilidade intencional nas cenas que não desconstrói o restante da narrativa, pelo contrário, muitas vezes ela prioriza e dá maior intensidade aos desdobramentos que ocorrem. No final, o diretor ainda apresenta uma lista de agradecimentos com alguns nomes de atrizes, incluindo Bette Davis, e a todas que interpretam atrizes nos cinemas e que vivem um longo e duplo papel no palco e na vida real, aprendendo a simular para sobreviver. All about Eve não é a única referência. Podemos observar uma grande semelhança no filme de Almodóvar com a trama Carmen, do diretor espanhol Carlos Saura, que é uma das grandes inspirações e influências de Almodóvar. Carmen conta a história de uma companhia de bailarinos que resolve encenar uma ópera. A vida dos bailarinos se mistura com a dos personagens representados na dança e é contaminada pelos mesmos acontecimentos trágicos da obra que encenam. Ou seja, o que acontece em Carmen com os bailarinos, acontece em Tudo sobre mi madre com os atores: os dois caminham sobre a linha da metalinguagem. Além disso, outro ponto forte da trama são as margens. Almodóvar constrói personagens que são transformadores e não definitivos, evidenciando que tudo pode acontecer com o tempo. Manuela, que exerce muito bem o papel de mãe, não só com Esteban, mas também com outras personagens, possui uma melhor amiga


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travesti e um e um relacionamento passado com um. A mãe da freira que era intolerante e acabou virando o oposto; a Irmã Rosa, que engravidou de um travesti soropositivo; e até mesmo a drogada Nina, que acabou se casando e vivendo uma vida comum longe das drogas. O intuito do diretor não é criar uma ficção, mas sair dos personagens óbvios e intocáveis criados por estereótipos. Ele quer mostrar a profundidade das personagens. A partir disso, podemos refletir que todos temos um passado, mas que ele não deve nos definir como pessoa. O diretor espanhol tem um olhar único, principalmente para a escolha de cores, que muitas vezes comandam a cena, especialmente o vermelho. Ele consegue transformar o comum em algo novo e diferente, o sóbrio em colorido, com tramas formadas do simples cotidiano, mas com personagens que transbordam personalidade e irreverência, cada uma carregando um drama pessoal. Quando interpolados todos esses detalhes, os acontecimentos mais surpreendentes e inusitados aparecem e são reais pela forma sutil com o qual são contados, sempre com um ambiente acolhedor e referências à cultura espanhola e estilo kitsch como plano de fundo. São histórias sobre pessoas, não necessariamente de vilões ou “bonzinhos”, mas pessoas que erram e acertam na vida e não possuem opiniões definitivas, como, qualquer ser humano, mas é claro, com um toque de Almodóvar.


LIN GUA MEG

RELACIONANDO A LINGUAGEM VISUAL E GRÁFICA COM CINEMA E DESIGN

A linguagem compreende as mais diversas formas de expressão. Divide-se em duas categorias: a linguagem verbal e a não verbal. A primeira utiliza a língua falada ou escrita como forma de expressão e comunicação entre as pessoas. Por exemplo: um diálogo, texto narrativo, carta, revista, etc. A segunda, a linguagem visual, é aquela que não utiliza o vocábulo. Expressa as mensagens usando outros meios de comunicação, como figuras, gestos, pinturas, objetos, gráficos e pontos. Assim, à medida que o receptor deixa de ser passivo diante de uma mensagem comunicada por meio de uma linguagem visual na tentativa de compreendê-la, estabelece-se um processo de decodificação. Se pensarmos em nosso trajeto de casa para o trabalho, por exemplo, o que “enxergamos” em nossa memória? Provavelmente, em um primeiro momento, visualizaremos as imagens mais marcantes do nosso percurso. Isso revela que temos um conhecimento visual bastante significativo, baseado apenas na força das imagens. Essa força é fruto de uma construção de formas, cores, texturas ou aspectos que nos chamam a atenção. O mesmo ocorre com as linguagens visuais – cores, texturas, estilos, planos, luz, cenários, figurinos – em uma trama. Quando nos lembramos de um filme, provavelmente imaginamos uma cena, que, por sua vez, pode ser marcante apenas pelas cores ou pelos planos. Desse modo, começamos a decodificar esses elementos marcantes, que vão se tornando uma linguagem.

Assim, segundo Kandinsky: “Se observarmos a rua através da janela, seus barulhos são atenuados, seus movimentos são fantasmagóricos e a própria rua, por causa do vidro transparente, mas duro e rígido, parece um ser isolado palpitando num “além”. Mas abramos a porta: saímos desse isolamento, participamos desse ser, tornamo-nos ativos nele e vivemos sua pulsação por todos os nossos sentidos. A alternância contínua do timbre e da cadência dos sons nos envolve, os sons sobem em turbilhão e subitamente se esvaem. Do mesmo modo os movimentos nos envolvem – jogo de linhas e de traços verticais e horizontais, inclinados pelo movimento em direções diferentes, jogos de manchas coloridas que se aglomeram e se dispersam, de uma ressonância às vezes aguda, às vezes grave”. (KANDINSKY, 1997, p. 9) A linguagem visual é fundamental para este projeto. Ela serve como objeto de estudo para depois se transformar em linguagem gráfica. Esta, por sua vez, é como um sistema de signos gráficos, formada pelo significado (conceito) e significante (imagem gráfica). Essas relações consistem nos significados da representação gráfica e são expressas pelas variáveis visuais – tamanho, textura, cor e forma –, que são significantes. O design gráfico, por exemplo, faz parte da linguagem gráfica, pois interage com a fotografia, ilustração, pintura, colagem e outras formas visuais. Para Michael Twyman, professor e pesquisador inglês, um campo está ligado à linguística (a linguagem) e outro ao design (o gráfico). Segundo ele, gráfico é “aquilo que é desenhado ou feito visível em respostas a decisões conscientes, e


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linguagem é o que serve como veículo de comunicação”. (TWYMAN apud ARAGÃO, 2006, p. 63) Para compreendermos melhor a relação entre design e linguagem gráfica, utilizaremos um exemplo de linguagem gráfica no cinema. Antigamente, as aberturas e os créditos nos filmes não eram vistos como algo a ser apropriado pelo design. O máximo que encontrávamos eram letterings com o nome do diretor do filme no começo e o famoso The End no final. Somente nos anos 1960 e 1970, iniciou-se a produção de aberturas de filmes mais conectadas com a linguagem visual. As aberturas tornaram-se, então, um diferencial para as tramas, passando a explorar visual e cinematograficamente os temas da obra, em vez de apenas informar discretamente os conteúdos, como antigamente. Alguns designers ficaram famosos pelas aberturas que criaram, e elas muitas vezes passaram a ser tão lembradas quanto os próprios filmes. Entre os designers pioneiros que chamaram a atenção para a abertura dos filmes, até então negligenciada, está Saul Bass. Ele criou várias sequências para filmes dirigidos por Alfred Hitchcock e Otto Preminger. Algumas chegavam a ser pequenos filmes dentro do filme, como as famosas sequências de abertura de Vertigo (1958) e North by Northwest (1959), que ainda hoje influenciam designers e diretores de cinema. Saul Bass também entrou em outro universo gráfico confeccionando cartazes que possuíam forte ligação com a abertura dos filmes, bem como com as linguagens visuais das tramas.

São exemplos dessa ligação entre as linguagens do design e do cinema a abertura e o cartaz que ele criou para o filme Anatomy of a Murder (1959), de Otto Preminger, em que podemos notar a proximidade visual e gráfica. É na combinação entre as cenas, tipografia e elementos gráficos que o design gráfico se mostra presente no cinema, atuando a favor da trama. Uma boa sequência de abertura em um filme ajuda a criar a sua identidade para o espectador, reforçando suas principais características. A linguagem visual sempre foi, portanto, um elemento desencadeador para a linguagem gráfica – como o cinema para o design –, servindo de referência tanto para as aberturas e cartazes de Saul Bass como para este projeto, em que procuro beber na fonte das linguagens analisadas nos três filmes para, então, criar, por meio de uma linguagem gráfica, um zine.


C A SS O 1

A serigrafia é um processo de reprodução de imagens sobre papel, madeira, vidro, entre outros materiais, que utiliza uma moldura com tela de seda ou náilon formada por malha. A tinta passa pelas malhas permeáveis, que correspondem à imagem a ser impressa, permanecendo as restantes impermeáveis à tinta.

CASOS CORRELATOS Além das reflexões e análises, é importante atentarmos para os profissionais do design e da arte que buscam se expressar por meio de suas criações. Aqui, pretendo apresentar e observar os trabalhos desses profissionais que, de alguma forma, se relacionam com o universo do meu projeto, servindo como referência e inspiração para o encaminhamento dos meus experimentos.

do ponto de vista da atividade profissional, do espaço expressivo ou da minha própria formação. Fui conduzido a esse universo da imagem que se chama design por meu interesse pela comunicação, por um lado, e pela visualidade, por outro. Ambas sempre me atraíram muito e descobri casualmente que elas se combinavam numa disciplina chamada Comunicação Visual, ensinada numa escola chamada ESDI, Escola Superior de Desenho Industrial.

RICO LINS Designer, diretor de arte, ilustrador

e educador, Rico Lins acumula extensa carreira tanto no cenário nacional como internacional. Graduou-se em desenho industrial pela Escola Superior de Desenho Industrial (ESDI-Rio) em 1976. Em 1987, obteve o título de Master of Art pelo Royal College of Art, em Londres. Atuou nos últimos 30 anos em Paris, Londres, Nova York, Rio de Janeiro e São Paulo e desde 1997 integra a Alliance Graphique Internationalle (AGI). Rico Lins opera de forma anacrônica, usando a colagem de imagens aparentemente dissociadas no tempo, construindo ou desconstruindo conceitos com base nelas, criando deslocamentos e dando um novo significado às imagens que produz. Ele ainda deixa espaço para que o leitor possa contribuir com esse processo utilizando repertório próprio para analisar suas mensagens e permitindo repensar os caminhos de suas práticas. Seu trabalho como designer reside na fronteira com a arte. Rico costuma misturar e combinar linguagens, técnicas e formas conhecidas, criando uma linguagem particular. “Nunca me aventurei a definir ou a traçar uma fronteira para o que é o design. Isso nunca fez parte do meu universo de preocupações, seja

Assim, entrei para a ESDI e ali havia uma coisa chamada design, com a qual comecei a trabalhar. Quando percebi que gostava de design já era tarde demais. Por isso, essa fronteira para mim nunca foi muito clara e definida, mas muito flexível. Gosto muito de brincar com o exercício de contaminação dessas áreas. O processo criativo reside no binômio da liberdade e do limite. Ter um limite muito bem definido é ter um muro para pular. É um exercício de liberdade criativa seja com as formas, com a tipografia ou com os processos metodológicos, no qual você consegue ter uma amplitude um pouco mais divertida. Nesse sentido, nunca fui muito fiel ao design no sentido tradicional, linear, apesar de ter uma postura de comunicar para responder a uma demanda muito clara, que é uma atitude do design, mas talvez por caminhos que não sejam exclusivos da disciplina.” (FARIAS, 2009, p. 16) Os trabalhos de Rico Lins têm a colagem como elemento primordial. Neles, é possível perceber as diferentes facetas que essa técnica pode incorporar. É o caso de Les Droits de L’Homme et du Citoyen, Revista Big, Cartaz Doces Poderes, Panamericana Graphic Design 96 e Labyrinth of Passion.


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Na trilha de Rico, em meu projeto também utilizarei a colagem como uma das formas de linguagem, inspirada na maneira como ele trabalha com essa técnica, seus elementos inusitados e a possibilidade de leituras não lineares. A colagem está presente desde os meus primeiros estudos, que foram, aliás, influenciados pelo workshop realizado com o designer.

EUGENE FELDMAN Em uma visita aos

ANDY WARHOL Pintor, designer e cineasta

Eugene Feldman desenvolvia em sua gráfica, The Falcon Press, um trabalho experimental quanto às potencialidades da impressão offset. Fascinado pelo trabalho de Feldman, Aloisio propõe produzirem um livro juntos. Doorway to Portuguese (1957) seria o primeiro de muitos outros da parceria. A obra contém basicamente um apanhado de experimentos em offset, com a inclusão de textos em português, destacando em cada página uma letra ou palavras, como em um livro de abecedário. Inicialmente, o projeto previa a apresentação de todo o alfabeto, mas foi sendo reduzido até fixar-se em nove iniciais de palavras, que possuíam, aos olhos dos autores, “o mais forte apelo gráfico”. A visão de Feldman é evidente em um dos textos finais: “Esses experimentos são apenas um começo, uma tentativa de explorar o uso total dessa forma de arte. Nos anos que virão o processo do offset deverá tornar-se uma das mais importantes ferramentas criativas de um artista”.

norte-americano, Andy Warhol é conhecido principalmente pelo seu envolvimento com o movimento pop art. Na década de 1960, sua trajetória como artista plástico sofre uma reviravolta quando ele resolve se apropriar das ideias publicitárias em suas criações. Nesse mesmo período, também renova o movimento conhecido como pop art ao gerar mecanicamente inúmeras cópias de seus trabalhos pela técnica da serigrafia. Warhol concretiza essa produção com elementos extraídos do cotidiano, como latas de sopas Campbell, garrafas de CocaCola, rostos de ícones da indústria cultural, como o de Marilyn Monroe, o mais famoso. Assim, a utilização de matéria-prima descartável, torna-se uma técnica consagrada e conhecida. A arte contemporânea, principalmente, o movimento pop art, sempre me influenciou. Por essa razão, acredito que esse projeto como um todo se apoia nas referências dos trabalhos desenvolvidos por Andy Warhol. Também procuro utilizar elementos do dia a dia, bem como interferir em elementos já significados, como os meus últimos estudos de colagem com tinta aquarela, inspirados em seus trabalhos de serigrafia1. Além, é claro, da aproximação visual e narrativa dos experimentos com as obras dele.

Estados Unidos, o designer gráfico brasileiro Aloisio Magalhães, descobre que, no museu da Filadélfia, ocorreria uma exposição de impressões do artista e impressor Eugene Feldman. Assim, foi o início de uma forte amizade que veio a render experimentos notáveis no campo do design editorial.

Ou, nas palavras de Aloisio Magalhães: “Aquele livro não começou sendo um livro; nós simplesmente estávamos experimentando o processo de offset para avaliar o que podia ser feito. Não tínhamos plano para o livro e as páginas também não foram verdadeiramente planejadas. Tudo que tínhamos era a ideia de fazer alguma coisa, então continuamos a fazer

folhas experimentais. E daquelas folhas todas, nós fomos separando as que nos pareciam mais interessantes de algum jeito ou mais intrigantes por alguma razão técnica, e as mantivemos de lado para uma possível página em um livro. Enquanto discutíamos sobre aquelas páginas e pensávamos sobre as imagens que pudessem ser associadas em algum tipo de livro, tive a ideia de introduzir alguns pequenos textos em português, baseados no princípio do ABC (abecedário), e isso nos deu um modo flexível de trabalhar com as páginas”. (MAGALHÃES, 2003, p. 98) Como qualquer projeto experimental, o caminho nunca é previsível. Aqui encontro uma similaridade com o modo como desenvolvi meu projeto. Assim como Aloisio Magalhães e Eugene Feldman trabalharam em seu primeiro livro, eu não fazia ideia da forma que meus experimentos iriam tomar. Apenas me propus a fazer um atrás do outro, mas utilizando diferentes técnicas. Em paralelo, selecionava os mais interessantes. Feldman usava as máquinas como um pintor faz com seus pincéis. Ele acreditava que tanto a impressora offset quanto a prensa manual eram extensões das mãos e dos talentos do homem. Segundo ele, “certamente, daqui a vinte anos nossas técnicas serão diferentes. A impressão poderá ser feita eletronicamente, mas seu projeto e sua composição continuarão a apresentar desafios estéticos”. Eugene Feldman transformou a impressão em offset em um meio gráfico e artístico, interferindo em seu processo e dando novo significado àquela técnica. Neste projeto, também utilizo um processo de impressão, a risografia2.

2 A impressora Riso utiliza uma técnica de quadros semelhante à serigrafia. É criado um quadro perfurado para cada cor, que é posteriormente colocado num tambor rotativo. A tinta passa para o papel pelos furos microscópicos. É impressa uma cor de cada vez. Ao imprimir mais cores, os tambores têm de ser trocados e o papel volta a passar pela máquina.

A risografia está limitada a um certo número de cores disponíveis comercialmente. Como a tinta utilizada não é 100% opaca, cores podem ser sobrepostas para criar outras novas. O trabalho final sempre será imprevisível. Como a Riso também não tem um registro perfeito, haverá com frequência um pequeno desalinhamento das cores.


CASOS CORRELATOS trabalhos do designer Rico

Lins. Labyrinth of Passion, Revista Big, Cartaz Doces Poderes, Les Droits de L’Homme et du Citoyen e Panamericana Graphic Design.


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CASOS CORRELATOS trabalhos

do artista Andy Warhol.


CASOS CORRELATOS livro Doorway to Portuguese

e trabalhos do artista Eugene Feldman.


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D I Á O R I

Colagem é uma técnica ou processo de composição que consiste na utilização de recortes de materiais de diversas texturas, sobrepostos ou colocados lado a lado, na criação de uma imagem. O cubismo foi o primeiro movimento artístico a utilizar a colagem, como se pode observar em obras de Picasso e Georges Braque. Trata-se de uma composição que tem como procedimento juntar numa mesma imagem outras imagens de origens diferentes.

1

DIÁRIO A ideia de manter um diário surgiu da necessidade de apuração de diferentes linguagens e experiências. Sendo assim, antes de qualquer contato com algum tipo de material, foi preciso sair da minha rotina, pesquisar, ler e escrever. Procurei manter o tom informal de um diário para registrar as anotações com minhas impressões e meus experimentos.

Iniciei minha jornada ainda no período de férias. Resolvi sair pelas ruas da cidade, assistir a palestras, ver exposições e conversar com pessoas interessantes para o meu projeto. Confesso que a proposta de um PGD Experimental não foi fácil para mim desde a banca de qualificação. Foi como um balde de água fria. Faltava entusiasmo e um comprometimento mais profundo e real com o projeto. Mas, aos poucos fui me envolvendo com a ideia. 10 DE JULHO A primeira pessoa que tive a sorte

de encontrar no decorrer dessa experiência foi Celso Longo, meu antigo professor, que ia dar uma palestra no edifício da Editora Abril, sobre o seu livro: Design Total – Cauduro Martino. Na época, eu ainda trabalhava em uma revista nessa editora. Então, resolvi descer até o mezanino para assistir à palestra. Ele apresentou todo o processo de como foi idealizada e desenvolvida a Avenida Paulista, como ela era e como se transformou. O mais interessante foi visualizar na apresentação os materiais originais. Ao término da palestra, esperei todo mundo sair e fui conversar com Celso. Pensei em lhe pedir alguns conselhos sobre o meu projeto. Expliquei a ele sobre minha pesquisa e contei que me sentia bastante perdida em relação ao que fazer e como prosseguir. Ele disse que era normal sentir-se

assim em um PGD Experimental e que eu deveria experienciar mais fora da minha zona de conforto. Apesar de ter se resumido a um curto bate-papo, esse encontro com Celso foi importante, pois, pela primeira vez, me senti confiante em parar de escrever e começar a agir. A palestra e o livro como um todo também me ajudaram a entender como o processo é fundamental para um projeto, seja ele experimental ou não. 14 DE JULHO Fiquei sabendo pelo Facebook

sobre um workshop com o designer Rico Lins. Coincidentemente, eu já estava procurando um meio de entrar em contato com ele, pois, durante a minha banca de qualificação, o professor Daniel Trench havia recomendado que eu conferisse o trabalho de Rico, mais especificamente seu cartaz Labyrinth of Passion. Resolvi então me inscrever para participar. O workshop seria no centro, no edifício da Caixa Cultural. Ao chegar lá, vi que havia uma pequena fila de espera e fiquei com medo de não conseguir entrar para poder fazer algumas perguntas para ele. Enquanto aguardava, fiquei olhando um folder sobre uma exposição do Rico Lins que estava em cartaz, Ponto de Vista, Coleção Rico Lins de Cartazes Contemporâneos. Alguns minutos se passaram quando uma moça apareceu dizendo que todos podiam entrar e apontando o caminho. Entramos, sentamos em torno de uma mesa e nos apresentamos. Percebi que tinha gente de todas as áreas – e eu achando que só iria encontrar designers ou pessoas de áreas relacionadas. Após a conversa, Rico Lins nos deu uma aula sobre colagem e cartazes e começamos a fazer nossas colagens com um único tema: intolerância. Escolhi intolerância a gênero.


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Depois de muito procurar em revistas e livros que nós tínhamos levado e compartilhado, reuni as imagens que condiziam com o tema e, feito isso, comecei a recortá-las. Rico Lins, passando pelas mesas, percebeu que eu estava com dificuldades em recortar uma pequena área com a tesoura e foi me ensinar a cortá-la com o estilete. Achei que seria complicado, mas do jeito como ele explicou se tornou bem mais fácil e, no final, fiquei bastante feliz com o resultado. O workshop era longo, das 13 às 18 horas. Até que todos apresentaram seus cartazes na frente da sala já eram quase 19 horas. As pessoas começaram, então, a se despedir. Eu estava ansiosa: finalmente ia poder lhe fazer algumas perguntas sobre o cartaz Labyrinth of Passion, que Rico Lins tinha feito para um filme, de mesmo título, do Pedro Almodóvar. Quase todo mundo já tinha ido embora – era a minha deixa. Fui até Rico e comecei perguntando se lembrava do cartaz. Ele disse que sim, que era da época em que morava em Nova York. Uma produtora havia pedido para ele fazer o cartaz de divulgação do filme nos Estados Unidos. Rico contou que, naquele tempo, Pedro Almodóvar não era muito conhecido, e deu risada. Fiz diversas perguntas, estava claramente empolgada. Pedi que falasse sobre o processo criativo para a confecção do cartaz. Ele foi sucinto. Respondeu que tinha sido muito simples: primeiro, assistiu ao filme e depois saiu à procura de publicações que falassem daqueles temas, como revistas para o público homossexual, sobre novelas, cabeleireiros etc. Por fim, reuniu diversas imagens, recortou-as e transformou-as em um cartaz. Insatisfeita com a explicação, perguntei se ele havia equalizado as cores de algum jeito. Ele não havia mencionado

nada a respeito, mas eu tinha notado que todas imagens tinham as mesmas tonalidades. Ele riu, ficou meio sem entender e me surpreendeu com a resposta: “Não! Eu apenas encontrei imagens com tonalidades parecidas”. Foi então que comecei a pensar e a entender a diferença de um trabalho completamente manual. Aí foi a vez de Rico perguntar sobre o meu projeto. Sem saber o que estava fazendo e para onde estava indo, eu tentei explicar da maneira mais natural possível. No final, ainda perguntei se ele havia se inspirado no cartaz original de algum modo. Fui surpreendida novamente quando Rico respondeu que nunca o tinha visto e me perguntou como era. Falei que era bem diferente do que ele havia feito. Ele falou que depois ia dar uma olhada no cartaz pela internet. Estava ficando tarde, e o pessoal do workshop me aguardava para irmos juntos até o metrô. Agradeci e me despedi. Eu, que inicialmente pretendia apenas fazer algumas perguntas sobre o cartaz para Rico, acabei achando o workshop bastante enriquecedor. Até então eu não tinha realmente experimentado um processo de colagem1. Depois disso, me senti mais à vontade para experimentar mais. 30 DE JULHO Já fazia um tempo que a exposição

A Força da Matéria, do artista espanhol Joan Miró2, estava no Instituto Tomie Ohtake. Já conhecia um pouco do trabalho de Miró e resolvi ir até lá conferir. Ao observar as obras, que estavam lado a lado, inevitavelmente não pude deixar de relacioná-las com os filmes de Pedro Almodóvar, não só pelo fato de os dois serem espanhóis mas também pela constante utilização de cores fortes, primárias e pelos traços autorais e expressivos, que me fizeram lembrar das cores e dos temas que o

cineasta aborda. Notei também que ambos estão ligados à experimentação e procuram o incômodo e a primeiridade. Percebi, então, que esse exercício, de relacionar as linguagens dos filmes analisados com as exposições, me ajudava a enxergar de quantas linguagens eu podia me apropriar para o meu projeto. E me senti inspirada para começar a experimentar. Dei início aos experimentos quando fui à Papelaria Universitária, ao lado da ESPM, na Vila Mariana, e comprei diversos papéis, tintas, pincéis e o que mais eu tinha vontade. Ao chegar em casa, a primeira coisa que fiz foi abrir tudo na mesa do meu quarto e procurar descobrir a diferença dos materiais, como a tinta aquarela em comparação com a acrílica. “E se eu mudar o papel, será que a cor muda? E se eu adicionar essa caneta com essa tinta, o que acontece?” Bom, estava me permitindo sentir aquilo tudo, que ainda era muito novo para mim. Fiquei um dia inteiro apenas descobrindo como funcionava e confesso que foi uma experiência completamente singular durante todo esse processo. O segundo passo foram as ilustrações. Eu estava me habituando a manusear todas aquelas tintas, canetas, papéis e pincéis. Comecei, então, a desenhar algumas formas femininas, de vários jeitos, e, depois de alguns experimentos, acabei encontrando um caminho, um traço livre em que uma parte é mais grossa e a outra mais fina. Representava tudo que o objeto de estudo simboliza, a constante mudança.

2 O escultor, pintor e gravurista espanhol Joan Miró i Ferrà quando jovem frequentou a Reial Acadèmia Catalana de Belles Arts de Sant Jord, na capital catalã, e a Academia de Gali. Depois de completar seus estudos, esteve em Paris, onde conheceu Pablo Picasso e entrou em contato com as tendências modernistas, como o fauvismo, o dadaísmo e o surrealismo.


DIÁRIO workshop com Rico Lins, cartaz

feito em aula, e exposição A força da matéria, de Joan Miró.


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DIÁRIO ilustrações de formas femininas

com nanquim, caneta preta e tinta acrílica.


DI O R Á I 1

Martin Parr é um fotógrafo documentarista britânico. Ele é conhecido por projetos que possuem um olhar íntimo, satírico e antropológico dos aspectos da sociedade moderna, especialmente por documentar as classes sociais da Inglaterra. Seus mais famosos trabalhos são: The Last Resort (1983–1985), The Cost of Living (1987–1989), Small World (1987–1994) and Common Sense (1995–1999).

DIÁRIO 23 DE AGOSTO Tenho o costume

de ir todo ano à exposição sp-arte/foto. Ela estava em cartaz no Shopping JK Iguatemi e lá fui eu de novo. Entrei e logo peguei um panfleto para ler sobre os expositores depois. As fotografias, como sempre, eram lindas. Eu passeava com calma entre elas, observando cada uma, para talvez tentar relacionar com alguns dos filmes analisados. Entre as fotografias expostas, três me chamaram a atenção. Todas do fotógrafo Martin Parr1. Estavam posicionadas uma embaixo da outra. A primeira era de uma praia vista de cima, com várias toalhas e pertences coloridos e estampados. A segunda, de hambúrguer servido em um pratinho de isopor. Já a terceira mostrava três velhinhas cuidando de seus cabelos enquanto tomavam um chá no cabeleireiro. Não pude deixar de notar a influência kitsch nas imagens e logo relacionei com os cenários de Todo sobre Mi Madre. Depois da exposição, me peguei pensando em por que não utilizar a fotografia? Novamente, não sou perita no assunto, mas tinha prometido a mim mesma que iria sair da minha zona de conforto e nunca dizer não para uma ideia “maluca” que eu tivesse. Não custava tentar. Talvez inspirada pela segunda foto de Martin Parr, pensei em fotografar comida. Sim, comida. Se, com uma foto de hambúrguer eu conseguira absorver a cultura de uma classe social, por que não utilizar esse mesmo símbolo para transmitir outras ideias? Comecei a anotar sem parar diversos experimentos que vinham à minha cabeça2. Entretanto, dois dias depois, acabei me vendo numa situação complicada: fiquei sem orientador. Naquele momento, me senti totalmente perdida.

Parecia uma doida pelos corredores da ESPM pedindo ajuda a qualquer professor que se dispusesse a me orientar. Tudo indicava que era tarde demais. Passei alguns dias desanimada, pensando que não iria conseguir prosseguir com o projeto até o final do ano. Mas não desisti. Algumas semanas depois, eu ainda estava parada no tempo. Não conseguia fazer nada sem antes encontrar um orientador. Tentei falar com todos os orientadores possíveis. Foi então que encontrei o professor Marcos Mello e contei sobre a minha situação. Uma semana depois, começamos nossa orientação, em meados do mês de setembro. Confesso que durante aquele mês e meio meu entusiasmo não era o mesmo. Estava meio perdida, parecia que tinha voltado à estaca zero. Mas, logo em nossa primeira orientação, essa sensação diminuiu: conversamos sobre o projeto, o que já tinha feito, o que estava produzindo e pensando em fazer. Nesse momento, me senti aliviada e segura. Comecei a me dedicar mais e a correr contra o tempo perdido. Retomado o projeto, a primeira coisa que fiz foi experimentar o processo de colagem. Saí em busca de revistas velhas em casa e coloquei a mão na massa. No início, tentei não pensar muito e ver no que ia dar. Selecionava algumas imagens, recortava e ia montando uma colagem atrás da outra. Observei que algumas faziam sentido, outras nem tanto. A partir daí, fui afunilando e prestando mais atenção para entender o que funcionava e o que não funcionava. Também passei a mesclar as colagens com tintas e canetas, gostei da mistura e prossegui nesse caminho.


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26 DE SETEMBRO Como estava entrando nos trilhos novamente, não pude deixar de visitar a Feira Multiverso, de publicações independentes. Já tinha ido a algumas dessas feiras, como a Feira Plana e a Tijuana2. Sempre tem muita coisa bacana e interessante para ver, e eu estava precisando desse tipo de inspiração. Entretanto, dessa vez, resolvi conversar com os expositores, saber mais sobre os trabalhos e processos. Talvez me ajudasse no meu projeto.

Ao chegar ao local, pensei que tinha entrado no lugar errado. Tudo o que eu via eram roupas e acessórios. Mas, depois de alguns minutos, encontrei uma escada que levava à feira de publicações. A primeira mesa em que parei era da Macuco Press, de Curitiba. Cumprimentei o casal que estava atendendo e fiquei olhando os diversos pôsteres feitos com risografia. Havia uma divisão: uma parte era bem geométrica e a outra exibia uns desenhos mais detalhados feitos com grafite. Observei bem e comecei a fazer algumas perguntas para Carla, a moça atrás da mesa, sobre seu processo criativo. Ela me contou que seu único objetivo era experimentar as formas geométricas em diferentes perspectivas e, é claro, a risografia. Durante a conversa, perguntei também o que ela achava desse tipo de impressão. Ela respondeu, enquanto me mostrava nos pôsteres, que o que mais gostava era quando a máquina de risografia deixava algumas falhas na impressão. Ao lado dessa mesa, havia outra só de livros, do Luiz, da Ikrek Edições. Logo de cara O Que Une-Separa me pareceu intrigante. As 128 páginas da obra têm a mesma imagem, mas com cortes diferentes, que vão se fechando. Enquanto eu olhava, Luiz, com um sorriso

no rosto, não poupou esforços para me explicar toda a história do livro. Passei por diversas mesas. Peguei, senti e vi tudo que estava exposto. Na última, da Selva Press, também de Curitiba, havia um zine do Marcelo Romero, Nothing, Nothing, Everything. Era inteiramente feito com risografia e utilizava apenas duas cores, o verde e o rosa. Achei muito bacana o modo como ele tinha mesclado as cores nas páginas. Por sorte, Marcelo estava bem na minha frente. Eu já tinha visto risografia em outras feiras, já tinha até comprado zines e outras publicações com esse tipo de impressão, mas nunca havia me interessado em saber como funcionava. Resolvi perguntar. Ele procurou me explicar da maneira mais simples possível. Mas eu insisti, queria entender como era o processo na máquina. Ele, então, me deu uma resposta mais técnica. Assim que cheguei em casa, fui pesquisar mais sobre o assunto. Depois da feira, percebi que tinha comprado várias publicações. Tirei tudo da sacola e comecei a folhear e observar com calma cada uma delas. Eram bem diferentes umas das outras. Algumas eram costuradas, outras não; algumas feitas com serigrafia, outras com risografia. Cada qual com seu aspecto singular. Aquele universo me parecia muito interessante, tanto pela forma de produção quanto pela narrativa. Então, me propus a entender mais sobre o assunto. Mas, dessa vez, queria fazer diferente. Em vez de apenas ler livros e pesquisar na internet sobre zines, risografia e feiras independentes, decidi entrar em contato com as pessoas desse meio, saber sobre suas histórias, sobre seus processos criativos, ou seja, fazer a própria pesquisa.

Além disso, retomei a ideia de fotografar comida e resolvi colocá-la em prática. Selecionei algumas ideias que tinha anotado, passei em um minimercado perto de casa e comprei um cacho de banana, uma caixinha de morango e dois limões-sicilianos. Depois, voltei à Papelaria Universitária para comprar papéis coloridos, que iriam servir de fundo para a fotografia. Já tinha reservado o estúdio da faculdade. Eram 19 horas quando cheguei lá. Sentei em uma das cadeiras e comecei a pensar em como gostaria de fotografar. Como seria a luz? Iria usar fotografia digital ou analógica? Depois de alguns minutos, descobri que tudo o que eu queria com esse experimento era trazer a sensação de incômodo. Algo simples e direto, mas não óbvio. Mas ainda não estava totalmente segura de como chegaria lá. Só iria encontrar o caminho experimentando. Peguei os papéis e as frutas e comecei a testar a luz, os fundos, as disposições e os planos. Depois, fui até a sala de computação para conferir as fotografias na tela. Observei que as combinações de cores eram interessantes, mas o resultado dos experimentos feitos com os morangos e os limões não era o que eu imaginava – a mensagem que passavam não se sustentava. Em contrapartida, o experimento com a banana era tudo que eu buscava. As cores, o estilo e a mensagem se complementavam. Na verdade, eu não esperava muito desses experimentos, mas acabei empolgada, querendo testar outras ideias.

ANEXO Lista de experimentos, página 129 2

3 Em 2002, foi inaugurada em Higienópolis a Galeria Vermelho, voltada para arte contemporânea. Em 2007, a galeria passou a ocupar a casa ao lado também. Lá havia uma área chamada Tijuana, um pequeno espaço com um corredor, prateleiras e cadeiras brancas, dedicado totalmente a livros de artistas. Mas, com o tempo, começaram a oferecer outros produtos que não se adequavam mais àquele espaço, como camisetas, discos, gravuras etc. Foi então que surgiu a ideia de criar a feira Tijuana.


DIÁRIO exposição sp-arte/foto 2015, fotografias

de Martin Parr e Feira Multiverso.


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DIĂ RIO estudos de colagens feitos com revistas,

jornais, livros antigos, tinta acrĂ­lica e canetas.


DIĂ RIO estudos de colagens feitos com revistas,

jornais, livros antigos, e canetas.


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DIĂ RIO estudos de fotografia digital no

estĂşdio de fotografia da ESPM.


DI O R Á I

DIÁRIO 29 DE SETEMBRO Já tinha ouvido falar

da Banca Tatuí, que vendia títulos independentes. Nessa terça-feira, aproveitei o horário de almoço para dar uma passadinha lá. Peguei o metrô em direção à Barra Funda, desci na estação Santa Cecília e logo encontrei o lugar. Fiquei surpresa ao ver que tinha até um banco para que se possa ler sentado. Não perdi tempo: peguei todos os zines e livros ao meu alcance, sentei e comecei a folhear um por um. Nara, a atendente, notou minha empolgação e foi me explicando sobre as publicações que estavam comigo. Depois de alguns minutos, perguntei a Nara como surgiu a banca. Ela contou que tudo começou quando João Varella, Cecília Arbolave e Thiago Blumenthal criaram a editora Lote 42 apostando que havia uma demanda reprimida por projetos editoriais alternativos. O objetivo deles era resgatar a banca como ponto de leitura e espaço de convivência. Bom, certamente era o que eu estava fazendo. Fiquei lá durante uma hora e olhei tudo que me chamou a atenção. Pedi, inclusive, algumas indicações de leitura para Nara. Ela me mostrou zines da artista Ale Kalko, todos muito bem elaborados, com papéis de texturas diferentes dos outros que havia encontrado.

uma maçã. À noite, passei em um restaurante frânces, o Bravo Bistrô, do lado de casa, e comprei o crème brûlée. Reservei na geladeira, pois tinha marcado o estúdio de fotografia só para o dia 9. Em casa mesmo, fiz um teste do experimento de gelo com flores apenas para ver como iria ficar. No dia seguinte, percebi que o crème brûlée tinha desmanchado e que o gelo com flores, além de derreter muito rápido, era muito difícil de fotografar exatamente do jeito que estava pensando. Não tinha sido uma boa ideia. Tudo estava uma confusão e eu só tinha o dia do estúdio para resolver. Desisti de fotografar o gelo e resolvi comprar o crème brûlée no próprio dia. Pedi, então, um dia de folga no meu trabalho. Às 17 horas, corri até o restaurante, comprei o crème brûlée e fui de metrô direto para a faculdade, carregando três folhas A3 coloridas para os fundos, duas maçãs na bolsa e o crème brûlée na mão, no horário de pico da linha vermelha. Ao sair do metrô, tudo estava intacto – ou quase. Às 19 horas, comecei a fotografar no estúdio. Depois de muitas tentativas, mais precisamente 86, consegui dois bons experimentos, um de cada comida. 10 DE OUTUBRO Fiquei sabendo que Bia

Meu horário de almoço estava acabando. Reuni as publicações de que mais gostei e levei tudo para casa para aumentar meu pequeno acervo. O mais interessante nessa experiência foi constatar a peculiaridade de cada livro ou zine. Eram totalmente diferentes dos que tinha visto na Feira Multiverso e em outras feiras que havia visitado antes de iniciar o projeto.

Bittencourt, a criadora da Feira Plana, feira anual de publicações independentes que acontece há três anos no Museu da Imagem e do Som (MIS), estava realizando um pequeno evento no bar Elevado. Achei mais conveniente primeiro mandar um e-mail para a Bia perguntando se poderia fazer algumas perguntas no evento. Ela disse que sim, desde que fosse um breve bate-papo.

No dia 7 de outubro, resolvi produzir outros experimentos fotográficos da minha lista: um com crème brûlée; outro com gelo e flores; e outro com

Cheguei ao local às 17 horas. Havia muita gente. Depois de alguns minutos, encontrei a Bia e me apresentei. Falei um pouco sobre o meu projeto e


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logo perguntei qual havia sido a inspiração para a Feira Plana. Ela disse que fora a New York Art Book Fair1, evento gigante de publicações em Nova York que conta não só com independentes mas também com vários editores de livros de arte, revistas, zines, autopublicações do mundo inteiro, realizado no prédio do MoMA PS1. Depois que idealizou a Feira Plana, Bia apresentou o projeto para vários museus até que um produtor do MIS resolveu apostar na ideia. Sobre a organização do evento, ela contou que não é fácil, que demora meses para montar uma edição. O espaço estava lotado e Bia precisava continuar seu trabalho. Agradeci, dei uma olhada nas imagens e zines expostas nas paredes e fui embora. Apesar de ter sido um curto diálogo, me trouxe dados que eu desconhecia. Achei muito interessante o fato de ter sido inspirada em uma feira que já existia. Em casa, fui procurar mais informações sobre a New York Art Book Fair. Paralelamente às colagens, fotografias, entrevistas e visitas, continuei buscando diferentes formas de experimentação. No início da segunda etapa do projeto, eu havia reservado um espaço na mesa do meu quarto para os materiais: diversos tipos de papel, revistas, tintas, pincéis e tudo que estava produzindo e utilizando. Olhei bem para a quantidade de tintas que tinha comprado e percebi que não havia usado nem metade delas. Então, pensei em como podia me apropriar daquele material. Em um primeiro momento, só desejava sair do óbvio. Sabia que não queria usar pincéis, não queria pintar, queria era achar um meio diferente de utilizá-las a favor das minhas análises. A primeira conexão foi bastante evidente: tinta remete a cor, e cor me remetia às diversas misturas de cores nos filmes.

Tentei seguir por esse caminho. Joguei um pouco de cada tinta no papel e comecei a misturálas com os dedos. Para ser sincera, o resultado era previsível e, depois de tentar algumas vezes, resolvi dar um tempo. Fui buscar um copo de água na cozinha e, na volta, vi um rolo daqueles plásticos Insulfilm em cima da bancada. Senti sua textura e resolvi experimentar com algo que não fosse papel. Despretensiosa, cortei um pedaço de plástico do rolo, joguei um pouco de duas cores de tintas guache e, em vez de espalhar com os dedos como da outra vez, tentei dobrar o plástico pressionando-o. Quando abri, o resultado era bem diferente, muito mais interessante: a textura do plástico interferia na mistura das cores. Mesmo sem saber ainda como relacionar a descoberta com meus estudos, continuei experimentando para ver se conseguiria absorver algo mais. Depois de algumas tentativas, percebi que sobrava muita tinta no plástico e resolvi imprimi-las no papel apenas para retirar o excesso. Notei, então, que a textura obtida desse modo era ainda mais interessante. E foi assim que comecei a experimentar de outra maneira. Primeiro estiquei o plástico, depois joguei um pouco das duas cores de tinta guache e, em vez de dobrar o plástico, pressionei-o direto no papel. Fiquei muito satisfeita com o resultado: as tintas se mesclaram de forma natural, criando áreas mais sólidas e outras mais diluídas.

1

A NY Art Book Fair já está em sua décima edição e é realizada pela Printed Matter, no MoMA PS1, Long Island City, Queens.

Principal evento do mundo para livros de artistas, catálogos, monografias, periódicos e zines, a feira é gratuita e aberta ao público. Neste ano contou com mais de 350 livrarias, antiquários, artistas, instituições e editores independentes de 28 países. A NYABF oferece uma extensa programação e eventos especiais, como palestras sobre curadoria, workshops, leituras e outras intervenções.


DIÁRIO Banca Tatuí, zines e publicações independentes e bar Elevado.


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DIĂ RIO testes com gelo e flores em casa.


DIÁRIO produzindo no estúdio de fotografia da ESPM.


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DIĂ RIO estudos de fotografia digital no

estĂşdio de fotografia da ESPM.


DIĂ RIO primeiros estudos de cor com tinta

guache vermelha e verde no papel e plĂĄstico.


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DIÁRIO outros estudos de cor com tinta guache usando diferentes combinações de cores no papel e plástico.


DI O R Á I

DIÁRIO 15 DE OUTUBRO Depois de muito conversar com algumas pessoas relacionadas a publicações independentes, senti necessidade de entender como esses processos ocorriam na prática. Em um atendimento em que eu e meu orientador conversamos sobre zines brasileiros, feiras de publicações e alguns processos alternativos de impressão, ele recomendou que eu entrasse em contato com Zansky, que tem ótimos trabalhos de serigrafia. Nesse mesmo dia, pesquisei sobre o artista na internet. Logo entrei em contato com ele e, depois de uma breve conversa por e-mail sobre o seu trabalho e o meu PGD, marcamos o encontro para o dia 1º de outubro. Infelizmente, ele descobriu que tinha uma reunião marcada para essa data. Ainda por e-mail, remarcamos para 15 de outubro.

Acordei às 9 horas, tomei o café da manhã, peguei ônibus e metrô e desci na Barra Funda. O estúdio dele ficava ali perto. Quando cheguei em frente ao prédio, não reconheci o lugar pelas imagens que tinha visto no Google Maps, mas toquei a campainha mesmo assim – o endereço parecia estar certo. Uma voz masculina atendeu o interfone e disse que eu podia entrar. Subi alguns lances de escada e logo encontrei Zansky, que me recebeu em um estúdio. Em um primeiro momento, pensei que fosse o dele, mas ele me contou que ali havia vários estúdios. O dele ficava em outro andar. Continuando a subir, passamos por um que tinha diversas roupas espalhadas e penduradas. Deduzi que era de algum estilista ou costureiro. Depois, passamos pelo de um artista que faz esculturas (havia diversas obras de argila espalhadas) e por outros estúdios que não consegui identificar direito até que chegamos ao de Zansky. Nas paredes, vários papéis pendurados, a maioria, ao que me pareceu,

serigrafia. Ele me indicou uma cadeira e sentouse à minha frente, ao lado de um computador. Então, me entregou um de seus zines, o Fortuna, para folhear. Eu já tinha visto esse zine no Facebook, principalmente em páginas de feiras de publicações, mas era a primeira vez que o tinha nas mãos. Ansiosa, comecei a lhe fazer perguntas. Tantas que talvez tenha esquecido de mencionar algumas aqui. A primeira foi como funcionava o processo de risografia. Falei que várias pessoas já tinham tentado me explicar, mas que tudo ainda estava muito confuso na minha mente. Zansky riu e, superatencioso, descreveu parte por parte do processo. Contou inclusive como criou o zine Fortuna, mostrando os prints screens que ele tirou do Google Maps e até como acontece a separação de cores para mandar para gráfica e imprimir em risografia. Vendo os layers e os canais de cores, ficou muito mais fácil entender. Quando conversei com o Marcelo na feira Multiverso, eu havia entendido a teoria, mas não imaginava como colocar em prática. Zansky foi explicando sobre o processo de serigrafia e tudo que fazia. Mostrou suas telas e até outros projetos que estavam guardados em locais escondidos. A maneira como ele trabalha com a serigrafia é incrível. Também mostrou alguns stencils de papel. Disse que não tinha paciência para fazer fotolito e que muitas vezes produzia com papel mesmo: recortava a parte que iria precisar para imprimir e depois puxava a tinta. Observei que havia alguns experimentos de serigrafia rosa e azul na mesa dele. Ele contou que tinham sido feitos com fita adesiva: ele cola a fita onde não quer que apareça a tinta e, quando tira, o efeito é o mesmo do papel cortado. Zansky


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disse que utiliza muito papel colorido, que não costuma trabalhar com papel branco. Prefere combinar as cores do papel com a tinta. Mostrou ainda diversos exemplos de combinações que tinha feito, entre elas um zine de ilustrações com serigrafia. Perguntei sobre o processo criativo, e ele contou que, primeiro, para determinar o tamanho do zine, usava o livro Elementos Tipográficos, de Robert Bringhurst. Pegou o livro em uma prateleira e me mostrou exatamente a página que contém uma explicação baseada em cálculos para os tamanhos. Depois, começamos a conversar sobre diversos assuntos: design, grafite, feiras de publicações... Falei do meu projeto e expliquei um pouco como funcionava o PGD Experimental. Ele foi bastante receptivo. Lembrou de dois trabalhos que também visavam sair da zona de conforto e partir para a interação: Twentysix Gasoline Stations (1963) e Every Building on the Sunset Trip (1966), ambos do artista Edward Ruscha. Zansky explicou que, no primeiro, Ruscha basicamente ia parando em todos os postos de gasolina que encontrava e fotografando. Era um trabalho experimental, mas tinha um caminho e um projeto. Do mesmo modo, o segundo trabalho consiste em um livro semelhante a uma sanfona, dando a sensação de continuidade das ruas, em que ele mostra os dois lados das ruas, um com as fotografias voltadas para cima e o outro para baixo, opostos, como a localização das ruas. Quase no final da conversa, contou sobre um projeto que havia feito para a empresa de papel Canson. Antes desse projeto, tinha realizado alguns experimentos com telas de serigrafia. Disse que se tratava de um “erro intencional”, que, quando se trabalha há algum tempo com

serigrafia, sabe-se o que é certo e errado, mas ele, no caso, queria explorar mais o efeito desses “erros”. Foi então que tirou uma pasta com vários A3 lindíssimos, que pareciam ter sido feitos com serigrafia, mas eram muito peculiares, diferentes de tudo que eu já tinha visto relacionado à serigrafia, até mesmo dos trabalhos dele. Zansky explicou que tentou fazer tudo “errado”, jogando diversas tintas ao mesmo tempo, colando fita adesiva e até imprimindo uma mistura de tinta com removedor. Descreveu nos mínimos detalhes como aquilo afetava o papel e como funcionava. Fez questão de frisar que todos são únicos, que nem ele mesmo seria capaz de reproduzir os trabalhos, mas que o processo era muito prazeroso. Não pude discordar dele. Muitas das telas sugeriam paisagens, montanhas ou pessoas em ambientes caóticos. Quando ele contou que sua inspiração fora Sinnerman, uma música da Nina Simone, logo associei com o que eu estava fazendo: eu também estava interpretando algo que já existe e transformando-o em uma linguagem própria. Durante todo o processo dos meus experimentos, comecei a pensar nas linguagens visuais que já havia trabalhado, como as cores, as diversas personalidades femininas de Pedro Almodóvar e os planos detalhes de Sofia Coppola. Mas percebi que ainda não tinha tentado trabalhar com a linguagem visual marcante de Jeunet, a mistura do clássico com o moderno de seus filmes. Reli alguns trechos das minhas análises e notei que, no filme, Le Fabuleux Destin d’Amélie Poulain, os ambientes em geral, como estabelecimentos, casas e ruas, apresentam um aspecto antigo e clássico, enquanto as cores fazem o papel oposto. São elas que trazem a

sensação de modernidade. Por isso, entendemos como um ambiente retrô. Com essa ideia em mente, estava produzindo diversas colagens quando encontrei algumas imagens em preto e branco em uma revista Vogue antiga. Então pensei em como as cores poderiam trazer a mesma sensação que Jeunet oferece em Le Fabuleux Destin d’Amélie Poulain. A resposta não poderia ser mais simples: resolvi pintar com tinta alguns objetos, roupas e ambientes das imagens. No primeiro teste, usei tinta acrílica em uma pequena imagem em preto e branco para ver como a cor se portava, mas o resultado ficou estranho. A cor não ressaltava como esperado. No segundo e último teste, escolhi tinta aquarela. Nunca pensei que esse tipo de tinta poderia funcionar para esse experimento, mas a aquarela trouxe um aspecto opaco e uma textura e cor acentuadas, exatamente como eu imaginara. Para trazer mais equilíbrio entre o clássico e o moderno, ainda trabalhei com fundos coloridos. Os resultados, a meu ver, foram surpreendentes. Alguns experimentos realmente trouxeram o estilo retrô. Continuei testando em todas as imagens em preto e branco que consegui encontrar e em algumas coloridas também. Além disso, também determinei como utilizar os estudos feitos com tinta e plástico. Resolvi escanear o resultado dos experimentos impressos no papel e até os plásticos. Quando olhei os estudos digitalizados, percebi que os plásticos tinham um aspecto estranho, enquanto os impressos no papel se mantinham iguais ao original, só que agora, eu conseguia dar zoom na parte mais significativa do experimento. As

misturas de cores são muito interessantes e, de certo modo, até lembram pinturas. Depois de muitas experimentações e conversas, chegou a hora de selecionar o material para transformar em um zine. Primeiramente, para isso acontecer, eu teria que pensar em uma narrativa que favorecesse os meus experimentos e amarrasse o conteúdo no zine. Por isso, a seleção de experimentos, o formato e o tipo de impressão ocorreram de forma intencional.


DIĂ RIO estĂşdio do artista Zansky e seus trabalhos com serigrafia.


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DIĂ RIO colagens de revistas com tinta

aquarela e papĂŠis coloridos.


DIĂ RIO escaneando os estudos feitos

com tinta, plĂĄstico e papel.


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DIĂ RIO estudos digitalizados.


DIĂ RIO estudos de colagens feitos com revistas,

jornais e livros antigos.


107

DIĂ RIO colagens de revistas com tinta

aquarela e papĂŠis coloridos.


DI O R Á I

DIÁRIO O tipo de impressão escolhido foi a risografia – um tipo específico e raro de encontrar em gráficas do Brasil. A primeira gráfica e estúdio de design, aberta em 2012, com esse tipo de impressão no Brasil foi a Meli-Melo, localizada perto do bairro Barra Funda, em São Paulo. Durante mais de duas semanas, tentei entrar em contato com a gráfica para ver se era possível imprimir o meu projeto lá. Infelizmente, não obtive resposta. Fiquei um pouco preocupada, pois queria conseguir essa impressão e acompanhar o processo. Mas logo lembrei da conversa, na feira Multiverso, com o Marcelo Romero, da Selva Press, outra gráfica e estúdio de design que imprime em risografia também. O único problema: a Selva Press fica em Curitiba.

Fiquei algum tempo pensando em como resolver esse problema. Cheguei à conclusão de que, se era essa a minha vontade, deveria ir atrás. Então mandei um e-mail para a Selva Press perguntando se poderia imprimir o meu zine e acompanhar o processo de impressão lá. Logo responderam que sim. Comecei então a pesquisar os preços das passagens e do hotel para viajar para Curitiba no dia 8 de novembro. 8 DE NOVEMBRO Acordei às 4 horas da manhã

para pegar o ônibus das 6h20, que ia me levar a Curitiba. Cheguei lá às 13 horas e peguei um táxi direto para o hotel, que fica no Centro Cívico, próximo da rodoviária, para deixar a minha mala. Fui a pé para a Selva Press, a dez minutos do hotel. Na Selva, fui recebida no portão pela Estelle, sócia do Marcelo. Subimos alguns lances de escada até chegar ao estúdio. Lá havia vários pôsteres e zines colados nas paredes, outros organizados em algumas prateleiras, um cordão fixado de ponta a

ponta no estúdio com prendedores, para secar alguns trabalhos, uma guilhotina, estiletes, tintas, uma secadora de papéis, a duplicadora Risograph, um notebook e um computador. Perguntei sobre a máquina, e o Marcelo me disse que a duplicadora deles é de 1994, já fez milhões de cópias e não aceita plataformas mais avançadas. Por isso, eles têm um computador com plataforma Windows XP. Já tinha mandado meu arquivo separado por cores – isto é, pelo Photoshop determinei quais os canais e áreas deveriam ser de cada cor. É importante frisar que a duplicadora apenas processa tons de cinza, para depois aplicar uma retícula com dpi e ângulos customizados. Por isso, meus arquivos estavam todos em escalas de cinza; a cor seria processada na Riso – por e-mail. Marcelo começou a verificar os arquivos para checar se estava tudo certo. Fiz algumas perguntas sobre o processo e a Estelle e o Marcelo responderam a todas elas. Primeiro quis saber como funcionava o processo na máquina. Então, a Estelle abriu uma portinha da impressora Riso e me mostrou um suporte com um tubo de tinta azul. Disse que era o tambor cilíndrico de tinta, onde é enrolada automaticamente uma folha fina de celulose, chamada de matriz, que cria um stencil temporário da imagem que se está imprimindo. Ou seja, a tinta é pressionada pelo tambor, passando através da matriz para o papel, que é puxado automaticamente pela máquina. Além disso, cada cor é impressa separadamente, em um processo parecido com o da serigrafia. Olhando os tubos de cores, perguntei como era feito o processo de mudança de cor. Achei que era necessário apenas mudar os tubos na máquina. Mas logo


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a Estelle me mostrou sete cilindros de cores ao lado da máquina e explicou que era preciso mudar o cilindro também, ou seja, cada tubo de cor possui o próprio cilindro. Curiosa, perguntei ainda se um cilindro que inicialmente usava um tubo de cor rosa poderia usar um tubo de tinta amarela? Ela respondeu que sim, mas que, até a cor rosa sair por completo do cilindro para virar amarela, gastava muita tinta. Eles preferem fazer isso só em último caso. Quando, por exemplo, compram um cilindro com outra cor de que precisam. Entretanto, a matriz não é fixa. A cada troca de cor, a matriz deve ser descartada e feita outra novamente. O mais interessante é que devem ser feitos alguns testes em cada impressão para sair do jeito que se espera. Depois de envolver a matriz no cilindro, a Estelle pegou alguns “papéis de testes” – papéis reutilizados de outras impressões – para testar como estava saindo a cor. Quando imprimiu pela primeira vez, percebeu que a impressão estava cortando uma parte. Ela deveria ajustar o tamanho da área de impressão. Só que, diferentemente das impressoras comuns, em que isso se ajusta digitalmente, na Riso, é feito por meio da própria máquina. Para visualizarmos o resultado, era preciso imprimir a cada vez. Estelle mudou a área na máquina e imprimiu umas quatro vezes até achar o melhor resultado. Enquanto mexia na máquina, ela avisava que isso deveria ser feito com todas as cores que seriam impressas. Por isso, talvez acontecesse de o registro correr um pouco em alguma camada de cor, pois o resultado impresso em risografia nunca é previsível e perfeito. As cores escolhidas para ser impressas na frente do zine foram: amarelo, rosa fluorescente, azulmédio e preto. E, no verso, a cor escolhida foi o

vermelho-vivo. Enquanto Estelle verificava se estava tudo certo na duplicadora para imprimir, o Marcelo me contou que nunca é bom imprimir uma área muito grande e densa em Riso e que a impressão de fotos é mais complicada, pois cada camada precisa de um tempo para secagem. Mas não me desanimou. Falou que as áreas densas poderiam ser resolvidas e que a impressão de imagens não era um grande problema, já que eu tinha escolhido substituir as cores CMYK pelas existentes. Como nunca havia impresso em risografia, não sabia dessas questões. Então fiquei bastante empolgada quando sentei ao lado do Marcelo, e ele me mostrou no computador como abaixar um pouco os tons de cinza para a cor sair mais suave e menos densa. Ele me explicou que o papel tende a colar no cilindro e não imprime automaticamente por ter muita tinta no papel. Mas que, mesmo abaixando os tons de cinza, pode ocorrer uma variação de tinta visível, como se o fundo estivesse manchado. Olhando alguns exemplos impressos com fundo sólido, eu disse para o Marcelo que não me importava com essas pequenas variações. São “marcas autorais” da impressora; eu não procurava um resultado perfeito. Feito isso, colocamos a primeira cor na máquina, o azul. Depois de imprimir umas três folhas, Marcelo percebeu que uma delas saiu com um fio sólido de tinta em uma das partes. Abriu a portinha da máquina, puxou o cilindro e falou que poderia ser um fio de cabelo grudado na matriz. Eu, como sempre curiosa, fui logo ver onde estava grudado esse fio. Acabei tirando-o com muito cuidado antes que o Marcelo o achasse. Depois, começamos a imprimir as 30 cópias da frente do zine, na cor azul-médio. Também aproveitamos a cor e imprimimos um

pôster. Perguntei a eles como era o mercado em Curitiba e se tinham bastante encomenda. Eles responderam que depende: quando acontecem feiras de publicações na cidade, as encomendas aumentam. Contaram que fazem também alguns trabalhos de cópias simples de panfletos para alguns estabelecimentos, como igrejas, o que me fez lembrar da história da máquina Risograph. Durante os últimos dez anos, designers e artistas se apropriaram desse tipo de impressão, mas a intenção de Noboru Hayama – o criador da máquina – nunca foi desenvolver um instrumento de impressão para designers, e sim criar uma forma de impressão mais acessível. Em meados da década de 1980, a empresa de Noboru, Riso Kagaku, lançou seu primeiro duplicador e logo começou a implantá-lo em escolas e igrejas com um discurso simples: se precisassem de pequenas ou grandes tiragens, era mais barato duplicar usando uma Risograph. Isso porque, entre outros motivos, a tinta é mais barata e mais fácil de utilizar do que o toner. A Risograph não exige o alto aquecimento das fotocopiadoras, usando assim, menos eletricidade e, por fim, requer menos manutenção. Depois de a cor azul-média secar, Estelle repetiu o processo na máquina, encaixando a nova camada de tinta exatamente no mesmo lugar que a azul. Feitos os testes em papéis reutilizados, começamos a imprimir o rosa fluorescente, e logo o zine começava a tomar forma. Percebi uma pequena mancha de impressão em uma parte em branco do zine e perguntei o que era. Estelle explicou que às vezes isso acontece, principalmente por a máquina ser antiga, mas que existe um tipo de borracha específica para removê-las. Enquanto falava, ia apagando a mancha com a borracha com cuidado.

Mas, no dia seguinte, quando foi impressa a cor amarela, notamos que as cores haviam ficado um pouco esquisitas. O amarelo não tinha se misturado com as outras camadas de tinta como de costume. Eles disseram que isso nunca havia acontecido, mas que, com esse tipo de impressão, nada é previsível. Tivemos de recomeçar, mas, dessa vez, trocamos a sequência: começamos pelo amarelo, depois rosa fluorescente, azulmédio e, por fim, o preto. Depois de alguns dias de impressão e secagem de cada camada, conseguimos. O zine estava pronto e com o mais surpreendente resultado de cores que eu poderia esperar. A sensação de realização e as descobertas que fiz ao acompanhar o processo de impressão de cada cor e cada detalhe são indescritíveis – e foram essenciais para ver o meu projeto enfim – quase – pronto. Valeu muito ter viajado sete horas em um ônibus.


DIÁRIO gráfica e estúdio Selva Press,

duplicadora Risograph, tambor cilíndrico de tinta e tubo de tinta azul-médio.


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DIÁRIO matriz – folha fina de celulose, papéis

de testes, primeira tentativa com primeira cor impressa – azul-médio e segunda cor impressa – rosa fluorescente.


DIÁRIO primeira tentativa com terceira cor

impressa – amarelo, erro de impressão, segunda tentativa com primeira cor impressa – amarelo e segunda cor impressa – rosa fluorescente.


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DIÁRIO segunda tentativa com terceira

cor impressa – azul-médio e quarta cor impressa – preto.


O I Z NE

O ZINE Pela etimologia, na língua inglesa a palavra que mais se aproxima de “zine” é “magazine”, que, por sua vez, é definida como periódico que contenha diferentes tipos de escrita – definição que parece se aplicar à maior parte dos zines também. Mas magazines (revistas) não são zines. As razões para essa diferenciação entre revistas e zines vêm do parente mais próximo dos zines: o fanzine, que era predominantemente produzido por pessoas obcecadas por um determinado assunto. A palavra fanzine era originalmente uma gíria de um grupo específico, usada alternadamente com “fan-mag”, ou seja, revista de fã. Apesar de nascidos em meio aos fãs de fantasia e ficção científica, os fanzines viraram zines quando eventualmente se espalharam por outras áreas de interesse, como música, arte, design, fotografia e quadrinhos.

Os zines são publicações de pequena tiragem, normalmente não comerciais, não profissionais e irregulares que tiraram vantagem das mais baratas e acessíveis técnicas de duplicação, assim como de métodos mais tradicionais de impressão, como offset. Segundo Larry-Bob, editor do zine Holytitclamps: “Informação é a razão pela qual um zine existe”. E essa é a razão principal para este projeto ter se tornado um zine. Dentre os segmentos de publicações, encontramos, principalmente, revistas e livros. Revista parecia ser algo muito distante do que eu estava produzindo desde o começo, mas também não enxergava sentido em transformar meus experimentos em um livro. Não queria discorrer sobre um tema, e tudo que vinha à minha mente é que esse projeto iria acabar se transformando em um livro mal-feito de linguagem visual cinematográfica. Isso porque não possuo

embasamento para tanto e também não era o que almejava. Mas, felizmente, durante minha jornada, comecei a me interessar pelas feiras de publicações independentes que, cada vez mais, estão acontecendo no Brasil. E assim, conheci o zine. Adorei, desde o início, desvendar esse universo pouco a pouco. O meu intuito era fazer algo rápido de ler, simples e impactante ao mesmo tempo. O zine, por ser mais barato, prático e sucinto abre muito mais possibilidades de experimentação do que um livro, por exemplo. Com o zine, não há restrição de tiragem, o criador pode simplesmente imprimir quantos quiser, quando precisar. Não há patrocínio, contrato nem lucros exorbitantes. Há apenas a vontade de passar uma informação ou mensagem. Esse foi mais um ponto para o zine se tornar uma opção muito clara para este projeto. Assim como mais três aspectos: o primeiro é o valor autoral do zine, isto é, o desenvolvimento da linguagem – seja ela qual for – do criador para transmitir essa mensagem. O segundo são os diversos tipos de impressão disponíveis. O céu é o limite quando se trata de impressão de zines – diferentemente de outras publicações. Por serem impressos de baixa tiragem, o custo para desenvolvê-los e imprimi-los é menor. Como possuem poucas páginas, é possível imprimir 50 edições de um zine inteiramente em serigrafia. Em contrapartida, é praticamente proibitivo imprimir um livro inteiro em serigrafia. Isso permite que o designer se envolva mais profundamente com o projeto, saindo do conforto do computador e da arte digital. Consequentemente, o terceiro aspecto – e talvez o mais importante – é o controle de todas as etapas de produção. O criador de um zine está envolvido desde a concepção da ideia até o momento da montagem. É ele que cria,


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edita, imprime, monta e refila, destacando a importância do processo no projeto final. A SELEÇÃO E A NARRATIVA Existem os mais diversos tipos de zine, inclusive os que não possuem narrativa nem tampouco transmitem uma mensagem, como os de fotografias de viagens pessoais. Mas, para esse projeto, resolvi ir além da experimentação pela experimentação: queria desenvolver uma narrativa de leitura para o zine. Depois de realizar uma quantia significativa de experimentos, comecei a olhá-los um por um para encontrar um sentido narrativo para a edição do zine. Vale ressaltar que nenhum experimento foi desenvolvido especificamente a favor da narrativa; todos foram tratados individualmente, mas às vezes o acaso trabalha a nosso favor. Sendo assim, não necessariamente um experimento possui o mesmo significado dentro da narrativa e individualmente.

Para este zine, foram escolhidos dois experimentos de tinta feitos com plástico, três experimentos de colagens com diferentes técnicas e três experimentos fotográficos realizados com comidas. Como teria que desenvolver uma narrativa por meio de experimentos já finalizados, o mais natural para mim foi começar pelo miolo, ou seja, definir que tipo de história seria contado para depois amarrar com a capa e a contracapa. Para tanto, precisaria ter um foco, um ponto em comum entre os experimentos, que era, claro, a própria narrativa e a linguagem visual dos filmes analisados. Quando percebi que a ordem cronológica dos acontecimentos era similar nas narrativas de todos os filmes, não pensei duas vezes: me apropriei dela para o zine. As conexões das narrativas em minha cabeça aconteciam freneticamente, como: as diferentes

personalidades das personagens femininas, o incômodo, a não linearidade e os finais abertos. Creio que a lógica desse pensamento se assemelha às criações de videoclipes para músicas. Toda música possui uma narrativa, que não é necessariamente absoluta, e a partir daí é desenvolvido um videoclipe para ilustrá-la. Penso que trabalhei nessa mesma linha. Digeri uma narrativa já existente e depois ilustrei através da minha perspectiva. Feito isso, os experimentos começaram a se encaixar pouco a pouco. Resolvi começar apresentando as personagens na primeira dupla do zine (páginas 2 e 3). Para tanto, utilizei um dos meus primeiros experimentos, que inicialmente e individualmente havia sido pensado para o filme Todo sobre Mi Madre. Procurei focar nas diferentes facetas das personagens nos filmes. Os recortes ajudaram a enfatizar que nunca sabemos ao certo quem são essas mulheres. São mulheres, travestis, mães de família, freiras? São tudo ao mesmo tempo? Quis trazer aqui essa mesma sensação de mistério e até de sensualidade que permeia o filme. Já o recorte da mulher de casaco vermelho foi encaixado para fortalecer a importância dessa cor nos figurinos das personagens, pois ela atua como elemento-chave, sempre dando pistas ao público de que algo importante está acontecendo ou está por vir. Mas o experimento dentro da narrativa funciona muito bem também. Apesar de o narrador de Le Fabuleux Destin d’Amélie Poulain nos contar tudo que Amélie está pensando e sentindo, a personagem é completamente imprevisível. Em contrapartida, na trama de Sofia Coppola, as cinco irmãs raramente falam, o que temos é apenas a percepção de fora e dos meninos que narram a história. Novamente não sabermos quem são realmente essas personagens, e os recortes, principalmente por nunca mostrarem o rosto,

transmitem essa sensação de incógnita. Dando continuidade, a página 3 abrigou o experimento fotográfico feito com uma maçã. Isso porque todas essas personagens possuem um desejo a ser quebrado. É o que move as histórias. Por muitos séculos, a tradição cristã proferiu ser a maçã o fruto proibido, que havia feito com que Adão e Eva se tornassem pecadores pelo desejo de comê-la. Esse experimento, na narrativa, simboliza os desejos de todas as personagens dos três filmes, seja o de Amélie Poulain, de se tonar uma pessoa menos introvertida; o de Manuela, de recomeçar uma nova vida; ou até mesmo o das cinco irmãs Lisbon, de viver intensamente. Assim, a maçã destruída simboliza as personagens dando o próximo passo, se libertando de seus desejos. Individualmente, o experimento foi pensado para o filme The Virgin Suicides com o mesmo significado da narrativa. Nas páginas 4 e 5, no clímax da história, me propus a surpreender o leitor do mesmo jeito que fui surpreendida pelos filmes, usufruindo do incômodo e da não linearidade, isto é, os caminhos distintos e inimagináveis dentro das tramas. Eu queria quebrar a história. O que acontece com as personagens? E quem são elas? Essas perguntas não saíam da minha cabeça. Desconstruir a história e incomodar o leitor com experimentos impensáveis foi o jeito que encontrei de transmitir a mesma sensação de nunca saber o que está por vir. Mas, em contrapartida, se olharmos atentamente, podemos encontrar significados mais profundos. Se levarmos em conta a conotação sexual da banana, vemos que é um elemento desencadeador bastante presente nos filmes, como em Todo sobre Mi Madre – em que a história gira em torno de Manuela querendo reencontrar seu ex-marido travesti – ou em The Virgins Suicides, com a traumática reação dos pais

quando Lux tem a primeira relação sexual. Já a imagem de duas mulheres dividindo um guardachuva pode representar a importância da amizade, do amor e da cumplicidade. O filme de Jeunet, por exemplo, o tempo todo nos mostra a importância das relações sociais entre as personagens, tentando fazer com que Amélie saia de sua bolha e ache seu grande amor. Em Todo sobre Mi Madre, fica nítido o foco na cumplicidade das personagens em quase todas as cenas, como quando Rosa pede para Manuela adotar seu filho, caso ela morra no parto. No filme de Sofia, as irmãs só podem confiar nelas mesmas e acabam se apoiando uma nas outras para viver diariamente. A cumplicidade é tão grande que quatro das cinco irmãs se suicidam ao mesmo tempo. Além disso, tratando individualmente, percebemos que cada filme carrega o aspecto estético de seu diretor. A banana com flores feitas com caneta preta representa o estilo kitsch – que utiliza os objetos mais cotidianos e os personaliza – do diretor Pedro Almodóvar. A imagem em preto e branco de Lady Di e Marilyn Monroe andando nas ruas de Paris, juntamente com as cores fortes pintadas com tinta aquarela, representa o estilo retrô que os filmes de Jean Pierre Jeunet carregam. Na última dupla (páginas 6 e 7), primeiro utilizei o experimento que inicialmente e individualmente tinha pensado para o filme The Virgin Suicides. Encontrei essa imagem em um anúncio da marca Prada, em uma revista, e imaginei que o olhar vazio e o mistério da modelo eram perfeitos para representar o filme. Então, basicamente recortei vários pedaços e remontei do jeito que achei que iria conseguir representar os planos detalhes de Sofia Coppola. Os recortes funcionam como se fossem zooms na imagem, assim como os planos no filme. Mas, na narrativa, quis representar o


Í

I R S

quebra-cabeça que é entender as mais sutis pistas nas linguagens visuais dos filmes. No final, todos nós nos encontramos tentando encaixar as peças. Na página 7, no último experimento do miolo, me inspirei na tela A Incredulidade de São Tomé1, de Caravaggio, e na música Dedo na Ferida, do Emicida. Por um lado, a pintura de Caravaggio apresenta uma das questões centrais do Barroco, o questionamento do pensamento religioso e, por consequência, o questionamento da existência de Deus. Tomé precisa “ver para crer”, assim como o homem barroco, que já não aceitava mais silenciosamente os preceitos católicos, como o homem medieval. Por outro lado, na música de Emicida, ouvimos a luta das pessoas humildes, que saem da periferia, contra o preconceito. As duas obras falam de assuntos polêmicos e sensíveis, que, em alguns casos, estão sendo mudados. O dedo cutucando o crème brûlée na tigela, individualmente foi pensado para o filme Le Fabuleux Destin d’Amélie Poulain. O crème brûlée representa o conforto da personagem Amélie, pois o prazer de sua vida era quebrar a casquinha do doce. O dedo enfiado na tigela significa a luta contra a sua introspecção, o questionamento da personagem sobre a sua vida e a tentativa bemsucedida de sair da sua zona de conforto. Resolvi finalizar a narrativa com esse experimento, pois todas as personagens dos três filmes passaram por transformações e mudanças pessoais – seja no filme de Coppola, em que a transformação ocorre de maneira fatal, ou em Todo sobre Mi Madre, cujas personagens modificam suas vidas depois que se conhecem. O dedo cutucando o doce representa então as personagens destemidas, quebrando os próprios limites. Diferentemente do miolo, a capa e a contracapa não possuem leituras individuais, porque são

experimentos feitos apenas com o intuito de testar as relações das cores nos filmes. Em um primeiro momento, não os tinha selecionado para o zine – na verdade, nem eu mesma entendia seus significados. Mas, depois que a narrativa foi desabrochando, voltei a olhar todos os experimentos e dois deles me chamaram a atenção por se encaixarem perfeitamente na narrativa. Para a capa, utilizei um dos primeiros experimentos que fiz com tinta e plástico. Ele representa o impacto das cores complementares que pouco a pouco se misturam, assim como o começo dos filmes, todos impactantes – como em The Virgin Suicides com a tentativa de suicídio de Cecília, ou em Todo sobre Mi Madre, que começa com uma discussão entre Manuela e seu filho, Esteban –, que pouco a pouco se misturam com o resto do filme. Na narrativa do zine, o experimento funciona exatamente como nos filmes. Já na contracapa, escolhi um experimento feito com plástico, tinta e papel – este colado nas áreas que não se misturam. O experimento representa os finais abertos dos filmes, através dos diferentes “caminhos” criados pelo plástico, tinta e papel. Enxergamos que algumas partes se misturam mais que outras, assim como alguns espectadores são mais atentos que outros. Nenhum filme no final nos dá uma resposta concreta nem nos conta a história inteira, o porquê das coisas. A mensagem transmitida e o entendimento cabem ao repertório e à atenção dos espectadores. O NOME Íris, assim como o zine, possui alguns

significados. O primeiro destaca a questão do gênero feminino, a personagem feminina e suas vertentes, que encontramos tanto na narrativa do zine quanto nos filmes analisados. Íris é a protagonista do zine, que, consequentemente, representa todas essas mulheres. Além disso, o zine não possui linguagem escrita, só conseguimos


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absorver informação através das imagens. Por isso, quis homenagear a nossa visão. Íris é a parte colorida dos nossos olhos, sendo a cor extremamente importante para a compreensão do zine. Sem a íris não enxergamos e, para enxergarmos, precisamos decodificar uma série de informações. Quando estamos observando um objeto, por exemplo, os raios de luz viajam do objeto até os olhos e aí a imagem é invertida, pois os raios de luz se cruzam. O cérebro, então, interpreta a imagem para que possamos ver corretamente. Na capa, Íris aparece distante e com uma parte invertida representando a leitura, feita em nosso cérebro, das imagens que estão por vir no zine. A IMPRESSÃO EM RISOGRAFIA A escolha das

cores para cada experimento não foi por acaso. Elas servem como pistas para desvendá-lo, pois têm papel fundamental na linguagem visual dos filmes e diretores. Por isso, são essenciais também para a compreensão. Como fazer um zine sobre Todo sobre Mi Madre sem o famoso vermelho? Ou como representar Jeunet sem as cores complementares: verde e vermelho ou sem o aspecto amarelado em seus filmes? Sabia que não poderia mexer radicalmente nas cores; elas carregam muito simbolismo e significado. Mas também não queria me limitar a simplesmente copiar as cores dos filmes, pois não são linguagens minhas. Seguindo essa linha de raciocínio, a impressão em risografia caiu como uma luva. Apesar de tentar simular a quadricromia na duplicadora, o resultado de cor nunca é previsível e igual à tela. Assim, pude criar as próprias cores, com tonalidades singulares e diferentes dos filmes. A Riso utiliza tinta líquida à base de soja, e não o calor para fixar a imagem, como uma copiadora comum. Como os cilindros são de cores intercambiáveis, é possível fazer uma impressão com grande quantidade de

cores e abusar das sobreposições, por causa da transparência das camadas de tinta. Além disso, permite imprimir cores que seriam inatingíveis em impressoras digitais, como o rosa fluorescente. Por tudo isso, a risografia favoreceu a linguagem que eu estava criando. Os limites da técnica possuem a própria linguagem e trabalham em conjunto com este projeto. A impossibilidade de sangria, a falta de registro e defeitos na impressão valorizam a falha e o erro, processos que sempre estão envolvidos em projetos experimentais. O MOVIMENTO Paralelamente às escolhas

dos experimentos, fui refletindo sobre o formato que teria o zine. Meu principal intuito era sair da convencional forma de livro e pensar em um formato menos fechado. Pesquisando sobre zines, encontrei um formato clássico, feito com apenas uma folha de papel A3, que, quando dobrada, se transformava em um pequeno livreto. Descobri que esse tipo de zine era bastante usado pelos fanzines de ficção científica, no começo. O que mais me interessou nele foram as diversas possibilidades de aproveitamento utilizando apenas uma folha A3 – podia, por exemplo usar o verso do zine para dar outro significado. Pude, então, retomar a questão do movimento no cinema. Tudo que eu não conseguia trazer da linguagem visual para a gráfica era o movimento. Mas, com a possibilidade de dobrar e desdobrar, de ler o zine de maneira convencional e depois abri-lo transformando-o em outra coisa, com outra possibilidade de leitura e significado, consegui achar um formato que tinha tudo o que eu buscava e que se complementava com a narrativa do zine. O ZINE QUE SE TRANSFORMA EM LAMBE-LAMBE

Com a possibilidade de aproveitamento do verso do zine, queria poder surpreender o leitor com

um pôster que reunisse os principais aspectos, sendo eles: a forte presença da protagonista feminina, suas personalidades; o movimento e a sensação de incômodo e questionamento. Também queria enfatizar o trabalho experimental e o tipo de impressão escolhido. Por isso, decidi imprimir apenas em uma cor, o vermelho-vivo, cor forte e feminina, que ainda permite enxergarmos mais nitidamente as vantagens e imperfeições desse tipo de impressão. Imprimi também, mais dois posteres, com diferentes experimentos. Além disso, comecei a pensar no fim que este zine teria. Por um momento, passou pela minha cabeça que tudo iria ficar empoeirado em uma estante qualquer. E isso parecia depor contra tudo que eu estava defendendo desde o início dessa jornada. O projeto experimental havia me possibilitado quebrar todas as minhas regras, zonas de conforto, limites e frustações. Fora uma grande montanha-russa de descobertas. Não conseguia enxergar sentido em deixá-lo jogado em qualquer lugar. Não era assim que imaginava o fim deste ciclo. Por isso, a ideia do lambe-lambe ocorreu de maneira bastante natural. Se existia algum lugar para este ciclo acabar, esse lugar era a rua. Onde tudo começou. Vale ressaltar que este projeto não seria metade do que se tornou se não fossem todas as experiências a que me propus descobrir fora da minha rotina de pesquisar e escrever em frente ao computador. Assim, saí pelas ruas de São Paulo colando os zines/lambe-lambes em todo lugar que tive oportunidade. Quem sabe alguém não descola e descobre as suas infinitas possibilidades? Não estaria lá quando isso acontecesse, mas essa fantasia me deixava muito mais satisfeita do que algo estagnado em uma estante. CONSIDERAÇÕES FINAIS Diferentemente de muitas editoras tradicionais, que se preocupam com a produção em massa, o movimento das

produções gráficas independentes segue o caminho oposto: distancia-se da impressão digital, focando em uma qualidade peculiar da publicação, principalmente pelo toque da tinta e pelo papel, e dá grande importância à materialidade do produto. Esta pesquisa chama a atenção para as constantes descobertas de um projeto experimental e para os benefícios proporcionados por essa oportunidade única de acompanhar todas as etapas de produção – desde a ideia até a montagem – e, principalmente, de travar contato direto com processos completamente manuais e um tipo de impressão menos digital e de baixa tiragem. Essas possibilidades dão ao designer o poder de fazer mudanças durante toda a execução do projeto, estimulando assim o pensamento projetual. As técnicas estudadas, aplicadas a problemas básicos de design, se tornaram ferramentas potentes para uma pesquisa visual e para a melhoria do processo projetual. Ficou claro que o conhecimento desses processos pode levar o designer a projetar de maneira mais consciente, levando em consideração suas limitações e potencialidades. Essa conexão com a matéria pode transformar os parâmetros de pensamento do designer e sua produção. Durante o desenvolvimento desse projeto, pratiquei o exercício do raciocínio de projeto e mudei completamente minha forma de pensar. Creio que este é o projeto mais desafiador que me propus a realizar, mas também o mais satisfatório. O tempo despendido na parte prática, período intenso e cansativo que exigiu persistência, foi essencial para a minha formação. Assim defendo que a possibilidade de realizar um PGD experimental é de extrema importância para os alunos e para esta faculdade. 1 ANEXO Quadro A Incredulidade de São Tomé, do pintor Caravaggio, página 129



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ÍRIS LAMBE-LAMBE Rua Francisco Cruz, Vila Mariana; Rua Rino Pieralini, Vila Mariana e Rua do Oratório, Mooca.


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ÍRIS LAMBE-LAMBE Rua Dias Leme, Mooca; Rua Rio Grande, Vila Mariana e Rua Capitão Cavalcanti, Vila Mariana.


A E N O S S

ANEXOS das imagens citadas nos textos acima, referĂŞncias bibliogrĂĄficas e material de apoio.


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ANEXOS quadros de Juarez Machado e Pierre-August Renoir.

LEGENDA Quadro 1 Two Sisters (On the Terrace) Quadro 2 Geraniums and Cats Quadro 3 Luncheon of the Boating Party Quadro 4 Bal du moulin de la Galette

LEGENDA Quadro 1 Bistro Quadro 2 Le pianiste du Titanic Quadro 3 Ch창teau Lafite-Rothschild - Salon Vert Quadro 4 Interior com Figura Quadro 5 Atelier in Paris


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ANEXOS lista de experimentos de fotografia realizados com comida e quadro A Incredulidade de SĂŁo TomĂŠ, do pintor Caravaggio.


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MATERIAL DE APOIO

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